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1
Subjetividades e identidades desveladas na análise da produção artística
Ensaio Crítico da obra Navio de Emigrantes de Lasar Segall
FRANÇA, Léa Carneiro de Zumpano1
Este ensaio crítico pretende construir algumas análises de uma entre as grandes obras
de Lasar Segall2, bem como estabelecer conexões entre ela e a produção de alguns artistas
brasileiros seus contemporâneos, e também de outras nacionalidades, em que é possível
perceber as coincidentes angústias e temáticas propositivas em cada obra.
A pintura Navio de Emigrantes (1939/41) encontra-se atualmente no Museu Lasar
Segall – IPHAN / MinC3, tendo sido uma doação dos herdeiros. Esta obra é um óleo com
areia sobre tela e mede 230 x 275 cm.
Navio de Emigrantes 1939 (detalhe)
Lasar Segall
1
Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação, Universidade Federal de Uberlândia. Professora de
Ensino de Arte da Rede Pública Municipal de Uberlândia – MG. Formada pela Universidade Federal de
Uberlândia – UFU, pós-graduada pela mesma universidade.
2
Lasar Segall nasceu em 1891 em Vilna, capital da Lituânia, que, na época, estava sob dominação da Rússia.
Segall era de família judia, e o sofrimento judeu é um tema importante em sua obra.
Aos 15 anos, Segall deixou Vilna e foi para Berlim, estudar na academia de Belas-Artes. Em 1913, ajudado
por sua irmã Luba, que morava no Brasil, o artista montou exposições em São Paulo e Campinas. Ele se
mudou definitivamente para cá em 1923. Aqui, conheceu artistas da Semana de arte Moderna de 1922.
Mais tarde, transformou-se num dos grandes nomes do nosso Modernismo. Segall se impressionou com a
paisagem brasileira. Quando chegou, passou a acentuar as cores de seus quadros. Pintou personagens
sofridos, como prostitutas e pobres. Em suas obras, valorizou a figura do trabalhador.Ele faleceu em 2 de
agosto de 1957, devido a problemas cardíacos.
3
IPHAN / MinC – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Ministério da Cultura. Cf.
http://www.iphan.gov.br/bens/Museus/lasar.htm
2
A obra supracitada será analisada por meio dos elementos formais, portanto, pela
presença forte e marcante das duas linhas inclinadas em sentido contrário, que se
encontram no centro e que parecem despertar uma grande ação sobre o olhar do
espectador. Dessa forma, é possível constatar que a estrutura da composição centra-se
nessas duas linhas inclinadas, iniciadas na metade das laterais da obra e que convergem
para um único ponto, que considero como ponto de fuga. As linhas fortes e rígidas, criadas
pelas massas de cor, parecem ter a intenção de conduzir o olhar do espectador e centralizálo no espaço que se forma entre tais linhas, como se levasse o olhar para esse ponto de
fuga. Ainda, se for traçada uma linha dividindo a obra na horizontal na altura do meio,
pode observar-se que o maior número de elementos encontra-se na metade inferior da obra,
sendo equilibrados pelo movimento das linhas curvas externas às duas linhas inclinadas e
também pela linha do horizonte ao fundo, que parece acalmar o olhar.
No que se refere ao tratamento dado à cor, pode-se observar que ela é um elemento
que parece ser determinante para a expressão do artista. Essa é uma pintura
monocromática, que resulta numa obra expressiva, carregada de sentimentos, na qual o
artista faz uso das tonalidades de marrons e ocres, a pintura foi a técnica escolhida pelo
artista como forma de expressão.
A temática para Lasar Segall é a da dor, da solidão, do sofrimento, da esperança, da
desesperança. Nesse sentido, a dimensão da obra é um elemento do qual o artista faz uso
como meio de expressão para, supostamente, atingir os seus propósitos junto ao
espectador. Considerando a proporção de suas telas, esta dimensão pode ser analisada em
duas perspectivas: a dimensão social da existência humana e o impacto que a obra pode
causar na relação obra – espectador – artista.
Lasar Segall (detalhe)
Desta forma, as questões relacionadas à coletividade e, neste caso especificamente, à
condição do emigrante, não impedem que o artista ao mesmo tempo trabalhe a dimensão
3
individual das pessoas, ainda que sejam todos emigrantes, pois cada um possui uma
história de vida própria.
