O vento que sopra pelas flores: pigmentos que curam

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O vento que sopra pelas flores: pigmentos que curam
O vento que sopra pelas flores:
pigmentos que curam
Por Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz
O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância...
é a ilusão de conhecimento
Stephen Hawking
As cores sempre exerceram um grande fascínio sobre a
humanidade e deslumbra sua percepção. A cor é estimuladora,
relaxante, expressiva, perturbadora, impressionável, cultural,
exuberante e simbólica. Penetra em todos os aspectos das
nossas vidas, dá beleza e drama a objetos cotidianos. Se as
imagens em preto e branco trazem-nos notícias do dia, a cor
escreve a poesia.
A cor é o resultado da interação da matéria com a luz,
é uma sensação traduzida pelo cérebro humano através dos
fotorreceptores, bastonetes e cones. Os bastonetes são responsáveis pela visão mediante pouca iluminação, e os cones
são responsáveis pela visão de cores na luz brilhante.
As cores das flores, seu perfume e formas costumam
despertar nas pessoas sentimentos dos mais variados. Foi na
era vitoriana, durante o reinado da rainha Victoria (Inglaterra),
que a linguagem das flores tornou-se muito popular (Figura 1).
Nesse período, as flores e os arranjos florais eram usados para enviar mensagens codificadas, permitindo que as pessoas
expressassem seus sentimentos, sentimentos estes que não
poderiam ser expressos em palavras e sim através das cores
das flores. Curiosamente, o envio de flores para demonstrar
os sentimentos era também um costume na Turquia do século
XVIII, sendo denominado de “código dos turcos”.
mas para um químico, a composição altera-se com a aproximação, e surgem novos elementos nessa bela e singela estrutura
biológica. Apreciar a harmoniosa estrutura das flores é uma
coisa, admirar sua natureza sob os olhos de um cientista é outra bem diferente.
O fenômeno da cor nas flores pode ter várias origens, desde a dispersão até a absorção de luz. Um diversificado número
de fenômenos dão origem às cores nas quais sua natureza se
apresenta. Sob esse aspecto, a forma de uma flor é o corpo da
cor e a cor da flor é a alma de sua forma.
Os pigmentos mais importantes associados às cores das
flores são os flavonoides. Nas folhas estes pigmentos barram a
radiação ultravioleta (UV), perigosa para os tecidos, permitindo
a passagem de radiação azul, verde e vermelha, importante para a realização da fotossíntese.
Os flavonoides são os principais agentes cromóforos
(elementos corantes característicos) de flores. Enquanto na
maioria das flores os flavonois são responsáveis pela coloração
amarela, as antocianinas conferem as cores vermelha, laranja,
rosa, azul e violeta (Figura 2).
Figura 1. Rainha Victória (1837-1901) aos 18 anos. A flor de lótus é
sagrada e considerada um símbolo proeminente em muitas culturas
asiáticas, com muitos significados associados. No budismo a flor de
lótus vermelha simboliza a natureza original do coração (amor, compaixão). Por outro lado, a flor de lótus azul simboliza a vitória do
espírito sobre os próprios sentidos materiais.
Um observador romântico, colocado a certa distância pode descobrir determinados detalhes de uma flor e sua beleza,
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Figura 2. As antocianinas são responsáveis pela coloração vermelha e azul de flores e frutos.
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O Cravo é uma das flores mais populares do mundo. Particularmente em Portugal, o cravo vermelho é o símbolo da
Revolução de 25 de abril de 1974, que derrubou o regime salazarista, de forma a estabelecer as liberdades democráticas
promovendo transformações sociais no país.
Uma flor que recentemente atraiu a atenção do Prof. Dr.
Álvaro Antonio Alencar de Queiroz do Centro de Estudos e
Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados (CEIMBA) da
Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) é o cravo vermelho.
A cor do cravo vermelho, (cientificamente conhecido como
Dianthus caryophyllus, família Caryophyllaceae), deve-se a compostos conhecidos como antocianinas macrocíclicas (Figura 3).
dores para utilização na terapia fotodinâmica. Entretanto, as
antocianinas isoladas possuem baixa estabilidade quanto à
temperatura, tempo de armazenamento, presença de oxigênio
e íons metálicos, sendo suscetíveis a processo de degradação.
