Bordas e dobras da imagem teatral Angela Materno

Transcrição

Bordas e dobras da imagem teatral Angela Materno
Bordas e dobras da imagem teatral
Angela Materno
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO: A autora problematiza a questão da imagem teatral, vista além do pictórico
que se inscreve no tempo e espaço, para uma abordagem que leve em conta suas
dobras e bordas conceituais. Apoiando-se em Foucault e Didi-Huberman, essas
fronteiras conceituais, a partir de Magritte, devem ser redefinidas, pois já não é
possível abrigar semelhança e similitude no mesmo campo conceitual, daí o uso que a
autora faz do conceito de dessemelhança, proposto por Didi-Huberman, para chegar à
perspectiva da imagem artística concebida como encenação de uma ausência.
(resumo feito pelo editor)
Palavras chave: teatro - imagem - figurabilidade
Algumas das possíveis indagações a respeito da imagem teatral talvez sejam:
Qual é a sua matéria, afinal? As palavras, pausas e gestos encenados, ou os ritmos,
volumes e vazios escritos no espaço e inscritos no tempo? O que lhe concerne,
sobretudo? Uma certa textualidade, entendida como um corpo de imagens verbais e
auditivas, ou uma certa plasticidade, entendida como impressões visuais e táteis? Em
que momento ou lugar surge a imagem teatral? Quando o seu ponto de constituição?
Onde a sua pulsação? Qual o seu agora? Ela existe no presente e dirige-se ao
presente? Atualiza o passado? Ou torna o presente anacrônico e distanciado dele
mesmo? Que presente é o seu presente? Qual a sua atualidade? Qual é o trabalho da
imagem teatral?
As quatro primeiras interrogações descartam respostas ancoradas nos
argumentos da derivação ou da complementaridade, pois é insuficiente dizer que texto
e cena se completam, existem em função um do outro, ou mesmo que são
conjuntamente construídos. O problema da imagem teatral permanece aí pouco
enfrentado, pois as dobras e bordas dos signos e conceitos implicados na imagem
teatral acabam sendo aplainadas por uma suposta conciliação final dos diferentes
materiais e processos. As quatro indagações seguintes perguntam pela feitura e pelas
fraturas da imagem teatral, produzidas pelas tensões e extensões de suas fronteiras
artísticas e de seus enquadramentos espaço-temporais. As seis últimas colocam em
1
pauta o teor de historicidade da imagem teatral e apontam para as noções de
representação, de figuração e de atualidade.
Para abordar parcialmente, e de modo ainda inicial, algumas dessas
questões, talvez seja necessário, antes de tudo, pensar a própria noção de imagem - a
partir de algumas de suas teorizações e formulações históricas - e pensá-la também
em relação a outras artes.
Michel Foucault, em seu ensaio sobre o quadro Isto não é um cachimbo, de
René Magritte, destaca que dois princípios regeram e tensionaram a imagem pictórica
ocidental do século XV ao século XX: a separação entre representação plástica e
referência lingüística, e a equivalência entre semelhança e afirmação. No caso,
afirmação de um "laço representativo". Neste sentido, desde então fez-se ver pela
semelhança, semelhança esta que, segundo o autor, inseria no "jogo da pintura" um
"enunciado evidente", embora silencioso, qual seja: "O que vocês estão vendo, é isto"
(Foucault, 1988,41-42) E seria exatamente aí, nestes enunciados evidentes, ou nestas
evidências afirmadas, que estaria localizada, ainda segundo Foucault, a tensão
constitutiva da pintura clássica, pois a afirmação de uma semelhança reintroduz na
pintura a dimensão discursiva que a separação entre signos visuais e signos
lingüísticos quer excluir. Deste modo, como bem nota o autor, "a pintura clássica
falava - e falava muito - embora fosse se constituindo fora da linguagem" (Foucault,
1988,75).
O citado quadro de Magritte, cuja segunda versão é analisada por Foucault,
opera um duplo desmonte desses dois princípios. Desfazendo a equivalência entre
semelhança (a imagem de um cachimbo) e afirmação (insere no quadro a frase "Isto
não é um cachimbo"), evocando a evidência ("Isto") para negá-la ("Não é"), Magritte
enuncia esta negação no interior do próprio espaço pictórico, justapondo a imagem de
um cachimbo e o enunciado que a contradiz. Ao analisar esta e outras pinturas de
Magritte, Foucault estabelece uma diferença conceitual entre semelhança e similitude.
A primeira possuiria um padrão, a partir do qual seriam ordenadas e classificadas sua
cópias, a segunda se desenvolveria em séries, sem hierarquia. A semelhança estaria
vinculada à representação, já a similitude estaria vinculada à repetição. A semelhança
produziria o reconhecimento daquilo que está visível, a similitude faria ver aquilo que
os objetos reconhecíveis impedem de ver. A similitude, como jogo de transferências
que se desdobram sem nada afirmar ou representar, problematizaria a semelhança e
a asserção representativa.