É nesse momento que as dimensões da obra4, como tamanho, são uma escolha que
parece atender à expressividade do artista, pois, diante da obra em tamanho real, é possível
constatar as histórias, os rostos, as famílias e as mães, de maneira bastante legível, o que
nem sempre é possível quando se está diante de algumas reproduções da obra.
Desde seus tempos de estudante, na Europa, Segall5 dedicou-se a retratar, em
pinturas, desenhos e gravuras, a miséria humana em todos os seus aspectos, físicos e
morais, bem como a angústia dos humilhados e ofendidos, a estupidez das guerras e a
violência dos preconceitos raciais. Nesse sentido, o próprio artista registrou: Meus temas –
enquanto certamente pensados como forma e expressos como forma – inserem-se dentre os
mais humanos: homem, mulher, criança, animal em relação um ao outro e em relação ao
seu ambiente. (arte br, 2003).
Por outro lado, pretendo, como já mencionei inicialmente estabelecer algumas
conexões, não só por meio da análise formal, mas também da comparativa, da temática,
entre a obra analisada de Segall e obras de outros artistas.
Sendo assim, inicio concentrando o olhar na linha do horizonte, espaço e
movimento, onde o mar se torna infinito, lugar onde, provavelmente, se faz uma interface
com os sonhos, os desejos e os projetos de vida dos viajantes do navio. Sendo assim, é
possível estabelecer também um diálogo entre Navio de Emigrantes e a obra de Géricault6
A jangada da Medusa (1818 e 1819)7, em que o artista retratou os sobreviventes em um
naufrágio num momento cruel de falsa esperança, quem sabe, a mesma sentida pelos
emigrantes de Segall. Se observada com um olhar atento e decodificador, na verdade o que
se percebe são agrupamentos de pessoas, amontoadas sobre a jangada, onde cada qual
4
Para ilustrar foto de Segall trabalhando na obra que mede 230 x 275 cm, imagem do catálogo: Lasar Segall
– Construção e Poética de uma obra, fotografia da capa: Segall pintando o óleo “Navio de Emigrantes”, c.
1940. Fotografia de Hildegard Rosenthal.
5
Contextualizar a obra de Segall, considerar que ele viveu o período entre as duas grandes guerras mundiais,
como também o cenário político, social e cultural nos Estados Unidos após o crack da bolsa de Nova York
em 1929 e a conseqüente depressão. No Brasil, a década de 1930 e a importante produção dos artistas e
intelectuais que marcaram a época, a implantação da ditadura do Estado Novo em 1937.
6
Théodore Jean Louis Géricault, pintor romântico francês, nasceu em Rouen, 1791, Apesar da escassa
extensão se sua obra, Géricault influenciou enormemente o movimento romântico, sobretudo Delacroix.
Faleceu em 1824, convalescendo de um acidente, em París.
Cf. http://www.livronet.com.br/arteyestilos/biografias/pintores/gericault.htm
7
Entre 1818 e 1819, Géricault realizou grande variedade de estudos para a pintura “A jangada do Medusa”
(491 x 716cm), que naufragara, matou vários tripulantes. Além de recolher todas as informações publicadas
nos jornais, ele entrevistou sobreviventes do naufrágio e o carpinteiro da barca, este último ajudou o artista a
construir uma réplica em miniatura, na qual estudava os agrupamentos de figuras modeladas em cera.
4
expressa, à sua maneira, o próprio desespero e o seu desejo de sobreviver, sendo que um
destes grupos de náufragos acenam para um navio que passa sem notá-los.
A jangada da Medusa 1818-1819 (detalhe)
Théodore Géricault
Na perspectiva de uma análise comparativa formal, considerando a estrutura linear da
composição, conforme abordei anteriormente, Navio de Emigrantes (1939/41) a meu ver,
dialoga com a obra As grandes banhistas (1898 – 1905) de Paul Cézanne8, com obras
anteriores e posteriores do próprio Segall, entre elas, Pogrom (1937) e Guerra (1942); com
imagens e fotografias da época da 2ª guerra, que remetem às cenas de corpos amontoados
após terem suas vidas tiradas nas câmaras de gás nos campos de concentração, como por
exemplo: o Holocausto9, bem como as cenas da atualidade que mostram multidões em
situações de conflito de poder, lutas de classe e manifestações de grupos sociais.
