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Caminhos do conto brasileiro Ana Maria Lisboa de Mello* Resumo: Após algumas reflexões sobre o conto literário, este artigo procura traçar o itinerário do conto brasileiro, apontando, sobretudo, autores e tendências do gênero no século XX. Palavras-chaves: conto, natureza, tendências, contistas brasileiros. I – O conto literário no século XIX e seus principais representantes O conto literário, tal como o concebemos hoje, é uma forma narrativa relativamente recente. Na primeira metade do séc. XIX, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849), contista e, ao mesmo tempo, teórico, estabeleceu balizas que continuam a ser referências para contistas e para a crítica literária, mesmo quando os escritores querem negar o modelo preconizado por Poe. No referido século, o conto foi praticado por escritores de diversos países, de tal forma que até autores que mostraram sua preferência pelo romance, como Honoré de Balzac (1799-1850) e Charles Dickens (1812-1870), produziram contos que são verdadeiras obras-primas da literatura ocidental, fato que faz com que muitos historiadores da literatura considerem o século XIX como o “século de ouro do conto”. Nas suas reflexões, Poe salienta a importância do efeito ou da impressão total que o conto deve causar no seu leitor. Para tanto, é preciso construir uma forma que possibilite esse efeito. A narrativa deverá ser, primeiramente, breve, pois a brevidade facilita a manutenção do interesse; ao mesmo tempo, terá que apresentar coerência e unidade entre as partes, do princípio ao fim, desenvolvendo-se no sentido de uma tensão crescente que se resolve no desfecho. A unidade relaciona-se, por sua vez, com a convergência de ações para o conflito único. Como narrativa curta, o conto é limitado em relação ao número de personagens e aos recursos espaço-temporais. A história contada pode ser simples, sem deixar de ser interessante. Essa é a configuração do conto de acontecimento, ao estilo Poe. Nesse modelo, o mais importante será manter o interesse do leitor até o desfecho da narrativa, momento em que se resolve o conflito, de preferência surpreendente. Segundo Poe, na construção do conto, o escritor deve, antes de tudo, pensar no desenlace da história: * Professora de Literatura Brasileira no Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisadora do CNPq. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 9 O desenlace na narrativa, o efeito buscado (...) deveria ter sido considerado e ajustado de maneira definitiva antes de escrever a primeira palavra; e nem uma palavra deveria, então, ser escrita que não tendesse (...) na direção do desenlace ou do fortalecimento do efeito.1 Na segunda metade do século XIX, surgem outros dois grandes contistas europeus: o francês Guy de Maupassant (1850-1893) e o russo Anton Tchekhov (1860-1904). Maupassant tornou-se célebre quando publicou sua primeira grande novela “Bola de sebo” (1880), cujo sucesso lhe abriu a possibilidade de viver só da literatura. O escritor escreveu mais de trezentos contos em dez anos2 . A maioria de seus contos é uma denúncia realista e risível da sociedade burguesa, onde mentiras, cobiças, crueldades e covardias não deixam entrever nenhuma esperança para o ser humano. A falsa moral é denunciada, por exemplo, em “Um parricídio”. O conto relata um inquérito policial e o julgamento do criminoso Jorge Luís. Para evitar a internação em um manicômio, conforme parecia ser a tendência da sentença, ele faz a sua própria defesa, narrando o que realmente ocorrera na noite do crime. De acordo com seu relato, fora contratado, como marceneiro, por um casal, cujo matrimônio ocorrera há pouco tempo, dois anos após a viuvez da senhora. Por indícios deixados por ela, incluindo um envelope com um dote, ele compreendeu que era seu filho. Na verdade, entende, e logo confirma, que era filho dos dois, fruto de uma paixão da juventude. Ela casara-se com outro por imposição e, só depois de viúva, reencontrou-se com o amor de sua juventude. O protagonista explica no tribunal que lutou com o pai na beira do rio Sena, quando lhe implorava que o aceitasse como filho, mesmo sem fazê-lo oficialmente, ou seja, mantendo as aparências. Ameaçado de levar um tiro do