1 Não entendi! paradoxos da recepção teatral Ana

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1 Não entendi! paradoxos da recepção teatral Ana
Não entendi!
paradoxos da recepção teatral
Ana Maria de Bulhões-Carvalho
A discussão sobre a importância da participação intelectual, afetiva e
emocional do público é fundamental no teatro, mas não se faz sem o auxílio de
alguns paradoxos. Sem público, não há teatro, certo? Oferecer-se como
linguagem inteligível à compreensão de alguém que a assimile, decodifique e
aprecie é, sem dúvida, a condição existencial desta arte, o teatro, cujo nome
agrega dois pólos inseparáveis da comunicação: etimologicamente, teatro vem
do grego théatron, onde théa indica a visão, o público, o espetáculo, e tron, o
instrumento, a máquina de espetáculo. Simultaneamente a palavra aponta para
o espaço e o que nele se mostra, a visão e o que é visto, o local de onde se vê
e aquele que vê. Teatro: arte de imagens e sons oferecidos aos sentidos e à
inteligência do espectador através de um corpo que lhe serve de suporte vivo –
o ator.
Desde a origem o teatro supõe, portanto, que do encontro desses dois
conjuntos de partícipes de mesma natureza – natureza humana – e dos quais
depende sua existência resulte uma relação de cumplicidade, de compreensão.
Primeiro paradoxo, no entanto: apesar de partilharem a mesma natureza, ator e
espectador, ao aceitarem esta condição de ator e espectador, passam
imediatamente a habitar ordens distintas e contraditórias de realidade: o atorpersonagem passa a circular na ordem do real ficcional de uma construção
imaginária, enquanto que o espectador continua a privar da ordem do real
tangível e cotidiano.
Inicia-se assim entre esses supostos parceiros um jogo de sedução e
repulsa, aproximação e exclusão, através do qual, como diz Alain Rey (1980:
185) colocando-se na posição do espectador: eu sou excluído do drama, mas
sou aprisionado com ele, e contra ele, neste espaço ao mesmo tempo comum
e separado que é o lugar teatral. Estar diante de um outro, simultaneamente
igual e diferente de si, é, pois, a primeira condição inquietante e paradoxal do
espectador.
Se o fenômeno teatral supõe a circulação do sentido de um texto que se
move no tempo e no espaço através do corpo e da voz de um ator, entre e para
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atentos observadores, tudo o que estiver naquele lugar participa do fenômeno
teatral, e é também impregnado pela mudança da ordem do real, portanto deve
estar também impregnado de sentido. Mas de um sentido que deveria ser
acessível a quem observa, para que a comunicação estética possa acontecer.
O problema ocorre quando cessa o sentido e se estabelece entre palco e
platéia um silêncio não produtivo, quando ocorre a perplexidade que o
espectador exclama: não entendi!
Observando-se a história dos espetáculos, verifica-se a existência de um
movimento pendular que oscila entre o apelo e o desafio ao público, de tal
modo que talvez toda a história do teatro pode ser vista como registro
sucessivo das diferentes formas de manifestação do jogo de aproximação e
repulsa, de harmonia e desavença, de bajulação ou de terror estabelecido
entre os agentes que dominaram, através dos tempos, o palco e a platéia. Isto
é, essa história do teatro passa a ser um longo e diversificado registro de
sucessos e fracassos de público. Segundo paradoxo: o teatro, tendo surgido
como rito de comunhão social, alimentou-se através dos tempos de momentos
marcados pelos efeitos desagregadores provocados por abalos e rupturas
entre os promotores da cena e os espectadores, partidários ferrenhos de um
padrão estético cujo padrão não permitem afrontar. Lembremos exemplos
históricos emprestados ao teatro francês, como: La querelle du Cid, embate
temático promovido pela peça de Corneille, afrontando a poética neoclássica
francesa do séc.XVII; ou a ruptura com o mesmo padrão clássico, iniciada pelo
drama burguês, no século XVIII; ou ainda o escândalo do abuso de um
enjambement em verso inicial, provocando, contra Victor Hugo, a Batalha do
Hernani, em pleno Romantismo francês, já no início do século XIX; ou a ruptura
com o naturalismo, no final daquele século, espicaçado por Alfred Jarry, com o
Pai Ubu dizendo Merdra!, na abertura de seu Ubu Rei.