As grandes banhistas 1898-1905
(detalhe)
Paul Cézanne
8
Pogrom 1937
(detalhe)
Lasar Segall
Guerra 1942
(detalhe)
Lasar Segall
O pintor francês Paul Cézanne (1839 - 1906) é um dos artistas de maior importância para o
desenvolvimento da Arte Moderna. Sua influência pode ser notada em praticamente todos os movimentos
vanguardistas europeus do século XX. É considerado um pós-impressionista e fez parte da geração de
pintores que ajudaram a romper com as noções de arte tradicional pregadas pelas academias. Entretanto,
apesar de sua importância, seu valor somente começou a ser reconhecido no final de sua vida. Cf.
http://www.enciclopedia.com.br/MED2000/pedia98a/arte9hbn.htm
9
Entre as imagens selecionadas para esta análise, uma que retrata o holocausto, referência: image 011.jpg –
Cf. http://www.laflecha.net/img/news/5/3/image011(1)_bg.jpg.
5
Image011(1)_bg.jpg (detalhe)
laflecha.net
Multidão (detalhe)
Rubens Gerchman
É possível perceber, pelas datas das obras citadas, que Segall, nesse período em que
pinta Navio de emigrantes, dedica-se aos grandes temas universais, que a eclosão da
Segunda Guerra torna mais agudos. Em um catálogo da exposição de Segall, foi escrito
que, em suas “... telas grandiosas e dramáticas, tingidas por um colorido terroso e triste,
massas humanas se comprimem em composições piramidais, embarcadas no mesmo
destino trágico”10. Neste sentido, é possível relacionar esta obra com Pogrom11, do próprio
Segall, e Guernica12 de Pablo Picasso13, ambas de 1937, pois este também manifestou seu
horror em relação às atitudes dos homens frente à guerra.
Por outro lado, esse diálogo esta presente também pela opção monocromática dos
artistas. Sendo assim, da mesma maneira que em Segall, é possível observar outros artistas
que se apropriaram da monocromia, dos tons mais opacos de sua paleta, para tornar sua
obra mais expressiva e forte. Dentre eles, estão Picasso, com Guernica (1937); Cândido
Portinari14, com a série Retirantes (1944), a obra Café (1935); e Tarsila do Amaral15, com
10
Frase retirada de um catálogo de exposição datado de março de 1995. Lasar Segall – Construção e poética
de uma obra. Exposição de longa duração, Museu Lasar Segall, São Paulo, SP. Apresentado por Maurício
Segall, Diretor Presidente.
11
Pogrom é um termo hebraico que significa linchamento ou perseguição pública. É entendido também como
movimento popular de violência contra os judeus. A cidade natal de Lasar Segall, Vilna, capital da Lituânia,
estava sob dominação da Rússia. A maioria da população de Vilna era composta de judeus, mas a população
judaica era obrigada pelos russos a viver num gueto. Em diversas ocasiões, soldados russos promoveram
massacres no gueto. Esses tristes acontecimentos foram chamados de pogrons. A família de Segall era
ortodoxa e enfrentou as dificuldades do domínio russo.
12
Guernica (3,49 metros de altura por 7,76 metros de largura), obra pintada por Picasso em 1937 leva o nome
de uma pequena cidade na Espanha bombardeada durante a Guerra Civil Espanhola.Nesta obra, Picasso
registrou a impressão sobre o acontecimento que destruiu tal cidade e mesmo após a sua reconstrução podemse reviver os horrores da guerra diante desta obra, que é universal.
13
Pablo Ruiz Picasso (1881-1973), pintor e escultor espanhol, considerado um dos artistas mais importantes
do século XX. Artista multifacetado foi único e genial em todas as atividades que exerceu: inventor de
formas, criador de técnicas e de estilos, artista gráfico e escultor. Cf.
http://www.historiadaarte.com.br/picasso.html
14
Candido Portinari (1903 – 1962) é um dos maiores pintores brasileiros. Em 1935, obtém a segunda
Menção Honrosa na exposição internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos, com a tela
Café, que retrata uma cena de colheita típica de sua região de origem. Revela-se um artista muralista
executando vários painéis e afrescos em edifícios públicos, entre 1936 e 1944. Estes trabalhos, como
conjunto e como concepção artística, representam um marco na evolução da arte de Portinari, afirmando a
6
Os Operários (1933), artistas e obras, com os quais serão construídos possíveis diálogos
com Navio de Emigrantes, bem como com outras obras do próprio Segall como Pogrom
(1937), Guerra (1942), Êxodo II (1949), Greve (1956); mediante um enfoque
expressionista16 e também da temática, a qual sustenta um discurso social.
