1 A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1 Pierre

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1 A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1 Pierre
[TRADUÇÃO NÃO AUTORIZADA PELO AUTOR, PARA USO RESTRITO DOS ALUNOS DO PROF. FLAVIO
HEINZ (PPGH-PUCRS) - NÃO CITAR]
A DISTINÇÃO ENTRE OS MANDARINS1
Pierre-Étienne Will
Bourdieu às vezes se aborrecia (ou se lamentava por fazê-lo)com a maneira pela qual alguns
conceitos-chave popularizados por sua obra haviam passado para o domínio público, e mesmo
para a linguagem comum - onde então eram utilizados sem nenhum rigor, e, sobretudo, sem
referência à pesquisa e à démarche intelectual em que foram gerados. Assim, por exemplo,
aconteceu com os conceitos de “habitus”, “campo”, “capital” (social ou simbólico) e, é claro,
“distinção”.
Ora, longe de propor uma análise da obra de Bourdieu ou de sua influência, é exatamente isso
que me preparo a fazer aqui. Vou me apropriar de uma dessas noções passe-partout (ainda
que tudo seja relativo) que ele deixou em sua passagem e ver como ela funciona, ou melhor,
em que ela pode servir, em minha própria área de pesquisa. Esta se encontra extremamente
afastada tanto da sociologia quanto do mundo em que vivemos e de suas “lutas” – outro
termo onipresente em Bourdieu, embora seja verdade que ele não o tenha inventado –, já que
se trata da história da China moderna. Mesmo sem ser, é claro, totalmente ignorante dos
questionamentos e da démarche intelectual de Bourdieu, com quem compartilhei e mesmo
realizei alguns projetos durante o breve período em que nos conhecemos, sem tampouco
ignorar os trabalhos nos quais elaborou e desenvolveu o conceito de “distinção” – uma vez
que é disso que se trata –, não me furtarei a utilizá-lo com uma certa liberdade, como veremos
em seguida. Afinal, é também isso que faz a grandeza da personagem e de sua herança: além
da obra científica monumental que deixou, existe Uma espécie de “Bourdieu para todos” –
digo, acessível ao não especialista –, talvez mesmo um “Bourdieu popular”, quando não
apenas um tipo de sensibilidade específica aos fatos sociais, quase instintiva, que ele próprio
moldou e que, pude constatar com freqüência, está difundida nos lugares e nos meios mais
inesperados.
Até onde posso julgar, a influência da obra de Bourdieu sobre a sinologia contemporânea é
muito limitada. Quero dizer que, fora alguns raros autores que o reivindicaram
especificamente como inspiração, sobre os quais direi uma palavra, esta influência é percebida
essencialmente nas publicações anglo-saxãs, por algumas citações tomadas de seus livros
traduzidos para o inglês, citações não necessariamente fora de contexto ou gratuitas, mas que
não são indispensáveis, intelectualmente falando: no limite, trata-se de um exercício um
pouco forçado ao qual nossos amigos americanos nos foram tornando familiares, na medida
em que apareciam por lá traduções de Foucault, Derrida ou Habermas, por exemplo (ainda
1
Originalmente publicado em ROCHE, Daniel & BOUVERESSE, Jacques (org). La liberté par la
connaissance. Pierre Bourdieu (1930-2002). Paris: Odile Jacob, 2004, 215-232.
1
que Habermas tenha, durante alguns anos, produzido um pequeno abalo sísmico no mundo
dos historiadores americanos da China moderna2).
Entre as principais exceções que conheço está o livro não de um americano, mas de um
britânico, Craig Clunas, que leva o belo nome de Superfluous Things, e um subtítulo que nos
deixa com a pulga atrás da orelha: Material culture and social status in Early Modern China
(1991).3 Historiador da arte e conservador de museu, Clunas se inspira diretamente em A
distinção, de Bourdieu, para se interessar, com muita engenhosidade e erudição, por um
problema de fato central neste último livro, o dos estilos de consumo (e, primeiramente, do
consumo cultural) e dos discursos que estes suscitam, como marcadores de diferenciação
social e, também, como indicadores dos movimentos que percorrem a estrutura social. A
região e o período de que Clunas se ocupa – as prósperas províncias do Yangtzi inferior, da
metade do século XVI à metade do século XVII – são incontestavelmente os mais refinados que
se pode conceber no plano da cultura material. São também os mais obcecados pela distinção
social, em função de uma grande proximidade e de uma imbricação inextricável de interesses
entre uma classe letrada que se prevalece de uma tradição longa e gloriosa, e de uma classe
mercantil sobre a qual, garanto, poderíamos dizer mais ou menos a mesma coisa, sem falar, é
claro, de seu enorme peso econômico; ambas extremamente estratificadas. O que Clunas
finalmente analisa neste livro, através do tema específico do consumo de luxo e da cultura
material, são as conexões múltiplas entre capital econômico, capital cultural (ou simbólico),
capital social e acesso ao poder.4
Encontramo-nos, então, efetivamente, em pleno Bourdieu. Mas é sobre outra coisa um pouco
diferente que irei falar: não tanto de estratégias de distinção no seio da elite sócio-econômica
(e, além disso, de uma elite em constante expansão e com grau elevado de mobilidade social,
com suas velhas famílias e seus novos-ricos), mas das diferenciações que operam no interior
de um setor desta elite, que se convencionou chamar “mandarinato”. Para começar, o termo
mandarinato coloca alguns problemas de definição. O nome, ele próprio, não tem nada de
chinês uma vez que se originaria de um termo em sânscrito significando “conselheiro”, de
onde teria passado ao malaio e ao português antes de ser aplicado pelos primeiros visitantes
europeus, em fins do século XVI, com o sucesso que conhecemos, aos membros da
administração chinesa. Para esses primeiros missionários, os mandarins são, portanto,
funcionários. Nos clássicos da literatura jesuíta sobre a China, com poucas exceções, os
mandarins talvez nem sempre sejam irrepreensíveis, mas vistos coletivamente servem a um
sistema admirável com dignidade, com grande sabedoria e manifestando uma idéia elevada de
2
Falo dos debates que se seguiram antes e depois de 1990 em torno da noção de “esfera pública”. Ver
sobre isso Yves Chavrier, “La question de la société civile, la Chine et le chat du Cheshire”, Études
chinoises, 14, 2 (1995), p.153-251, sobretudo p.158-159 para as principais referências.