Os mecanismos de degradação não são, até este momento,
precisamente conhecidos. Porém, acredita-se que haja a quebra de ligações covalentes, possivelmente seguido de oxidação
desse pigmento natural.
Desenvolvemos processos de incorporação da antocianina macrocíclica do cravo em uma macromolécula derivada
da glicerina. A macromolécula derivada da glicerina funciona
como uma cápsula que incorpora em seu interior a antocianina
macrocíclica e preserva sua atividade fotodinâmica (Figura 4).
Figura 3. A flor do cravo vermelho é rica na antocianina
macrocíclica cianidina 3,5-di-(ß-glicopiranosil) pelargonidina (6,6-diéster malílico).
As antocianinas são compostos que além de serem responsáveis pela coloração de diversos frutos e flores possuem
elevada atividade antioxidante, estando associada à inibição
de processos carcinogênicos. Adicionalmente, as antocianinas
são caracterizadas pela sua habilidade de absorver luz visível.
O interesse pelas antocianinas macrocíclicas deve-se ao
potencial de aplicação desse composto na terapia fotodinâmica como agente fotossensibilizador. O fato das antocianinas
macrocíclicas absorverem luz com elevada eficiência, em alguma região do espectro visível, fazem esses compostos serem
capazes de induzir ou participar de reações fotoquímicas. Uma
reação fotoquímica é uma reação química desencadeada pela
luz (radiação eletromagnética). Um exemplo comum é o bronzeamento, que é causado pelo aumento da quantidade de
melanina na pele devido à radiação ultravioleta. Pode ocorrer
naturalmente, pelo efeito da luz solar, ou por meio de câmaras
de luz ultravioleta (bronzeamento artificial). Outro exemplo de
reação fotoquímica é a fotossíntese onde a conversão do gás
carbônico (CO2) em oxigênio (O2) e glicose (C6H12O6), realizada pelas plantas ocorre apenas na presença de luz.
O mecanismo de ação da terapia fotodinâmica consiste na aplicação tópica ou administração intravenosa de um
composto fotossensibilizante (nesse caso, a antocianina macrocíclica). O agente fotossensibilizante é então incorporado às células com maior metabolismo, a exemplo das células
tumorais. Posteriormente, a região tumoral contendo o agente fotossensibilizante é exposta a uma fonte de luz de comprimento de onda adequado para destruição das células
neoplásicas e preservação das células sadias. Ao ser ativado
pela luz de um laser de diodo de comprimento de onda de
cerca de 690 nm, o agente fotossensibilizante pode destruir
seletivamente o tumor.
As antocianinas podem ser facilmente obtidas por processos extrativos convencionais, o que torna mais barato o
custo de produção de candidatos a agentes fotossensibiliza-
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Figura 4. Ilustração do processo desenvolvido pelos pesquisadores
da UNIFEI: a antocianina macrocíclica do cravo foi encapsulada pelo
dendrímero de poliglicerol (A). A microscopia de força atômica (B)
indicou que as cápsulas (C) possuem dimensões nanométricas (2-10
nm). Os pontos azuis em (C) representam moléculas da antocianina.
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Estudos de fotodegradação da antocianina macrocíclica
(AM) contida nas nanocápsulas do dendrímero de poliglicerol
(PGLD) foram analisadas através da irradiação com luz visível,
num meio saturado com O2, monitorando continuamente sua
fluorescência. Caso ocorra fotodegradação, o mesmo poderá
ser detectado através da queda na intensidade de fluorescência dos sistemas em estudo. A figura 5 (I) revela que durante 60
minutos de irradiação a antocianina macrocíclica contida nas
nanocápsulas de PGLD não apresentou queda significativa na
sua intensidade de fluorescência. Isto demonstra que a estrutura da antocianina macrocíclica não é degradada nas condições
experimentais estudadas. Esse resultado é significativo uma
vez que a não ocorrência de fotodegradação demonstra que
o PGLD preserva a estrutura da antocianina macrocíclica após
seu encapsulamento.
