scenas e quadros do fanatismo no no

Transcrição

scenas e quadros do fanatismo no no
.
·
LOUREijÇO FILHO
Joaseir4()
do~
P: Cicero
SCENAS E QUADROS
DO FANATISMO
NO NORDESTE
COMP. MEUlORAMENTOS
DE S. PAULO
(Weiszllox
Irmãos
incorporada)
S. PAULO
- CA YF.IRAS - RIO
I_ti
-
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l
M. Bergstrom LOURENÇO FILHO
L.nle do Escalo Normal d. S. Poulo: .,,·DirttC/or G.rol do Inlltrucção Publico
110 Estado do C.ará•• m commissão
Joaseiro
do
P: Cicero
SCENAS E QUADROS
DO FANATISMO
NO NORDESTE
COMP. MELHORAMENTOS DE S. PAULO
(Weiunog 1=40. incorporada)
S. PAULO· CAYEIRAS • RIO
A
HODOLPHO rpHEOPHILO,
o
HISTOH.IADOR
OA "SEDIÇAo
DO JOASEIltO"
JOASEIRO
DO PADRE CICERO
~Esscs PO\'OS, que assim prd.ticam o
cnlto consciente
c sys/ematico
da propriu
iJlusü.o. cst;., condemnados
a pcrecer. Quem
(lg
vue eliminar são Csscs rijos manipulaùores de factos e rcalidades, esses povos prat.ic.os e experimentalistas,
enjo explendido
scnso objectivo dus cousas da vída os escuùa contra. as suggestõcs
~ as insidias de
um certo optimismo,
que :10 en vez de ac·
cci tar as \'crdades erueis ou ùolorosas para
eorrigil-as
ou elidil-n.s, preferem ùi!isimulaI-as, recobriudo-as
ùo recamo fiorejante
ùa~ ficções ama.veis ... ::»
°
OLIVEIRA
VJA1\~A,
Poplllorùcs
.•lIet"1'dÙmaes
do B'"Obit.
o
N ardeste não só apresenta e:âranhos
aspecto,'; da ten'a: faz emergir de seu seio,
candente c adusto, casos soci.aes dos mais
Ùnprevistos e singulares. É que não lhe tenz
bastado o martyrio secular da i~erra. Sobre
o 1'cfle'J::oinc'ù'itavel, no, existencia humana,
das condições de 'oida possivel nessa atormentada 1'egião do paiz, ha incidido, irrcmediavelmente, por annos continuados, o peso
fatal de erros e crimes politico':! da Republica. Um delles, por demais expressivo, porque não {ogra1'á nunca dissimular as grandes respo·nsabilidades dos gov'crnos do Estado, em que af/lorou, e da União, que o
permittiu e o in8'uffla, é o do ] oaseiro do
Padre Cicero, it Méca dos sertões cearenses
arraial e feira, antro e offÙ3ina, centro
de orações e hospicio enorme ... Num rapido esboço, como o deste lim'o, de singelas
impressões, não cabe o estudo perfeito de
!'al caso social, incrivel para o nosso tem-
po. Pam fazel-a, de modo acabado, /alle(~eram mesmo, ao AIÛor, certos recursos de
investigação, e os documentos necessarios a
um julgœmento de!initÜ,o de ¡actos e pes~'oas. O Joaseiro é uma potencia, /óra da
lei e da Tazão, ainda bem viva e poderosa,
para que permitta o depoimento tranco dos
que por ahi habita1n; e encontra-se guardado demais, paTa evitar a cornprovação irrefulauel dos vicios e delictos que mal esconde. Tempo v'irá, em que se possam colher
todos os dados de est·u.do de tão extranho
phenomeno, que é mais que um producto
da terra, o fruelo tenebroso da inconsciencia dos homens ... O que o Autor deseja, sinceramente, é contribuir a seu modo, para a
reno'vação social desse nucleo de população
sertaneja que, mau grado tudo --- inda poderá ser um dia prospero, livre e feliz. E
no tentar fazel-o, não defende Si1UlO o sentimento da gente culta do Ceará., que, enveryonhada desse lcysto sempre perigoso, já ha
llarios armos inicioB, C01rt relativo exito, a
sua reconquista á ci'!)ilisação ambiente. Essa
obra não poderá ser levada a cab'o, com estrondos de granadas nem pontaços de bayouela ... As medicações heroicas não se applieam quasi nunca aos casos sociaes. Já E'u-
PREFACIO
clydes da Cunha, fechando com ama1'gura ()
.'leu liV'1'ogenial, sobre a campanha de Canudos, pedira um Maudsley pm'a os cdmes e
as loucuras das nacionalidades, quando, por
aca80, ellas se empenhem em acções iniquas,
como o do c01nbate armado âmiser:ia e á
ignorancia, O crhninologo e pathologista social que Euclyeles inv'ocava, tivemol-o neUe
proprio, -- e de q'ue estatura!,., E, no emtanlo, 'volvidos os annos, nem uma só medida
têm julgado necessaria as administraç(jes do
paiz, pm'a a debellação dos casos semelhantes, 'reincidentes no organismo predisposto da
nação .. , As «caatingas» do Nordeste continuam a ser, por muitos pontos, a (:selva;
horrida», sem (¿gua e sem pão, sem tranquilidade e sem. justiça, sem ensino e sem
Deus, com oasis mœravÛhosos de riquezas
e energias malbaratadas. Nelles, um pov'o forte - . materia prhna excellente para Uimaraça
de elite -- cumpre silenciosamente a pena
de ser brasileiro, assaltado periodica'.rnJente
pelos flagellas do clima e da politicagem. Pa.ra
combater os effé~itos daquelles, a unica tenlativ'a, a do governo Epitacio, teve o.? impetos de urna con'vulsão epileptica, e Q. inanidade, sinão o resultado contrap1'oducente,
de um desperdicio sem nome. Assistimol-o,
10
.
l'REb'ACIO
em meio ao descalabro, com o coração oppresso, e a alma desilludida quanto á efficacia de um grito de revolta ... Mais do que
um Maudsley, portanto, que Euclydes reclamava em vão, fallece-nos um hygienista o'U
um therapeuta social. O paiz procura urn
politico digno desse }lome, avisado e au,.daz.
que, sem se ater a soluções simplistas, filhas do empiris11w, lance seguras linhas
de coordenação para as /orças dispersas do
grande organismo. O Brasil não é « o gigante que dorme », dos tropos das plata! 0]'mas politicas ... Será: antes, um gigante com
s/jstema nervoso, incompleto e incapaz, de
molusco: um ,grande cm'po, caminhando á8
cegas, capaz de destruir-se a si mesmo. O
problema b1'as¡'leiro é mais que tudo, no momento presente, um problema de coordenação, de cultuTa. Aponto~t-o já Alberto Tor'J'es, numa obra imb'uida ainda da nossa S(1cratissima illusão legiferante, aprioristica,
de um nov'o p¡zcto constitucional, nUlS extremamente valiosa no seu tempo. E, rnais recentemente, um grupo de homens da geração que passa, levanta a voz, ainda não present'ida pelos politicos protissionaes, mas já
iormidav-el nos écos que vae erguendo nas
consciencias menos adormecidas de todo ()
PREFACIO
11
paiz, em prol da justa e verdadeira solução.
Dessa mentalidade nova, menos romantica e
metaphysica,
modelada já ao influxo dos
principias universaes da sciencia, Julio de
,lI esquilo' Filho deu ainda ha pouco 'U1nasynlhese admirafvel, num pequeno livro que é
um catecismo digno da maior meditação. Á
força suggest£va de algumas de suas paginas, como á palavra animadora de seu autor, deve-se a publicação em volume destes
artigos de jornal, em que se juntam impressões de um caso social significativo,
como
symptmna alarmante do estado actual da evolução brasileira. Elles se destina;m a auxiliar, modestamente embora, a prepœração dl~
mentalidade popular ao entendimento
d08
nossos grandes problemas, para facilidade da
imperativa acç.ão organizadora, de uma solução que não pode tardar. É preciso, emfim, que todos concorramos para dar consciencia á « força da tetra» - « energia creadora sem consciencia definida, força esboçado, sem direcção precisa, energia inconsciente da raça em formação cahotica, torça
emergente da propria terra em procura da
consciencia sabia de seus guias mentaes, de
8eus directores sociaes, dos obreiros robustos da nacioí/.alidade incipiente » - - como já
12
PIŒE'AUW
o afhrmou, num estudo precioso sobre os
novos pontos de vista da historia patTia, outro moço pensador, dos maio-res de sua geração. Este livro, q'lU1ndo mais não valha,
exprime essa força de bras ilidade, dia a dia
mais sensível.
CAPrrULO
I
EM CAMINHO
Mcrgulhando no passarlo·O Nordeste,
seio vivo da trallição - «Em assim no tcmpo
do Imperio ... " - Desesperos de um drama
{ormidavcl e sempre renovado - De Fortaleza, cidade do tempo presente, - ao .Toaseíro do Cariry, arraial de antanho.
I
Não ha necessidade de chegar ao verdadeiro recesso das terras, para descobrir, no
Nordeste, o recondito de velhos costumes. Si
é certo que, por toda a parte, penetrar o sertão é mergulhar no passado, porquanto nos
modos sim pIes da gente provinciana, comn
na graça rude e primitiva da natureza sem
enfeites, transparece sempre alguma cousa do
tempo ique foi - naquella singular região
do paiz, não tem o viandante que procurar a alma da tradição, acolhida ao seio ele
aldeias menos accessiveis, ou contida, a medo, em nucleos de crystalisação
de costumes, de raio limitado. Todo o Nordeste é uma.
chronica vivente, de facil e ininterrupta decifraçoo, desde as limpas areias da costa aos
desmedidos « sertões» do centro.
Para reatar-lhe o fio, não precisa o investigador das vistas severas da analyse, nem
2
Lour<'uço I+'ilho -
Joosl'¡ru do P(1dJ'~ Cil'~ro.
lB
CAPITULO
r
dos esforços falliveis da imaginação. Porque
é na lembrança mesma da vida de outróra
que elle vê irem-se abrindo os caminhos,
na orla das « caatingas », para que os povoados ainda proximos do littoral, entremostrem, em convidativo aceno, a calma saudavel de sua existencia repousada e ungida
da mais suave poesia. f; o mesmo convite
amavel que o leva, depois, pelas serras frescas e regiões de oasis, por culturas semiabandonadas, na melancolica apreciação de
um esplendor economico de ha muito perdido ... E é a propria tradição que o empolga depois, arrastando-o, com mal fingidas
promessas, por veredas incomparavelmente
mais as peras, sobre o chão candente das
« chapadas» interminas.
Por fim, não ha luctar contra essa extranha força dominadora. Si, dantes, insinuava a adaptação ao meio, em cada dia
de jornada, desde (I modo de conducção e o
alimento, até o ve~tuario e a linguagem "-agora, implacavel senhora, junge o homem
á terra, e o escravisa sem piedade ... Não
lhe bastam as imposições da vida material,
em expressões que se diriam as de uma rude
civilisação de conquista: acaba por impõrlhe as menos suspeitadas idéas, acorda-lhe,
E࣠CAMINHO
17
no intimo, em explosões selvagens, primitivas tendencias, quando não lhe ateia no
sangue o alvoroço damninho de mal jarretados sentÍl;D.entos. Desse modo, ou o viajante se adapta, pondo-se ao serviç.o da tradição, ou corre o risco de desappaL'ecer, tragado por ella ...
A um filho do sul - habituado a scenas
de renovação constante de vida, á ebulição
fervilhante de progresso das cidades cosmopolitas, theatro da agitação dos mais contraditorios interesses, em ancias e flutuações de
urn: porvir ainda mal delimitado, mas tendente sempre á melboria da exi8tencia social -- a i.mpressão primeira, quando pelo
Nordeste se interne, é a de que vae como
num sonho recuando pelo tempo, li cada passo. A vida parece que desanda, e inicia um
giro inverso, marcand.o para traz duas dezenas de annas, em cada dia de viagem ... Povo, habitações, aspectos de villas e cidades,
processos de cultura da terra e meios de
transporte .. modos de falar e vestir, manifestações de toda a existenci.a social e politica, de esthetica ou religiosidade - - tudo
se lhe mostra sob espessa patina do tempo,
ou lhe sõa n 'alma, com as vozes indefiniveis de um alongado pretel'ito.
CA}'lTULJ I
Ao avistar um adro de igreja, em freguezia pouco arredada da costa, em dia santo,
à hora da missa, na vinheta cvocativa de
um ren(fUc de coqueiros esguios, ou de mongubeiras frondosas, sob a sombra de cujas
folhas largas e poeirentas, muit.o raro, um
ford põe a unica escandalosa nota da vida
presente, ha de dizer, por fo1'<;-,a:«Era assim,
no tempo do Imperio ... » Ao verificar, pouco
além, as condições da vida rural de muitos
pontos do sertão, onde o factor «braço-humano» é de tal desvalia que chega a ser
empregado, n0n11alment.e, no transporte dc
cargas e serve de força motriz ás engenhocas de canna e « holandeiras de mandioca »,
ha de pensar comsigo mesmo, irresistivelmente: «Devia ter sido assim,. no tempo da
escravidão ... » E, ao internar-se, depois, pelas vastidões semi-aridas, onde em cada um
dos mal assignalados arraiaes, uma dezena
de homens se entrega á exploração precarissima da criação de gado hovino ou caprin.o,
onde a alimentação que lhe offerecem é as
mais das vezes um prato de farinha secca
(tu uma mancheia
de fructos sylvestres, onde
os tristes casebres, semelham «ocas», e os
utensilios mais elementares reproduzem os
dos tapuyas primitivos, com as mesmas de-
K.\I CA.\HNHO
19
nominações originarias, ha de exclamar, convicto: «Havia de ter sido assim, na epoca da
Independenci a ... »
Taes exclamações são naturalissirnas. Noutros pontos do Brasil será necessario penetrar mil kilometros, talvez, e fugir leguas e
leguas da dominação das zonas de influencia das estradas de ferro, para se presenciarem: identi.cos estados de primitiva civilisação ou para se ouvirem as mesrrlas vozes
de antanho. Comtudo, em parte alguma, ellas terão igual poder impressivo, a nota commovedora, a expressão de lucta angustiosa
contra o meio, que ahí encerram. Após a
primeira impressão de espanto e de cDndemnação do llOmem, evocam um' sentimento..
mais que de piedade, de respeito profundo
e justiÎicado. É que ellas reflectem desesperos de um drama formidavel e sempre renovado, que é mais que o da violencia da
adaptação d<.tvida humana ao ambi/~nte physico, o da difficuldade diabolica que a essa
adaptação têm acarretado as incertezas do
meio cosmico, mutavel nas suas condições,
sem rythma conhecido. Farto e doce, hoje,
cornD uma seara, referto de tentadoras promessas., amanhã, para logo se transrnuda cm
solidões estereis, impondo um regresso na
20
CAPITULO
I
sua conquista, com aca,brunhante necessidade da repetição de invariaveis processos de
lucta ...
Não são apenas as longas estiagens periodicas, grandes seccas ou « repiquetes »,
que impõem um limite ao progresso. Em cada
anno, na chamada estação do verão ou da
secca, o aspecto geral da natureza accentÚa a impressão de mergulho, numa vida já
vivida e gasta ... As côres do novo e do presente, que são as do vestuario natural da
vegetação, cedem lugar ao descolorido tristissimo das folhas mortas e dos galhos despidos, bracejantes em supplica para os céus
sem clemencia ...
Só viajando o sertão, por essas occasiões,
é que o filho de outras ten'as poderá COIDprehender o heroismo e a resistencia do brasileiro do Nordeste. Fóra do littoral e das
serras, o ar exsiccado fustiga a pelle como
uma lixa; não ha sombras repousantes, nem
riachos frescos, nem moitas floridas; a agua
torna-se rara e má; a alimentação escassa
e sempre a mesma. A paisagem, desnuda e
monotana, não se anima com um vibrar de
azas, nem se ado()a com cambiantes de crepusculo ... As primeiras caminhadas sobrevem, rapida, a fadiga. Depois, assalta o vian-
E1\I CAi\IŒIIO
21
dante essa temivel psychose dos desertos,
mais que tudo caracterisada por extrema excit.abilidade geral e impressionante hypertrophia da imaginação. As miragens não raro
se s uccedem; e, n.o extremo d.os· ta boIeiros
escaldantes, ou sobre .o emaranhado das caatingas resequidas, compõe a illusão os mais
tentadores oasis, recortes de serras nunca
existentes, mirific.os jardins e fartos pomares ... A explicação do primeiro phenomeno
talvez esteja nas horas de sol, sempre ardente e caustico, na mesmice do ambiente,
cujas ondulações se copiam descons()ladoramente, e na seccura do ar, intoleravel a principio, a quem não esteja acclimado. O segund.o, no contraste maravilhoso das noites,
sobrevindas quasi de châfre, sem oceaso duradouro, com céus incalculavelmente diaphanos e profundos, buliçosos de vida. de astros incontaveis, sobre cuja luz hesitante, metooro.s fantasticos riscam constantemente, quando um luar embriagador não se derrama, como balsaIllo sobre as cousas da terras,
transfeitas em quadros magicos das mais doces paragens ...
Avisado dessas alternativas de angustia e
de s.onho, o extranho se anima a transpor os
sertões, no seio dos quaes irá notando que
22
CAJ>ITLTLO
I
civilisação daquellas paragens é nm prodigio de tenacidade, teia de Penelope entretecida de sacrificios e de renuncias sem llOmc, mantidos gerações afora, não se sabe
bem por que razões profundas ... E comprehenderá, de um golpe, como a vida alli estacionou em apparente bocejo de cançaço ou
desanimo, e como a primeira impressão contra o filho da terra é atrozmente descabida
e injusta.
il
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**
Façamos tal viagem no Ceará, que é o
coração do Nordeste.
Antes de nos embarcarmos num trem da
via ferrea Baturité, em Fortaleza, verifiquemos como realmente estamos em plena epoca
do presente.
A capital cearense é hoje uma cidade moderna, comparavel por muitos aspectos a
qualquer das melhores do paiz, desde o excellente traçado das ruas e « boulevards» (1~.
(1) Denominayão official e hoje pcrfcitamente popularisada.
Avenida» que traduziria
a palana
franceza, corresponde lá,
por curiosa translação de ~,entido, il idéa de jardim publico.
II
E}! CA~IlNIIO
23
até a viação urbana, as casas de ed.ucação e
assistencia, os templos, os theatros, os jOl'naes, os jardins, a vida social e politica.
Si, nalguma causa Fortaleza não aCJmpanhava, ainda ha dois annos atraz, o estonteante
modernismo das nossas populaçõ'3s do littoral, era no recato geral de seus costumes,
na pacatez e moralidade de sua gente. A vida
nocturna dos grandes centros, com seus antras de vic~o ás escancaras, as tavernas que
se não fecham, os conflictos e algazarras de
cada instante, ainda não era lá conhecida.
Isso não vem a significar, no emtanto, que
o fortalexiense seja um casmurro ou um vencido: não ha, ao contrario, povo mais communicativo e alegre, mais prompto ás expansões naturaes de applauso e de zombaria. A
expressão consagrada « Ceará-moleque », com
que muitas vezes os jornalistas da terra têm
profligado .os excessos de familiariedade dos
« gavroches» e estudantes ceaœnses, se applica de modo particular aos de sua formosa
capital.
Esse espirito de affabilidade communicativa __ geral aliás, nas cidades do Norte facilita. a verificação em que nos empenhamos. Penetremos, por um instante, nos circulas sociaes mundanos, ou de classe; visio
24 .
CAPITULO
t
temos as autoridades, sempre democl"aticamente acolhedoras; passemos pelas redacções
dos jornaès, cujo serviço informativo nos
põe em contacto directo com a capital do
paiz e com o extrangeiro; verifiquemos como
funcciona o commürcio, como se desenvolve
a ind ustria, como o systema bancario, dispondo de fortes estabelecimentos locaes, os
enlaça na sua trama de interesses; examinemos as escolas superiores, os collegios particulares e os estabelecimentos publicos de
ensino primario; vejamos o que são os institutos de assistencia social, o fõro e a justit)a ... Estamos, realmente, em nosso tempo (1).
(1) Fortaleza <'.Qnia mais de oitenta mil habitantes, sendo li.
Sllxta capital do Brasil, em população. Possue boas edificações.
extensa area call,'.ada, dez linhas de bondes electricos, serviço
de agua o exgoltos, seis jomae'l diarios. A instrucção está representada por uma Faculdade de Direito, Instituto
Polytechnico,
Seminario Archiepiscopal,
Escola de Pharmacia
e Odontologia,
Escola Nónnal, Lyceu, Collegio Militar, cinco Grupos Escolares,
Es.:olas Reunidas em todos os suburbios, Escola de Aprendizes
Arl ifices, Escola Profissional de São José, Escola de Aprendizes
Marinheiros, c numerosos collegios particulares.
Em 1924, 950;0
das crianças em idade escolar, de sete a doze annos, estavam
matriculadas nas escolas primarias, publicas e particulares.
Dentre as instituições de assistencia social, são dignas de menção a.
Asslstencia á Infancia, a Maternidade dr. João Moreira, a Escola
Pio X, e o Patronato dos Operarios Catholicos. Apenas não condizem com o progresso geral de Fortaleza o serviço de illuminação publica o a installação da Penitenciaria do Estado. f: sensivel igualmente li falta de hospilaes com installaçõcs modernas.
KU CAMINHO
25
Mas, desde que o comboio se desloca e
começa a arrastar-nos para o centro, desde
que se somem atraz dos renques de cajueil'OS enormes e dos coqueiraes
hirsutos, os
vultos amigos das dunas que, em toda a região, ahi assignalam a costa; desde que, emfim, se perdem: no confuso do arvoredo e
do casario á distancia, os recortes singulares das rosas girantes dos moinhoB de vento, erectos em um: sem numero de quintaes
para a elevação da agua -- volta··se a primeira pagina das epocas de antanho, depois
mItra, e depois outra, cada qual mais celeremente ...
Deixamos, assim, construcções hygienicas
c elegantes, e vamos topando, desde as primeiras paradas, mal entramos na, caatinga,
com habitações que denunciam um atrazo
de engenharia, de vinte, trinta, quarenta, cem
annos ... Os modos de expressão do povo, o
vestuario mais commum, os proC€ssos da lavoura e da industria, as idéas político-sociaes, vão condizendo, na certa, com o mesmo
recuo chronologic.o. E, assim', tudo.
A luz electrica se torna gaz acetyleno;
depois, larnpeão belga; em seguida, candiei1'0; mais tarde, candeia de oleD de mamona ...
Os muros se tornam successivamente cercas
26
CAPITVLO
I
de arame, cercados de varas pacientemente
tranç.adas, vallados singelos, depois coisa nenhuma, pondo em commum todas aS terras ...
O systema tributario chega ao imposto do
dizimo «in natura»;
a linguagem sustenta
formas quinhentistas e denominações tapuyas
das raças primitivas. Ao extrangeiro, rarissima nessas altmas, chama o povo ainda,
colonialmente,
«.o marinheiro»;
a capital é
assignalada com o nome de origem: o «Forte »; o diabo é o «cão» e o «capiroto»;
(;aqui-deI-rei»
se evoca na forma commum
do pedido de soccorro; a moeda, por muitos
pontos, apellida-se .o « dobrão»;
« ir queixar-se aos da Bahia» é uma forma que ainda
se ouve para significar reclamação ás autoridades;
- os « reisados de bichos» e o
« bumba meu boi» são o melhor divertimento
popular ... Mil reminiscencias
seculares, que
marcam, pela constancia, uma extranha parada no tempo.
A propria evolução ethnographica
brasileira quasi pode ser estudada numa viagem
de penetração: na costa predomina o branco,
ou quasi branco, demonstrando a preponderancia aryana da nossa gente de hoje; a
breve trecho, porém, surgem expressões do
mais violento caldeamento das tres raças pri-
}~~I CAMINHO
27
mitivas, CDma presença muito rara do preto
puro; depois, mais extenso e generalisado,
o caboclo, tanto ou quanto indigena, tanto
all quanto aryano;
emfim, noutros pontos,
tapuyas extremes, indios puros, com a só
diffcrença, junto aos seus primitivos, em não
usarem tangas, terem idéas christãs e vestirem cal(;as de azulão ...
De raro em raro, alguns aspectos da vida
de cidades organizadas,
que as ha - são
como breves synalephas nessa mostra continua de l'etrogradação. Apresentam-se, para
confirmar a regra, como indice de maior garantia á estabilidade das condiçêies de vida:
crescem ao sDpé das serras frescas, como Maranguape, Pacatuba e Baturité; marcam, no
curso dos rios, pontos de varzeas féracissimas, como o rcó, Quixeramobim e Lavras;
quando não denunciam a existencia de grande lagoa üu açude, como no Iguatúe Qnixadá (1). Mas, embora reagindo contra as condições envolventes, esses nucl€os urbanos
soffrem a influencia inevitavel do ambiente,
de que representam a equação.
( 1) Esta Jltirna cidade está a jusante do A~'llde do Cedro,
unico grande açude existente no Ceará, cuja cÜIlstrucção foi ordenada por Pl'.]ro II, mas só concluida em 19(19. Como é sabido, lIas « obras contra as seccas », que absorveram centenas ùe
28
CAPJTULO I
Nellas se affirma, mau grado tudo, o val.)r do sertanejo. E, para maior comprovação,
Õ epois de varios dias de viagem, insulados
flOS valles da serra do Arari pe, vamos encontraI' a. seiscentos kilometros da costa,
g:randes nuc1eos de população muito densa,
E em muito maior contacto com as manifesta~ões de vida do presente. No Crato, por exemplo, que é como a capital da região chamada
do Cariry, depara-se uma cidade que é uma
tentativa quasi victoriosa para integrar o sertão na vida de hoje. Volta-se a ver iIluminação electrica, imprensa, bom hotel, cinema, geral preoccupação de hygiene e conforto (1). É impressionante, mas explica-se.
A possibilidade de organização economica,
mais ou menos esta\'el, da região, permittiu
o accumulo e emprego de maiores capitaes
(~seu consequente e continuo aproveitamento, ca'paz de sustentar o progresso.
milhares de contos, no governo Epitacio Pessoa, não logroll ver
o Ceará nenhuma no\'a grande represa. Apenas se concluiu a barragem do açude Acarape do Meio, de ha muito iniciada, a 47
kilometros de Fortaleza e que serve de resen"atorío para o abastecimento de agua ùessa I:apital.
( 1) O Crato conta quasi trinta mil habitantes" A cidade ao
sopé da Chapada do Araripe tem bello aspecto e intensa vida
commercial. É séde de bispado, possue grupo escolar e posto
re prophylaxia
rural. Parte da cidade é ealçada.
E~I CAMINHO
o que
é impressionante e, it primeira vista
não se explica, é a existencia, a tres leguas
dessa cidade, do grande agglomerado humano que é o Joaseiro do Padre Cicew, onde,
como que todo o atrazo dos sertões se condensou, permittindo ainda maior retrocesso
e estabelecendo condições propicias para o
desenvolvimento
de psychoses, em que repontam mentalidades, atrazadas por secu]os,
na evolução humana.
Havemos de fixar algumas das :mpressões
desse povoado «sui generis» - arraial e
feira, antro e officina, centro de orações e
hospicio enorme - que é a faElosa Méca
sertaneja ...
CAPITULO II
A MÉCA DOS SERTÕES
Scenas e quadros de fanatismo - Um caminho pontilhado de cruzes A faranduJa
dos penitentes «Vae vivo O'l morto? .. , "
- Inconscientes semeadores da morte e da
JOU¡;uru,- Dois traços a respeito da natureza da região - O Cariry, um ca'lO de insu¡aridade ùas tercas habitadas.
II
-
« E estas cruzes, tão repetidas?
-- Não se assuste. É a indicação do caminho. Vamos seguil-as e não ha por onde errar ... »
Numa 7.ort.ade muitas leguas em torno do
.Joaseiro do Padre Cicero, os «romeiros» têm
marcado assim, de facto, as arvores, os troncos das raras porteiras, as casas da beira da
estrada, as proprias lages que aqui e alIi
affloram da areia como lapides desc.om'munaes, as palmatorias dos « cactuS» sempre
verdes, os paus mais fortes das cercas trançadas ... Ha cruzes de todos os feitios, de todos os tamanhos, nas mais diversas posiçôes. Algumas na casca tenra da cajazeira,
rapidamente marcadas por quem' passou,
apressado, em demanda da suspirada Méca
dos sertões, sob o peso do crime ou na esperança de um ex-voto que o redima; ou-
34
CAPITULO
Il
tras, golpeadas a facão, fundas e duradouras, no tronco arroxeado da emburana ou
impressas no dorso revolto da oiticica copada. Quasi sempre, estas coincidem com os
pousos dos romeiros, e deixam ver acima
deBas, os restos da corda de tucum, ou a
trança de cipó, que alli sustiveram as rêdes de descanç,o em longa caminhada dos
« afilhados» sem conta do milagroso « Padrinho ... » Algumas, de longe a longe, trabalhadas com filigranas pacientes, attestam a esthetica primitiva de algum rude artista desconhecido. Outras, e estas mais raras ainda,
porque o analphabetismo
é a regra, su perpõem ou enlaçam duas iniciaes que são uma
senha sacratissima
por estas brenhas: --P. C.
A variedade da symbolisação mal resume
os graus da estreita mentalidade dos seus autores submettida á mesma superstição grosseira, ao mesmo fanatismo cégo e doentio,
que ahi resurge numa dolorosa expressão de
atavismo. O signo piedoso nem sempre fCp;resenta um marco de fé: por vezes, é já
o attestado de sacrificio sangrento. E quando o exicio se deu em eondições propicias,
dois paus toscos, embrechados, reforçam o
symbolismo ... Junto a estas, vão cair depois,
\ MEcA
DOS SERTÛl<;S
35
uma a uma as pedras da sympathia; os seixos piedosos da oração, que por costume religioso cada qual deve lançar. Não são raros
il margem dos caminhos esses monticulos de
seixos e cascalho, evocadores de mortes tragicas. E a sua repetição, mais frequente á
medida que nos aproximamos
do Joaseiro,
acaba por ÎI~pressionar ...
Commove tambem, fundamente, em tal scenario, játocado
de superstição, o encontro
com os romeiros, indo e vindo. Familias inteiras, ás vezes. O chefe á frente, Jnontando
um triste e somnolento ca vallo, com uma
eriança ao callo ou á garupa;
ô. mulher,
ao encalço, com um petiz escarranchado
á
ilharga;
velhos caminhando
penosamente,
aferrados a um bordão; adolescentes de olhar
vasio e cançado, conduzindo crianças, por
sua vez, ou immundos « picuás ... » Os que
vão doente:::. se transportam em l'êde, suspensa por um varapau. E como essa conducção é propria em todo o Nordeste, tambem dos defuntos, costuma-se perguntar á
passagem: « Vae v ivo ou morto? .,. » Não raro
uma cabeça macerada emerge de dentro, ou
o braço nÚ acena em categorica negativa ...
Não obstante, a zona não é propicia a expansões dos caminhantes.
36
CAPITü LO Ir
A saudação ou cumprimento amical, classico entre os que viajam pelo interior do
paiz, ahi se substitue por um olhar desconfiado ou ind"ifferente. E que se começa a entraI' numa zona de todo em todo fóra da lei e
da razão ... Topam-se bandos sinistros, armados até os dentes; ranchos de fieis, seguindo um « beato», que arv,ora a cruz enfeitada, ou tem amarrado ao cano do rifle um
simples lenço vermelho, a que se juntaram
rosarios e bentinhos. Da sombra da matta,
chega-nos, de espaço, um marulhar de vozes indistinctas, ou a plangencia de um canto
lugubre, que o vento entrecorta em dolorosos soluços ... É um grupo de romeiros em
oração. Outras vezes, essas manifestações de
culto errante se abafam nos estampidos de
um tiroteio cerrado, que os écos repetem ao
longe, ou no berrei 1'0 de um endemoninhado
que se revoltou contra os que o levam it
benção do «Padrinho». Por isso, para estas caminhadas, em tal forçada companhia,
mais depressa toma o sertanejo a arma de
fogo, como utensilio indispensavel, do que
o proprio sacco de farinha, o molho de rapadura e a purunga d'agua, que compõem a
sua alimentação habitual em viagem.
As tropas carregadas que demandam ü
A :UÉCA. DOS SERTOES
37
ponto terminal da estrada de ferro, passam
quasi sempre guardadas. A.o enc.ontr.o dellas, todos estacam, para ceder caminh.o. f~
um momento pr.opici.o para que, antes que
a .onda de pó suffocante nos envolva, .observemos me~hor .os peregrin.os. A maioria arfa
semi-'morta de cançaçü e de privações. Esqualidüs, suj.os e maltrapilhos, vão dominados pela idéa fixa da benção do « Padrinho »,
representativa de meio ingresso no céu ... 110meiros abastados, ou menos ignorantes, contam-se rarissimos; e quando apparecem, são
manifestamente doentes do espirito, ou criminos.os em' demanda de h.omisio seguro;
A farandula dûs penitentes provém de quasi todos os Estados do Brasil. Uma familia
enc.ontramos, pr.oximo a Barbalha, a tres leguas da « cidade santa », e que viera do .Rio
Grande do Sul. Ahi ficára, depois de cumprir o voto, sem recursos para tornar aos
seus ridentes « pagos ... » Mas, dos sertões limitrophes, s.obretudo de um circulo de cincoenta ou sessenta leguas, é que elles acodem,
vão e vêm, sem cessar.
É curi.oso notar que os cearenses são em
numero reduzido, confirmando assim que o
santo de casa não faz milagre ... Deve-se isso
ao mais directo conhecimento do Padre e de
CAPITULO Il
sua histol'ia, á campanha da imprensa e dos
sacerdotes catholic.os esclarecidos. O grande
i"anto dos cearenses é S. Francisco do Canindé, em cuja igreja se realizam imponentes
festas a cada 4 de Outubro (1).
(1)
« Qu'~rn, da capital, l.;ortaleza, pelo caminho mais commodo, quer visitar Canindé, hoje poderá s~~uir em automovel,
ou segue a estrada de ferro até llaúna (6 hs. de trem), dunde
~oderá dajar,
em automovel (31/2
horas) até Canindé. Agua
corrente, ùe riacho ou poço, nflo encontrará nem em Fortaleza
l1em na viagem. Tem que contentar-se com agua de cisternas (cacimbas). Terá que atravessar rios seccos, isto é, leitos de río
quo cheios de pesadas massas de areia, não contém mais uma
sÓ gota que 'Seja, enchendo-se tão sómente no inverno, isto é.
ra estação chuvosa, que começa, geralmente, no quente mez de
janeiro. O proprio rio Canindé, em cujas margens antigamente habitavam os indios canindés, e que innunda tudo, na maior parte
lO anno, e;;tá completamente
secco, sem uma poça d'agua. Quasi
toda a natureza parece morta. A maior parte das arvores estão
~em uma só folha verde. TJdo está queimado pelo sol, que,
lomo o inverno na Europa, mata a d,la. Atra\'ez dessa natureza
sem recur50s, annualmente passam oitenta mil pessoas á procura
de São Francisco das Chagas, podendo sÓ os abastados servir-se
de automoveis ou cava11os. Uma moça ahi segue, pé ante pé,
leguas e leguas, levando como offerta a São l"rancisco, um papagaio. Ingenuidade?
Oh, náo I Ella tinha feito promessa de
.lar a São Francisco o ohjecto de maior estimação. Era o papa~aio ... Outra moça vem caminhando, dias, semanas, mezes, pois
tem que vencer duzentas leguas até chegar a Canindé. Pucha
atraz de si o seu cavallo ensilhado, na tentação continua pam
montar, ùescançando os pés sangrentos. )'fas não. Continua a pé,
l) só
se servirá do cavallo para a ,·olta. Um homem dccente111Cntevestido, na viagem a Canindé, bate todos os dias á porta
de algum rancho, pedindo algo para comer. É abastado, rico
lIlesmo, mas lez a promessa de viajar sem dinheiro, ,"ivendo de
Z,', 1'.,d,.I,
l'lJ1./.
dll
I),',
.\111';",.
¡J"
II
\('f¡('t'dor
(H;I'(';/,(ll.
dl'
C,.:III).
a ~1 d"
,l:llll,ir_,
dl'
1011.
.\ 1II.EOA Df)S SElrrOE8
A dar credito ás informações, notadamente
fl'ey.uentam o Joaseiro, sertanejos alagoanos,
filhos da Parahyba e Pernambuco;
são muitos, tambem, os dos sertões bahianos, os do
Piauhy, Goyaz e Matta Grosso e, menos £rel! lIente os ri J grandenses d.o Narte e mine iros, da ZOUét norte do vizinho Estado. Quasi
lodos viajando a pé, acabam por apresentar
identico aspecto de degradação physica, ele
sujidade OH immundicie. Muitos yão doente~), atacados dos peores males, ou se contaminam em viagem. Vimal-os em promiscuitlade com leprosos e boubaticos. E esse vae\'em continuo, pelo interior dos sertões, explica porqlw certos pontos do sul do terrilorio cearense, de tão bom clima, apresentam uma verdadeira synthese da rwsologia
dl' lodo o paiz.
O trachoma, por exemplo, encontrou no
Joasciro (' arredores, condições para um fóco
I"ormidavel. A inspecção medico-escolar que
:'iC procedeu
nas escolas do Cariry, em 1923,
assignalou a espantosa eifra de oitenta e qU~Iesmolas. Outro [{:¡: o contrario. Segue de antomol'e! a C¡¡l1ind,'"
onde es'·asia os bolsos, ùeixanùo todo o seu dinheiro /lO mírl'.
do santo, e Vil·C, na volta até a sua casa distante, de eSlllolas. "
':IlEI PEOHO SIK~H;, o. F. ~l. (Artigo no "O ~()flle~tp.",
de
Forl<tleza:
:~
.
l.{ll1n~n(;()
Filh" -
.loa$eil'o do Pad,..c {'icel·o.
40
CAPITULO
Il
por cento de contaminados. Escolas houyc
em que a inspecção encontrou affectadas todas as crianças e mais o professor: cento
por cento I E a bouba, e as molestias venereas são outro flagella de proporções inca1culaveis (1).
Os romeiros são assim, em nome de Deus,
inconscientes semeadores da morte e da loucura!
tT'O
li<
'" *
E, no emtanto, a regIao é o verdadeiro
oasis do Nordeste, com fontes perennes, vegetação farta e sempre verde, culturas rendosas e abundante variedade de fruetos.
Quem do sertão caminhe para a Chapada
do Araripe, vê a caatinga ir-se transmudando em cerrados de melhor aspecto, no ultimo trecho da viagem, notadamente de Lavras em diante; e, transpostos os pouco e1e(])
Eotes algarislllOS ~ào ùe publicações officiacs. COAslam
do « Hclatorio da Diredori:t aa Instrucção Publica », em 1923,
quando se installoll a inspec<;.ão medico-escolar e \lo interessante
livro « Nosclogia do Ceará" ùo dI'. A. Gavião Gonzaga, quc por
muito tempo chcfion no ¡:slado a commissão de Prophrlaxia
Rural.
A }LECA. DOS SERTÕES
-1-1
vados contrafortes da serra de São Pedra,
ha de notar que a flora como se adensa e
avulta, num mais rapido alento. Para as bandas de leste, occupando larga pontão dos municipios d.e Aurora e Milagres, it direita da
ravina collectora das aguas, que os mappas
pomposamente indicam com o nome de Rio
Salgado, ha ainda a caatinga rala e enfermiça, com trechos de quasi deserto. Ali, as
juremas se apresentam sempre tr='stes, as emburanas quasi desfolhadas;
e a oiticica, e
o proprio joaseiro, sem a copa altiva, com
que noutros pontos domina e alegra toda a
paisagem, es batida num tom acinzentado de
acre sujo ... E, de espaços, se sobrelevam,
ameudados, os desolados comoros de pedra
e areia, em que só logram medrar o « chiquechique », de braços multiplos e fervilhantes
de espinhos, os « cardeiros» rastejantes,
o
« facheiro» alteroso e solenne, ou a macambira de lanças aguçadas ... Ficaram longe,
comtudo, aquelles impressionantes
scenarios
de mais profunda desolação, por entre os
quaes se viajam dias inteiros, sem ouvir um
vibrar de azas, e em que o ar limpidissimo,
de urna transparencia
ennervante, permitte
contar, urn a um, os espinhos de cada cactus, e as riscas de cada pedra ... As mesmas
C.ll' '1'1;1.0
j
l
cact<1ceas surgem aqui em grupos maiül'es
(~ quebram a monotonia ambiente, com as
~,uas flores mais numerosas, sangrentas como
chagas vivas, abert¿:l.s no proprio penhasco
(.'lU que se abrigam,
ou esplendentes de vi(,o, no milagre de uma alvura immacu lada;
( as bromeliacea8, d;~ vario porte, porfianùo
entre si, no arrojar para o alto os pendôes
hstivos de suas florescencias de Ollro, lemIram, por vezes, ao olhar cançado, um canto
de jardim que mãos cuidadosas trataram ainda de vespera ... A fauna começa a represent.ax-se tambem, de modo "isivel. Sem falar
das <: avoantes », pombas s(~hragens que, em
dadas epocas do anno, enehern estes sertões,
vêem-se agora bandos de meudas borboletas,
cJnstrucçôes de termilas eada vez mais numerosos, passaras ri~cand() os ares, mesmo
nas horas mais quelLtes, e it tarde, grupos
de morcegos deixando o abrigo; surprehellclem-se mocós ligeiro e calangros espertos;
e quando se viaja á noite, quasi sempre.
enlhc-se o susto dOl:3 olhos phosphoreantes
tl,tS l'aposas em caça ...
A vida vae assim se revelando it medida
({.le se tomam as veredas do Cariry Novo .
