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Catálogo seletivo de documentos referentes aos indígenas
no Paraná provincial, 1853-1870.
Tatiana Dantas Marchette
Coordenadora da Divisão de Documentação Permanente do Arquivo Público do Paraná.
1. Apresentação
Quando a professora Beatriz Gallotti Mamigonian convidou-me para representar a
instituição na qual trabalho, e falar especificamente sobre o Catálogo seletivo de
documentos referentes aos indígenas no Paraná provincial, 1853-1870, ao mesmo tempo
feliz e preocupada.
Feliz, porque a professora vem acompanhando de perto a produção do Arquivo
Público do Paraná desde 2005, quando foi lançado um catálogo anterior, também seletivo, de
documentos referentes aos africanos e afrodescendentes, livres e escravos, para o período
1853-1888. Na oportunidade, proferiu palestra, juntamente a dois outros historiadores, Luiz
Geraldo Silva e Carlos Lima, ambos os professores do Departamento de História da UFPR.
Em outubro de 2006, também participou do pré-lançamento do catálogo sobre os indígenas, e
proferiu outra palestra ao lado do professor John Monteiro.
Agora, vamos às preocupações. Apresentar simplesmente um instrumento de pesquisa
sem o entendimento propriamente dito do conteúdo, qual seja, a história indígena do Paraná,
parece meio insosso; falar da metodologia de organização do catálogo ficaria mais apropriado
para um congresso de arquivologia!
Mas, afinal, qual o papel de uma instituição arquivística pública? Servir, da melhor
maneira possível, aos pesquisadores e cidadãos em geral por meio de aprimorados
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instrumentos de pesquisa.
Assim, a preocupação inicial, quando do convite da Beatriz, torna-se hoje uma
oportunidade única para se fazer propaganda do trabalho que vem sendo desenvolvido lá no
Paraná, para que seja utilizado e retorne a todos com bons frutos da produção do
conhecimento a partir da pesquisa em fontes primárias.
Detentora de um acervo histórico de 1.500 metros lineares, equivalentes a 5
milhões de documentos, a Divisão de Documentação Permanente está atualmente
concentrando esforços para lograr a descrição de todos os itens documentais produzidos
e acumulados pelo governo provincial (1853-1889), cujo volume e demanda são maiores
do que para os períodos posteriores. E, a partir deste trabalho, produz catálogos seletivos
que venham ao encontro da atualidade historiográfica brasileira.
2. Descrição do catálogo
Os dois catálogos seletivos, de fontes sobre os africanos e sobre os indígenas, têm o
mesmo formato, pois elaborados segundo a metodologia de organização técnica
fundamentada na Norma Brasileira de Descrição Arquivística (NOBRADE), de autoria de
uma das câmaras técnicas do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), oficializada no
segundo semestre de 2006.
O Catálogo seletivo de documentos referentes aos indígenas no Paraná
provincial, 1853-1870, possui 1.547 verbetes, que procedem de documentos do fundo
arquivístico Administração Provincial e de encadernados avulsos denominados Códices. Os
primeiros consistem em correspondências que informam o presidente da província sobre o
desenvolvimento dos aldeamentos, os conflitos regionais entre grupos indígenas diferentes,
dificuldades econômicas e outras que impediam o cumprimento de ações para a chamada
“civilização e catequese”; os Códices, são cópias das correspondências com os ministérios,
tratam de nomeações e demais atos do poder central relativos à “civilização e catequese” dos
indígenas.
Surpreendeu-nos a todos a quantidade de documentos selecionados para a descrição,
uma vez que o catálogo anterior, para o período entre 1853 a 1888, resultara em 1.104
verbetes apenas. Em parte, porque os documentos referentes à população escrava estão
incompletos, a exemplo dos inúmeros ofícios que, referindo-se a listas anexas com nomes de
escravos para serem libertados pelo Fundo de Emancipação, não apresentam tais anexos. No
tocante à administração das populações indígenas, porém, são mais variados os tipos de
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documentos, inclusive detalhados relatórios, além dos ofícios, resultando numa seleção
numericamente maior, mesmo para um período mais curto.
Aqui, justifica-se o recorte cronológico para o período 1853 a 1870, para facilitar o
manuseio do catálogo, que sairá com 570 páginas. Esse recorte cronológico, porém, aponta
uma interessante afinidade entre os dois catálogos, pois assinala a presença africana nos
aldeamentos indígenas no Paraná provincial imediatamente posterior à Lei Eusébio de
Queirós, de setembro de 1850, que aboliu o tráfico atlântico de escravos africanos e impôs a
construção de novas estratégias de utilização de mão-de-obra.
Os temas apresentados nos 1.547 verbetes oferecem um rico panorama da construção
das complexas relações entre os indígenas e os representantes dos poderes provincial e geral,
permeadas por conflitos e alianças, avanços e recuos.
Na década de 1820, José Bonifácio defendia a idéia de confiar a direção das aldeias
indígenas existentes na América portuguesa a uma ordem missionária que contaria, por sua
vez, com o apoio governamental dado pelo contingente de soldados dos destacamentos e
presídios militares localizados nas suas proximidades.