pai, feriu-o com um compasso; em seguida feriu a mãe que se envolveu na luta; finalmente, jogou-os no rio Sena. Como esse conto, a maioria das narrativas curtas de Maupassant conta história de um modo muito interessante, para desvelar uma das faces da engrenagem social, deixando ao leitor o espaço para reflexão. Somerset Maugham, admirador do escritor francês, define bem a fórmula do conto de Maupassant, assim resumida por Buarque de Holanda e Rónai: O núcleo deste é, em geral, uma anedota. Com o estritamente necessário de palavras o autor suscita um ambiente, caracteriza as personagens. Arquitetando bem a história, dosando o interesse, desperta no leitor a avidez de saber o desfecho, e o faz, satisfeita a curiosidade, voltar (em pensamento pelo menos) a admirar os pormenores, sempre admiráveis, do desenvolvimento.3 1 POE, Edgar Allan. Apud PACHECO & LINARES, 1993, p. 313 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda & RÓNAI, Paulo. p. 263. 3 Idem, ibidem, p. 266 Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 10 Falando sobre a necessidade de escrever histórias que façam os leitores refletir sobre a sociedade, Maupassant emite uma opinião sobre o papel do romancista, aplicável à maneira com constrói seus contos: O romancista que pretende nos dar uma imagem exata da vida, deve evitar com cuidado todo encadeamento de acontecimentos que pareceria excepcional. Seu objetivo não é nos contar uma história, nos divertir ou nos enternecer, mas nos forçar a pensar, a compreender o sentido profundo e oculto dos acontecimentos. De tanto ver e meditar, ele olha o universo, as coisas, os fatos e os homens de uma certa maneira que lhe é própria e que resulta de um conjunto de observações sobre as quais refletiu. É esta visão pessoal do mundo que ele procura nos comunicar, reproduzindo-a em um livro. 4 O escritor tem, entretanto, outra vertente de conto, proporcionalmente menor: trata-se do conto fantástico. As narrativas dessa vertente estão centradas no medo, na angústia e no desvario. Contemporâneo do desenvolvimento da psiquiatria (ele próprio assistiu a cursos do Dr. Charcot, mestre de Freud), Maupassant faz menos apelo ao sobrenatural do que à loucura. “Carta de um louco” ,“Horla” (nas duas versões5 ), e “Ele?” são exemplos desse mergulho na desordem mental, provavelmente, segundo os críticos, decorrente da doença venérea que vai, aos poucos, roendo o seu cérebro, levando-o ao internamento e, em 1893, à morte. No conto fantástico de Maupassant, ocorre o que Callois considera característica fundamental do gênero: “irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade quotidiana”6 . É essa a experiência do protagonista de “Horla” ao pressentir que a sua casa fora invadida por um ser invisível; isso o leva a buscar auxílio médico. É o mesmo procedimento do protagonista de “Carta de um louco”7, no qual o protagonista exercita os sentidos para torná-los mais aguçados, de modo que possa ver o ser que passou diante do espelho e, por um instante, encobriu a sua imagem refletida. A crítica considera que “Carta de um louco” seria, na verdade, a “primeira” versão de “Horla”, que dela conserva as reflexões do protagonista sobre a insuficiência dos sentidos e das ciências empíricas para conhecer o mundo, dando mais destaque ao episódio do espelho, diante do qual o protagonista vê sua imagem desaparecer. Tchekhov, na segunda metade do século XIX, desfaz o modelo proposto por Poe, e seguidamente praticado por Maupassant, de valorizar a seqüência de acontecimentos e, sobretudo, o desfecho. Passa, então, a valorizar mais o desenvolvimento da narrativa do que o desenlace, mais a repercussão da realidade no mundo interno do protagonista do que o aconteci4 MAUPASSANT, apud DÉCAUDIN & LEUWERS, Daniel. p. 198 (tradução nossa). 5 Na primeira versão, um narrador anônimo relata que o Dr. Marrande reúne na sua clínica três de seus colegas e quatro sábios para que seu paciente narre ao grupo a sua experiência excêntrica; na segunda, o protagonista narra sua história em forma de diário. 6 CAILLOIS, Roger, apud DOBRANSKY, Michel. p. 112 (tradução nossa). Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 11 mento em si. A respeito da importância que ele atribui ao desenvolvimento do conto, o próprio escritor afirma: “estando acostumado a estórias curtas que consistem somente num começo e fim, eu afrouxo e começo a ‘ruminar’ quando passo a escrever o meio”.8 Para Tchekhov, é mais importante mostrar como os acontecimentos repercutem na vida psicológica das personagens. A matéria do conto tchekhoviano pode ser toda construída sobre a reflexão de uma personagem a respeito de um fato que não se concretiza, mas cuja hipótese dá abertura a um mundo interno que estava submerso sob a rotina do cotidiano. Esse é o caso do conto “O bilhete de Loteria” 9 , em que a possibilidade de ganhar o prêmio faz com que um casal entre em devaneio sobre o que faria com o dinheiro e que direção daria às suas vidas. A mente do marido – Ivan Dmítrich – é privilegiada pelo narrador, escolha que se deve à necessidade de contenção. Esse confirma, no jornal, a série do bilhete comprado pela mulher – Macha –, mas suspende a conferência do número para poder sonhar com o prêmio. O conto desenvolve-se no intervalo entre a conferência da série e a do bilhete. Instado a conferir o número, o próprio Dmítrich pede à sua mulher para deixar um espaço para o sonho: Espera. Temos tempo para nos desiludirmos. A série está na segundo linha de cima, quer dizer, o prêmio é de setenta e cinco mil. Isso não é dinheiro, mas uma força, um capital! E se eu olhar agora para a tabela e vir: vinte e seis! Hien? Escuta, o que será se, de repente, nós ganharmos mesmo?10 Se no início, os protagonistas falam de suas idéias sobre que alterações sofreriam suas vidas se ganhassem o dinheiro, em seguida silenciam e o narrador passa a revelar o pensamento de Ivan Dmítrich, refletindo sobre o que faria se fosse o ganhador do prêmio. Aos poucos, ele compreende que entre ela e Macha há um fosso profundo no que tange à visão do mundo; compreende também que estão juntos por força das necessidades materiais. Então, de modo triunfal e “vingativo”, anuncia à mulher que a série do bilhete era a mesma, mas o número não. O lugar onde moram e a rotina da vida a dois mostram-se agora, depois do sonho, muito mais triste e sem horizonte. O conto revela como a vida das pessoas é determinada pelas circunstâncias históricas e pelo contexto em que vivem. Tchekhov tem clareza sobre a dimensão do conto e os limites que impõe ao seu criador, conforme expõe em carta a Alekséi Suvórin, diretor de um jornal de São Petersburgo: Obrigatoriamente, ao fazer um conto, antes de tudo, a gente cuida de seus limites: da massa de heróis e semi-heróis, pega-se apenas uma personagem, o marido ou a mulher, coloca-se essa personagem sobre um fundo, desenhando e realçando 8 TCHEKHOV, Anton. Apud GOTLIB, Nádia Battella. 1995 p. 47. 9 TCHEKHOV, Anton. [1988]. p. 157-161. 10 Idem, ibidem, p. 158. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 12 apenas ela, enquanto as outras são espalhadas sobre esse fundo como pequenas moedas, formando algo parecido com uma abóbada celeste: uma lua grande e, ao seu redor, estrelas muitos pequenas. O escritor não escreveu ensaios críticos sobre o conto, mas a sua correspondência com escritores, editores e jovens escritores deixa bem claros seus princípios estéticos. Segundo a visão da crítica, sobretudo européia, essas concepções, bem como sua prática, permitem considerá-lo como renovador do gênero no final do século XIX. II – Origens e percursos do conto no Brasil Barbosa Sobrinho e Herman Lima, em momentos diferentes, fazem um balanço das origens do conto brasileiro11, apontando autores e veículos de divulgação do conto na primeira metade do século XIX. Para Barbosa Sobrinho, o marco decisivo da origem do conto é a fundação do semanário O Chronista, dirigido por Justiniano da Rocha, que durou de 1836 a 1839. Desde a sua fundação, o Jornal abre um espaço, para ficção, denominado “Parte Literária, Científica e Industrial”. Publica contos e novelas, sobretudo estrangeiras, de escritores da época, como Nodier, Dumas, Soulié, entre outros.12 No ano seguinte, 1837, surge o Jornal dos Debates, cujos principais redatores são Pereira da Silva, Domingos Gonçalves de Magalhães e Tôrres-Homem, jornal que, como outros da época (Diário do Rio e Jornal do Comércio), seguirá o exemplo de O Chronista, no sentido de reservar uma seção dedicada à literatura.13 Por sua vez, Herman