.\ sua enhada, desapparece quasi, ou se m;conde a vegetação xcrophyla dos sertões. SurJ
gem, animando a paisagem, as copas rotundas, de um verde escuro, dos joaseiros extranhamentc vic;osos; a oiticiea, de hoa somhra, mede fOl'ças e elegancia com a cannafistula, de f1exuosa silhueta;
os llmaryseil'OS se esgalham
e afogam em verdura os
mofumbos e marmeleiros; magestmia, se eleva a massaranduba,
sombreando ás vezes o
jucá, o pau-branco e a graÚna; emquanto
que, todo vestido de flores, de um roxo SUétvissimo, o pau d'arco se ostenta, em pontos mais elevados, assignalando tl'iumphalmente os degraus da subida ... Breve, a flora
toma perfeito caracter tropical: è a regiãu
das « dryades», de Martius (I). Acompanhando-a, nos lugares mais humidos, vicejam bosques de 1ul'itys, sempre sussurrantes, e o babassÚ uLilissimo abre as palmas de muitos
metros. Entre ondulações do terreno, manchas de cultura sempre aproveitadas;
e, no
valle do Batateira, em que entramos, os cartnaviaes deslumbram, agora, com os seus 1ençóes verde-claro, abertos á luz, como mal
sonhada maravilha ...
Esta região, está claro, não suffre os rigol'eS da secca. As estiagens
prolongadas inC])
Sobn,
u. !1úra llo Ccaril,
I·ide
nota
Jill
(¡m do I'oill/ue.
CAPITULO
II
fluem, ao contrario, beneficamente, no seu
desenvolvimento
economico. Acossadas por
ellas, as populações circumvizinhas, num raio
de muitas leguas, pagam por alto preço os
cereaes e o assuear, e offerecem-Ihe milhares de braços, pelo simples preço da subsistencia diaria, .. Para dar urna idéa de como
seus habitantes julgam o periodico flagella,
registemos aqui a simples resposta illustrativa, com que, a urna pergunta nossa, retrucou o Prefeito Municipal de Missão. Velha,
bom homem, necessariamente,
rico agricultor e cornmerciante:
«Qu;(),l, vamosrnal...
Pois imagine que já não ha U1/'lll; secca grande ha uns bons quat·ro ann08! ... » (1). A observação que depois ouvimos tambem, mais ou
menos disfarçada, na bocca de pessoas de
maior cultura, tem uma eloquencia decisiva: o Cariry, região fertilissima, entre sertões inhospitos, de cinco Estados, cumpre a
sua funcção biologica de insularidade,
que
\Vallace tão bem definiu, na obra que se tornou classica:
«Island Life» (2). Insulano8
(1) Sob,'c a historia ùas seccas, viùe nota no fim ùo volume.
( 2) A noção de insulal'idadc biologica não cabe só ás ilhas
,lo mar, mas á.s « ililas do deserto» - os oasis, e ás « ilhas
das regiões habitadas»:
os vDllcs íertt:is. Cf. BnuNHEs, La Gea~
çraphie Humaine, Paris, 1912. (2ème. cd.).
A )rECA
DOS SERTOES
45
omnes in/idos habere ... Toda a historia
das
ilhas e dos oasis é tecida de conflictos politicos e economicos. E o Cariry nÜ,o se tem
podido furtar, mesmo ás manifestações daquelle genero (1).
Pois é á entrada de uma zona, assim magnifica, num desvão da serra do Catolé, que
surgiu e tem medrado, quasi parasitariamente, () mais singular povoado do Brasil: o
.Toaseiro do Padre Cicero.
Vamos penetrar nelle, resolutamente.
(1) Já, por duas vezes, em 1834 e 1846, agitou-se a questão ùa separação
do Cariry, em Provincia independente,
com
territorio que se tirasse em parte do Ceará e em parte de
Pernambuco. A Capital seria a cidade do Crato. Como havemos
de ver, DUOl dos cap. seguintes, a sedição do Joaseiro, em 1913,
tomou vulto tambem por se apresentar a alguns foliticos da região como uma possibilidade de reivindicaçã.o politica.
CAPITur JO III
TRANSPONDO AS TRINCHEIRAS",
A~ defesas do antro
legua~, aberto
-
Um fosso de trl'~
ern sei~ dias -- No seio tia
Méca As casas dos romeiros, por d~lltro c
por fóra Uma cidade nasccnte, emmoldurada na miseria e na dÓI' -- A i~rcja dns
« mila:;res )}.
III
Pam quem vae de Ingazeira, via Missão
Velha, o J oaseiro não- se descortina á distancia. Tambem não apparece, de subito, apontando de dctraz de um capão de matta, ou de
urna dobra de serra. O caminho se desenvolve, nas immediações, cortando apenas um'
capoeirão que veste terreno de quasi imperceptivel declive. E, como se vêem' enchergando, de espaço a espaço, desde muitos kilometros atraz, miseraveis casebres ou mal
assentados tugurios, .os que se notam agora, mais ameudadarnente, não impressionam
como COiS'i nova, de merecer attenção.
Em certo ponto, no emtanto, a vista dá
com uma obra inesperada:
um larg.o fosso
se extend€:, transversalmente
ao caminho, e
não parece ter fim, para um e outro lado-,
insinuando-se
por entre arvores esgalhadas
('.-\i.'l'l'ULO III
e toscas habitações. como uma fita vermelho
sujo recalcada na IJaisagem.
O viandante ha de parar curioso:
, ~(Que é isto?»
É o Joaseiro C').
, Como, o J oaseiro '?
Estas são as trincheiras, pOIS não está
yendo? ...
E o guia solicito ajuntará outras informações preciosas:
.-- Estas vallas rodeiam todo o povoado.
Têm mais de quatro leguas de comprimento.
Foram abertas numa semana, }Jar occasião
da guerra do Rabello ... (2~,. E nunca mais
se fecharam ... »
Si alongarmos a vista de novo pelo fosso
aberto, depois de um calculo ligeiro sobre a
cubagem da terra cavada e revolvida, duvidaremos de parte da informação. Sem se
conhecer o Joaseiro e a sua vida, não se
pode acredit.ar, de facto, que tão formida\7el
(1) .'\ denoIllina~:ãu « Joas€iro» ¡>l'O\'émniio do ({joá cio camconhecido no sul, mas de uma arvoro de grande porte -.
Ziz-iphius jll<lseiro, Marl., cujas folhas re3islem mesmo ás maiore .• seccas. O Joaseiro c a Carnahuba
poderiam ser tomado:;
c<Jrno as duas plantas sagraclas do Xordeste, tacs 05 seus prestimos e resistencia.
(2) O Cel. Marco~ Franco Habello, presidenle do Ceará, dl'pusto em Ul U, pelos [analkos do Padre Cicero,
po
l>,
'l'ltA X~P()" Dl)
AS
TmNCIŒIRAS
...
;j 1
trabalho se tenha realizado em seis dias. Não
~e trata de um vallado singelo, mas de uma
verdadeira escavação de guerra, com cerca de
dois metros de altura, nalguns pontos, por
Olltr.o tanto de largo. Embora volví dos quasi
dez annos, depois de sua construcção, podia
lIotar-se ainda que a terra extrahida
fora
cuidadosamente
atirada para o lado do arraial, de modo a formar em t.alude, um anteparo aos sens defensores. Obra de defcsa
Hperfciçoada, de typo classico, tendo-se em
vista a natureza do terreno e a possibilidade das :ll'mas dos combatentes.
Sob tal impressão, vamos seguindo. Atl'a\Ocssamos () largo fosso, sobre qLe a estrada ínfleete desgraciosamente,
e penetramos
por entre casebres de pau a pique, mais
adensados agora, de miseravcl a~,pecto. São
('In tudo
semelhantes aos mais pobres que
vinhamos observando em t:aminho. Não se
acredite, porém, que sejam do typo característico das habitações ruraes do Nordeste,
com pilares ou esteios rodeando toda a constl'ucção ar. sombreando-lhe
a frente, e nos
quaes os armadores da rêde esperam, sempre abertos e acolhedores, o leito transporlaveI e baJoiçante de qualquer caminheiro,
para ° sllster, sem nenhuma retribuição ail
52
C.\PITCLO
III
agradeciment.o a.o dono da rasa. Ao envez,
cada casucha dacruellas mostra vigilantes,
sobre a unica p.orta da frente, dois buracos
que são duas setteiras inconfundiveis ...
Alguns minut.os mais, e estam.os no seio
da Méca sertaneja. Arruad.os dos mesmos
pardieir.os, extendidos por tres ou quatr.o mil
metros, cruzam'-se em varias sentidos. As habitações quasi t.odas se copiam por fóra, em
muros mal aoabados, despidos ordinariamente de qualquer intenção esthetica, quanto
se parecem n.o interior, pobrissim.o e immundo.
Por fóra, quasi que só as distingue a numeração: um cartapacio com' grosseiros algarismos, n.o geral seguido das mirificas iniciaes __ P. C. --, e de crm~es, signos de
Salomão, .ou de ou tros symb.olos de uma
cabalistica rudimentar. Não raro um «Vivva
o meu Padim Ciço >~, esparrama-se a carvão
pela parede mal caiada, com muito fervor
e nenhuma orthogr2_phia.
P.or dentro, uma sala em toda a largura
da habitação. Duas alcovas, - as camarinhas
'- e a cozinha, tudo sem outro piza sinão
él terra
batida, sem f.orr.o e sem pintura. A
eozinha é de t.od.osos c.ommodos o mais interessante. Nella se vè, num canto, o « poiá»,
o
TRANS?ONDO
AS
TRINCHE£HAS
...
53
com a sua craLéra sempre fumegante; no angula opposto, o « caritó », especie de prateleira tosca de tres ou quatro vara8, mettidas pelas extremidades no adobe das paredes; dFas panellas de barro, uma gamella,
algumas cuias, eis toda a bateria. Uma trama fechada de teias de aranha, com pingentes baloiçantes de picuman, se distende par
cima de tudo. Ninguem lhes toca: as aranhas dão sorte e annunciam as ch-.was ...
Num ponto sombrio e protegido, descança
a « jarra» da agua de beber. É un grande
pote, ás vezes de mais de um metro de altul'a, em que se traduz a ultima expressão da
ceramica sertaneja, tão aperfeiçoada que não
pôde ainda passar da forma singela. do vaso
etrusCD que o indio já copiava ... Elle representa, comtudo, na existencia do Nordeste,
alguma coisa de sagrado: a agua, a vida,
algumas vezes. Para os fanaticos, apresentase, alem disso, como uma fonte cie crendie-es. O lodo, que se lhe ajunta pOl' fÓl'a das
paredes, é mézinha infallivel para a cura da
sapiranga (1) sinão do proprio trachoma; as
incrustaçõe¡:. provenientes da má qualidade
da agua e que se possam formal' no fundo,
( 1~
InflalllrJla~'ãll LPnigna
das
l'alpebras.
C'Al'IT{'LO
III
rccebem ouÜas applicações therapeutic.as diycrsas; e os tres carvõcsinhos, encontradi('.os um palmo ahaixo da terra, no mesmo lu~al', são talismans preciosos para a cura de
todas as mazellas, « fechamento do corpo:,
e espantalho infallivel do « Cão » ...
Penduradü ti hocca da jarra, ou Hlcttido
}>plocabo num buraco da parede, o « caneco
de tirar agua» se destaca pelo polido de folha
Tl()\Ta.Ninguem pode beber por elle. Recortado em pontas, na bocca. por toda a volta,
num rendilhado paciente, sangraría os labias
dos que o tentassem, inutilmente aliás, porque o liquido escorreria pelas aberturas intermediarias c por 11m pontilhado de furin has renleando-lhe OS bordos. Ainda nos mais
miseraveis casehn~s, csse utensilio não falIa, sendo ás vezes o unico apetrecho domestico em que transparece a cxistencia da idade dos metaes ... Esse facto demonstra que
:1. expcJ'iencia do caboclo não tem passado
despercebida a idéa da transmissão dc muitas molestias pela agua contaminada.
lViuií os não n'a bebem 'Sem ser « dormida;) e prelcndern csterilisal-.1 com a introdueção, nu
sp.io do liquido, de um pedaço ùe ferro em
brasa. Chamam a ist..o « fCITal' a agua », pratica que é usada mesmo pOI' gente pj'esumid:~-
o
tll/llJt.
elu ¡"', Xa!'in-
falIlll:-iO
Bl.'ato
cll' (Ilirei/'(o,
11:1 Crill,
á
pOl'la
1.1(' Ulll
l'(>ll1iLl'rio.
TRANSPONDO
..••S THlNCHEIRAS ...
o);)
mente culta, nas cidades e até nas c.apitaes
IIordestinas ... (1) .
Nada mais, ahi, de curioso. Na sala da
frente e nas c<lmarinhas, armadores em cada
canto ou pedaços de c-orda qu'e os substituem; presa •..
1, um delles, a rêde, sobre si
mesma enrola<la, suspensa por um dos «punhos ». Esse leito primitivo é a ultima palavra em econ:nnia de espaço; numa saleta
ele poucos metros quadrados, podem se armar meia duzia delles, uns sobre os outros,
em andares ... Quando viaja, o sertanejo o
conduz por toda a parte, e, onde quer lque
precise de repouso, em alpendrada extranha
ou no seio da caatinga, acha sempre dois
arrimos promptos a susteI-o.
Nalguns casebres, uma caixa de madeira
e uma esteira de palha de carnahuba são
luxos que mal se imaginam. Apetreehos de
trabalho, tambem rarissimos, e, nO' geral,
mais constantes os de lavôr feminino. A almofada de fazer renda, com os seus centena( 1) Depois da publicação deste capitulo, em arlig no jornal
,( O Eslaùo ùe São ?aulo », recebemos uma carla de um illustrado cearense, em que se defende a efficacia da medida. Na
mc:,ma carla affirma que a garapa de canna azeda e « ferrada»
,', u melhor remedio possh'el para a anchilostqmose.
Falem os
entendidos ...
l)
I...ourúnço lt'ilho -
.rot'seiro do PadrB Oicerv.
56
CAPITULO
III
res de bilros pendentes, ou um bastidor muito tosco, onde sobre o xadrez de « pussá»
já se entrevê uma dessas maravilhosas filigranas, de labyrintho; ou cuias, com sementes de mulungú, ou de outras arvores, para
a feitura de rasarias, terços, collares, e enfeites primitivos ...
Ordinariamente, não ha, nas pobres habitações, nem cadeiras, nem mesas, nem: camas. Em nenhuma deBas faltam, porém, pendurados á parede da sala, o rifle de tiro
certeiro, e a effigie do Padrinho, em reproducção typographica, ou numa oleographia
em que elle apparece miraculosamente rodeado de anjinhos, tangendo harpas celestiaes, entre nuvens de incenso ...
* * :;:
A medida que se caminha para o centro,
as construcções melhoram na apparencia. Ha,
em certos pontos, grupos de boas casas. Não
é difficil notar, no emtanto, que mesmo nestas tudo continua a ter um ar de acampamento, em que os aspectos de improvisação
e de ruina sempre se misturam. Parece que
tudo é provisorio, levantado ás pressas, sem
TRANSPONDO
AS TRINCHEIRAS ...
67
grande esforço e sem esperança de longa permanencia no lugar. Aqui e alli, nos interminaveis arruados, quasi sempre á porta de uma
« bodega », melancolicamente
braceja suas
palmas um coqueiro enfermiço ou um tamal'indeiro se esforça por formar copa, deplumado no aHa, onde os galhos semi-nús agitam ao vento os fruetos resequidos. Assim
isoladas e poeirentas, essas pobres plantas
parecem tambem contaminadas da miseria
ambiente ...
Sob o sol das onze horas, a desolação das
extensas ruas, de alinhamento indeciso, parece mais dolorosa e acabrunhadora. Crianças núas passam correndo, sem gritos nem
risos; romeiros acocorados á parea sombra
da orla das casas, mastigando a. sua matalotagem de farinha d'agua e nacos de carne
de bode, ou. « maginando», com o olhar fixo
num ponto, aparvoalhado;
porcüs fossam
montões de lixo, com philosophica paciencia; cabritos ensaiam as suas defesas em
simulacros de lueta, ou retoiçam, eom berras
fanhosos, sob o olhar indifferente das cabras, que ruminam somnolentas; mulheres,
sentadas ás portas, em saia e camisa, despenteadas, de aspecto repulsivo, quasi todas
com a miseria impressa nas faces, dão-se á
68
CAPITULO
III
tarefa de catar insectos á cabeça dos filhos;
numa esquina, um grupo mais animado 1'0ùeia o Beato de prestigio que celebra, ou
11m « penitente»
quo profliga os costumes ...
Ahi está o Joaseiro arraial, que contém
cerca de vinte mil almas, a que se aggrega
e de que se despede cada dia, uma grande
multidão de romeims. É esse o Joaseiro temivel, o Joaseiro tradicional, a Méca do fanatismo sertanejo, que primeiro se depara ao
viajante, se elle não avisou em tempo o 1>a'dl'e Cicero e os de seu grupo, ciosos em oceultal-o, mas solicitas em mantel-o.
Porque ha um outro pequeno Joaseiro,
abrolhando no seio desse arraial sordido e
miseravel, sem hygiene e sem trabalho, abrigo de peregrinos e de cangaceiros da peor
especie, de doentes e de malucos. E um verdadeiro milagre em tal moldura, mas existe.
Duas ou tres ruas, a « do Padre Cicero», a
« de São Pedro» e a « rua Naya», são calçadas a pedra bruta c dão-se ao luxo de ter
alguma cousa parecida com passeios latemes, tres ou quatro construcções do sobrado, casas com platibandas grotescas, «jacarés» salientes (1) enumeração mais discre( 1)
Galgul¡c;.
•
TR.\.NSPONDO
AS TRlNCHl<;IRAI) ...
,-)9
ta. Habitações ha de relativo conforto e casas
cornmerciaes de boa apparencia (1).
É nessa parte que habitam propriamente
os cearenses do Joaseiro, a população estavel entregue ao commercia e a pequenas e
rudimentares indu~trias. Ahi fica tambem él
casa do Padre, baixa e modesta, sempre fechada, tendo ao lado um sobrado tosco, pOl'
elle construido, para mais commodamente 01'J'erece!' a « benção» diaria aos peregrinos.
N uma larga praça, em ligeira rampa, assenta-se sobre um degrau a igreja de Nossa
Senhora das Dores, cuja construcção muito
simples, apresenta, no emtanto, certa imponencia de linhas. Não se pode dizer que obedeça rigorüsamente a nenhum e~tylo; mas
as torres, hem lançadas, harmonisam com o
amplo casarão que figura de nave e quebram
a mono ton ia das casas de derredor, acaçapadas e inexpressivas.
( I)
Com~. approxima{;ão da estrada ùe ferro, e Il. campnnltil
da imprensa contra o desbarato daa rendas municipaes, fizeram-se
nos tres ultimo5 annos al~uns melhoramentos materiaes no Joaseiro, segundo leio no « Ceará llIuslrado».
Taes melhoramentos não existiam quando visitei il «MÚca do sertão)};
escrevendo, porém, gem nenhUlo presul'poslo de comhate aos llomen"
realmel'.tc inter(!ssados pelo seu progresso, mas apenas para dar
a puhlico um testemunho dos males sociaes quc lem permittirlo e
fomentado a politien geral do paiz, .- é com () maior prner que
••qui con~igno ':sla nota.
60
CAPITULO
nr
Não pudemos visitar a igreja, porque se
achava fechada e interdicta. Foi no mesmo
local, primitivamente uma simples e pobre
capella, que se deram em junho de 1890 os
primeiros « milagres », que haviam de conferir a maior das famas ao Padre Cicero c
que havemos de descrever num dos proximos
capitulos.
CAPITULO IV
NO REINO DA INSANIA
-em frenle a casa do « Padrinho}) - lIlatizes ùe fé e credulidade - Singularidades d"
um culto sem ritual - Oração expressiva O « Beato da Cruz)} - Scenas de sabbat ail
Rol do meio-dia ... - Acolhido ao tabernaculo.
IV
Chegámos ao centro do Joaseiro ás onze
horas da manhã, e já não foi s·em difficuldade que conseguimos encostar o carro, em
que viajavamos, junto á casa do Padre Cicero
Homão Baptista.
Todo o espaço da rua, naquelle quarteirão, estava tomado de gente, qll(~ ali se apinhava procurando lugar diante da porta ùo
Padrinho, ou da janella gradeada, de onde
elle costuma lançar a benção. Porta e janella estavam, porém, fechadas.
Puzemo-nos de pé sobre o carro, para melhor observar aquella multidão agitada; e não
logramos perceber, no primeiro instante, sinão a malta daquelles mesmos romeiros da.
estrada, sujos e abatidos, com os seus « cassácos », os seus largos chapéos de COUl'O Oll
de palha de carnahuba, os seus bordões e
os seus hentinhos, o rifle inseparavel e as
CAPITULO
IV
« pracatas» amarradas á cintura, ou pendentes do cano da arma. A primeira vista, aquel.~amassa tinha uma unidade; expressões d.os
mais dispares caldeamentos de raça ali BC
4~onfundiam, e apenas um' ou outro semblante mais puro resaltava.
Tal impressão não subsistia, porém, depois de mais demorado exa'J.ne.Podia notar-se
que aquelle ajuntamento ululante se deixava
dividir em varias castas, mais ou menos distinctas, segundo as condições de vida de cada
um, sua raça e proveniencia, e de modo especialissimo, quanto ao estado de eHpirito do
momento.
Na mesma agitada atmosphcl'a de insania,
havia matizes de credulidade como perceptiveis graus de fanatismo. Emquanto alguns
se arrojavam ao sólo, na pratic.a das menos
concebiveis mesuras, em penitencia ou oração, outros, numa imperturbabilidade de estatuas, não desfitavam os olhos da janella
gradeada, á espera dR face veneranda do Padrinho, que alIi se não mDstrava já havia
quinze dias. Sabia-se que estivera doente,
mas que naquelle dia devia apparecer e abençoar seu tão numeroso rebanho. Estavam,
por isso, .alguns, com as mãos postas, e tinham' nas faces uma expressão de suprema
KO REIKO DA INSANIA
65
heatitude ... Entre estes, uma adolescente, cujo
perfil quasi puro e a tez menos tisnada a
destacavam eomo uma flor de estufa, em campo agreste, lívida e impassivel, lembrava uma
imagem de Madona ...
Sem attenção ao lugar, quasi sagrado, e
aos companheiros contrictos, havia tambem
quem conversasse em voz alta, sobre a colheita do algodão e o caso de uma rez perdida. Mas eram poucos, e attrahiam olhares de viva indignação dos circumstantes. Um
pequeno grupo, só de mulheres, descançava
de cócoras. Os homens em descanço não tornavam essa attitude: encostados á parede,
deÍxavam cahir o peso do corpo sobre uma
das pernas, e levavam o pé da outra, tam'bem ao muro, em flexão que realmente repousa. Este habito é tão commum aO sertanejo do Nordeste, que são poucas as paredes
de esquina, de mercados, corredores, e até
de igrejas, que não mostrem, á altura de
meio metro, as marcas de lama dos pés descalços, e o arranhão do couro grosso das
alpercatas ...
Naquelle ajuntamento, havia crianças tamhem. Na maioria, inteiramente despidas, e
pequeninas, ou se apegavam ás saias das
mães, medrosas do que viam, ou circurnva-
6G
CAI'I'l'ULO l"
gavam o olhar por tudo, num deslumbramento. Fustigadas pelo calor, ou pela fome, talvez, que algumas ¡Iludiam roendo duras sementes de catolé, agitavam-se nervosamente
e choravam de espa.<;...o
a espaço ... E esse cllUro, atormentado e dorido, sensivelmente crescia. quando mais fortes se ouviam os estampidos de bombas e foguetes, que não eessavam de estoirar em logar proximo.
Tal bombardeio -- soubemol-o depois
representa uma das singu laridadcs do extranho e impreciso culto dos romeiros, em quc,_
~wb o arremedo das cerimonias do rito cat holico, affloram as mais grosseiras praticas
de superstição. Apenas chegados á Méca, por
que tanto suspiram, os peregrinos se dirigem á frente da igreja, e ahi, seja dia OH
noite, e com qualquer tempo, fazem queiHlar os rojões que podem. em louvor do Padrinho e pela alegria de chegar. Os mais pobres atiram meia duzia de bombas; os mais
abastados, duas, tres, cinco, dez duzias de
foguetões. E como são muitos, pois entram
e saem, diariamente, cerca de tresentos romeiros, ha um espoucar qua.si descontinuado, e por vezes, um cerrado metralhar de
batalha ...
Por essa razão, o commercio dos pl'Odlld_
"W REINO DA INSANB.
li7
elos pyrotech~llicos é activo, e pode :3er eornparado ao de medalhas, santos e orações.
Destes ultimos objectos de devoção, chega a
haver vendedores ambulantes, discretos c intelligentes. Ap.enas chegados, fomos abordados per um deIles:
--- «Vigie, 1)WÇO, vossória amóde que vem
ele longe, /Ù,ue com esta oraçãozinha de lernbrança do nosso santo J oasei1'o ... É sÓ
. 't oes
- .... (I \).
d o~s
Era um pedaçû de papel ordina.rio, tendo
de um lado o retrato impresso do Padre Cicero, e de outro, ~sta prece:
p.te.
« Santa :Mãe de Deus e Mãe nossa, Mãe da::;
Dores, pelo amor do nosso Padrinho Cicero,
nos livre e nos defenda ele tudo quanto Cor
perigo e miseria; dae-me pacicnci¡¡. para soffreI' tudo pelo vosso amor e do meu Paùrinho, ainda que nos custe mesmo a morte.
Minha Mãe, trazei-me o vosso retrato e o do
meu Padrinho no Vosso altar retratado, dentro do meu coração, daqui para sempre; r(~conhc(;o que vim aqui por vós e meu Padrinho; c1ae-me a sentença de romeiro da Mãe
(1)
O sertanejo di", «um tostãO»;
e a<;sim por diante.
porém, dois'Wes, tres'[õ()!';,
68
CAPITUI.ü
IV
de Deus, dae-me o vosso amor e a dôr dos
peccados para nunca mais cahir no peccada mortal; dae-me a vossa graça que precisamos para amar com perfeição nesta vida
e gosar na outro por toda a eternidade. Amen.
Viva o meu Padrinho Cicero
mCllS
J)
e~.
De longe, isto pode parecer de um grotesco inexcedivel. Não o chega a ser, porém,
naquelle ambiente de insania, porque é mais
do que isso: é horrivell Sob a vibração do
estrondo das bombas e foguetes, numa temperatura de forno, sentindo o fartum daquella pobre gente, .ouvindo imprecações e pedidos de misericordia, soluçar de preces e choro
de crianças;
não vendo ao redor sinão
rostos de illuminadns ou de penitentes, faees maceradas, physionomias que movem a
mais profunda piedade - o sentimento que
~e apodera do observador não no permittirá rir ou zombar ... O que se tem é um vehemente appello da razão, que o levaria a protestar, a gritar, a chamar á realidade aquel1e
eHtupido rebotalho humano, ensandecido e
explorado - si a mesma razão não lhe mos(1) No cap. sobre expressões do folclore, damos varias ou·
h'a!; orações, nalgumas das quaes transparecem
mais puras as
illéas e a linguagem ùo sertanejo.
NO REINO DA INSANIA
trasse o perigo do desgraçado que ali ousasse esboçar um gesto, que fos8e, de critica' ou UIT. dito, apenas, de conderri'nação ...
Diante de uma tal mostra de degradação humana, o da incapacidade em contel-a de
prompto, não se pode deixar de sentir o maior
acabrunhamento e desespero! ...
Elle dura pouco, no emtanto. Transformase, ás vezes, em pasmo m'aio!' e dôr mais
cruciante. Assim foi comnosco, pelo menos.
Subitamente, um alvoroço extranho sacudiu toda aquella multidão. Houve um sussurr.o rapido, seguido de impressionador si1encio, a que cederam mesmo as preces dos
devot.os. Imaginamos logo que o Padre tivesse apparecido c voltamo-nos para a janeUa gradeada das bençãos. Mas não era elle. Tratava-se de coisa differente.
De uma esquina proxima, surgira esquisita personagem de barba nazarena, em trajes de amortalhado, soh comprida opa preta,
ënfeitada de cadarços, rendas e galões de
defunto. Trazia ás costas pesada cruz de madeira, quasi escondida na parte superi.or, por
gravuras de santos, ahi pregadas, bentinhos,
rasarias, conchas, imagens, esca,pularios, fitas, flores de papel, medalhas (j outras bugigangas. Cobria-lhe a cabeça um solidéo
70
CAPITliLO lV
tambem preto, com uma espantosa cruz, desenhada a galão r€brilhante, o que lhe a1.1gmentava extranhamente a estatura e lhe im'primia ao todo urn. ar hieratico, inconfundivel... Caminhava inteiriç.ado, com aspecto
de somnambulo;
e a COI' terrosa da tez e o
vasio do olhar davam-lhe um quê de sobrenatural, impressionante ...
A multidão se comprimiu, deixando um
espaço ao centro, por onde elle veio entran(lo, alheiado a tudo, hebetisado sempre. Chegado á porta da casa do Padrinho, que con tiIluava fechada, descarregou a cruz, e apoia'10 nella, ajoelhou-se com os mesmos gest.os
duros e machinaes. Iniciou em seguida, com)rida ladainha, quasi incomprehensivel, mas
it que todos os devotos iam respondendo,
ungidos do maior respeito. E dentro de pouco
Iodas as vozes se elevavam num só sussurJ'al' lamentoso, e cresciam depois, em me)opéa dorida e plang(~nte ...
O sol do meio dia dardejava a pino, arrancando chispas das medalhas e contas que
pendiam da cruz do beato. De repente, eis
que elle se levanta de um salto, agita o pe::;ado madeiro, cujos enfeites tilintam e chocalham; e se abate depois, ao chão, com
c3t.repito, abandonando o complicado instru-
XO REINO DA INSANIA
71
mento de devoção, agitando os braços e as
pernas, rolando e espumando, sob o terror
reverente dos circumstantes ... E ainda não
era tudo! A agitação de endemoninhado termina. por UITOS e gritos medonhos e um chôl'o
convulso, nasalado e sacudido, como doloroso orneio ... E a multidão, a esse tempo,
redobra a sua contricção, bate no peito, desfia rosarios, enxuga lagrimas, afervóra as
preces ...
A. physionomia dos iniciados mette medo,
então! E como se é forçado a simular o maior
acatamento a taes desproporções,
acaba-se
tendo a impressão de que se penetrou demais naque1le dominio de insania, no pesado
e avassalador ambiente da demencia, no imperio do abracadabra, em que as idéas n01'maes das coisas e dos valores se esbatem e
se obumbraIn, não mais se applicam com logica, e sr baralham e revoluteiam, e sarabandam, infernalmente!
Corntudo, não era
sonho. NÓs o vimos. Era uma realidade incontrastavel, á luz do dia, em plena via publica ... Scenas de barbarie num ambiente de
demencia!
Sob o dominio dessa emoçãJ crudelissima, recebemos attencioso recado do Padre.
É qlle já foramos percebido,
pelo « argus»
oo.
72
CAPITU[l)
1\-
da terTa e já tínhamos observado de mais,
por certo ... Eramos convidado a entrar em
casa do Padre apenas se entreabrisse a porta, que Jogo voltaria a fechar-se, para evitar
a invasã:o dos devotos. E foi, de facto, em
meio de soccos e etnpurrões, empuxõcs e
blasphemias, que conseguimos transpôr o limiar do tabernaculo. Dois minutos depois,
amavel e sorridente,
recebia-nos
o Padrinho. Tinha ao lado o seu medico de momento,
e a beata « Mocinha », sua pupilla e cuidadosa governanta.
Não os commovia, em absoluto, o tumultuar da populaça, que se manifestava, la fól'a, por furiosas pancadas na porta, em gri:os nervosos e insistentes chamadas. Quem
viesse do meio daquella multidão em furia
seria extl'anhamente impressionado pela serenidade do interi.or da casa, como se de um
pateo de manicomio em revolta entrasse num
Íi3mplo discretamente
illurninado e silencioso, onde tudo f.osse harmonia e pureza ... A
simplicidade dos moveis e ornamentos acclmtuava essa impressão.
Depois de dois dedos de prosa, sobre as
maçadas da viagem e a molestia de que o
Padre convalescia, a conversação de\"ia interromper-se. Chegára (I barbeiro, e o Padre
NO
mm¡¡o
DA INSA~IA
73
pedia licença para raspar os queIxos, como
qualquer mortal...
Convidam-nos a ver, por instantes, algumas curiosidades da casa, entre as quaes
uma rica collecção de aves, onde não eram
poucos os especimens da ornithologia amazonica. Deixamo-nos levar para um alpendre interior, muito ensombrado, com crotons
vicejando em latas, e um sem numero de viveiros e gaiolas, arrumados em linha, pelas
paredes.
O calor era horrivel. No bochorno da hora, os passaras não cantavam e as aves
maiores, entorpecidas pela calmaria, eriçavam as plumas variegadas, sus':entando-se
num pé só.
Chegavam até ali, em gritos distantes, os
protestos interminaveis dos peregrinos. E sobre elles, uma voz se elevava de dentro da.
casa ou do vizinho, entoando em voz esganiçada, ingenuas redondilhas. Percebia-se entre ellas, este refrão expressivo, que nos evoeava) em obcessão irritante, as scenas de que
ha pouco haviamos sido testemunha:
« Não tenho capacidade,
Mas sei que não digo atôa
Padre Ciço é uma pessoa
Da Santissima Trindade! ... "
CAPI'fULO V
ECCE
HOMO
Lm homem? Não, uma sombra - Talvez
j~ o milagre ... - Retrato physico do «Padrinho» e esboço de sua singular personalidade
- Opiniões diversas - le Santo:> ou «demonio l) ••• -. O que diría um especialista.
v.
Não havia muitos dias ainda, Padre Cicero RomãD Baptista abandonára (I leito, depois de grave enfermidade; e essa circumstancia não podia deixar de influir, poderosamente, na impressâJo que nos devia dar,
em primeiros instantes de palestra.
Estava com a barba crescida, rD que lhe
adoçava as feições, prolongando o rosto, ligeiramente, e disfarçando a saliencia visivel dos malares, angulosa, quasi em ponta.
O abatimento que a molestia lhe trouxe havia-o curvado mais que de costume, e escDndia naql7.ella debilidade enfermíça - que
accentuava a que os annos já de muito lhe
deviam ter communicado - a gibosidade natural que o deforma. A voz, sempre branda e
harmoniosa, mais se enfraquecera, até tomar
a doçura e os accentos de uma faIR de crian-
7R
C.l,l'ITULO V
ça. E a sua mesma alacridade, tão conhecida
e exaltada, como dadiva dos céus, enevoava:,;e com as sombras de um soffrimento que
se não mitigara de todo ... Escorrida pelo
corpo, a sotaina negra e larga augmentavalhe a brancura dos cabellos muito crescidos, e parecia reduzir-lhe ainda mais o porte, abaixo de mediano. Para levantar-se,
apoiava-se com ambas as mãos a uma tosca
bengala; e o seu andar era lent.o e arrastado ...
Acreditamos ser victima de um engano,
ou já, do milagre. Que era, com effeito, do
homem que tangia as turbas, manejando um
varapau famoso, cOrn o qual abria caminho
a rijas bordoadas, soffregamente disputadas
aliás, pelos devotos? ... Que era do caminheiro que jornadeava dez leguas sem descanço nem refeição, e que, estando em toda
parte, a toda a hora, não abandonava, comtudo, o seu povoado? ... Que efa do exorcista
sem par, a que nem mesmo o peaT dos demonios resistia, que era do dominador de
loucos, e emfim, do revolucionaria destemerosa que tanto affrolltava ás autoridades da
Igreja como aos senhores do Estado? ...
Tudo quanto delle seria legitimo imaginarse, oppunha-se flagrantemente ao que ora tinhamos em presença. Aquella não era, por
ECCE HOMO!
7!l
certo, a figura esperada do dominador de um
ambiente de delirio, como o do JoasEliro. Era
logico haver supposto um personagem diabolico, uma figura impressionante;
e, estavamos, no emtanto, face a face com um octogenario amavel, quasi timido, de uma simplicidade rustica, c que se accentuava no aspecto debil e na linguagem ás vezes imprecisa ... Nada podia denunciar a sua conhecida psychose, sinão os olhos pequeninos e
movediços, de uma só expressão enigmatica,
como se fossem de louça, e de uma eoI' indecisa, entre o '3ardo e o verde sujo.
Esperavamos um homem, e, naquelIes primeiros instantes, não conseguíramos entrevêr
sinão uma sombra ...
Não obstante, aquella sombra devia fixar
os contornos e revelar-se cruamente, meIa
hora mais tarde.
Depois de haver passado pelas mãos do
barbeiro, refeito tambem, talvez, da surpresa
da visita, de que não tivera aviso, o Padre
mostrava outro facies e outros ademanes, capazes de alterarem profundamente a impres6
Lourenço Filho -
JoaB.iro do Padre (!iura,
80
CAPITL"LO V
sã.o anteri.or. Escanhaado, nãa podia escander agora, .os traços duros e angulasas, .os
vinc.os f.ortes da face pergaminhada, a saliencia impressi.onante dûS malares, o ligeir.o
prognatism.o de 1.000, .o rictus indisfarçavel
e sinistr.o, que lhe envenena .o sorrisa ... N.o
falar, .os labios se ret.orcem e descaem numa
das cammissuras. O cabella, aparado, agora, e levantado em pôpa, descobre as .orelhas largas e abertas em leque, e lhe empresta um ar petulante. A cabeça chata, sabre .o pescoço curt.o e cheio, descamba para
a direita, repuxando as feições, sensivelmente
asymetricas. O nariz quasi recurva, entre .os
.olhinhas irriquietos, campleta a singular physion.omia que uma vez percebida difficilmente
se esquece ... A batina que vestiu, de men.or us.o, revela um tronco mal confarmada,
de anão, e nã.o permitte, como a .outra, ia disfarce dos gestos ameudadarnente sacudidos ...
Quando fala, os seus esgares assustam;
<pIando .ouve, a sua mascara é de uma rigidez de granit.o. Si não f.oram .os .olhos movediços e rebrilhantes, dir-se-ia urna dessas fjguras enigmaticas em jazigos antigos ...
Esses indices ref.orçam a sua significação
á medida que .o Padre alonga a conversa.
Os estigmas physicos de nada valeriam sem
ECCE IlO:\IO!
81
a sua confirmação num retrato psychico que
elle nos pudesse dar, e de que vamos tentar
ligeiro esboço.
* '" *
Confessemos, desde logo, que a tarefa não
Ó facil. Um espirito não é uma causa que se
pinta com 1inhas fixas, nem uma entidade
que se possa qualificar por qualidades sensiveis, ou medir por unidades determinadas e
eonhec.idas. A mentalidade se attribue ao individuo como funcção de sua propria existencia, 'c só se comprehende perfeitam:ente,
quando examinada desde a sua genese. Por
outro lado, para avaliação de seu valor, ella
necessita sempre de ser encarada em relaç.ão ao meio. Nada exprime sem a ~;ua localisação no ambiente que o produziu, e que o
conserva ou altera, cada dia.
Taes difficuldades de analyse, inherentes
ao problema de cada alma humana, sobem
de ponto em se tratando de individuos em
que um processo morbido se venha lentamente desenvolvendo.
Isso explica a diversidade de opiniões soblc a extranha personalidade
do chefe do
82
CAPITULO
V
Joaseiro. Não nos referimos evidentemente
aos apologistas que o têm cantado, em prosa
e verso, sob preço variavel, nem aos politicos que rOtêm explorado, nem aos detractores cégos de paixão ... Uns e outros, partindo de um presupposto que não podem negar, chegam á conclusão de que o homem' é
um santo rOuum demonio, um justo e sabio
varão ou um paranoico, demente commum
ou illuminado verdadeiro ... (1).
>I<
*
'"
Os differentes periodos da vida do Padre
Cicero Romão parecem demonstrar o desenvolvimento de grave psychose, revelada desde a adolescencia. É assim que, quando alumno do Seminario, em Fortaleza, já demons( 1) o Padre Alencar Peixoto, ex-dgario
ùo Joasciro, num
livro publicaùo em 1913, attribue não poucos crimes ao Pa.dre
Cicero, retratando-o systematicamentc
movido pelos peores sentimentos. Ao contrario, o hllecido dcputallo Floro Bartholomcu,
que aliás ùeveu a sua cadeira na Camara Federal ao prestigio
do Padre, em diversos discursos naquella casa de Con~resso, pinta-o como o santo dos santos, não tendo tido nenhum constrangimento em attribuir-lhe actos benemerilos que o testemunho geral
e as proprias publicações officiaes do Ceará desmentem cabalmente. Entre essas duas opiniões extremadas, outras correm mundo, nem sempre sinceras e justas.
ECCE HOMO
I
83
trava signaes tão evidentes de mythomania,
que o reitor do estabelecimento, padre Pedro Chevalier, .oppoz duvidas á sua ordenação. Maso bispo D. Luiz d.os Santos não
acho LI que .o exaggerado mysticismo do formigão fosse um perigo para .o futuro missionario. Achou que devia ser ordenado, e
assim se fez.
O Padre Cicero recebeu .ordens em 1870
e fûi residir no Crato, sua terra natal. Convidado para celebrar na capella da fazenda
do Joaseiro, a tres leguas daquella cidade,
em breve para ahi transferia a residencia.
e iniciava um heroico trabalho de evangelisação, quo desde logo lhe attrahiu as syrn'pathias dos habitantes de toda a :redondeza.
Estava então em plena phase mystica e, segundo o testemunho geral, não ha negar que
por essa epoca, a acção que desenvolveu tivesse sido a mais benefica possi vel. É preciso conhecer o atraz.o do povo e a rudeza dû
meio para comprehender o alcance inestimavel de semelhante tarefa. Em certos pontos
do Nordeste, ha ainda verdadeira necessidade
de catechese christã ... A actividade do Padre Cicero, pelos annos calamit.osos da grande secca de 77-79, a crer-se no depoimento
desinteressado de alguns contemporaneos, foi
UAP1TULO
V
de notavel benemerencia. Attribuc-se-Ihe a
jniciativa do plantio da mandioca e da maniçoba, na serra do Araripe, verificada nessa
4:lpOCa,
alem da construcção de poços e pequenos açudes. É de crer-se que assim fosse
e que o proprio reconhecimento dos sertanejos tivesse facilitado o ambiente para o trabalho do fanatica, em que elle ia transmudar-se.
Porque do mysticismo ao fanatism:o não
vae sinão urn passo.
