homenagem a duas glórias da música italiana: arturo toscanini e

Transcrição

homenagem a duas glórias da música italiana: arturo toscanini e
HOMENAGEM A DUAS GLÓRIAS
DA MÚSICA ITALIANA:
ARTURO TOSCANINI
E
MAGDA OLIVERO
Emilio Spedicato
Universidade de Bérgamo
[email protected]
Dedicado a:
Giuseppe Valdengo, barítono preferido de Toscanini, que retornou ao
Maestro no início de outubro de 2007.
Textos produzidos para a revista Liberal, aqui apresentados com pequenas modificações.
Agradecimentos à condessa Emanuela Castelbarco, neta de Toscanini, pela revisão e
sugerimentos da parte relativa a seu avô; e à Senhora da Música Lírica, Magda Olivero
Busch, pela revisão da parte a ela dedicada. A foto da última página apresenta Spedicato
com a Sra. Olivero, e foi feita na primavera de 2007.
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RECORDAÇÕES DE TOSCANINI,
GLÓRIA ITALIANA DO SÉCULO XX
Como já citado no artigo sobre Andrea Luchesi e sobre Mozart (e aqui anuncio a próxima
publicação do novo livro de Taboga sobre a morte de Mozart, enriquecido com o material
descoberto na última década) não sou musicólogo, mas um apaixonado pela música
clássica e, nos últimos anos, também pela música lírica e popular. Tive a sorte de
conhecer pessoalmente grandes músicos, como o pianista Badura-Skoda, e estrelas da
Música Lírica como Taddei, Valdengo, Di Stefano (devo dizer sua esposa porque Pippo
ainda não se recuperou da agressão sofrida no Kenya onde, para defender a medalha
presenteada por Toscanini, foi golpeado gravemente na cabeça e, mesmo havendo se
recuperado do coma, está paralisado há três anos), Giulietta Simionato e sobretudo
Magda Olivero. E a lista de livros que li é bastante ampla, sete somente sobre Toscanini;
eu pude também interagir com o biógrafo de Toscanini, considerado o primeiro do mundo,
Harvey Sachs, resolvendo-lhe um problema sobre o motivo do rompimento de Toscanini
com o amigo Alberto Erede e informando-o que, contrariamente ao afirmado no seu livro
sobre as cartas de Toscanini às suas amantes, existe uma carta de uma outra amante,
Rosina Storchio. Encontra-se na sua biografia, à venda no Museu Storchio em Dello,
perto de Brescia, museu que é o segundo da Itália para a Música Lírica (possui também a
mais vasta coleção de libretos de ópera do mundo) e que é virtualmente desconhecido.
Estando Sachs praticamente desaparecido da Itália este ano, suponho que seja para
fazer um lucrativo ciclo de conferências sobre Toscanini nos EUA, onde o grande
maestro é mais lembrado do que na Itália, “nemo propheta in patria”, as informações
abaixo elencadas são do livro Toscanini, dolce tiranno de Renzo Allegri, na minha opinião
o melhor do mercado, baseado nas memórias que as filhas Wanda e Wally escreveram
há alguns anos e foram na época publicadas em capítulos em uma revista de grande
difusão.
Tenho uma ligação familiar com Toscanini. Meus pais o estimavam mais do que qualquer
outro italiano do século XX, talvez porque meu avô foi o primeiro intérprete em Milão no
início do mesmo século, então certamente o havia encontrado no Teatro alla Scala. E
somente recentemente fiquei sabendo, por uma tia de noventa anos e também por outro
parente um pouco mais jovem, que Aureliano Pertile, o tenor preferido de Toscanini pela
extraordinária expressividade, capaz de fazer chorar todo o auditório, era amigo da família
e ia tocar piano e cantar na casa dos meus avós. E suspeito que algumas partituras de
árias líricas (Mi par d’udire ancora… e lucevan le stelle) que sobreviveram à bomba
inglesa (última bomba sobre Milão), que destruiu a casa da minha avó, pertenceram à
Pertile. E me lembro que, quando eu tinha 12 anos, a notícia da morte do Maestro deixou
em casa uma grande tristeza.
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Não sendo competente para entrar nos aspectos musicológicos de Toscanini, a alguns
anos submetidos a uma revisão discutível, apresentarei agora, mesmo se
anedoticamente, os elementos principais de sua vida. Para aprofundar-se no assunto,
além de alguns livros disponíveis no mercado, é aconselhável uma visita à casa onde
Toscanini nasceu, em Parma, e ao Conservatório da mesma cidade, que também possui
uma Sala-Museu. Escreverei T para indicar Toscanini.