Com a finalidade de se avaliar a capacidade das nanocápsulas em destruir tumores, eritrócitos foram utilizados como
modelo de células. A figura 5 (II) ilustra o comportamento dos
eritrócitos na presença da antocianina macrocíclica livre (AM)
e encapsulada (PGLD-AM) após irradiação com luz visível. Observa-se que o PGLD-AM provocou uma liberação significativa
de hemoglobina relativamente à AM livre. A hemoglobina liberada deve-se ao rompimento (hemólise) da membrana celular,
(I)
(II)
Figura 5. (I) Estudo da fotodegradação da antocianina macrocíclica
ligada ao dendrímero PGLD (PGLD-AM) (A) e livre (AM) (B), através
da sua fluorescência, medida em 654 nm, em função do tempo de irradiação com lâmpada de mercúrio à temperatura fisiológica (37ºC).
A fluorescência foi medida utilizando o Temissão igual a 570 nm e
Texcitação a 540 nm. (II) Porcentagem de hemólise de eritrócitos em
função da concentração de PGLD-AM e do tempo de irradiação com
laser de 660 nm à temperatura fisiológica (37ºC) em meio saturado
com oxigênio: PGLD-AM: 20 mM (A) e 10 mM (B), AM 10 mM (C).
Em (D) é ilustrado a porcentagem de hemólise na ausência de luz e
presença de 10 mM de AM.
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ocorrido devido à fotoxidação de proteínas e fosfolipídios presentes na membrana do eritrócito. A fotoxidação, ocasionada
por espécies reativas de oxigênio resulta na formação de poros
e no aumento da mobilidade dos fosfolipídios com consequente ruptura da membrana e liberação de hemoglobina para o
meio extracelular.
Os resultados obtidos na pesquisa sugerem que o encapsulamento pelo dendrímero de poliglicerol diminui o processo
de fotodegradação do fotossensibilizador, assim como reduz
o efeito colateral desse sobre células normais de eritrócitos
humanos. Os resultados, aqui obtidos, estimulam a realização
de estudos mais avançados com a finalidade de se avançar na
utilização do sistema PGLD-AM em tratamentos que envolvam
a terapia fotodinâmica como recurso para tratar alguns tipos
de câncer.
As cores da natureza multiplicam-se à nossa volta numa
infinita variedade luminosa. O despertar das cores das flores
anuncia-nos a primavera e cada flor ou cada folha é única no
seu colorido e contribui para nossa existência. Cientificamente,
a cor só existe como impressão sensorial do observador e a
ciência como um todo, torna-se nada mais do que um refinamento do pensar diário.
Embora as cores das flores sejam um reflexo visual
gerado pelos fotorreceptores humanos, as pétalas que as carregam possuem algo muito maior. E certamente não são os
olhos que permitem descobrir isso. Enquanto as pálpebras se
fecham e abrem, os olhos giram para cima. Somente voltamos
a enxergar quando, além das pálpebras estarem abertas, os
olhos voltam exatamente à posição original. Se for contabilizado o tempo, vão-se alguns décimos de segundos para piscar
e outros a cada movimento dos olhos. Portanto, se feita a
contabilidade; enxergamos somente poucos décimos de cada
segundo. O resto é apenas imaginação do cérebro; o perfeito
integrador espaço-temporal que nos fornece uma imagem ilusória do mundo.
A cor deixará de existir e com ela toda a ciência que descrevemos anteriormente, se fecharmos nossos olhos? Existe
um vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=s6NNOeiQpPM)
que serve para uma profunda reflexão sobre essa questão e
nossa relação com a Natureza. Trata-se de uma criança cega
que descreve de modo único, na ausência da luz, as cores das
flores. O vídeo nos ensina que não existe nenhum caminho
lógico para a descoberta das leis elementares do universo. O
único caminho é o da intuição, que está muito além do que os
olhos podem ver.
Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz, Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados, UNIFEI.
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