SUMÁRIO - Fundação Magda Tagliaferro
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SUMÁRIO - Fundação Magda Tagliaferro
SUMÁRIO Prefácio 3 Abertura das Comemorações do Centenário de Nascimento da Pianista Magda Tagliaferro 5 Cycle Magda Tagliaferro 1996 / Ambassade du Brésil à Paris Expo “10 Ans sans Magda” 11 Ciclo Magda Tagliaferro 1996 / Embaixada do Brasil em Paris Expo “10 Anos sem Magda” 13 Discurso Proferido por Magda Tagliaferro por Ocasião da Criação da Fundação Magda Tagliaferro 15 Discurso Proferido por Magda Tagliaferro por Ocasião da Criação da Fundação Magda Tagliaferro 16 Encerramento do Curso de 1952 19 Encerramento do Curso de 1946 20 Reunião com Sá Pereira 21 Homenagem à Memória de Jacques Thibaud 23 Curso de Alta Interpretação e Virtuosidade de 1941 26 Encerramento do Curso de Interpretação e Estética Musical de 1942 32 Encerramento de Curso de 1944 35 Abertura do Curso de Alta Interpretação Musical de 1948 37 Encerramento do Curso de Alta Interpretação Musical de 1948 39 Abertura do Décimo Curso de Alta Interpretação Musical de 1950 46 A Escola Moderna Francesa 53 César Franck - Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra 59 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1943 60 César Franck - Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra 61 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941 Camille Saint-Saëns 63 Reflexões Sobre a Vida e a Obra de meu Eminente Mestre: Gabriel Fauré 67 1 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941 Gabriel Fauré 72 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951 O Estilo de Gabriel Fauré 76 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941 Claude Achille Debussy 79 Curso de Aperfeiçoamento e Interpretação de 1940 85 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941 A Obra de Maurice Ravel 90 Preleção de Magdalena Tagliaferro Relativa às Obras de Reynaldo Hahn e Darius Milhaud 94 O Movimento Romântico - Franz Liszt 96 A Música Espanhola 99 Palestra Sobre L. Van Beethoven 104 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951 Três Autores Clássicos: Bach, Mozart e Beethoven 111 Beethoven - Concerto op. 73, em Mi Bemol 117 Beethoven - Sonata op. 78, em Fá Sustenido Maior 119 Beethoven - Sonata op. 81 - O Adeus, A Ausência, O Retorno 121 Beethoven - Sonata op. 27, n.º 2 122 Beethoven - Sonata op. 53, Aurora 123 Beethoven - Sonata op. 31, n.º 2 / Comentários 124 Beethoven - Sonata op. 90, em Mi Menor 125 Beethoven - Sonata op. 90, em Mi Menor / Comentários 127 Beethoven - Sonata op. 57 128 Robert Schumann - Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor 133 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951 Robert Schuman - Fantasia op. 17 144 Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1944 Maurice Ravel - “Sonatine” 143 Textos Incompletos 149 Anedotas 155 2 PREFÁCIO Em 1940, Magda atende ao apelo do Brasil. “Já que a guerra não lhe permite voltar à França, traga seus ensinamentos também a este país que a viu nascer. Precisamos criar pianistas” ao que acrescentou Tagliaferro... “e também criar um público para ouvir esses pianistas”. Com este convite, do então Ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, ela implantou na Escola Nacional de Música, Rio, o “I Curso Público” com seis aulas, ao qual seguiram-se outras 30 aulas, também em São Paulo, em todo o Brasil e assim por diante. Em Paris, os cursos públicos de Magda Tagliaferro nasceram do convite de Mme. Yvonne Brisson então Presidente dos “Les Annales”, onde ela ilustrava as conferências ali proferidas. Convocada a vencer as dificuldades de passar da palavra ao piano, ou seja, das mãos frias ao sangue afluindo ao cérebro, e vice-versa, Magda ilustrou sua própria palestra, intitulada “Un bouquet d’auteurs modernes” divulgando compositores franceses: Claude Debussy, Reynaldo Hahn, Jean Rivier, Jacques Ibert e Darius Milhaud na Salle Gaveau. Nos idos de 1939, como delegada do governo francês, segue para Nova York a fim de aí divulgar esses mesmos compositores. No entanto, ao voltar de Nova York a Recife, em um vôo clipper, recebe o convite do Ministro das Relações Exteriores para tocar na rádio pela comemoração do aniversário do Presidente Vargas e para dar mais oito recitais. A partir de então, Magda Tagliaferro desencadeia uma verdadeira revolução musical no Brasil, por causa de sua técnica muito pessoal, de suas interpretações muito próprias e de seus vestidos de Paris, que nunca se repetiam... Ao comemorar seus 30 anos de criação, a Fundação Magda Tagliaferro, no esforço de compilar, revisar e digitar esta preciosa coletânea de apenas algumas palestras proferidas por Magda Tagliaferro por mais de uma década, põe à disposição do seu devoto público, alunos, professores, assistentes e amigos, os textos referentes aos seus cursos públicos ministrados no Brasil. Embora há muito pretendêssemos fazer essa compilação, só agora nosso esforço se concretiza com esta edição sobre sua atividade pedagógica destinada ao grande público. Iniciada com o convite do então Ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, é coroada, em 1983, com a outorga da comenda de “Ordem Nacional do Mérito Educativo” pela Ministra da Educação e Cultura, Esther de Figueiredo Ferraz. As palestras refletem a competência da professora, a lucidez da pedagoga e o humor da artista, sempre atenta em não só corrigir mas também em agradar 3 seu público cativo. O sucesso de suas palestras é fruto de uma longa experiência na carreira de virtuose e da sua vocação de professora. Nas conferências-palestras, voltadas a um público predominantemente leigo, Magda usava uma linguagem leve, não técnica, numa leitura romanceada de História da Música, atraindo o público, seus constantes ouvintes. Os textos aqui contidos foram fielmente transcritos dos originais e manuscritos por ela deixados. Aprendendo também com os alunos, adverte para o uso da “técnica como meio a serviço da música”, para a busca da pureza do estilo, da descoberta harmônica, da arte do pedal e das vibrações sonoras. Em 1956, a pedido dos alunos de Paris, ministra na Salle Pleyel, tendo como modelo seus cursos públicos no Brasil, aulas intituladas “As cores na harmonia”; “sem colorido a música torna-se monótona”, dizia Tagliaferro. Os textos apresentados a seguir foram reunidos em cinco grupos, sem preocupação cronológica, de acordo com os assuntos a que se referem: 1. Discursos, discursos de abertura e encerramento de cursos. 2. Palestras sobre História da Música. 3. Análise. 4. Textos incompletos. 5. Anedotas. Lêda M. de Figueiredo Ferraz Presidente da Fundação Magda Tagliaferro 4 ABERTURA DAS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DA PIANISTA MAGDA TAGLIAFERRO DISCURSO PRONUNCIADO PELA PROFESSORA ESTHER DE FIGUEIREDO FERRAZ 15 DE JUNHO DE 1993 Convocados pela Fundação Magda Tagliaferro, aqui nos achamos reunidos para dar início às comemorações do centenário de nascimento da grande brasileira, incomparável artista, extraordinária mulher que foi Magdalena Tagliaferro, criatura invulgar cuja passagem pelo mundo fascinante e mágico da música aí deixou impressas em traços de ouro as marcas imperecíveis dos seus dedos. Aqueles dedos ágeis, adestrados, seguros e inspirados que durante quase um século se movimentaram, infatigáveis, sobre a superfície dos teclados, daí extraindo obras de arte sonora que, sempre e cada vez mais intensamente, extasiaram os ouvintes, transportando-os, como em sonhos, para as esferas superiores onde reina a Beleza em toda a sua plenitude. Quis a Fundação fosse eu a encarregada de proferir as palavras iniciais enunciativas das razões que a levaram a promover este evento, e a realizá-lo no âmbito do Museu de Arte de São Paulo, local onde a grande artista se exibiu por mais de uma vez em concertos e em aulas de alta interpretação musical que marcaram época nos anais da vida artística paulistana. Explico o porquê de minha designação para tão honrosa tarefa, quando muitos entre os aqui presentes, alguns mesmo seus ex-alunos e hoje consagrados pianistas, melhor do que eu fariam a louvação que se espera de quem se refira à grande “mestra do teclado”. É que, nos idos de 1942, naqueles anos para mim dourados porque correspondentes à fase de minha vida acadêmica, tive o privilégio de ser aluna de Magdalena nas aulas que ministrava à Rua Bahia, na casa de Ana Esméria Leite de Barros, tendo como assistentes as pianistas Georgette Pereira, Nellie Braga e Menininha Lobo. E até hoje guardo como verdadeira relíquia o álbum contendo as doze “Sonatinas” de Clementi, o texto básico sobre o qual recaíam nossos exercícios diários de técnica onde a professora, em sua caligrafia inconfundível, ao mesmo tempo nítida e imperiosa, anotava as falhas, certamente numerosas, de minha hesitante execução. Muitos anos mais tarde e já na qualidade de Ministra da Educação e Cultura do Governo João Figueiredo, coube-me a honra de fazer-lhe a entrega da Comenda da “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, que lhe outorgara o Presidente por Decreto de 28 de junho de 1983. E num pequeno discurso que lhe dirigi ao final do belíssimo concerto com que brindou a assistência comprimida num dos salões do Teatro Nacional de Brasília, assim justifiquei a procedência e a oportunidade da homenagem que lhe prestava o País naquele momento: “Se a Ordem Nacional do Mérito Educativo que foi instituída com a finalidade de “premiar personalidades nacionais e estrangeiras por excepcionais e relevantes serviços prestados à educação”, ninguém mais do que a senhora merece essa láurea que em tão boa hora lhe é conferida pelo Governo da 5 República. Pois mestra em sua arte, e mestra entre os mestres, como francamente reconhecem quantos lhe acompanham a longa e luminosa trajetória; mestra de gerações e gerações de jovens pianistas que, em uníssono, lhe proclamam os dons de garimpeira de talentos, incentivadora de vocações, impulsionadora de carreiras; mestra no grande magistério da vida, que poucos terão sabido, como a senhora, fazer da existência uma demonstração diuturna de fé, de coragem, de combatividade, de irresignação à mediocridade e de incontida ambição no sentido de atingir sempre o melhor, o mais puro, o mais perfeito, a senhora é, na verdade, uma grande educadora e, a esse título, faz jus em grau superlativo à condecoração que dentro de instantes passará a ornar-lhe o peito e – ouso crer – figurará, entre tantas que já lhe foram outorgadas aqui e alhures, como uma das mais significativas, das mais caras ao seu coração”. É, pois, com intensa emoção que aqui venho dizer algumas breves palavras sobre a vida e a obra dessa extraordinária artista que a crítica mundial especializada, condensando numa expressão bastante significativa o entusiasmo, o fervor com que lhe acompanhava o desempenho pianístico, passou a designar como “a fada”, “a mágica” do teclado. Nascida em Petrópolis, aos 19 de dezembro de 1893, já com 5 anos o pai, Paulo Tagliaferro, a colocou sobre a banqueta