T nasceu em 25 de março de 1867 em Parma, na zona operária além do rio, de pai
garibaldino e anticlerical e de mãe católica praticante. Descobriram logo a sua capacidade
musical, uma das quais era tocar ao piano, que ainda não tinha estudado, motivos apenas
escutados. Graças a uma bolsa de estudos entrou no Conservatório de Parma, onde a
disciplina era muito rígida, a comida escarça, não tinha aquecimento, tinha missa
obrigatória toda manhã, mas os professores eram de alto nível. Por ter faltado um dia, T
foi obrigado a passar 24 horas em um quartinho escuro, somente com o violoncelo. Não
lhe foi permitido ir ao banheiro e usou então o violoncelo como recipiente. No dia seguinte
seu professor perguntou: “mas o que há com o seu violoncelo, está suando?!”
Foi logo chamado de gênio pelos colegas, que tinham notado a sua extraordinária
memória e paixão em aprender todo tipo de música e tocar qualquer instrumento. Um
docente perguntou porque o chamavam assim e quis testá-lo. Primeiro lhe disse para
tocar uma peça a primeira vista e depois tocá-la de cor; depois lhe fez ver uma peça de
Wagner e pediu para interpretá-la ao violoncelo. Vendo as respostas perfeitas de T, disse:
“é verdade, Toscanini, és um gênio”. A extraordinária capacidade mnemônica de
Toscanini é um dos fenômenos documentados da história humana. Lembrava
visivelmente também de eventuais marcas ou manchas da folha, e parece que tenha
memorizado cerca de 1500 obras entre sinfônicas e operísticas. Certa vez um músico da
orquestra lhe disse que não podia tocar porque tinha uma corda arrebentada e não podia
substitui-la. T lhe perguntou que nota esta corda soava, pensou um pouco e disse: “mas
não tem esta nota na tua parte!” Uma outra vez, quando já tinha quase noventa anos, e o
pianista Delli Ponti ia à sua casa para tocar peças barrocas (às quais tinha dado pouca
atenção) Delli Ponti disse: “tocarei uma peça quase desconhecida de Frescobaldi…” E T
replicou, lembrando que tinha visto a partitura quando estava no Conservatório: “existem
duas versões publicadas, ambas com um erro no quarto compasso”. De qualquer forma
vale dizer que outros grandes, como De Sabata no campo musical e Von Neumann no
campo científico, tinham uma similar memória extraordinária. Sem contar o caso citado
por Oliver Sacks, de um russo que lembrava tudo de cada dia da sua vida, o que é um
tanto incômodo… ou os cantores kirghisi que memorizam os seis milhões de versos da
poesia épica de Manas.
No Conservatório, T se especializou em violoncelo, mas não temos fontes confiáveis
sobre a sua qualidade como intérprete. Lembrando que nos anos seguintes tocou
muitíssimo piano, acompanhando cantores, e nos últimos anos realmente passou dias
inteiros ao piano, tocando óperas inteiras e cantando-as com sua voz muito afinada e
expressiva (isso fica evidente em uma célebre gravação do ensaio da Traviata onde
Violetta era cantada por Licia Albanese, que agora vive em Nova Iorque e tem quase cem
anos…).
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Aos dezenove anos, T partiu para uma turnê como violoncelista na América do Sul. Já
conhecia de memória mais ou menos vinte óperas e na viagem se divertiu, além de
seduzindo algumas cantoras (T era irresistível e, como me contou sua neta Emanuela
Castelbarco, as mulheres caíam em seus braços), regendo várias óperas com seus
colegas tocando e cantando. No Brasil, a péssima performance do maestro gerou
clamorosas vaias em uma récita onde estava presente o Imperador Dom Pedro. A turnê
corria o risco de acabar, deixando os músicos da orquestra e os cantores sem dinheiro
para voltar. Então uma corista voltou-se a T, em dialeto de Parma, insistindo para que ele
subisse ao pódio. Depois de um momento de hesitação, T aceitou, entrando no palco sem
ter ensaiado e sem o fraque, e regendo, como depois disse, como em transe e com os
olhos fechados. Foi um triunfo, o público aplaudiu intensamente compreendendo que
estavam diante não só de um maestro muito jovem, mas de um músico de extraordinária
capacidade, e o imperador o presenteou com uma caixinha preciosa. E o triunfo se repetiu
nos dias sucessivos da turnê, com críticas de grande futuro nos jornais, como foi o caso
depois.