A contemporaneidade identifica-se com o paroxismo desse quadro de tal
modo que, como lembra Jean-Pierre Ryngaert (1988:38): Há em muitos
criadores uma espécie de inquietação profunda, ligada ao exercício de sua
arte, como se temessem passar ao largo do essencial deixando-se seduzir
pelas sereias do consumo e do sucesso. Por essa lógica, para estar em
sintonia com o próprio tempo e propor ruptura, renovação e interrogação, como
condições essenciais, o teatro estaria implicitamente conclamando o abandono
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do público, fazendo supor, desse modo, que o essencial está fadado ao
insucesso. Ou, por outro lado, que o que faz sucesso não é importante, como
realização teatral. Desse modo, só haveria uma alternativa, simplificada e
preconceituosamente representada pela contraposição teatro-de-mercado e
teatro-de-experimentação.
A contradição implícita na argumentação anterior diz respeito também
ao destino do terceiro elemento da tríade essencial do teatro – o texto. Nos
exemplos referidos a respeito das batalhas de público, pode-se notar o peso
considerável da poética textual sobre as reações dos espectadores. A
descoberta da luz elétrica e sua utilização no teatro, pondo fim ao chamado
textocentrismo e dando início à era do encenador, no final do século XIX, como
lembra Jean-Jacques Roubine (1982), faz com que tudo passe a conspirar pela
valorização da cena como espaço de representação, processo que tem na
figura do encenador francês do Théâtre Libre, Antoine, um de seus mais
vigorosos exploradores dos novos potenciais. A partir desse momento, passase a promover uma dupla reflexão relativa não só à relação entre a arquitetura
teatral, o público e o espetáculo, como relativa à exploração do espaço cênico
pelo encenador, considerando-se aí não só a importância da cenografia para
criar a ambientação cênica como uma diferente importância do trabalho de
interpretação
desenvolvido
pelo
ator.
Altera-se
conseqüentemente
a
espectação, que passa a exigir do espectador também uma reflexão sobre a
forma da cena. O que até então se limitava ao padrão de encenação permitido
pela iluminação precária de velas ou querosene e a vista de telões pintados,
com o emprego da eletricidade passou a possibilitar reconstituições precisas de
ambientes e climas, ou sugerir as mais especiais circunstâncias. Inaugurava-se
a chamada teatralidade, abrindo seu infindo potencial de exploração.
Para um novo tempo, novo paradoxo: quanto mais as condições
modernas permitiam a transformação da cena em fatia de vida, reproduzindo
fidelissimamente o real, tanto mais se acentuava o jogo da ilusão teatral, que
pressupunha o apagamento do espectador, reduzido a voyeur oculto atrás da
"quarta parede". Como resposta, novas propostas da cena para desafiar o
espectador: em lugar da ilusão pela exploração da mágica teatral, o convívio
acordado pela exibição da engrenagem: em lugar da reconstrução fiel, a
exibição do artificial, da natureza de construção artificial da cena, quer pela
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utilização de dispositivos cênicos, como propôs Meyerhold com a biomecânica,
quer através de uma estética de distanciamento afetivo e aproximação
intelectual, pelo que optou, por exemplo, o teatro épico brechtiano, no século
XX. Contemporaneamente estamos vivenciando uma nova etapa do combate
ao textocentrismo, não mais no sentido da exploração da cena como
redescoberta da teatralidade, mas, num golpe mais radical, como forma de
erradicação do próprio texto dramático. Melhor dizendo, tudo o que cai na rede
é peixe: tanto é dramático o que o ator diz quando ocupa o espaço teatral –
poema, conto ou romance; quanto é teatral o que o intérprete apresenta em
cena, através de movimentos coreografados e ritmados por uma melodia, com
ou sem texto, se assim se convencionar; como também constituem gêneros
dramáticos as novas interformas, dança-teatro, ópera-seca, performance,
teatralização, constituídas, essas interformas, nos intervalos entre as formas
canônicas cristalizadas.
Jean-Jacques Roubine chama atenção para o fato de que a afirmação
da soberania do encenador marcou para sempre a maneira de se referir às
realizações teatrais. O que antes era lembrado pelo nome do autor, ou do ator,
passou a ser referido pelo autor da montagem, pelo responsável pela direção
ou da performance. A quebra de fronteiras, entre gêneros e concepções
estéticas, provoca infinitas experiências de rupturas e propostas, assumidas
pelo encenador, levando o não entendi!, de reação ocasional a proposta
desejável, ou até tematizada pela própria encenação, como demonstram
exemplos nos textos dos anos 1950 do chamado teatro "absurdo". Ou
radicalizados em exemplos do final do século XX, selecionados por Jean Pierre
Ryngaert para seu livro Ler o teatro contemporâneo (1998). Vê-se aí a máxima:
se o teatro era ator-personagem, acabe-se com o personagem. Diz Ryngaert:
A fala não é mais necessariamente enunciada por um personagem construído,
com identidade observável; se teatro é diálogo, morte ao diálogo: Nem sempre
se sabe de onde vem a fala, ou quem fala, e também não se sabe a quem ela
se dirige (136).