O espirito mystico tem sêde do incomprehensivel, do mysterioso, sente-se mal no dominio da realidade. Conforme o tempo e o
meio, a variedade da educação e"as suggestões do ambiente, elle se lançarápor
completo na religião," na magia, nas sciencias
occultas, na doutrinação politica. Certas idéas
delirantes são o eixo de toda sua dynamica
mental. .. Reconhece-se no fanatico, muitas
vezes, de modo clarissimo, o mystico em acção. :Não lhe basta agora a ligação com os
numes inspiradores. É precIso communicar
suas idéas, fazer valer as suas concepções
originaes sobre uma certa classe de phenomenos ou mesmo sobre toda a vida universaI; e, não lhe bastando a propaganda.
anceia por levantar os homens á sua pala-
ECCE HO.MO!
85
vra; lunda novas seitas, estabelece escolas
politicas, descobre mysterios, julgando-se
sempre encarregado de uma missão sobrenatural ou divina ... E para o exito da empreza, em que vê a explicação de sua propria
vida, não recua diante de consequencia alguma.
FavorecÍ<~o pelo meio, modificado talvez,
a principio, pelos proprios 'homens a quem
se dirigia, (I mysticismo do Padre Cicero tinha que fransformar-se no mais rude dos
fanatismos. Os milagres operados na pessoa
da beata Maria de Araujo, no anno. de 1890,
marcam' o inicio desta nova phase de seu
espirito. Data dahi tambem a aggLomeração
dos romeiros e, dentro de pouco, de gente de
toda a especie, que demandava anciosa a
nova Jerusalem, «onde Christo para salvação düs homens, de novo derramava o seu
sangue precioso» ... (1).
O fanatica pode tornar-se com facilidade
um revolucionario não só porque a victoria de suas idéas exige muitas vezes a reforma social como porque elle se distingue
dos mais por uma interpretação moral especialissima. Para elle não ha perfeita sepa(1)
Palavras tio Paùre Cicero.
86
CAPITULO
Y
ração entre o justo e o injusto, o licito e o
illicito. Ou, melhor, a lei moral é o seu arbitrio, a sua resolução de momento, porquanto se julga um inspirado, investido do monopolio do bem ... Dahi, sendo sincero, o não
recuar nunca diante dos actos mais odiosos, para cumprir ü que considera o seu dever. Encontra-se nos fanaticos essa inferioridade de consciencia caracteristica: são semiautomatos, seguindo cégamente, sem se aperceberem do seu est.ado, os dictames de uma
tendencia morbida (1).
Um especialista talvez pudesse dizer que
os actos do Padre Cicero, posteriores aos milagres de Maria de Araujo, demonstram esse
estado de espirito. Talvez visse, tambem, outros symptomas, não menos expressivos, no
aleatorio de sua resignação diante das ordens das autoridades ecclesiasticas, na sua
proscripção temporaria do Joaseiro, na viagem a Homa, para recorrer da excommunhão
ern: que incidira.
Combatido pelos superiores da igreja, suspenso de ordens, Padre Cicero lança-se, emfim, á politica militante. Bem acolhido, começa por exigir a criação do municipio do
(1)
Les frontières
de Za folie,
A. Culerre, pgs. 191 (} 196.
ECCE HO.àfO!
87
Joaseiro, onde toma o lugar de prefeito; e
em breve, animado por alguns sequazes, que
se aproveitavam
das condições favoraveis
da politica geral do paíz, pretende o dominio de todo o Ceará, com a sedição de
1913...
Um especialista talvez pudesse dizer mais
ainda, verificando nelle uma phase final de
megalomania. De facto, sua maior preoccupação é referir-se ás relações que mantem
com .os poderosos de todo o mundo, que o
prezam como a igual, e á constante e proveitosa interferencia sua nos grandes acontecimentos mundiaes e nacionaes ... Nas suas
palestras, emprega sempre phrases como estas, e que raramente vêm' a proposito:
-- « Como sabe, eu me carteio com o Epitaeio ... Ainda hontem recebi telegr;unma delle ... »
- « O Bernardes me distingue mUito. Tambem é preciso não esquecer que eu fui o
arbitro de sua candidatura ... })
- « Os extrangeiros
me eomprehendem
melhor. Ah.i está um telegram:ma do rei da
Belgica ... »
- « Naturalmente o senhor ouviu falar do
meu telegramma sobre a terminação da guerra européa. Essa gloria ninguem me tira. Era
88
CAPITULO
V
um dever meu concorrer para a terminação
da conflagração ... »
E, assim, sobre outros assumptos.
'Nunca faz, porém, referencia alguma a pessoa de renome pelo saber, talento artistico
ou cultura scientifica. Só o fascina o mando,
o dominio das gentes ... Ainda agora isso ficou provado pela imposição de sua candidatura de deputado á Camara Federal...
***
Nesse estado de decadencia physica e mental (1), claro está que o Padre Cicero não nos
podia dar a impressão daquelle homem de
« grande cultura », de que tanto têm falado
os seus apologistas ... (2). Si o chefe do Joaseiro tivesse podido accumulaI' e manter, naquelle meio, um solido e brilhante cultivo
do espirito, esse, sim, seria o seu maior e
(1)
Ê preciso não esquecer que o velho padre, doenle, com
selenta e seis annos de ida-de (hoje orça pelos oilenla e dois)
leve ùe galgar com a maio! diffir.uhlade a lai tribuna, no meio
da praça» ... DR. FLORO BAnTHóLOMEU,
« Joaseiro c o Padre Cicero », Imp. Nacional, 1923, pg. 69.
(2) Não ha muito a « Gazeta de Noticias », (lo Rio, declarava, em editorial, que o Padre Ciccro escrevia melhor o portuguez que a maioria dos membros da Academia de Letras ....
(t
ECCE HOMO!
89
mais legitimo rnilagre! Vivendo, ha mais de
meio seculo, em contacto apenas com o sertanejo bruto, e ademais, num ambiente de
delirio; não dispondo de tempo siquer para
lêr e meditar, pois que suas horas não bastam para attender a peregrinos e beatos; sem
recurso de renovação de idéas, por livros e
jornaes, que até sua casa só muito raramente
chegam; sem necessidade alguma que o leve
a exercitar o espirito, para um sadio objectivo cultural - é obvio. que só se possa
encontrar nelle, ao termo de oitenta annos de
vida, urna intelligencia mediocre e fatigada,
adstricta aos mesmos abusões, preconceitos
e desvios mentaes do sertanejo ... A priori,
já seria inadmissivel uma elevada cultura em
qualquer individuo sujeito á sua vida especialissima. E os factos o comprovam, com
a maior crueza. Em toda sua longa carreira
sacerdotal e politica, jamais pronunciou um
discurso memoravel, uma conferencia ou serie de pregações que tivesse produzido écn;
jamais escreveu um artigo de propaganda ou
defesa, uma obra, modesta que fosse, de doutrina ou combate ... Porque, por exemplo, não
explicou, num livro, que lhe seria facil compôr, se tivesse cultura, a sombria questão
religiosa em que se envolveu? Porque não
90
CAPITlJLO
V
fundou uma seita, não consagrou a sua vida
á propaganda dos meios scientificos de combate il. secca, não fez o estudo da historia ou
das necessidades actuaes da região? Porque
nunca obstou, por meios efficazes, a degradação social do burgo que sempre dominou?
Porque não tem permittido que se desenvolya a instrucção publica no Joaseiro ? (1). Porque se deixou dominar, de modo absoluto,
sem um reclamo ou desabafo, por meia du2ia de individuos que o têm manejado, e
<[ueo manejam, no proprio proveito delles? ..,
Necessariamente,
porque, sobre a hypothese de urna psychose que o desadapta a
elevada funcção social, fallece-Ihe, por inleiro, a cultura do espírito (2).
A maneira pela qual Padre Cicero se dirjge aos romeiros, ouve suas lamentações e
queixas, recebe dinheiro e outras dadivas,
aconselha e receita, não é só a de um homem
que tivesse escapado á normalidade:
é a de
um homem manifesta'mente inculto.
Vimol-o nessa tarefa hedjonda.
Tivemol-o ao pé, e estavamos por detraz
( 1) A proposito, vide nola no fim do volume.
(2) Veremos adiante que nem todas psychoses desadaptam
homem a uma elevada. funcção social.
o
ECCE HOMO!
91
da mesma janella gradeada, junto aos batent~s na qual se comprimiam, da outra banda,
dezenas de alucinados, de devotos e penitentes, de peregrinos que suaram até o sangue,
para attingir a suspirada Méca do Cariry, de
malucos que lhe levavam os ultimo s tostões,
de mães afflictissimas que rogavam a benção aos filhos moribundos, e com os quaes
iam affrontando, impavidas, num desespero
de leôas feridas, aquelle ajuntamento dantesco, que as repellia e maltratava ...
O Padre mal distingue, naquelle tumultuar, o que todos se esforçam por dizer-lhe, e
contenta-se em receber as esporblas, os mimos por vezes valiosos, os rosarios, medalhas e bentinhos ... Aos mais proximos, que
lhe rentêam as faces, exhibindo por vezes
as chagas sangrentas, os labios carcomidos
pela bouba ou extravagantement,~ entumecidos, em esgares horriveis, por essa molestia, as faces maceradas pelo jejum ou pela
consumpção que os vae minando, os olhos
desfigurados pelo trachoma - elle receita
displicentemente ... Receita o quê? Nem elle
sabe I Habitualmente, aconselha r·emedios caseiros, de todos muito sabidos -- uma cuia
de agua q11ente em jejum, uma purga de jalapa, um chá de raiz de angelica, uma infu-
CAPITn,o
v
:::.ãode «papaconha» (1). Para clientes mais
importantes, realiza sessões particulares de
Hlggestão c passes ... (2). Algumas vezes, distribue esmolas tambem; mas, mais recebe
que dá. E quando se sente fatigado, quando
as mãos em supplica já avançam pelas frestas da janella, e o attingem na sotaina, nos
braços ou no peito, e já o empurram e já
() empuxam, violentas e ameaçadoras, elle leFanta por sua vez a dextra descarnada, como
signal de silencio, sllstenta-a no ar, por um
jnstantes, os olhos postos no céu, reverentemente, e desee, emfim, sobre aquella miseria
incrivel e aquella degradação inenarravel -él. benção que a todos, indistinctamente,
consola e applaca ...
Depois do que, aferrolhada por prudencia
it janella,
lava as mãos, tranquillo e satisfeito comsig.o 'mes'mo, e vae merendar ... (3).
(1) Ipécacoanha.
(2) Sobre a medicina do Padre, v. o t~stelllunho insuspeito
de Floro EarthololllCU, ob. cit.
(3) Uma das singularidallcs do Padre é o ~eu regimen alimentar. Ha muitos annos, segundo nos informou, "li se alimenta de
leite, coalhada e arroz. Toma pOllCO café; niLo fuma; dorme
liluito pouco.
ECCE HOMO!
93
•
* *
E' o Padre: Cicero um paranoico?
Não ousamos affirmaI-o.
A paranoia é uma anomalia constitucional, que permanece latente na juventude, e
que só com o perpassar dos annas, sob o influxo de influencias favoraveis, manifesta-se
sob a forma de Uln delirio de lenta evolução,
coherente e fanatica. Por vezes o diagnostico
é difficil e enganoso. Porque as manifestações que lhe são proprias oscillarn, quasi
sempre, entre os limites de um equilibrio
normal das idéas e sentimentos, sem ultrapassaI-os, de modo perceptivel. Haurindo forças de cada circum:stancia da vida, apoia-se
geralmente no farto subsidio de ulna mem'oria
sempre prompta, de um poder de critica un ¡lateral, mas bastante aguçado, de uma obstinação fechada ás mais claras evid'encias. O
delirio possue, assim, inteiram'ente o paranoico e torna-se a norma inspiradora de sua
conducta. Ao lado da constancia dessas convicções de natureza morbida, offerecem' perturbador c.ontraste, sinão um grande poder
de faei ocinio, ao menos a firmeza de acção e,
94
CAPITULO
V
muitas vezes, u ma estoica dignidade
de
vida(l).
De modo que a.profunda suas raizes, mais
que num defeito da intelligencia, numa singularidade de caracter, de que são elementos
fundarnentaes o mais entranhado egoismo, um
conceito sempre exaggerado do seu proprio
valor, uma desconfiança permanente dos que
o wdeiam, a inclinação aornysticismo
expansivo e militante, um espirito cavalheiresco de protecção activa, ou devoção passiva, a um ideal religioso, uma intolerancia
sophistica contra injustiças verdadeiras
ou
imaginarias ... Sobre esse terreno, se expande
uma trama de preconceitos passionaes, que
favorece as interpretações mais egocentrica.-,
e extranhas dos factos, ampliando. de modo
portentoso um nucleo de associações erroneas e fantasticas, num verdadeiro delirio
systematizado.
Os paranoicos são sempre lucidos. Não
apresentam nunca essas tormentas da vida
psychica que offuscam a consciencia, e desarvoram .o automatismo sobre que todas as
interpretações da consciencia repousam. Não
(1) Esta llescripç.ão da paranoia tomamul-a de Tanzi c Lugaru, Malat.lie Menlali, yol. II, ¡¡g. 7[¡G, 3.'1 cùi~·ão.
ECCE HOMO!
95
são confusos; muito raramente alucinados.
O delirio, que se movimenta dentro de um
thema restricto, não altera o juizo normal
sobre certas questões geraes, nem sobre a
maioria dos factos da vida quotidiana. A'
medida que envelhece, o paranoico nada perde de sua. lucidez habitual;
pelo contrario,
impellido pela singularidade de sua posição,
em meio aos incredulos e contradictores, as
mais das vezes é levado a melhorar as armas
de sua dialectica, superando os mediocres de
espirito normal... Suas paixões, suas emoções, mesmo quando explodem e'm paroxysmos de vio:encia, não differem; muita das
reacções emocionaes violentas dos individuos
sãos, excepto, está claro, por sua causa, que
é, na maioria das vezes, parcial ou totalm'ente
...
Imagmafla.
A maior parte dos paranoicos evitam' o
manicomio. Mesmo quando segue'm uma linha de conducta singular, ferozmente egois,
tica ou anti-social e ridicula, os paranoicos,
na sua lucidez, sabem impôr-se um freio c
evitar as acções que os poderiam incompatibilizar com a sociedade ... Só em phases
avançadas da molestia, e espicaçados pela
força incoel'civel de suas paixões anormaes,
se envolvem em acções compromettedoras.
6
LOlll'ençO
Filho -
Joa, ••'ro do Padre Cicero.
96
CAPITULO
\'
Existe mesmo uma categoria de paranoicos, que Lombroso encaixava entre os seus
« matoides », cujo delirio é innocuo, sinão
para si mesmo, ao menos para os outros,
visto como só desenvolvem argumentos impessoaes: pesquizas pseudo-scientificas,
invenções chimericas, systemas de philosophia,
de mechanica, de theogonia, utopias sociaes,
apostolados especialissimos - tudo debaixo
da inspiração de uma fé solitaria e sem sombra de finalidade pratica ... (1).
Os especialistas accordam em que os themas da paranoia são em numero. limitado.
Accordam tambem em que todos dizem respeito aos caracteres geraes das paixões e dos
instinctos humanos. E as suas repetições flagrantes, sempre as mesmas, ainda que entre individuos sem nenhum contacto historico
ou geographico, permitte pensar que o paranoico apresenta o. typo da mentalidade primitiva do homem, abrolhada como uma reminiscencia, não se sabe bem por que leis
de atavismo ...
« E' realmente impressionante
a identidade entre os elementos do delirio paranoico
e os das aberrações individuaes e collecti(1)
TANZI
C LUGARO,
ob. cit. pg. 757.
ECCE IIOlVIO'
97
vas, de que está pontilhado o caminho da
historia e que, ainda hoje, se repetem entre
os selvagens e os civilisados. Posto que taes
aberrações sejam o Irueto de uma suggestão
extensa e continua, que tradicionalmente
se
perpetue, são inilludiveis e inevitaveis ... Os
paranoicos são formalmente os mysticos do
vulgo e dos selvagens; na realidaùe sãO', porém, mais mysticos do que aqueUes que o
cercam, porque muitas vezes o seu mysticismo nasce, desenvolve-se e persiste, a despeito da opposição ambiente ... Sobre o que
parece não haver duvida é em: serem: as manifestações do rnysticis:mo paranoico inteiramente semelhantes á da tendencia mystica
do homem primitivo: a unica differença é
a modalidade do meio historico em que surge.
Os primitivos são filhos de seu tempo; os
paranoicos
são anachronismos
viventes ...
Comtudo, .{}sentimento mystico exaggerado
do primitivo transparece em manifestações
modestas, tranquillas
e collectivas de um'
pensamento imperfeito, que ainda se ensaia.
O ardor fanatico do paranoico é uma explosão audaz, violenta, individual duma mentalidade retrograda e anti-social. o. atavismo se reve=a muit.o mais claramente na paranoia que noutras anomalias constitucio-
98
U.\l'ITULO V
naes, especialmente porque as idéas se transformam' de modo mais preciso e visível do que
a camada subterranea e mysteriosa dos sentimentos. Quem ousaria affirmar que os homens de hoje são moralmente melhores do
que os antigos? Mas, quem poderá negar que
sejam mais intelligentes ou pelo menos mais
ricos no saber? » (1).
Não será difíicil, um dia, traçar-se mais
rigoroso perfil psychologico do Padre Cicero
Romão, para verificação clínica de seu caso
especialissimo.
Nós não nos abalançamos a fazel-a, por
ora. Em si mesmo, seu caso pessoal nos é,
de todo em todo, indifferente; e, em' qualquer
hypothese, a sua pessoa, como individuo humano apenas, é digna do maior acatamento,
anormalissima que seja ou não ... O que nos
importa é a situaçáo social que se creou no
Joaseiro, com extensão facilmente verificavel
por todos os sertões do Nordeste, sinão por
quasi todo o interior do norte do paiz. O que
nos importa é o phenomena social impressio( 1)
I.l. iba. pg. 760.
ECCE IIOl\IO!
99
nante que alIi se mantem', para demonstração
inilludivel do desacerto com que têm agido
a respeito os nossos preclaros homens de governo ... E' isso que pode interessar ao paiz
e ao futuro. E' disso que tentamos tratar.
Ademais, em qualquer momento historico
considerado, o homem é um' nada, uma palha que o vento agita e conduz, eleva ou faz
dcsapparccer no vortice dos acontecimentos ...
Na sua corrente fatal, elle é elemento apenas apreeiavel. Nada pode e nada quér, si
as circumstancias favoraveis do meio não n'a
revelam o não n'o fazem' avultar ... ColIocado,
pois, num meio differente ou, tendo surgido,
em epoca totalmente diversa, o Padre Cicero
teria tido, talvez, uma acção sempre igual de
convencido e sincero ap-ostolo, e seu nome
~cria citado como um exemplo digno de imitar-se; não teria certamente descuidado tanto
de seu espirito, não haveria fugido da Igreja,
de que seria um digno filho ... Collocado, emtanto, naquelle ambiente de ignorancia geral, de superstição rude e grosseira, onde a
condição da quasi totalidade do povo é a de
um primitivismo manifesto, onde as taras de
um caldeamento de raças inextricavel favorece ás explosões de todas as anormalidades,
sem forças em si, e sem auxilio em derredor,
100
(
CAPITULO
V
eUe haveria de despenhar-se por onde, ineluctavelmente, o levavam as energias impond'~raveis da sociedade primitiva em que, por
IT.eio secul0, agitou mas não conduziu ...
Não n'a culpemos, pois, em demasia.
Não lhe reprochemos, mesmo, o desenvolvi mento de uma anomalia constitucional de
que elle não pode ser verdadeiramente culpado ... Fazel-a, sobre injusto e cruel, seria illiquo.
E, do ponto de vista. social, ainda que averi¡suado qualquer desvio profundo de sua
mentalidade,
tomada valida, emfim, a sua
pErsonalidade enigmatica - fazel-o seria um
absurdo ...
Seria desconhecer-se, primeiramente, a noção de normalidade psychica. Seria negar-se,
por .outro lado, em determinados momentos
historicos, o papel surprehendente, a funcção
soeial innegavel dos degenerados.
Não é ,() caso de discutir-se aqui, a these
tão debatida da paridade do genio e da loucura. E' uma these extrema que não nos
pode attrahir agora (1). Mas a verdade é que
: 1) Aliás, ninguem pôde demonstrar ainda que a. these de
Lombroso, sustentada. no seu « lJomo di genio 'l, fosse inteiramen~e falsa. A linha subtil e flutuante que separa o genio da loucura nunca será talvez determinada ...
ECCE HOMO!
101
no constant.e esforço, para um augmenta rapido de intelligencia, na idade industrial que
atra vessamos, têm sido mais frequentes que
llunca, os casos de degeneração mental, de
demencia e suicidio ...
E o caso é que as sociedades tambem' fahricam, por assim dizer, intencionalmente, os
degenerados de que sentem necessidade ém
certos e determinados mom'entos de sua evolução.
,< Essa precisão é tão fortemente
sentida,
que alguns povos barbaras, entre os quaes
a degeneração é escassa, acham-se na obrigação de creal-a artificialmente,
com intoxicações especiaes, regimen de alimentação
e p:::-ohibições. Os sacerdotes, 08 prophetas,
as pythonizas, as vestaes, a quem os povos
antigos davam tanta importancia como conselheiros politicos, eram frequentemen,te mantidos numa situação anomala de castidade,
Olt num estado
forçado de exaltação pela
acção do fogo, perfumes, incensos, etc., que
lhc8 alteravam as funcções nenrosas.» (1).
Os habitantes das Ilhas Aléotas ainda hoje
provocam directamente certas anomalias nos
(1) G. LOMDROSO,
no, 1923, P¡¡. 178.
« I Vantaggi
della ùegenerazione»,
Tori-
102
CAPITULO
V
individuos a quem desejam entregar os seus
destinos politicos.
« Os predestinados,
homens ou mulheres, não importa, devem possuir caracteres differentes dos demais. Apenas nascida, a criança é posta sob esquisitas
regras de vida, a abluções mais ou menos
frequentes, a jejuns e vigilias. Deve ser taciturna e solitaria; desviada do convivia dos
mais, raramente pode participar da caça e
da pesca; passa depois por uma ~erie de iniciações que a devem pôr em communicação
<~om os espiritos ... Criado em tal regimen,
I)
adolescente torna-se como maluco, tem
Bympathias e antipathias
demenciaes, estados de lucidez e hyperesthesia
extranhas,
acreditando estar sempre cercado de demonios ou de espíritos que lhe impõem ordens
e insinuam conselhos ... Torna-se, assim, um
mago Hangacook, que accumula muitas vezes as funcções de juiz, padre, arbitro nas
questões publicas e privadas, poeta e medico, comico e minist.ro ... » (1).
Nos povos antigos, o demente era quasi
sempre considerado como um genio, cercado
dl~ admiração ou adorado.
Conforme cita
(1) E. RECLt:S, « Lcs primilifs»,
br(·so, ob. rit.
pg. 83 e "l'g.; cf. G. Lom-
ECCE HOMO!
103
Lombroso·, no seu Uomo di genio, Platão considerava o delirio como uma dadiva divina ...
Horacia dizia que nullus poeta sine mixtura
dementiae, e Aristoteles proclamava que, sob
a acção da hemicrania, ou do dl~lirio, qualquer individuo podia tornar-se adivinho, propheta ou artista ... (1).
Essa verificação historica do papel dos degenerados, no aperfeiçoamento
social, torna
acceitavel a explicação de Deniker (2). « A
media intellectual e moral dos selvagens em
geral, diz elle, não é nada inferior á dos homens civilisados:
não sei si possa desejar
maior prova de habilidade de que a de produzir fogo com dois pedaços de pau, ou de
tece:~' a mão uma dessas télas maravilhosas
de finura e graça ... O que os d.ifferencia é
unica e exclusivamente a capacidade de aproveitar e seleccionar as novas idéas ... » E ea mmentando-a,
conclue razoavelmente
Gina.
(1) o que os antigos assim explicavam, pda intervenção de
poderes sohrenaturaes,
explica-o hoje a sciencia, pela noção do
trabalho inconsciente,
da dupla personalidade
ou automatismo
psychico. A provocação arti{icial de estados delirantes continua a
ser feita, ainda. em nosso tempo, na maioria da!! chamadas «scssões espiritas», em que variam apenas os proc'lssOS de intoxicação. A esse rc-,speito, nenhum estudo é mais interessante ùo que
a « Introduction à la Métapsychique humaine», de René Sudre,
Payot, Paris, 1926.
(2)
1<1.ihd.
pg. 183.
104
CAPITULO
V
Lombroso: « Quando um eidadão europeu ou
amerieano descobre u'ma nova verdade, ou
um novo engenho, encontra immediatamente
centenares de callaba radares, de continuadores, de detractores ou de enthusiastas que
-se encarregam de verificar a nova idéa, de
depuraI-a, de engrandecel-a, de applical-a,
je propagal-a com o pro.prio nonl'e ou com
'Jutro, mas sempre de modo a diffundil-a,
a tornal-a patrimonio commum de multidões
de sères, que della possam aproveitar0s
beneficias. A essa magnifica cooperação é que
devemos o progresso. Ora, a este proposito
de diffusão de idéas e de c.ollaboração, ao
trabalho, hem pequena parte cabe á aurea
medioC1'itas, abs.orvida sempre no gosar e
manter unicamente os fructos do passado ... »
Os mediocres difficultam, assim, o progresHO. São os desequilibrados,
malucos, fanatiGOS, lunatic.os, santos ou genios que, desprezando a impopularidade e as perseguições
inevitaveis, diffundem e propagam' os novos
productos industriaes, com'mereiaes, as obras
artisticas, as novas concepções da esthetica,
as experimentações ousadas, as syntheses e
as applicações que depois passamos a considerar como geniaes ...
« São os degenerados, p.ortanto, que ali-
105
ECCE IIO:UO!
mentam' .a fé sagrada do progresso" e a elles
cabe a funcção de apressar a civilisação.
Como'as bacterias da fermentàção,assumem
muitas vezes um papel duplo de analystas e
reconstructores:
elles decompõem e reorganisam as instituições, activam ü intercambio
de idéas, e él transformação
incessante do
assás complexo organismo que é a sociedade
h umana». (1
\ '.;.
li<
*
•
A verificação de uma anomalia constitucional, meSlllO grave, não rebaixaria,
portanto, qualquer papel social relevante que,
em toda epoca, pudesse ter desempenhado o
Padre Cicero Romão Baptista. Essa condição, como vimos, até podia ter-lhe facilitado
a acção, fornecendo-lhe
energias inauditas
para uma formidavel tarefa constructiva, em
meio ao sertão bruto, quasi sem lei, e sobre a
massa plastica do caboclo rude e primitivo ...
Esse não seria seu crime. E delle não ha.
queixar-se da natureza. Si queixas lhe cabem,
(1)
où. cit.
DE:'o:JKER,
«The
races
01 man )), cf.
G.
Lombroso.
106
CAPITULO
V
é á graça de sua. longevidade,
e á facilidade
lhe permíttiu accumulaI'
com que a fortuna
fartos cabedaes ...
Com effeito, o Patriarcha do Joaseíro paga,
hoje, com um estado de lamentavel decadencia, e na diminuição flagrante de seu prestigio sobre o meio, em que sempre viveu, o
crime de ter existido demais ...
Desapparecido pouco depois do milagre de
Maria de Araujo, seu nome encheria aquelles rincões, como o de um santo verdadeiro,
cuja evocação elevaría a alma opprímida do
sertanejo, nas epocas de calamidade ... Vivo,
embora, mas pobre, seria ainda o apostolo
sem par, cuja palavra em' relação ás coisas
do céu, havia de merecer sempre o maior acatamento.
Encanecido e cheio de riquezas, aUrae
sobre si mesmo não pequena dose de ridículo
e o peso de maldições sem conta I
E' que a natureza a ninguem perdôa vantagem alguma na vida ...
CAPl TU IJO VI
O
«
ALTER-EGO»
...
A pena de dver demai" ... -- Um capilula difficil de escrever-se - O «incubo»
do Pa.dre e historia de ~eu ll.ominio ... - Testemunho fid€digno.
VI
« g tanto que os rorncirinhos
ingenuos,
venùo com maravilha e com magua tuùo isto,
dizem: « Aquelle hóme (muitos não dizem o
nome) já butù foi ma~uineti3mo em Padrim
Cirço» -- P. l\'1A:\OEL ~IACE['O, « Joa.seiro em
fúco »,
Fechando o capitulo anterior, affirma'mos
<-1 ne o Padre
Cicero devia queixar-se,
aos
céus, de sua longevidade ... Ella tem permittido, de facto, que boa dose de ridiculo lhe
haja mareado a figura: uma simples compara.ção das phases successivas de sua longa
existencia reduz o apostolo inicial a uma grotesca caricatura de fanatica e m(jgalom'ano ...
Por outro lado, a gerencia de seus negocias
de millionario, cuja origem não discutim'os,
attrahiu-lhe farta somma de maldições, como
seria ínevitavel, e demonstrou, de modo cabal,
que o seu reino não era o reino dos céus ...
Mas, a pena de viver demais havia de ac-
110
CAPITULO
VI
cûntuar-se depois que o valetudinario se deixou empolgar por um peregrino, -- que, de
afilhado e protegido, em breve havia de passar a seu « alter-ego», e depois, a senhor
absoluto.
Esse peregrino se chamou dI'. Floro Bartholomeu da Costa; era um medico bahiano,
que surgira por volta de 1908, no Joaseiro,
e que foi exercendo uma acção de dominio
sempre crescente, até sua morte, occorrida ha
ainda poucos mezes, no Rio de Janeiro.
Esta ultima circumstancia
assignala, claramente, as difficuldades que nos assaltam
ao escrever este capitulo.
Talvez seja muito cedo ainda para evocar a
figura desse curioso expoente da politica ùo
Nordeste. E alem disso, havia partido, pouco
a,ntes da sua morte, com uma missão espeeialissima do governo federal, para defesa
da legalidade nos sertões do Nordeste ... Sabiamos que seguia já enfermo. Sua morte,
Jastimavel por muitos motivos, deu-se pouco
depois de rctornado ao Rio, em apressada
viagem. E ainda soam nos ares os écos das
homenagens de general honorario do E'xercito, corri que o governo houve por bem consagrar-lhe, a memoria, para que se possa pretender exhumal-o. Floro Bartholomeu des-
o « ALTER
EGO »...
111
cança em paz, tendo sobre o esquife, passada
em escudo uma bandeira da Republica. Seria preciso laneeal-a, a fundo, para tocar agora, o vulto do morto ... Mais razoavel e humano é esperar que ella se desfaça em' pó, o
que não levará tanto tempo quanto hão de
viver os effeitos da existencia trepidante do
caudilho. Escrever-se-á,
então, a sua chronica completa.
Nem por isso, porém, havernos de deixar
de nomeal-o, quando necessario á comprehensão dos factos, porque de certa epoca em
diante a historia do Joaseiro é a das proprias
desmedidas
ambições do medico bahiano,
euja figura dominadora envolve e apouca a
do proprio Padre Cicero. Em' certos pontos,
não será tambem sem uma aura de sympathia que havemos de mostral-o, como quando reprimia certos cxaggeros de fanatismo,
embora com violencias excessivas. Tal se deu,
por exemplo, no caso do «boi santo », episodio que é seguro indice do estado mental e
moral dos «romeiros» c que relataremos num
dos capitulas seguintes.
O que não será possivel, nem nos parece
opportuno neste momento, é um juizo seguro
e definitivo sobre a acção de dominio que
exerceu, e o balanço completo de suas res-
112
CAI'ITULO VI
ponsabilidades, em episodios gravissimos da
historia do Ceará.
'" '" '"
o dr. Floro Bartholomeu da Costa appareceu no Joaseiro em 1908, vindo da Bahia,
pelo interior dos sertões, ao que dizia, fugindo de perseguições de seus inimigos. Acolhido em casa do Padre, de que se fez medico
particular, em breve recebia delle as maiores provas de amizade e confiança. Sem grande cultivo, mas intelligente e audaz, comprehendeu logo a situação e o partido que·
della podia tirar. Assim, tudo fez para que
a povoação fosse elevada a séde de municipio, :O que conseguiu em 1911. Modificada
a politica estadual do Ceará, com a deposição
do velho governador Accioly, em 1912, e sentindo que a nova administração lhe frustrava
.os planos habeis, preparou o famoso gûlpe
que foi a sedição de dezembro dû auno seguinte, em resultado da qual se sagrou, em
definitivo, .o ehefe da politica de todo o. Cariry. E' evidente que conseguiu tudo isso
servindo-se sempre do nome do Padre e fazendo-o instrumento doeil a todas machinações ...
o « ALTER
EGO »...
113
A historia. desse dominio sobre o Padre
Cicero está muito bem delineada numa interessante obra do P. Dr. Manoel Macedo, exvigario do Joaseiro, e um dos ornamentos do
clero cearense. Emprestemos-lhe as proprias
palavras, plenas de autoridade:
«Vindo das bandas do sul, dos sertões da
Bahia, depara-se no Joaseiro - refugio do
Nordeste --- a entidade desconhecida e nulla
do doutor Floro Bartholomeu. Pobre aventureiro (e não romeiro, como elle já se deu
algures) vinha o bahiano atraz da sombra
da sotaina mais antiga d.o Cariry, a unica
que o podia furtar aos raios de uma justiça
ultrajada lá em baixo. Não era este refugio
um caso noya no Joaseiro. E lá estava o
doutor, de chineUos de trança e de pyjama,
habitando
um quartinho
minusculo,
uma
cella, no quintal do padre Cicero. Uma cella I
Tanto bastava a quem não era causa alguma.
Mas o Padre Cicero era tudo, como sem'pre
foi, como sempre se gloriou de ser, na terra.
que fizera, não tolerando nisto a menor competição. E porque, experiente, viu no advena
instrumento apto para novas ousadas empresas, começou a dar-lhe prestigio, a emprestar-lhe poder, até fazel-o um alter,-ego, sem
comtudo abrir mão da supremacia. Foi deste
114
CAPITULO
VI
prolongamento do proprio « eu » que o Padre Cicero engendrou este phenomena politico, unico no Brasil, e no mundo, de um só
poder municipal etn duas pessoas distinctas,
vindo a ser o padre o prefeito: mas exercendo
a prefeitura o doutor ... »
« O doutor, uma vez no solio .. esquecia-se
de imitar o prefeit.o no disfarce da embriaguez do poder. O povo, vencido pela adoração
do Padre, jazia inconsciente aos pés do doutor. E assim foi sempre. Si o Padre queria
uma causa que lhe não ficava bem', com' a
execução passava a imputabilidade ao doutor, menos escrupuloso, e o povo, sem saber
mais distinguir um do outro, obedecia a este
como si fora áquelle. Tal se deu na revolução de 1914. Que ninguem ouse dizer que a
a batina decapitou o Estado, pois verá chover
a desmentida, do alto da tribuna da Camal'a: « não a batina, mas a béca! ... » Ingenuos
paes da Patria e os filhos da Patria, que não
reconhecem a identificação de ambas. Triumphou a sedição. Nova embriague7. de poder
e nova sêde tambem. Ao doutor já não bastava uma cadeira na camara municipal do
.Joaseiro, não o contentava mais o commando de seus cangaceir.os sacrificados:
sonhou
com o parlamento estadual, com suas rendas,
·0
« ALTEH EGO »...
115
e lá se foi scntar numa cadeira do Congresso
do Estado, por obra e graça do Padre Cicero
que, descarregando nella sua gaveta de titulos eleitoraes, tinha em vista ganhar, junto ao
governo, aquella posição de valia, na pessoa
de seu lugar-tenente. Mas o poder é eomo cachaça: quanto mais se bcbe, rnais se qUCI'
beber. Por isso, eis agora o doutor com os
olhos no Congresso da Nação. Diffi.cil? ... E
ha difficuldade para o Joasciro, quando o
Padre Cicero quer? Si houvessem dois candidatos os títulos ainda sobravam. Doutor FIara, deputado federal! Ernquanto a sêde da
cachaça não o mover para diante, ahi está,
já em segundo mandato.» (1).
Com perfeito conhecimento de causa, o P.
Macedo informa que em paga de tantos beneficios, Floro Bartholomeu não correspondia sinão com o apertar as malbas de seu
dominio ao redor da liberdade do Padre. Chegou até a impedir que o velho sacerdote readquirisse suas ordens de celcbrar, quando
esteve no Ceará o Visitador
Apostolico
D. Bento Lopez.
Por fim o Padre Cicero se queixava, aber(1)
P. ~IANoEL
1925, pg. \J c seg.
~L\CEDO,
«Joaseiro
em
lúco », Fortaleza,
116
CAPITULO
YI
tamente, da tyrannia do doutor. Dantes,. elle
era tudo. Agora um espectro, tangido pelas
mãos de Floro ... Dantes podia dizer, como
disse, a um hospede interessado em questões do fôro: «Meu amigO': aqui, o prefeito,
a Camara, o juiz, o delegado, o com'mandante,
a policia, o carcereiro, - sou eu! ». Agora
era forçado a confessar: « Menino, sobre governo do municipio, eu nada sei; quem faz
tudo é o doutor ... »
Aquella sua tyrannia foi tão absoluta, tão
completa, que o Padre acabou por não ter
mais vontade, nem pensamento ou acção (1).
Pagou assim a pena de viver demais ...
(1)
« O doutor, a pretexto de que a casa do padre era antihygienica, foi buscal-o para a sua. Nós sabemos que a verdadeira razão era outra.. Ali ficou O pobre ancião em um carcere até, por coincidencia., parede e meia com a cadeia. {(Que
captiveiro l)~ - ainda ehegúu a dizer baixinho. Quiz visitar sua
casa na serra do Horto, passar lá. umas horas, mudar de ar,
por-se á fr•..'sea, descançar. Depressa o pbarmaceutico
José Geraldo, verdadeiro amigo de seu padrinho de baptismo, reune o
povo, e vencendo o que nunca ninguem imaginou, conduziu o
automovel ao Horta, por uma estrada modelo. Sentiu-se feliz o
Padre, mas qua.ndo quiz subir, Floro o deteve: « não vae)) l ...
E não foi. De outra feita quiz dar um passeio em casa de pessoa amiga, fôra da rua, e, quando já estava com o pé no estribo
do automovel;
« Volte, padre; não \'ae, não I» Era o Floro que,
pelo braço, o puxava para dentro de sua casa. )) Id. ibd. pg. 32.
CAPITULO VII
OS MILAGRES
...
« É o milagre que torna a autoridade patente ... » - A beata Maria de Araujo e seus
milagres - Transforma-Be em sangue rubro
e palpitante a hostia consagrada ... - Repercussão do phenomeno e suas intE,rpretações A acção de D. Joaquim Vieira, bispo do
Ceará - Os « milagres»
menores ...
VII
«t,¿ue
proceder?»
aprcsenta
~i~nal
1I0R
(.loan.
V. ~6).
O que torna a autoridade
par.:!
aSSlill
patente, dizia
Santo Agostinho, é o milagre, e a autoridade
é que impõe a fé. O prestigio do Padre Cicero Romão tinha que provir, pois, do rnilagre; e o milagre se deu.
Foram os factos, á primeÜ-a vist.a inexplicaveis, operados na pessoa da beata Maria
de Araujo, em junho de 1.890 e repetidos depois algumas vezes, quo complicaram o caso
primitivo de simples mysticismo do Joaseil'o,
dando origem a acontecimentos que deviam
transmudar o humilde arraial do Cxl'il'Y na
actual Méca dos sertões, e ampliar a figura
piedosa, do obscuro presbytero de então, na
sombra monstruosa do «Padrinho» ele hoje ...
O meio certamente era o mais propicio;
o heróe, um predestinado. Mas faltava o pl'OLourenço
FillJO _.
Jow:;eil'(J
do Padre
Cit'('¡'().
120
CAPITGLO
VII
digio que o revelasse e circumstancias que
o impuzessem, de vez, a crüdulos e incredulos. Depois disso, facil seria tornar-se o summo sacerdote e o desejado tyranno, concentI'ando, nesse caracter bifronte, de thaumaturgo sem par e chefe politico poderosissimo,
um valor sem contraste no's sertões do Nordeste ... Vendo-o assim consagrado, tanto pelos poderes do céu, oomo pela vontade dos
homens do goverllo, era natura.l que o habitante do sertão, sem cultura, sem amparo da
justiça, muitas vezes sem pão, sem trabalho
e sem guia, enxergasse nelle o redem'plor, o
conselheiro e o mestre. O apostolo, tão somente, pode pouco, e acaba sempre vencido.
O politico, apena3 politico, tem contra si todos DS de sua casta. Por muitas vezes já, o
sertanejo tem visto ap.ostalos confundidüs t'
politicos desmandados ... Um só homem, porém, que lograsse- nas mesmas mãos, as fol'~:as celestes e os empenhos dos poderosos,
esse - - sim! seria «o propheta que ha de
VII'
» ...
A consagração terrena foi dada ao Padre
com a alliança politica, argam'assada com
o sangue derramado na sedição. de 1913, que
adiante descreveremos. O signal dos céus foi
manifesto nos pretensos milagres de Maria
OS :\I1LAGRES
121
de Araujo, que acabaram produzindo a fanatisação de toda uma vasta z.ona, como transf.ormaram tambem, talvez de modo inesperado
para elle propri.o, o caracter então singelo, e
a vida beatifica do heme. Sendo sacerdote
cath.olico regular, ao tempo de taes casos mil'acuJoso.s, achou-se por elles envohrido numa
séria questão religiosa. Sem forças espirii:uaes para uma reacção religiosa tambem,
de reforma, c.om a fundação de nova seita,
e sem' querer perder a influencia ~:ue decorria de sua condição natural de sacerdote,
procurou defender-se como lhe era possivel.. .
.Mas foi afir:.al arrastad.o pelo ambiente que
elle t.ocou em forças mal previstas, para a
charlatanice e o caudilhismo, em que depois
se abysmou, e em que o seu « alter-.egn»
leve papel relevante.
Em resumo, a grave questão social de hoje
se prende directamente a uma delicada questã.o religi,osa, e esta nasceu do milagre.
Vejamos que milagre f.oi esse .