de um piano e lhe ensinou as primeiras notas, deslumbrando-se com sua facilidade em aprender, seu empenho em bem executar, vencendo com galhardia as limitações impostas pelas suas mãozinhas de criança ainda em idade pré-escolar. Com apenas 11 anos deu em São Paulo, no Salão Steinway, seu primeiro concerto. E acompanhando os pais à França, por motivo de doença do chefe da família, conseguiu desde logo ser aceita como aluna pelo Conservatório Nacional de Paris, e aí obteve o primeiro prêmio em memorável concurso de que participaram vinte e duas candidatas vindas de vários países do mundo. Tocara lindamente o primeiro movimento da Sonata de Weber em Lá bemol, e o presidente do júri, Henry Marechal, justificou a outorga do prêmio à brasileirinha de 14 anos por ter sido quem melhor traduzira o pensamento do autor, colocando-se, pelo seu encanto, sensibilidade e delicadeza, acima das demais. A premiada passou a ter como professores, a partir daí, entre outros, Alfredo Cortot, de Piano, e Gabriel Fauré, de Harmonia, ambos empenhadíssimos em que a nova aluna, verdadeiramente genial, fizesse uma carreira à altura de seus méritos. E foi o que aconteceu, sendo certo que dentro de espaço de tempo relativamente curto Magdalena começou a aparecer no noticiário da imprensa européia, reservando-lhe a crítica especializada em tratamento verdadeiramente consagrador. “Magda Tagliaferro é a maior das pianistas atuais”, proclama Louis Vierne, in Courrier Musical. “Essa maravilhosa fada do teclado criou em torno de si todo um universo sonoro que é um encantamento perpétuo”, afirma Stan Golestan, in Le Figaro. “Na arte prodigiosamente cultivada de Magda Tagliaferro vive o espírito claro e puro da música francesa”, assegura Heinrich Strobel, in Berliner Borsenkurier. “Uma técnica sem defeitos, a serviço de um temperamento genial”, assim se pronuncia Aloys Fornerod, in Tribune de Lausanne. “Uma finura de expressão e ao mesmo tempo um domínio soberano da técnica”, diz o Tageszeitung de Viena. E assim por diante, numa constante louvação convergente e cada vez mais entusiasta. Logo após o início da II Grande Guerra Mundial, e sendo já professora do Conservatório Nacional de Paris, Magdalena vai aos Estados Unidos, enviada 6 pelo Ministère des Affaires Étrangères para se desincumbir de importante missão: divulgar as obras dos compositores franceses contemporâneos. Estréia triunfalmente em 1940, tocando no Carnegie Hall com a orquestra Filarmônica de Nova York, regida por John Barbiroli. E percorre a seguir várias cidades do país, sempre bem recebida, sempre louvada, sempre ovacionada, o que não a impediu de retornar aos Estados Unidos apenas 39 anos mais tarde, em 1979, nas condições que logo adiante serão mencionadas. Em 1940 regressa ao Brasil, país onde nascera e do qual, embora materialmente afastada durante muitos anos, jamais se desligara sentimentalmente. Tanto assim que continuava a falar fluentemente, tal qual uma autêntica brasileira, o português, sem hesitação, sem um sotaque, como se jamais se houvesse expressado a não ser na bela língua de Camões. É recebida no Rio de Janeiro triunfalmente, “como se ainda fora”, diz ela, “a criança prodígio”. E desde logo se vê envolvida em verdadeiro furacão de compromissos, chegando a dar, só no Rio, “oito recitais seguidos, com salas repletas”. Tais concertos deflagraram, confessa Magdalena, “uma verdadeira revolução musical”, em razão de sua técnica “muito pessoal” e de suas interpretações, havendo ainda os vestidos de Paris, “um para cada concerto”. Durante esses concertos, lembra ela, podia-se ouvir de Mário de Andrade, “gritando de um camarote de onde só faltava despencar sobre a platéia: Magdalena, eu te amo!”. Informado desse sucesso, o então Ministro da Educação Gustavo Capanema convida-a para uma entrevista e inicia o colóquio dizendo: “já que a guerra não lhe permite voltar à França, traga também um pouco de seus ensinamentos a este país que a viu nascer. Precisamos criar pianistas”. E encarrega-a de ministrar cursos públicos de Interpretação Musical e Virtuosidade, na Escola Nacional de Música os quais provocaram enorme interesse, ao ponto de nele se matricularem, entre muitos inscritos, vários professores do Rio e de São Paulo. E começou, assim, a atividade pedagógica de Magdalena Tagliaferro no Brasil. Em novembro de 1941 realizou-se em São Paulo, sob os auspícios do jornal A Gazeta e em seu auditório, mais um Curso de Interpretação Musical e Virtuosidade, sendo conferidos diplomas a 23 pianistas, entre eles Oriano de Almeida, Heitor Alimonda e Iris Bianchi. E seguiram-se conferências, aulas e outras manifestações didáticas, tudo isso levando a uma completa modificação do panorama pianístico do País, ao ponto de chegarem alguns a afirmar que o ensino da música no Brasil se dividiria em dois períodos – antes e depois de Magdalena Tagliaferro –. Mas o certo é que Magdalena, sem sua presença, suas lições, sua energia, seu exemplo, sua vibração, sua confiança na musicalidade natural do povo brasileiro, não teríamos conseguido obter a necessária “massa crítica” para sustentar essa reação em cadeia que levou à formação de um excelente quadro de pianistas. De grandes pianistas como, exemplificadamente, estes dois intérpretes e professores que hoje abrilhantam a homenagem prestada à antiga mestra – Deisy de Luca e Gilberto Tinetti – que demais representam mais do que condignamente. Em 1949, já então nossa Magdalena retorna à França, onde continua a brilhar como estrela de primeira grandeza nos campos tanto da interpretação musical quanto do ensino do piano. Isso sem prejuízo de suas regulares vindas ao Brasil onde passaram a prendê-la, além de outros vínculos, alguns filhos nascidos de seu amor à arte e de seu patriotismo – as Escolas Magda 7 Tagliaferro, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a instituição da Fundação Magda Tagliaferro, responsável pela realização desta cerimônia. Em 1979, o empresário Harold Shaw, impressionado com o êxito obtido por Magdalena em concerto realizado numa das grandes capitais européias, convidou-a a se exibir nos Estados Unidos, país do qual se mantinha afastada desde 1940. Trinta e nove anos haviam decorrido desde então, e o público americano que a vira jovem, ao ler o noticiário em que se aludia à reaparição de uma “old pianist”, imaginou que adentrasse o palco do Carnegie Hall uma “velha senhora”, curvada ao peso dos anos, possivelmente conduzida por uma acompanhante. Mas quando se abriram as cortinas de proscênio, aí viu surgir uma linda e elegantíssima mulher, ostentando um vestido cintilante, tendo nas mãos um lenço da mesma cor de sua cabeleira cor de fogo, e dirigindo-se ao piano com o andar de uma deusa. Irrompeu, então, em delirantes aplausos que duraram muitos minutos, todos eles endereçados não ainda à concertista que se faria ouvir daí a instantes, mas, sim, à criatura mágica que parecia haver descoberto o segredo da eterna juventude. Fossem os nova-iorquinos como são os parisienses, e tê-la-iam descrito como fez o crítico francês Émile Vuillermoz, em 1957, ao vê-la penetrar na sala de concertos do Thèâtre des Champs Élysées: “réstia luminosa de cetim resplendoroso e uma cabeleira incandescente – longa haste cambiante em cujo cimo desabrocha uma flor de fogo”. Quanto ao concerto propriamente dito, colocou-se ele à altura da aparência da artista, tendo sido genial a forma como interpretou Bach, Chopin, Fauré, Debussy, e todo o Carnaval de Schumann. A apreciação da crítica não poderia ser melhor: “desde Rachmaninoff e Friedman não se ouvia um Carnaval assim”, escreveu o New York Times. E assegurou o New York Post: “O Carnaval interpretado por Tagliaferro trouxe sonoridade e colorido nunca ouvidos, e que marcarão época. A peça será reestudada e reavaliada a partir de Magda”. É de se salientar que os governos francês e brasileiro sempre renderam a devida homenagem a essa grande mulher que soube, sem deixar de permanecer brasileira, ser também gaulesa. E são inúmeras as condecorações que recebeu no decorrer de sua longa vida, figurando entre as mais importantes as de “Officier de la Légion D’Honneur”, em 1937 (ordem em que ingressara em 1925); “Grand Officier de l’Ordre National du Mérite”, em 1975, concedida pelo presidente francês Giscard D’Estaing; “Oficial da Ordem do Rio Branco”, em 1962, e “Grande Oficial da Ordem Nacional do Mérito Educativo”, em 1983, ambas conferidas pelo presidente José Sarney; finalmente, uma condecoração concedida post mortem pelo presidente François Miterrand. A entrega das comendas se fez algumas vezes em condições que emocionaram profundamente a homenageada, fazendo-lhe virem lágrimas aos olhos. Assim é que, em 1975, quando chegou ao Élysée para receber o título conferido por Giscard D’Estaing, foi acolhida “por sua própria música”, e durante toda a cerimônia tocou-se um de seus discos. E, já agora em terras brasileiras, ao condecorá-la, o presidente José Sarney a saudou com uma “declaração de amor” que começa por esta frase: “quem lhe escreve é um país jovem, o seu país, o Brasil”. E que assim termina, lindamente: “Por isso, esta é uma carta de amor, de amor por quem somente encheu de orgulho o Brasil, com sua extraordinária arte, com a magia de suas mãos, com a beleza de sua vida”. “Neste dia compartilho a honra de inscrevê-la no Livro de Mérito da nossa Pátria como um dos maiores instantes da inteligência e da alma brasileira”... “Aos seus pés, Alteza, reverencio a graça”. 