3
CLUNAS, Craig. Superflous Things: Material Culture and Social Status in Early Modern China.
Cambridge: Polity Press, 1991, em particular o capítulo 2 e 3.
4
Outros autores se interessaram pelos fenômenos da distinção sociocultural (mas sem se servir dessa
noção) do Jiangnan sob os Ming: por exemplo, Miyazaki Ichisada, “Mindai Sô-Shô chihô no shitaifu no
minshû – Mindai-shi sobyô no kokoromi” (Mandarins et masses populaires dans la région de Suzhou ET
Songjiang à l’époque dês Ming) In: MIYAZAKI, Ajia-shi kenkyû, vol.4. Kyoto: Dôhôsha, 1975, 321-360;
SMITH, Joanna Handlin. “Gardens in Ch’i Piao-chia’s social world: wealth and values in late-Ming
Kiangnan”, Journal of Asian Studies, 51, 1 (1992), p.55-81; MESKILL, John. Gentlemanly Interests and
Wealth on the Yangtze Delta. Ann Arbor: Association for Asian Studies, 1994.
2
sua missão. Aquele era, afinal, o que não se tinha medo de nomear, “um governo de
filósofos”5; e é, bem entendido, essa aliança de poder, saber e competência ideológica que
define, em primeiro lugar, o mandarinato.
O tom, pode-se perceber de passagem, muda notavelmente – ainda que também haja
exceções – com os missionários da segunda geração (os do século XIX), aos quais se juntaram
negociantes, soldados, diplomatas e outros aventureiros. Sobre os funcionários do império, o
missionário protestante Gutzlaff escreve, por exemplo, em 1838, que “mesmo que sejam
mandarins, permanecem chineses no sentido pleno do termo, com ainda mais baixeza e
esperteza”6. Mas são sempre mandarins – isto é, no uso que se fazia à época, que permaneceu
popular e que utilizo – os administradores que pertencem aos escalões superiores do aparelho
de Estado (em oposição à raia miúda de subalternos), saídos do meio superiormente instruído
dos letrados e que chegaram onde se encontram graças às suas qualificações acadêmicas – ao
menos em princípio, mas, como veremos, é um pouco mais complicado, e, de fato, é nesse
nível que intercedem certos efeitos de distinção no interior do mandarinato. Em todo o caso,
situam-se socialmente à distância do vulgum pecus, beneficiando-se de diferentes vantagens
suntuárias, visualmente marcados por suas vestimentas e certas insígnias, como esses célebres
botões de chapéus sobre os quais os tratados europeus farão a devida referência uma vez que
é isso o que permite repertoriá-los na hierarquia, etc. E eu acrescentaria ainda que essa casta
mandarim ultrapassa, amplamente, o efetivo de funcionários na ativa, pois ela inclui qualquer
um que possua o status exigido e a ambição para entrar na administração (e é raro que,
mesmo considerado como distinto, se tenha o status e não a ambição), portanto, os potenciais
funcionários. Ela inclui também os números ex-funcionários, em licença ou aposentados, que
continuam sendo líderes muito influentes no seio da sociedade em que vivem.