Um pensamento sobre o lugar teatral no teatro contemporâneo, fiel à
lógica paradoxal que o rege, poderia servir-se das assertivas de Bernard-Marie
Koltès (apud Ryngaert:216): dramaturgo francês falecido em 1989: Vejo um
pouco o palco de teatro como um lugar provisório que os personagens o tempo
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todo têm em vista abandonar. É como o lugar em que se colocaria o problema:
isso não é a vida verdadeira, como fazer para escapar daqui. As soluções
aparecem sempre como devendo ocorrer fora do palco, um pouco como no
teatro clássico. [...] Sempre detestei o teatro porque o teatro é o contrário da
vida; mas sempre volto para ele e gosto dele porque é o único lugar em que se
diz que não é a vida.
Para terminar: O que Jean Vilar aponta como fundamental é ainda que
importam as condições para o teatro dizer merdra!, isto é, reacender sua
capacidade de inquietar e provocar reações é a condição essencial do teatro.
Mas, e o público? Se provocado, escapole ou se multiplica?
O essencial do fenômeno teatral não se mede pela quantidade de
público. Pelo contrário, a velha inquietação dos artistas do teatro desperta,
mesmo quando se esforçam para dirigir-se ao maior número possível de
pessoas (apud Ryngaert :39). Por este raciocínio redentor, estariam novamente
harmonizados cena e público, agora, porém, já se considerando, além da
qualidade do que é apresentado e o contingente para quem se apresenta, a
forma de que se utiliza. Como propôs Claude Régy para Renovar sua
sensação do mundo, é preciso abandonar qualquer realismo, porque através
da reabilitação de situações execráveis sob forma fidedigna acaba-se por darse continuidade ao que se quer expor: Denuncia-se, vai-se olhar a denúncia
para continuar seduzindo. Pelo próprio sistema de uma língua que não se
transformou, reinstala-se a influência sobre a coisa. Todos temos em nós fibras
de totalitarismo, de exterminação. E, ao denunciar isso na vulgaridade de uma
verossimilhança de má qualidade, os diretores despertam todos esses
impulsos (apud Ryngaert:204-205).
Fazer entender? Ou sugerir, confundir, perturbar? Tentar explicar, ou
apenas encantar, sensibilizar? Pode-se apenas gostar? Procuro uma saída
paradoxal (e desconstruída) em Beckett, num texto de 1945, O mundo e a
calça (Lê monde et le pantalon), onde fala de pintura, por ocasião das
exposições de Abraham e Gerardus Van Velde, referindo-se a um amante da
pintura que é prevenido contra a pintura abstrata e que é impedido de ter
prazer ao olhar os quadros, sem que nunca lhe tenham dito: Não há pintura. Há
apenas quadros. Visto que esses não são lingüiças, não são nem bons, nem
ruins. Tudo o que se pode dizer deles é que traduzem, com maiores ou
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menores perdas, absurdos e misteriosos impulsos em direção à imagem, que
são menos ou mais adequados diante de obscuras tensões internas. Não se
trata de você mesmo decidir o grau de adequação já que você não está na pele
do tenso. Ele mesmo não sabe nada na maior parte do tempo.[...] Tudo o que
um dia você saberá sobre um quadro é o quanto você gosta dele (e a rigor por
quê, se isso lhe interessar). Mas isso você provavelmente também nunca
saberá, a não ser que se torne surdo e esqueça sua cultura literária (apud
Ryngaert :201-202).
Ana Maria de Bulhões-Carvalho é Doutora em Literatura Comparada pela UFRJ,
professora do Departamento de Teoria do Teatro, da Escola de Teatro da UNIRIO e atual
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Teatro, dessa universidade, além de
membro eleito da diretoria da ABRACE, gestão 2004-2006.
Referências:
Rey,A.& Couty,J.Le théâtre. Paris: Bordas, 1980.
Roubine, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral 1880-1980. Trad. Yan Michalski.
Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982
Ryngaert, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. Trad. Andréa Stahel da Silva. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
Este texto, não publicado e com algumas alterações, foi originalmente apresentado no 9o.
Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes (UFRJ),
realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em agosto de 2002.
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