•
:I:
:I:
Na manhã do dia 11 de junho de 1890,
numa humilde capellinha de Nossa Senhora
122
CAPITULO
rI[
das Dores, padroeÏ1a do lugar, a beata l\Jal'ia.
de Araujo, depois de receber das mãos do
Padre Cicero Romão Baptista a hostia COllsagrada, cahiu por terra em violenta crise
nervosa, Os fieis presentes, que a SOCC01'roram, notaram que um fiosinho de sanguc
lhe escorria da bocca entreaberta;
c, examillando melhor, verificaram,
depois, que as
mesmas especies eucharisticas
se haviam
transformado em sangue rubro e palpitante ...
Na lithurgia ca1:holica, nenhum momento
(~mais solemne e grandioso que o da eucharistia; {) pão e o vinho, como todos sabemos, symbolisam nesse sacramento o vcrdadeiro corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus
Christo, sacrificado para. reclempção do genero humano ... O transfazerem-se,
portanto,
em sangue authentico, quando commungava
uma das mulheres de mais constancia na devoção e penitencia, era manifesto signal do
amparo de Deus, que assim se revelava num
dleito prodigioso. ,.
Era {) milagre 1
OS 1tIlLAG IlES
123
***
Não será difficil imaginar a importancia.
de tal successo naquelle meio predisposto ás
mais mirificas interpretações, e ao temp.o e'm
que o facto se deu. Basta considerar que
sobre a ignorancia e o fundo supersticioso
do caboclo, vige em seu es pirita, coordenando
profundas tendencias, urna tradiçã.o indestructivel de messianismo e de sebastianismo (1).
Era
natura,l, portanto,
que populaçõos
in-
teiras acorressem das vizinhanças. Si os crentes já se regosijavam, em caminho, e seguiam
cantando hosannas, levando apertado ao peii.o um ex-voto, com a alma resplendente ao
clarão divino que sentiam, os m'esmos in(1)
« De meados para fins de 1819, installou->.(l na serra do
llodeaùor, no Bonilo, urn fanatica au explorador de nome Sylvestre José dos Santos. Reuniu logo um grande sequito e pregon
ao seu povo a resurreição de EI-Rei D. Sebastiilo, promettendo-lhes a partilha dos seus grandes thesouros;
e, para ainda
mais impor-se á gente que o acompanhava, explorou o espírito
religioso, celebralldo solemnidades
com cerimonial
particular».
PEREIRA
DA COSTA,
Folk-lore Pernambucano,
in Revista do Insi ituto Historico
Il
Geographico Brasileiro, torno LXX, parle If.
pg. 33.
124
CAPI'lTLO "II
. credulos se abalavam tambem, t.angidos por
uma desconhecida força, que os levava á
imperiosa necessidade de se acercar do prodigio, e de vêr, ao menos, com os proprios
olhos ...
E como o milagre se repetía noutras communhões da beata, mais e mais era propalada a noticia e engrandecída de bocca cm
bocca. Por fim cessou. Mas, já milhares de
devotos se haviam estabelecido nas redondezas, certos de que era aquella a Chanaan
promettida ... Ademais, o culto era facil e a
liberdade dos costumes assás convidativa ...
A idéa de se construir um grande templo,
como agradecimento áqueIla graça ineffavDl,
impunha-se a todos. Mas era natural que
dentro de pouco um outro culto se corporizasse na adoração em pessoa do novo MesSIas ...
Para o homem rude, pouco affeito a raciocinar sDbrc os factos da natureza, nada mais
claro e acceitavel que o maravilhoso. Elle
occupa mesmo, na sua mentalidade restricta,
a maior zona de uma obscura explicação dos
phenomenos. E a divindade não lhe apparece como a requintada abstracç,ão do justo
e do perfeito, ma¡:;"acima de tudo, como o
poder de mudar a l'ace das causas, ao seu
OS :\IILAGRES
arbitrio, só modificavel pela maior ou me-.
nor vassalagem que se lhe preste ...
No ~ordeste, então, em que dim; de calamidade 'marcam com angustias indescriptiveis a. vida da maioria de seus filhos, e em
que o desconhecimento
do proprio rythma
de certos phenomenos naturaes impõem a
idéa de que o universo não está sujeito a
leis inflexiveis - essa mentalidade chega a
dominar espiritos dos mais esclarecidos, que
afervol'am su as crenças mais no temor que
no respeito, numa supplica mais do que num
culto ... Deus é ají mais temido que amado I
E, como se procura nas menores cousas a
expressão de seus designios, de que modo
não se havia de avantajar aos olhos do povo
um' sacerdote que acabava tendo nas m·ãos
a prova indubitavel de sua misericordiosa
preferencia?
Envolvido, ùest'arte, nas auras ineffaveÜi
dessa adoração sem limites, o Padre Cicero
começou por guardar a severa discreção dos
eleitos, a sere:'1idade e a simp1icida:1e das
grandes forças que a si se conhecem ... Durante certo tempo, nenhuma referencia directa fez elle ao milagre, nas suas praticas
habituaes. Foi ·JIn :outro sacerdote, muito de
sua intimidade, aliás, monsenhor Francisco
121;
C.\PI'ITLO \'Il
Monteiro, (luem em varia~ igrejas proclamou
o facto como revelação divina, cham'ando do
alto ao pulpito as attençães elas proprias autoridades ecclesiasticas
para o caso maravilhoso.
As autoridades agiram incontinente.
Era bispo do CearÚ" na epoca (1) o saudosissimo D. Joaquim Vieira (o paùre Vieirinlla, de Campinas) que incumbiu a uma
com'missão de saeerdotes e medicos de Fortaleza a delicada incumbencia de verificarem
o extraordinario
phenomena.
Depois de varias pesquizas, e segundo cremos, da observação repetida do proprio facto,
essa commissão declarou, num primeiro memoravel documento, que o caso não podia
ter explicação natural e devia ser tom'ado
como expressão realmente miraculosa.
U In
dos medicas chegou mesmo, num arroubo
inicial, de illuminado, a declarar á fé (le seu
grau, em attestado escripto, « que o sangue
ern que a hostia se transforma va não podia
deixar de ser sinão o sangue de Nosso Senh01' .Tesus Christo ... ».
Todavia, D. Joaquim Vieira, cujo espirito
(1;
o Ccaril cOffiprehcnde hoje 1I!ll arccLispado, com séde em
FOl'tah'za e dois Lispallos cOIn séde respectivamente nas cidade.
do C!':lto e ùe Sobral.
OS ",[ILAGHES
l'~ï
culto e verdadeira fé deixaram no clCl'O brasileiro uma imperecivel lembrança, não pod ia acceitar ;-;~sprimeiras conclusã.es da COillmissão que nomeára. Ellas provavam demais! Nem sequer se referiam ás tres condições que São Thomaz, com alta sabedoria,
estabelecen para a verificação dos milagccs:
« o estudo da pessoa que opera, o intento
com que ella opera c a maneira poterne o
o pera» (1).
Maria de Araujo era uma cacodemOlliae<l,
euja tara sc advinhava nos proprios traças
impressionantes
da physionomia, na conducla sui generis de toda a sua vida, e no fanatismo militnnte em que sem'pre viveu (~;.
(1) p, \\'. llE\ïVJEH,
S, J" Curso de Apo¡o~elica Christã,
I'ersão portugucza pelo P. M. lIbrlins, S, J" Cia, Melhoramento~, pg. 172.
(2)
Eis comll illaria ùe .\I'aujo é descripta 1>,;10 P. Alencar
Peixoto yue loi, por muito tempo, "igario do Joaseiro: « :lIaria de
"\raujo é de estatura regular; triste, vagarosa, int¡,nguida, essellcialmente cachetita, porque tem ella uma serie de ascendentes
cacheticos ou tuherculosos.
A cabcça que, por casa como por
toda a parte, trar. sempre ùescoberta, tem a conliguraçâo de \till
« corrcùor» de boi; escarnado. O cabello é cortado á esco\'illha.
Os olhos pequcncs e som um raio siyucl' de expressão que lhe
illumine o semblante mexem-se Lystericamente nas fahlas de tlloa
testa estreita e )rotubcrante.
O nariz ¡l'rompe d~ntre os olhos,
sem base () levantando-se pouco a pouco alarga-s'~ de azas chatas, até os ossos malares, .. « Joaseiro do Cariry",
Typ. 1I1udCl'Il a, 1913, pg. 4.2.
128
CAPITULO "II
Porque Deus havia de revelar-se naquella
mulher, e por aquella forma'? ..
Parece que a comrn'issão voltou a falar,
() desta
vez, para
uma
retrataçil0
pura
e
simple3. Surgiram hypotheses naturalissimas
para explicação do phenomena, prevalecendo,
no emtanto, a de que o sangue proviesse das
gengivas maltratadas da beata, ou de uma
ferida na garganta, que sangrasse sob a intensa commoção do acto.
A essas incertezas se apegou o povo para
a sua conclusão favoravel ao milagre, prodigio que os olhos de todos viam, clarament.e
visto, e que a alma dl~ todos sentia, sem
vacillações ... Aos crentes bastava-lhes a existencia do facto: « ab esse ad posso valet
illatio ... ».
E alguns factos, que occorreram ao redor
do milagre e em consequencia delle, não podiam deixar de impressionar
vivamente a
multidão. Monsenhor .Monteiro que foi quem
primeiro denunciou () rnilagre e que depois o
renegou, do mesmo pulpito, ceg<l;ra de momento para outro, inexplicavelmente ... Era
o primeiro castigo! A seguir, outras maldições cahil'am do céu, sem ponpar o medico
do sangue de Christo. Ainda vivem alguns
ùos signatarios do laudo condernnatorio do
OS lI-IILAORES
12D
milagre, sob o peso de atroz infortunio. Outros se extinguiram na miseria, apontados
como reprobos ... (l).
O principal responsavel pelo desmascaram~nto do embuste,
nada soffreu, porém.
Vimol-o final-se, em Campinas, muito velhinho, entre as crianças e os doentes dos
asylos que cr:.ou, abençoado por todos.
Esse, sim, estava e está com Deus.
(1)
« José Marrocos, morreu
elll'cnenatlo;
~lonsenhor Monteiro cegou (l ar.abulI os seus ultimas dias na maior indigencia;
paùre João Carlos jit teria marrido ti. fome si lhe não valesscm
suas bondosas parcntas; padre Vicente de Alencar, não teve mais
aléu; padre Crimerio arrasta-se
pauperrimo;
padre dr. FWIIcisco Ferreira /I nthero, ùe tres em tres annos renova os sete passos de sua paixão; ùr. Marcos Rodrigues Madeira abandonou a
familia e foi para o Amazonas onde falleceu pouco depois; dI'.
Ildefonso Lima foi desapeado da alta posição que o'~cupava; Cel.
Joaquim Secundo Chaves morreu de repente;
Tenente Coronel
José Joaquim de J\Ial·ia Lobo acha-se quasi cego c com a telbice
de !;er um sabia como Ruy Barbosa; ;¡Iajor João Cyriaco está .reduzido ti. ~imples \'endilhão de feira, etc.» P. ALl<:~:CAR PE¡X01'P.
ob. cit. pg. 81«A cegueira ,lo saUlloso Monsenhor .Francisco ;\lonteiro foi'
tida como um castigo. Conta-se a respeito que ·;sse sacerdote
certo dia, perante rrmita gente, incluindo-se alguns dos seus collegas, exu¡;geru.ndc-se em conceitos para justificar a sua convicção sobre as referi,las manifestações
miraculosas»,
dissera «Si eu ne:;ar o 'lue I'i, cé:;uem meus olhos I)} DR. FLOIlO ll.\RTl!OLOMEU,
ch. nt.
CAPI'lTLO
nr
::c
o
que custa é o primeiro milagro, como a
primeira mentira.· ..
Os mais decorrem delle, naturalmente, com
a simplicidade de acção e a força incoercivel de uma pedra, que se desapruma e róla
no abysmo.
Contam-se, assim, muitos outros pequenos prodigios, alguns dos quaes, diga-se a
verdade, são mesmo desconhecidos da parte
do Padre Cicero. Mas o Padre sempre permittiu a idéa de que era capaz de realizar milagres (1).
Casos simples, de um objecto que se perdeu, de urna rez sumida, de uma cultura de
algodã.o ameaçada de praga, de uma parede
de a{lude que ameaça romper-se ... Episodios
mais complicados, como o do mudo que far: 1) O clr. Floro Bartholomeu, defendendo (l Padre Cicero, em
discurso na Camara Federal, publicado depois em volume, cita
varios casos em que elJe proprio se coniessou como compar~'a
de pretensoB milagres do Padre. Tal o caso do homem « que niio
sentia a mütade do corp0)l, e o de urn Illorador de :l-lissão Velha. Allude t::unhem ao mila~re das chuvas de 188~, quando já
~e c;;[lcra\'a ullla grande seCI~a, ob. cil. [lg. 11í.
OS MILAGHES
Ul
Iou para mocrer, como a cura de paralyticos,
de maniacos e enfeitiçados ... Mais amplos
ainda, e denunciadores
de um podel.' mais
profundo, cemo o apressar da chuva que
tarda, ou a repressão do inverno, demasiadamente copioso ...
Houve uma epoca em que os milagres so
multiplicaram
espantosamente.
Foi durante
as luctas da revolução de fins de 1913. A.
crença geral era a de que quem morria pelo
Padrinho, on de quer que fosse, rcsuscitava,
perfeito e são, no seio da Méca ... li: contamse casos para sua comprovação, como outros,
não menos pittorescos.
Para certa classe de crentes, nada por fim
se passa de util ou bom, sem que nisso se
veja a influencia do Padrinho; nada de mau,
em que não descubra o castigo inexoravel por uma culpa gravissima, corno a d.e
não se haver rozado uma oração de modo
perfeito, um voto que se não cumpriu, uma
esmola negada a um romeiro cm tran:sito ...
Morta Maria de Araujo, a thaumaturgia tomou novos aspectos. Ella propria passou a
attender os p,~didos de beatos e peaitentes,
estabelecendo uma concorrencia
por vezes
proveitosa aos intentos dos fieis ... O seu
132
CAPITULO
VII
culto generalisou-se. E os fluidos inef£aveis
de novas consolações celestiaes desceram a
muitas almas ingenuas, que premidas sob a
ameaça de outras tantas penas, afervoraram
as preces e multiplicaram as penitencias ...
~[e(lalha que
05
fanat; ~os do Padre Ciee"o tm7.em ao pescoço,
CAPITU LO Vin
O «BOI
SANTO»
Lill caso
de lolemismo?
jl/ào, silllpll'~
¡p.bú ... - Uma promessa curios:!. e seu ¡li:O
menos curioso descIÙacc - A snnli£knçào (lu
I"Ii, milagres, grandeza e decadencia ...
VIU
« POlque na lei de Moysés {lStá escriplo:
ao boi que trilha não liarás Il bocca. PorventUfa tem Deus cuidado dos bois?» (S. Paulo
aos Corinthios, IX, 9).
Um boi ado.rado e tem'ido
e1'3 ahi um
caso que poderia parecer, a principio, manifestação curiosa de « tote mismo ».
Era û « totem», entre os pOYOSprimitivos,
e ainda hoje, entre certas tribus australianas, uma especie animal, na generalidade dos
casos, ou uma variedade de plantas, noutros,
a que se at.tribuiam influencias muito particulares na vida de um certo grupo- de pessoas - o- «clan ». Tido como unl antepassado, o « totem» representava, para os com'p.onentes do clan, o papel de guia e de.espirito
protecto-l'. Por sua vez, essas pessoas se collocavam na sagrada obrigação de respeitarlhe a vida, abster-se de comel-o ou aprovei8
Lourcnço Filho -
Jool\¡;iro
do Pad,·c Cicero.
13G
nPlTl'LO
VII[
tal-o sob (lUa1quel' outra forma. O totemismo
passa por ser a mais primitiva forma rie r!~ligião e o mais antigo dos codigos não escri ptos (1).
Mas o boi do .foaseiro era um só, e nãü
tinlla preferencias por pessoas. Operava mi1agres com todos os romeiros, indistinctamente ... Visto, a~sim, mais de perto, podia
semelbar uma extranha encamação da divindade, uma especie de Apis, que figuras3~
para o caboclo o que foi o celebre nume dos
antigos cgypcios. Aos olhos do povo inculto,
o boi Apis procedia directamente de Phtah
e Osiris, e a sua id,~ntidade devia patentear-se
por signaes do pello, no dorso e na cabeça.
Mas o «boi santo» do Padre Cicero não
tinha tão notavel «pedigree», nem dos demais bois se distinguia por estygmas aprpciaveis ... Revelara-se já adulto, e inesperadamente, por milagre acabado. e perfeito, depois de ter cumprido, por muito tempo, com
modestia e paciencia, as funcçõcs que a todo
boi que se preza podem competir neste valle
de lagrjmas. Ficou «santo» por ser propriedade do Padrinho e naùa mais ...
(1) S, FREI'D, Obras
Bibliotheca ~ UOI'a, 192?,
completas,
vol YIll,
trad.
hesp,
ùa
o « BOl
SANTO)
l'cm «totem», portanto, nem e.learnação
da divi:Yldade. Simples « tabú» transilorio,
transmittid.o pela· « mana» do Padre) pare'.,demonstrar aos pov.os ató onde poderiam chegal:' suas fO~'ças mysteriosas, e confi l'mal, por
uma imagem de muito pittoresco, o llonto
dç saturaç.ão dÛ' fanatismo dos romeiros. O
téÜ)Ú suppõe apenas a emanação de força magica, inherente a certos espiritos de pessoas,
c qne podo SC~I' exercida não só sobre sères
vivos, mas ató sobre as coisas. O principal
tabÚ do Joasë:iro é, hoje, a estatua do Padrinho, erguiûa numa praça publica, como o
foi nout:os tempos, a sepultura de Maria de
Araujo, a heroina dos primeiros milagros.
O « boi santo» sobreexcedeu, porém, a todos, na grosseria do culto que fomentou, e
nos esplendidos milagres que liberou áquella pobre genb.·
**
l~
O boi vem sendo, atravez dos tempos, um
animal em que se tem corporificado, muitas
vezes, potentes divindades. Os touros alados
dos assyrios r:ão só montavam guarda aos
templos mas recebiam adoração. O bezerro
C.\.PITVLO VIn
de ouro, de que fala a Biblia, resumIa l)
culto de uma velha reminiscencia totemica
dos hebreus. E, maior que todos, o boi Apis,
dos antig.os egypcios, representava a mais
completa expressão da divindade sob a forma
de animal vivo (1~. Ha, ainda hoje, na China~
um rito assás curioso, o do « boi da primavera», que é mencionado no l...i-ki, entre uS
que se celebram no fim do inverno, para
afastar as emanações pestilentas e as molestias graves ... Na tradiçã.o christã, o boi
está presente ao nascimento de Christo; e é
llella, naturalmente, que tirou corpo o f01guedo de « Bumba, meu boi », tão commUnI
em todo o Nordeste, que o re1embra em cada
Natal, com as toadas ingenuas dos sertanejo.3,
suas danças e descantes.
Naquellas as peras regiões, onde a maior
riqueza é a industria pastoril, toda a psychologia do caboclo tinha de modelar-se pelas condições naturaes da criação. do gado.
Nas suas idéas, na linguagem, na esthetica
primitiva, nas superstições sinão no seu proprio culto, .o animal amigo e paciente, o companheiro de alegrias pelo « inverno» e amal'(1) Morto o boi Apis, passul'3. elle a ser Osiris e tom~ml. o
llame de Osar Apis, ùonde se ori~inou lo deus Sarapis, ùos gre[;os.
ú « BOI SA~TO»
guras pela secca, devia acabar occupando um
lugar consideravel.
De certo modo, pois, seria naturalissima
a acceitação do « boi santo» do Joaseiro.
li'
* *
Demm, certa vez, ao Padre CicerO', um garrote mestiçado de zebÚ. Era o pagamento,
como· tantos que diariamente recel~, de um
milagre ou receita. Não desejando, em vista
da diversidade de raça, juntal-o ao gado de
sua fazenda, entregou-o a um de seus homens de confiança, afim de que o criasse.
A.té ahi, nada de mais .
.Mas esse individuo, um preto de nome
José L.ourenço, beato muito conhecido e prestigioso na « ribeira», pertencente ademais á
irmandade dos « penitentes», devia em breve
santificar o boi.
A. irmandade dos « penitentes» (que aliás
~xiste nalguns outros lugares do interior do
Nordeste) claramente indica, por suas func(ôes, o estado mental dos homens que a compõem. Cabe-lhes, a obrigaçã,o de rezar pelos
defuntos, nas noites de sexta-feira, junto aos
cemiterios e ás cruzes das estradas, em tra-
140
CAPITuLO
VIII
jes de farricoco. De quando em quando, realizam tambem extranhas cerimonias de culto,
(~m que ao simulacro da lithurgia catholica
misturam-se muitrts vezes, crimes mommaveIS ...
Aconteceu que, um dia, um dos amigos e
companheiros de Zé Louren«(o fez promessa
de offerecer ao boi do Padrinho um tenro
feixe de capim, da melhor qualidade, caso
fosse attendido num escabroso pedido em que
a intercessão miraculosa do Padre Cicero se
julgava necessaria. Alcan<;.-adaa graça, tinha
de cumprir-se a promessa. Entretanto, estava-se na estação da secca, e por alIi, ao
alcance da mão, nada mais se offerecia do
que os gravatás resequidos, os mandacal'ús
espinhentos, ou a rama já amarellecida das
juremas agonisantes ... E a promessa fôra de
um feixe de bom capim, tenro e fresco! Negal-a, ou tentar illudil-a, seria o castigo certo
e desapiedado, com que, na interpretação
grosseira dos crentes, tantas vezes já o Padrinho têm fulminado outros reprobos ...
Nessas conjunturas, o cabodo resolveu caminhar alguns kilomet.ros e ir furtar a forragem de que carecia, em pastagem fechada,
de propriedade exactamente do Padrinho,
numa varzea sempre fresca e umbrosa. Foi,
o « nor S.\)I"TO»
141
cauteloso, pela madrugada, sem que ninguem
o pudesse vcr.
Mas, traz ida a offeï:encla, rejeitou -(i 0 bo j.
Quando c caboclo, ajoelhado, engrolando
uma das mu;tas Oi'élyÕeSapropriadas ao acto,
lh'a dopa:;; ciic:nte, o boierguQu para elle uns
tristes oll..,os l'eprchcl1sivos c mugiu, em seguida, de um modo insolito e doloroso ...
E ° devoto não tove sinão que atirar-so-lhe
aos pés:
- - « Miscr:cordia,
meu Padrim] gemeu 0-'
desgraçado. Eu furtei, mas não fll."to mais!
Misericordia! »
E como :fulminado, alIi jazeu por longo
lempo, sem' poder articular mais palavra ...
O guarda do bo,i, que já havia notado no
animal uma::o tantas singularidades, e que se
maravilhava especialmente com a giba· que
elle dera de apresentar nos ultimas tempos,
sommou os factos e delles tirou a eonclusão.
de que o caso era um milagre legitimo. Isso
exigia preliminarmente um desaggravo ao Padrinho, rezando-se-lhe uma novena em face
dû bicha.
Assim se fez, e o boi se tornou santo;
e dahi por diante, até ao seu sacri.ficio impiedoso, não tiveram conta os milagres que
produziu ...
142
CAPITULO
vIn
***
Com a exploração natural que comportava,
por parte do preto fanatico, o caso tomou,
imm'ediatamcntc, ulffiia alta significação.
PoU(~{}sdias eram passados, e já o boi
ruminava diante de mangedoura florida, rosarios de tucum pendentes ao pescoç',o, e bentinhos e laçarotes nas aspas ... Muitos romeiros, apenas saudavam o Padrinho, ou lhe beijavam' cO'mmovidos, o portal da casa, reencetavam caminho para o lugarejo onde esta'"a
o hoi, na ancia de o vêr, e muitas vezes, de
eumprir uma promessa. Todos se prosternavam em adoração e todos porfiavam em lhe
cambiar o alimento, que variava das mail">
frescas hervas aos mingaus, papas c bolos.
O boi ruminava e agradecia, com milagres ...
Os mesmos seus productos naturaes operavam maravilhas therapeuticas. A urina, por
exemplo, curava de modo infallivel a sapiranga e o trachoma. Um fragmento dos chifres, ou dos cascos, só consegu ido mediante
alto preço, por felizes mortaes, punha fóra de
perigo a qualquer pessoa atacada de quebranto, « espinhela cahida» ou « banha da
o « ROI
SANTO)}
143
legitima », que o trouxesse ao pescoço, num
saquinho ...
Tal incremento tomou, emfim, o fetichismo
do bni, que {) proprio Padre Cicero ac.abou
impressionado com o que delle se dizia. E
o dr. Floro Bartholomeu, m'ais atilado e positivamente m'uito menos affeito a tolerar certüs exceS&JS de fanatismo dos romeiros, no
regresso de uma das viagens ao Rio, ordenou
que se desse fim ao indecoroso culto do ruminante.
O caso, porém, já não podia ser resolvido
com uma simples orderni, partisse embora do
.Tupiter-tonante do Joaseiro ...
Zé Lourenço revoltou-se, e com elle, sua
familia e a casta dos penitentes. Houve conflicto sério e necessidade de prisão do homem.
Recolhido o guarda do boi ao carcere, com
alguns dOH seus comparças, mandou {) dI'.
Floro que alIi mesmo, em frente á cadêa se
imolasse o pobre cornipede. O sacrificio se
deu, entre lamentações e lagrimas copiosas
dos romeiros inconsolaveis, hav{~ndo quem
affirmasse, depois, que um dos penitentes endoidecera ante a scena sacrilega e atrozmente
sangrenta ...
Poucos mezes depois do feito, estivemüs
no Joaseiro e no Crato, e ahi ouvimos teste-
I·H
CAPJTlfLO
Yll[
munhas oculares do caso. A « Gazeta do Cariry», a elle se referiu largamente, em seu
numero de 26 de janeiro de 1 B22. Delle tratou, em memoravel discurso na Assembléa
Legislativa do Ceará, o deputado dr .. losé
Martins Rodrigues, conhecido advogado e jornalista. E o proprio dr. Floro Hartholomcll
da Costa, tentando responder a ligeiros reparos que o dr. Paulo de Moraes BalTos fizera
ao Joaseil'O, nas suas conferencias de impressões sobre o Nordeste, não pôde deixar de
confirmar, na Camara Federal, que fora obrigado a mandar matar o «boi san to », exactamente nas condições qlle aqui descrC\r('mos (1).
E, depois, nem siquer mandou buscar outro ... no Piauhy.
(l)
DR. FLORa
BARTHOI.OMFT,
ob. cit
pg. 9í.
CAPITULO IX
A SEDIÇÃO DE 1913
(Causas)
InHcrip<,:ôes sobrepostas de luto c de dóI'
Houic rnihi cras tihi ... - Uma oligarchia
baniria c \lm ~o\·crno promissor -- Campanha. contra o bamlitisrno e sna.s consequentias -- !leflexo da politiea de Pinheiro Machado - Onde se \-ê que Il corva sempre arrebenta
<lo lado
mais
fraco ...
IX
« Não sei qual
roi mais terrivel:
si a
secca de 1877 si a Sedição de. Joaseiro»
(RODOLPHO TnEoPHILO,
« A Sedição do Joaseiro», 1922).
No aspeeto geral da maioria das villas e
cidades do Ceará, cornu em certos pontos do
seu proprio sertão bravio, vêem-se, ainda
hoje, nas ruinas de casas e solares, no abandono de estradas, engenhos e culturas, os effeitos do drama lancinante que foi a secca de
77. Mesmo a Capital, derramada numa praia
risünha, fóra da zona propriamente calamitosa, mas devendo sentir, como um' grande
coração, 08 éstos da vida da provincia, mal
pôde ainda mascarar-lhe de todo as consequencias. São grandes muros, l'Ôtas e pendentes; ca.sarões seculares, que não acompanhara.m a evolução das residencias modernas de derredor; arcos de pontes monumen-
CAPITULO
lX
tacs; ruas, canstI'll idas pOl' aquellc tempo,
com edificações de valor, que desfecham, de
repente, na orla das areias cil'cumdautes, em
an aiaes de palha e pau a pique ... Em muiias nucleos urbanos do interior,
desequilibrio de vida foÎ maior c os signaes se ace-entuam em cada dia que passa. Parece que
ali reinou o abandono por todo .o me~o-seculo
volvido depois, e que a população, retransportada apenas de vespera, mal teve tempo
de compor os telhados e disfarçar os desvãos das paredes ... Aracaty, Aquirás, Datul'ité, Paca tuba, IcÓ,Mal'anguape -como
falam melancolicamente
do esplendor antigo,
nunca mais reconquistado! (l ~.
Em muitos desses pontos, porém, não só
se recordam os cffeitos da grande calamidade. Varias cidades e villas, como muitas
propriedades ruraes de importancia revelam,
como um palimpseBto, duas inscripções sobrepostas, de luto e de dûr. Nas reconstrucções interrompidas, nos tra(;os de um repetido abandono das causas, e na improvisação
visivel de novas tentativas de trabalho, trans-
°
(1)
Para se ler idEIa do progresso do Ceará anles de n,
Jasta confrontar as rendas de;;se Estado com as de S. Paulo, no
dcccnnio anterior.
N.
.\ SF.l)[~'ÃO
.!J¡';
HJW
14!1
paree o inapagavcl um segundo angustios~)
hia~~): foi () que lhes imprimÍ1~ o sangue cia
s8rll(.:UO de 1913.
O¡; eIf3ilos matcriaes
das duas desgraças
não podian' ter tido a mesma extensão, oe:'Lamente. A S8cca dD 77 foi tei'riv31; :13.Q sc';
desorganisou o trabalho, como rcttingiu, ~m
cheio e de modo profundo, as fontes de pl'Oducção, anniquilando mais que G'. lavoura, a
industria pecuaria, que contava com um rcbanho de mais de um milhão de cabeças (1).
Mas, nos eUeitos sociaes, sobretudo no moral das camadas cultas, a sedição sDbreexcedeu a do flagella periodico.
Como todas as catastrophes geraes, contra que não é possivelluctar
de modo directo,
a secca une os homens. Aquella mesma hospitalidade habitual do caboclo tem as suas
intimas raizes numa noção, m'odelada pelos
vae-vens d~. sorte, talvez subconseiente mas
innegavel, do valor transitaria da propriedade ... Hodie mike cras tibio E, no-s aspectos
(1) Em 1719, já havia fazendeiros, nas immediações de
Icó, que possuiam 4.000 rezes; e nos meados do seculo era
tamanha a prodncção que além das remessas de gado para as
feiras lIa Bahia e Pernambuco, se fundara, no Aracaty, um profm;o commercia ùe carne (xarqueada)
que durou dé o fim desse
sccnlo. J. BRIGIDO, « Homens e factos».
•
100
CAPITULO
IX
permanentes <la vida rural, nos singelos ~u::;turnes primitivos, quasi biblicos, que a \-ida
pastoril ahi tomou, não pode deixar de transparecer tambe'm',claramente, o poder de soe iabilidade, gerado pela desgraça eomm um (1).
Está claro que essa união só existe de homem a homern sertanejo, de communidade él
communidade do mesmo meio soffredor. Tres
(fUintas partes do t.erritorio ccarense ahi se
incluem, mas as duas rest.antes prosperam
fóra della. O Cariry, ooa part.e do littoral
e a sen'a de Ibial'aba são outro ambiente
physico e social. O uberrimo valle Cariryense, ao fundo do sertão, onde o Joaseiro se
estabeleceu, representa, typicamente, um caso
de «insularidade
das tenas
habitadas».
Oasis, tem como todos os oasis uma funcção
biologica que se exprime numa historia de
luctas politicas e economicas contra as zonas envolventes ... Ao tempo das grandes seccas essa animosidade se dilue nos sentimentos christãos ou se attenua de muit.o, pelo
menos. Mas não n'a extingue.
Ora, () que a sedi~~ão de 1913 logrou, at-
(1) 1\esse admirareI lin'o que é :L « Terra de Su!>" GII~taro Barroso documenta com muitos [actos communs da \'ilhl pasloril cearensp., laI senlimento de fraternidaùe e honradt,z,
.\ SEDIÇÃO
DE
1913
1;)1
tingindo o Estado em circumstancias especialissirnas e delicadas, foi não só atirar uma
zona contra a outra, num choque de velhos e
cU'faigados preconceitos, mas anarchisar, pot'
muitos annas, o espirito de harmoni2, social
do Ceará, fazendo lavrar no espirito dos homens de escól o mais acabado. scepticismo
pelo regimen. Ella se tornou possivel porque foi a explo,ração dos sentimentos duma
multidão inconsciente, incarnados num tabÚ
como o Padre Cicero Rom'ão. E attingiu consequencias moraes talvez não previstas peJos seus responsavcis, porquanto se deu depois de um pronunciamento de liberalismo
notavel, que varreu do Ceará a oligal'chia que
alli tinha assento, já havia mais de vinte
annos.
Compmhende-se assim, claramente agora,
a affirmação que se podia tomar por apaixonada ou hyperbolica de Rodolpho Theophilo,
nas primeiras paginas do seu livro sobre o
inominaveI iIl1Jvimento armado. O conflicto
ateado por po~iticos filhos de outros Estados
c sustentado l.:.>clo
governo federal dl~ então,
representa na historia do Ceará um desequilibrio .organico de peores consequencias do
que qualquer das suas grandes seccas.
CAPI'flTr.O
[.:{
Hememol'cm():; os factos que a precederam,
rapidament<~, embora.
O Ceará SUPP0l'tou durante vinte annos o
governo de uma oligaJ'chia impenitente - ()
da familia Accioly.
Não é aqui o lugar para o juizo definitivo
do seu merecimento, ncm nos interessa directamente agora a sua obra. Demos como
provado mesmo que as suas eulpas não tivcssCm' sido tão grandes como os clamare;")
que contra ella se levantaram. O facto é que,
pouco e pouco, veio a crPAr-se em todo o
Estado uma situação de revolta insopitavel,
que diariamente
ganhava terreno e forças,
e que culminou na deposição do velho governador por um legitimo movimento popular. Deposto o chefe da oligarchia, entrava
o Ceará numa nova phase de vida política,
agitada a principio pelos desmandos naturaes das circumstancias, mas auspiciosü sob
muitos aspectos.
A eleição do governador Franco Rabello,
feita a seguir, f,oi ainda uma expressão, de
verdadeira fé ci\-ica, uma demonstração da
vontade popular integrada em si mesmo, en-
.\ SEDIÇAO
nE
1 \;1:3
trevista pelo povo como a aurora de uma
redempção que já tardava. Mas, ou porque
Franco Habcllo não fosse politico profissional
ou estivesse de ha muito fóra de sua terra,
em breve devia despertar contra si certos
elementos ciosos de dominio.
Transcrevamos
de Rodolpho Theophila
uma pagina que retrata claramente tal situação:
« Os Acciolys haviam regressado e a11egavam que, pelo pacto feito com Franco Rabello, na occasião do reconhecimentc deste,
tinham direi~o á metade dos lugares de eleição e nomeaçfto e nesta esperança tinham
vindo e estayam.
Desilludidos de se apossarem das posições
perdidas, obstinados e audazes, uniram-se
aos «manetas».
João Erigido que havia sido o maior factorrnoral da queda dos Acciolys, que pela
imprensa no seu jornal « Unitario» havia d.cnunciado tod.os os peculatos do governo Accioly, que havia atassalhado a vida privada
do cornmendador Antonio Pinto Nogueira Accioly, cobrindo-o de todos os baldões, abraçou o seu antigo correligionario e com padre;
perdoaram-se mutuas injurias e voltaram os
velhos politiqueiros á antiga camaradagem.
CAPITULO
IX
A Assembléa do Estado, que havia reconhecido presidente o coronel Marcos Franco
Rabello, a mesma Assembléa convocou-se
para lhe cassar o reconhecimento, mezes depois de Franco Rabello governar ...
O partido rallell ista., que era quasi a totalidade da população da capital, comprehendendo o perigo que corria o eleito do povo
e tambem a liberdade, a vida dos que o haviam eleito, decidiu impedir pelas armas a
reunião da Assembléa».
Comt.udo, renovada a Assembléa e normalisada a pouco e pouco a situação na Capital,
Franco RabeUo eomeç>,Oua governar sériam~nte (1).
Teve que tocar, então, num mal social agudo daquelle tempo que não podia esquecer:
o banditismo do sul do Estado que tinha o
seu quartel m~stre no Joaseiro.
Certos chefetes do interior, cujo prestigio
estava unica e exclusivamente no grupo de
capangas que tinham ás suas ordens, allial'am-se aos politicos descontentes da Capi( 1:' Eram seus secretarias
o dl'. .lOS,! Gctulio de Fra/..1
Pc;;soa e Joaquim Costa SOllsa. O dI'. Frota Pessoa, como secrptario do interior, muito fez Pillo ensino publico e hygiene. Na
Prefeitura da capital, al;hava-sc o sr. Ildefonso .\Ibano, a qnem se
deve a rcmodela~ão de Fortaleza.
A.
SEDIÇÃO
DE
1913
tal, numa opposiçã.o agora signific.:ttiva. O
governo a teria combatido, com vantagem, se
um facto da politica nacional não viesse collocal-o numa, situa,ção de todo inesperada. Tal
foi o da, successão presidencial tÍ Republica.
Era de praxe que o candidato. á presidencia
fosse indicado pelo syndicato que explorava
a politica nacional, sob a chefia de Pinheiro
Machado.
Antes da reunião do P. R. C. para indicação do successor ao presidente Hermes da
Fonseca, o governador, de então, em Pernambuco, general Dantas Barreto., protes',:ou c,ontra aquella praxe que aberrava de todos os
preceitos dcmocraticos, lembrando que a in-:dicação se fizesse por uma convenção nacional.
Ainda está na idéa de todos .o que foi a agitada política nacional daquelles dias sombrios. São. Pé.mIo, Minas, Rio, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Ceará colligaram-se para
resistir ao arbitrio de Pinheiro Machado. Lançada, porém, a candidatura Wenceshu Braz
os do.is primeiros grandes Estadüs se encolheram deixando que as pequenas unidades
pagassem a culpa de sua fraqueza.
E' facil SUpp0I' as c.ons8quencias em relação á politica cearense daquene tempo. Ella
('APITULO
IX'
é assim
resumida pdo historiador de que
nos soccorrcmos:
«( Chegando ao Hia, os emissarios
confcrenciaram com o chde elo P. R.' C. ficando asscntada a dcposi<,ão do Cel. Franco Rabel1o,
quc._ caso não pv.desse ser feita pelos marretas de Fortaleza, começaria por um movimento sedicioso em Joaseiro promovido pelo
Pe. Cicero Romão Baptista, c viria sobre a
cap.ital do Estado. Fizeram parte desse conluio os senadores e os deputados cearenses
em' ar; posição ao governo do Estado, os tres
emissarios e mais q dI'. Gustavo Barroso,
sendo que este foi o unico que se 0ppoz á
conflagração do Ceará, porque amava mais
a sua terra do que os proventos que pudesse
tirar da sedição do Joaseiro. Era preciso de
todo empedernido pela pratica de actos maus
para provar o v,andalismo dos romeiros do
Padre Cicero, que desceriam do sertão atÓ
a capital do Estado, matando, roubando, incendiando, protegidos pelo presidente da Republica, ou antes por Pinheiro Machado» (1).
Veremos no· capitulo seguinte as principaes phases da lucta desencadeada.
'(1)
RODOLPHO
13 e 36.
·TH1:OI'HJLO,
«A Sedição do Joascil'o»,
pgs.
CAPITULO X
A SEDIÇÃO -
INICIO DA LUCT A
De uma comedia, mal ensaiada, ;: lInIa
:-;anguinolenia íragedia -- O gov,~rno extra-legal de Joasciro,
officializado
pelo telcgrapho .. , -- Primt'ira tenlali\'a do governo lel!al para suflocar a f.edição - O milagre das
trillch(iras construidas DlUlla só noite - ~, S.
das Dores falou .. , - A retirada.
x
« Vendo passar o Padre, com o pesado
bordão com que costumava andar, seguido de
um bando de fanaticos, disse: « Alli vae
um rnissionario; amanhã um grande usurario;
depois um perigoso revolucionario,»
E a proph€cia do sertanejo, feita quando o Padre Cicero era um santo, realisou-s~ »,
Dadas as causas a oue nos referimos, no
ca pitulo anterior, era claro que a lucta contra o govemo legal do Ceará necessitava mascarar-se, por algum tempo, e jusLficar -se depois de qualquer fórma. O movimento era
mais politico que militar; pretendia ser, mais
do que um golpe pelas armas, uma farça
bem ensaiada ... Assim' a imaginaram:, pelo
menos, os seus organisadores.
:\fas o caso
tomou situações imprevistas. Niio se podia
contar, a principio, com a pertinaz resistencia que á sedição oppoz o governo Franco
Rabello, como não se previu que a interven9
Lourenço
}'ilho
-
Joate;"o
do Padre
Ciorro,
160
CAPITULO
X
ção federal pudesse ser retardada. POT outro
lado, não se calcularam perfeitam'ente as con:;equencias que adviriam do facto de se deslçaimar a horda dos fanaticos do Joaseiro ...
A sedição devia apresentar, pois, feições
lnesperadas. Do simples caso policial, do ini,~io, havia de degenerar em lucta civil e em
« guerra santa » ... Ka descripção que esbo'iamos é esta, especialmente,
que nos intc:~'essa, como indice ainda da diathese social
dû Joaseiro. Ella não se entenderia, porem,
~;em o quadro geral do movimento, que temos de assignalar, nos seus pontos esseneiaes (1). A « guerra santa) era o que men os
interessava aos « chefes ». Todavia, alcançado
o objectivo inicial da depûsiç~() do governador Franco, Rabello, foi esse aspecto da lucta
que avultou. Os vencedores foram, de facto,
os fanaticos do Padre Cicero. Elles acabaram
por inc,ommodar û proprio interventor federal, os mesmos exploradores do movimento,
El firmaram,
de uma vez para sempre, o predominio absurdo do Patriarcha do Joaseiro
(1) Sen'imo-nos, para a descripçilo geral dos acontecimentos, além da corajosa obra de Rodolpho Theophila, sobre a sediçio, das notas esparsas de alguns outros livros e jornaes que
vão ciladas, e dos depoimen',os pessoaes q'le pudemos colher
in loco e em Fortaleza.