Guernica 1937 (detalhe)
Pablo Picasso
Operários 1933
(detalhe)
Tarsila do Amaral
Café 1935
(detalhe)
Portinari
Retirantes 1944
(detalhe)
Portinari
Êxodo II 1949
(detalhe)
Lasar Segall
opção pela temática social, que será o fio condutor de toda a sua obra a partir de então. Os movimentos
nazista e fascista, bem como os horrores da guerra reforçam o caráter social e trágico de sua obra, levando-o
à produção das séries Retirantes (1944) e Meninos de Brodósqui (1946), assim como à militância política. Cf.
http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/s_biogra.htm
15
Tarsila do Amaral (Capivari SP 1886 - São Paulo SP 1973). Foi pintora e desenhista. Em 1922, em São
Paulo, forma o Grupo dos Cinco, com Anita Malfatti (1889-1964), Mário de Andrade (1893-1945), Menotti
del Picchia (1892-1988) e Oswald de Andrade (1890-1954). Em 1923, em Paris, estuda com André Lhote
(1885-1962), Fernand Léger (1881-1955) e Albert Gleizes (1881-1953). A partir da década de 1930, a vida
de Tarsila modifica-se bastante. No primeiro ano da década, separa-se de Oswald. Na mesma época, ocupa,
por um curto período, a direção da Pinacoteca do Estado de São Paulo - Pesp. Viaja para a União Soviética
no ano seguinte e expõe em Moscou. Em 1933, após viagem à União Soviética, influenciada pela
mobilização socialista preocupada com as mazelas sociais, seu trabalho ganha uma aparência mais realista,
inicia uma fase voltada para temas sociais com as obras Operários(1933) e 2ª Classe(1933). Cf.
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=1997&busca=tarsila&procura=Procurar&cd_tipo_mater
ia=31519
16
O termo possui um sentido histórico preciso ao designar uma tendência da arte européia moderna,
enraizada em solo alemão, entre 1905 e 1914. A noção, empregada pela primeira vez em 1911 na revista Der
Sturm (“A Tempestade”), mais importante órgão do movimento, marca uma oposição ao impressionismo
francês. À idéia de registro da natureza por meio de sensações visuais imediatas, cara aos impressionistas, o
expressionismo contrapõe a expressão que se projeta do artista para a realidade. Cf.
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=1997&busca=expressionismo&procura=Procurar&cd_ti
po_materia=31519
7
Ainda na perspectiva de uma análise temática, a obra remete-nos a imagens
extremamente expressivas e de uma dramaticidade presente e significativa, entre elas,
novamente Guernica e também algumas obras da fase azul de Picasso, quando ele focaliza
pessoas marginalizadas pela sociedade: mendigos, artistas de circo e cegos. Há ainda
Operários de Tarsila do Amaral, Os Retirantes e Café de Portinari, bem como Pogrom de
Segall, já mencionados anteriormente. Entretanto é importante evidenciar que esses artistas
têm seus olhares voltados para os problemas de algumas minorias que se constituem como
grupos sociais de um país e, ao mesmo tempo, são uma multidão no que tange ao número
de habitantes. Uma multidão de excluídos, que vivenciaram acontecimentos trágicos nas
suas histórias como sociedade. Nessa linha de pensamento, não posso deixar de ressaltar a
função social da arte como produção humana, representação de uma época e de um
contexto histórico-social, permanecendo, desse modo, em conformidade com Ernst
Fischer, quando declara que:
A arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado
de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a
realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la,
aumentando-lhe a determinação de torná-la mais humana e mais
hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade
social. (FISCHER, 1987 p.57)
Continuando o que foi exposto, o diálogo que as obras mencionadas estabelecem
entre si, na perspectiva desses diferentes artistas, parece ser o de denúncia em relação ao
trabalhador explorado em sua mão de obra, o emigrante, o retirante, o operário, o
trabalhador rural, que estão em busca de condições dignas de vida, tendo, no próprio
trabalho, produzido pelo seu corpo, a única forma de sobrevivência, pois não possuem
alternativas para sobreviver no sistema capitalista, em contraponto, são explorados pelos
que se constituíram como capital.