Esta "similitude desidentificante" - como se refere Georges Didi-Huberman à
noção desenvolvida por Foucault em seu ensaio sobre Magritte - pode ser articulada à
2
noção de dessemelhança formulada pelo próprio Didi-Huberman ao analisar o
problema da imagem nas obras minimalistas. A dessemelhança é aí pensada para
também problematizar o conceito de representação e, mais especificamente, o
conceito de figurabilidade, entendido pelo autor como um jogo, ao mesmo tempo de
imagens e de palavras, em que se joga com a imitação (no sentido de produção de
semelhança), mas para lançá-la fora do campo de visão, para fazê-la desaparecer. A
figurabilidade para Didi-Huberman não é, portanto, a re-apresentação do reconhecível
ou a afirmação de uma evidência, mas a produção de dessemelhanças. Figurável é o
que pode ser lançado - como um cubo, como os cubos minimalistas de Tony Smith - é
o que está "sempre caído", e destinado à perda, à ruína e aos paradoxos. É o que
está prestes a desaparecer, ou o que reaparece como um "frágil resto". Como observa
o autor, "em muitas das imagens fortes, se encontram uma graça superlativa e um luto
imenso, um gesto e uma suspensão do gesto, um desejo e uma renúncia, uma quase
consolação e uma perda inconsolável" (Didi-Huberman, 2005,65).
E é colocando em xeque uma outra asserção sobre aquilo que se vê - uma
afirmação do pintor Frank Stella sobre a arte minimalista, O que você vê é o que você
vê, frase que substitui a afirmação de uma semelhança (o que você vê é isto) pela
repetição do enunciado - que Georges Didi-Huberman questiona tanto esta definição
tautológica da imagem, quanto o caráter representativo que foi e muitas vezes ainda
lhe é atribuído. E se Foucault falava em "laço representativo" para designar uma
determinada concepção histórica da imagem, Didi-Hubermann conceitua a imagem, e
seu jogo dialético, como um "laço de abandono", ou seja, como um elo desde sempre
perdido - e destinado a sê-lo - e, por isto mesmo, sempre novamente reposto em jogo:
"a perda sempre volta, nos traz de volta". Assim sendo, a imagem deixaria de estar
relacionada a uma "transparência representativa" para ser pensada como a
compacidade "daquilo que cai" (Didi-Huberman, 1998,116). E neste sentido, o que
você vê não seria nem isto (afirmação da semelhança), nem apenas o que você vê
(afirmação da literalidade), não seria aquilo que está aí, como semelhança ou como
especificidade, mas aquilo que aí desaparece, ou aquilo que retorna de um
desaparecimento, de um despedaçamento do visível, e que, portanto já aparece
arruinado, esvaziado, dessemelhante. Volumes dotados de vazios, vazios trabalhados
em seu volume, como destaca o autor ao analisar esculturas minimalistas.
Nesta perspectiva, em que a imagem artística é concebida como encenação
de uma ausência, ou como uma ausência em obra, a noção de historicidade deve
também ser redimensionada. E é neste sentido que a atualidade de uma imagem não
é a sua aderência ao presente, mas a dialética que ela opera entre anacronismo e
3
contemporaneidade, dialética que faz do atual uma alteridade em relação ao passado
e ao próprio presente. Esta dupla alteridade, esta não simultaneidade do simultâneo,
ou este tempo fora dos eixos constitui o teor de anacronismo das imagens artísticas,
tanto em seus modos de visualização quanto em seus modos de enunciação. Para
Didi-Huberman, o "valor de ausência" é, ao mesmo tempo, uma importante "operação
formal da arte contemporânea" e uma operação "literalmente anacrônica" (DidiHuberman, 1998,144). E citando Pierre Fédida, ressalta que o presente da imagem
não é uma temporalidade cronológica, sendo a própria visualidade uma categoria
anacrônica do tempo: evoca a memória e se presentifica como reminiscência. Neste
sentido, a figurabilidade é também uma ritmicidade, um jogo espaço-temporal, esta
constante conversão da proximidade em distância (e vice-versa).
Retornando às interrogações iniciais, talvez se possa dizer que é a partir da
própria indefinição de seus materiais e de seus modos de fazer e de dar a ver que a
imagem teatral deve ser pensada. Constituindo-se nos desdobramentos e limites entre
formas de visibilidade e de conceituação diversas, na interface entre as linguagens
verbal e visual, a imprecisão das fronteiras que a imagem teatral aciona é bem mais
significativa do que as tentativas de fixar o seu centro - seja ele o texto, a cena ou o
ator, por exemplo - e de resolver sua disparidade interna por meio das noções de
complemento ou de conjugação. A imagem teatral trabalha sobre seus próprios limites
e paradoxos, trabalha sobre as arestas de suas bordas e sobre as imperfeições de
suas dobras. Não para camuflá-las, mas para encenar os elos perdidos na trajetória
entre o visível e o dizível, para avolumar os vazios entre o corpo e a palavra, entre a
imagem e a enunciação, para, enfim, recolocar em jogo esta improvável ou impossível
conjugação.
Bibliografia:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Gestes d'air et de pierre: corps, parole, souffle,
image.Paris: Les Éditions de Minuit, 2005.
------. O que vemos, o que nos olha.São Paulo: Ed.34, 1998.
FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Angela Materno é pesquisadora e professora na Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, UNIRIO, onde lidera o grupo de pesquisa "Formas e Efeitos, Fronteiras
e Passagens na Linguagem Teatral" em parceria com José da Costa Filho.
4
Dúvidas sobre a TFC e como contribuir com artigos, entre em contato com o editor
Rodrigo Garcez no email: [email protected]. A revista eletrônica de Artes Cênicas,
Cultura e Humanidades "TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS DA CENA" é uma produção
do Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular do PPG em Artes Cênicas da
ECA-USP e do GT-ABRACE Territórios e Fronteiras.
GIDE - Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular.
Departamento de Artes Cênicas - CAC-ECA-USP. Av. Profº Lúcio Martins
Rodrigues,443 sala 08, Cidade Universitária, 05508-900, São Paulo-SP, Brasil, a/c
Editor da TFC
5