Eu citava Clunas e vou agora mencionar outro autor, na verdade muito diferente, que também
encontrou em Bourdieu conceitos e formulações que influenciaram profundamente sua
análise da sociedade chinesa, ou pelo menos das elites chinesas. Em seu Zhi, filósofo maldito,
publicado em 19797, Jean François Billeter se esforça para dar conta dos problemas que
acometeram o herói de seu livro – um funcionário letrado de relativo destaque na segunda
metade do século XVI, que conhece um destino trágico – em termos de inadaptação ao que
chama “sociedade mandarim”, e mesmo em termos da recusa pura e simples de suas normas,
e, mais precisamente, de suas hipocrisias. Citando então o Esboço de uma teoria da prática
sobre a noção de capital simbólico, Billeter lembra que o capital simbólico é “conversível em
capital econômico, ao mesmo tempo que faz aparecer o capital econômico como secundário,
subsidiário, não essencial”, que ele “dissimula ou reprimindo o interesse econômico”, etc. Ora,
qual é o capital simbólico dos mandarins? É, nos diz Billeter, “o saber e as qualidades morais
5
A noção aparece, pela primeira vez, numa versão das memórias do Padre Ricci publicada por Nicolas
Trigault e amplamente difundida na Europa no início do século XVII. Cf. GERNET, Jacques. “Pour une
traduction em anglais des Mémories de Matteo Ricci”, In: FORTE, Antonino & MASINI, Federico (Éd), A
Life Journey to the East. Sinological Studies in Memory of Giuliano Bertuccioli (1923-2001). Kyoto: Scuola
Italiana di Studi sull’Asia Orientale, 2002. PP.149-164 (p.154).
6
GUTZLAFF, Karl. China Opened, or, A Display of the Topography, History, Customs, Manners, Arts,
Manufactures, Commerce, Literature, Religion, Jurisprudence, etc. of the Chinese Empire. Londres:
Smith, Elder & Co., 1938, 2 vol., p.253-254.
7
BILLETER, Jean François. Li Zhi, philosophe maudit (1527-1602). Genebra: Droz, 1979, sobretudo
páginas 74 a 98.
3
que lhes são próprias”; e se trata de um saber que reúne tudo e que não admite um saber
concorrente, logo (poderíamos dizer), a interpretação da natureza humana que ele oferece e
as conseqüências éticas e políticas que daí resultam têm, na China, o lugar daquilo que
chamaríamos “pensamento único”. Ora, mais uma vez, “esta justificação pelo saber permitiu
que se ocultasse de forma eficaz a natureza econômica dos privilégios mandarins”.
É essa pretensa ocultação dos privilégios econômicos, tal como afirma Billeter, inspirado em
Bourdieu, que me parece colocar um problema. Mesmo reconhecendo as tensões entre a
beleza do discurso e os constrangimentos da vida real, Billeter segue fortemente tributário dos
textos mais ideológicos produzidos pelo neoconfuncionismo: textos nos quais se trata, com
efeito, de desprezar não apenas as riquezas, mas também a necessidade de se ter de geri-las,
ainda que para servir o Estado; e mesmo, em alguns casos, se trata, simplesmente, de
desprezar o poder. O grau zero de engajamento público – o eremitismo – é de fato o grau
supremo da distinção: permanecer escondido em seu canto seja por aversão, asco aos
compromissos, seja por simples dandismo, quando todo o mundo, o imperador à frente, quer
lhe confiar o governo. De qualquer maneira, o mandarim de Billeter é um tipo ideal que se
depreende de um discurso bem circunscrito, e de um discurso que – é preciso admiti-lo – tem
efetivamente muita presença – mas, apesar de tudo, mais ou menos presença segundo as
épocas e os contextos. E, em certas épocas e em certos contextos, não somente não se oculta
o interesse econômico, como não se fala de outra coisa.
Um pequeno desvio pela história me parece importante, antes de evocar essas coisas. A
origem do mandarinato, em sua definição convencional (e limitante) de “funcionáriosletrados” – letrados formados nos clássicos que obtêm acesso ao poder após passarem nos
exames – remonta à época dos Song, mais exatamente ao século XI. E, de fato, foi trabalhando
com textos datados da emergência desta burocracia mandarim no século XI, há muitos anos,
em companhia de meu colega Christian Lamouroux e de alguns outros, que a noção de
“distinção” se impôs a nós: ela se impôs como uma ferramenta particularmente eficaz para
compreender as trajetórias perseguidas por este grupo de homens novos, bem diferentes
entre si, e por vezes separados por profundos antagonismos políticos, com o propósito de
reforçar e de legitimar seu monopólio sobre o governo do império. Essas estratégias são
intelectuais, culturais e sociais. Os novos mestres – poderíamos dizer –, os novos proprietários
do aparelho de Estado, devem a todo preço se distinguir, enquanto homens de cultura cujo
saber se relaciona diretamente aos antigos – e somente enquanto civis –, dos militares que
haviam dominado as posições sociais superiores durantes os dois séculos que precederam ao
advento dos Song, e de quem, infelizmente, se necessita mais do que nunca, no século XI, para
defender um império permanentemente ameaçado por poderosos vizinhos. Da mesma forma,
eles precisam distinguir-se das antigas aristocracias, valorizando as competências e as
instituições (a começar pelo sistema de exames) que fazem deles uma meritocracia, e
orgulhosa disso.