De volta à Itália, T pensava em continuar a carreira de violoncelista (e por alguns anos foi
também compositor; destruiu as suas composições quando, ouvindo Wagner, concluiu
que não podia superá-lo). Entretanto a fama do seu sucesso na América foi difundida e
logo foi chamado para reger várias orquestras, até chegar, poucos anos depois, no Teatro
alla Scala, onde foi maestro e diretor por muitos anos, mudando para sempre a noção de
ópera teatral e de concerto. Não é este o lugar e não é de minha competência discutir as
inovações por ele trazidas, contrariando tanto o público quanto a orquestra e os cantores,
estes habituados a modificar o que foi escrito pelo autor segundo as próprias
comodidades. Digamos brevemente que T era motivado por um extraordinário respeito
pelo texto original e pela vontade do compositor, e que exigia uma sagrada atenção da
parte do público (adeus às partidas de cartas e aos pequenos jantares durante o
espetáculo) e uma perfeito rendimento em termos de tempo e expressividade do texto
musical por parte da orquestra. São conhecidos os seus movimentos bruscos e certas
vezes quase violentos, mas somente no palco, e certamente compensados pela
generosidade com a qual ajudou muitos músicos que tinham necessidades financeiras.
Conheceu muitos compositores, a partir de Verdi (que foi encontrar em Gênova por uma
questão interpretativa que surgiu entre ele e Tomagno… e Verdi confirmou que a memória
de T era correta); Puccini, grande amigo, mas com o qual teve também ásperas
discussões especialmente sobre política, sendo Puccini simpático ao fascismo; Catalani,
Boito, Mascagni… Durante a Primeira Guerra Mundial T foi freqüentemente à frente de
combate regendo para os soldados mesmo em condições de real perigo (e obviamente
sem cachê; o recusou também quando ia a Bayreuth, templo wagneriano, e à Palestina,
em apoio à comunidade hebraica que estava se formando).
T tinha interesses políticos, mesmo se não a nível de empenho prático. Era favorável a
Mussolini quando este era socialista, depois se afastou, tornando-se seu crítico rude e
sem medo de revelar a sua oposição. Recusando de executar hinos fascistas antes das
óperas ou concertos, entre os quais Giovinezza, foi atacado em Bolonha por gangues de
jovens fascistas referentes a Farinacci, estapeado e ameaçado de morte. Mussolini lavou
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as mãos dizendo que T devia reger uma orquestra de 100 homens, ele a Itália inteira.
Depois disso, T deixou a Itália pelos EUA, onde os seus sucessos foram estrepitosos e a
NBC lhe pôs a disposição uma orquestra. A sua casa em Riverdale tornou-se um dos
supremos centros da vida musical e um lugar acolhedor para os opositores de Mussolini.
Na América, já tendo superado a idade com a qual normalmente as pessoas se
aposentam, reduziu a atividade, deixando de reger óperas e concentrado-se na música
sinfônica. Tocaram em seu concertos pianistas como Serkin, Rubinstein, Horszowski,
Horowitz (que tornou-se seu genro em 1933, casando com Wanda), e violinistas como,
Heifetz, Busch. Nem sempre T entrava em perfeito acordo com tais estrelas solísticas,
como podemos ver na seguinte nota de O’ Connel sobre o concerto para violino de
Beethoven com Heifetz: “era divertido observar aqueles dois homens um tanto iguais
(como perfeccionistas), mas muito diferentes em idade, temperamento e conceitos
musicais, trabalharem juntos. Exteriormente eram excessivamente cerimoniosos, mas na
realidade eram desconfiados como dois gatos estranhos um ao outro, cada um
ferozmente decidido a alcançar a perfeição a qualquer modo e tempo…”
Terminada a guerra voltou à Itália para o concerto inaugural do reconstruído Teatro alla
Scala. Na audição, para soprano escolheu Tebaldi, que foi lançada internacionalmente
como 'voz de anjo'. Apesar disso , T queria ter tido Magda Olivero, que em 1941 se retirou
de cena. Tinha pedido que a contactassem, mas o seu pedido foi perdido pelos dirigentes
do Teatro. Portanto Olivero, que pouco depois voltou às cenas sob insistentes convites de
Cilea, e que Tullio Serafin, preparando-a para Adriana Lecouvreur, julgou “ela é sempre a
número um”, nunca cantou com T. Contudo, encontrou-se com ele em Sirmione, com
duas horas de críticas de T sobre cantores e músicos, o que seria de grande interesse ver
publicado (mas não será, Olivero não o fará). O concerto inaugural foi realizado com o
Teatro alla Scala lotadíssimo e com 37 minutos de aplausos quando aparece Toscanini.