Apesar de o Regulamento das Missões, de 1845, ter optado pela administração leiga
dos índios, tratou-se, segundo Manuela Carneiro da Cunha (1992:140), de uma solução
ambígua, pois, embora o papel da ordem missionária ter ficado restrito ao apoio religioso e
educacional a ser prestado ao diretor leigo, na prática tornou-se freqüente a situação
cumulativa dos cargos de assistente e de diretor das aldeias, ou seja, os dois cargos eram
ocupados ao mesmo tempo pelo missionário.
Por outro lado, a importância dos missionários no Segundo Império não se traduziu em
autonomia como a que havia sido desfrutada pelos jesuítas no período colonial. Na ordem
imperial, os religiosos ficaram a serviço do governo, especialmente nos projetos vinculados às
questões de terras, as quais, segundo a autora citada, pautaram a história dos índios no
período.
A preponderância dos missionários nas aldeias indígenas fundadas na segunda metade
do século XIX em território paranaense é bem visível por meio da leitura dos documentos
selecionados para o catálogo. Da mesma forma que José Bonifácio na década de 1820, as
autoridades locais também apostaram na presença dos missionários nas aldeias indígenas. Em
1855, Manoel Ignácio do Canto e Silva, primeiro diretor-geral dos índios da província do
Paraná, emitiu um ofício ao vice-presidente Theófilo Ribeiro de Rezende, onde solicitou a
vinda de capuchinhos para a catequese dos indígenas.
No Paraná provincial, os missionários tornaram-se importantes coadjuvantes dos
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processos de fundação, constituição, manutenção e mesmo administração dos aldeamentos
indígenas. São, no caso do Paraná, os responsáveis por boa parte das informações que
constam dos documentos pertencentes à coleção Correspondências do Governo e, por meio
dos quais podemos, hoje, conhecer o cotidiano desses aldeamentos, desde as culturas
agrícolas existentes, o número de índios, as necessidades básicas para o seu sustento, as
dificuldades no controle da população aldeada, como o acesso às bebidas alcóolicas, até
questões menos locais, como o deslocamento de africanos livres entre os diversos
aldeamentos e para outras obras públicas do Império, como a fábrica de ferro São João de
Ipanema, em Sorocaba.
Por outro lado, as questões relacionadas à população indígena na região de
Guarapuava, que, no século XVIII, já havia sido cenário de uma invasão e conquista,
principalmente com a expedição comandada por Diogo Pinto de Azevedo Portugal, e, na
província, sede da diretoria-geral dos índios, articulavam-se diretamente com a conquista
territorial ainda em curso e com a segurança dos caminhos e dos grandes proprietários nesse
processo de expansão, e onde são registrados, na documentação, avisos de ataques dos índios
a fazendas, pedidos e remessas de munição, distribuição de brindes. Aí, não se formou
nenhum aldeamento nos moldes daqueles criados nas rotas fluviais entre os rios Tibagi,
Paranapanema e Paraná, e os que existiram, como o de Palmas, tiveram vida efêmera. Essas
duas configurações de aldeamentos no Paraná provincial, no entanto, representam a história
dos índios no Império: ou seja, envolviam e estavam envolvidas pelas questões de terras.
Estes são, claro, os indícios primeiros e mais evidentes resultantes do trabalho de
leitura para a seleção dos documentos. De resto, é um caminho a ser explorado mediante o
cruzamento com outros acervos e outras tipologias documentais a cargo dos experientes e
mesmo futuros pesquisadores.
3. Conclusão
Esperamos que o catálogo sobre os indígenas tenha a boa estrela que guiou o anterior,
concebido e elaborado na convergência com a preocupação governamental em se dar
visibilidade aos afrodescendentes e que, por esse motivo, teve aceitação tanto por parte dos
dirigentes públicos, recebendo apoio de secretarias de Estado do Paraná, como por parte da
comunidade acadêmica, pesquisadores e organizações sociais voltadas para o tema. Em 2006,
recebeu o prêmio nacional Rodrigo Melo Franco de Andrade, de iniciativa do IPHAN, na
categoria Pesquisa e Inventário de Acervos. Até hoje, foram impressos 1.500 exemplares,
além de ser possível baixá-lo pela Internet, no sítio do Arquivo.
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Aqui, quero mencionar o trabalho da historiadora Bruna Marina Portela, que iniciou
suas atividades no Arquivo do Paraná como estagiária, e hoje está conosco como prestadora
de serviços atuando como profissional da história, e responsável pela seleção e leitura dos
documentos de ambos os catálogos já prontos e, inclusive, do segundo volume do
levantamento sobre os indígenas para o período 1871-1889, que completará a descrição
atinente ao período provincial. E, também, o levantamento e leitura dos Códices feitos pela
historiadora Solange de Oliveira Rocha. Aliás, a padronizada entrada “Notas do arquivista”,
preconizada pela NOBRADE, no Catálogo foi devidamente substituída por “Notas das
historiadoras”. Nada mais justo!
A publicação dos dois volumes sobre os indígenas está programada para este ano. O
primeiro volume está completamente pronto, inclusive a diagramação, e já ganhou um prélançamento, em outubro de 2006, conforme mencionado, com palestras da Beatriz e de John
Monteiro. O segundo, conforme comentei, está em processo de elaboração.
BIBLIOGRAFIA
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