8 Em 1985, apresenta-se pela última vez com Orquestra Sinfônica (tendo como regente Fábio Mechetti) no Teatro de Cultura Artística de São Paulo. E falece no Rio de Janeiro em setembro de 1986, em plena primavera, sem sequer perceber, num passeio de automóvel pela Cidade Maravilhosa, que lhe deixara, afinal, de pulsar o coração. O brioso coração que lhe permitira, por quase um século, viver a grande aventura da vida mergulhada na Arte, em contato permanente com a Beleza. E vêm-me ao espírito as palavras com que encerra sua biografia – Quase tudo – pequenina jóia de nossa literatura feminina: “Chego ao porto sem fadiga, feliz como um barco que tenha longamente navegado no belo”. Desenhada assim, do princípio ao fim, a curva da existência de Magdalena Tagliaferro, correspondente à curva de sua alma, cabe-nos perguntar: qual o segredo do sucesso que sempre obteve no exercício das atividades artísticas, em quaisquer dos planos em que se desenvolveram? E qual o segredo do fascínio que exercia sobre os alunos, os professores, os amigos, o público especializado, ao ponto de prendê-los à sua pessoa como fãs incondicionais mesmo depois que se foi para outras paragens? Ela própria nos dá a resposta quando, indagada sobre “o que é preciso para ser um bom artista” assim respondeu, fornecendo ao argüente a seguinte e sábia receita, em percentuais: “60% de talento, 30% de energia e perseverança no trabalho e finalmente 10% de sorte”. A fórmula se adapta perfeitamente ao seu caso pessoal. Pois que tinha talento, isso o tinha, e o fato saltava aos olhos de quem possuísse olhos para ver, e penetrava nos ouvidos de quem os tivesse para ouvir. Uma evidência que se impunha particularmente a seus mestres, desde o pai, seu primeiro professor, até Fauré, Cortot e outros, que a tiveram como aluna no Conservatório Nacional de Paris e desde logo lhe perceberam a genialidade. Que trabalhava como moura para alimentar esse talento, isso também é exato, e é ela própria quem no-lo informa quando escreve, referindo-se ao quanto precisou lutar par chegar a ser o que foi: “na verdade, minha carreira foi feita, se assim posso dizer, à força dos meus punhos”. Finalmente, que foi bafejada pela sorte, impossível negá-lo, pois possuía em alto grau qualidades de espírito, de sensibilidade, de caráter, raramente encontráveis numa só e mesma pessoa: a generosidade, o altruísmo, a cordialidade, o senso do companheirismo, a capacidade de se aproximar do “outro”, do ”próximo”, o otimismo, a alegria de viver, o charme enfim. Além do que Deus a fizera bela, não apenas de traços mas sobretudo de porte, e isso também tem seu valor, haja vista o que afirmava, carregando nas tintas, o poeta doublé de músico que foi o nosso Vinícius de Morais: “beleza é essencial”... Senhoras e Senhores Quando alguém pretende estender a própria vida para além de seus limites físicos, de maneira a permitir que sua obra permaneça e continue a beneficiar terceiras pessoas, cria uma entidade, uma pessoa jurídica, que venha a ocupar 9 o espaço deixado vazio em razão de sua ausência, de seu embarque naquela nau em que se empreende a chamada “viagem de retorno”. Dar origem a essa entidade corresponde de uma certa forma a permitir esse retorno, essa permanência no mundo dos vivos ao qual, sabendo-nos embora mortais, nos encontramos todos solidamente vinculados. Em 1969, dezessete anos antes de falecer, Magdalena Tagliaferro houve por bem de promover a criação da Fundação que lhe traz o nome, entidade cujos objetivos são, entre outros ligados ao desenvolvimento da arte musical, os de: a) ajudar a formar e desenvolver talentos musicais, beneficiando os possuidores de dons e de vocação artística no terreno da música; b) outorgar bolsas de estudos aos merecedores de tal ajuda; c) instituir prêmios escolares a outras modalidades de auxílio e incentivo, visando ao aprimoramento de ensino musical no País; d) organizar concertos e recitais para virtuosos principiantes ou laureados; e) promover anualmente a realização de Cursos Públicos e de Master Classes. Para a consecução de tais finalidades a Fundação se tem valido, em grande parte, das Escolas Magda Tagliaferro, instaladas em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo seus cursos autorizados e fiscalizados pelos órgãos competentes dos respectivos sistemas de ensino. Posso assegurar que o trabalho desenvolvido pelos que administram a Fundação ou dirigem as Escolas tem sido verdadeiramente notável. E quero crer que a melhor forma de se homenagear a memória de sua fundadora será, certamente, a de prestigiar as obras nascidas da sua inquebrantável decisão de servir à cultura, máxime à cultura musical de nosso País, tão necessitado que se acha de “crescer” no plano das coisas do espírito. “A thing of beauty is a joy for ever”, e em matéria de beleza nada há que se possa comparar à Música, a mais imaterial das artes, o mais natural instrumento de comunicação entre os homens e, por isso mesmo, um testemunho universal da grandeza do próprio homem. Ela é, a expressão autorizada do maior dos músicos, Ludwig Van Beethoven, “a manifestação mais convincente do que toda a sabedoria e do que toda a filosofia”. Prestigiemo-la, pois, todos nós – os governos, as empresas, as famílias, as entidades culturais, as igrejas, os sindicatos, a comunidade em geral – que essa é uma causa nossa, uma causa nobre, e o homem, como disse alguém (René Maheu, ex-Diretor Geral da UNESCO), é “essencialmente disponível para as nobres causas”. Muito obrigada, em nome da Fundação Magda Tagliaferro. 10 CYCLE MAGDA TAGLIAFERRO 1996 AMBASSADE DU BRÉSIL A PARIS EXPO “10 ANS SANS MAGDA” Discours prononcé en 12 Décembre, 1996 par Mme. Lêda Maria Maranhão de Figueiredo Ferraz, Présidente de la Fondation Magda Tagliaferro à São Paulo. Mesdames et Messieurs, Tout d’abord, je voudrais remercier aux organisateurs du “CYCLE MAGDA TAGLIAFERRO” de nous avoir invités à participer à cet hommage rendu à la grande Magda. En fait, cette invitation a eté interpretée par nous, que répresentons la Fondation Magda Tagliaferro au Brésil, comme une convocation. Et c’est avec le plus grande enthousiasme que nous nous associons à tous ceux qui, comme une grande famille, vennant de plusieurs continents, rendent hommage à leur maître. L’accueil de Monsieur l’Ambassadeur du Brésil – M. Carlos Alberto Leite Barbosa, et le prestige que sa présence accorde à cette cérémonie ne viennent que renforcer les liens crées par notre Ambassadrisse de la Musique au Brésil et en France. Voilà dix ans qu’elle est disparue. Au Brésil. À Rio de Janeiro. Et poutant, elle se fait vivante dans nos mémoires, comme le symbole d’une nouvelle mentalité musicale, révolutionnaire par sa technique, son interprétation créatrice et par les couleurs de sa sonorité. A partir de 1940, l’enseignement du piano au Brésil prenait un nouvel essor avec la création de l’École Magda Tagliaferro, engagée dans une oeuvre de formation de jeunes talents. Cette action s’est élargie par la mise en oeuvre de la Fondation, conçue par Magda Tagliaferro, elle-même, en 1969, pour décerner des bourses d’études à de jeunes pianistes et les lancer dans la carrière internationale. Aujourd’hui, revitalisée par les efforts d’un groupe d’ex-élèves idéalistes, la Fondation poursuit sa mission, toujours au service de projets culturels, visant à diffuser et à multiplier son oeuvre artistique et éducationnelle. C’est ainsi que, dans la double intention de former l’élève et le public auditeur, nous nous sommes lancés dans des activités comprenant la réalisation de concours, de concerts et de “master classes”, celles-ci rendues possible grâce au concours de professeurs invités, de renommée internationale, comme Flávio Varani, Cristina Ortiz, Deisy de Luca, Silvia Tuxen-Bang, pour en citer quelquesuns. Un vrai succès depuis 1993. 11 Parallèlement, le besoin de préserver les einsegnements et l’histoire de Magda Tagliaferro nous a menés à développer l’idée du Musée Biographique, constituant ainsi la mémoire de son oeuvre enregistrée, écrite et filmée. Des archives sonores ont été formées para la collection et la réunion d’enregistrements provenant de différentes sources. À la suite, nous avons pris en charge l’actualisation de ces archives par la production du premier CD de Magda Tagliaferro, 1991, lancé sous le nom “Revival” et détenteur du prix de l’Association des Critiques d’Art de São Paulo (APCA). Les archives se sont enrichies de films vidéos faits à partir de ses concerts et intervews pour la télévision et des commentaires de personalités du monde musical sur sa carrière. A cela s’est ajouté le précieux film de François Reichenbach, “Magda Noble et Sentimentale”. En ce qui concerne la documentation écrite, outre l’organisation de ses conférences, de ses lettres, de son livre autobiographique et de toute sorte de références à sa carrière et à sa personalité, la Fondation a pris l’initiative de concervoir et de publier le Catalogue Commémoratif du Centenaire de Magda Tagliaferro (1893-1993), sponsorisé par le Sécretariat de Culture de l’Etat de São Paulo, qui a vraiment été une réussite éditoriale et culturelle. Nous avons encore des projets en voie de réalisation: prévue pour mars 1997: édition en portugais du livre de son ancienne élève Asako Tamura, déjà publié au Japon, visant à la divulgation de la technique pianistique systematisée par Magda Tagliaferro et, encore, pour bientôt, la publication des conférences qu’elle a proferées depuis les années 1940. Tels sont nos défis et les résultats de nos efforts dans cette enterprise qui ne cesse de nous pousser à aller plus loin, en cherchant à sensibiliser de nouveaux sponsors et collaborateurs réunis autour de la confiance et de la foi dans l’éducation par la musique. Enfin, je voudrais évoquer les paroles de Magda Tagliaferro qui constituent le support et le guide de notre action. 12 CICLO MAGDA TAGLIAFERRO 1996 EMBAIXADA DO BRASIL EM PARIS EXPO “10 ANOS SEM MAGDA” Discurso pronunciado em 12 de dezembro de 1996 pela Sra. Lêda Maria Maranhão de Figueiredo Ferraz, Presidente da Fundação Magda Tagliaferro em São Paulo. Senhoras e Senhores, Inicialmente, gostaria de agradecer aos organizadores do “Ciclo Magda Tagliaferro” por nos ter convidado a participar desta homenagem à grande Magda. Na verdade, este convite foi considerado por nós, que representamos a Fundação Magda Tagliaferro no Brasil, como uma convocação. É pois, com grande entusiasmo que nos associamos a todos que, como uma grande família, vindos de vários continentes, rendem homenagem à sua Mestra. A acolhida do Senhor Embaixador do Brasil – Sr. Carlos Alberto Leite Barbosa – e o prestígio de sua presença nesta cerimônia, só reforçam os elos criados por nossa Embaixatriz da Música no Brasil e na França. Há dez anos desaparecia Magda Tagliaferro. No Brasil. No Rio de Janeiro. E, no entanto permanece viva em nossa memória, como símbolo de uma nova mentalidade musical, revolucionária pela sua técnica, pela sua interpretação criadora e pelas cores de sua sonoridade. A partir de 1940, o ensino do piano no Brasil tomava novo impulso com a criação da Escola Magda Tagliaferro, engajada no trabalho de formação de jovens talentos. Esta ação ampliou-se com a implantação da Fundação concebida pela própria Magda Tagliaferro, em 1969, para conceder bolsas de estudo a jovens pianistas e os lançar na carreira internacional. Hoje, revitalizada pelos esforços de um grupo de ex-alunos idealistas, a Fundação persegue sua missão, sempre a serviço de projetos culturais, visando difundir e multiplicar sua ação artística e educacional. Desse modo, na dupla intenção de formar tanto o aluno como o público ouvinte, dedicamo-nos às atividades que englobam a realização de concursos, de concertos e de master classes, contando com a colaboração de renomados professores internacionais, tais como; Flávio Varani, Cristina Ortiz, Deisy de Luca, Silvia Tuxen-Bang, para citar alguns. Verdadeiro sucesso desde 1993. 