Mas, no interior mesmo deste novo grupo – no “campo” atravessado por lutas que ele
constitui, como teria dito Bourdieu, lutas por vezes implacáveis –, as distinções são inúmeras,
todas conectadas, no fim das contas, à política e ao poder: distinção entre vulgaridade e
elegância nos comportamentos, entre conformismo e não-conformismo na vida social, entre
profundidade e superficialidade nos saberes, entre visões dos antigos e submissão à moda
4
literária, entre visões técnicas e ideológicas do governo, entre moral e economia, e ainda
muitas outras. O que quer que seja, é da extraordinária vitalidade desse século XI que emergiu,
na China, o mandarinato que por vezes chamamos “moderno”, destinado a dominar a
sociedade até o final do império, tal como o definiram, particularmente, os historiadores
japoneses, os quais não utilizam, é claro, essa palavra, mas sim o termo chinês, na verdade
intraduzível, de shifadu8
O mandarinato dos shifadu talvez tenha conhecido seu apogeu na segunda metade dos Ming
(nos séculos XVI e XVII), na época, portanto, de Li Zhi, o maldito. Com freqüência, tomamos
esse discurso que o mandarinato tinha sobre si próprio, e que alimentava seu capital
simbólico, sob o signo da hipocrisia. Ora, entre essas pessoas o discurso desinteressado, que
de fato ocultava os constrangimentos materiais, funcionava sim até certo ponto, mas havia em
seu modo de vida e em sua visão da sociedade outro nível, muito mais pragmático; e, quando
olhamos aí de perto, percebemos que se passa de um nível a outro com a maior facilidade.
De fato, para todo mundo, a começar pelos próprios interessados, aspira-se às funções
públicas não apenas no propósito de “servir o mundo”, mas também porque tornar-se
funcionário é considerado como o meio, por excelência, para aumentar seu capital econômico,
direta ou indiretamente. Fora alguns ideólogos fanáticos e alguns originais, mal vistos, aliás, no
meio, o conforto, possivelmente a riqueza, é ao que aspira todo burocrata, e o fato é que,
sobre isso, se pode obter as melhores justificativas na moral confuciana: fazer sua família, seu
clã e sua sub-prefeitura natal tirarem proveito dos dividendos econômicos do serviço do
estado é engrandecer o prestígio de seus ancestrais, é respeito filial. Mesmo os mais austeros
entre os funcionários, aqueles que se têm como modelo a seus colegas, o dizem: voltar de
bolsos vazios é perder a face; mais uma vez, não é o indivíduo que está em questão, é toda a
vasta linhagem da qual ele é um representante eminente, posto que mandarim. Mas uma vez
isso dito, é preciso reconhecer que há muitas distinções possíveis na maneira de se ganhar
dinheiro e também, aliás, de se falar sobre isso; e é aí que os fatores como a antiguidade do
capital social acumulado têm sua importância.
Como todos sabem, o mandarinato que se constituiu sob os Song possui o mérito de ser
aberto. Não é o nascimento que conta, mas o mérito, e todo homem comum suficientemente
talentoso e trabalhador (e de preferência tendo alguma base econômica, mas isso não é
obrigatório, como o demonstram muitos percursos individuais) – mesmo a pessoa mais
humilde –, pode ingressar nas fileiras da classe dirigente: os exames mandarins estão aí para
isso. O paralelo prometido por nossa escola republicana não pode deixar de ser notado. A
capacidade de absorção da elite mandarim é o que, de fato, lhe permite negar que se
constitua em “classe”, no sentido sócio-econômico do termo (no sentido dos marxistas
chineses, por exemplo, que quiseram associá-la à classe dos proprietários fundiários). Mas é
no nível do acesso e, em seguida, da integração cultural e social, e da apropriação de símbolos,
que os elementos de distinção, sobre os quais Bourdieu falou em abundância – em relação à
nossa sociedade, no livro do mesmo nome e alhures –, intervêm massivamente.
8
Trata-se sobretudo da escola dita de Kyoto, cujo fundador foi Naitô Torajirô (1866-1934) e da qual
Miyazaki Ichisada (mencionado acima, nota 3) foi um eminente representante.
5
Dito de forma sumária, há aqueles que nascem membros da elite dirigente, para quem aquilo
que “distingue” na cultura e no habitus é um dado, que se trata de considerar como normal,
como um tipo de “essência”; e há aqueles que se tornam membros da elite dirigente, tendo
sucesso nos exames – mas não apenas desta maneira, como veremos na seqüência –, e para
quem resta um longo caminho a percorrer antes de poder tratar os primeiros de igual para
igual, um caminho que pode levar várias gerações. Em conseqüência disso, uma das questões
que se colocam ao historiador é aquela do grau relativo de homogeneidade sociocultural do
corpo de administradores em uma determinada época – a natureza do “campo”, as linhas de
força que o atravessam, as oposições mais ou menos significativas que aí encontramos.
Ora, houve enormes variações durante o segundo milênio do império, (que recobre mais ou
menos a história do mandarinato), e, particularmente, ao final desse período; e, em função
disso, os fatores de distinção mudaram muito. Os autores que falam em bloco da classe
mandarim ou do governo dos shifadu, desde os Song e até o final do império – como os
historiadores japoneses que eu mencionei antes –, simplificam demais, mesmo havendo uma
indiscutível permanência nas representações e nos discursos. Sumariamente, no século XI temse uma profissão que se constrói e que, justamente, busca distinguir-se das antigas
aristocracias militares; e este processo pode ser considerado como mais ou menos concluído já
no período dos Song do sul, nos séculos XII e XIII. No final dos Ming (logo, à época das
primeiras descrições dos missionários) tem-se um meio bem mais homogêneo que sob os
Song, e, sobretudo, bem mais instalado em seus habitus. Isso se explica, em parte, pelo quase
monopólio que exercem então os titulares do prestigioso doutorado sobre os postos da
hierarquia regular (em oposição às funções subalternas); mas isso se explica igualmente pela
oficialização de uma doxa – de uma ortodoxia intelectual – admitindo poucas variações desde
o início do século XV.