INICIO
161
DA LUCTA
sobre toda a politica cearense, directa, ou indirectamente, por seu « alter-ego», o dr. Floro
Bartholomeu.
(Desde então, o Joaseiro se tornou um Estado no Estado, sem outra lei sinão a do arbitrio de seus chefes, com forças armadas
proprias, justiça propria, moral e religií'Lo especialissimas;
e, nessa situaç.ão fantastica,
ainda hoje permanece ...
***
As ultimas combinações haviam dem'onstrado a conveniencia de só fazer explodir o
movimento sedicioso, em data posterior a do
encerramento do Congresso Nacional. Ao caudilhismo, que empolgava os destiaos da Republica, ainda fazia móssa a acção parlamentar de Ruy, de Irineu, Pedro Moacyr e Maurício de Lacerda, cujas vozes vibravam, formidaveis, sobre a consciencia adormecida da
quasi unanimidade dos representantes da Nação (1).
Não obstante, as condições internas da
(1)
V. Anna~s do Congresso Nacional,
refererJes
a 1913.
16a
CAFIT ULO X
política cearens.e precipitaram
os acontecimentos. Tendo fracassado um' movimento prepuatorio de opinião, em Fortaleza, e havendo sido apprehendidos
alguns documentos
preciosos a respeito delle, o Padre Cicero
Eomão deu inicio ás hostilidades no dia 9
de dezemhro de 1913, depondo as autoridades constituidas de sua povoação, e desarmando o pequeno contingente da força puhlica, alli estacionado.
Acta continuo, «deu posse» a um novo
governador do Estado, a curiosa figura do
« romeiro» Floro Bartholomeu da Costa, me:lico bahiano, de sua inteira confiança, e seu
«alter-ego»
futuro. Compenetrado das elevadas funcções que lhe competiam', o « governador» chamou secretarios, transferiu, por
um simples decreto, a séde do governo, de
Fortaleza para a povoação de onde irrompia
o movimento, dissolveu o Batalhão de Policia
e a Guarda-Civica do Estado, e adiou o pagamento de impostos para época opportuna ...
Simples e pratico. Os aetas do novo governo
nem siquer se publicavam num jornal; telegraphavam-se ... De tudo dava elle conta, por
meúdo, ás duas casas do Congresso, e ao
Presidente da Republica,
que agradeciam
sempre os telegrammas recebidos. Ao Presi-
INICIO
DA LUCTA
163
dente da Hepublica telegraphou ainda, pedindo que recolhesse o armamento do Batalhão Policial, com séde na «antiga» capital,
e que fizesse policiar Fortaleza por tropas do
Exercito ...
Gomprehender-se-á
como foi facil organisal', assim, telegraphicamente,
o novo governo: a estação do Telegrapho Nacional tinha
ordem d8 Üanquia, para todas as estações
do Brasil, aos despachos assignados pelo denodado caudilho ...
A pressa em tomar armas, naquelle recanto,
de sertão, sem que outras medidas complementares já pudessem ter sido ajustadas, tirou á lueta, no emtanto, o caracter fulminante
que della esperavam os seus planejadores.
Como si o panna de scena tivesse subido
com precipitação, a comparçaria
mal teve
tempo de tomar os lugares; alguns fugiram
de scena, ou se metteram, receiosos., atraz dos
bastidores;
o «ponto », mal treinado ainda,
teve hesitações lamentav'2is, e {) proprio empresario, no conforto do «Morro da Graça»,
mal continha um gesto irritado, pelo açodamento com que se iniciava, em publico,
uma peça sem ensaio geral...
O prologo de acabrunhante
comedia, sem
igual, talvez" nas chronicas da Hepublica, ti-
l64
CAPITULO
X
nha que ajustar-se, com o sacrificio de muitas vidas, a urna tragedia improvisada.
Il<
*
"
Assim foi, de facto.
Quarenta e oito horas depois de conhecidas
as noticias pelo governo legal do Estado, embarcava, em' trem especial, para Iguatú, que
era nesse tempo o ponto terminal da via-ferrea Baturité, a 400 kilometros da Capital e a
180 do Joaseiro, o Batalhão Militar do Estado. Levava todo o seu effectivo, de quinhentas praças, e seguia sob o commando
do Coronel Alipio de Lima Barros. Não ficava em Fortaleza um só de seus soldados,
o que tanto basta para demonstrar a confiança que o governo mantinha no povo (1).
(1)
« No dia em que s'~guiu o Batalhão
Militar, a sociedade
de pescadores c trabalhadores da praia,
mandou ao palacio do Governo o seu presidente dizer a Franco
Rabello o modo de sentir da classe. Chegando o enviado á presença do Presidente do Estallo, ajoelhou-se, tomou-lhe a mão beijando-a, e disse: « DUt:entos homens do mar, meus companheiros, estão ao lado de V. Exa. na ùefeza de quem juram morrer». Este juramento todo espontaneo e solenne, foi cumprido
com uma. lealdade de assombrar. O governo, desse dia em diante,
estava mais bem guardado pelo povo do que pela sua milicia.
« Deus e Mar», composta
INICIO
DA LUCTA
165
De Iguatú, rumou o Batalhão para a cidade do Grato, a 15 kilometros do Joaseiro,
na qual entrou ás dez horas da manhã do dia
18. No dia 20, aa amanhecer, sem maior descanço, seguia para a povoação sublevada.
Iam, officiu.es e soldados, convencidos de que
o nucleD de fanaticos se renderia aos primeiros tiros ... Mas, já em caminho, os « jagunÇOS»
perturbaram
a marcha, com tiroteios
dispersos, em varios pontos. Numa escala,
bem menor, por certo, repetiam-se os factos
das primeiras tentativas contra Canudos: os
fanaticos, em grupos esparsos, confundidos
nas moitas, dissimulados nas tocaias, atiravam, seguros, sem ser vistos nem poder ser
attingidos. A tropa, affeita ao meio, dissimuo
tiro 38, sob a presidencia do phannaceutico
J·Jão da Rocha
Moreira, um dos cheIes do movimento de 24 de J:meiro, foi um
ùos grandes factores da guarda de palacio. Os operarias da Estrada de Ferro do Balurité, tendo il frente o Sr. João Gomes,
iam á noite, por turmas, guardar a seu querido presidente,
corno o chamavam. Os artistas, os carroceiros, os trabalhadores
da rua dava.m ta1l1Uem contingentes para aquella guarda nobre.
Moços das melhores familias, empregados do commercia, negociantes, á noite lá ialll, de carabina ao hombro, fazer sentinella nas
cercanias da. casa. ùo Governo. Era edificante o civismo daquella gente. Patrulhas
volantes, de populares, rondavam depois de dez horas da noite a cidade e os seus suburbios. Nunca
IIllla capital foi tão bem policiada». RODOLPHO THEOPHILO, ob.
cit. pg. 52.
:.66
CAPITULO
X
lava-se tambem, respondia áquellas provocações, quasi sem consequencias, e zom'bando dos tiros frouxos dos rifles e « picapaus »,
avançava sempre. Animaya-a a idéa de almDçar na praça da matriz do Joaseiro ...
Ao enfrentar as primeiras habitações do
logarejD, uma decepção lhe atalhou o passo,
no emtanto. A ,,Méca se achava fortificada I
Em toda a face pDssivel do ataque, os caminhos haviam sido- interceptados,
por vallados profundos e trincheiras bem guarnecidas,
que lhe oppunham barreira inexpugnavel...(l)
Essa obra de fortificação havia sido construida numa só noite, c devia, na semana seguinte, circumscrever todo o povoado num'
circulo impenetravel.
Só quem tenha visto o Joaseiro em dias
de exaltação fanatica, poderá comprehender,
como em' prazo Hia curto, sem apparelhamento especial, se pudesse tcr realisado tal
maravilha.
(1)
« o \-allado, a trincheira inexpugna\"cl do Joaseiro tem
de pro(undiùade dez c de lar~ura doze palmos. Toùa a terra
foi carregada para a parte dc dentro, a a',guns metros de distancia, formando uma barreira de seis palmos ùe altura, bombeada
a espaços regulares, prompla para receher o ataque. São tres
leguas de vallado. E cinwcnla
mil pessoas, homens, mulheres
e meninQ£, o fizeram en. scis llias ... XAVIER DE OLIVEIRA,
« Beatos e Cangaceiros», HiD, 1920, pg. "G.
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INICIO
DA LUCTA
1G7
Seriam homens, mulheres, velhos e moços,
crianças ainda, todos animados de uma só
idéa, galvanizados todos numa só suggestão
de defcza do Padrinho, que se lançavam desesperados, como um só braço, 2,0 mesmo
exhaustivo trabalho ... Gizara-o, rapida, um
chefe. Dirigiam-no, depois, tres ou quatro
beatos de maior prestigio. Os alviõ€:s se embeberam na terra solta, faceis a principio, ao
mesmo passo em que as foices rebrilhantes,
desbastavam num rythma apressado, o m.attagal de derredor, e abriam um aceiro sufficiente á comprchensão da empreitada ... Logo
chegavam as enxadas, vibrando em cadencia,
sob musculos de aço. E logo pás, e logo alavancas, e log) facões, varapaus, utensilios domesticas ·os menos apropriados,
I::lachados,
latas, baldes, panellas, taboas soltas ... E
aquelles sapadores improvisados se extendem
por muitos kilometros. Prevenidos de que o
contingente do. governo não era pequeno, redobram () ardor do trabalho. Nado o sol, já
as primeiras braças do vallado afundam, em
varias pontos, os destemerosos caboclos, mettidos na terra cavada e fôfa até a cintura, sujos de poeira e lama por todo o corpo, semelhando extranhos animaes que, por encanto,
afloTassem do sólo, á voz magica do Padri-
168
CAPITULO
X
nho ... E os primeiros gritos de enthusiasmo
se levantam, então, e resôam em vivas repetidos em cada peito ... O trabalho avança. Aos
que escasseia uma enxada, um ferro em' ponta, um varapau, um facão, as proprias unhas
os auxiliam naquelle labor delirante ... Passase a manhã, e ninguem o abandona. O sol se
eleva c diminue as sombras, e ninguem deixa
o seu posto. Vergasta a pino, com chicotadas de
fogo, aquella multidão allucinada, e ninguem
esmorece ... E o trabalho avança! Subito, o
d ia apaga-se, depois, sem mais crepusculo
que uma vermelhidão que tinge de purpura
a igreja do Horta, com os seU.3pannos de mu:ras rotos e nús, lá ao cimo da serra, que 'defende o arraial da outra banda - e ninguem
desfallece ainda ... Uma mancheia de farinha,
mastigada ás pressas, e um golo dagua, sorvida num átimo, reconfortam aqnelles titans.
E o trabalho avança I Com as sombras da tarde, redobra de vigor. As mulheres e as crianças, entoando o « no céo, no céo, com Minha
'Af.ãeestarei)}, carregam a terra em latas, baldes, panellas e saGCOS,e modelam, alhures,
sob as mãos fragilímas, barbacans formidaveis ... Sobre ellas, os « beatos)} passeiam já,
brandindo o rifle, prompto para a descarga
aos esperados assaltantes, ou agitando, em
INICIO
DA LUOTA
169
bençãos repetidas, a grande cruz de madeira
que os distingue sempre, na lucta, como nos
dias de serenidade ... E o trabalho avança I
Aqui, é uma camada de argila, mole e pegagenta, que difficulta agora o cór1.e previsto;
alIi, um bJóco de granito que desaffeiçoa os
alviões e os repelle, fazendo-os retinir em
vão ... Mas ninguem desanima. A noite desce
e os vae encontrar naquella mesma actividade insana. Prosegue a empreitada formidavel ao brilho das estrellas, e se prolonga
horas a fio, sem descanço, até a madrugada ...
De modo que, ás pÚmeiras horas do dia
seguinte, quando .os assaltantes começavam
a varrer as cercanias com' os tiros seccos de
mauser, podiam responder-lhes os fanaticos
com as suas armas primitivas, numa superioridade de .quem se defende de dentro. da
propria casa. Aquella cinta impenetravel tornava impossivel o assalto fulminante. E a
primeira vaga armada, por mais impetuosa
que fosse, teria que lhe vir morrer aos pés-,
applacada e desfeita, como. uma onda de espuma, traduzindo uma desil1usão amarga aos
assaltantes, e significando já, aos fanaticos,
o triumpha· certo e definitivo ...
] 70
CAPITULO
X
*
* *
Confirma-o o movimento das tropas legaes.
Depois de quasi exgottadas as munições,
E:emproveito algum, ás cinco horas da tarde
do dia 20, o Com'mandante Alipio reunia o
E;euestado-maior e discutia as medidas a se'l'em tomadas. Optou-se pela retirada immediata, para o Crato, de onde se poderiam pedir
novos recursos ao governo. E a retirada teve
de fazer-se, cautelosa, por pelotões, apenas as
trevas da noite a tornaram menos perigosa ...
Podia dizer-se desde esse momento que estava victoriosa a « guerra santa».
Tinha-se movido, para sua causa, uma desfas forças imponderaveis que, em todas as
luctas sociaes, armadas ou não, decidem' da
f.orte dos combatentes. Déra-se-lhe, com a
imprevidencia no preparo do ataque, o maior
dos contingentes:
uma idéa -
força invenci-
yell Era certo que Deus estava com o P.adrinho. Nossa Senhora das Dores velava por
::eu povo ... E a circumstancia, sobre todas
fuggestiva, de que as mesmas balas dos süldados do « Cão» nunca lograriam ferir ao
povo eleito, tornada verosimil pela insignificancia dos ferimentos de que foram victimas
INICIO
DA L DCT A
171
os fanaticos, nesse primeiro ataque, elevava
aquelles espiritos rudes á possibilidade dos
mais fantasticos
heroismos, das angustias
mais cruas, como aos menos previsiveis excessos na furia do combate. A móle despenhára-se: ninguem mais lograria conteI-a ...
Floro Bartholomeu, um dos prineipaes chefes intellectuaes do movimento, comprehendeu-o rapidamente. Si, nas primeiras horas
do assalto, apezar de sua nunca desmentida
coragem, já se apressava em' preparar um animal para a fuga, que lhe parecia inevitavel
- agora, compenetrado da victoria infallivel
daquella gente, irmanava-se com ella, bebia
e rezava com os fanaticos, sob as mesm'as
vestes rusticas, o mesmo chapen de couro,
quebrado na testa, o mesmo rifle enfeitado
de fitas, pendente a tiracollo ...
***
Não é difficil imaginar-se o que do outro lado s,e seguia.
Na milicia estadoal, com'posta quasi só de
sertanejos ignorantes, incapazes de repellir
as influencias da superstição ambiente, contando mesmo muitos individuos
fanaticos
172
CAPITULO
X
pelo Padre, seus (~afilhados)), os animas se
tinham abatido, de modo incrivel. Favoreciam o desanimo as noticias, dia a dia mais
impressionantes, de novas remessas chegadas
ao Joaseiro, em homens, armas, mÜniçães e
dinheiro. Para ali tinham accorrido de todos ()S sertões limitrophes, os m'ais ferozes
cangaceiros. Comboios interminaveis
de rifles e mausers, chegavam cada noite, via Parahyba, ou via Recife ... Lá estavam homens
que haviam gnerreado em Canudos, na defeza de Antonio Conselheiro (1), assim duplamente consagrados:
fá estavam, ao que se
dizia, officiaes valorosos do proprio exercito nacional, senhores da arte da guerra ...
Sob a direcção destes ultimas, as trincheiras haviam sido melhoradas, os fóssos aprofundados, eriçados de pontas de madeira,
agudas como punhaes ... E sobre todas as novas, feria imprevistamente o espirito do sertanejo o boato de que N. S. das Dores havia
Be declarado em pessüa, ao Padre Cicero, confirmando a promessa de que as balas dos
(1)
Entre esses cita-se o destemido Pedra dos Anjos, vulgo
que esteve em Ca.nudos até as vesperas da tomada
dl ultimo reducto do « Conselliciro»,
Seria esse temivel {acin )ra ·descendente de João Pilé, o fanatica « Sebastianista»
de
Pedra Bonita, em Pernambuco?
« Pedra Pilé»
INICIO
DA LUCTA
173
soldados do governo, mesmo que penetrassem no cor:ç¡o de seus homens, nenhum: mal
lhes poderia fazer; os proprios mortos resuscitariam; depois de tres dias, mais fortes
do que nunca, junto ao Padrinho, na sua
casa do .Toaseiro, ou ern' meiü á m'ysteriosa
igreja do Horta ...
Esse estado de animo, aggravado dia a dia,
embaraçavaquaesquer
providencias do governo, para um novo e proficuo ataque . .Mas
não era só. Faltavam 'munições ás forças do
Crato, e a estação chuvosa, no seu apogeu,
difficultava a movimentação
de tropas ou
quaesquer operações que se tentassem.
Apesar de tudo, o governo de Franco Rabello agia, pedindo munições ao general Torres Homem~ da Inspectoria .Militar do Recife, e tentando outras providencias de 01'ganisaçfLo, para uma séria cxpcdiç,ù,o contra
o reducto dos fanaticos. Respondendo ao pedido que lhe fora feito, o general Torres Homem mandou que se entregassem' ao governo
cearense cem mil cartuchos 'mauser, e manifestou .o desejo da victoria das armas legaes. Esse official não quiz acreditar a principio que {) governo federal estivesse favorecendo, francamente, a sedição. Impressiosionado, porém, por alguns actos do Ministro
174
CAPITULO
X
da Guerra, mandou um seu emissario entender-se com o Padre Cicero, afin!' que delle
colhesse, ern primeira mão., informações precisas e satisfatorias.
Incumbido. dessa delicada tarefa, o tenente Jo.sé Armando de Oliveira conseguiu penetrar no Joaseiro, depois de uma licença especial, e ahi foi :recebido e informado da real situação. O Padre affirmou que agia por ordem do governo. federal e que bastaria urn gesto, de
repro.vação. das autoridades da Republica para que depuzesse as armas, incontinente (1).
Antes disso, luctaria até o fim, certo de que
havia de vencer com as suas proprias forças,
ou com as forças do Exercito ...
.Nisso se escoavam os uUimos dias do
anno.
Já não seria para 1913 o segundo ataque
aos sediciosos.
(1)
«O Paùre disse que agia por orùem do governo federal, que bastava um ge~lo de reprovação desle para que depuzesse as annas, que esla ùe~laração faria alé por escriplo, caso
<jui:!:esse o enviado do gen',ral Tones Homem.» R. THEOPHILa,
ob. cit. pg. 64.
CAPITULO XI
A SEDIÇÃO
O FRUSTRADO ASSEDIO Á NlÉCA
A segunda cxpedi~'ão - Ullia caricatura
da campanha de Canudos - Plano que peccava por sua mesma simplicidade - f; mais
difficil sitiar que atacar ... O famoso canhão da lucta lnexplicavel
retirada ({MGneiro pdo, maneiro
páo .... IIeu Padrim
Cirço é quem gat/ha!» - O primeiro trophéo
da «guerra santa),
10
Low·cnc;o Fallo
-
.1omeiro do Padre
Ch'ero.
XI
«A primeira
foi um desastre;
(RODOLPHO
investida coLtra o JoaseirJ
a segunda, lima miseria.»
THEOPHlLO),
O termo das novas providencias,
tomadas
pelo governo do Estado, abriram á lucta uma
segunda phase, nitidamente mareada.
O commandante das tropas que des cançavam no Crato, já havia uni rnez, solicitara
do governo, além de novos recursos, a regularidade de fornecimento de dinheiro, pois
que os commerciantes
da cidade se negavam a quaesquer fornecimentos a credito,
certos da victoria dos sediciosos, e consequentes prejuizos. O governador enviou para agir in-locO', uma pessoa de sua inteira
confiança, o seu proprio secretario da Justiça, DI'. Martins de Freitas. Acompanhavam-o,
além de outras pessoas, algumas das figuras
de maior relevo na campanha contra a oli-
17S
CXP.'Tl'LO
Xl
garchia Accioly, e por is'3o mesmo, dos mais
deùicaùos apologistas da situação. Tiverase a ídéa de mandar fundir, em Fortaleza, urn:
pequeno canhão qlIe agora se levava para
atirar bombas de dynamite ao acampamento
inimigo. Os con tratempos determinados pela
conducção dessa pe~'a primitiva, do ponto
terminal da estrada de ferro á zona da lucta,
lembra, por vezes, mutatis-mutandis,
o canhão de costa que se juntou á expedição de
Arthur Oscar, na cam panlra de Canudos ... (1)
E não só nesse, como noutros aspectos, a
lucta do Joaseiro semelha, no preparo mililar da expedição, uma caricatura grotesca da
.'ucta ao arraial do « Conselheiro )).
Chegada ao Crato a missão organisadora
da nova phase da campanha, suspeitaram os
~:eus membros de que o Cel. Ali pio de Lima
Barros, com:mandant,~ das forças estaduacs,
contemporisava
qualquer movimento, para
hvorecer aos sediciosos. Urgia, pois, removel-a. E foi o que se fez. Chamado á Capital,
(1)
E¡;CLYDES
DA CC:-IHA,
Os sertões, 4.a eù., l!lU, pg.
3í? <\ O transporte da peç.:! ù(' Iguatú ao Cralo, por invios eaminhas, no rigor de copioso inverno, hi um acto heroico ... E
qu~ caminhos I Trechos de estr3.da havia intransilaveis, alagados,
UIT tremedal em que o vehicula que transportava
a peça se atolava até o eixo ... » RODOLPHO THEOPHILO,
pg. (jéJ, ob. cit.
o
FRFSTRADO
ASSEDIO
A
H£CII
lif)
substituiu-o no commando o capitão Ladislito Lourenço de Sousa, promovidü a :major,
pelo mesmo acto do governo.
Algumas paginas adiante, verificaremos
quão desacertada foi tal designação.
*
* *
Cumprindo ordens, o Commandante Ladislito levantou acampamento do Cra':.o, a 15
de janeiro de 1914, para um segund.o ataque
ao arraial dos fanaticos. Levava um contingente de s[~iscentos homens, entœ soldados de
policia, guarda civil e populares. Desde a
sahida, a tropa apresentava
aspecto pouca
recominendavel:
sem unidade dé: instrucção,
sem vestes e armamentos unífor:mes, não tlDha o aspecto marcial, luzidio, das forças
militares organisadas. E as condições internas de disciplina, não eram tambem das melhores. Para demonstral-o, basta assignalar
que no comboio de viveres, que seguia no
coice da expedição, avultavan.i. as carg.as de
aguardente ...
Como preliminar a um futuro plano de
ataque, imagina\ra-se fechar QS estradas do
p')voado. Já se sabia que um assedio com'-
180
CAPITULO
XI
pleto exigiria forças muito mais numerosas,
alguns mil homens, pelo menos. Mas seria
possivel dividir-se o contingente em varios
grupos, e fechar com elles as sahidas. Piquetes se destacaram, respectivamente,
para as
estradas de .Malvas e Burity. O grossO' das
tropas, em que figurava o famoso canhão,
marchou para Santa RO'sa, afim de occupaI'
varias atalhos, entre S. José e o caminho
de Malvas.
A occupação desses pontos foi feita sem
grande resistencia. Houve de parte das fO'rças legacs, uma baixa, apenas. E ficavam
assim fecbadas as communicações do perigoso reducto, especialmente 3-..<> que levavam
is estradas da Parahy ba, donde o arraial se
havia abastecido de viveres e armamento.
Nada mais havia a esperar, mantido o cereo, sinão a rendição do Joaseiro pela fome.
:I<
* *
O plano peccava, porem, pela simplicidade.
A tactica do movimento, das guerrilhas, das
surpresas e dos triumphos inesperados, cabem melhor ás tropas do genero daquellas
que alIi se empregavam, do que um intelli-
o
FRUSTRADO
ASSEDIO
Á lIIECA
181
gente projecto' de resistencia. O que ainda as
poderia impellir á lucta, e mantel-as cahesas,
seria justamente a sanha do combate, em que
se agitassem livremente as hmdencias selvagens, aembl'iaguez
de trucidar e saquear,
sem: peias ... Não nos illudamos, neste particular, extremando demais a psychologia dos
dois campos dos combatentes. O governo legal não contava com tropas militares dignas
desse nome.
Cançado de esperar qualquer reacção por
parte dos fanaticos, eolhidos em seu antro,
nã:o comprehendendo
o alcance das medidas
que lhe haviam sido determinadas, ou tendo
já um plano preconcebido de defecção, o Major Ladisláo, depois de nove dias de espera,
resolveu dar um ataque ás fortificações dos
jagunços. Não. lhe valeram as objecções dos
officiaes que commandava. O eonÙnandante
a nada quiz acceder e dispoz as tropas para o
assalto.
A tentativa so fez a 23.
O plano era o de concentrar a,s tropas, no
lagar denominado Macacos, nê. estrada de
Barbalha: e dahi avançar, por essa estrada,
até onde fosse p03sivel... Nenhuma combinação de movimentos, nenhuma outra investida
simulada~ nenhuma preoccupaçiio quanto ao
lE2
CAl'I1TLO XI
consumo de cartuchos e de homens ... Era a
aventura! Ás tres hOlas da tarde a primeira
parte havia sido rigorosamente cumprida, sem
nimhum obstaculo. Uma columna legalista
avançou, então, resolutamente, estacionando
a quinhentos metros das primeiras casas. Os
jagunços permaneciam mudos, nos seus fo1'tilS. De fóra, não se percebia qualquer ruido
ou movimento. Dir-se-ia 'mesmo que a povoaçho fora abandonada ... Kovos contingentes se
vieram juntar aos primeiros, num total de
CErn
homens. Animados, iniciaram,
então,
e~ses pelotões de vanguarda uma cerrada fuzi~aria, a esmo, sobre o casaria proximo e
trincheiras visiveis. Eram cinco horas da tardt~ e os jagunços continuavam mudos. 01'd<mou o commandante que o tiroteio redobrasse de intensidade e que se ensaiasse o
ca.nhão. Era enorme a curiosidade por observar o funccionamento daquelle engenho de
guerra. E a ingenuidade dos atacantes ia a
ponto de imaginar que alguns dos seus tiraçüs pudessem pôr abaixo as torres da matriz
do povoado ... Atulhado de polvora e munido
de um estopim sufficiente, o pezado obuz
estoirou. Até ahi, só conheciam os combatentes os tiros seccos das mausers, o estralejar
ùas winchesters e o 11OUCO commum das armas
o
:FRljSTHADü
ASSEDIO
Á ]1'!f~CA
183
primitivas dos jagunços. De sorte que aquelle
estampido formidavel, prolongado em écos,
pelas devezas de derredor, mysterioso e profundo, devia apavorar antes pela novidade,
que pelo trabalho de destruição que pudesse
envolver ... O bacazio se rep~tiu, algumas vezes, medonho como um trovão, mas innocuo,
por entre o alarido festivo dos soldados que
rodeavam a peça.
Mas ainda assim os jagunços não respondiam. No arraial, tudo era silencio e calma.
Nenhum movimento, nenhÜm ruido ...
Já o sol se esCondia, quando 0'3 uUimos
tiros dos assaltantes se fizeram ouvir. Cessaram depois tambem. E a noite Be passou
em inteint calma, na Méca formidavel, com'o
nos acampamentos
(.fUe a sitiavam.
Na manhã seguinte, porém, eram os assaltantes que despertavam, sobresaltados, debaixo de terrivel fuzilaria. Durante a noite,
os fanatico3 tinham cavado uma trincheira
mais proximo, € atacavam de flanco a posição do obuz. O commandante se via forçado a fazer avançar toda uma companhia
para resguardar a peça, e destruia, assim, o
s'Cu prim€:ro plano, concebido para outras
condições de ataque ...
Deviam começar a sentir, dahi por diante,
184
C.\.PI1TLO
xr
a força de engenho, a astucia e a coragem
dos fanaticos. Ora era um grupo que se approximava, fardado em kaki, dando vivas a
Franco Rabello, até guardar posição em que
pudesse fazer funecionar, com vantagem, suas
armas de pequeno alcance; ora, oito ou dez
allucinadüs transpunham as trincheiras e vinha atirar, quasi a queima roupa, saltando
depois, fugindo, como espectros, sum'indo-se
em lócas, no chão, ou occultando-se, como
fantasmas, no balnburral inextricavel; ora,
era um morteiro que soava proximo, não se
sabia de onde, e que arremedava o canhão
legalista, pelo estampido formidavel. Após o
.que, choviam sobre o acampamento proximo
mancheias de pregos, seixos, pedaços de chifre, contas de rosarios, pedaços de cêra benta,
atirados á mão, como sortilegios in£alliveis
para afastar aquellas tropas do «Cão» ... (1)
Impressionados já, os soldados respondiam
a esmo, sem resultado algum, dispersando
munição. Nalguns pontos, as moitas foram
cortadas a bala, l'onto ao sólo. Era umn, lueta
sem resultados.
(i)
« Soldados do Cilo », «gente do Anti-Christo»,
« Macae)s do Rabello» - taes eram os nome, que os fanatieos davam
il tropas do governo.
O FRUSTRADO
ASSEDIO
A M:£CA
185
A' tarde, apesar do pequeno numero 'de
baixas, e sem que a totalidade dos seus homens tivesse entrado em acção, o Commandante Ladisláo ordenou a retirada para o 10garejo Macacos. Ahi acampadas as tropas,
declarou então que estava resolvido a retirar-se para a cidade proxima de Barbalha.
Em vão, objectaram os seus officiaes que
o seu dever era o de proseguir o cerco; e,
no caso de retirada, que o ponto de concentração devia ser a cidade do Crato, de communicações mais faceis com a Capital, e nunca Barbalha.
Mas o commandante não os attend.eu e ordenou a marcha para esta ultima cidade. Antes disso, paz em liberdade todos os jagunços
que aprisionara, conservando unicamente detido o Cel. Antonio Pinto de Sá Barreto, que
fazia parte do governo extra-legal do dr. Floro Bartholomcu (1). Seria o seu refem'.
(1)
« o ,omm:mùante
alcoolisado, não os atten:leu e seguiu
para Barbalha, ponto este escolhido de preferencia ao Crato, onde
estivera aquartelado e de onde viera. Porque essa. preferencia,
até hoje não foi pcssivel descobrir». Id. ibd. pg. 81.
18G
CAPI1Ti.O
0.'
X[
:"
Na Barbalha, el ]\Iajor Ladisiáo não attendeu a ponderação alguma dos homens de responsabilidade do logar. Debalde lhe mostraram que ali devia reorganisar as forças, para
o que podia contar com mil populares dispostos a todos os sacrificios;
que a cidade cra
inexpugnavel, pda sua topographia, c que,
entrincheil'ada,
só podia ser tomada por artilharia;
que tinha viveres para mais de
um anno de cerco e que a.3 communicações
directas com o Recife seriam facilmente mantidas. Nada o demoveu da intenção de dissolver as tropas e de fugir á lueta.
O autor do curioso livro «Beatos e Cangaceiros », incidentemente descreve alguma~
das scenas da desorganisação das tropas legaes que ahi se deram. Talvez as tintas estejam um' pouco carregadas, mas, no conjuncto,
a narração resuma verdade:
« Chegado em Barbalha, com o seu ref~m,
mandou tocar a reunir, e dos mil homens
que commandava, ainda conseguiu, durante
alguns instantes, apenas, pôr oS'olhos em cerca de quinhentos.
O
fRUSTRADO
ASSEDIO
A
IIIfX.A
1:)7
Desses escolheu trinta dos de sua confiança, c, com elles, constituiu o seu estado 'maior,
A seguir, trepado numa calçad8., tendo ao
seu lado o deputado Pinto, falou il tropa nos
seguintes t~rmos:
- Camaradas, é triste confess'l.r; mas o
Padre Cicero é quem ganha.
Os soldados mais espertos, mais sabidos,
foram logo dando costas a elle, e vendo o
Ingar por onde deviam correr. G com'mandante, solemne, imperturbavel, continuou:
- E' o caso de dizer: Deus é grande, o Padre Cicero é maior, m'as o maUo ainda é
maior que os dois 1'eunidos.,.
Nesse momento já eram pelo chiio não m'enos de trezentos fardamentos completos dos
soldados fugitivos ... O cOffilm'andante insistiu
calmo:
- V océs já não têm mais commandante,
pois que agora eu só commando aqui ao :meu
amigo Antúnio Pinto, disse, batendo, amavel,
no hombro do deputado. E proseguiu:
- Cada um cuide de si e ganhe a capoeira.
illasvejam como correm na macarr.bira: pisar
bem no olho da b-icha, sinão tio(~m com a,s
pernas lanlUldas pelos espinhos, e sem poderem correr, os 11'0'meirosos pega,m e os levam para J oase'Íro..,
188
CAPI'rULO
XI
Afóra o seu estado maior e o deputado
Antonio Pinto, nem mais um soldado ouviu
as ultimas palavras da arenga do impagavel commandante. Todos haviam já ganhado
a capoeIra ...
Este, porém, tendo como refem o vice-presidente da Assembléa do Joaseiro, sentiu-se
garantido e com o seu estado-maior, deixouse ficar na cidade, ainda algum tempo, bebendo cachaça nas bodegas, até chegar ao
ponto de, na sua retirada estrategica, á frente
dos seus trinta soldados de confiança, e com
o deputado á sua frente, cantar em voz alta,
pelas ruas de Barbalha, a toada que ali ficou
cognominada - da derrota:
« illaneiro páo, maneiro páo,
Meu padrim Cirço é quem ganha ... »
E os trinta soldados do seu estado maior,
como elle, todos embriagados,
respondiam
em côro, dansando á «bahiana» e num som
brejeiro, e grave, e prolongado:
-
« Meu padrim Cirço é quem ganha ... »
E o commandante
-
insistia:
« Maneiro páo, maneiro pão ... »
o
FRUSTRADO
ASSEDIO Á ~l£C.\.
189
E virando () rosto em sentido a Fortaleza,
batia com o bordo da 'mão esquerda na curva
do braço direito, e concluÎa:
- Bananas
pr' o Rabello.
E os soldados, tambem virados para Fortaleza, e fazendo o mesmo gesto, arrem'atavam, numa suspensão grave:
- Bananas pro Rabel ... lo.
A cada in tervaUo da cantiga guerreira, o
commandante dizia ao seu rcfem:
- « Antonio Pinto, tu és a nossa salvação
e, ao mesmo tempo o nosso unic'Û Christo.
Ao primeiro tiro dos romeiros, és um i1Omem:
morto. Eu mesmo me encarrego de te sangrar na guéla.»
E lá se ia o cortejo:
« Maneiro páo, manei1'o páo,
Meu Padrim Cirço é quem ganha ... »
o Major Ladisláo e algumas d3zenas de
seus soldados subiram a serra do Araripe,
de onde des~eram demandando Sant'Anna do
Cariry; dahi, tomaram o rumo de Iguatú.
De toda sua custosa expedição, ficava na
zona da luc:a, apenas, o famoso canhão. Dei-
lHO
CAPlT
(j
LO XI
xaram-no, abandonado, em frente á cadeia
ùe Barbalha, onde o iriam buscar, dois días
mais tarde, os fanaticos do Padre Cicero.
Aquella peça, sobre que repousaram tantas esperanças, seria o primeiro grande tropheu da « guerra santa » ...
CAPITULO XII
A SEDIÇÃO
A MARCHA SOBRE FORTALEZA
Da «~ucrra sanla» á lucia politiea, com
"scala pelo «cangaço» - Saques e depreda';ües - Marchando pelos serlões (,m llor ... TentatÏ\'a do governo legal para ¿:cter óL mar~ha dos sediciosos - Sacrilicio in'Jtil de bravo
militar - O cerco de Fortaleza -- Es'do
de
sitio e intervenção - As respons;¡,bilidalies do
gcyerno da HepubJica.
XII
A malta de criminosos não trazia bagagem, nem trem de especie alglma.
Dormia
no chão, ao relento, e se alimeatava do que
ia roubando pelas estradas. Em caminho, pratica\'a toda a sorte de depredações, abrindo
cadeias c soltando criminosos, que a seu bando se incorporavam
para, juntos, « pacificarem o Ccará! ... » Era a este bando de ladrões,
de malfeitores, quasi na sua totalidade de outros Estados, especialmente da l'aranyba, que
o governo chamava « re\'olucionarios)) e á sedição - movimento politico (Rü[OLPHO THEOPHILO).
Com a inexplicavel retirada do commandante Ladisláo, e consequente desorganisação das forças legaes, ficava todo o sertão
do Ceará á cliscreção dos sediciosos. A lucta
devia apresentar novos aspectos, portanto. Os
odios damninhos e ambições furiosas, contidos até ahí no seu nucleo condensador e
reducto famoso, deviam romper agora os diques frouxos e alastrar-se sem remedio, por
104
('.\PI1TLO
XII.
todo o Estado, que cobririam de lucto e de
dor ...
Já assignalamos. paginas atraz, como se
cümpunham as forças do Joaseiro. Não tinham a animal-as nenhum objectivo consciente, nenhuma idéa de liberdade, nenhuma aspiraçãü politica, Eram, sim, « essa rcscrva enorme de iustinctos aggressivos, que
sc occulta, minaz, no fundo dos carrascaes
calcinados e bravios », mas não se lC\¥antayam « como ameaça de oppDsição a uma oligarehia dominante) (1). O governo legal era
exactamente successor de uma oligarchia ...
Antes do caudilho, mal conhecido ainda, galvanizava aqueHa horda truculenta, e a agitava sem difficuldade, o thaumaturgo
sem
par ... Luctava-se, antes de tudo, por defender ao « Padrinho». Era natural que se luctasse, depois, para vingal-o. Mas ainda e
sempre, o « Padrinho, nlais propheta que Messias, mais sacerdote que capitão ... Não desíraldavam uma bandeira; seguiam uma « veronica ». Não se agrupavam ao redor de uma
espada; protegiam uma sotaina, e corn. fazel-a, proeuravam antes de tudo a sahração
da propria alma.
sib"
(1: OLIVEIRA
VIA:\:-;A;
II l'orula~'ùe,
S. Paulo, 1920, pg. a3.:í.
~!eritl.ionaes
do Bra-
A ~dARCHA SOBRE
FORTALEZA
i !l.)
O grande corpo de combatentes era de
fanaticos. Rodeavam-nos, mais intrepidos e
ousados, todos os cangaceiros dos vastos sertões limitrop}les. Uma li'rnltada parcella, apenas, despertada e attrahida depois, figurava.
a reivindicação
politica.
Os chefes desta
pretensa reinvidicação nada mais faziam que
explorar aqueIle fundo movediço e perigoso
de superstiç~o e o rude espirito de combati-¡idade do caboclo ...
*
* *
Fosse como fosse - na guerra, como na
guerra - os sediciosos tinham que demandar Fortaleza, para a vindicta, uns, para o
saque e pilhagem, a maioria. Os ataques ao
Crato e a Barbalha demonstram-no,
claramente. Essas cidades nem síquer estavam na
rota a ser trilhada: ficavam aquem' do Joaseiro . .Mas eram presas faceis e magníficas.
O Crato tem silla sempre a capital economica
do Cariry e o seu commercia, muito desenvolvido, mantinha armazens consideraveis (1).
(1)
« O commercio do Crato era, depois do de Fortaleza, o
mais forte do Estado. A casa do Sr. Coronel José F. Alyes Teixeira, por exemplo, negociava com centenas ùe contos de réiil.
Hl6
CAPITl~LO XII
o
ataque a essa cidade deu-se a 24 de janeiro de 1914, havendo da parte de sessenta
praças de policia, ali estacionadas, e de um
grupo de populares, a mais heroica resistencia. Depois de vinte horas de fogo, a cidade
rendeu-se por faUa de munição. E o saque
começou I Não contentavam em atacar, quebrar, depredar, carregar: incendiavam. Mesmo QS moveis se espatifavam, os utensilios
domesticas eram inutilisados, numa furia canibalesca, indescriptivel!
De tudo quanto pudessem encontrar nas residencias dos adversarios, só uma coisa escapava: eram as imagens de santos e os quadros de parede. Não
Os jagunços não se limitaram ao roubo: destruiram os movcis
que encontraram.
O saque da casa commercial de Teixeira e a
destruiçflO dos moyeis de sua residencia
foram presenciados.
af(irmaram-me,
por seu parente e inimigo politico, Coronel Antonio Luiz Alves Pequeno. Além da casa Teixeira havia muitos
outros depositas de mercaùorias. A praça do Crato abastecia-se
no Recife. As transacções commerciaes em Fortaleza eram poucas.
Os commerciantes
mais importantes
eram rabellistas;
o saque
devia ser de preferencia em suas casas. :Xão se avalia o que
praticou a horda de vandalos, faminta por seus maos instinetos, sem freio ás Silas paixões, entrqgue ás suas loucuras, sem
commando, em umacidade
rica, porém abandonada. A depredação ioi completa. Saquearam os haveres ùaquella gente laboriosa
o honesta e destruiram o que não podiam conduzir I Os comboios das mercadorias roubadas seguiam para o Joaseiro, quartel general do banditismo:>. RODOLPHOTHEOPHILO, pg. 90, ob. cil.
A MARCHA
SOBRE FORTALEZA
197
podendo distinguir ao certo, entre as gravuras de santos e as photographias,
ajoelhavam-se tambem deante destas, e reza"am contrictos ... Os retratos grandes e as oleographias de santos eram enfeitados com flores
e fitas. Nessa minucia, respeitada sempre,
deixavam os fanaticos um traço expressivo
da mentalidade que os dominava.
O saque a Barbalha, dois dias d:~pois, foi
completo tambem. A noticia das depredações
do Crato, a população abandünou a cidade,
em massa. Os bandidos entraram pelas ruas
desertas, sob ü commando do cang~,ceiro Canuto Reis e iniciaram o arrombamento das
casas, para o roubo consequente ... Quando
o trabalho se iniciava, em meio de enthusiasmo diaholico, um unico homem, fraco e
desarmado, se dirige áquella multidão aUucinada, e a affronta, impavido - era o vigario da localidade, que vinha rogar, por Deus,
que não mubassem aquillo de que não necessitavam para a continuação
da lucta ....