Mesmo após sua fixação no Brasil, as notícias dos acontecimentos advindos da
Europa em conflito, possivelmente, motivaram algumas das composições de Segall,
tornando-as ao mesmo tempo belas e trágicas, como se pode ver em Navio de Emigrantes
(1939/1941), Sobreviventes, Condenados (1950), Pogrom (1937), Campo de Concentração
e tantas outras obras-primas do artista.
8
Condenados 1950 (detalhe)
Lasar Segall
Outro tema que percebo estar presente na obra de Segall é a maternidade, já que ele
retrata as famílias e, na sua maioria, com a forte presença da mãe e com a ausência da
figura paterna. Isto acontece, provavelmente, por Segall ter vivido a realidade da guerra,
quando as mulheres, muitas delas viúvas, assumiam a família após a morte dos esposos na
frente de batalha. Um exemplo disto é a sua obra Viúva e filho II (1920), cuja data coincide
com o término da 1ª Guerra Mundial. Deste modo, Segall mostra-se extremamente sensível
à maternidade, sendo esta também uma temática que emerge, em outras de suas obras,
carregada de sentimentos, como se pode observar em diferentes trabalhos ao longo de sua
vida, tais como: Mãe e Filho (1909), Mãe Preta (1930), Maternidade (1931), todas elas
com a figura materna expressando ternura, e apresentando uma relação de aconchego e
proteção para com a criança, uma relação de proximidade quando a abraça junto de si. A
mãe acolhe seu filho segurando-o sempre com as mãos e os braços, circundando-o, e ao
mesmo tempo, com a sua face recostada na cabeça da criança, aconchegando-a junto ao
peito.
Mãe e filho 1909
(detalhe)
Lasar Segall
Mãe Preta 1930
(detalhe)
Lasar Segall
Maternidade 1931
(detalhe)
Lasar Segall
Maternidade 1938
(detalhe)
Tarsila do Amaral
Os rostos das mães emigrantes no navio de Segall também mostram uma grande
semelhança com a esposa retratada por ele em Família do pintor (1931).
9
Navio de emigrantes – detalhes
Lasar Segall
Família do pintor 1931 (detalhe)
Lasar Segall
Em determinada época, é possível que Segall tenha influenciado a artista Tarsila do
Amaral, pois podemos constatar grande semelhança entre algumas de suas obras. Para
justificar esta hipótese, seleciono as seguintes obras: a Maternidade de Tarsila do Amaral
(1938) e a de Segall (1936), que são homônimas, na qual observa-se que Tarsila apropriase da mesma estrutura utilizada por Segall para as figuras centrais da obra. Também na
obra, 2ª classe (1933) de Tarsila do Amaral, em que é muito forte a possibilidade de
diálogo com mais de uma dentre as obras de Segall.
Maternidade 1936 (detalhe)
Lasar Segall
Maternidade 1938 (detalhe)
Tarsila do Amaral
Dessa forma, ao observar a obra Viúva e filho II de Segall (1920) e um recorte feito
na obra 2ª Classe de Tarsila (1933) (fig.01), é possível ver, na janela do vagão, a figura de
uma mãe com o filho. Em ambas as pinturas, as semelhanças são muitas; os traços dos
bebês, a expressão fisionômica das mães, as tonalidades, o sentimento que perpassa as duas
obras.
2ª classe 1933
(detalhe)
Tarsila do Amaral
Viúva e filho II 1920
(detalhe)
Lasar Segall
Fig. 01 - 2ª Classe 1933
(detalhe)
Tarsila do Amaral
10
Ainda, na obra 2ª classe (1933) de Tarsila, podemos ver rostos expressivos que,
recortados em detalhe, possibilitam melhor visibilidade das semelhanças entre as pessoas
retratadas. Um exemplo disto pode ser observado em Judeu em orações (1930), de Segall,
e o recorte feito no senhor ao fundo na porta do vagão, em Tarsila (fig 03); como também
em Meus Avós (1921), de Segall, e casal de avós à direita do quadro em 2ª classe (fig 04).