Por outro lado, depois da conquista manchu, portanto após 1644-1645, as coisas mudam
completamente, e elas ainda irão variar muito até o final da dinastia, que, como se sabe, é
também aquele do regime imperial, de uma maneira interessante para o tema que nos
concerne. A sociologia do funcionalismo sob a dinastia manchu dos Qing é, com efeito, muito
mais complicada do que jamais havia sido (salvo talvez durante a época mongol, mas se tem
então um sistema bastante diferente), e isso mesmo que os “mandarins”, na definição
tradicional do termo, continuem a dominar amplamente os níveis médios e inferiores do
aparelho, sobretudo na administração territorial. Ela é mais complicada por que se vê aí, lado
a lado, gente cuja origem, formação e percurso não têm, por vezes, grande coisa em comum.
Assim, continua-se tendo os letrados chineses (digo, etnicamente chineses) de formação
tradicional, mas também chineses chamados “das bandeiras”, vindos das famílias chinesas
aliadas aos manchus antes da conquista e integrados à estrutura militar servindo diretamente
o regime, e que, com freqüência, não possuem outra qualificação acadêmica que um título de
estudante obtido contra pagamento (alguns subiram muito alto na hierarquia, sobretudo no
século XVIII); há também manchus praticamente desprovidos de qualificação acadêmica – no
início se encontram inclusive alguns iletrados –, mas que possuem, em princípio, qualificações
militares, e que, como membros da etnia conquistadora, têm, em muitos aspectos, as posições
mais elevadas; por outro lado, outros manchus (ou mongóis) receberam uma educação letrada
chinesa, foram aprovados nos exames civis e seguem uma carreira burocrática convencional –
eles são, portanto, mais integrados à elite tradicional, de forma quase exagerada, sem,
6
contudo, renegar seu pertencimento étnico nem os valores marciais que os caracterizam; e,
sobretudo, tem-se também, em número cada vez mais elevado, a partir do início do século XIX,
chineses e manchus que, graças a contribuições financeiras, obtiveram o título de estudante
imperial, e que se inscrevem em listas de candidatos a uma nomeação, em seguida a um posto
real, e que seguem uma carreira não necessariamente limitada aos níveis inferiores da
burocracia.
Eis então os “mandarins” com os quais missionários e outros europeus, entre fins do XVII e fins
do XIX – desde que chegassem a encontrá-los –, se deparavam, e sobre os quais falam bem ou
mal, mas quase sempre como um grupo homogêneo. Ora, como sugere a enumeração acima,
havia muitas distinções a fazer, simplesmente muita distinção. Eu não falo aqui de distinções
próprias a toda organização burocrática, quer dizer, essencialmente aquelas calcadas na
hierarquia: do ponto de vista do poder de que se dispunha, da influência exercida, da
superfície social e dos privilégios que a etiqueta conferia, é certo que a distância era
incomensurável entre o universo dos altos dignitários que aconselhavam o imperador, os
presidentes de ministérios, sátrapas provinciais, de uma parte, e magistrados de
subprefeituras e seus assistentes, de outra, mesmo que todos fossem, de uma maneira ou de
outra, mandarins.
Estou falando dos elementos socioculturais da distinção, que não recobrem de forma alguma
os elementos hierárquicos. O primeiro desses elementos, ao qual fiz alusão há pouco, é o
dinheiro, ou, antes, o discurso sobre o dinheiro. Como todos sabem, há aqueles que possuem
e aqueles que tentam possuí-lo, e entre aqueles que possuem existe o que se chama, em
inglês, o velho dinheiro e o novo dinheiro. No mundo mandarinal (e aqui estou falando
daqueles que integraram o aparelho de Estado), essas categorias, algo sumárias, implicam
todos os tipos de distinções, primeiramente no que concerne à atitude dos interessados em
relação às possibilidades de enriquecimento mais ou menos legais, e mais ou menos legítimas,
tidas como oferecidas pelos postos administrativos. Não tenho aqui como desenvolver este
problema infinitamente complexo, senão para especificar que fora um curto período, pela
metade do século XVIII, sempre esteve fora de questão viver normalmente e fazer frente às
suas despesas profissionais, a fortiori deixar algum dinheiro de lado, contentando-se apenas
com seu salário oficial9. Assim, existiam fontes anexas, mas não oficiais, de renda, mais ou
menos aceitas pelas populações, e, aliás, de um montante bastante variado segundo as
localidades (era um grande tema de conversas na profissão); e, além disso, era um tema de
ética profissional, de saber se e até onde seria possível avançar nas práticas de squeeze, de
tráfico de influência, mesmo de corrupção pura e simples, para as quais havia tanta gente a
encorajá-los.