Apesar da sanha de que se achavam possuídos, a attitude inesperada do h'lmilde sacerdote commovera á maioria. O saque foi
suspenso. Mas suspenso apenas por algumas
c;~rnCLO
XII
horas, para continuar (lepois sob as ordens
directas ùo dr. Floro Bartholomeu ... (l).
A noticia dessas pilhagens francas attrahia
todos os salteadores dos sertões do Nordeste.
Era natural. E assim engrossadas as fileiras,
começou a horda sinistra a mover-se em dirccção a Fortaleza..
*
'" *
A estação era a mais propIcIa a uma expedição desse genero.
Tinha. entrado o mez de fevereiro, e o tempo corría magnifico. Depois de chuvas copiosas, Ilas serras como nos sertões, nos valles como nos desertos das chapadas, toda a
natureza resplandecia em festa.
Não podemos aqui no sul, imaginar perfeitamente () que seja essa transmutação miraculosa da secea para o «inverno ». Depois
de oito dias de chuva, já os galhos tristes
e resequidos começam a enfeitar-se de folhinhas delicadas) tenras e seivosas, pequcninas e brilhantes, de um verde claro e diapbano, sobre que a vista passeia com deli(1)
Id. ibd., pg. 93.
A MARCHA
SOBRE FORTALEZA
199
cia ... Enfarta:n-se depois todos os gommos
de cada planta; entumeseem, rebrilham á luz,
como si fossem arrebentar, e desatam emfim,
em brotos viridentes, em ramos já enfeitados de botões minusculos, nas curvas gracis
dos topes das arvores e dos braços amorosos das trepadeiras ... Dentro de pouco, é tudo
verde; verde, no chão humido ainda, que se
recobre de uma alfombra tenuissima, no seio
das moitas buliçosas, na caatinga que dissimula os gravetos e espinhos, nos valles
que explende:n em quadros fantasticos de
vida, á luz maravilhosa de um sol quente e
bom ... Apenas as folhas to.mam mais c.ôr,dando relevo a um tal scenario, desatam-se as
flores, em catadupas, em chuva de pequeninas
petalas, em cachos, em corymbos, em guirlandas ... O pau-branco se enfeita como uma
noiva; os bamburraes apressam-se em mostrar os seus broches de ouro vivo, vi,rissimos
como raios de sol; as trepadeiras anonymas
se estrellam todas de ilorinhas meúd.as, simples e modestas, ao lado dos calices elegantemente desenhados das ipoméas selvagens e
das campanulas melancolicas da gitirana vestida de um roxo suavissimo ... Canç,ados de
aguardar a agua reconfortadora, ou previdentes no lançar as semen tes que os dey'em:per11
Lourenço
Filho
-
.Toa.,eiro do Padre
Cicero.
200
CAPITULO
XII
petuar, os vegetaes todos se apressam ern'
florir para fructificar. Por isso ha em todo
o sertão e em especial nas varzeas baixas e
ás margens das Ggoas e açudes, um' forte
olôr selvagem, que convida a respirar forte,
numa voluptuosidade sadia de vida no\"a...
Só nos taboleiros arenosos de certos pontos,
a flóra não muda. O chique-chique, o m'andacarú c o cardeiro apenas se enfartam de
agua, mas não differençam muito o aspecto
rígido e imlffiutavel de cactaeeas ...
'"
'"
'"
Sobre .o sertão assim, ameno e doce ia
despenhar-se a horda dos fanaticos, para talar, ferir e matar.
O alimento era encontrado em: cada « ribeira». O gado farto e nedio, fornecia-lhes
o :repasto por toda a parte. A ninguem se
pedia ou se requisitava. Os novilhos e vitellas eram abatidos a tiros repetidos e certeiros. Sacrificava-se ás vezes, demais, em:
pura perda, os animaes ao alcance, porque
havia uma ebriedade nunca satisfeita, de destruir e fazer sangue ...
De aventura em aventura, de depredação
.A MARCHA
SOBRE
FORTALEZA
201
em depredação, os fanaticos chegaram ao fim
da primeira quinzena de fevereiro a Iguatú,
ponto terminal da estrada de ferro.
Ahi tiveram de estacionar pOTa:gum tempo. E' que apezar de todos os embaraços creados pelo gov-erno da Republica á administração legal do Ceará (1), conseguira o governador Franco Rabello organizar uma nova expedição para offerecer combate aos amotinados.
*
* *
Realmente, não fora muito difficil recompor
o Batalhão, Militar, tão mal succedido das
primeiras vezes, augmental-o no effectivo, renovar-lhe o armamento e revigorar-lhe a precaria disciplina.
Faltava, comtudo, um chefe. Seria preciso
um homem de acção, energico e decidido, que
inspirasse confiança ao governo e aos seus
sllbordinadofi, numa cabeça intelligente e af( 1) «Se a1gnmas armas e munições
conseguia occultamente
receber, era por
para o Aracaty alé Fortaleza.
Emquanto
prohibia que o gO'Terno legal se defendesse,
l'arahyba aberto ô't passagem de recursos
diciosos». Irl. ¡bd., pg. 98.
o governo do Ceará
via Mm:soró e dahi
o governo da União
deixav,l o porto da
bellicos para os se-
202
CAPITULO XII
feita ás luctas daquella natureza, e um coração dispDsto tambem a todos os sacrificios. EncQntrou-o o Ceará, na figura varonil desse bravo José da Penha Alves de Souza,
capitão do Exercito, e por esse tempo, deputado á Assembléa Legislativa do, Estado.
Depois de algumas providencias preliminares, o Capitão Penha encaminhou-se, com
sua gente, para obstar a passagem dos sediciosos. Abriu trincheiras junto á estação de
Miguel Calman, e ahi esperou o ataque, que
não poderia tardar. De facto, a 22 de fevereiro, a. primeira columna de fanaticos choca-se de encontro ás suas posições. Os assaltantes, embora em elevado numero, foram
rechassados com vantagem. Era domingo de
carnaval, e as noticias transmittidas
para
Fortaleza alegraram o povo, que movimentou
as ruas e praças, dando largas ao seu natural
enthusiasmo ... Confiava-se no animo novo
das tropas, ao com'mando agora de um officiaI experimentado, e na impressão que a
resistencia devia causar aos homens do Padre Cicero.
O enthusiasmû devia durar, porem, o curto
espaço de algumas horas.
Na manhã do dia seguinte, recebia .o governo, assignado pelos officiaes immediatos,
A MARCHA
SOBRE FORTALEZA
203
o seguinte laconioo despacho: « Hoje pela
manhã foi encontrado o cadaver José da Penha. Forças legaes continuam' a occupar posições ».
* '" *
E a marcha sobre Fortaleza não pôde
mais ser detida ... Aquella morte, até hoje
não perfeit.amente explicada, animara os fanaticos, que viam em todas as coincidencias
felizes da lucta, a força prodigiosa do « Padrinho », guardado entre trincheiras, lá no
seu antro longinquo ...
Quixeramobim, Quixadá, Baturité, Redempção - soffreram a seguir a depredação e o
saque. Tinham agora os sediciosos -os trens
da Baturité á sua disposição, e lhes seria
facil, caso fosse necessario, accumular ás portas de Fortaleza alguns milhares de homens
para o tri pudio final.
Por onde passavam, nem' mais se respeitava agora o signal da « bandeira encarnada »,
que o povo afflicto, pendurava ás p-ortas das
casas de residencia, para evitar {I ataque ...
Alguns crimes da longa serie commettida,
vêm descriptos, com grande vigor e coragem,
204
CAPITULO
XII
no livro de Rodolpho Theophil0 que temos
Lmeudadamente citado. Não é preciso escolher. Abramos uma pagina aa acaso:
« José de Barba chegou a Quixadá em trem
da Baturité, com o seu bando. Sinistras e
grotescas eram as figuras dos bandidos.
«Na maioria eram mais antipathicas, mais
repcllentes, mais sujas do que as recem-photographadas em Maranguape. Vestidos de mil
maneiras, com chapeus de couro enfeitados
de laços encarnados, uma medalha do Padre
Cicero ao peito, ou no chapéo, armados de
rifles e de compridos punhaes, invadiram a
cidade que estava deserta de seus mais abastados moradores, mas com as casas enfeitadas
de bandeiras vermelhas. Os poucos homens
que ficaram' para os receber e com elles se
banquetear, dispensaram-lhes carinhos e attençõcs, indicando as casas dos adversarios
politicos a saquear.
« A onda de malvados espalhou-se pela cidade e começou a pilhagem. As casas dos rabellistas eram arrombadas e saqueadas; furtavam o que podiam conduzir e destruiami o
que não podiam levar. Assim aconteceu a
todas, especialmente á do Sf. Costa Lima,
que além de rabellista era intendente mÜnicipal. Este cavalheiro pagou mais caro. De-
A MARCHA
SOBRE FORTALEZA
205
pois de saqueada a sua casa cOnIDlercial, foram' á sua residencia e quebrararn' todos os
moveis, inclusive o piano, que foi destruido
a machado! ... »
:\<
'" *
Aos ultimas dias de fevereiro, os sediciosos ameaçavam: Fortaleza. Tendo estabelecido
o seu quartel-general em Maranguape apoderaram-se preliminarmente das villas de
Soure e Mecejana, fechando assim as com'municações da Capital com o interior do Estado.
'Nada valeram os instantes pedidos do governo, das ,assoÓações de classe, das familias c cavalheiros de maioT representação,
dirigidos ao governo federal, e ao Inspector
Militar da região, presente, em FortaJeza, com'
mil e quinhentas praças do exercito, ás suas
ordens, e dois navios de guerra surtos no
porto ... O que syndicato politico, que havia
empolgado os destinos da Republiea, exigia
era a renuneia do governador, que tivera o
topete de contrapôr-se a Pinheiro Machado.
Por isso, nada poderia fazer a União, que
°
206
CAPITULO
XII
não fosse para esmagar Franco Rahello (1).
Foi assim' decretado o estado de sitio, para
todo o Ceará, a 4 de março. E a 14 do mesmo
mez, eram publicadas as instrucções para a
intervenção federal,que se confiara ao então Cel. Fernando Setembrino de Carvalho,
hoje general e Ministro da Guerra. Esse notavel documento vaü publicado, em nota, no
fim d.o volume.
A chronica dos dias sombrios porque o
Ceará passou, por essa occasião, ja está magistralmente feita. Resta-nos apenas, demonstrar agora como realmente o movimento fora
artificialmente insufflado com fim politico,
e que a horda de fanaticos, ameaçando sempre a Capital, não obedecia sinão ao Padre
Cicero Romão Baptista.
Para isso, bastar-nos-á transcrever os seguintes telegram'mas trocados entre o Padre
do Joaseiro e o Interventor Federal: (2)
(1) Em nota, no fim do volume transcre\-emos alguns documenlos officiaes, sem commentarios, a proposito da conducta do
governo federal.
(2)
« O Cel. Selembrino estava convencido de que os j3{lunços não eram politicos, nem belligeranles, nem revolucionarios,
eram simplesmente bandidos. Ha\-ia. cessado o movimento revolucionaria, estavamos em estado de sitio e no emtanto nas cerr-anias da cidade continuavam elles em armas a roubar!»
Id.
ibd., 168.
A MARCHA
SOBRE FORTALEZA
207
« Joaseir.o,
16 de março de 191,1. ExIno.
Sr. Cel. Setcmbrino de Carvalho. Congratu1ações com V. Excia. governo Marechal Hermes, patriotas pela libertação do Cea.rá e pelo
restabelecimento
da ordem constitucional do
Estado. Sinto profundamente
no momento
actual não poder attender o pedido de V. Exc.
de chegar a Fortaleza, pois motivos de ordem
superior assim me obrigam, mas desde que o
motiv.o principal seja tratar retirada nossas
forças dahi, serão retiradas immediatamente
se V. Exc. assim achar conveniente. Assim:
pois, peç.o a fineza de dizer-me qu.ando quer
que as faça vültar para eu ordenar neste sentido. Se, porém, além deste motivo, V. Exc.
precisar de minha presença, eu n~i.opodendo
ir, .o nosso amigo Dr. Floro p.or mim irá entender-se com V. Exc. e .o que elle assentar
será o mesmo como se commigo fosse. Queira
acceitar minhas felicitações de amigo e admirador de V. Exc. Cordeaes saudações. Padre Ciccro Romão Baptista.»
«Exmo. Padre Cicero Romão Ba,ptista, Joaseiro - Urgente. Muito agradeço as congratulações que enviou ao patriotico governo federal representado na minha pesso.a e tambem me congratulo com V. Ex.c., um dos
208
CAPITULO
XII
maiores obreiros da restauração da ordem no
Ceará. Urge a retirada e desarmamento de
tropas de Joaseiro, sendo de absoluta necessidade ° concurso de V. Exc. para esse desideratum. Uma vez que o governo federal chamou a si a tarefa da pacificação deste Estado,
não se torna mais necessario o concurso de
tropas irregulares que devem ser desarmadas e dispersas, recolhendo-se todos a seus
lares. Conto com o alto prestigio de V. Exc.
para levar ao cabo essa obra sem grandes
difficuldades e por isso espero as urgentes e
necessarias providencias de V. Exc. nesse
sentido, que auxiharei facilitando o transporte pela Estrada de Ferro, pois qualquer
demora nesse mistér poderá trazer
grandes
di£ficuldades á acção do governofederal
a pacificação do Ceará.»
Estes documentos falam por
mente ...
SI,
para
dolorosa-
CAPITULO XIII
A SEDIÇÃO -
CONSEQUENCIAS
Duas palavras sobre os partidos politicos
do Ceará - Em que se resume o prestigio
do Patriarcha
do Joaseiro:
volos legitimos
011 rifles em mãos adextradas?
-- As dolorosas consequencias sociacs da se:lição Os
seus terriveis effcitos economico'3 e de perturbação administrativa
« Lampeão»,
expoente da situação actual do Joa'leiro.
XIII
As sociedades possuem os criminosos que
merecem. O meio social é o caldo de cultura
da criminalidade;
o microbio é o delinquente, elemento que não lem importancia sinão
quando enconlra o ambienle favoravel á slla
cultura. - (LACASSAGNE).
No arrolar os factos do movimento sedicioso, abrolhado do Joaseiro, tivemos sempre o maior cuidado no evitar interpretações
favoraveis a quaesquer das facções em que
se dividiam, na época, os politicos do Ceará,
e que ainda hoje os extremam, em campos
oppostos. E' possivel que uma e outra tenham tido grandes e insanaveis culpas, no
caso. E não o julgamos com preconcebida
severidade, para armar effeito.
E' que os chamados « partidos)}, desse Estado, como de outros, não o são de facto.
Méro agrupamento de cabos eleitoraes, mais
ou menos prestigiosos no sertão, ou de validos
CAPITU La XIII
junto ás situações do Estado ou da Republica,
não os anima um programma, uma só idéa de
renovação social, ou de melhoria politica. Ludam ambas, eternamente, pelo «pennacho»,
e quando de posse delle, contentam-se em
partilhar com os amigos as vantagens que
as posições officiaes possam offerecer-Ihes.
E isso é tanto mais J.ament.avel, quando numa
e noutra facção, ha elementos de incontestavel
valor, pela intelligencia, pelo desejo de fazer
prosperar ao Ceará, pela honradez tradicional.
No caso da sedição, foi o chamado «Partido Marreta» quem se aproveitou da situação, quem insufflou o movimento, quem ajustou o golpe final, a que não era extranho,
como vimos, o syndicato politico de Pinheiro
Machado. Si acaso) porém, esse partido estivesse de cima, seria o outro que havia de
aproveitar-se da agitação dos fanaticos, numa
direcção equivalente, talvez. Não tenhamos
iIlusões neste part.icular ... A maneira pela
qual se tem conduzido- ambos os grupos, demonstra-o de sobejo. Ambos têm cortejado,
mais ou menos abertamente, as graças do
temivel Patriarcha do Joaseiro. Ambos se
têm submettido a clle, incondicionalmente.
Ambos o tem reconhecido, como soberano ab-
A SEDlÇÃO
-
CONSEQUENCIAS
213
soluto de uma vasta região do Estado, talvez
a mais rica de todo o Nordeste; ambos o têm
sagrado como chefe de um « collegia eleitol'al», enorme, que é a mais affrontosa burla
do systema eleitoral dos nossos tempos ... (1).
**
:!:
A mais evidente consequencia da sedição
ahi está, clarissima.
Erigiu-se no Padre Cicero, directamente,
ou no grupo de seus apaniguados, a maior
força eleitoral do Estado, á revelia do qual
nada se poderá fazer, decidir ou construir,
na politica interna do Estado. Della é principal responsavel, porém, o governo da União
( 1) « Que é o Joa.~eiro como governo? Um peq11eno imperiu absoluto dentro de uma das unidades da Federação Brasileira. É um territorio pequenino, que medirá quinze kilometros
na sua maior dimen5ã.o, com uma população que Ill:rapassa as
fronteiras e vive profusamente disseminada
por meia duzia de
Estados norùestinos.
Observa-sc claramente csta geofraphia
politiea sui generis nas eleições como nas romarias. Antes das
eleições, corre a noticia pelo telegrapho sem fio do sertão e o
dia dos votos no .loaseiro é como a paschoa dos el'èitores vindos desde os extremos de Piauhy com Maranh<1o até os confins
ùe .\lagoas com Sergipe. É a população do Joaseiro que não cabe
no territorio, ou, como me disse um dos prophetas dos de por
aqui, « é o Joaseiro que já abrange tudo isso!» Esle organiflmo já
é phenomena!>,. P. MANO EL DE MACEDO, ob. ciL pg. 22.
214
CAPITULO XIII
que lhe tem emprestado força, contra tudo
e contra todos ...
Sendo esse o mais evidente effeito, não
foi o peor, no emtanto. O peior, e já o assignalamos, rapidamente, num dos capitulas
anteriores, foi a depressão moral que o facto
devia levar a todos os cearenses de boa vontade, empenhados na melhoria da administração de sua terra, suas ga.rantias politicas e
sociaes. Tendo-se banido do Estado uma oligarchia, ahi installada, havia vinte annas,
era natural que os novos elementos chamados á direcção das coisas publicas se esforçassem por corresponder á confiança do povo; era natural tambem que o sentimento
civico se fortalecesse, que as novas doutrinas avançassem, que os habitas politicos Tnelhorassem. O contragolpe da sedição, desferido com tamanha. brutalidade, deveria desanimar, sem remedio, aos mais bem intencionados, ás mais desinteressadas energias, aO;3
mais puros caracteres ... Desanimal-os, ou
contaminaI-os á força, do mal que se pretendeu. corrigir um dia, ali mesmo, embora ao
peso de violencias inauditas ...
Num ambiente preparado a todas as rebeldias, onde apenas se ensaiava, com indecisões ainda, um regimen da liberdade coexis-
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A SEDIÇÃO
-
CO~SEQUENCIA
21;)
tindo com o da ordem legal, - a União abate
de vez o «poder moral da idéa de Estado».
Num meio, onde a justiça só muito lentamente
V(l,e cvolven(10,
dos
instinctos
cgoisticos
it,
comprehensão dos limites de acção da vida
em com'munidaê.e, a União sagra os que perturbam essa marcha e põem-nos, extranhamente, á frente dos destinos do Estado ... Num
ambiente em que a superstição e o ::lOmadismo de grande parte da população são males sociaes gravissimos, a Republica legitíma
o Thaumaturgo, apoiando a manutenç¿io indesejavel de un: centro de romarias fanaticas ... Num meio, emfim, em que até certas
oondições biologicas levam ao banditism'o, os
mais altos magistrados da Nação apoiam e
premeiam
o regimen hediondo do bacamarte ...
Outros effeitos tristissimos teve a sedição
do Joaseiro.
Da perturbação geral da vida economica
do Estado, e dos particulares, ainda hoje se
ouvem écos, profundamente
justificados (1).
( 1) Alem do celebre projecto de lei e¡;ladoal mandando distribuir quatrocentos contos de réis aos fornecedores de dimen1~
LOllTPnço Filho·
- Joost':ro
do PodI'o Cicel'o.
216
CAPITULO XHI
Da desorganisação
administrativa,
basta citar a perda de archivos e documentos, alguns
de valor bistorico notavel, e a erecção do
Joaseiro como Estado dentro do Estado. Do
desequilibrio
moral, a perpetuação da sua
questão religiosa. Das perturbações jurídicas,
sobre as consequencias incalculaveis da apologia do crime, o facto da Méca do Cariry tornar-se a um tempo o quartel-mestre dos cangaceiros de todos os sertões do Nordeste ...
A este proposito, foram perfeitamente expressivas as declarações de seu chefe, quando, affrontando o proprio Batalhão Patriotico
de Floro Bartholomeu, entrou no Joaseiro ostensivamente com toda sua gente, o temível
bandoleiro Virgo lino f!'erreira da Silva, o celeberrimo «Lampeão» (1), o estripador de criantos aos fanaticos do Padre Cicero durante a rebeJlião, varias
acções foram tentadas contra o Estado, pelos prejuizos deHa
decorrentes. uma dessas acções, proposta por Antonio Ferreira
Figueiredo, acha-se no Supremo Tribunal Federal, á espera de
solução.
O exercicio de 1!>12, hal"Ía deixado um saldo orçamentario
de 1.211 :578S816. Em 1914, a receita <..rrecadada pelo Estado
foi apenas de quatro quintos da recdla or,;ada, tendo siùo absorvido todo o salùo c havendo um deficit de 704 :732$468. (AnIluario Estalistko
do Ceará, 1922).
(1)
« Os bandoleiros
chegaram via Barbalha, acoitando-se
nas irnmediaçães da fazenda do deputado Floro Bartholomeu, até
:i.s dez horas da noite, quando se transportaram
ao centro da
<:idade, hospcdanllo-se em casa de um dos typos « sui generis»
A SEDIÇÃO
-
COKSEQUENCIAS
217
ças e incendiario « rei do sertão», que ainda
ha pouco « declarou guerra: offie ialmente »
aos governos da Parahyba e Pernambuco.
« Lampeão»
é um expoente, aj3enaS, da
ùo Joaseiro, o poela popular João !\fendes de Oliveira, que se
intitula jocosamente « Historiador
brasileiro e negociante».
Ahi fomos encontrar o bando sinistro que se cOl:1põe de quarc.nta e nove homen,s e o {amoso facinora, perfazendo um total de
cincoenta homens. Estão muito bem armados e municiados;
vestcm na maioria, br:m kaki; trazem chapéos de Couro quebrado na
testa e lenyos de lliversas cores, predominando o verde e o encarnado, amarrados ao pescoço. O armamento de cada um é rifle
ou fuzil Mauser revolver c punhal;
á cintura trazem tres ou
quatro cartucheiras, acondicionando nellas, cada homem, um total
dc quatrocentas lJalas!
« As autoridade3 policiaes do Joaseiro quizeram agir á altura
das circumstancias.
Tiveram porém de recuar dos seus intentos
cedendo fi. pressão dos « segredos da natura ... »
« Não ha no vernaculo um adjectivo bastante forte que caustique a abjecção desse facto. A realidade é que lampeão,
homem lora da lei, perseguido pelas policias dos Estados do Nordeste, em nome da honra, da familia e do socego puUico, da propriedade privada e do direito de vida, emlim dcs principias
mais rudimentares t'a moral collectiva, estava no JOE-seiro com a
conliam:.a de um cidadão que nada deve á justiça Il quasi com
honra..<;de triumphallor.»
O mesmo jornal mandou perguntar ao Padre Cicero Romão
Baptista porque não mandava repellir ou prender « Lampeão»
pois que tinha a seu dispor oitocentos homens, armados e municiado.s, do hatalhão patriotico. E elle respondeu textualmente:
« Não meu amiguinho 1 Lampeão
procurou o Joaseiro com
intuitos patrioticos
(sic I ); elle pretende se alislar nas forças
legacs para dar combate aos revoltosos. Urna vez victorioso.
espera que o governo lhe perdoe os crimes. Este :tlOmem que
veio ao Joasciro, confiar em minha protecção, prcten:le se re!(cnerar. Se nã.o lor possivel alistal-o nas forças legacs, eu o cnca-
218
OAPITULO XIII
malta de scelerados que tem feito do Joaseiro o seu quartel-general, como ha sido
abundantemente provado.
minha.rei para Goyaz, onùe levará vida honesta, como já fil CUIU
Sinhô Pereira (J Luiz Padre. Está mais ou menos demcmstrado
que os governos ùe Pernambuco c Parahyba não conseguirão
prender Lampeão, entregando seu bando á. justiça. O povo é sempre prejudicado nestas coisas: é victima de Lampeão e muitas
vezes da politica tambem ... Esse estado de coisas pode ser modi¡¡catlo facilmente;
eu consigo que Lampeão se vá embora
para muito longe, e, assim, ficaremos livres delles.
(t Porém, mandar prendel-o aqui em Joaseiro, lIestas circumstancias? I era um acta de rcyoltante trail¡ão, indigno, de
qualquer homem quanto mais de um sacerdote catholico.
Eu prevejo que muita gente agora e prinei palmente meus
desafectos, vão dizer que eu estou mancommunado
com Lal11peão; mas, não é tal. Aqui 110 Joaseiro, (lU recebo todas as pessoas que me procuram e fico satisfeito em pre~.tar assistoncia a
um transviado da sociedade procurando guial-o no bom caminho.
- Mas Padre Cicero, o governo pode amnistiar ou perdoar criminosos communs?
- l'ode, meu amiguinho, pode ... »
(Do «O CEARÁ», diario de Fortaleza. dirigido pelo festejado
jornalista dr. Julio Ibiapina).
CAPITULO Xl V
O JOASEIRO NO FOLK-LORE
A grande alma do povo, agiuLda e confusa -- Um novo cyclo a detern:inar-se
no
folk-lore do Nordeste -- Lendas, canções e
p:eces do Joaseiro -- Praticas dos « penitentes» e « beatos» - « ]lIeu Padim Cirço é o
rei do mundo inteiro! ... » Sa.t:rras s()b a
forma <le oração - Um « credo» origina.lis·simo.
XIV
Todo o folk-lore sertanejo mo~tra a formação perfeita das almas que haLitam aquelles paizes de sol ardente. (GuSTAVO BARROSO)
« Ao som da viola»).
Heflexo do pensar e sentimento collcctivos, á poesia popular não poderiam escapar
os themas ou ideaes de religiosidade, tão arraigados na alma da gente. (LEONARDO MOTTA, « Violeiros do Nortc»).
A grande alma do povo, agitada e confusa, nos é revelada pelo conjuncto das expressões da literatura oral, a que se dá o
nome, hoje universal, de folk-lore. Por elle,
vemos como surgem, crescem e se desenvolvem as lendas; como a cantiga popular
reflecte, em epopéas ingenuas, mas muitas
vezes de uma eloquencia admiravel, os episodios mais salientes dos casos extraordinarios, que deram origem aos mythos e crendices; sentimos como a propria intelligencia
média da raça interpreta os factos histori-
222
CAPITULO
XIV
cos, critica-os, exalta-os ou os deprime, scgun-lo a orientação dominante dos sentimentos de uma dada época; como, emfim, no
encyc1opedismo ingenito de todos os povos,
corrleçarn a tomar corpo elementares doutrinas de um direito, de uma sciencia, de uma
religião ... O folk-lore é, assim, a um tempo,
a alma collectiva, o seu proprio clima e historja. Entre os povos illetrados, em que a
literatura escripta, os livros e os jornaes não
perturbam a crystalisação das lendas, e não
coc.rdenam sentimentos e idéas communs, ha
de ser sempre por elle que havemos de auscultar o extranho rythmo da vida da raça.
Porque as verdadeiras manifestações do folklore são lavares repassados ao clarão de innumeras intelligencias, ou obscurecidas ao
contacto de uma multidão de rudes mentalidades, como de outra parte tocados do carinho ou da revolta de infinitos corações ...
Um capitulo, sobre o Joaseiro no folklore (1), impunha-se aqui, portanto.
(1) Mais de setenta annos ha que appareceu pela primei fa
Ve2 a palavra folk-lore, em um artigo do « Athenaeum» de Londns. l'ropunha-o W. Thoms, corno expressão technica apropriada
ao estudo das lenùas, tradições c da literatura popular. A palavrh teve a fortt:na de se diífundir igualmente pelos povos latinos
cU,:as línguas não possuem a faculdade plastica de <:rear neologimlOs senão em condições raras. Em geral, recorremos ao grego
O JOASEIRO
NO FOLK-LOBE
223
Sem que nos seja p06sivel uma abundante
documentaç~ão, poderemos fornecer, no entanto, {)sufficiente para comprovaç.ão de muitas affirmativas, esparsas em: capitulos anteriores, sobre a primitiva psychologia do sertanejo. Ao mesmo tempo, lembraremos aos
especialistas a necessidade da colheita e classificaç,ão de material para determinação de
urn novo cyelo do folk-lore no Nordeste. Gustavo Barroso, no seu interessante livro « Ao
som da viola» (1) diz que parece haver no
sertão, bem determinados, seis cyclns de lendas e tradições: « o cyclo dos Bandeirantes,
reunindo as lendas da penetração; o do Natal, agrupan20 todas as commemorações dessa data religiosa e já tradicional antes de ser
religiosa; {)dos Vaqueiros, guardando os poemas derivados da vida pastoril, como as vaquejadas, a luta contra .o gado « amontado »
ou contra as féras que devoram as rezes;
() dos Cangaceiros, cyclo heroico, feixe de
todas as admiraveis canções de « gesta », em
nada inferiores ás « gestas» medievaes da
em taes casos e o termo demologia seria o correspondente
literal de folk-Iorc. JOÃO RIBEIRO, « O folk-lore», Rio, 1919, pg. 5.
(1)
GUSTAVO lJAnnoso,
« Ao som da violu», Rio, 1921,
pg. 19.
224
CAPITULO
XIV
Europa; o dos caboclos, resumindo as opiniões a respeito dos descendentes do indio
fugido e incapaz de ser e3cravisado; emfim,
urn Romance da Raposa, quasi tão vasto
como o europeu, tendo identico fundo satyrico e referindo-se aos animaes do meio, como
o outro; nelle personificando
typos moraes
da humanidade.»
O cyclo do Messias, em
que se juntassem as lendas, canções e prophecias do sertanejo, parece ir-se constituindo, tambem, ao Jada dos outros citados. Deram-lhe as raizes as lendas dos Jesuitas, que
ahi peregrinaram em catechese; alimentamno, ainda hoje, as reminiscencias do caso de
Canudos, a que os episodios da historia do
Joaseiro se vão juntar, numa ordem sempre
coherente com o pensamento central do mesSlanlsmo.
Simples suggestão, porém, de quem, embora, acompanhando com grande amor os estudos do folk-lore do Nordeste, não é neIles especialista
nem mesmo amador autorisada.
:I<
••
:!:
As lendas sobre o Joaseiro são muitas.
Algumas, ainda em estado bruto, vão se n-
O JOASEIRO
NO FOLK-LOIŒ
225
do transmittidas com: a sua grosseira fórma
primitiva;
outras, mais raras, já se enfeitam de ornatos poeticos, demonstrando a riqueza de imaginação do caboclo, ou a collaboraçãoevidente
de espiritos mais cultivados. Aliás, os especialistas accordam em que
as lendas recebem sempre essa collaboração
necessaria. Não seria mesmo possivel explicar muitas dessas creações, no estado em que
hoje se apresentam, sem fazer intervir um
escól social: sacerdotes, poetas, sabios, philosophos quc por simples inclinação do espirito, ou pela natureza de suas occupações,
sublimam G.S crenças populares, erige m a superstição em idéa metaphysica, dão mais eoherencia á narração e sabem revestil-a de
fórma aprimorada (1).
A lenda do Joaseiro que já soffreu essa
transformação é a da vida de Maria de Araujo,
que tem como episodio maximo os milagres
de 1890. Facilitam-lhe os accrescimos poeticos os annos já volvidos sobre taes acontecimentos, a morte da heroina e a propria
naturcza do milagre (2).
(1)
(2)
Van Gennep, « Origine et formation
V. Capitulo VI, « Os milagres)).
de~ légendes}>.
~26
CAPITULO
* '"
Xl V
*
Todo romeiro acredita piamente nas communicações directas do Padre Cicero Romão
wm N. S. das Dores, a padroeira do lugar.
Essa lenda, que teve inicio no facto dos milagres de 1890, reaffirmou-se por occasião do
inicio da construcção da igreja do Harto, fixando-se definitivamente
durante a sedição
de 1913.
O caso da construcção da igreja do Horta
.prende-se á prophecia de um diluvio, promettido pelo Padre, como se "ê df~ste trecho
de sermão:
« E' preciso continuannos
com os trabalhos
da igreja do 11orto. N ossa Mãe MS Dores assim
o quer, e assim, por mais de 1tma 1)eZ, m'o tem
revelado. A' obra, pois, á obra de Deus, meus
amiguinhos! Quem sabe si não haremos de nos
escapar ali de um enOrme aguaceiro semelhante
ao d'iluvio?! Ah! quem sabe?!» (1:,.
A crença de que o Padre recebe revelações
de N. S. das Dores é arraigada. E' muito
(1)
p, Alencar Peixoto, ob, cito
¡-.
I
I
I
I
I
E;-;lil((l;l do Padl',' ('i{'cru.
~'IJI bI'OIlZ{'l t'ri~id;¡
lItlllliJ
Jlr;¡~'; IJublir',1
Jo
.Jo:1f:eil'o, l' IplC t', traln,d}¡o do (>:-'(,l1lptol' ('arioca I.aurllldo
HatH(l~.
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tiO l.lllo.
E.,,!a phllltt¡lraldlia
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Ho ;11,.1[1'1' ell':'-:"{'
;1 1'1 i,..•1; l. 11r
l~i r
I
l.
o
JOMŒIIW
NO FOLK-LORE
227
oommum' ouvir-se ao caboclo: « Este « inverno» vae ser grande: Nossa Mãe das Dores
disse ao meu Padim Cirço ... ».
Ella encüntra ainda elementos para subsistir, nas medalhas e benfinhos, que representam de um lado a effigie da Santa e de
outro, o Patriarcha do Joaseiro. Igualmente,
nas orações e bemdictos, em que os dois nomes apparecem sempre juntos:
Pad1'e N 0880 pequenim,
lUe guiae no bom camim,
Páde Cirço é meu padrim
Mãe das Dores é méa madrim".
-
«
Ao tempo da sedição contra o governo
Franco Habello, muitas vezes Nos~;a Senhora
deu ordens e conselhos ao Padre Cicero, permittindo que os seus homens viessem resuscitar na igreja do Horto, tres dias depois de
mortos ...
As lendas dos pequenos milagres, dos santos que mudam de lugar, das apparições do
Anjo Gabriel c outras são numerosas. Falta-nos apenas uma catalogação paciente.
228
CAPITULO
XIV
Ninguem melhor do que Leonardo Motta,
esse encantador espirito que já nos forneceu
dois livros admiraveis sobre o folk-lore do
Nordeste (1), poderá levar a cabo tal tarefa.
Foi elle mesmo o primeiro que ousou publicar poesias e narrações dos sertanejos,
colhidas in-loco, sobre a sedição de 1913 e
os milagres do- Padre Cicero. Em suas ricas
colleções, vamos colher, por exemplo, o naturalissimo depoimento de um fanatica sedicioso :
« - Lembra-se como e porque começou a
guerra?
não começou isturdÙJ,?
cumo é que eu não é de me alembrá? Vamincê
não sabe que o Rebello inticava com meu Padrim
Pade Cisso e só vivia de puxá arenga com nós no
Juazeiro, querendo prendê, fazê e acontecê? Nós
é que fumo aggredido no princípo. Isso dagora é
carrêra que elles tão oondo. Apanháro no Crato,
na Mutuca, no S. Bento (Miguel Calman) e tem
que apanhá 1/0 Ceará. TÁ, sim, que o siÛseiro
-
!If eu, Deu,s! Isto
(1)
«Cantaùores»,
Paulo, 1925.
Rio, HJ21, e «Violeiros
do Norte»,
S.
O JOASEIRO
NO FOLK-LORE
229
uai sê grosso. Mas et£ só ton é ir/da, havé nesta
íJl"'uvinça quem inóre que o Rebello é que é o
causo de quanta desgraça hai no mtmdo, de tudo
que é descontramantelo.
- O Sr. é mesmo de Joaseiro?
-- 8()U e não sou, sendo ... 3101'0 lá, há mtmtos
anno. Natural eu sou doutro logá, mas percurei a
potrecção de meu Padrim mode uma « vadiação»
que eu fiz ...
- Quantos homens estão em armas?
- E eu sei?! E' gente cuma (f/Ûzéf Ninguem
conta não. Anda tudo de magote ... Já vi dizê que
mais Se1~ Curunéo e seu Doutô (Pedro Silvino e
losé de Barba) tamos aqui mais de dois mil. Mas
bastava a metade. Munta gente tá aqui só pm
1J'iade robações. Aqui hai « romeiro l' e hai « rombeiro ». Por certa gente eu não metto a mão no
jogo ... Et/" quando me alembro do que meu Padrim
recommeadou e vejo certos desprepóslo, só me
reina na natureza é me largá p'r'o Juazeíro.
- Então o Padre Cicero lhes deu conselhos e pediu que não saqueassem?
-. E antão? f Deu, nM sim. Boni-t-o-tó macacheira mocoló! Cancei de vê elle dizê que quem
bebe cachaça é raposa dôida, que se respeitasse
lamía e não .'le bulisse no aléio. Mas aqni tem
gente que só qué desgraçá os pisst£ido dos rabel·
C.\PITULO
XIV
lista. Tou, amarello de vê se dizê: «Rabellista
resistiu, matou! esmoreceu, perdoou 11l.aS estragou!» Tem delles que diz que no Ceará é que
é! Não vê que lá tem um tal de Frota Gentil
que é rabellisla e tem gazimira pra 7nand<Í p'r'o
diabo? !
- Mas o Dr. Borba e o Cel. Silvino não
podem conter esses que assim procedem, desattcndendo ás recommendaçães do Padre Cif~ero ?
- Lá o que! Pra essa gente só mérmo sel~
Dr. Fulóro que é home de pouco conséio. Cabra
p'r'o lado delle ou procede ou leva o (liaba. Pra
suf)i:gá um, pra pegá ~tm pela amarra do chocáio,
foi quem Deus deixou! Aquillo, sim, é que é sê
home resolvido!
- O Sr. luctou em Miguel Calmon?
- Adonde? No São Bento? loitei, lIhô sim.
O negóço úí foi brabo. Fo'i ttm istn~pisso. Os (;(1bra da, trinchéra de 8eu Zequinha Contenda, do
Maitá, nos baixáro a ripa debaixo duns 1)é de
jurema e tanta baZa nos jo.r¡áro que parecia que
tavam sessando bagaço de fóia em riba da gente ...
- Os srs. são todos do Cariry?
-- Nhôr não. Aqui tem gente de toda parage.
Da Parahyba tem, da pruvinça de Alagôa e tem
O JOASEIRO
!\O FOLK-LORE
231
o cab¡-uo,l do Riacho do Navio, de Pernambuco.
que é damnÏl,co. Gente que só usa tomá trinchêra
a punhau, gente iSp'romentada ...
-E como foi que o Padre
tou tanta gente?
Cicero Jun-
-- E toi lá elle que ajuntou o que! Tudo isso
loi se o//rect, dizendo que queria dá c' () Rebello
dentro d'agua do má ... ~h, seu moço, meu Padrim, pra defendê elle, tem gente que ~'ó pomba
de bando! Elle disse que quando nós acabasse
de impô o Rebello, quando nós acabassl~ de quebrá a castanha do bicho, nós só tinha seis mez
de descanço. Adispois, eu acho que seu Pinheiro
Machado qué que nós vá fazê um serviço c' o
Danta Barrel:o no Pernambuco e eu acho que
ahi nós grita a Monarchia! Vamincê nunca viu falá nas prophecia do Frei Vidal? ApoÙ~ 08 véio
daquelle tempo diz que elle dizia que nestas éra
dagora havéra de havê uma pendença, que prinspiava nO sertão e ia acabá na pancada do má.
- Quaes são os mais valentes, entre os
srs. ? Não ha alguns mais valentes do que os
outros?
- Seu moço, isso de disposição pra, brigá a
occasião é quem dá. Não hai home mais home
do que outro, não! ... Mas aqui tem munto cabra
ditriminado: tem o Zé Terto, o Tempestade, o
Balisa, o Mané Domingo, o Zé Pinheiro, o Bocca
232
de Sangue, o Jloita Braba, o C(Ûixto, tem uma
'[l'ução delle.'!.
-- E as tropas do Cel. Franco Rabcllo mostraram bravura?
- - Qual! foi coisa que ('U nunca vi nelles foi
vantage. Nós vimo vê home no S. Bento ... No
Juazeiro nill.rJuem 1¡odia nem atirá nelles: chegávo,
da.vo 'um tiro na gente e corria tudo pra traz.
Parecia brincadêra de menino. Fo:¡mode isso que
nós appellidemo elles de macaco, porque só faziam corré. Ninguem podia nem botá um cercalorenço nelles. Agora, a gente d(~ seu Zequinha
Contenda e de seu Joco. da Penha, não! No 8.
Bento, sim, nós topemo serviço ...
-- E o canhão do Cel. Emilio Sá?
-- Ah! bom, basta! Aquillo não valia um
,qirmum cheio d'a,qua. Tão bom era que elles
interráro. E pra que era que nós havéra de querê
aquella disgraça! 8ó si fosse pra vadiá de joãogalamarte em ribo. do cano. Aquillo lá era terem!
Eu, queria munto mais ante uma lazarina, dessas
de se passarinhá ... »(l)
A sedição dos fanaticos é commentada com
graça, ás vezes com ironias tremendas, por
(1)
Leonardo
Motta,
"Cantadores»,
pg, ,:37 e sego
c
JOASEIRO
NO FOLK-LORE
233
cantadores do sertão. E' do cantldor cégo
Aderaldo Ferreira de Araujo(l) a descripção
mais completa na poesia popular, que conhecemos dessa lucta:
« Deportou-se o Accioly
Alas ninguem foi mais feliz!
« Benito, bóbos, bem feito!
(Assim todo mundo diz)
Quando a gente tóra um pat~,
Rejeta logo a raiz» ...