13 Paralelamente, a necessidade de preservar os ensinamentos e a história de Magda Tagliaferro nos levou a desenvolver a idéia do “Museu Biográfico”, constituindo-se, assim, na memória de sua obra gravada, escrita e filmada. Formamos um arquivo sonoro, coletando e reunindo gravações vindas de diferentes fontes. Em seguida, promovemos a remasterização desse arquivo, produzindo o primeiro CD - Revival - de Magda Tagliaferro em 1991, detentor do prêmio da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo (APCA). Os arquivos enriqueceram-se com a aquisição de vídeos de seus concertos e entrevistas para a televisão e com pronunciamentos de personalidades do mundo musical sobre sua carreira. Acrescentamos a tudo isso, ainda, o precioso filme de François Reichenbach, Magda Noble et Sentimentale. No que diz respeito à documentação escrita, como à organização de suas conferências, de suas cartas, de seu livro autobiográfico e de toda sorte de referências à sua carreira e à sua personalidade, a Fundação concebeu e publicou o Catálogo Comemorativo do Centenário de Magda Tagliaferro (18931993), patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, alcançando verdadeiro sucesso editorial e cultural. Temos ainda alguns projetos em curso, previsão para março de 97, da edição em português, do livro de sua ex-aluna Asako Tamura, já publicado no Japão, visando a divulgação da técnica pianística sistematizada por Magda Tagliaferro e ainda, em breve, a publicação de suas palestras proferidas desde os anos 40. Tais e tantos são os desafios e os resultados de nossos esforços nesta empreitada, que não cessam de nos motivar a ir mais longe, buscando sensibilizar nossos patrocinadores e colaboradores que confiam e acreditam na educação pela música. Ao terminar, gostaria de lembrar as palavras de Magda Tagliaferro que constituem o suporte a guiar nossa ação. 14 DISCURSO PROFERIDO POR MAGDA TAGLIAFERRO POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO La mission musicale à laquelle j’ai consacré ma vie est depuis un certain temps destinée à léguer par mes enseignements aux jeunes le fruit de mon labeur et de ma longue expérience dans la carrière de virtuose. Toutefois je considerais cette mission comme incomplète si je ne faisais naître cette Fondation qui habite en mon esprit depuis longtemps et que je considère l’aboutissement de mes principes de solidarieté humaine. Devant la crise très grave que la musique traverse dans le monde et particulièrement en France, je ne me reconnais pas le droit de ne pas songer aux talents qui désormais et encore plus que par le passé, n’auront pas d’issue, aussi bien dans leur formation que dans leur éclosion et que dans leur lancement. On ne saurait imaginer le nombre de talents très prometteurs qui ne s’accomplissent pas du fait d’un manque de moyens vitaux. Ceux qui, une fois parvenus, à suite d’années d’effort, de travail e de sacrifice, à mettre leur talent au point pour se présenter en public puis finalement gagner leur vie, n’ont pas les moyens financiers pour le faire ou les relations qui consentent à les aider. En un mot celà se résume à des vocations perdues et à des vies marquées. Je souhaite donc : 1. Révéler de jeunes et réels talents ; 2. Créer des bourses d’étude leur permettant de se réaliser ; 3. Les lancer dans la carrière de virtuose. Voilà concretisé le triple noble but que je propose à ceux qui, comme moi, estiment que, si les jeunes sont le monde de démain, la musique, elle, est un lien éternel entre les peuples, puisque son langage est international et par làmême, le plus sûr et le plus direct rapprochement du coeur de l’humanité. São Paulo, 1969 15 DISCURSO PROFERIDO POR MAGDA TAGLIAFERRO POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO A minha missão, à qual consagrei minha vida, é, desde um certo tempo, destinada a legar aos jovens, através de meus ensinamentos, o fruto da minha longa experiência na minha carreira de virtuose. Entretanto, consideraria esta missão incompleta se eu não criasse esta Fundação que habita o meu espírito desde muito tempo e que considero o coroamento de meus princípios de solidariedade humana. Diante da crise tão grave que atravessa a música no mundo e particularmente na França, não me dou o direito de não sonhar junto a esses talentos, que doravante, e sobretudo pelo seu passado, não terão sucesso, tanto na sua formação quanto na sua profissionalização e no seu lançamento junto ao mercado de trabalho. Não se poderia imaginar o grande número de talentos promissores que não completam a sua formação pela falta de meios vitais. Após longos anos de esforços, de trabalho e de sacrifício para desenvolver seu potencial e, finalmente, ganhar sua subsistência como músicos, esses talentos não possuem os recursos financeiros necessários e nem o apoio de pessoas que poderiam ajudá-los a se tornarem profissionais. Numa palavra, isso se resume a vocações perdidas e a vidas ceifadas. Espero portanto: 1º 2º 3º revelar jovens e verdadeiros talentos, criar bolsas de estudo permitindo-lhes seu aprimoramento, lançá-los na carreira de virtuose. Eis aí, concretizada, a tríplice e nobre finalidade que eu proponho aos que, como eu, acreditam que, se os jovens são o mundo de amanhã, a música, ela própria, é um elo eterno entre os povos, já que sua linguagem é internacional e por isso a mais segura e a mais direta aproximação do coração da humanidade. São Paulo, 1969 16 1 Discursos 17 18 ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1952 Não vou fazer um discurso ! Desejo apenas anunciar que após a última obra a quatro mãos inscrita no fim do programa desta audição, haverá um número extra! Acontece que eu também resolvi, em última hora, me inscrever para tocar na audição de hoje, a fim de deixar às minhas “filhas e filhos” do Curso Infantil uma pequena lembrança musical antes da minha partida para a Europa, participando juntamente com vocês desta esplêndida demonstração do trabalho realizado este ano pelos professores assistentes da nossa Escola. Não me sendo possível tocar com cada um de vocês, escolhi a mais antiga das alunas do Curso Infantil, que, aliás, passa no ano que vem para o Curso Juvenil e que portanto se apresenta pela última vez nesta audição, a fim de executarmos, juntas, duas composições de Gabriel Fauré para quatro mãos: a “Berceuse” e “Mi-a-ou”, de “Dolly”. Encerraremos pois este programa com essas duas obras, na execução de Lêda Maria Maranhão e Magdalena Tagliaferro. Dezembro de 1952 19 ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1946 Minhas Senhoras, meus Senhores, Meus Caros Alunos, Devemos ao imortal escritor francês, Anatole France, uma das observações mais concisas e penetrantes sobre o objetivo do ensino. “Toda a arte de ensinar”, dizia o autor do Le Lys Rouge, “reside apenas na faculdade de despertar a curiosidade natural dos jovens espíritos, a fim de leválos a encontrar, mais tarde, o meio de satisfazer essa curiosidade”. No plano do ensino musical, coincide perfeitamente essa definição com a finalidade deste Curso de Alta Interpretação, o qual, durante os seis anos da sua existência, tem visado a proporcionar a dezenas de jovens e talentosos pianistas os recursos necessários para satisfazerem a sua curiosidade interpretativa e captar o clima específico a cada obra do repertório pianístico. As lisonjeiras palavras que acaba de proferir o Sr. José Magalhães Graça, porta-voz oficial dos pianistas participantes e dos ouvintes deste Curso, me levam a acreditar que não estamos longe de ter alcançado esse elevado objetivo. Aliás, torna-se patente o caminho percorrido, tanto pela importância das obras escolhidas, como pela qualidade e o aprimoramento das execuções realizadas neste palco, e não posso deixar de felicitar calorosamente os pianistas que se fizeram ouvir este ano, e que têm revelado, cada um na sua esfera, mais um grande passo para frente, na arte de reproduzir a comovente mensagem deixada pelos grandes Mestres da Música, e também de transmiti-la ao ouvinte na sua mais genuína expressão. No que diz respeito à repercussão deste ensino no meio do público desta Capital, que continua demonstrando com sua assídua presença o seu interesse pela valiosa iniciativa do Sr. Ministro da Educação, basta se referir ao relatório que vou ter a honra de entregar ao Ministro, sobre o Curso de Alta Interpretação Musical de 1946, e que contém, além do resumo das nossas atividades artísticas, uma relação pormenorizada dos ouvintes inscritos, cujo número atingiu, este ano, o total de 1293. Provas tão eloqüentes tornam supérfluo qualquer outro comentário. Desejo apenas renovar aqui os meus sinceros agradecimentos ao Sr. Ernesto de Souza Campos, Ministro da Educação, pela confiança que se dignou depositar em mim, pela atenção dispensada desde o início deste Curso e também por outro fator, de valor inestimável para nós todos, a presença do Sr. Ministro a algumas destas aulas, que tanto nos sensibilizou e nos honrou. Rio de Janeiro, 1946 20 REUNIÃO COM SÁ PEREIRA Meus Caros Amigos, Conheceis a anedota que contam a respeito de Mark Twain e um dos seus amigos, também escritor e humorista, que deviam ambos falar na ocasião de um banquete em Nova York. Mark Twain falou durante 20 minutos e seu discurso foi recebido com caloroso entusiasmo. Quando chegou a voz do seu amigo, este se levantou e disse apenas: “Ladies and Gentlemen, antes de sentarmos nesta mesa, resolvemos, Mark Twain e eu, trocar entre nós os discursos que tínhamos preparado. O Sr. Twain acaba de pronunciar o meu, e fico-lhes sinceramente grato pela acolhida que lhe destes. Lamento, porém, ter extraviado o discurso dele e não poder me lembrar, de maneira alguma, do que ele tinha a dizer”. A não ser a verve, a eloquência, e o espírito marktwainiano do meu ilustre amigo, o professor Sá Pereira, o caso, hoje é bastante diferente. Em primeiro lugar, tinha ficado entendido que não haveria discurso, e foi somente hoje à tarde, no momento de sair de casa, que soube dessa “traição” de última hora. Não posso alegar, por outro lado, que o professor Sá Pereira tenha permutado seu discurso com o meu, pela simples razão que ele introduziu, propositalmente, entre outras coisas que eu poderia ter dito, palavras de elogio sobre o meu modesto trabalho que eu seria, naturalmente, incapaz de pronunciar. Enfim, cada vez que se manifesta em mim a veleidade de falar em público, surge na minha memória a história que Joseph Chamberlain gostava de contar e que ele garantia ser autêntica. O Primeiro Ministro Britânico (não se trata de inventor do guarda-chuva mas bem do seu antecessor) presidia, numa cidade do norte da Inglaterra, festiva cerimônia de inauguração, iniciada com um grande almoço oficial. O prefeito da cidade, na hora em que iam servir o café, se aproximou do convidado de honra e lhe disse discretamente: Senhor Chamberlain, será que deixamos toda essa gente se divertir mais um pouquinho ou acha Vossa Excelência melhor fazer o seu discurso agora? Por todos esse motivos, e já que não posso encontrar palavras que traduzam, como eu queria, limitar-me-ei em dizer-vos meu profundo reconhecimento por esta hora de afeto mútuo e por esta inesquecível manifestação de vossos sentimentos para comigo. Agradeço do fundo do coração ao meu grande amigo Sá Pereira e os que tiveram a idéia desta carinhosa reunião e souberam, por meio de tão feliz realização, me proporcionar a grande alegria de encontrar aqui assistência tão 21 representativa da nossa elite artística e social, tantos verdadeiros e queridos amigos. Agradeço a todos vós este ensejo de estreitar e consolidar ainda os laços de recíproca compreensão e confiança que nos unem, e de afirmar com tanta eloqüência nossa fé na elevação e difusão da nossa cultura, no futuro dos nossos jovens talentos musicais, tão brilhantemente representados aqui e nossa inabalável confiança no glorioso destino artístico da nossa terra. A todos vós, por tudo quanto fazeis e ainda fizerdes, a fim de assegurar o êxito dessa grande obra cultural no desenvolvimento da qual será sempre para mim motivo de imenso orgulho ter modestamente contribuído, um grande, muito grande obrigado! Rio de Janeiro, encerramento do curso de 1946 22 HOMENAGEM À MEMÓRIA DE JACQUES THIBAUD Magdalena Tagliaferro no programa radiofônico França Eterna, comemoração ao segundo aniversário da morte do ilustre violinista. em Por iniciativa da grande pianista Magdalena Tagliaferro, representante na América do Sul do Comitê Jacques Thibaud – constituído na França após o trágico desaparecimento do célebre violinista francês – será promovida na próxima quarta-feira, às 20 horas no programa da ............ (França Eterna), uma especial homenagem em comemoração do segundo aniversário da morte desse inesquecível virtuose. Esse programa constará de uma alocução por Magdalena Tagliaferro e outra, especialmente gravada em Paris para este fim, pelo eminente Ministro Marcel Edmond Naegelen, presidente do mencionado Comitê Jacques Thibaud. Encerrar-se-á essa homenagem com a execução ao piano de duas obras do músico francês interpretadas por Magdalena Tagliaferro que comparecerá pessoalmente no estúdio da PR.......nessa ocasião. Decorrem, amanhã, exatamente dois anos do musical abalado pelo trágico desaparecimento Jacques Thibaud, vitimado pela explosão, num avião “Constellation” que o conduziria ao Japão levar a supremacia e o requinte da sua arte. dia em que ficou o mundo do célebre violinista francês morro do Sul da França, do onde, mais uma vez, ele iria Associando-se às comovidas homenagens, prestadas no mundo inteiro à memória daquele incomparável mestre, e enquadrando-se perfeitamente neste vibrante programa de “França Eterna”, unem-se hoje, através deste microfone, duas vozes em uníssono: a voz da França, na palavra do Exmo. Sr. Ministro Marcel-Edmond Naegelen, deputado das “Basses Alpes”, ex-Ministro da Educação Nacional e ex-Governador da Argélia, que ouvireis numa gravação especialmente dedicada a esta comemoração, e, em vosso nome, uma voz do Brasil, isto é, a voz de um país que, desde sua história mais remota, acha-se ligado à França, à cultura e ao espírito francês e, conseqüentemente, aos grandes vultos aos quais se deve esse espírito, essa cultura. O Ministro Naegelen desempenha, juntamente com o Sr. François Mauriac, da Academia Francesa, o cargo de Presidente de Honra da Sociedade “Les amis de Jacques Thibaud”, fundada sob o alto patrocínio do Exmo. Sr. Presidente da República Francesa e do Sr. Presidente Herriot, Presidente de Honra da Assembléia Nacional, com o intuito de perpetuar a gloriosa memória do maior expoente da arte violinística francesa. Fazem parte do Comitê de Honra dessa Sociedade, além do atual titular da pasta da Educação Nacional e de outros personagens oficiais, o Diretor do Conservatório de Música de Paris: Sr. Marcel Dupré, o Diretor da Ópera e dos Teatros Nacionais: Sr. Jacques Ibert, os Maestros Paul Paray e Charles Münch, o Sr. Fernand Gregh, da Academia Francesa, o grande violinista Fritz Kreisler, a baronesa Edouard de Rothschild e minha modesta pessoa. Os trabalhos dessa Sociedade são dirigidos por um Comitê Executivo de cinco membros, encabeçado pelo eminente mestre Jules 23 Boucherit, e pelo Sr. Philippe Thibaud, filho do grande Jacques Thibaud, sendo secretários o Sr. Marcel Diamant-Berger e a violinista Denise Soriano, e sendo tesoureiro o Sr. du Villars. Ouviremos agora alguns trechos da alocução do Ministro Marcel Naegelen, Presidente da Sociedade “Os Amigos de Jacques Thibaud”. ................................................................................................... Na prestigiosa linhagem de vultos imortais que forjam a história do nosso universo, ocupa certamente lugar privilegiado o inesquecível virtuose, eleito dos deuses, em que se fundiu o gênio interpretativo latino na sua mais pura essência e perfeição, em que a emoção artística nunca se deixou superar pela simples virtuosidade e cuja suprema sensibilidade e sutileza emprestavam à sonoridade do seu instrumento e à magia das suas atuações, aquele “Charme” inconfundível que sempre foi o predicado exclusivo de Jacques Thibaud. Chamavam-no os seus amigos e discípulos pelo apelido de “L’Enchanteur” e não era sem razão. Raramente tem chegado outro artista a irradiar, tão generosamente quanto o fez Jacques Thibaud, as vibrações da sua prestigiosa personalidade. Poucos são também os virtuoses que, ao alcançar a celebridade, souberam, como ele, conservar a simplicidade, a bondade, a juventude do coração e aquele instinto que o levava, sempre, a embelezar tudo o que a vida tinha de material. Foi com ele que realizei a minha primeira tournée na Europa, pouco tempo depois de me ter formado no Conservatório de Paris. Essa excursão artística, de uma menina de 15 anos, no início da sua carreira, e de um violinista já famoso, que abrangeu, entre outras, a capital e as grandes cidades da Rússia, com programas de sonatas de Mozart, Beethoven e César Franck, estabeleceu entre nós laços indestrutíveis de uma amizade sempre crescente, que foi se enraizando cada vez mais e culminou com nossa estreita colaboração na banca do Grande Júri do Concurso Internacional que ele fundou em 1943, juntamente com Marguerite Long, Júri do qual ele, Thibaud, ainda participara ao meu lado, seis semanas antes daquela pavorosa catástrofe do “Constellation”. O golf e o tênis eram os esportes prediletos de Thibaud. Nunca esquecerei as nossas partidas em Paris, no Clube de Tênis de Auteil, na época em que o Trio Cortot-Casals-Thibaud se tornara o mais célebre do mundo. Thibaud costumava vir me buscar para me levar ao clube, onde Cortot sempre chegava primeiro, pelo motivo de que Thibaud costumava se demorar comprando doces na Confeitaria Coquelin. Casals também jogava ou assistia às partidas em que numerosos músicos compareciam para enfrentar Thibaud que sempre se distinguia, assinalando-se o seu jogo pela mesma elegância que ostentava na rua, no palco e nas suas inesquecíveis interpretações. Jacques Thibaud era, de máxima do virtuose ao simultaneamente com a assombrosa sucessão de fato, o “Charmeur” por poder de aristocrática gloriosa consagração declarações de amor e 24 excelência, unindo a arte sedução que lhe valeu, do seu talento, a mais irrestrita admiração jamais dirigida a um artista – que não fosse do cinema – por seus fãs de todas as partes do mundo. Apesar de vivermos uma época bastante caótica, em que as emoções violentas, pela freqüência dos acontecimentos, muitas vezes perdem o seu caráter impressionante, o desaparecimento de Jacques Thibaud veio, entretanto, chocar brutalmente as fibras mais profundas da nossa sensibilidade. Ficou enlutado todo mundo da música, o público de todos os continentes, e mais dolorosamente atingidos foram, além dos seus amigos mais íntimos, os jovens violinistas de tantos países que perderam um amparo precioso, um braço possante e pronto a auxiliá-los. Eis porque, nesta data, cabe aos músicos do Brasil e das Américas juntar o seu pensamento comovido ao dos músicos da França e outros países do velho continente, para recordar a memória do mestre deslumbrante e genial, do amigo insubstituível, do artista incomparável, reafirmando em nosso coração e em nosso espírito, o culto e a admiração pelo saudoso Jacques Thibaud, “L’Enchanteur”. Encerrando as palavras que, em nome da Sociedade “Os Amigos de Jacques Thibaud”, acabo de dirigir aos ouvintes de França Eterna, interpretarei agora uma das obras pianísticas que o meu ilustre amigo Jacques gostava mais ouvir: é o comovedor prelúdio de Debussy intitulado “La Cathédrale Engloutie”. ................................................................................................................................ Encerraremos agora esta comemoração do segundo aniversário da morte do grande violinista francês, com a audição de uma das obras-primas do seu repertório, a célebre “Havanaise” op. 83, de Saint-Saëns, que ouviremos em gravação original, e acompanhamento de Tasso Yanopoulos ao piano, na prodigiosa interpretação do próprio Jacques Thibaud. 25 CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO E VIRTUOSIDADE DE 1941 INTRODUÇÃO Primeira aula, segunda-feira 14 de abril de 1941 Senhoras, Senhores, Caros Alunos, No dia da Abertura dos cursos de Sociologia, na Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, o professor Eubank iniciou este ano a sua aula, entregando a cada um dos estudantes presentes um “centavo” com a efígie do antigo Presidente Lincoln, após o que escreveu no quadro-negro a seguinte data “Ano 3.000 da Era Cristã” e disse: “Suponhamos que o Congresso Internacional de Etnologia, seja convocado no ano 3.000 da Era Cristã, para uma reunião especial a fim de discutir uma descoberta importante, pertinente à civilização de 1941, da qual todos os vestígios estivessem perdidos até então. A 300 metros de profundidade, declara o Presidente do Congresso, achamos alguns pequenos discos de cobre, dos quais cada um dos membros aqui reunidos possui um exemplar. Vocês terão de se servir unicamente dos seus conhecimentos das línguas antigas, de se por no ambiente do século ao qual me refiro, e dizer quais as deduções sugeridas ao seu espírito pelo exame dessas peças de cobre, relativamente à civilização daquela época.” O professor deu aos alunos cinco minutos, para examinar o centavo e resumir as suas observações por escrito. Eis aqui os fatos que o exame meticuloso e o espírito agudo dos estudantes permitiu descobrir: 1º Este disco de cobre é, sem dúvida, uma moeda; por conseguinte, a civilização de 1941 possuía um sistema e uma organização de negócios, de finanças e de câmbio; 2º O cobre sendo utilizado, a indústria mineira era conhecida; 3º A metalurgia era também conhecida, pois que o disco de cobre é cunhado e afinado; 4º Uma linguagem escrita existia; 5º A prática da agricultura tomava um lugar importante na vida dessa época, já que as espigas de trigo estão reproduzidas nesta moeda; 6º A cultura do trigo sendo praticada, as condições meteorológicas deviam ser favoráveis, o clima sendo portanto mais ou menos moderado; 26 7º As artes e a estética faziam parte da educação e da cultura, pois que a moeda é desenhada com cuidado da forma e da beleza; 8º Aquela civilização tinha conhecimento das civilizações anteriores, esse fato sendo demonstrado pela data inscrita na moeda e pela frase em língua latina; a data é também a prova da existência do calendário; 9º As palavras United States (Estados Unidos) indicam que o país possuía uma forma de governo; a palavra Liberty (Liberdade) prova que o governo