Entre as últimas óperas regidas por T na América estão: Aída, Traviata, Otello e Falstaff
(esta considerada por T a obra-prima da ópera italiana; considerava Manon a obra-prima
de Puccini), com a presença da soprano Licia Albanese e do barítono Valdengo (morto
com 93 anos em outubro de 2007). Com ele cantou também a jovem estrela Di Stefano,
do qual T apreciava a maravilhosa voz e expressividade, e a quem presenteou a medalha
com seu retrato, que foi o motivo da agressão sofrida pelo grande tenor no Kenya.
T sobreviveu poucos anos à esposa Carla, com a qual foi casado por 54 anos. Um
casamento difícil devido às freqüentes traições de T, que as mulheres gostavam bastante,
uma situação com a qual Carla conseguiu se adequar. Entre as amantes citamos a
belíssima e grande soprano Rosina Storchio, cujo retrato se pode ver no Museu do Teatro
alla Scala, com quem teve um filho, morto jovem e nascido espástico. Storchio passou
seus últimos anos em Milão como freira laica, trabalhando com crianças deficientes. Sua
carta a Toscanini, escrita pouco antes de morrer, é de uma extraordinária serenidade, o
agradece pelas ajudas recebidas na carreira musical e diz que o espera no céu.
T era anticlerical e não freqüentou mais a igreja depois da “indigestão” sofrida no
Conservatório. Apesar disso tinha fé, se bem que quase nunca falasse de questões
religiosas. Carregava no bolso do casaco um crucifixo que lhe foi colocado nas mãos
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quando foi sepultado. Morreu com quase 90 anos, poucos dias depois que seu aluno
preferido, Cantelli, perdeu a vida em um acidente aéreo. Foi atingido por um icto, ao qual
sucumbiu depois de alguns dias.
O único sacerdote com quem tinha contato e que estimava muito era Dom Gnocchi. As
filhas lhe telefonaram pedindo que viesse confessar o pai e a resposta foi: “ele não
precisa, praticou muito o bem em sua vida…”
Dom Gnocchi (cujo assistente era dom Giovanni Barbareschi, meu professor de religião)
foi nomeado por Israel “o justo das nações” por haver salvado tantos e tantos judeus
levando-os além das fronteiras suíças e terminando depois em um campo de
concentração… Dom Gnocchi, com T, uma das poucas grandes glórias da Itália do século
XX e, estranhamente, ainda não santificado.
Em 25 de março de 1910, mesmo dia que T nasceu, mas 43 anos depois, nascia em
Saluzzo outra glória da música italiana, Maria Maddalena, conhecida como Magda,
Olivero, hoje com 97 anos e ainda ativa, voz para três senão quatro gerações. A ela é
dedicada a próxima seção.
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FELIZ ANIVERSÁRIO, SENHORA DA MÚSICA LÍRICA!
Extraído da Enciclopédia LE MUSE, editora De Agostini, 1967), apresento três sopranos
italianas do Século XX.
ROSINA STORCHIO (Verona 1876, Milano 1945), inicia a carreira em Milão, na ópera
Carmen, em 1892. Foi aceita rapidamente nos grandes teatros, desenvolvendo uma
intensa carreira internacional, cantando freqüentemente também na Itália. Dotada de uma
voz tipicamente lírico ligeira, de um brilho delicado e de puríssima coloração prateada, se
dedicou a um repertório muito vasto, causando os entusiasmos mais vivos com papéis
intimistas apropriados ao seu temperamento (Mimi, Butterfly...). Foi uma vibrante e
apaixonada intérprete e prestigiosa atriz.
CLAUDIA MUZIO (Pavia 1892, Roma 1936) debutou na ópera Manon de Massenet em
Arezzo. Em pouco tempo cantava já no Teatro alla Scala e em seguida nos principais
teatros do mundo, obtendo em toda parte sucessos triunfais. Se distinguia pela fenomenal
versatilidade, executando um repertório vastíssimo que compreendia as maiores óperas
do gênero lírico, lirico-spinto e dramático. Sua voz, não fenomenal pelo volume, mas de
incomparável fascínio, era entre um soprano dramático e um soprano lirico-spinto; sabia
realizar qualquer inflexão, da expressão dramática mais vibrante à dor angustiante e
pungente. Não foi somente uma intérprete musical genial, mas também valiosa atriz.
MAGDA OLIVERO (Saluzzo 1910) considerada desde o início de carreira uma das
maiores sopranos líricos de seu tempo, dedicou-se principalmente ao repertório verista.
Declamado, fraseado penetrante, tons macios e persuasivos, unidos a uma grande
experiência em arte cênica fazem dela a maior cantora-atriz verista da nossa época. A
sua voz, de grande extensão, é de um brilho puro, capaz de fazer esplêndidas 'filaturas' e
douradas 'mezze voci', ainda mais fascinante com uma vibração que se acentua nos
pianíssimos.