A integridade absoluta (em outros termos, contentar-se com seu salário) é o que há de mais
distinto. Disso se encontram dois tipos de exemplos. Primeiro, tem-se uma pequena minoria
de originais, sem fortuna pessoal, que deseja absolutamente se comportar assim, e que aceita
então viver numa digna privação. É o que evocam as anedotas sobre este ou aquele
funcionário que morre em posto e que, ao se fazer o inventário de seus bens se percebe que
9
Para mais detalhes, pode-se consultar minha súmula de curso no Annuaire du Collège de France, ano
de 1999-2000.
7
não possuía mais do que alguns livros, algumas roupas velhas e alguns trocados10. O capital
moral acumulado por tais personagens é imenso, e ele é suscetível de se transmutar em
capital social e capital político (e, no final das contas, em capital político) em benefício de sua
descendência. Mas, no caso mais freqüente, os modelos de integridade são pessoas que
podem se permitir ser irrepreensíveis uma vez que já são ricas. Dito de outra forma, em tais
situações o capital econômico da família as ajuda a reforçar ou manter seu capital
sociopolítico, oferecendo a seus membros nomeados à administração o luxo da perfeita
integridade. É bem conhecido que, no período Ming, era de bom tom, entre as grandes
famílias de Suzhou – a capital econômica e cultural da China do sul e, em muitos aspectos, da
China inteira, o lugar onde se criavam todas as modas –, se considerar, primeiro, os encargos
públicos como uma atividade vulgar e como uma corvéia; segundo, quando se aceitava de
nisso se sacrificar (Suzhou sendo, afinal, uma prefeitura do império, onde havia a maior
densidade de laureados dos exames), era uma questão de honra não tentar enriquecer, sem o
que se arriscava, uma vez tendo retornado à região de origem, virar a piada dos líderes
culturais que eram os verdadeiros árbitros da distinção e cuja opinião era a que mais contava
em termos de capital sociocultural11.
Mas, ao lado desses prestigiosos e distintos modelos de ética pública há todos esses que eu
chamarei os maculadores da integridade. Refiro-me a administradores que, sem estarem
apoiados em um enorme patrimônio (e, por vezes, sem possuir nenhum patrimônio), se dizem
estar e estão profundamente preocupados com a qualidade do governo e com a legitimidade
da burocracia junto à população, e que, nos escritos que destinam a seus pares, expõem
laboriosamente como preservar sua integridade limitando ao mínimo o recurso aos meios
extra-legais – mas costumeiros – de aumentar sua renda oficial, sem sacrificar, no entanto, o
decoro que cabe a um funcionário, nem a esperança de encerrar sua carreira com um honesto
conforto12. Nesta última configuração, os fatores da distinção situam-se, me parece, no nível
da ética profissional e do serviço do povo; por conseguinte, eles se apóiam numa venerável
tradição de engajamento público e de bom governo, sabidamente colocada em dificuldades
durante certos períodos – como no final do século XVIII e no XIX – por aquilo que era
percebido como um tipo de relaxamento generalizado e pelo reino do dinheiro. O
investimento em termos de “capital” é, inicialmente, político, com uma forte mais-valia
simbólica, e ele só é social por extensão.
A dominação do dinheiro, que era de bom tom lamentar, sobre aquilo que deveria concernir
apenas vocações desinteressadas – o serviço do estado, a felicidade dos povos – me leva a
10
Tal é o caso de um governador do Jiangsu, Yu Chenglong, morto em função em 1684. Um
memorialista da época – habitante da região, logo um “usuário” –, não hesita em considerá-lo como
ainda mais extraordinário que seu ilustre predecessor, no século XVI, o famoso Hai Rui, ele também
legendário por sua integridade: cf. Yao Tinglin (1628-após 1897), Linian Ji (Chroniques des années
successives). Pequim: Zhonghua shuju, 1982, p.115, 118.
11
Este ponto é brilhantemente desenvolvido por Miyazaki no ensaio citado anteriormente.
12
Ver, num exemplo particularmente impressionante, as exortações de um certo Xie Jinluan, com
freqüência citadas no século XIX, das quais traduzi longos excertos em: “Official ans Money in late
imperial China. State finances, private expectations and the problem of corruption in changing
envronment”. In: KREIKE, Emmanuel & JORDAN, William. Corrupt Histories. Rochester: University of
Rochester Press, 2004, PP.29-82.