Lima14 acolhe a opinião de Silvio Romero ao considerar Joaquim Norberto de Sousa e Silva como o precursor do conto brasileiro, precedência que é corroborada por Edgar Cavalheiro, quanto aponta o conto “As duas órfãs”, publicado em 1841, como o texto inaugurador do gênero. Lima salienta, no entanto, que a primeira manifestação literária do conto, tal como estava em voga na Europa, deve-se a Álvares de Azevedo, com Noite na taverna (edição póstuma). Trata-se de uma coletânea de narrativas curtas, unidas entre si pela estrutura em moldura. Essa é representada por uma taverna onde se acham reunidos seis jovens que se embriagam e narram histórias trágicas, marcadas por crimes, incesto, necrofilia e outras situações delirantes. 11 LIMA SOBRINHO, Barbosa. 1960; LIMA, Herman. 1967. 12 LIMA SOBRINHO, Barbosa. 1960. p.12. 13 Idem, ibidem, p. 12. 14 LIMA, Herman. 1967.p.92. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 13 No século XIX, destaca-se a figura de Machado de Assis (18391908) como o grande contista da época e da posteridade. É ele quem fixa as principais diretrizes do gênero, conforme observa Lima15. Tendo escrito cerca de duzentos contos, publicados em periódicos e livros, Machado praticou uma grande diversidade de procedimentos narrativos, que vão desde a reiteração do modelo clássico, ao estilo de Poe e Maupassant, até a realização do conto moderno ao gosto de Tchekhov.16 Na verdade, Machado publica o seu primeiro livro de narrativas curtas – Contos fluminenses – em 1870, quatorze anos antes de o escritor russo publicar, em 1884, o seu primeiro livro de contos – Contos de Melpôneme – , mas a obra machadiana não teve a mesma repercussão, devido ao fato de que foi produzida em um país periférico em relação à Europa. Entre Paris e São Petersburgo havia um grande intercâmbio cultural, de tal modo que a literatura russa do séc. XIX foi divulgada pela França. No estudo do conto machadiano, percebe-se que o autor se valeu de todos os recursos aplicáveis à narrativa curta, de tal forma que fica difícil, como se faz em relação a Poe ou a Tchekhov, identificar um estilo único ou predominante no que tange à feitura e temática do conto. Encontramos contos de acontecimento (“A cartomante”), paródias da narrativa popular (“O dicionário”), contos humorísticos (“Quem conta um conto...”), contos de análise psicológica (“A causa secreta”), de denúncia social (“Pai contra mãe”); ao mesmo tempo, suas narrativas têm formatos diversos: além da narrativa tradicional, apresenta suas histórias através de troca de cartas, de conferência, de diálogo puro, sem narrador. Quanto à escrita do conto, Machado de Assis observa, no famoso ensaio “Instinto de nacionalidade” (1873), que o gênero oferece problemas para aqueles que o querem produzir: É um gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.17 Entre os contistas representativos do início do século XX, estão Simões Lopes Neto (1865-1916), Lima Barreto (1881-1922), Monteiro Lobato (1882-1948). Com a publicação, em 1912, dos Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, o regionalismo ganha um novo tratamento. O escritor supera a tendência de desenhar tipos e regiões brasileiras de forma idealizada, como acontecia nas narrativas regionalistas do séc. XIX, para apresentar, de forma natural e crítica, o homem do campo e os problemas locais. Demonstra, o escritor, uma grande afinidade com o meio físico, pessoas, animais e crenças populares, afinidade que lhe possibilita criar histórias cuja atmosfera e mes15 Idem , ibidem, p.93. 16 Cf. Mello, Ana Maria Lisboa. 2001a, p. 113-120. 17 MACHADO DE ASSIS. “Instinto de nacionalidade” In: ___Obra completa.III, 1962. p. 806. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 14 tria formal são cheias de ressonâncias populares, ao mesmo tempo em que ressumam universalidade. Em estilo diferente de Machado de Assis, Lima Barreto denuncia também a hipocrisia da sociedade carioca, o oportunismo e a política do apadrinhamento, tal como no conto “O homem que sabia javanês”, além de revelar as condições de vida da periferia urbana. O referido conto pode ser visto como a demonstração da “Teoria do medalhão” machadiana, ou seja, o protagonista realiza o percurso para chegar ao “posto” de medalhão, como se seguisse as orientações do pai do Jajão do conto machadiano. Esse é um exemplo da repercussão da contística machadiana na geração seguinte. Monteiro Lobato publica, sucessivamente, três livros de contos: Urupês (1918), Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920). Neles, a matéria narrativa predominante são os problemas sociais do Brasil, focalizados em São Paulo, tais como o abandono das pequenas cidades no vale do Paraíba do Sul por uma população que parte em busca de emprego na capital paulista; a situação precária dos imigrantes italianos no bairro do Brás, na capital paulista; as relações de poder e autoritarismo entre patrões e ex-escravos. Ao mesmo tempo, Lobato traz, para o universo literário, crenças, histórias e hábitos das classes populares. Critica-as, vendo nelas as causas do atraso brasileiro, posicionamento que ele renegará mais tarde. No tratamento das histórias, Lobato vai do “trágico” ao humorístico, da visão ingênua ao tratamento analítico. III – Tendências do conto brasileiro a partir do Modernismo Do Modernismo à contemporaneidade, o conto brasileiro não cessa de interessar escritores e leitores, ganhando novas formas e temas que respondem às necessidades de expressão de uma identidade nacional e de um fazer artístico peculiar. O número de contistas no Brasil cresce consideravelmente a partir do Modernismo, crescimento que foi maior ainda a partir dos anos 70, de modo que se pode dizer que é a forma literária mais escolhida pelos novos escritores. Ítalo Moriconi, ao organizar a antologia Os cem melhores contos brasileiros18, inclui trinta contistas do início do século XX aos anos 60 e quarenta e três contistas dos anos 70 aos anos 90, cifra que pode dar uma idéia da presença mais marcante do conto na produção literária brasileira das últimas três décadas, sobretudo se considerarmos o número bem expressivo de contistas que iniciaram sua carreira no limiar do século XXI. Entre os caminhos que os contistas vêm elegendo para o desenvolvimento do conto, pode-se identificar as seguintes tendências principais: conto sócio-documental; conto de introspecção; conto simbólico-visionário; conto fantástico. Na linha do conto sócio-documental, as grandes aglomerações urCiênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 15 banas têm sido o foco dos contistas, vistas como espaço da violência sempre crescente no Brasil, a qual atinge a classe dominada, cujas condições de vida são precárias e subumanas, e a classes dominante, por vezes vítima do confronto próprio da luta de classes. Um dos contistas dessa vertente é Rubem Fonseca. No conto “Feliz Ano Novo”, por exemplo, ele expõe cruamente o contraste entre a classe marginalizada, pobre, e a burguesia, abastada e indiferente ao que acontece na periferia citadina. É narrado em primeira pessoa, do ponto de vista de uma personagem que assiste pela TV aos preparativos para a chegada do Ano Novo, a propaganda de roupas novas que serão compradas pelas “madames granfas”19 e imagina como será a festa dos ricos: bailes, jóias, vestidos novos, etc. Ele e os amigos decidem invadir uma casa de ricos que estão dando uma festa e ali cometem todo tipo de agressão, incluindo a execução final. O autor, em mais de um conto, aponta para possibilidade de revolta das classes oprimidas, social e economicamente, contra o status quo. Rubem Fonseca mostra também que a violência perpassa todos os estratos sociais, inclusive os privilegiados, tal como se pode ver em “Passeio noturno (parte I)” e “Passeio noturno (Parte II)”, em que o protagonista, um empresário, sente prazer em matar desconhecidos, atropelando-os com seu luxuoso carro. Parece ser, a violência, uma condição inextirpável de vida cotidiana nos grandes centros urbanos.20 Na mesma tendência, situa-se Dalton Trevisan que, em suas breves histórias, emite flashes sobre as condições de vida das classes populares citadinas. O autor revela tal cotidiano através de cenas de brutalidade e degradação: homens espancando mulheres (“Questão de família”); mulheres em adultério (“Ao nascer do dia”); bêbados abandonados nas ruas (“Cemitério dos elefantes”); moribundo sendo despojado de seus bens na rua (“Uma vela para Dario”)21 . No último conto, a criança é o único ser que ainda tem compaixão pelo homem que agoniza e morre na calçada, sentimento configurado no gesto de colocar uma vela junto ao seu corpo. Conforme Fábio Lucas, em Trevisan, as “pequenas imperfeições humanas são conduzidas triunfalmente pelas personagens. Formam uma galeria de horrores”.22 No universo do autor, as personagens parecem condenadas a uma vida pobre de horizontes, amortalhadas na rotina do cotidiano e nos limites impostos pela condição social. Em João Antonio (1937-1996), autor de Malagueta, perus e bacanaço (1974), a marginalidade social e as condições decorrentes são perpassadas por uma espécie de lirismo que recusa o absolutamente feio e degradante. 