Em 25 de março de 1867 nascia, em Parma, Arturo Toscanini, glória da música italiana do
século XX. Em 25 de março de 1910, exatamente 43 anos depois, nascia em Saluzzo
Maria Maddalena, conhecida como Magda, Olivero. A ela é dedicado este artigo, com a
aproximação do seu 98° aniversário, para recordar os leitores uma grande glória da
música lírica italiana, ou melhor mundial.
Iniciamos com as breves biografias de duas grandíssimas sopranos de geração anterior à
da Olivero (Storchio e Muzio, que ela não conheceu pessoalmente), tendo como base às
seguintes conexões, mesmo que um tanto tênues:
Rosina Storchio, por muitos anos amante de Toscanini, com o qual teve um filho (invalido
grave, morreu ainda adolescente). Quando deixou as cenas se dedicou ao tratamento de
crianças do Cottolengo de Milão; vivia no Corso Magenta, 68, quase em frente à casa
onde vive hoje a Olivero...
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Claudia Muzio, quase sem rivais como soprano que costumava ir ao teatro em uma
carruagem coberta de rosas brancas e puxada por cavalos também brancos, foi chamada
“divina” por Eugenio Montale, o grande poeta que ganhou o Premio Nobel e que era
também um refinado crítico musical. No livro Estrelas da Música Lírica de Stinchelli,
locutor da transmissão de rádio La Barcaccia, que foi publicado antes nos EUA e depois
na Itália, de cerca de 300 cantoras examinadas, a única que foi chamada “divina” foi a
Olivero. Podemos recordar também, como Tullio Serafin afirmou, antes que a Olivero
debutasse, que entre os cantores existem três milagres, Caruso, Titta Ruffo e a Ponselle,
entre os outros existem bons cantores. Talvez Serafin acrescentou mais tarde Scialiapin e
a Olivero, a qual disse, preparando-a para a Adriana Lecouvreur ao seu retorno às cenas,
“a senhora é sempre a número um”. E quando a Olivero, depois dos cinqüenta anos,
iniciou as turnês nos EUA com enorme sucesso, a Ponselle já tinha se retirado e não
morava mais onde ela cantou. Mas a escutou no rádio e telefonou-lhe para dizer que a
apreciava.
Este artigo nasce primeiramente para recordar uma das glórias da música lírica italiana,
da qual a altíssima arte não foi justamente valorizada pela mídia, interessados muito mais
no caso Callas e na pretensa hostilidade entre esta e a Tebaldi; e depois devido a uma
lembrança pessoal: quando eu tinha dez anos, no segundo ano de estudos de piano,
curioso pelas partituras de ópera que encontrava entre os livros sobrevividos à bomba
que destruiu a casa dos meus avós, perguntei quais eram os maiores cantores, e esta foi
a resposta da minha mãe: os tenores Tito Schipa e Beniamino Gigli, e as sopranos
Renata Tebaldi e Magda Olivero. Somente há poucos anos desenvolvi um interesse
particular pela música lírica. Schipa e Gigli morreram há muito tempo, a Tebaldi há pouco
(consegui falar com ela brevemente por telefone, já estava doente). Tive a sorte
inesperada, ao contrário, de encontrar a Olivero, graças ao prof. Crespi, crítico notável,
pianista, musicólogo e colecionador de quadros de arte sacra (doados ao Museu
diocesano de Milão, uma doação de cem milhões de euros). Desde 2003 tenho então a
possibilidade de conhecer mais profundamente uma pessoa maravilhosa pela sua
humanidade, além de ter alcançado o apogeu da música lírica.
Como não sou musicólogo, deixo de lado os aspectos mais específicos da maneira de
cantar da Olivero, limitando-me aos elementos biográficos. A chamarei Magda a seguir,
como ela gosta de ser chamada pelos que a conhecem, lembrando entretanto que a
mezzo-soprano Giulietta Simionato, poucos meses mais nova, a definiu como “Senhora
da Música Lírica”.