Nesta perspectiva, é possível afirmar que uma imagem propõe diversos percursos, que
permitem levar o espectador a inúmeras possibilidades de interpretações e, pela
diversidade de características presente em cada pessoa, as histórias podem cruzar-se, sendo
possível ao observador ver-se ou colocar-se em algumas delas.
Judeu em orações 1930
(detalhe)
Lasar Segall
Fig. 03 2ª Classe 1933
(detalhe)
Tarsila do Amaral
Meus avós 1921
(detalhe)
Lasar Segall
Fig 04 2ª Classe 1933
(detalhe)
Tarsila do Amaral
Por outro lado, rostos expressivos acompanham Segall em grande parte de sua
trajetória artística, o que pode ser percebido por meio de algumas obras selecionadas, tais
como: Mãe (1909), Mãe Preta (1930), Meus Avós (1921), Judeu em Orações III (1930),
até Greve (1957). Entre os rostos retratados pelo artista, o seu próprio rosto também é
muito expressivo, o que pode ser apreciado em alguns de seus auto-retratos: Auto-retrato II
(1919) e Auto-retrato III (1927). Novamente, é possível visualizar pontos comuns entre os
rostos dos emigrantes no navio e outros rostos já retratados por Segall. Um exemplo disto é
o Retrato de Lucy (1935) e um dos rostos femininos em um recorte de Navio de
Emigrantes (fig.02), em que ambas as pessoas estão com o rosto na mesma posição, como
também os cabelos, a boca, e a expressão facial, podendo-se supor que representasse a
mesma personagem.
11
Greve 1956
(detalhe)
Lasar Segall
Retrato de Lucy I 1935 (detalhe)
Lasar Segall
Auto-retrato III 1927
(detalhe)
Lasar Segall
Auto-retrato II 1919
(detalhe)
Lasar Segall
Fig. 02 Navio de emigrantes (detalhe)
Lasar Segall
Nesse momento em que abordo a expressividade nos rostos retratados por Segall,
quero registrar um rosto brasileiro que também considero significativo para dialogar com
Navio de Emigrantes de Segall é o de Betinho de Souza17. Foi retratado por Siron Franco18
na técnica do mosaico trabalhado com sementes de várias espécies na construção e na
criação do expressivo retrato do sociólogo, com toda a significação que carrega como
imagem pela sua obra e vida, pela luta para concretizar seus projetos direcionados para os
desejos de uma minoria excluída.
17
Herbert de Souza (Betinho, 1935-1997) tornou-se conhecido nacionalmente por sua campanha contra a
fome. Em 1993 organizou uma entidade governamental, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, e
uma não-governamental, a Ação da Cidadania Contra a Miséria e pela Vida. Cf.
http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/autores/hsbetinh.htm
18
Siron Franco é um artista muito ligado às questões sociais, nasceu em Goiás Velho (GO), em 26 de julho.
Muda-se para Goiânia em 1950. Cf. http://www.pinturabrasileira.com/artistas_bio.asp?cod=31&in=1
12
Betinho de Souza - Siron Franco (detalhe)
Fotografia revista Veja (detalhe)
Retomando, como já foi mencionado inicialmente, na estrutura formal da composição
da obra analisada, parece haver uma intencionalidade que faz com que o nosso olhar se
direcione entre as linhas inclinadas, remetendo a uma perspectiva tal como se fosse um
ponto de fuga. No entanto parece que o artista quer que o espectador detenha seu olhar
sobre a imagem e, sobretudo, nas pessoas retratadas, para que possa refletir sobre a
temática desenvolvida.