era uma forma democrática, isto é, dirigido pelo povo; 10º Uma forma evoluída de vestuário era conhecida; 11º A religião dessa época era baseada sobre o monoteísmo quer dizer, sobre a existência de um único Deus. Essa história, absolutamente autêntica, e aliás bem típica da psicologia norteamericana, não tem só por fim revelar-vos uma fórmula de ensino original e bastante feliz, na união do estudo e do recreio. Se os estudantes de Universidade de Cincinnati puderam, em cinco minutos, e à custa, apenas, de um pequeno esforço de inteligência, descobrir tantas coisas importantes numa minúscula peça de cobre, pode parecer estranho constatar que tantos executantes, apesar do estudo prolongado de uma obra musical, não consigam, na maioria dos casos, descobrir, nela, toda a beleza e todos os acentos sensíveis e profundos, que o autor semeou na sua composição. É verdade que a escritura musical não divulga mais do que a parte estrutural de uma obra; mas, a moeda tampouco não revela, à primeira vista, todos os fatos que acabo de vos enumerar, e que surgiram por força do raciocínio, da intuição, do espírito dos estudantes da classe de sociologia, depois de terem “interpretado” o sentido das inscrições e dos desenhos reunidos no cunho do centavo. No domínio da música, o espírito, a forma, o pensamento de uma obra, e tudo o que o autor pôs nela de suas paixões, de seus sofrimentos, de seus entusiasmos, de suas decepções, da vida enfim, tudo isso nem se define nem se grava com caracteres musicais, esse últimos, às vezes, verdadeiros hieróglifos, suficientes apenas para explicarmos o lado técnico da execução. O magnífico resultado da fusão, da oposição e do choque dos sons, é expressão do belo, do intenso dinamismo, da dor ou da alegria, só podem chegar a uma forma tangível e comovedora na alma do ouvinte, quando esse conjunto consegue despertar, no cérebro e no coração do intérprete, os ecos verdadeiros das intensas vibrações do autor. Com efeito, a emoção artística que o intérprete procura comunicar ao público, na execução de uma obra musical, não pode ser uma mera aproximação, esse labirinto mágico e perturbador que se chama “‘interpretação”, essa porta aberta à sensibilidade, à intuição, às divagações do espírito e do coração, tem que obedecer, apesar de tudo, a uma regra imutável: a realização integral do pensamento do seu criador. 27 O segredo da boa interpretação musical não reside somente à mestria do executante no domínio técnico, mas sobretudo nessa faculdade, nesse poder que ele deve possuir, de dar vida à peça executada. As grandes obras de arte, sob o impulso do espírito e da alma do intérprete que nelas se incorpora, renascem assim, cada vez com mais potência e esplendor, e os que conseguem dar uma vida nova a uma obra musical são verdadeiramente os únicos que realizam a sua missão. Sim, meus caros amigos, a carreira musical é uma missão, e o grande erro de tantos intérpretes é justamente não se terem suficientemente compenetrado desse preceito fundamental. No decorrer destas aulas, terei várias oportunidades de expor-vos algumas idéias minhas sobre os múltiplos aspectos dessa missão; porém, posso confessar-vos desde já que a finalidade deste curso não é somente procurar abrir novos horizontes musicais aos jovens artistas da nossa terra e revelar-lhes as qualidades de espírito, de compreensão, de sensibilidade e todo o áspero trabalho que exige a arte da interpretação. Minha maior ambição, minha profunda aspiração, ao ministrar estas aulas, é conseguir ao mesmo tempo encaminhar os nossos jovens executantes para a concepção verdadeira do que deve ser um ideal de artista. Atingir essa sublimidade não é coisa fácil, mas, para poder vencer os obstáculos, as dificuldades materiais, as ciladas que invariavelmente se apresentam nesse caminho, é imprescindível convencer-se, desde o início, que a carreira musical, seja a de virtuose ou de professor, é realmente um “apostolado”. E, esse apostolado, essa missão elevada, só podem ser cumpridos se essa carreira permanece colocada bem alto no domínio do espírito, e se essa profissão se desenvolve constantemente num ambiente de perfeita dignidade e de integridade absoluta, sem as quais não há grandes artistas, mas somente comedores de notas ou cabotinos. Convencido dos deveres e das responsabilidades inerentes à sua carreira, o intérprete-missionário não poderá executar uma obra-prima, sem ressentir a mais íntima emoção, e o respeito mais admirativo, diante do conjunto de fatores, tão diversos, e um tanto milagrosos por eles mesmos, que se acham concretizados nessa obra. Não vos parece, com efeito, comovente, o fato de um indivíduo, na aparência igual a qualquer outro, possuir no seu cérebro, modelado pela mão de Deus, o germe do gênio que originará essa faísca da qual surge a obra-prima ? Refletindo sobre tudo isso, o artista-intérprete chegará a apreciar com maior serenidade e julgar, com mais reverência, a beleza e a grandeza de tudo o que o artista-criador pôs de si mesmo, na sua composição. O fato, infelizmente tão freqüente, de ver intérpretes mutilarem uma obra, seja na sua forma, seja na sua expressão, revela-se, então, como um verdadeiro crime, crime que poderia ser evitado se o artista fosse sempre digno desse nome e realmente consciente da sua responsabilidade e da sua missão. Essa responsabilidade é evidente e indiscutível, e o intérprete que tem a audácia de executar uma obra, antes de tê-la estudada a fundo, e antes de ter-se impregnado das verdadeiras intenções do seu autor, assim como o que usurpa o direito de deformá-la ou de amputá-la cometem um ato de vandalismo imperdoável. Nisto, eles ficam sendo, o que poderíamos chamar, os gangsters da música, e já que o Código Penal ainda não considera os seus delitos como sendo puníveis pelos tribunais, é ao público, aos críticos musicais, ao tribunal 28 dos desejosos de preservar intacto, o maravilhoso patrimônio artístico, e a herança dos imortais compositores, é a nós todos, que incumbe o dever de infligir a esses criminosos, sob a forma do desprezo o mais absoluto, a pena que eles merecem. .................................................. Tencionando dedicar, nas aulas da próxima série, duas preleções ao estudo pormenorizado da “Interpretação Musical” em geral, e à realização prática de árduo processo da “Interpretação Pianística”, limitarei hoje às observações de conjunto que acabo de resumir esse meu primeiro esboço de tão importante assunto. Porém, a fim de pôr-vos desde já em contato com certos aspectos dos inúmeros problemas que teremos de resolver, no decorrer destas aulas, dar-vos-ei agora algumas ilustrações ao piano, escolhidas propositalmente entre obras conhecidíssimas, as quais focalizarão no vosso espírito o papel primordial que a interpretação deve desempenhar para nos permitir entrever a infinita beleza da verdadeira expressão musical. A identificação do executante com o pensamento do autor é imprescindível para determinar o gênero da interpretação que exige uma obra. Esse pensamento se reflete, na maioria dos casos, nos títulos dados pelo autor, ou, quando esses não são bastante sugestivos, nas indicações de andamento, e outras, geralmente suficientes para revelar o caráter de uma composição, e a palavra “Interpretação” resume claramente o conjunto de fatores que o executante deve exteriorizar para conseguir interpretar fielmente todas as intenções do compositor. Quando este intitula uma peça: “Noturno”, quando o andamento indicado é vagaroso, quando tudo mostra que se trata de uma obra poética e expressiva, mal se compreende ouvir, por exemplo, o 4º Noturno de Chopin, tocado em forma de valsa, como me aconteceu constatar recentemente – não aqui em São Paulo, naturalmente, mas digamos, – numa ilha longínqua. Conheceis esse noturno, dos mais encantadores. Pois bem, eis aqui, quase sem exagero, o que ouvi: (imitação) Pessoalmente, eu acho melhor respeitar o desejo de Chopin, e conservar o caráter de Noturno: (Execução) O caso dessa aluna, que não conhecia a diferença entre uma valsa e um noturno, me lembra o exame de admissão ao Conservatório de Paris, ao qual assisti há alguns anos e no decorrer do qual o diretor perguntou a um candidato: — Quantas sinfonias escreveu Beethoven? — Três, responde o aspirante, com absoluta convicção. — E quais são as três, por favor? — A Pastoral, a em Dó Menor e a Nona! Voltando às minhas ilustrações interpretativas, procurarei agora reproduzir uma inesquecível execução – que poderia até qualificar de capital – da Polonesa em 29 Lá Bemol Maior, que ouvi – na mesma ilha – tocada como uma “Romança sem Palavras”, é mais ou menos assim: (imitação) No entanto, sabeis que essa Polonesa, chamada de “Heróica”, deve ser tocada com majestoso entusiasmo, e evocar as maiores proezas guerreiras, isto é, (Execução) Conhecemos, todos, o amador de música, que acredita que tocar com sentimento consiste em derreter-se sobre cada nota, e o qual, no caso de “Sonho de Amor” de Liszt, nos oferece, por exemplo, a seguinte interpretação: (Imitação) Em vez de que é tão mais simples tocar essa obra, realmente “Expressivo” executando-a apenas conforme está escrita, com simplicidade: (Execução) Tocar apenas como está escrito. É curioso que seja este o ponto mais fraco de tantas interpretações. E os executantes que omitem ou acrescentam tão inesperadamente notas, pausas, inflexões ou pedais, nem sempre podem invocar a anedótica desculpa do trombone da orquestra de Richter. Hans Richter, o famoso regente e intérprete das obras de Wagner, ensaiava uma ópera com a orquestra de Viena quando, durante uma pausa claramente indicada na partitura, o trombone toca, de repente, uma nota. Richter, surpreendido, pergunta ao instrumentista a razão dessa investida imprevista! – Mas, maestro, esta nota existe sobre minha partitura, responde o trombone. – Deixe ver esta música, grita Richter, pouco convencido. O trombone apanha sua partitura, mas ao mesmo instante descobre com espanto que a nota tinha voado fora. – Era apenas uma mosca, maestro, disse ele meio aterrorizado, e acrescentou com perfeita candura: “e no entanto, eu a executei”. Existe, também, o intérprete que considera o piano como se fosse um esporte e que escolhe uma execução musical para se classificar como campeão de corrida. É assim que ouvimos com freqüência o final da “Sonata Apassionata” de Beethoven, tocada do modo seguinte: (Imitação) Como o podemos constatar, trata-se neste caso para o pianista, de ganhar a corrida custe o que custar, e de engolir para esse fim, todos os obstáculos que se apresentam sob a forma de respirações, pausas e tantos outros sinais, que lhe parecem supérfluos. No entanto, o caráter deste final acha-se nitidamente indicado pelo título da Sonata, Apassionata, pelos silêncios, pelo ritmo e a expressão da mão esquerda e por tantos outros pormenores, que permitem dar a esta execução seu verdadeiro sentido: 30 (Execução) Acho bom pôr aqui um ponto final, pelo menos para hoje, a estes exemplos que poderiam