Magda nasceu em Saluzzo de uma família de bom nível social e cultural e de tradicional
religiosidade, à qual sempre foi fiel. Esta é uma diferença com muitos cantores, os quais
as suas raízes são do mundo operário (Caruso) ou do campo, onde o ato de cantar era
elemento importante da vida quotidiana (no livro Viaggio in Italia Goethe escreve que as
pessoas na Itália cantavam por toda a parte... um hábito agora virtualmente desaparecido,
um fato que eu receio que se espalhe até chegar às mães que não cantarão mais
canções de ninar e musiquinhas aos seus filhos). Iniciada em uma carreira musical (mas
também lhe agradaria a carreira de atriz teatral, Sarah Ferrati era o seu ideal) escolheu a
estrada do canto. Se apresentou em duas audições na EIAR de Torino, foi julgada privada
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de capacidades como cantora, obtendo, entretanto, na segunda audição o parecer
favorável do maestro Gerussi, herdeiro da grande tradição da técnica de canto de
Cotogni, que ocupou-se com empenho da sua educação vocal. Sob a sua tutela, e depois
sob a do maestro Luigi Ricci, e graças a um enorme e sofrido empenho, Magda eliminou
os erros de respiração devidos aos professores precedentes e desenvolveu
extraordinárias capacidades técnicas. Alcançava o sol superagudo (Callas, estando em
Stinchelli, chegava ao fá; mas os cantores pigmeus chegam até a uma oitava acima
disso!), podia fazer dois ou mais vocalizes em um único fôlego (deixando Lauri Volpi
incrédulo) e em geral podia cantar uma ópera sem sentir cansaço vocal, mas somente
mental e psicológico, devido à sua profunda identificação com as personagens confiadas
a sua voz. Certa vez, tendo cantado quatro vezes em uma semana, o otorrino dos
cantores do Teatro alla Scala pediu para examinar suas cordas vocais, para avaliar o grau
de cansaço, e ficou estupefato em constatar que não havia nenhum sinal de que ela
tivesse cantado! Foi graças a essa extraordinária técnica que pôde cantar em cena por
cinqüenta anos, e talvez ainda teria continuado se não houvesse perdido o marido. E
existem gravações suas até dos anos 1993 e 1999 (com 89 anos!). Ainda em 2006, como
nos 30 anos precedentes, cantou na igreja de Solda: portanto uma voz ativa por quatro
gerações e não somente por três, como se intitula sua biografia escrita por Quattrocchi.
Devo ainda dizer que quando Callas retornou ao palco em companhia de Di Stefano,
depois de ter se ausentado durante os anos em que estava com Onassis, verificou que
sua voz não era mais a mesma e disse: “somente Olivero poderia me ajudar...mas é tarde
demais.”
Magda debutou em 1932, cantou no carro de Tespi, organizado por Achille Starace, e foi
rapidamente chamada aos grandes teatros. Depois de um início dedicado aos
compositores do começo do século XIX, passou ao verismo, obtendo imenso sucesso
com La Traviata e com Adriana Lecouvreur de Cilea. Um episódio deve ser recordado:
depois de uma récita de Adriana, quando seu camarim já estava vazio, notou que num
canto uma senhora chorava. Esta se aproximou de Magda, a abraçou e lhe disse: “ até
hoje eu fui Adriana, agora é você.” Era Giuseppina Cobelli, grande soprano dos anos 20,
que pouco tempo depois deixou os palcos devido à perda da audição. Em 1941, casada,
e julgando os deveres familiares mais importantes que a carreira, e também pelos
problemas ligados à guerra, Magda abandonou os palcos. Em 1946, Toscanini, que a
conhecia via radio e a apreciava muito, queria Magda como soprano na reabertura do
Scala, mas ninguém a contactou. Se fez então uma audição que foi vencida por Tebaldi,
que comoveu Toscanini com as duas famosas árias do terceiro ato de Otello. Em 1951,
Magda, sabendo que não podia ter filhos, decidiu retornar, talvez um caso único na
história lírica depois de uma ausência de dez anos, por causa dos insistentes pedidos de
Cilea, que desejava ouvir ainda uma vez sua Adriana cantada por ela exatamente como
ele queria. Foi nessa ocasião que Serafin lhe disse: “ela é sempre a número um”. Dali em
diante, por trinta anos, Magda esteve presente em muitíssimos teatros na Itália e no
exterior, cantando oitenta óperas das cerca de cem que havia estudado. Teve
extraordinário sucesso nos Estados Unidos, em Dallas e no Metropolitan de Nova Iorque,
onde sua Tosca teve 40 minutos de aplausos, recorde absoluto, e o público era como que
“magnetizado” pela sua voz e pela aparência dessa cantora-atriz, muito bela e por muitos
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chamada ‘Alida Valli da lírica’. E podemos nos perguntar como teria sido Adriana
Lecouvreur, se esta não tivesse sido cancelada por motivos que omitimos.