18 MORICONI, Ítalo, 2001. 19 Uma das características do texto de Rubem Fonseca é a utilização do linguajar dos grupos sociais, procurando, através desse recurso, aproximar mais o seu leitor das realidades que retrata ficcionalmente. 20 Os contos citados são do livro Feliz Ano Novo, publicado em 1975. 21 Os contos citados são de Cemitério dos elefantes, publicado em 1964. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 16 No conto “Frio”, percebe-se uma linguagem que, diferente da empregada por Rubem Fonseca ou Dalton Trevisan, resvala para o lirismo ao retratar o menino de dez anos andando à noite, na grande cidade, com frio e fome, e temendo a polícia e o adulto mais forte que o oprimem. O conto de introspecção caracteriza-se por focalizar o reflexo dos acontecimentos na interioridade das personagens. É como se a câmara deixasse de privilegiar o palco das ações para focalizar a intimidade do sujeito que vive as experiências e nelas busca uma significação. É o que ocorre com as protagonistas dos contos de Clarice Lispector (1925-1977). Enquanto no conto de Fonseca, cabe ao leitor refletir sobre o narrado e dele abstrair conclusões, no conto de Lispector são as próprias personagens que expõem seus conflitos, dúvidas, situações-limite. É o caso da protagonista do conto “Amor”, reiteradamente analisado pelos críticos, e do conto “O jantar” do livro Laços de família (1960). No conto “O jantar”, o narrador-protagonista relata a repercussão que provoca no seu íntimo a visão de um homem velho, mas socialmente bem posicionado – possivelmente um “homem de negócios” – que se apresenta como uma montagem, age como uma fortaleza, subjugando com seu visível poder o garçom e, por dedução, todas as pessoas, sem se permitir entregar à ternura da velhice. Vislumbrando uma fresta de sofrimento por detrás da “máscara” na cabeça “robusta de Plutão”, o narrador reflete sobre sua própria condição, dizendo-se incapaz de comer quando sofre e aceitando, portanto, a frágil condição humana, sem hipocrisia ou disfarce. Nessa linha, situam-se muitos contistas, entre os quais Lygia Fagundes Telles, bem como aqueles que trabalham na vertente memorialista, criando narrativas em que a história surge da mente de um protagonista que recorda melancolicamente um passado irrecuperável. Muitos contos de Luis Vilela, como em “O violino”23 , assim como narrativas de Laury Maciel, citando como exemplo o conto “Quarto de pensão”24 , apresentam esse viés. O passado retorna na mente da personagem principal que o recorda e recria liricamente, sofrendo por sua irreversibilidade. O élan lírico nesse tipo de narrativa é expresso através de imagens que provocam ressonâncias umas nas outras, sugerindo sentidos e emoções latentes e aproximando-se do discurso poético. Um tipo de conto singular é o que chamaríamos de simbólico-visionário. A história, como um todo, é símbolo da condição humana ou de uma situação humana, cujo significado se encontra além da palavra, que apenas indicia o sentido. Paul Ricœur afirma que o símbolo tem um “excesso de significação” que nunca se deixa esgotar.25 Quando atua simbolicamente, o 22 LUCAS, Fábio. “O conto no Brasil moderno”. In: Proença Filho, Domício. (org.), 1983. p. 139. 23 In: VILELA, Luiz, 1989. 24 25 In: MACIEL, Laury, 1989. RICŒUR, Paul, 1987. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 17 conto realiza plenamente aquela “abertura”, de que falou Julio Cortazar: a que projeta “a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além da do argumento(...) literário contido(...) no conto” 26. O caráter visionário adviria da capacidade de a obra transcender a realidade cósmica e, conforme Jung, ir em direção a “profundezas incompreensíveis daquilo que ainda não se formou”. Segundo o psicanalista suiço, certos acontecimentos ultrapassam a extensão da sensibilidade e compreensão humanas e exigem “uma criação artística algo diverso das experiências banais, hauridas no primeiro plano da vida cotidiana”27. Pergunta-se o autor: “Trata-se de outros mundos?” Ou de um obscurecimento do espírito? Ou das fontes originárias da alma humana? Ou ainda do futuro das gerações vindouras?”.28 Na literatura brasileira, o contista que realizou plenamente esse feitio de conto é Guimarães Rosa. A matéria narrativa de Rosa transfigura o regionalismo, já modificado por Simões Lopes Neto, dando-lhe uma dimensão universal e visionária que evoca “pressentimentos inquietantes que despertam nos recantos obscuros da alma”29. Vejamos, por exemplo, algumas palavras iniciais do narrador de “Páramo”, conto sobre um viajante em busca de Si-mesmo (Selbst, para Jung) e sobre “passagem” de uma condição à outra: “cada criatura é um rascunho30, a ser retocado sem cessar, até a hora da liberação pelo arcano, a além do Lethes, rio sem memória. Porém, todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do espírito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio das trevas; a passagem. Mas o que vem depois, é o renascido, um homem mais real e novo, segundo referem os antigos grimórios”.31 Fábio Lucas observa aquilo, na estréia de Guimarães Rosa, com Sagarana (1946) aquilo que “parecia a continuidade de uma temática regionalista, de forte tradição no país (...), constituiu na verdade o marco de uma evolução literária, a elaboração de novo discurso poético, baseado na criação verbal em torno da mitologia interiorana”.32 Os contos de Guimarães Rosa exigem que o leitor capte a segunda história que ele narra e que advém o caráter simbólico do texto, em conformidade com o que Ricardo Piglia afirma em suas “Teses sobre o conto”: “A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de modo elíptico e fragmentário”.33 26 CORTAZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto”. In: ___. Valise de cronópio. 1993. p. 152. 27 JUNG, C. G. “Psicologia e poesia”. In: O espírito na arte e na ciência, 1985. p. 78-9. 28 Idem, ibidem, p.79 29 Idem, ibidem, p. 80 30 Aqui G. Rosa retoma a “errata pensante” de Machado de Assis, dando-lhe outra dimensão, que é a da transformação contínua da alma. Também no conto “O espelho”, G. Rosa retoma o conto machadiano de mesmo título, dando-lhe o caráter visionário.Cf. MELLO, Ana Maria Lisboa. 2001b. 31 ROSA, João Guimarães. In: Estas estórias. Ficção completa, 1995, p. 867. 38 Op. Cit, nota 22, p. 201. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 18 O conto simbólico-visionário avizinha-se, como em “O espelho”, de Guimarães Rosa, do conto fantástico e muitas vezes confunde-se com ele, embora não explore a irrupção inesperada do insólito no mundo regido pelas leis do real, a qual provoca o medo no protagonista. Para Caillois, o fantástico “manifesta um escândalo, uma ruptura, quase insuportável, no mundo real”34 . Para que isso aconteça, “o fantástico supõe a solidez de um mundo, para melhor o devastar”.35 Para o autor, na narrativa fantástica, “tudo parece como hoje e como ontem; tranqüilo, banal, sem nada de insólito e eis que lentamente ou subitamente desdobra-se o Inadmissível”36 e o espantoso instala-se. Para Todorov, no fantástico, defrontam-se duas ordens: a natural e a sobrenatural. Baseando-se em afirmação de Vladimir Soloviov, segundo o qual no fantástico “fica preservada a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas, ao mesmo tempo, esta explicação é completamente privada de probabilidade interna”, Todorov considera que a hesitação entre a explicação racional e a sobrenatural é da essência do gênero. O fantástico seria eminentemente ambíguo, traria no seu bojo, não apenas as ações, mas também as reações das personagens face ao acontecimento e, finalmente, possibilitaria vários modos de leitura.37 Contudo, entende que a leitura alegórica do texto fantástico é um obstáculo para o fantástico, na medida em que suprime a hesitação acima referida. Embora Todorov não aceite a leitura alegórica na categoria do fantástico, percebe-se, na contística