vos levar a pensar que a música está em perigo de vida ! Felizmente para nós todos, a música é e continuará sendo imortal, e continuará trazendo aos que dela sabem se aproximar esse sopro de verdade, essa claridade radiante que nos eleva acima da humanidade. Ministério da Educação Rio de Janeiro, abril de 1941 31 ENCERRAMENTO DO CURSO DE INTERPRETAÇÃO E ESTÉTICA MUSICAL DE 1942 Senhoras, Senhores, Meus Caros Alunos, Numa revista de arte que recebi há alguns dias, de Nova York, um musicólogo norte-americano, fazendo sinopse de meticulosas estatísticas e de anos de estudo pormenorizado, chega à conclusão que, nos Estados Unidos, dentre a minoria da população que ouve música, em geral, seja através do rádio, nos cinemas, nas salas de concerto, em gravações ou sob qualquer outra forma, setenta por cento prestam atenção exclusiva à música e às canções populares, enquanto que dez por cento, apenas, manifestam certo interesse no que chamamos de música pura; e esse, impiedoso estatístico acrescenta que, desse minúsculo conjunto, dois por cento, apenas, tomam parte ativa no movimento musical, tocando, cantando, estudando ou ensinando música fina. Se nos Estados Unidos, onde o ritmo do progresso, em todos os domínios, é considerado, sobretudo neste último século da sua civilização, como um dos mais rápidos e poderosos do mundo, se, nesse país onde os meios de vulgarização cultural são quase ilimitados, e atingem todas as classes e todos os públicos, o número de afeiçoados da verdadeira música não vai além de tão ínfima proporção, a capital paulista pode, a justo título, se vangloriar de ter alcançado percentagem muito maior e de possuir, talvez, um dos públicos mais compenetrados de beleza artística e de gosto musical de todo este continente. E se me fosse preciso apagar qualquer dúvida que pudesse expressar a esse respeito o erudito musicólogo que acabo de citar, bastaria convidá-lo a assistir, neste teatro, a uma aula deste Curso de Interpretação e Estética Musical, o qual forneceu, durante quatro meses consecutivos, a prova mais flagrante e tangível do magnífico desenvolvimento desta culta capital e do seu constante desejo de aprimoramento artístico. Sim, meus caros amigos, a calorosa acolhida que fizestes a esta nova fórmula de divulgação musical que estou procurando propalar através do Brasil, o valor indiscutível das execuções ouvidas neste palco e o crescente interesse e apoio que demonstrastes pela vossa assídua e numerosa presença, desde o início destas aulas, constituem a prova irrefutável de que a compreensão da música pura não é reservada, em São Paulo, apenas a uma pequena minoria de privilegiados e que, ao contrário do que tanta gente acredita, não é preciso ser escolhido pela Providência para entender, para sentir essa música e para tirar dela a máxima alegria e a mais vibrante emoção. E se a esplêndida repercussão destas aulas nos meios musicais desta capital é para mim motivo da mais legítima e profunda satisfação, essa projeção traz também a confirmação deste curso corresponder a uma imperiosa necessidade, e não posso deixar de expressar aqui ao Excelentíssimo Senhor Fernando Costa, dignamente representado aqui pela sua Excelentíssima Senhora, meu sincero apreço pelo esplêndido impulso que sua feliz iniciativa permitiu realizar nesse domínio inexplorado na nossa terra, até a efetuação dos meus cursos do Rio e de São Paulo. 32 A imprensa vos anunciou que esta aula encerra o Curso de Interpretação e Estética Musical, iniciado no mês de maio, que foi ministrado em vinte aulas, todas públicas etc. etc., e vou talvez causar certa decepção aos dentre vós que esperam ouvir as palavras que costumam proferir na ocasião de todo encerramento. É que, para mim, esta vigésima aula do nosso curso, longe de pôr termo a qualquer ciclo arbitrário ou efêmero, representa, bem pelo contrário, uma inauguração: a abertura prática e definitiva de um novo caminho, a pedra angular de um edifício talvez muito mais alto que todos os arranha-céus que embelezam esta cidade, e cujo objetivo é aproximarmo-nos, todos, músicos ou ouvintes, da divina verdade que a música irradia quando conseguimos penetrar os seus segredos e imbuir-nos da sua incomparável e comovedora beleza. TO BE OR NOT TO BE! Ser ou não ser!, dizia Hamlet! Se Shakespeare me permitisse interpretar também suas palavras e transpô-las no plano musical, eu vos diria: Ser um grande artista, ou apenas um pianista! É nisso que reside o problema! Não vejo consagração mais evidente desse preceito fundamental do que todas as horas que tive a alegria de passar convosco neste templo de arte e de estudo, culminando na solenidade que vos reúne hoje. Existe, porém, mais ampla tarefa para nós, não somente na exaltação da fé de todos os que se dedicam à carreira musical, mas, também, na preservação do patrimônio que acabamos de adquirir aqui. E para conseguir esse fim, incumbe a nós todos o dever de impedir que se propalem falsos sacerdócios e de lutar para a formação de apóstolos, convencidos da missão confiada ao artista verdadeiro, e dignos, por sua vez, de levarem a boa semente. Não esqueçamos as inúmeras vocações condenadas desde o início ao fracasso mais absoluto, por terem sido mal encaminhadas ou erroneamente estimuladas. Não esqueçamos os descoroçoamentos que esperam o estudante após anos de árduo trabalho, por ter ele seguido um caminho errado ou incompatível com suas atitudes. Não esqueçamos enfim, que para compenetrar-se do encanto e da verdadeira significação da linguagem imorredoura da harmonia, o futuro virtuose, professor ou concertista, precisa antes de tudo criar, desenvolver e manter para sempre a harmonia, no seu próprio coração, nos seus sentimentos, nos seus atos! É a realização desse apostolado que desejaria que vós todos, executantes ou ouvintes, colaborásseis, e estou convencida que, com vosso apoio, do qual já me destes tantas espontâneas e convincentes demonstrações, alcançaremos esse ideal que é minha verdadeira razão de ser, ideal ao qual sempre dediquei e continuarei a dedicar todos os meus esforços, e que posso resumir com estas palavras: formar artistas sinceros e imbuídos da missão que incumbe ao intérprete, fornecer-lhes os meios de vencer os inúmeros escolhos que encontrarão nessa carreira tão árdua, porém tão cheia de compensações, e também formar, para os talentos e as vocações excepcionais que enchem o Brasil e que precisam apenas ser guiadas e estimuladas, um público capaz de sentir as irradiações da arte verdadeira e de distinguir um pianista talentoso de um intérprete criador de emoção e de beleza. Encerrando essas breves reflexões, dir-vos-ei quanto estou satisfeita dos progressos, da compreensão e dos resultados revelados aqui pelos pianistas que participaram deste curso, e também toda a minha confiança na seriedade e na capacidade de trabalho, características do estudante paulista, graças as 33 quais, alguns estarão em breve, em condições de cooperar ativamente na concretização do nosso elevado objetivo. Como sabeis três dos pianistas participantes serão escolhidos para serem convidados a tocar, cada um num concerto com orquestra, a convite do Departamento Municipal de Cultura. Os nomes dos três laureados, que vão depender da apuração das notas consecutivas à última audição de hoje, serão divulgados oportunamente na imprensa. Espero também poder anunciar em breve os nomes dos novos pianistas a serem convidados a tocar no Rio de Janeiro conforme o programa de intercâmbio musical que iniciou este ano, o qual já permitiu a três pianistas desta capital atuarem na Escola Nacional de Música no curso patrocinado pelo Ministério da Educação e a quatro pianistas do Distrito Federal serem ouvidos neste palco. São Paulo, 19 de agosto de 1942 34 ENCERRAMENTO DE CURSO DE 1944 Senhoras, Senhores, Meus Caros Alunos, A fim de não perturbar a atmosfera de festividade e alegria que assinala, inevitavelmente, o encerramento de cada um destes cursos, limitar-me-ei, pois, a usar da palavra para agradecer, muito sinceramente, as lindas palavras que o senhor José Magalhães Graça acaba de pronunciar em nome dos participantes deste Curso de Alta Interpretação Musical, e dizer-vos do meu profundo reconhecimento por esta carinhosa manifestação de vossos sentimentos para comigo, e pelo presente, com certeza, muito lindo. Não resta dúvida que, cada ano, cada grupo de aulas vem estreitar e consolidar ainda, os laços de recíproca compreensão e confiança que nos unem, e afirmar, com crescente eloqüência, a nossa fé na elevação e difusão da verdadeira cultura musical, e, também, a nossa fé no futuro dos jovens e novos talentos musicais, que essas aulas permitem revelar e afirmar. É neste contato espiritual, nas esplêndidas concretizações do vosso estudo e deste ensino, no alto valor das execuções ouvidas neste palco, na qualidade cada vez mais elevada, mais apurada, mais genuinamente artística de tais execuções, que encontro essa profunda satisfação compensadora de todos os esforços, esse estímulo e apoio moral, indispensáveis à realização do meu objetivo no campo da cultura musical. Uma das maiores alegrias da minha carreira é justamente poder devolver à minha terra uma parcela de tudo o que ela me deu e procurar, com todos os recursos ao meu alcance, guiar nossa juventude, nosso público, nosso povo, no árduo caminho do aprimoramento musical, e trazer desse modo minha contribuição ao magnífico destino reservado às forças espirituais do Brasil. Conto com vocês, meus caros alunos, para que, durante esse intervalo de alguns meses, e até o reinício das aulas no ano vindouro, seja reservado todo o tempo necessário ao estudo assíduo das novas obras que ouviremos e comentaremos, certa que essas execuções e a escolha que fizerem de obras cada vez mais importantes e de maior alcance e responsabilidade revelarão, como foi o caso este ano e nos anos precedentes, novos e sensíveis progressos, possibilitando desse modo, a uma nova turma de executantes, o ensejo de se apresentar em breve em concertos e recitais, tanto no Rio, como em São Paulo e no interior. Desejando-vos a vós todos, e ao meu caro e fiel público, boas férias e todas as felicidades no ano vindouro, digo-vos, pois, até muito breve, e mais uma vez um grande, muito grande, obrigado! 