Deixá1'o o velho Accioly
Rico com muito dinhêro,
Com pouco elle entrou, de novo,
Que nem fogo no balsêro,
E ainda mais um Doutó Floro,
Esse lá no Juazêro.
Esse Floro bahiano
Com o Padre se alliou
E um sinhô Pedro Sih-ino,
Home muito brigadô,
Silvino, José de Borba
E um tal de Doutô Lavó,
(1) O Cantador Aderaldo, di", Leonardo Motta, nos « Cantadores», contava em 1921, trinta e nove annos de idade. Por
essa epoca «tinha. i.:lteirados quatro lustros de exercício na profissão d~ cantador, pois havendo cegado aos desoito annas, desde então se dedicou á vida de menestrel, atravez de todo o
Norte. »
234
CAPITGLO
xn'
Então, o Franco Rabello,
Vendo lt coisa ficá ruim,
Preparou ~tm Batalhão,
Disse ao C01nmanda,nte assim:
-- « V oces veio ao Ju.azeiro
Desgraçá do Padre o n'Ím!»
Se!Jlte o Alipio de Barro
Ditriminado a brigá,
Elle mais o Ladislau,
,lIas, quando chegtÍl'o ltÍ,
Déro qu.atro tiro á tôa,
Somente para constá.
Nisso espalhou-se a notiça
Logo por todo lagá ...
Depressa, ella. se espalhou
Por todo este Ceará!
Ahi, seguiu p'r'o sertão
LV osso grande Emilio SIÍ.
Pegando uma peça véia.
Mandou para a fundição,
Mandou que raspassem toda,
Tirassem todo o cascão,
Passassem graxa na bicha
E areasse bem os latlio.
Ao chegá no Quixadá,
Muitas mocinhas formósa
Fôro vê Emilio Sá
E iam todas mimósa,
Em cima de Emilio Sá
J ogara cravos e rosa.
() JOASElRO
NO FOLK-LORE
lá do I (JuatÚ
Ficou de queixo na mão ...
Vm dizia: -- « O que é aquillo i'»
Outro dizia: - « Sei não!»
E o¡Ûro: -- «Só si é 'lnachina
De escaroçá algodão ...)
.tÍ gente
Outro disse:« Não, 1uio é
Q-ue eu já estive em Maranhão,
QtUlndo che,qt£ei lá no porto
Vi aquella arrumação ...
£Ou desconfio que é aquillo
Que os rico chamam canhão ...
N o Orato diz o Ernilio:
-- «Et¿ não vim tonui consêio!);
Mandou collocá a peça
Em GÏnw do Alto Vermêio
Para, quando detoná
Cortá luazeíro ao meio.
Ahí, o grande artileiro
Fez 1.tma detonação,
A peça se arrebentou
E en'uergou todo latão,
Matou uma pobre vêia
Que andava vendendo pão ...
N esta hora, o Padre Cisso
Fazia lá o seu sermão
E disse ao seu pessoal:
- « Corram logo, meus irmãos,
Me pe,flUem aquella peça,
JIe traga á força de mão!»
2il5
236
CAPITULO
XlV
Correro trezentos home
Numa carreira damnada,
Que quando o artileíro viu
Aquella gente espritada,
Empurrou a peça véia
Deixou rolá na quebrada..
N osso grande Emilio Sá
Vendo a batam perdida,
Correu para o a1"lileiro,
Mas, vendo a peça rompida
A visou que o povo todo
Cuidasse em salvá a vida!
Vinha um menino com elle,
De quatorze anno de idade,
Era chamado Domingo,
Filho daquella cida.de,
Disse: - « Coronel, não C01'ra
Que jagunço é bestida.de!»
o
menino ainda disse:
- «Eu não temo esses patife!
Seu Emilio Sá bem sabe
Que eu, emquanto tivé rife,
De coração de jagunço
Faço urubú comé bife!»
Segue o grande Emilio Sá.,.
E o menino o que é que fez?
Prantou o joêio em terra
E atirou por sua vez,
N o meio da jagunçada
lnda mato~~ trinta e tres!
O JOASEmO
NO FOLK-LORE
Mas Emilio Sá se foi
Chatinho como um tatú ...
j}tlais tarde o menino o alcança
Já rasgado e quasi nú ...
Quando ninguem esperava,
Chegaro no Iguat'Ú.
N o 19uatú, Emilio disse:
« Acabou-se a pabulage,
Não qt~ero mais sê valente,
De que serviu a viage?
Parto para Portaleza,
Vou num carro de bagage ».
Nesse lempo, em Fortaleza
Havia 'um rio-grandense
Que uma vez disse: - « Eu me (,~trevo
A comrnandá cearense!
Si e1¿ commandá a poliça,
A jagunçada não vence!»
o
Doutô Paula Rodrigue
Disse: -- « Amigo, se detenha!»
E correu, disse a RabeUo:
- « Temos um que desempenha,
Hame de muita corage,
E' o nobre Jota da Penha!»
Para o ¡¡egundo combate
O pessoal se animou,
liêio gente de toda parte,
A esperança renovou,
E o grande Jota da Penha
Pediu um trem e marchou.
237
CAPITULO
XIV
Chegando em Jliguel Calman,
Na estação não quiz ficâ,
Seguiu com sen pessoal
Procurando outro logâ
Que prestasse p'ra trincheira,
Servisse p'ra se brigá.
Góesinho tirott do po'/.,'o
Cincoenta cabra dos seu
E disse a Jota da Penha,:
-« Capitão, eu. sou judeu!
Dê licença, eu VOlt adiante,
Eu. vou tomá São Matheu!»
Góesinho se,quin á tôa
Pois não conhecia a terra ...
ConheCelt o que era guerra:
Fai bala, ?u'ioloi brinquedo
Dentro do sacco da sert'a!
Góesinho rolou no chão,
Temendo as bala ferina,
E quando elle conhecen
Que ali havia ruina,
Corrett com medo dos cabra
Da Dona Federalina.
Ahi morreu o menino
De quatorze anno de idade,
Morreu a pobre criança,
Uma onç.a na verdade,
ES8e que tinha botado
Trinta e tres p'r'a eternidade!
o ,JOASEIHO :\0
FULK-LOIn:
FugÏl\ Góesinho ligeiro
Em procura do 19uatú',
Lhe disse Jota da Penha:
- « Góesinho, que viste tú!
Corrcsíe damnadamente,
Chegaste aqui quasi nú ... »
Então o Penha pensou:
. -- « LVão tem um que seja bom ..,
Já sei que vocés não brigam,
Não possuem o meu doml
Vamo que eu vou collocá
V océ8 no Miguel Calmon».
o
Penha, em Miguel Calmon,
FaloM alto e sem segredo:
- « O que não tivé corage,
Quem de bala tivé medo,
Quem não pudé brigá,
Por lavô levante o dedo/»
Quando disse' essas palavra,
CausOl~ admiração,
Fazia nojo e fez pena:
Uma grande multidão,
Tezent08 e oitenta e dois
Alevantaram a mão.
Então, o Jota da Penha
Vendo aquillo, o que é que fez i'
'A1a1ulouque fossem á fava
Todos elles de uma vez ...
E para a lucla ficáro
Só WIS duzentos e tres.
13
I.oorcnço Filho - JoabCi,'o do Padre Cice)'{J.
239
C.\I'ITULO
XIV
DesseH duzentos e tres
Teve inda gente que «abrÍ1.p>...
Certo que, ()hegando it noite,
Um bocado conseguÏ1t
Fazê a sua fugÙ1a:
Fóro 1,inte os que fugiu!
Ficou cento e oitenta e tres,
Mas 11 omes ditriminado,
Dizendo: - «nós sai daqui
Só depois de es{raçaùtdo!
Cor;'ê daqui ninguem corre!
() baruio tá formado ...
Cordeiro, do Batrité,
Por sê um luctadó lorle,
Se coUocau mais Góesinho
Todos dois dentro de um corte.!
O pessoal delles dois
Nunca lez causo da morte ...
O bravo Tenente ArthÚ,
Esse ficon coUocado
N o centro de ·urna trincheira,
Muito bem e/ltrincheirado,
Para não ficá Rosinho
Ficou eUe c dez soldado.
O grande j\iózim Contenda.
Tomou conta da vanguarda,
E tambem 8inhõ Zequinha
Mandava urna reclaguarda;
O nobre Jota da Penha
Chefiava toda a guarda.
O JOASEIRO
NO FOLK-LOIn:
Jota da Penha pegou
Urru;¡;noite rigorosa;
Como a1loite toi assim
A rnanhã toi invernosa,
Qu(Lt¡do o dia toi rompendo
O' que manhã tenebrosa!
Elle accordou muito triste,
Comsigo deu um suspiro,
Perr/untou á soldadesca:
- « Vocês me digam si O'lwiro
Na matta, ao lado direito,
O d'isparo de algum tiro!»
Elles disséro: -- « Não vimo!))
Mas seguiro na carrêra,
Perto de Jota da Penha,
Abraçando as cartuchera ...
Elle disse: - « Meus amigo,
Entrem p'r'as suas trinchéra!;)
Depois disse: - «3feu8 a1n/go,
Vamo brigá, tenham té,
V o '3xplicá a Voces
O combate como é:
Eu vou na trente a cavallo
C01'n quarenta home a pé ».
Sua roupa era amarella,
As bota da mesma crí.
O chapeo - de aba deitada,
Da torma de lmperadû;
Pulw¡d o no se1£ cavallo,
De 1£m só pulo montou.
241
242
C.\l'ITULO
XI\"
Depois, o Jota da Penha
Ficou muito admirado
De vê vi tanto jagunço ...
O sertão tava encarnado! (1).
TinluL muitos no caminho!
E outros, pelos paus, trepado.
Gritou o Jota da PenluL:
« Fogo, fogo, Bataião!
Atirem nesses jagunço,
Jíão quero vê compaixão,
Acabemo esta canalha,
Esta corja de ladrão!»
-
Então, as quarenta pra(a
Quarenta tiro mandaro;
Depois, sem l)crda de tempo,
Outros quarenta enviaro,
Ao depois, com mais quarenta,
Os cento e vinte interáro.
Ahi, o povo (lo Padre
Tres mil tiro lhe mandou,
Mandando nwis tres mil tiro
Viu-se logo o grande horrô,
Enviando outros tres mil,
Os nove mil completou.
( 1) Por motivo ùas cobcrlur:l>l escarlates dos chapéos e
dos grandes lenços encarnados que guarneciam () pesco(:.() e
peito dos romeiros.
(; ,JOASEIRO
NO .FOLK-LORE
Dizia o Jota da Penha:
- « TIoje aqui ning-uem se coça!
Anima, bri,qa, negrada,
a jagunçada é uma joça ...
Fogo naquella canaia
Vamo que a victoria é nossa!)1
Tinha um jagunço trepado
(Esse atirava de ponto)
Ta'Iv'atrepado num páu,
Dizendo: - « O Penha ett aflronlo!»
Cada tiro, dava t¿m grito:
. - « Matei ton! lá deixei prompto.' \\
Tinha tlm tal Raul Bezerra
Estirado num buraco,
Este então se preparou,
Ti.rou a bala do sacco
Fez lJOntaria e gritou:
--, « Botei-te abaixo, macaco!»
o
bravo Tenente ArthÛ
mêi de tanto alvoroço
Deitou-se e saiu rolando,
Pois o baruio era grosso,
Itolon de uma ribanceira
g caiu dentro de um poço.
iY?
Com a carabilla moiada
Mostrou a peT/ôeverança,
Agachou-se delllro da agua,
(Parecia uma creança)
POí"
cima da ribanceira
illda lez grande matança.
244
CAPITULO
XIV
Jota da Penha a ca·vallo,
P'r' 08 jaflUnç08 conheeel-o,
Era um Roldiio destemido.o.
So meio de tanto atropelo,
Dava viva ao Ceará
E a ;Wareo Fmneo Rabello!
Tambem o po/.,'o do PadjOe,
Fazendo grandes horróre,
B1 igava gritando sempre
Entre medonhos clamôre:
- Viva o santo Padre Cisso,
N OS8a Senhora das Dóre!
0
o pobre Frei Marcellino
Implorava á multidão,
Com uma image divina
De Deus Nossenhor na m¿¡'o,
Para os jaflUnço atirá
Mas não sangrá 08 christão.
Um jaflUnço viu o Penha
E gritou: - « (tue grande testa!
,{quelle é o Jota da Penha,
Agora o combate presta!
Zé Pinheiro lhe lez toga,
A bala pegou na testa.
O nobre Jota da Penha
Rolando caiu no chão,
Ficou rolando ua terra
Com o seu revolve na mão,
Mas, coitado! o home morto
;Pd Iaze acçao.
-!fI
II ao po e
A
o
o
•••
O JOASEIRO
NO FOLK-LORE
O cavallo desde logo
Com a queda se assustou,
Deu uma grande carreira,
Foi longe porem voltou,
Pe,'lo de Jota (la Penha,
Baixou a venla e cheirou.
Zé Pinheiro lhe atirou
Porem não acertou não,
E o cavallo esparrou
(¿ue licou rente no chão
Pinheiro sai da trincheira
IE mata o cavallo a mão.
Poi, disse a Pedro Silvino
O que linha succedido,
COi/tau que Jota da Penha
Na lueta tinha morrido;
Pedro Silvino enlão disse:
- « Antes tivesse-o prendido!;)
J olÎo Gome achou o cadáve
De Penha e se descobriu:
- « Deus te dé a salvação,
Bocca que nunca mentiu,
Bra(:o de heroe destemido,
Mão lorte q~le resistiu!»
Estava perdida a guerra
O' que horrorosa certeza!
A soldadesca chorava ...
Todos então com tristeza,
Botáro Penha no expresso,
Mandáro p'r'a Fortaleza.
245
2·I(1
Eu ta1.,w,na Capita!
Naquella noile a/ftictiva,
Na hora que foi chegamlo
Aquella locomol'iva
'l'razendo Jota da Penha,
Corpo morto e alma viva!
Jagunço ahi tomou conta ...
Anarchizclro o Maytá,
Depois Quixeramobim,
Véro cerco no luá,
Logo nesse mesmo dia
Desgraçáro o Quixadá.
Com toda facilidade
Entráro no Batrité,
E corrêro toda sert'a,
Escangalharo o Coité.
Fizero cantá Bemdicto
.Jo povo do Cani}{dé ... »
o
cégo Aderaldo foi empregado da ferrovia Baturité, antes do desastre que lhe tirou
a vista. Nas viagens continuas que fez apanhou alguma coisa do sentimento popular
contrario ao Joaseiro. E' evidente no modo
pelo qual apresenta os acontecimentos e os
commenta, com feliz ironia, quasi sempre.
Aa contrario, o cantador Ionvaminhciro do
o
JOASEIllO
NO FOLK-LORE
247
Padre Cicer.o é o poeta João Mendes de Oliveira} residento no Joaseiro. Tem-lhe cabido
a tarefa de pôr em verso a santidade} feitos
e prestigios do Padrinho. Adaptado perfeitamente á incLlltura ambiente,elle
reflecte,
como ningucrn', o sentimento popular dos sertões a respeito do Padre, como podemos verificar nestas composições:
"Visita dos romeiros"
« E' um pastó delicado,
E' a nossa protecção,
E' a salvação das alma
O Padre Cisso Romão,
E' a justiça divina
Da Santa Religião.
E' dono do
"E' dOiw da
E' uma das
E' urn ¡ilha
Manda mais
MandiL mais
Vem
Vem
Vem
Vem
Vem
Vem
Horta Santo,
Sania Sé,
l'Tes Pessoa,
de São José,
que o Wenceslau,
que o loão Thomé.
'Jarta até lá de Roma,
ca·rta do Ceará,
carta de Pernambuco,
carta do Paraná,
carta de Cajazeira,
carta do Quipapá.
24R
('.\ PI'lT LU X I"
rem carla, do Jlaranhão,
I'em carla do ,tracaty,
T'em carta do CabroÓó.
l'em carta do Piôhy,
l'em carta do Bairité,
E vem carta do ..lpod//.
Quem não presta attenção
Ao que mmi Padrinho diz
Tambem não crê na Mal,.!;:
Da Virgem da Conceição
Nem no p1'opheta S. João,
.vem poderá ser feliz.
Um (;hega e diz: --- « Meg Padrim,
Eu não sei ma-is o que fa,ça!
Quero a vossa 1)rotecção
Com sua divina graça!
Com relaç.ão a virtude,
Só aqui é ol/de se Qrha!)'
(Jutro diz: - « Eu aqui eston.
Quero que me ditrimine,
Quando eu errá me r4stifl~le!
(Juando eu não subé, me ensÎnp
E' na vida e é na morte
(.Juera que vós me domine'
o Padre Cisso, então, diz
Com ,'lUa voz ditterente:
- «"A'ão queiram sê assos8illO,
Não bebam mais agu(1J'{lente,
:Vão queiram sé desordéro
Que JesÚs não sai da frenie!)'
o
JOASEIRO
:\0
FOLK-LORE
Meu Padrim é quem possue
Talento, força e podê
Dado pela Providença!
Quem duvidá - venha vê!
Elle é quem dá a derecção
Do que se tem de fazê ...
(}om relação á sciença
Elle é quem tem toda ella!
Tudo elle faz differente,
Até o benzê da vela,
Sitio, fazenda de gado,
Jlatriz, sobmdo e capella.
Viva Dews primeiramente,
Viva S. Pedro chavêro,
Viva os seus sal/tos Ministro,
Vi1:a o Diviuo Cordêro,
l/ha a Santissima Virge,
Viva o Sal/to h¡,azêro!
VÎl;a a Sagrada Famia,
N o céo a Divina Luz,
Viva o Sinhó S. José,
Vi'l:a o mystero da Cruz,
Vi'm o Padrím Padre Ciço
Para sempre, ¡hnem, J es'/.ts!
Rom .TeS1.tsdos Passo,
Vi1;.'l Salllo Antonio lambem,
\!iva o sallto Juazéro
Que é nosso Jerusalem,
Viva o Padrim Padre Cisso
Par'l lodo sempre, .4.mem!»
Vi'/:!l. o
24D
2fiO
CAPITCLO
X! \"
Não menos interessante é a SlJ.a cantiga
« Protecção da Mãe de Deus », variando habilmente o mesmo thema~ sem o tornar monotono :
« Logo 1/0 primeiro dia
Que eu cheguei no Juazéro,
Pegou a chegar roméro
P'r'a uvi a voz do Messia.
Este Pade é o nosso guia,
E' a nossa satisfaçÜo,
Consola todo christão,
Ensinando o bom camirn,
Trabalhando aqui sozim,
Garantindo a salvaçiio.
Cumo defensora e guia,
Com um manto de ouro fino,
Rogou a Jesus Menino
A Santa Virge Maria,
lI1ãe do rico c sem valia:
- «Jes1u; Chtisto venha cá,
Não prometti ¡ha faltá!
Quando estive em Juazêl'o,
Salvei a lodo roméro
Que vp-iu, me visiliÍ.
Eu sou a lïr,r¡e
Cisso é o dalla
A elle dou meu
Conheçam bem.
das VÔle,
do SacrrÍ1'o;
Rosáro,
peccad{Îre:
1.)[I'O;"':"J':l¡,IIÎa 'llll'
II
-.l' \"'lltll'
"::\\110
l,nI'
(lIdo
«l':lllrinhll
I
(l
;\11!'(ll',',\iI',
ell) .Illil. .•.•
"¡r,l.
l'I'!,n'_""1I1:lllll"
ü JOASEIRO
NO FOLK-LOHE
Quem a Cisso respeitá
Ficará com Deus Eterno,
Não consinto í p'r'o inferno
Quem ouvi Cisso falá!»
o
meg Padrim Padre Cisso
Protege a qualqué pessoa,
T'em .fiente até de /llagôa,
De mais longe e de mais 1Jerto.
Tudo qu(>,elle di? é certo,
Não tem quem prove o contrâro!
Bispo, Páde e lIlissionáro
Vão de encontro a meu Padrim:
Elle, porem, tá sozim
Na devoção do Rosáro!
Viva o autô da Natureza,
Fiva S. Miguel Archanjo,
E viva a Côrte dos Anjo.
Viva toda a realeza,
Vi1;a /], santa luz acce8a,
Viva esta boa semente,
Viva Deus Omnipotente,
Viva a cruz da Redempçiio,
E o Padre Cisso Româo
Viva! Viva, eternamente!
Nada mais tenho a diz'ê.
Sou, João Mendes de Olivéra,
N esta lingua brasiléra
Eu lIc~dapude aprendê.
Porem 1)OS80 conhecê
251
252
CAPITULO
XIV
De tudo quanto é verdade!
Não tenho capacidade,
ollas, sei que não digo á tÔa:
- - Páde C1:SS0 é uma pessoa
Da Santissima Trindade! ... »
Estas poesias, como outras parecidas, correm os sertões de hocca em bocca, e ,impressas em folhetos que o proprio autor vende
em suas viagens. Figuram igualmente no já
citado livro « Cantadores », de Leonardo
Motta.
* .:.
o
capitulo das orações é o mais vasto,
talvez, dentre os da demologia sertaneja. Todas as difficuldades, todas as molestias, todos os perigos se afastam com preces, uma
simples como esta, para curar braços e pernas destrancados, fracturas, ]uxações:
« Carlle trilhada,
.Vervo torcido,
Ossos e ""eias,
E co/'dovei.as,
Tudo ¡.sso eu côso
Com o louvor
ne São Fruct1J.08o!
>)
o JOAS.è:mO NO FOLK-LORE
Outras, complieadas já com exorcismos e
benzimentos,
corno as que transcrevc:mos
abaixo:
Oração contra o usagre
Benzendo a parte elo corpo atacada pela molestia com um galho
f1e arruda molhacla pm agua benta:
Eu te benzo com a cruz, com a luz
E com o sangue de Jesus!
Usagre, fo,go selva,r¡em, foge d'aqui,
Que estolt com nojo de ti!
Oração "forte"
contra os espíritos e avantesmas
Jesus vae commigo
B cuvou com JeSU8!
Jesus vae commigo
N o meu coração
E ha de livrar~me
De toda afflicção.'
De toda afflicção,
De Ioda agonia,
Livrae-me Jesus,
J osé é: Maria!
J osé c Maria!
E Sant'Anna lambem,
E São Joaquim,
Para sempre, Amem!
25·t
CJ.l'ITL"V) XIV
Oração para curar bicheiras dos animaes
Jfal que (:omeis
./ Deus não louvaes!
E nesta bicheira
S¿¡o comerás mais!
llas de ir cahÙzdo:
De dez em dez;
De /lave mn nove,
De oito em oito,
De sete em sete,
De seis em seis,
De cinco em cinco,
De quatro em quatro,
De tres em tres,
De dois em dois,
De um em um!
E nessa bicheira
.Yão licará nenhum!
/la de ficar limpa e sã
Como limpas e sãs ¡"icararn
.1s cincos chagas
De N osso Senhor!
(Hisca-~e no ar uma cruz e os birhos cáem) (t).
Estas orações não nasceram propriamente
no Joaseiro, mas ali se praticam unidas a
outras, com exito especial... Mas ha preces
peculiares aos romeiros, ou adaptadas de mo(1) V. a proposilo
ùe Gustaru Barroso.
lIe ora~~õe~, o liao
«Ao 30m da viola'),
o JOAS¡,;mO
~ü
FOLK-LORE
255
do a referir-se directamente
ao Padrinho.
Aqui está, por exemplo, a oração do «Justo
.Jniz», para «fechamento do corpo », com essa
evidente adaptação:
« Justo Juiz de Nazareth, filho da Virgem
Maria, que em Belem fostes nascido entre as idolatrias, eu vos peço, Senhor, pelo vosso sexto
dia, e pelo amor de meu Padrinho Cicero ql~e
meu corpo não seja preso; nem ferido, nem morto,
nem nas mãos da justiça envolto. Pax Tecum, Pax
Tecum, Pax Tecum. Christo assim se disse a08
seus Discípulos: Se os meus inimigos 'Vierem
para n¡B prender, terão olhos, não me verão;
terão Otwidos não me ouvirão; terão bocea, não
me fallarão; com as al'mas de 8. lorge, serei
armado; com a espada de Abrahão, serei coberto;
com o leite da Virgem Maria, serei borrifado; na
arca de Noé, serei arrecadado; com as chaves de
São Pedra, serei fechado aonde nâo me possam
ver nem ferir, nem matar, nem sangne do meu
corpo tirar. Tambem vos peço, Senhor, por aquelles tres calices bentos, por aqlbelles tres padres
'lcvestidos, por aquellas tres Hostias consagradas,
que consagrastes ao terceiro dia desde as portas
de Bethlem até Jerusalem, e pelo meu Santo
] oaseiro qne com prazer e alegria elb seja tambem guardado de noite, como de dia, assim como
andon lesus no ventre da Virgem Maria. Deus
adiante, paz na guia, Deus me dé tI companhia
que deu a sempre Virgem Mana, desde a casa
sailta de Bethlem até Jerusalem. Dellll é ?IWU Pae,
251;
C.\l'I'JTLO
Xn"
,v. Mãe das Dôres minha Jlãc, com as armas de
8. Jorge sel'ei armado, cmn a espada de 8. 7'hiago
serei ,gwlrdado para sempre, Amem (1),»
o
« fechamento
do corpo », contra. armas
du fogo de qualquer natureza, e perseguição
pl)r parte da policia, se torna completo quand·) além da oração acima, cosida num bentinho, consegue o cangaceiro uma hostia consagrada, furtada por elle do altar de uma
19reJa.
«E' sabido entre o povo, diz Xavier de
Oliveira, que Joaquim Pinto Madeira, o ce1'3bre guerreiro imperialista de 1832, por ter
tarnbem uma hostia, não no corpo, mas apeHas pendurada do pescoço, por mais que o
1rucidassem no patibulo erguido no Crato,
especialmente para elle, só foi possivel ma~al-o, depois que o separaram della.! ... » (2).
***
Ha, no Joaseiro do Padre Cicero, duas corporaçóes organisadas de fanaticos, com re( 1) Esta. oração é secular nos sertões, segunùo se deprchende do curiosissimo livro de milagres de Aderson Ferro, « O
dedo de Dells», Fortaleza, 190'1.
(2) X. de Oliveira, ou. cit. pg. 207.
o JOASEIRO
~O FOLK-I,om~
257
galias e £uncções especiaes: a dos «beatos»
e a dos «penitentes».
O «beato» é sempre um celibatario, «que
faz votos de castidade, real .ou apparente, que
não tem profissão, porque deixou de trabalhar, e qU3 vive da caridade dos bons e da
exploração aos crentes. Veste á maneira de
frade: uma batina de algodão tinto de preto,
uma cruz ás costas, um cordão de São Francisco amarrado á cintura, uma dezena de rosarios, uma centena de bentinhos, uns saquinhos com «breves» religiosos e com orações
poderosas, tud.o pendurado ao pescoço ... São
geralmente individuos vagabundos, hYPocJ'itas, del irantes religiosos .ou bandidos I » (1).
Os «penitentes» sã.o uma expressão mais
accentuada de mania religiosa. Deixam crescer a barba, vestem uma longa tunica e proeUl'am viver longe dos povoados. Os do Joaseiro habitam na serra do Horta, soh a chefia
do prestigioso penitente Elias. Sua funcção,
conforme confessou o dI'. Floro Bartholomeu,
é a de r8unirern'-se a alta hora da noite, em
trajes de amwtalhados, junto aos cemiterios
(1) Id. ibid, m;. No seu ja citado discurso ¡Je defesa ao
Patlre Cicero, na CUlnara Federal, o dI', Floro BarthoJomell confessou a existencia
dessas ordell~ de fanuticos, dando até o
llome dos' sew; princi"aes chefes.
(JAPITULù
xn'
e cruzes de estrada, para rezarem pela alma
dos defuntos. As orações são intercalladas de
<~ disciplina
», isto é, de cast.igos phYEicos com
ehicotes e cilicios (1).
Funcção commurn a beatos e penitentes é
a de «aj udal' a morrer» os agonisantes. E
pode-se calcular facilmente o seu trabalho,
neste particular, quando se c.onsiderar que
a mortalidade attinge a cifras inauditas. No
Rio de Janeiro, com um milhão de habitantes,
morrem, em' media, sessenta pessoas por dia;
no Joaseiro, diz o dI'. Xavier de Oliveira,
medico, filho da região e perfeito conhecedor
da grande Méca sert-aneja, - com quarenta
mil habitantes, apenas, morrem diariamente
trinta pessoas!
Para « ajudar a morrer», juntam-se alguns
romeiros, que seguem o beato até a casa do
moribundo. Ahi chegados, accende-se uma
(2)
({ o chicote com que be ferem ainùa hoje oS peniten.tes é uma tira de couro de 4 paJmoR de com¡Himenlo, tendo presas a uma das exlremidades
<I a 15 pontas de faca de !llesa
ou ùe cabo de colheres de latão, afiado~ de alabos os Jados, medinùo 6 centímetros mais all menos de comprimento. O eíliciu é
uma faixa de sola, de 3 dedos de largura, lra!'ipassatla de tachas de sapateiro qne se aperta á cintura per baixo da camisa,
c cujas ponlas se internam pelas carnes, occasionando dores 110rri\'cis ao menor mo\'imento ùo corpo! Mesmo assim, usam-n'(I
por muitos dias.» - A. FERRP, ({ O Dedo de Deus», pg. 331;'
() JOASElRO
NO FOLK-LORE
vela benta 3 o beato inicia
ladainha, repetindo sempre:
uma comprida
- I esus vae comtigo e N assa Mãe das Dores
é tua guia até a porta de São Pedra! ... E o archanjo Gabriel, com a sua espada na mão, te defenderá conlra os alaques do «Cão »!...
Depois da morte, iniciam-se
da sentinella». Vae um romeiro
«tirando adiante}), e os mItras
em côm, numa voz lam'entosa
os « cantos
ou romeira
respondendo
e :::n'ofunda:
« N assa Mãe N assa Senhora,
Virgem Santa e Mãe das Dores,
H' ~ guarda de nós todos,
De nós lodos peccadores.
Oh!
Oh!
Oh!
Oh!
Mãe
Mãe
Mãe
Mãe
gloriosa,
do loaseiro,
virtuosa,
dos romeiros ...
« Tem duas beatas santas,
Xa matriz do loaseiro,
Jleu padrim Cirço Romão
E' o 'rei do mundo inteiro!
E o
CÙl'O
oo.
repete, elevando a voz:
JJeu padrim Cirço Ilomão
E' o rei do mundo 'inteiro! ...
260
CAPITULO
Xl V
Muitas vezes apparecem no sertão, sob a
fórma de preces, terriveis satyras contra homens e pess.oas. Não são sempre, evidentemente, creaçôes do sertanejo. Ahi, a calculada intervenção de que nos fala Yan Geenep,
por parte de um escol social... Desde que
a oração-satyra corresponda a um sentimento popular, ella carre Inundo, sempre fiel
á prim'itiva fórma, porque o arranjo da «oração» facilita a sua memorisação. Do typo
dessas orações, foi-nos fornecido por um dos
mais conhecidos jornalistas cearenses, a copia da que vae abaixo transcripta, e que
lhe foi dada por um alfaiate, em Cajazeiras, (Parahyba):
Credo
« Creio no Floro, todo poderoso, deus do rœngaço e em José Ignacio, sel~ primogenito filho,
o qv..al foi feilo chefe politico por obra e graça
da ¡'alta de vergonha dos governos do Ceará;
naSCe1-¿da perversidade; padeceu sob o poder de
h.tstiniano de Serpa" foi perseguido, preso e interrogado, desceu ao « Barro» onde, logo na primeira noite, resurgiu do medo, fugindo 17't·'oJoaseiro, Oilde está assentado á mão aÙ'eita do Padre
Cicero c ele ollde ainda, ha de sahi" para roubar
O JOASEIHO
NO "FOLK-LORE
261
vivos e mortos; creio no ritle 44, na protecção aos
criminosos, na communicação dos bandidos, na
resurreição dos « barulhos» e na v,¡da aperreada
do sertanejo. Amem!»
José Ignacio, a que o «credo» se refere,
foi chefe politico do municipio de Milagres;
imputam-lhe muitos assassinios, roubos, assaltos e outros crimes. Foi elle o incendiador da villa de Aurora. Perseguido pela policia, durante o governo de Justiniano de Serpa, apezar de protegidissimo pelo deputado
Floro Bartholomeu, (que chegou el discursar
na Camara Foderal em defeza do «Major»
José Ignacio) atravessou os sertões do N 01'deste e conseguiu internar-se em Goyaz, oncle
segundo consta, foi morto num reeontro com
os bandoleir,os de um caudilho goyano. «Bar1'0» era o nome da famosa fazenda de José
Ignacio, por muito tempo velhacouto de sicarios da peior especie.
Como se vê, portanto, o « credo» é uma
satyra pel'loi tissima ...
CAPYfULO XV
CONCLUSÃO
rill
clamor que ~c le\"anta ... - Depoimentos in~uspeitos - As respnsabilidadcs
da
Nação O Joaseiro, UilI índice de incultura geral Quae.,> os rellledios? Considerações tail'ez opportunas -- Alphabe\o e cultura, alphabeto e adaptação -- Até onde nos
podem le\"ur a.s considerações geraes ... - O
problema hrasileiro de cultur:L não é, neste
momento, o prohlema do alphaheto.
¡.!
Lourenço Filho - .Joose;I'O do Perdre Cieel'o.
xv
Desse destino, de sua ralalidade, só escaparemos por um c:uninho: o 10marmas, a seria, a resolução corajosa d,~ mudar de metllOdos - melhodos de educa.çãa, melhodos de
polilica, meUlOdos de legisla;ão, melhodos de
governo. O problema de nOlsa !;ah'al;ão tem
que ser resolvido com oulros crilerios, que
não os crilerios até agora dominantes.
Devemos dora avante jogar cem ractos, e não
oom hypotheses, com realidldes
e não com
ficções, e, por um esforço de vontade heroica, renovar nossas idéas, refazer nossa cultura, reeducar nosso caracter (OLIVEIRA
VIANNA).
A educação publka é a medicina radical. Ella daria ao povo a po>sibilidade de curar-se por suas proprias mão:!, a despeito dos
seus usurpadores.
Mas a educação é tarefa
demorada. (SAMPAIO
DORIA).
A simples enumeração dos fac.:os, que vimos narrando até aqui, confrange a alma de
todo brasileiro culto. Áquelles que nunca deixaram a estreita orla de civilização litoranea, de emprestimo, ha de parecer mes'mo
que exaggeramos. E foi por isso que, deli-
beradamentc, tolhemos (I passo a muitos commentarios que estiveram no bico da penna,
e substituimos scm'pre, onde possivel, o nosso
desvalioso depoimento pessoal, pelas declarações insuspeitas dos filhos da terra, dos
hons cearenses que se têm revoltado contra
ü estado de coisas dos seus sertões, c clamaÚo, em vão, por urn remedio salutar
Tendo
Ieunido todo o material para estes escriptos,
ha mais de um anno, nã.o os publicamos
tambem, sinão agora, por um sentimento natural de rcspeito aos homens cultos do Ceará, de que havia de esperar-se mais dia, me1l0S dia,
uma reacção impressio118,nte contra o Joaseiro. Essa tarefa, que exigirá ainda
multi pIos e constantes esforços, iniciada desde muito por csse varão de Plutarco que é
Hodolpho Theophilo, logrou recentemente a
adhesão do Padre dr. Manoel lVIacedo, que
num pamphleto que resôa por todo o Norte
eomo um portentoso grito de revolta, diso"
:;üca
él,
vida
<la administração
interna
da
Méca do Cariry, denunciando e provando crimes, com' uma coragem inaudita ... Nesta hora, outras vozes eloquentes e destemerosas
se fazem ouvir, por toda a parte. Em Fortaleza, os tres jornaes independentes
«O
Nordeste», «O Ceará», e o « Correio do Cea-
CONCLUSÃO
2G7
rá» - têm profligrado com frases candentes os erros administrativos
e as torpes explorações politicas sobre o extranho phenomena social do Joaseiro, cada dia mais ameaçador e potente ...
Poder-se- ia ainda sus pei tal' desses lIepoimento s ? Talvez, si fossem vozes isoladas.
Elles concordam, porem, na sua essencia, com
os quo têm partido do pessoas sem ligaç.ão algllmél, com a vida politica
cearense, entro as
quêtes so evidenciam Monsonhol' Tabos,-'t Braga, dr. Philipp von Luetzelburg, naturalista
da Universidade de Munich, dI'. Paulo de Moraes Barros, e ainda ha poucos dias, a do
dr. Zenon Fleury Monteiro, que, num ensaio economico-social sobre o Nordeste brasileiro, entre algumas opiniõe~3 talvez um
pouco exaggeradas a respeito do sertanejo,
estampou notas muito precisas sobre o Joasei1'o do Cariry (2) .
(1)
Vide em nota final como essa imprensa inùependente se
manifestou contra a nomeação du Paùre Cicero Romão, para deputado federal, na yaga de Floro Bartholomcu,
(2) DR, PAULO DE :\IORAES BARROS, « Illlpressiies do Nordeste», S. Paulo, 1923; ZE1I:ON FLECRY MO:\TEIRO, « A' ~Iargem
dos Carirys», S. Paulo, 1926.
26~
CAPITULO
XV
:Masnão é só ao grande Estado do Nardeste
que o caso interessa. Interessa a todo o Brasil, a toda a Nação. Porque o Joaseiro é um
indice do absoluto empirismo com que hão
agido sempre os nossos governantes, em face
des maiores problemas sociaes do paiz. Incapazes de prevenir os males naturaes a que
acuellas terras estão sujeitas, não só têm errado, muitas vezes, mas têm tripudiado sable a ignorancia e a miseria, procurando colher, sobre um caso tão clamoroso, seguros
pIOventos pess,oaes ...
E' uma verdade dolorosissima e mnegavel. Como dissimulaI-a?
Este livro não tem, comtudo, a pretensão
de ser um requisitorio contra os possiveis
explorad.ores de tal situação. O requisitaria
está, de ha muito, magistralmente feito, sem
ter logrado levantar uma só palavra de contradicta séria e desinteressada ...
O que se deseja, com a publicaçáo deste
vülume, é contribuir, modestamente embora, para o diagnostico dos males apontados,
na intenção de que' um dia o therapeuta 80-
CO:.lCLUSÁO
269
cial, que nos tem fallecido, se descubra e
se decida a cooperar para um rapido erguimento social dos sertões.
Os remedios estão aos olhos de todos, e
elles se resumem, numa palavra, em maior
liberdade aos escravisados Estados do Norte,
em distribuição de justiça e edLlcação.
* *
A palavra « educação» aquí não significa
apenas ensino primario, ou trabalho alphabetizante. O problema educativo brasileiro é
muito mais complexo dû uma simples alphabetização, que só poderá ser proposta como
solução empirica tambem, pelos que desconheçam o meio e suas necessidades, ou
os resultados sociaes da simples alphabetizaçào.
,Dadas as nossas fracas tradições de cultura, o pro~lema não pode ter uma solução
sim'plis~a como essa. A leitura pod.e ser uma
necessidade publica dû organisação e de progresso, um dos elementos de elevação do individuo, ninguem o nega, mas não é, no momento, nem' a necessidade mais urgente, nem
o elemento essencial das bases da cultura
brasileira.
2ïO
C.\l'ITULO
X\"
Estas aífirmações podem chocar os nossos
e~;pecialistas de gabinete. Tambem ellas me
feriram desagradavelmente,
antes de conhec~r por experiencia propria as condições de
vida do interior do paiz. Comtudo, ellas devem ser discutidas. A questão da quanti¿ade e da qualidade de ensino, num paíz dp
população rarefeita, como {) nosso, é muito
mais seria do que a primeira vista possa
parecer.
Numa população muito disseminada,
VIvendo em pequenos fócos dispersas, sem relação directa com Q progresso do littoral, ao
sertanejü actual pouco ou nada lhE: valerá o
saber ler, apenas. Mais valerá, para cada mil
cabeças, dez cabeças hem formadas, adaptadas ás necessidades
e ao desenvolvimento
da regiilo,
apetrechadas
para
luctar,
"eneül'
e impor-se aos demais, como exemplo e guia,
que novecentos individuos que conheçam o
«abc », sem .outra modificação sensivel de
suas aptidões intellectuaes, sem habitas de
observação c de trabalho, sem energias para
prompta reacção de adaptação de sua gente
ao seu lncIO.
A iIlusão da necessidade e urgencia de
alphabetização,
está na falsa. analogia entre
o grande organismo do paiz, tomado como
CO:\(:L~SÃO
271
uma unidade, e o individuo. As.sim como o
individuo necessita, para apparelhamento indispensaveI de cultura, em nossos dias, de
saber ler e escrever, suppõe-se que a cultura
nacional terá que começar pela imposição a
todos os brasileiros, desse apparelhamento indispensaveI...
O equivoco é manifesto.
A
unidade-nação
não é uma simples somma
arithmetica das unidades-individuo ...
Si a vida mental do paiz fosse outraque
não é; si as nossas tradições de cultura ou
de pseudo-cuItura fossem mais naturaes, dirigidas ao estudo c aproveitamento
do quo
somos e do que podemos; si a sua assimilação fosse tomada pelo proprio povo comó
uma necess;dade viva, imprescindível na lueta pela existencia, a panacéa do alphabeto
teria outro valor - mas não seria tudo, ainda. A verdade, porém, é que esse ambiente
de idéas-fol'ças nos fallece, completamente.
Nossa pretensa cultura, isto é, nosso caricato ensino secundario,
e superior (aliás
« profissional-superior
», pois não temos nenhum instituto de cultura superior desinteressada) ao envez de adaptar-nos á terra, de
nol-a decifrar, - d.esadapta-nos c nos procura isolar della.
Tivemos disto uma demonstração lmpres-
2ï2
CAPITULO
XV
¡.anante, durante tOdoOo tempo que observamos o Nordeste, in-loco.