brasileira, a existência de narrativas que tendem para o caráter alegórico, ou seja, contrapropõem dois sentidos: um literal, aquele que chamamos também de sentido próprio, e um alegórico, um sentido figurado. De início, o segundo sentido, por sua força, acaba por apagar o primeiro. José J. Veiga (1915-1999) é um dos contistas que realiza contos nessa modalidade, e, desde o seu livro de estréia – Os cavalinhos de Platipanto (1959) – muitas de suas narrativas são formas de denunciar situações opressivas da sociedade brasileira. O conto “A usina atrás do morro” (narrativa da opressão de uma pequena cidade por estranhos homens), do livro acima citado, exemplifica a tendência alegórica que se confirmará nos romances publicados durante a vigência da Ditadura Militar, narrativas que vão representar o período de repressão do Estado, sobretudo em A hora dos ruminantes (1966) e Sombras de reis barbudos (1972). Murilo Rubião (1916-1991) é outro representante dessa tendência à 32 LUCAS, Fábio. Op. Cit., nota 22, p. 136. 33 PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o conto” In: ___.O laboratório do escritor, 1994. p. 37. 34 CAILLOIS, Roger. “Préface”, 1959, p. 3. (tradução nossa). 35 Idem, ibidem, p. 4. 36 Idem, ibidem, p.4. 37 TODOROV, 1975, p. 39. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 19 produção de um fantástico alegórico, mas aproxima-se do estilo de Kafka, embora o autor não conhecesse o escritor tcheco quando da publicação de seu primeiro livro em 1940. Seus contos são introduzidos por epígrafes da Bíblia que sugerem cifradamente, ao leitor, um viés interpretativo, convidando-o, de início, a ler a “segunda história” subjacente à primeira. O autor cria narrativas marcadas por um clima opressivo e insólito, tal como no conto “O convidado” e “A fila”, cujos acontecimentos instauram o clima paradoxal do absurdo. Lygia Fagundes Telles, no livro Mistérios, publicado em 1981, reúne narrativas que jogam com a ambigüidade, entrelaçando o real ao supra-real. Estados sutis de consciência, que parecem encaminhar-se para o onírico ou inconsciente, sugerem a ruptura com a barreira que separa a realidade cósmica de instâncias sobrenaturais. Alguns contos da coletânea valem-se do recurso fantástico para penetrar no domínio misterioso da morte, tal como o conto intitulado “O muro”, que narra a agonia final de um homem. O fantástico lygiano revela-se simbólico, na medida em que suas histórias, quando penetram no território do sobrenatural, realizam uma verdadeira síntese do diálogo do ser humano com o incognoscível e o transcendente. O símbolo é o mediador que sugere os contornos e as vivências da experiência no âmbito do supra-real, alcançado pelas personagens. Sintetizamos aqui algumas vertentes do conto brasileiro no século XX, após o Modernismo, identificando tendências que sinalizam preferências dos contistas no processo de criação. O enquadramento em uma ou outra das tendências identificadas não significa que haja modelos estanques. Se pensarmos, por exemplo, nos contos de introspecção, simbólicovisionário e fantástico (sobretudo alegórico), constatamos que as fronteiras são fluidas e interpenetráveis, de modo que qualquer rigidez é um engessamento estéril. Apenas, identificamos o predomínio de certas tendências, salientando que Guimarães Rosa é, como observa Fábio Lucas, “uma figura isolada”38 nos caminhos do conto brasileiro no século XX, devido ao singular tratamento da matéria narrada. O importante é que o conto, subespécie do gênero narrativo, tem recebido a adesão de muitos escritores e do público leitor. A dimensão da narrativa provavelmente coaduna-se bem ao ritmo da vida moderna, já que pode ser lida em um curto intervalo de tempo, fato que talvez justifique a sua preferência. Recebido em out. 2003 Aprovado em out.2003 Title: The tradition of Brazilian Short Story Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.9-21, jul/dez. 2003 20 Abstract After some reflections about the short story, the aim of this paper is to track down the route of Brazilian short story, pointing out, above all, writers and tendencies of this gender in the 20th century. Key words: short-story, nature, tendency, Brazilian short-story writers. 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