Dando continuidade à riqueza de possibilidades de percursos sinalizados por Segall
mediante a temática escolhida, a emigração é uma realidade em muitos países e deve ser
considerada tanto sob o enfoque da pessoa que deixa o seu país e está indo começar uma
nova vida em outro lugar, quanto pelo lado de quem a recebe no seu destino. Esta é uma
realidade no Brasil, sobretudo, em São Paulo, na capital e no interior19, mas há também nos
estados do Sul do país a emigração de povos vindos de vários países. Entretanto, também
acontece a migração de pessoas que se mudam de um lugar para o outro internamente no
Brasil, à qual se refere Portinari em sua obra Retirantes (1944), fato que permanece bem
atual20. O espectador que comunga com o artista da experiência da emigração, da guerra e
da perseguição aos judeus21 fará uma leitura mais profunda de Navio de Emigrantes, no
entanto outro espectador, que não possua estas vivências, terá outras leituras,
provavelmente, ligadas ao coletivo das problemáticas sociais, ou simplesmente ao prazer
19
Tema que foi tratado em uma telenovela de época, Terra Nostra, produzida pela Rede Globo e escrita por
Benedito Ruy Barbosa, foi transmitida em 1999-2000 e reprisada em 2004. A telenovela abordou a condição
dos imigrantes italianos no início do século XX no Brasil.
20
Inclusive foi produzido pelo cinema nacional o filme O caminho das nuvens (Brasil, 2003) direção de
Vicente Amorim, que retrata a história de uma família nordestina nessa condição. Baseado numa história
real, o pai faz com que a mulher e os filhos embarquem numa viagem de bicicleta do interior do Nordeste até
o Rio de Janeiro, com a esperança de conseguir um emprego que lhe pague R$ 1 mil mensais. Cf.
http://cinema.uol.com.br/dvd/2004/08/17/ult2372u9.jhtm
21
É o caso da Rússia, onde os pogrom ou matança de judeus empurram as massas à emigração, especialmente
para os Estados Unidos contribuindo para o nascimento do Sionismo, movimento nacionalista judaico
iniciado no século XIX, visando ao restabelecimento na Palestina, com um Estado Judaico que se fez
vitorioso em 1948.
13
de apreciar a obra pelos seus aspectos formais e iconográficos, ou mesmo como expressão
e linguagem, conforme afirma John Berger sobre a imagem:
Sempre que olhamos uma fotografia tomamos consciência, mesmo que
vagamente, de que o fotógrafo selecionou aquela vista de entre uma
infinidade de outras vistas possíveis. Isto é verdade mesmo para o mais
banal instantâneo de família. O modo de ver do fotográfo reflecte-se na
sua escolha do tema. O modo de ver do pintor reconstitui-se através das
marcas que deixa na tela ou no papel. Todavia, embora todas as imagens
corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa apreciação de
uma imagem dependem também do nosso próprio modo de ver.
(BERGER (1983 p. 14)
Ainda que Navio de Emigrantes de Segall mostre uma coletividade, já que representa
um grupo de emigrantes, não se pode deixar de perceber que, ao mesmo tempo, ela
possibilita ao observador distinguir as diferenças entre todos os passageiros do navio
quando o artista trabalha as expressões dos rostos, as posições de proximidade entre eles, e
o aparente cansaço causado pela posição em que se encontram.
Navio de emigrantes - detalhes
Lasar Segall
Essa obra, como já foi dito, pode ser interpretada como um recorte de uma imagem
maior, na qual é possível fazer vários outros recortes menores, de rostos, de famílias, e que
vem carregada de um repertório próprio do artista.
Na perspectiva de outros recortes em Navio de Emigrantes, é possível propor uma
imersão mais intensa na obra, na observação da individualidade de cada emigrante, nos
seus pequenos mundos e nas suas famílias. Essa imagem oferece muitas pistas sobre os
personagens, posicionados como atores em uma cena que, pela maneira como estão
vestidos, demonstram a classe social a que pertencem, explicitando as suas atitudes e a
maneira como estão próximos ou isolados uns dos outros. A respeito do que trazem
consigo, vindos de outro lugar, talvez distante, parecem somente trazer a si mesmos e os
seus familiares carregando na bagagem a sua cultura, os seus saberes de uma vida inteira,
os costumes de um convívio social. São pessoas que estão unidas pelos laços de uma raça,
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de uma etnia, de um determinado grupo, que devem fortalecer-se, e trazem consigo a
expectativa de que possam concretizar seus desejos.
Navio de emigrantes – detalhes
Lasar Segall
Navio de emigrantes – detalhes
Lasar Segall
Dessa forma, é possível analisar as obras de Segall já mencionadas na perspectiva da
tragédia, do drama e do retrato, abrindo possibilidades para pensar e refletir sobre uma
produção artística compromissada com questões ligadas à humanidade e ao próprio artista
individualmente.