8
evocar outro fator de distinção fundamental sob a dinastia Qing, particularmente a partir dos
primeiros anos do século XIX. É aquele que opõe os funcionários ingressados na carreira pela
via real dos exames e aqueles que se aproveitaram das possibilidades daquilo que se poderia
chamar venalidade legal, quer dizer, a venda de títulos e de nomeações pelo governo, que se
chamavam “contribuições” (juan). Por todos os tipos de razões que não posso mencionar aqui
– financeiras antes de tudo, mas não exclusivamente – o governo dos Qing recorreu
amplamente a esse modo de recrutamento e, no século XIX, a ele recorre ainda mais. Com
freqüência a distinção entre os detentores de títulos acadêmicos e aqueles que pagaram para
ali estar não tem, na realidade cotidiana, um significado muito importante, na medida em que
os primeiros não são necessariamente grandes conhecedores dos Clássicos, mas sobretudo
animais de concursos que aprenderam o que era preciso fazer para neles serem bemsucedidos; ao passo que os segundos participam da mesma cultura letrada, mas não tiveram o
gosto e, sobretudo, os meios para se dedicar ao longo treinamento necessário para aprender a
redigir dissertações de exames, quando não os abandonaram após sucessivos fracassos. Mas
se não se deve exagerar demasiado no plano da educação efetivamente recebida, nem,
sobretudo, naquele da qualidade profissional, esta distinção possui no seio da função pública
um valor simbólico muito forte: no discurso convencional, às vezes subjacente, às vezes o mais
explícito possível, os “licenciados” e os “doutores” devem, por definição, ter integrado os
grandes valores dos clássicos, e, portanto, possuir ao menos o sentido moral, mesmo quando
seu comportamento cotidiano não está decididamente à altura; enquanto, em relação àqueles
que pagaram para entrar na carreira, se presume nada conhecerem além do “fedor do cobre”
(como se dizia), em outras palavras, serem de uma essência inteiramente diferente. E, note-se
bem, o que conta é como se entra na função pública – o nascimento do burocrata, de certa
forma –, pelo dinheiro ou pelo talento, já que uma vez na corrida todos recorreriam às
mesmas facilidades de pagamento (as “contribuições”, sempre) para acelerar uma promoção,
cancelar uma sanção, etc. No século XIX, a gestão das carreiras pelos burocratas de todas as
origens é profundamente marcada pelo sistema de venalidade legal, assim como o é, claro,
pelas práticas de venalidade ilegal, mas tolerada e considerada como sem conseqüências
morais particulares, tais como a circulação mais ou menos obrigatória de presentes de alto a
baixo da hierarquia e entre províncias e capital13.
Seja como for, a maneira pela qual eles acederam à carreira constitui, visivelmente, um
poderoso meio de distinção entre pessoas que, de resto, exercem o mesmo trabalho e portam
as mesmas insígnias, e entre as quais – é importante sublinhar – a hierarquia do poder efetivo,
da competência reconhecida e do prestígio burocrático vai, por vezes, no sentido contrário da
hierarquia da distinção. De modo que, entre estes “funcionários por contribuição”, que, talvez,
tenham pago para colocar o pé no estribo, mas dentre os quais há alguns que subiram muito
alto na hierarquia dando provas no dia a dia de sua competência e de sua liderança, e dos
quais um número nada desprezível era composto de verdadeiros administradores que se
formaram trabalhando como conselheiros técnicos especializados ao serviço dos funcionários
em posto. Eles haviam de fato ganho, nestas funções, com o suor de seus rostos, o dinheiro
necessário para passar para o quadro oficial – de modo que não é excepcional encontrar-se,
13
Ver sobre esses pontos minha súmula de curso no Annuaire du College de France, ano 2000-2001,
sobretudo no que concerne a autobiografia extremamente detalhada e de estilo livre de Zhang Jixing
(1800-1878).
9
entre essas pessoas, uma certa arrogância de profissionais em relação aos colegas mais
titulados e distinguidos, nos quais tendem a enxergar hipócritas conversadores sem qualquer
senso prático.
Encontra-se essa distinção ao reverso particularmente nas últimas décadas do império. É que
nessa época, de fato, não apenas houve rápidos progressos no acesso venal à função pública,
como também se vê chegar à ativa certo número de funcionários não titulados que não são,
todos, ricos, ainda que este seja o caso de alguns, mas que fizeram suas aulas e, sobretudo,
suas provas, e ganharam, graças a isso, o apoio de altos burocratas influentes, em dois tipos de
circunstâncias particulares nesse fim de dinastia: o combate às rebeliões que destroem boa
parte da China, entre 1850 e, mais ou menos, 1870, e as relações diplomático-comerciais com
os estrangeiros14. O comércio e a guerra: em outras palavras, a antítese mesma, em termos de
distinção sociocultural, das áreas em que se manifesta a superioridade do mandarim clássico.
Ora, este não desaparece de forma alguma nessa época, muito pelo contrário; até o fim –
entendamos até a abolição dos exames mandarins, em 1905 –, ele defende, com unhas e
dentes, sua posição e seu capital simbólico e, em ampla medida, é ele quem continua a definir
e a impor os termos da distinção.
Há uma noção que, segundo Jean-François Billeter, desempenharia um “papel fundamental no
pensamento mandarim”: a de “vulgaridade” (su), que permite distinguir o homem superior de
todo o resto, e, portanto, o mandarim do mercador ou de qualquer outra pessoa ignorante e
engajada na busca do lucro. Ora, este termo, su, é constantemente utilizado para marcar a
distinção no próprio seio do mandarinato: distinção entre a inspiração elevada do “funcionário
confuciano” e o pragmatismo do funcionário eficaz, mas “ordinário” (uma das traduções de
su), entre o engajamento idealista e o carreirismo ou a indiferença, entre a integridade altiva e
a obsessão do lucro, e assim por diante. E também, em um plano mais mundano, mas não
menos importante, entre aqueles que têm maneiras e aqueles que não as têm. O que eu
chamo aqui de maneiras é toda a coreografia social e mesmo corporal (diz-se, em geral, a
etiqueta) consignada nos manuais de ritual, mas que as pessoas bem-nascidas interiorizam
desde a infância. Mas é, também, uma infinidade de convenções relacionadas à linguagem, ao
vocabulário, ao estilo epistolar, às formas de tratamento, às alusões literárias e todo tipo de
coisa; é, ainda, o senso do estilo, de fato o senso estético, que permite revestir com elegância
os atos menos recomendáveis da vida cotidiana dos mandarins, tais como solicitar um favor ou
uma propina15.