No Ceará, como cm todos os demais Estados do Norte, a situação mental da popula~ão pode ser assim resumida: vinte por cent.o
:;abe lêr; o resto nã.o .o sabe. Mas é o povo
ignorante que lavra a terra, que planta, que
colhe, cuida do gadoO,extráe as riquezas naturaes e as faí: transportar para os centros
c.onsumidores. A população letrada faz esteril bur.ocracia, quando não criminosa politicagem. E quand.o o flag ello da secca ameaça a vida por tod.os os sertões, é ainda o
analphabeto
que lucta, que empiricamente
descobre .os meioOsde defesa, cavando cacimbas, c;olhendo as pontas das arV.or(~sque sirvam de forragem, tangendo .o gado para as
serras e .os campos frescos do Piauhy ... A
esse tempo o letra.$:lo faz sonetos e appeIla
para as subscripções doOsul... Não .o faz por
mal: fal-o, por desaptação mental aos verdadeiros problemas de sua terra, por incapacidade de acção intelligente e efficaz.
O sertanejo, embora analphabeto,
é um
sêr empiricamente
adaptado ao meio. Tão
adaptado que difficilmente emmigra, e quando o faz, volta sempre ao torrão natal. O
letrado, ao contrario, é um sêr, desadaptado
t
CONCLuSÃO
273
em sua tena, pela qual é incapaz de praticar
o minima acta de melhoria. As excepções,
como a desse politico sui-generi'3 que é o
sr. Ildefonso Albano, para citar um exem'plo,
confirm'am a regra: não são productos da
educação brasileira (1).
O llOrnem do serlão, o «Mané-Chique-Chique », rude e ignorante, é o homem' da lucta,
do valor, e mau grado a syphilis, a bouba,
as verminoses e o trachoma, é ainda a vida
e o verdadeiro progresso, embora lento como
o seu carro de bois. E' a unica força economica daquellas regiões. O letrado actual é
o parasita. E como a administração está em
suas mãos, a situação tende a perp¡;tuar-se ...
Longe estamos da intenção de fazer o elogio da ignorancia. Justamente por isso, até,
é que estamos abordando aqui o assum'pto.
O que é facto é que a ignorancia, sobredoirada com o alphabeto, desadapta, e extirpa,
muitas vezes, as melhores qualidades m'oraes
do individuo.
Precisamos já, urgentemente,
immediatamente, .- emquanto é tempo I - de appare-
(1) O sr. Ildefonso Albano educou-se na Austria. Sua adiviùade de boa propaganda. pelos verdadeiros problemas do Nordeste fel-o con}¡ecido em todo o paiz.
27..Jo
CAPITULO
XY
lhos de ,rerdadeira cultura, chamem-se institutos technicos .ou universidades,
ern: que
se preparem homens que decifrem os nossos verdadeiros problemas, á luz da sciencia experimental. Lampe}os dessa verdadeira
cultura, no sentido normal da palavra, tem
produzido, com o mesmo homem rude dos
sertões, com o mesmo mestiço que os pseudo-letrados desabonam - maravilhas de vida
e progresso, como essas surprohendentes
cidades americanas que Frederico Lundgren e
Delmiro de Gouveia fizeram surgir, uma, em
plena matta virgem do litoral parahybano,
e on tra dos carrascaes e penedos das margens
do S. Francisco ...
O problema cultural brasileiro se resume
neste momento, mais que tudo, numa formação de elites. Porque, dado ainda, que elle se
pudesse resolver com o mesmo exito, pela
alphabetização
extensa e pela formação de
elites, a primeira solução nos seria impossivel, neste momento, pelas despezas Iormidaveis que acarreta. E' sabido que não ha ensino mais dispendioso que o ensino primario. Quanto nos custariam as escolas para os
seis
milhões
de
el'ianças
brasileiras'!
Ade-
mais, ellas nada significariam, para a coordenação mental qne falta ao paiz, sem a
CùNCLU:->Ao
275
mesilla creação urgente de um apparelho de
cultura teehnica e superior, que fornecesse á
grande massa os seus technicos, os seus
guias, os seus administradores,
os seus verdadeiros politicos, capazes de comprehendérem as legitimas necessidades e aspirações
do paiz, e de resolveI-as praticamente.
Porque não cOIYJ.eçarpelo que é possivel
realÍsar já, dentro das nossas possibilidades
actua-as ?
Os resultados não tardariam a apparecer,
como Julio de Mesquita Filho o demonstrou,
no estudo a que alludimos no preJacio deste
livro:
« Como se verificou em todo o mundo, deveremos começar por formular o problema
brasileiro - tarefa a que só os espiritos superiormente dotados e cultivados s,e poderão
abalançar - para depois procurarmos a sua
solução, pelo esforço conjugado e methodisado de toda a nação. Se nos resolvessemos
de um instante para outro a criar, com' o concurs.o de personalidades seleccionadas entre
os elementos tão abundantes nos ve;hos centros de cultura da Europa, tres universidades,
no centro, no sul e no norte do paiz, attendendo ás differenças do meio brasileiro, em
pouco tempo, em dez ou quinze annas, não
~'76
L\PlTULO
xr
mais, vertamos operar-se, estamos certos, milagrosa transformação
na mentalidade brasileira. Refundida a nossa eultura e resiabelecida a disciplina na mentalidade do povo,
s;ob a acção purificadora daquelles nucIeos
de meditação e estudos, não tardaria que a
nação se aquietasse e que desapparecessem
os vicias innumeraveis do nosso apparelhamento politico-administl'ativû~
oriundos .. na
sua quasi totalidade~ da assustadora
insufficiencia cultural dos nossos homens publicas. Filtrada atravez dos varios estractos que
constituem normalmente uma sociedade 01'ganisada e perfeitamente articulada, a acção
das elites formadas no cadinho dos centros
superiores de cultura reflectir-se-ia na consciencia popular. Esta não deixaria de reagir henefica e efficientemente ante as tentativas periodicas e cada :vez mais ousadas
dos detentores do poder, hostis ás liberdades
individuaes (1). »
Sem se descuidar do ensino primaria e
do ensinoprofissional,
cuja extensão
Ina
tendo a marcha normal das nossas possibilidades economi~as, esses apparelhos de verdadeira cultura acabariam por produzir não
(1)
«A crise Nacíonal»,
S. Paulo,
1926. pg. 90.
CONCLUSÃO
277
só a mais bcnefica coordenação rne:1tal, como
criariam o ambiente propicio para um trabalho de educação popular extensa, pela esoola, pela igreja, pelo livro, pelo cinema,
pelo radio ...
.
*
:::
E nessa epoca, mal soarão, como evocações
de um passado ominoso, as lembranças dos
males sociaes que não podemos agora esconder, como esse, quasi incrivel, do Joaseiro do Padre Cicero ...
NOTAS
1. 2. -3. 4. S. -
A flora do Ceará.
Noticia historica sobre as seccas.
O Joaseiro e o ensim.opublico.
A intervenção no Ceará.
Padre Cicero deputalio.
NOTAS
1. -
A flora do Ceará
A distribuição dos vegetaes espontaneos sobre
um territorio é o reflexo fiel das condiç,ões physicas
que nelle predominam, porque as planta~ são directamente dependentes da qualidade e da quantidade de
nutrição no sÓlo, de combinação com a temperatura e
o grau hygrometrico do ambiente e suas precipitaç,õcs. Possnem, é verdade, uma certa latitude de adaptação e, ás vezes, os extremos biologicc>s podem ter
certa amplitude, mas sempJ'e dentro de limÎtes fixos.
Cada vez, porem, que alguma mudança radical se
opera em qualquer dos factores, influe isso no sentido
de especializar a flôr !laquelle lugar, ainda que os outros factores permaneçam os mesmos. São essas tambem as razões por que na flóra cearem,e se distinguem tres principaes agrupamentos flori:3ticos: o do
littoral, o das serras e o das planicies, üu do sertão
correspondente-s a tres zonas climatericas cm que se
divide o Estado. Mas, como dentro de cada uma destas zonas c1imatericas, os outros factores physicos nem
sempre se conservam inalterados, as suas influencias
sobre a vegetação se exercem de modos diversos, e
282
NOT AS
os agrupamento~ floristicos soffrem modificações que
se manifestam por differença~ correspondentes ás IIi·
vcrsirlalles (laqllelks factores physicos.
o LJTTOIL\L. -- Assim é C]ue na extensa zona do
littoral, cujo clima é bem defini(lo e ccnstante, ató
uma distancia mais ou meno" considel'[¡vel terra a
dentro, a topogl'aphia e a constituição do solo determinam todavia. tacs varia~'ões na flora ([ue obrigam
a uma divisão em sociedades floristicas, conforme a
maior ou menor resistencia das especies ás emanações
salinas maritimas ou capacidade para ada?tarem-se ás
condições que resultam da pl'edominaneia da areia
ou da argila. Influe ahi tambem a elevação, criando
outras condições llas montanhas que so prolongam
para dentro dessa zona. Ha, pois, a distinguir, no agrupamento (10 littoral, a soeiedalle floristica das plantas
das areia,;;, ou psammophilas:
a sociedade das que
habitam os terrenos baixos, humidos e argilosos, ou
hydrophilas,
e a das que povoam as montanhas cost.eiras, ou plantas hygroJ1hilas, que, por isso mesmo,
pertencem ao agrupamento das serras, ou dryaUco.
Por delra? das dunas, onde as montanhas não irrompem, estende-se
uma larga faixa de terrenos, ora le••.
-emente ondulados,
ora inteiramente planos c humidos, até muitas vezes
alagadiços, de dez a trinta kilometros de largura, com
uma flom peculiar curiosa, caraderizD.da pelo seu
porte, mais arbustÍ\ro do que arborescente, e sua physionomia de pseudo xerophila. São vegeta es admiravelmente apparelhados
para enfrentar as frequentes
alternações de sêcca e de humidade, quer atmospheSOCIEDADE
HYDROPHJLA.
-
283
NOT AS
riras, quer do solo. (Alberto
tanicas do Ceará»).
Loefgren
« Nota::; Bo-
As SEHHAS.- FLORA DAS MONTANIL\.S.-- Nas
serras do Ceará, cujas altitudes variam de 600 a 1.100
metros, a matta se ostenta com os caracteres hydrophilos e dryaticos; a associação arborea é mais desenvolvida e rica em variedade, emquanto que a as.sociação herbacea é menos interessante.
FLORA DOS ALTOSPINCAROS E ASSENTADAS.Consta ella principalmente de arbustos na sua maioria
rasteiros e rie hervas.
o SEHTiÏ.O.- E' o sertão o mais interessante sitio fJoristico, do territorio cearense, que:~ pela sua extensão, e pelo contraste frisante da vegetação, quer
pela sua influencia em quasi todos os ramos da actividade industrial daquelIa vasta zona.
1.\ o serti'io distinguem-se:
A CAATINGA.- A feição topograp;lica do inteterior do Ceará, limitada pelas cordilhoiras lateraes,
é, corno vimos, a de uma grande planicie, suavemente inclinada do sul para o norte por degraus ou taboleiros, sobre os quaes as elevações tOJas emergem
como outras tantas ilhas. Resulta desta disposição a
grande unifOlmidade que se nota na sua flora porque
contrihue es~encialmentepara
igualar Bobre a area
total as feiç{ies climatologicas em cada uma das estações do anno e tornar quasi que identicas as COIldições physkas de um extremo a outro da planicie.
(Alberto Loefgren - Obra citada).
NOTAS
A caatinga que cobre tres quintas parles do territorio cearense e quasi completamente o :3ertão, assignala-se pela escassa apparencia da associaç-ão arbarca, embora persistente;
como que esmaecida se
reduz no porte c na variedade pela rudeza do clima
e impropriedade do solo rijo e adelgaçado. A associação herbacea, variada e rica, quasi toda periodica,
nistura-se
áquella. No inverno misturam-se arvores
f arbustos,
entrelaçando-se numa confusão uberrima
Le viço c força, formando uma unica associação mixta
l: hydrophila,
no estio se bem que permaneça lUna
{, unica, a associação floristica torna-se ;œrophila e
:'eduzida a especies arboreas ou arbustivas resistentes
l~ ás poucas hervas
rudes e coreaceas que conseguem
\Tencer o quasi sempre longo tempo secco.
A VEGETAÇÃO DAS conOAS. - Nas coroas frescas
tie solo profundo e humifero dos rios e riachos, ve~ehun com mais vigor todas aS especies arborescentes,
arbustivas ou herbaceas das c:aatingas;
A
ELORA
DOS
pES
DE
SERRAS
E SERROTES
DO
cuja vegetação embora mais densa do que
na caatinga, é mais baixa e a herva IDL'IlOS variada
e pouco desenvolvida. Ás vezes as arvores apresentam notavel crescimento.
SERTÃO,
A FLORA DAS YARZ.EAS BA[XAS E LAGOAS possue
uma vegetação herbacea: rica em especie:; cujas flores são de agrad~vel odor e bellas.
A
FLORA
DOS TABOLEIROS
GOSOS DO INTERIOR
ARENOSOS
é pouca e enfezada;
OU PEDIŒ-
neste sitio
NOTAS
285
floristico o' que caracteriza o seu aspedo são as cactaceas e bromeliaceas destacando-se o chique-chique,
o cardeiro, o mandacarú, o cabeça de fmde, a macambira, etc.
A FLORA DO LEITO ARE~OSO DOS RIOS, com abundantes moitas de resistente jaramataia (Thomaz Pompeu Sobrinho - « Esboço Physiographico do Ceará»).
(Do « Annuario Estatistico do Ceará », dirigido pelo
DI'. G. de Sonsa Pinto, 1922).
2. -- Noticia historica sobre as seccas
No Ceará, como em todo o Nordeste, não ha sinão
duas estações no anno: o inverno (estaçáo das aguas)
e o verão (estação da secca). A primeira vite de fevereiro a junho, nos annos normaes, principiando com
o solsticio de março. O sertanejo aguarda ancioso o
dia de S. .Tosé (19 de Março) mormnnte se nada.
annunciou á~ suas esperanças o dia de Santa Luzia
(13 de dezembro). Em setembro, mez de fortes ventanias, caem neblinas ou pequenas chuvas; são as chuvas que o povo chama « de caju », por prepararem a
£loração dos cajueiros.
Em dezembro: nos anTlOs
normaes caem pequenas chuvas ou, si o inverno é
forte, grandes aguaceiros.
O phenom€lLo da secca
terni flagellado periodicamente o Ceará, apparecendo
sempre, com intervallos muito irregulares; sua duração tambem tem variado de um a quatro annos
seguidos. O Barão de Studart, na sua « Geographia
ùo Ceará» (typ. Minerva, Fortaleza, 19:~4) dá o seguinte quadro das seceas havidas desde 1605:
286
NOT AS
DURA.ÇÃO
UNO
1605-1606
1614
1692
1711
1721-1725
1736-1737
1745-1746
1754
1777 -1778
1790-1793
1804
1809
1816-1817
1824-1825
1830
1844-1845
1877-1879
1888-1889
1898
1900
1903
1907
1915
1919
2 annos
1 anno
1 »
1 »
4 annos
2
2
1 anno
2 annos
»
3
1 anno
1 »
2 annos
»
2
anno
1
2 annos
»
3
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2
»
1 anno
1
1 »
1 »
1 »
1 »
I}
PERIÜDO
INTERJlE:OU.RIO
8 annos
78
29
10
11
8
8
23
12
11
5
7
7
5
14
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9
9
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Do quadro exposto vê-se que a secca acompanha
o Ceará desde o inieio de sua vida historica. Experimentou-lhe os terriveis rigores Pero Coelho de Souza,
o chefe da primeira bandeira, vinda ao seu descohrimento.
NOTAS
287
A de 1721-1725 extendeu-se ao Pia.uhy c sertões
de Pernambuco e Bahia.
A' de 1745 referem-se as actas de vercações da
Camara de Fortaleza· o os escriptos do jesuita João
Brewer.
Foi tremenda a de 1790 a 1793, conhecida na
tradicção popular por secca grande. Nunca vista, disse
della Feo Torres, inaudita, chamou-lhe Bernardo Manoel de Vaseonoollos, a que deixou mms tradicções
tristes disse Pompou, a m.ais extensa e fatal affirmou
Araripe, a maior das seccas escreveu Abreu e Lima.
A esta sobrepujou todavia, a todos os respeitos a catastrophe de 1877-79.
Extensa, profundamente devastadora. foi com effeito a secca de 1790 a 1793, que Ayres de CazaI
na sua Chorographia colloca nos annOB de 1792 a
1796; no entretanto, como acontecera na de 1777 que
foi precedida de copiosos invernos de 1775 a 1776,
chovera regularmente em 1789 e até o Jaguaribe dera
cheia.
Tristes recorcla,'ões deixaram igualrr..ente as seccas de 1824-1825 e 1845, a primeira deUas vinda em
epoca de tremenda ('fise politica e guerra civil e
acompanhada de epidemias, mormente a da variola;
umbas, porém, dão uma mui pallida idéa dos horrores da qne se lhes seguiu, a chrismada pelo povo
de secca dos tres oito.
1877 -78-7H representam o acumen da desolação
e elos soffrimcntos da população cearense, o reinado
da variola soh todas as formas e com intensidade
nunca vista em paiz algum do globo, havendo o obituario de Fortaleza em 1878 se elevado a 57.780
NOTAS
.nortes 24.989 Ú. conta de variola. Custou ao Ceará
:l. secca de 1877-79 a ruina de toda a fortuna particular, o desapparecimento total da industria eriador!l,
180.000 mortos, cabendo 67.267 a Fortaleza, e 125.000
expatriados.
O inventario da secca de 1915, em que a caridade
do Arcebispo D. Manuel Gome:,; tanto sobresaiu, deu
as tristes notas seguintes; 30.000 cearenses mortos,
42.000 emigrados, importação de cereaes no valor
de 14.443 contos de réis, perda de 680.000 bovinos,
2.441.000 caprinos e ovinos, 211.000 cavallares, 112.000
asininos e muares e 243.000 suinos, tudo no valor de
95.000 contos. Sabido, como é, que o Ceará tem as
suas riquezas na agricultura e na industria pastoril
facil é avaliar em que condições ficOll após o flagello desse anno.
O arUlO de 1919 regista a ultima crise climatcrica
com que a natureza inclemente tem infelicitado o
Ceará. Seus effeitos crueis estão bem presentes fJ.
memoria de todos. (Barão de Studart oh. cit.).
A chronica pormenorisada das seccas, desde a de
1877, tem sido feita pelo grande escriptor cearense
Rodolpho Theophilo, tambem apreciado romancista e
naturalista.
a. -
O Joaseiro
e o Ensino
I)ublieo
Que o Padre Cicero Romão Bapti~:)ta nunca se
interessou pela instrucção, e mais - que a tem embaraçado algumas vezes - pode o autor deste modesto livro affirmal-o com o seu testemunho pessoal.
Em 1922, sob a presidencia do saudoso DI'. Justiniano
NOTAS
289
Serpa, iniciou o governo do Ceará um seria movimento em prÓI do ensino primario. Como medida preliminar, levantou a Directoria de InstruGção Publica,
com o auxilio das municipalidades,
o {(Cadastro Escolar », serviço que reunia os dados de recenseamento
das crianças de 6 a 12 annas, sua localisaçãa, oHerecimentos de casas para escolas, pensão a professores, indicação dos paes dos alumnos Eob programmas, horario!'; e ferias, etc. Todas as municipalidades participaram do movimento oom notavel enthusiasmo. Em todos os municipios se fez o serviço do
Cadastro, e, num graride numero delles o serviço
foi quasi perfeito.
No Joase:ro, porém, foi impossivel leval-o a cabo.
O Padre Cicero Romão como Prefeito Municipal, não
só se desinteressou da questão: prohibi'.l que ali se
fizessem as indagações necessarias I
Considers.ndo as informações de sells auxiliares
como exaggeradas ou tendenciosas, o autor deste livro, que occupava em commissáo o cargo de director
do ensino, foi entender-se pessoalmente oom o Prefeito ùo Joaseiro. Nada pôde conseguir. NãO' conseguiu, tambem, como era de seu desejo, estabelecer
nessa localidade um grupo escolar, e futuramente um
aprendizado profissional. A's repetidas objecções do
director do ensino, o Padre respondia sempre que as
duas escolas existentes não tinham sua matricula completa, e que, portanto, seria inutil creal' mais escolas ... Entretanto, lugares muito menores, mais afastados de estrada de ferro, possuem desde 1923 grupos
escolares e escolas reunidas funccionalldo regularmente.
290
NOTAS
A proposito convem insistir ;lllui sobre um engano de informação contido nas interessantes conferencias do Dr. Paulo de Moraes Barros, sobre o Nordeste (Impressões do Nordeste Brasileiro) engano esse
que o eminente patricia clesfez quando estampou em
volume o seu notavel trabalho. O DI'. Paulo de Moraes
fôra informado de que no Joaseiro havia 82 escolas
particulares, e sincero como sempre, referiu-se a ellas, com enthusia.c;mo, quando deu él publico as ~maR
impressões sobre a Méca do Cariry. Essa falsa informação serviu como o maior argumento aos defensores do Padre Cicero, na occasião em que tentou
responder ás conferencias do Dr. Moraes Barros, na
Camara Federal, o fallecido dl'. Floro Bartholom('lI.
O engano era evidentissimo. Em 1922, quando o dr.
Moraes Barros passou pelo Ceará, havia em todo o
Estado apenas 205 escolas particulares. Em Fortaleza,
cidade de quasi cem mil habitantes, era de 28 o l';eu
numero. Como seria possivel apresentar o Joaseiro
82? Aliás, no seu discurso de defeza, o dI'. Floro habilmente fugiu sempre a qualquer affinnação peremptoria a respeito. Na estatistica publicada em 1922._
pela Directoria de Instrucção do Ceará, ha as seguintes notas sobre o Joaseiro: «População total do
municipio, 22.077; população escolar (calculada, porque o Prefeito Municipal obstou o recenseamento)
2.758; escolas estaduaes, 3; matricula, 178, frequencia, 114; escolas municipaes, O; esco]a.<; particulares, O; matricula geral, 177; frequencia. geral, 114.
Crianças em edade escolar frequentando escolas, 6 % ;
crianças sem escolas, 940/ù ll. Pela mesma estatistica.
se vê que os municipios com menor porcentag{'m
NOTAS
291
de crianças em escolas eram os de 1p ~Ieiras (5 Ojo) ('
Joasciro (6 Ojo). Essa é que é a verdade sobre as
escolas da Méca do Cariry. Depois de 1923, o governo do Ceará estabeleceu 16 grupos escolares no
interior do Estadû. No Joaseiro, porem', nada foi
possivel fazer até agora.
:¡'. -
A intervençãü nü Ceará
Quando os fanaticos do Padre Cicero ccrcavam
a capital de Fortaleza, a Associação Commercial dessa
Capital se dirigiu ao Coronel Setembrino de Carvalho, inspector da Região Militar que ahi se encontrava, tendo á sua disposição 1.500 homens do exercito, pedindo que interviesse de qualquer modo, para
evitar a invasão da cidade. Sua resposta foi a scguinte:
Il' Região da Inspecção Permarlente.
Quartel General de Fortaleza, 27 de Fevereiro de
1914, N.o 91.
Illmo. Sr. José Gentil A. de Car'Talho. D. Presidente da Associação Commercial do Ceará.
Em meu poder o officio n.O 17 de hontem datado
que me dirigiu a Associação Commercial, que V. Exc.
preside e no qual me consulta si o commercia, na
conjectura de uma invasão desta capital pelas forças
opposicionistas ao governo do Exmo. Sr. Cel. Marcos
Franco Rabello, pode contar com gamntias e seguranças por parte da força federal aqui estacionada.
Em resposta confirmo o que disse na conferencia a
que se refere V. Exc., isto é, que a força feùeral ga«
2J2
NOTAS
f;lntirá o direito de vida e de propriedade sempre
que for ameaçada e quando a autoridade estadoal for
impotente para assegural-o. Bem r~rto é, porem, que,
s'~ vier travar-se alguma acção nas ruas desta capital
c !tre as forças belligerantes, muito diíficil ¡:erá, senão
li uasi impossivel, tornar effeçtivas aquellas garantias,
rois a intervenção da força federal neste momento
critico IaJ-a-hia assumir o papel de um terceiro comt atente envolvendo-se em uma luda á qual ella deve
s~r extranha. Assim sendo mandam a prudencia, o
patriotismo e o sentimento de humanidade, que os
elementos conservadores desta capital, façam convergir os seus melhores esforços no sentido de evitarem
que esta cidade venha a ser theatro de uma cruenta
Iucta fratricida de lamenta veis consequencias.
Devem todos honesta e dignamente buscar uma
hl'mula que neste momento se impõe, capaz d~ rcsolver efIicazmente a contenda politica que empolga
este Estado e que tanto tem perturbado a v,idá politica, economica e social.
A proposito posso affirmaI' a V. Exc. que a representação cearense no Congresso Federal, propoz
(j,O Exmo.
Sr. Cel. .Marcos Franco RabeIlo, um alvitre
(apaz de solucionar a crise. Aquella representação
l'ropoz a renuncia dos cargos de presidente e vicepresidente, membros da assembléa legislativa tIo Estado, de ambos os partidos e entrega do poder ao Governo Federal, que resolverá a situação actual como
melhor aconselharem o seu patriotismo e grandes interesses do Estado, ficando assentado que o futuro
presidente será um politico extranho á a.ctual conlenda, e que as eleições serão feitas com toda a li-
293
NOTAS
berdade perante mezas organizadas pelas municipalidades eleitas em Maio de 1912. Aproveito a opportunidade para apresentar a V. Exc. os protestos de
alta estima e consideraçáo. Saude e Fraternidade. Cel. Fernando Setcmbrino de Carvalho: dou fé. Fortaleza, 4 de Março de 1914. Pergentino Augusto Maia. »
«Instrucções
expedidas
pelo SI'. Ministro do
Interior e Justiça. Ao Exmo. Sr. Cel. Fernando Setembrino de Carvalho. Sr. Coronel. De accorda com o
lleereto de 15 do corrente, que determina a intervenção do Govarno Federal no Estado do Ceará, nos termos do n. 2 do art. 6.° da Constituição da Republica,
c vos investiu da qualidade de represe.ltante do mesmo nesse acta de exercicio da autoridade nacional,
para o fim de restabelecer ali a normalidade do governo repul¡licano, a efficacia das leis e a seguranç.a
das garantias de todos os direitos, tenho a satisfação
de commun:'.car-vos as instrucções que devem servir
de norma ao vosso procedimento no desempenho da
missão con2iada á vossa oompetenci1l., patriotismo,
integridade e zelo republicano.
O fim da Intervenção, que é restabelecer o govemo repul:Iicano, radicalmente
deturpado em sua
applicação no Ceará, e o imperio das leis, adormer:ido na sua acção garantidora e~tá expressamente
determinado no decreto que a declarou. Para praticamente tarnal-a effectiva executareis o seguinte: 1.0
assumireis o exercício do poder executivo do EMado,
publicando um decreto declarando a VOS3ainvestidura
nelle por força da Intervenção decretada a 14 do mez
eorrentc e consequente escolha da vossa pessoa para
effcctival-a em nome do governo federal; 2. no exer0
294
NOTAS
CII~IO
do poder executivo vos limitareis aos actos de
ulministração indispensaveis para evitar a solução de
ccntinuídade na vida do Estado, tudo de aec:ordo com
a Constituição e leis nelle em vigor; 3. as nomeações
para os lugares vagos ou que forem vagando em virÜ: de de exonerações
que julgardes necessarias para
o bom desempenho de vossa misgão, deveís fazer COllsiderando os nomeados em commissão; 4.0 mandareis
lego proceder ao balanço no Thesouro do Estado, en·
cl~rrando a escripta dos livros do mesmo e abrindo-se
¡DVa e especial durante o periodo da Intervenção;
5.0 providencíareis
para a manutenção da ordem de
accordo com as leis e com a autoridade c·om que
vos achaes investido como Inspector da Hegião MiJitar, em virtude do acta do Govemo Federal, qne
declarou o estado de sitio para esse Estado, empregando para isso alem da força estadoal, a força federal sob vosso commando. bem eomo requisitando o
a.uxilio das forças de mar, ahi destacadas, para iilto
iflstruidas pelo ministro da marinha; 6. a acção do
Governo Federal nesse Estado não podendo ea-existir
com a situação revolucionaria em que o mesmo se
acha fareis dissolver e desarmar quaesquer grupos
,rregulares que existam ou se apresentem sob qual'Iuer nome, ou em qualquer localidade, o mesmo fa:œndo se julgardes conveniente com as forças da policia local, que podereis reorganisar;
7." na vo:,;sa
qualidade de representante
do Governo Federal no
acta da Intervenção nesse Estado gosareis de livre
franquia para vossa correspondencia
pelo Correio e
0
Telegrapho Nacional; 8. assegurada a ordem e garantidos os direitos ahí feridos pela anornala situaçã.o
0
0
NOTAS
2!J5
em que se eneontra esse Estado, providenciareis acerca da reorganisação dos seus poderes legislativo e
executivo, marcando do accordo com a Constituição
e leis do Ceará, eleiç.ões para dentro do mais breve
praso possivel, expedindo instrucções e praticando
todos os actos indispensaveis para que as mesmas se
realizem, assegurando completa liberdade de voto e
regular e honesta apuração dos suffragio~,; 9.° quando
terminada a vossa missão de representante
do Govemo Federal no acta da Intervenção no Ceará, apresentareis ao mesmo, por intermedio deste Ministerio, a
que ficaes subordinado, na qualidade de delegado do
Governo Federal na Intervenção, circumstanciado relatorio dos actos praticados durante a mesma. - Herculano de Freitas, ministro da Justiça e NegoCios do
Interior. »
,3. -
Padre
Cicero Deputad.o
Sob o titulo « Crueldade e ridiculo que deviam
ser evitados », publicou o diario « O CeLrá », de Fortaleza, em seu numero de ~ de abril è.este anno, o
seguinte arti;:;o editorial:
« O Ceará em peso ficou certo hontem de que o
padre Cicero acceitou a sua candidatura para representante do Estado.
O seu telegramma ao deputado José Accioly, por
nós divulgado, afastou a ultima esperança de que o
conhecido sa~erdote, em um assomo de bom senso,
recusasse um mandato a que não pode, por motivos
diversos, dar cabal desempenho.
S. s. não só acceitou o honroso posto mas t.am-
296
N OT AS
bem aproveitou a opportunidade
para manifestar o
seu resentimento contra os que se insurgiram contra
essa idéa.
Estando nós entre os que pensam dever ser a representação de um Estado confiada a sua elite intellectual e aos seus valores sociaes, enfileirámo-nos por
isso na legião contraria á indicação do nome do chefe
politico do Joaseiro.
Comnosco está, nesse caso, a quasi unanimidade
da poplùação cearense, o que não impede a victoria
da insignificante minoria do outro lado. Sempre fomos, e continuaremos a sÔ-]o por muito tempo, governados por essa parceIla diminuta do povo, constituida
pelos politicos profissionaes.
A falla de organização das classes, it ignorancia
das massas, a ausencia de imprensa independente, todos esses factores permittirão que os detentores da::;
posiç'ões de mando continÚem imperturbaveis a dirigir
a coisa publica sem consultar o scntir popular.
Pouco lhes importam as sympathias ou it execração da coIlectividade; o que lhes interessa é o monopolio dos cargos de ande possam eternizar o seu prestigio.
De nossa parte, estamos certos de que os cearenses não nos farão a injuria de suppõr que os motivos
determinantes da nossa attitude sejam dicta.dos por interesses partidarios ou por affeições ou inimizades
pessoaes.
E' -nos indifferente que o padre Cicero pertença á
facção a ou b, e da sua pessoa jamais reeebemos scnão provas de attenção cavalheiresca.
Distinguimos, porém, o homem publico do parti-
~OTAS
2\)7
cular. Devido a essa estranha confusão é que cada aggremiação politica que attinge o poder, divide entre os
seu parentes e amigos do peito os cargos por sua natureza destinados aos mais capazes, aos mais dignos.
Examinemos a candidatura do padre Cicero á luz
desse criterio e a conclusão que se impÔe aos seus
maiores admiradores é que, mais uma vez, fomos mal
succedidos Ita escolha dos nossos representantes.
Possúe o candidato conservador encqia physica
e capacidade intellectual para desempenha.r com effÏciencia o mandato que se lhe vae confiar em nome
elo povo?
Evidentemente; não.
Octogenario, de saúde profundamente combalida,
faltar-lhe-á talvez a força para emprehender uma viagem ao Rio, onde tem de exercer as suas Ùmcções de
nosso mandatario.
Sob o ponto de vista cultural, por mais baixo que
esteja o nivel da Camara, s. s. não está em condições
de representar a inteHectualidade cearense. De inteHigencia não acima do commum, tendo a illustração
theologiea dos seus pares, o pastor do Joaseiro, por
ter confinado toda a sua vida na estreiteza do meio
sertanejo, é hoje um cerebro anky los ado, :?ovoado Je
imagens do fana.tismo e do cangaceirismo.
Se, á semelhança do general Potyguara, o novo
deputado pretende ficar-se por aqui, sem tomar parte
nos trabalhos legislativos, nós temos o dire:ito de protestar contra essa transformação da bancada cearense
em asylo de invalidas.
Se, ao contrario, concentrando as suas ultimas
energias, s. s. fôr ao Rio, assiste-nos tambem a razão
~OTAS
de salientar o ridiculo que recairá sobre todos nós oorn
a recepção do povo carioca ao legendario chcfe de fanaticos.
Imaginemos, por instante, a scena grotesca que
será o desembarque, na capital do paiz, do novo emis::;ario do povo cearensc.
Annunciada por todos os jornaes a sua vinda, a
população accorrerá ao caes para vêr a preciosidade
que lhe envia o Ceará..
A figura do padrc, com o seu longo bastão de
pastor de cinema, ao lado da beata «J{ocinha », de
quem jamais se separa, constituirá «um numero »,
servirá de pasto aos jornaes e revistas cariocas, durante uma semana.
E quando, sempre de bastão, sempre acompanhada da beata, fùr ao Cattete retribuir os cumprimentos
<10 chefe da nação a que naturalmente chamará. «meu
camaradinha », então a scena será de um pittoresco
í rresisti vel.
Tudo isso só não prevêe!Il os politicos do Estado
porque a esses é indifferente o conceito em que possamos ser tidos.
Se mais zelosos pelo nome do Ceará e mais amigos do padre Cicero, os chefes dos nossos partidos
convenceriam ao velho sacerdote, para cuja vaidade
agora appellaram, que se retrahisse na sua modestia
joaseircllse e terminasse pacificamente os seus dias,
entre os fanaticos, seus filhos predilectos, e os bandoleiros, nutridos da sua tolerancia.»
INDICE
Prefacio
7
CAPITULO I
ç:ão -
l"
Em caminho.
)fergull,anùo
no pnssado - O Nordeste, spio yi,'o da tradi-
: Era assim
no tPll1PO do Imperio ... - -
ùe um ùrama formidavel e sempre rcnovaùo ;la, ciùaùe
<lo tempo
presente,
-
ao Jousciro
"
De.;rsprfos
De Fortaleelo C-nriry, ar-
raial de aUlanho.
CAPITLLO II -
31
A Méca dos sertões
Seenas e quadros de fanatismo - (;m ",uuinho pontilhado
de cruzes - A íarandula dos penitentes - ,Vae ..iyo ou
morto '! - Il\conscientes semeaùores ùa morte c d,,- loucura.
Dois traços a respeito ùa natureza da regiiío - O Corir)'.
um caso de insularidade ùas terras hahitadas,
CAPITULO III -
Transpondo
47
as trincheiras.,.
As defesas ,lo antro - Cru fosso de tres legu,,-s. ah)fto l'lu
seis dias - No seio da )[éca - As casas dos romeiros por
dentro c por fÔra. mi.:¡cria e na (l¡)r -
CAPlTlJLO IV -
Uma chiade nascp.nte, emmohlurüda.
A irrrcja dos c: milagres ~.
na
61
No reino da insania
Em frente a casa do • Padrinho, . - :'I[ati?es ùe ff ( crcùulidaùe - Sin!)'ul,,-ridades de um culto SCIII ritual - Oração
expressiva _. O ' Beato da Cru? - - Seen"-s de sahbnt no
sol <10mcio-,lia .•. - Acolhido ao tabernaeulo,
CAPITULO V -
<
Um homem l
Ecce lIomo l.
;:;-t,o, uma sombra - Talvez
RetrMo ph)'sico do • Padriuho,
personalidade
nio , '., -
-
Opiniões
dh'ersas
ï5
c esboço de su"- singular
-
O 'luP. diri", um especialista,
c
já o mial¡¡re",
Sa.nto
ou c demo ..
300
I:\DICE
CAPlTrI.O
YI -
O • alter,ego
, .,,
107
..I rena ne dyer dl'rnais",
- ('n: capitulo diffiril
ne escre'
vcr'se - O inrnho r elo P.l(lrC (' hbtoria
de 3eu llominio ...
TC''>{C'Illunhn
fidedig-no.
1
CAPITI1LO
VII -
Os rnilagrrs,
..
117
.: ~ n milagre
(tlH' torna
H a.utoritlndr.
patente ... 't - A bent:1. Marja
de Araujo (' sell!=! rnil:1gre~ -- 'l'ransf()rma-~('
f'I1l
·':ln~llp. rubro
I' palpitnntc
a ho~tin
com;af{radu ... - Repprf\l1s"lão tio plH~nomPJlo fi foll:Lq int'''rprrta.çf¡eS
- A a('~'ão (]e'
D. Toaquim Vif'ir1-, bispo dI) Cf':trá - ()~ Co milagre ...•~ m('norf'~..•
CAPITULO
VIII -. O «Boi
Santo>
133
Um caso (Ir totpmismo
-: São, sÎ1nples t3bÚ ...
Uma proI1lc~.sa curio~n. P. Reu não Illeno~ curio.;;o c1("'('nlnc~ - A ~antifi<':lç;to no boi, mila.grf"~. frrnJlcl·"'>z:l. flo ùr(,~Hlen(~i.l
...
CAPITULO
IX -
A sedição
de H113 - Causas
14ó
Illscripçùes
"obrcpostas
de luto " de .lûr - Hollie mihi eras
t ihi, ., - Uma olygarchia.
banida
e um go\'erno
promissor
- Cn.mpa.nha contra
o bnnditi!"mo
e sua ...i eonsC'qll('nciu~.
-~
Rcllexo na politi"a
de Pilliwiro
:\Iachado
- and,' 'o vê quo
a corda sempre arreurnta
·'lo Ind,') m:ti~ fraco ...
CAPITULO
X -
A sedição
- Inicio
da luela
157
De uma corncrlia,
mal ensaiada,
a. uma. sanguinolenta.
tra·
¡.:el.ia - O governo ""tm-leR',,1 <le Joaseiro,
officidizallo
Ilelo
tcl"gl'llpho",
- l'rimeirn
tentativa
do R'ovemo lel{nl parn
~uLocar 3. S('(liÇ;lO - O milagre
tIas trin,~heira~ (~on!=ltruida9
numa Só noit<· N, S .• bs Dores falou".
- A retir:l<la,
CA PITULO
XI -
A sedição
' O frustrado
asseùio
á ~léca
1ï i)
A seg-ul1(la expcùic;tlo
-- Cmu- cnI"Ícatllra
da campanha.
de
Canudos
- I'lano q\lC peccava
l'or S\la mesma s.Ulplicidaùe
- :E IIlni~ difficil sitiar que atuc.'a.r ... - O famoso canhão
da lueta, -- Tl\p-xplicavel
retirada
- '" l/a,lcÎí'O ¡orto! manei,'o
ptio .•• Meu P"dt'iul Ch-ço r. qHt'lil ganha!»
- O primciro
trophl~o ùa .:guerra. sunta-.
CAI'ITIJLO
XII -- A Hedição - A marcha
sobre Fortaleza.
Da l guerra sn.ntn
it. lneta. politica, COIll escala pelo -l enngal;o ~ - Saque.., e <1rpreda.()ões .- 1larehan<lo
lJdos scrtõci
f~ID flor .•• - Tentativa.
tlo g"(Wer:10 ICRa) para ù~tcr a Ul:1relm d09 se.liciosos
- Sacrificio
iuutil
de bravo militar
O ccrco (le Fortale7.a - E~t.aùo de sitio (' illten"rll('ão
- As
responsabilidaùes
do go"orna
da ¡¡cpublica.
,J
1\J1
301
INDICE
CAPITULO
XIII
-
A sedição.
209
conseql1encias
Dnas po.lo.vrn< "obre os partioos
politicos
do Ceará -- Em
que se rC~Umf' o prestjgio do Patriarcha
<10Joaselro: votos
legitimos
ou :'ifles P,ffi mãog adf>xtraoos? - As doloroqas
cous('qucneiD~
);ociaes ,ln seõjçã.o - Os seu~ t~rriveiR ~fff'i·
to~ cconnmioos
e ùe pf'rturbo-çào
nùministrativu
't Lam·
fJP,lO
expocnte
d[l sitnaçrw
actual do .Tonse-irn.
,"I,
CAPITULO
XIV -- O Joaseiro
219
no folk-lore
A ~rnnde aIm" do po\'u, agitada
e confuso. - Um llO'IO cyelo o. detprminar-se
no folk-lore
elo l'orùe,te
Lendas,
c3nçôeR fi: prrees do .Jo:1s~iro Praticas
do~ p('n:t(·nt{'~·
'(>
,heatns
~ - ",Jlleu radin¡ Circo é o ,"ci do lil/wdn jl¡te:ro •.• ;J
- ~ Ratyr;ls"
:job forma rlE" oração - Um
('r<,ùo·' origina lis~jmo.
Q.
'f
CAPITULO
XV -- Sonclusão
.
21j3
Um cl:l.rnur que se levanta ...
Depoimentos
insu"peitos
- As responsabilidades
da. Naçfw - O J03-.'Jeiro, um indice
ùe incultnra
~eral - Quaes o. remedios?
Considerações
talvez opportun:!s
- Alpbabeto
e cultura,
a¡phabeto
., adaptaç,LO A r.é onùe nos podem levar as consideraçÙes
gemes ...
O problema
bra.sileiro <le cultura
Dilo é. /lr .•te
momento,
o problema
do alphabeto.
NOTAS.
2i9
l.
A fiara. do Ceará - 2. Noticia
historica
sobre as seccas
3. O ,Toa.~l!iro e o emÚllo publico - 4. A inten·er.ção
llO
('e['lrá - 5. Padre Cicero ùeputado.

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