A sua obra Visões de Guerra (1940/1943)22 propicia-nos considerar que Segall retrata
o que a sua retina capta, o que seus olhos vêem, observam e registram. Mas o artista vai
além, pois ele cria e interpreta o mundo resignificando-o, construindo novas visões. As
suas obras não se limitam a uma visão periférica do mundo, captada rapidamente por seus
olhos, mas ele emerge nessas imagens e consegue dar consistência à sua produção.
Visões de Guerra - Lasar Segall 1940-1943 (detalhe)
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Lasar Segall, do caderno, Visões de Guerra (1940-1943), tinta preta a pena e aguada e tinta terra de siena
aguada sobre papel. Imagem do Boletim Informativo 293 de março/ maio 2002, Museu Lasar Segall –
IPHAN - MINC
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Outra interpretação é analisada na obra Visões de Guerra (1940/1943), Segall
representa o rosto de uma mulher, que parece estar desesperada por tantos motivos, com o
marido ou o filho nos campos de batalha. Também, supõe-se que esse trabalho seja um
auto-retrato de Segall, pela sua própria história de vida, já que ele é filho de judeu, é
emigrante e imigrante. Essa obra parece mostrar algumas das cenas que seus olhos já
presenciaram desde criança, quando vivia na pequena cidade de Vilna, na Rússia, onde
aconteciam os Pogrons, bem como vários outros momentos, igualmente trágicos
principalmente, no período entre as duas grandes guerras mundiais.
Quantos de nós já registramos tantos rostos cansados, sofridos no cotidiano de nossos
percursos, pelos caminhos de nossas vivências?
Do mesmo modo como acontece com Segall, o reflexo de nossas visões de um
cotidiano cheio de injustiças sociais, imagens que estão em nossos inconscientes, foram em
algum momento de nossas vidas, captadas por nossa retina. Entretanto parece que só muito
raramente nos permitimos percebê-las, já que nos causam sofrimento e a constatação de
nossa impotência.
Ouso dizer que todas essas obras me inquietam muito, pois, como espectadora,
comungo com os artistas, com cada um à sua maneira, da temática presente em todas elas.
As pessoas retratadas, as histórias registradas, as provocações realizadas por meio de cada
produção, de cada homem-mulher-artista, de cada homem-mulher-criança-personagem.
Dessa forma, a relação que se estabelece na apreciação das obras é muito forte e alimentome da atitude desses artistas que registram a nossa existência e nos mostram uma realidade
em frente da qual se precisa parar para observá-la, para compreendê-la e superá-la.
Quando nos afastamos, apesar do distanciamento, as imagens deixam um eco, que faz
com que continuemos a ouvi-las, vê-las e pensar sobre elas, em alguns momentos, vejo-me
virar para trás para dar uma última olhada e manter a esperança nos desejos mais
profundos de uma sobrevivência digna para cada ser humano.
10 de abril de 2005.
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Referência Bibliográfica
1. Livros:
BERGER, John. Modos de ver. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
Arte no Brasil Vol 2. São Paulo: Abril S/A Cultural e industrial, 1979.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ACEDI, Rosane e ARANHA, Cecília. Encontro com Segall. Belo Horizonte: Formato
Editorial, 2002.
CALABRIA, Paula Brondi. MARTINS, Raquel Valle. Arte, história & produção. São
Paulo: FTD, 1997.
2. Material Didático:
arte br. Instituto Arte na Escola. São Paulo, 2003. (Cadernos de Estudos do Professor: De
todos um pouco).
XXIV Bienal de São Paulo – Núcleo Educação. Percurso Educativo para Conhecer Arte.
Material de apoio educativo para o trabalho do professor com arte.
3. Boletins informativos e revistas:
Catálogo de exposição – 1995. Lasar Segall – Construção e poética de uma obra.
Exposição de longa duração, Museu Lasar Segall, São Paulo, SP.
Boletim Informativo nº 293. São Paulo: março/maio 2002, Museu Lasar Segall, IPHAN –
MINC.
Revista Veja. O articulador do possível. São Paulo, Editora Abril, 20 de agosto de 1997.
4. Internet - Sites selecionados
Acesso em 10/04/2005
http://www.itaucultural.org.br
http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fus
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http://www.museusegall.org.br
http://www.iphan.gov.br/bens/Museus/lasar.htm
17
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