Magda trabalhou com cantores como Pertile, Gigli, Schipa, Tagliavini, Corelli, Di Stefano,
Pavarotti, Domingo, Protti, Bastianini, Simionato, Stignani... Encontram-se no mercado,
infelizmente, poucas gravações dos seus concertos, quase todas ao vivo e pouquíssimas
em estúdio, sinal de desatenção da parte das gravadoras, justificável provavelmente pela
postura “não diva” de Magda. Mas é possível que uma pesquisa nos arquivos das rádios
possa no futuro fazer emergir outras... uma tarefa importante para a musicologia.
Em 2007 se recorda Maria Callas , depois de trinta anos de sua morte. Maria foi uma
grandíssima soprano, mesmo se foi ativa somente por cerca de 12 anos (na retomada a
sua voz tinha perdido a qualidade de um tempo) e certamente a mais famosa, mesmo se
mais pelos fatos sentimentais e pela pretensa, mas inexistente, guerra com Tebaldi.
Agora é definida “tout court” pela mídia como a maior soprano do século XX. Definir quem
foi a maior é uma tarefa objetivamente impossível, influenciada pelo gosto pessoal, mas
achamos interessante referir algumas avaliações sobre a Olivero na literatura. Do livro de
Stinchelli “Stelle della lirica” citamos:
−
se pensamos em Tito Gobbi, Mirto Picchi, Magda Olivero, Gino Bechi, vozes que não
podem ser definidas “belas” mas que se apóiam em qualidades interpretativas, e, no
caso da divina Magda, também técnica de absoluta excepcionalidade.
−
A arte não tem idade. Magda Olivero... memoráveis são as suas intensas
interpretações (...) onde em um “crescendo” de emoções, alternava frases e saltos
cortantes e ardentes a momentos estáticos ou melancólicos de incomparável
intensidade expressiva, sempre em virtude de um perfeito controle da emissão e do
domínio absoluto da respiração.
Do livro “Opera fanatic” de Stefan Zucker, crítico musical que produziu um documentário
com entrevistas de várias estrelas da música lírica, citamos: “Given a choice between
Callas and Olivero, I'd actually pick Olivero. She has greater warmth and depth and is
more moving.”
O grande barítono Giuseppe Valdengo foi escolhido por Toscanini para as últimas óperas
(de Verdi) que regeu. Valdengo tinha escutado Olivero na execução de La Traviata nos
anos trinta em Parma. Me disse que nunca mais teve a oportunidade de ouvir uma
Violetta tão maravilhosa. Há alguns meses, quando eu estava em sua casa em St
Vincent, lhe propus de telefonar a Magda, com quem ele nunca tinha falado. Inicialmente
hesitou, temia não poder controlar as lágrimas, mas depois pegou o telefone: “Collega”.....
Valdengo morreu no início de outubro de 2007, uma outra perda entre os grandes
cantores que honraram o século XX.
Há algum tempo conheci um aluno do tenor Ettore Parmeggiani, especialista em Wagner
e que depois da guerra foi líder do 'claque' (pessoas que iniciavam os aplausos ao fim do
espetáculo) do Teatro alla Scala. Luigi Cestari, era também parte do 'claque' e escutou
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centenas de cantores. Me disse que a Olivero era a única cantora capaz de fazer arrepiar
a espinha dorsal.
Querida Magda, muitos anos se passaram de quando você, menina de apenas dois anos,
usando um chapeuzinho, cantava Torna a Surriento, agarrada às grades de uma janela
em Saluzzo. Te queremos ainda entre nós por muitos anos, sempre lúcida, plena de vida
e com boa vista, mesmo quando você passar os longos anos vividos por Gina Cigna, 101,
com quem, como Liù, cantou em uma Turandot dos anos trinta.
Apêndice – Algumas opiniões sobre Magda Olivero
De Alfredo Kraus, Cofidencias para uma leyenda. Conservaciones com Francis
Lacombrade, Ediciones del cabildo de Gran Canaria, Las Palmas de Gran Canaria, 2000
Kraus, as suas Violette se chamam Magda Olivero, Maria Callas...
Ah, Magda! Nunca escondi uma autêntica veneração por ela. Grande foi a minha surpresa
que nos ensaios ela se comportava como debutante. Esperava sem solicitar, pedia
também a opinião e as correções do regente e do diretor de cena com inacreditável
humildade. A experiência em Torino nos tornou amigos por toda a vida. No ano passado,
eu cantei o Fausto em Parma e ela foi me assistir entusiasmada. “Felizmente encontro
alguém que canta o 'bel canto' como está escrito”. Uma bela colega, uma mulher de
coração...