14
As mudanças introduzidas pela guerra civil na sociologia do funcionalismo já se encontram assinaladas
pelo célebre homem de Estado Li Hongzhang (1823-1901) em um prefácio de 1869: “O país esteve em
guerra por mais de uma década, as despesas incorridas ultrapassam a dezena de milhões por ano; os
homens que recompensamos por seus feitos e suas contribuições financeiras, fazendo-os ingressar na
administração, foram repartidos por todas as províncias, contam-se, no total, centenas e milhares...”. O
problema, tal como o percebe Li Hongzhang, é que seus talentos são “heterogêneos” (za) e que é
necessário esforçar-se para neles inculcar os modelos de excelência administrativa que prevaleciam na
primeira metade da dinastia. Ver seu prefácio à edição de 1869 do Muling shu jiyao, uma famosa
antologia de textos pedagógicos para funcionários locais.
15
Vários autores, em diferentes épocas, se queixam não apenas de verem o favoritismo e a corrupção
progredir, mas também – e talvez, sobretudo – das formas cada vez menos discretas e cada vez mais
vulgares que tomam. Ver meu ensaio referido na nota 11 para citações de Gu Yanwu (1613-1682) e
Hong Liangji (1746-1809).
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Encontramos facilmente, no mandarinato do final do século XIX, alguns ex-militares rústicos e
alguns ex-compradores∗ comportando-se em puros businessmen, que buscam cumprir as
missões que lhes são confiadas no melhor dos interesses do país e do regime, sem se
preocupar muito de se apresentar em mandarins estilizados, ou então que buscam
simplesmente enriquecer, mas eles não são seguramente a maioria. Ao contrário, para a
maioria de recém-chegados a grande angústia é não possuir as maneiras e passar por rústico
junto a mandarins realmente educados, aqueles para os quais a desenvoltura literária, a
erudição, o senso estético e a naturalidade em sociedade são, de certa forma, inatos. Com
certeza é ilusório esperar ser aceito de pleno direito no círculo encantado da verdadeira elite,
aquela para a qual o poder e seus rituais são naturais, mas se pode ao menos aprender, e é por
isso que são publicados, por funcionários, no final do século XIX, muitos manuais cuja parte
significativa, senão a totalidade, é dedicada às maneiras, tais como já esbocei o conteúdo: aos
segredos que permitem evitar a falta de jeito, às visitas que precisam ser feitas, mas sem
exageros, aos livros que se deve ter consigo, etc. Esses manuais, destinados àqueles que
aspiram agregar-se às fileiras da elite, lembram, de certa maneira, os manuais de estilo de vida
e de consumo de luxo que Craig Clunas estudou no livro ao qual me referi no início. Em um
caso como no outro, e mesmo que não se trate absolutamente dos mesmos conteúdos, tem-se
um mercado constituído por fragmentos de classe (como diria Bourdieu) buscando
desesperadamente a subir, a se identificar a uma elite que comanda a moda e que define os
critérios de distinção e que, por isso mesmo, consegue preservar seu monopólio simbólico e
conservar o poder.
Eis aí, portanto, alguns elementos sobre a distinção entre os mandarins. Não fossem as
restrições de tempo, eu poderia analisar vários outros, e funcionando em todos os níveis16.
Mas me pareceu útil fazer estas considerações por duas razões. Primeiro, para lembrar mais
uma vez a visão, tão banal hoje como no passado, de uma China imperial governada por uma
classe mandarim homogênea, legitimada pelo saber e pelo magistério filosófico-moral que ela
exerce – o quanto esta visão herdada dos jesuítas e das Luzes é limitada, mesmo totalmente
desconectada da realidade em certos contextos, como aquele que evoquei no final da minha
exposição. E, em seguida, a presente ocasião permitiu-me convencer a mim mesmo, agora
ainda mais do que antes, a que ponto os conceitos elaborados e popularizados por Pierre
Bourdieu, ainda que a contragosto, se mostram estimulantes e fecundos, mesmo sem o
socorro da aparelhagem científica sobre a qual se apoiava, para melhor compreender
sociedades a priori tão afastadas quanto possível daquela a que dedicou suas análises mais
famosas. Bourdieu possuía um sentido e uma cultura histórica raros. Quero crer que esta
breve exposição pelo menos o teria divertido.
∗
Em português, no original
Isto é, entre “metropolitanos” e “provinciais”, ou entre representantes de diferentes tradições ou
modos na área da filosofia e da erudição.
16
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