De Lanfranco Rasponi, The last prima donnas. Limelight Editions, New York, 1985
p. 61, entrevista com Eva Turner
Além do Teatro alla Scala, Torino foi a minha segunda casa italiana.... o meu parceiro no
Don Giovanni foi Carlo Galeffi, um protagonista ideal. E sabem quem foi Zerlina? Magda
Olivero. Ela ainda canta, e devo dizer que é magnífica! Ela sempre teve uma qualidade
muito especial, não tanto uma bela voz, quanto uma “atração magnética” em cena que
poucos possuem.
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p. 123, entrevista com Gilda dalla Rizza
No meu tempo se dava tudo de si para o bem da arte, porque acreditávamos naquilo que
fazíamos. Puccini podia pedir-me para ir a qualquer lugar cantar para ele por um pequeno
cachê, e eu teria aceitado. Existem grandes vozes hoje, certamente, algumas grandes ou
melhores do que no meu tempo. Mas não dão nada de si. Freqüentemente me pergunto,
o que fizeram dos seus corações? Nasceram sem? Como se pode cantar com a voz
assim bela tal divina música e não colocar nada mais nisso? Penso comigo mesma e sei
a resposta: estes cantores vivem em um mundo diferente, sem ideais, onde o patriotismo
é ridicularizado, os vínculos familiares se desintegraram e a paixão não existe mais.
Se deteve por um momento e acrescentou: devo fazer uma exceção, Magda Olivero. Não
sei qual é a sua idade, mas superou os sessenta já há algum tempo. Não importa. Ela é a
única pela qual eu hoje andaria muito, debaixo de chuva ou de neve, para escutar. Não
falarei da sua voz, é aquela que é, mas esta mulher conhece aquilo em que a arte
consiste. Fiquei tão comovida por sua Adriana que pensei que Deus ajudou Magda a
prosseguir por tantos anos, para que as pessoas pudessem ainda saber como era quando
o cantar era uma arte.
p. 282, entrevista com Maria Laurenti
Penso que existe um tempo para cada artista encerrar a carreira de modo elegante.
Existem poucas exceções como Magda Olivero. Ela é um fenômeno a parte. Uma vez
estava cantando uns pianíssimos que pareciam que vinham de um outro mundo.
Perguntei a ela como os produzia, pensei que fossem sons de cabeça. Absolutamente
não. Ela pegou a minha mão e a apoiou sobre o seu diafragma, que era mais duro que
uma rocha. Ninguém conhece a sua verdadeira idade, mas isso não é importante. O que
importa é que com um fio de voz, mesmo partida, possa ter todo o público na palma da
mão. Isso é arte.
p. 391, entrevista com Germana di Giulio
... pela primeira vez ouvi Magda Olivero em Torino, que cantava 'Francesca da Rimini'.
Muitos colegas meus tendem a subestimá-la, não sei o porquê, talvez por inveja, porque
ela continua a cantar e eles não. Naquela época fiquei enormemente impressionada com
ela e ainda estou. Me empenhei pra descobrir como esta mulher, mesmo possuindo um
instrumento vocal não de grande qualidade como potência e timbre, podia e ainda pode
ter o público absolutamente interessado. Depois de tê-la escutado diversas vezes, eu
descobri. Se trata do seu domínio vocal. Hoje todos fecham as vogais, pensando que
assim o tom fica mais alto, mas ela conhece melhor as coisas. Não é pela voz que a
gente vai ouvir a Olivero, hoje ainda em pleno sucesso mesmo próxima dos setenta anos.
É a sua pronúncia inacreditavelmente clara, é o valor de cada palavra em particular, que
os outros se esqueceram, no que chamamos de matrimônio do instrumento vocal com a
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orquestra. O público, no seu instinto, tem fome disso. E depois, obviamente, tem a
personalidade, outro elemento perdido. Ela tem o dom de fazer o público sentir o privilégio
de ter a sua presença, e o seu modo de voltar ao palco pelos aplausos, movendo-se em
toda a área iluminada, faz cada um pensar que ela o agradece pessoalmente. Embora na
sua voz se sintam os anos passados, ela é sempre afinada e ainda capaz de produzir
uma “messa di voce” que parece não pertencer a um instrumento terrestre. Os seus
hábitos são aqueles de uma grande senhora e ainda hoje, mesmo nesta caótica
democracia, ela é apreciada.
p. 462, entrevista com Gemma Bosini Stabile
Todos sabemos como é difícil comportar-se em “Vissi d'arte”. Canta a si mesma, ou
suplica a Nossa Senhora, ou de qualquer modo dirigi-se ao chefe da polícia? Existem
muitos modos de interpretá-lo. Jeritza cantava tudo deitada no chão, Olivero abandonada
no sofá....
Tradução de Laura Ansante
[email protected]
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Magda Olivero e Spedicato.
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Toscanini
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