35 ÚLTIMA AULA Na aula de hoje, com a qual encerraremos o curso de 1944, far-se-ão ouvir os seguintes pianistas participantes: Sr. Homero Magalhães, no Scherzo nº 3 de Chopin, o Sr. Heitor Alimonda, representando o Curso de Interpretação e Estética Musical de São Paulo, que interpretará a Grande Sonata em Fá Sustenido Menor de Schumann. Haverá em seguida um breve intervalo. Enfim, encerramos a aula e o curso, com a execução do Andante com Variações a dois pianos de Schumann que será interpretado pela sra. Hermínia Roubaud Carneiro de Souza e a senhorita Ylara Gomes Grosso. Rio de Janeiro, 1944 36 ABERTURA DO CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948 Minhas Senhoras, Meus Senhores, Meus Caros Alunos, Visitando, há alguns dias, este Auditório onde estão sendo efetuadas obras que virão ainda embelezar e ampliar este palco, lembrei-me do trocadilho que se deve ao famoso escritor francês Jean Cocteau, o qual comentando os perigos e os exageros do desenvolvimento musical contemporâneo escreveu numa revista de arte: “Estou cansado de ver em toda parte, cartazes com a advertência: Cuidado com a pintura! Porque será que nunca se vê, nas paredes e nos parques, também cartazes com a menção: Cuidado com a música!?” No entanto, os danos causados pela tinta fresca não resultam em sérias conseqüências podendo as manchas ser geralmente removidas. O caso é bem diferente com a Música, cujos estragos podem ser bastante graves e às vezes irremediáveis, quando uma orientação incerta ou inadequada vem a ser imprimida no ensino ou na divulgação dessa arte. Cuidado com a Música! Jean Cocteau tem absoluta razão em querer ver, pendurados nas ruas e nos edifícios, cartazes chamando a atenção do público, e mormente da juventude, sobre essa necessidade primordial de preservar o magnífico patrimônio deixado por gerações de ilustres compositores e de garantir também o futuro da arte sonora pondo-a ao abrigo dos perigos que a ameaçam. O Curso de Alta Interpretação Musical, instituído pelo Ministério da Educação e Saúde, tem justamente como objetivo orientar, em primeiro lugar, o estudo de música já possuidor de suficiente técnica e preparo, para o caminho da interpretação que lhe permitirá encontrar o sentido exato da obra executada e transmiti-lo ao ouvinte na sua integral beleza. Outro objetivo dessas aulas é também associar o público a esse trabalho de restituição do pensamento do compositor, oferendo-lhe assim maiores possibilidades de apreciar, nas salas de concerto, no rádio ou de qualquer outra forma, os valores que lhe são apresentados. Ao iniciar hoje as aulas do curso de 1948, desejo assinalar que se eleva a 35 o número de pianistas inscritos como participantes, tendo sido necessárias duas audições preliminares para escolher os que serão ouvidos no decorrer deste primeiro turno de dez aulas. Não me foi dado ainda o número de inscrições dos ouvintes deste ano, mas já sei que passou de 1500 e não duvido que este venha a atingir 2000 antes do 37 fim do curso, sendo essa a demonstração mais eloqüente do interesse despertado por essas aulas, que muito me sensibiliza e pelo qual faço questão de lhes agradecer nessa aula inaugural, assegurando-lhes que não pouparei os meus esforços para manter e elevar ainda o nível atingido por esse ensino cuja repercussão até os mais diversos e longínquos recantos do nosso grande Brasil e também no estrangeiro vem provar quanto a iniciativa do Ministério da Educação e Saúde corresponde à verdadeira necessidade. 38 ENCERRAMENTO DO CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948 Exmo. Sr. Ministro, Minhas Senhoras, Meus Senhores, Meus Caros Alunos, O deslocamento para o Novo Mundo das atividades e dos valores musicais que foram, durante tantos séculos, o apanágio exclusivo da Europa, constituirá, sem dúvida, um dos aspectos marcantes da história do movimento musical do século vinte. Bastaria, para comprová-lo, o invulgar desenvolvimento já alcançado nesse setor, nos Estados Unidos onde, além de se encontrarem ali radicados alguns dos maiores vultos da música contemporânea européia, está se difundindo agora, num terreno excepcionalmente fértil e acolhedor, a grandiosa herança musical do velho continente. Mais de cem orquestras sinfônicas atuam diariamente nos diversos estados da terra de Tio Sam, com seus programas irradiados através de oitocentas estações emissoras, e sob a batuta dos mais famosos regentes. Entre os meses de novembro e março, atinge a quinze milhões o número de famílias que aguardam, todos os sábados à tarde, a irradiação do espetáculo de Ópera do Metropolitan de Nova York. Deixando bem longe atrás os “recordes” de assistência registrados nos matches de baseball, o público freqüentador de recitais, concertos com orquestra e bailados, alcançou, em 1947, o número de trinta milhões de pessoas. Enfim, a temporada musical organizada no verão de ano passado, no pitoresco cenário das colinas do Berckshire, no Estado de Massachussetts, atraiu maior número de turistas e afeiçoados da música clássica, do que os célebres festivais de Salsburgo e Bayreuth, na época do seu mais glorioso esplendor. Outra cabeça de ponte desse imponente “avanço” musical encontra-se, embora numa forma menos espetacular e numa fase menos desenvolvida, no nosso Brasil. Já tive freqüentes oportunidades de assinalar, falando-vos deste palco, as múltiplas facetas da notável evolução presenciada nestes últimos anos da nossa terra, no campo da cultura musical, o número sempre crescente de manifestações musicais, seja em salas de concertos ou no rádio, a diversidade de espetáculos, recitais e concertos sinfônicos a cargo de elementos nacionais ou estrangeiros, o interesse cada vez maior demonstrado pelo nosso povo, tanto nas capitais como nas cidades do interior dos estados pelas irradiações de música de classe, a compreensão acertada e profunda que os músicos e artistas de renome internacional atuando entre nós encontram junto ao nosso público, e também o ardoroso desejo da nossa juventude de desenvolver, ao mesmo tempo que o seu gosto inato pela música, os meios necessários para melhor compreendê-la e penetrar os seus segredos. 39 Nesse último plano, convém lembrar que, mesmo nos Estados Unidos, não existem exemplos de um Curso Público de Piano contar com 2.000 ouvintes inscritos como é o caso do nosso Curso de Alta Interpretação Musical, que, em São Paulo onde realizo curso similar no Teatro Municipal, alcançou 2.700 o número de inscrições desde o terceiro ano de existência. Visando, por um lado, o aprimoramento dos nossos jovens músicos que se destinam à carreira pianística e abrindo-lhes o caminho da arte interpretativa que os levará a transmitir nas suas execuções em público a verdadeira mensagem sintetizada em cada composição musical, divulgando, por outro lado, no meio do grande público das capitais e do interior do Brasil, uma fórmula nova e acessível a todos, que faz conviver o ouvinte com o trabalho de recriação de uma obra-prima, habilitando-o para apreciar outras execuções dessa mesma composição quando ouvidos ulteriormente na interpretação de outros virtuoses, implantando, enfim, num terreno cada vez mais apropriado e receptivo, a semente capaz de tornar realmente proveitoso o intercâmbio com os outros países e a fusão com as tradições artísticas da Europa, o Curso de Alta Interpretação Musical vem trazendo ao Brasil, ano após ano, sua modesta e persistente contribuição à grande obra de elevação dos nossos valores culturais. Agrupando cada ano no seu âmbito novas plêiades de executantes que vêm, progressivamente, se colocar entre os mais apreciados da nossa jovem geração de pianistas, pondo-os, graças às suas execuções realizadas neste palco, em condições de enfrentar com êxito público, esse terrível juiz que decidirá em grande parte da carreira do nosso virtuose, pondo ao mesmo tempo o público em condições de usar com critério do seu senso crítico e fazer assim obra realmente construtiva, promovendo junto ao Governo Brasileiro e aos representantes dos países estrangeiros a concessão de bolsas de estudos e prêmios de viagem que virão ampliar a bagagem artística do jovem concertista e auxiliá-lo na sua luta e nas suas conquistas, estreitando pelo contato permanente com as personalidades mais destacadas do mundo musical, dentro e fora do Brasil, os laços culturais com outros países da Europa e da América, o Curso de Alta Interpretação Musical constitui, hoje, apreciável patrimônio para o país e granjeia no estrangeiro o maior prestígio, graças ao êxito alcançado por cada um dos representantes, seja em concursos ou nas atuações em público. Convém lembrar a esse respeito que o nosso aplaudido e talentoso pianista Homero Magalhães acaba de chegar em Paris, tendo sido premiado com uma bolsa de estudos de um ano, concedida pelo Governo Francês, em recompensa das suas brilhantes atuações neste Curso, e tendo também recebido do Ministério da Educação o mais valioso apoio para a feliz realização dessa viagem. A cerimônia que marca hoje o encerramento do Curso de Alta Interpretação Musical do ano de 1948 reveste-se de particular brilho e significação para nós. Efetivamente, conforme foi anunciado, deverão ser conferidos hoje os diplomas que, por determinação do Exmo. Sr. Ministro da Educação, virão, de agora em diante, premiar anualmente os pianistas participantes deste curso. De acordo com as normas estabelecidas, poderão ser contemplados com um diploma apenas os pianistas executantes que terão participado com êxito e regularmente, durante dois anos seguidos no mínimo, das aulas deste curso. 40 Serão conferidos, conforme o valor das execuções, os progressos realizados e o conjunto de notas obtidas por cada um, três categorias de diplomas: 1º O Diploma de Aproveitamento, àqueles que terão cumprido satisfatoriamente com as condições que acabo de citar, isto é, que terão participado com êxito destas aulas durante dois anos seguidos ou mais. 2º O Diploma de Aperfeiçoamento Artístico, àqueles que, durante o referido, período ter-se-ão distinguido pelos progressos constatados nas suas execuções, já atingiram um nível adiantado de execução pianística e alcançaram o conjunto de notas estabelecido para esse fim. 3º O Diploma de Alta Interpretação Musical, que será reservado aos pianistas que não somente mais se distinguiram pelo alto valor de suas execuções, mas que também já se acham em condições de atuar em público e de se apresentar seja em recitais ou em concertos com orquestra. Junto com o diploma conferido nesta categoria, terá direito, o laureado, a um recital ou concerto com orquestra organizado ou promovido pelo Ministério da Educação e Saúde. Enfim, os pianistas do Curso de São Paulo que tiverem atuado, mesmo uma só vez no Curso do Rio, serão contemplados com um diploma somente no caso da sua execução nesta capital coincidir com o período mínimo de dois anos de participação no curso realizado em São Paulo, o qual se enquadra no programa de divulgação musical organizado pelo Ministério da Educação e Saúde. Os Diplomas de Aproveitamento e Aperfeiçoamento Artístico são conferidos com ou sem distinção, de acordo com as notas obtidas. No que diz respeito ao Diploma de Alta Interpretação Musical, este é conferido sem distinção já que, por si só, constitui a maior das distinções deste curso. A fim de que de não fossem prejudicados os que participaram do curso nos primeiros anos da sua existência, isto é, antes de passar a ser realizado neste Auditório, determinou o Sr. José Mariani que as normas fixadas para a obtenção do diploma, em geral, terão efeito retroativo, tendo pois o direito a essa recompensa os executantes que participaram dessa aulas desde a instauração do Curso, em 1940, desde que tenham satisfeito as condições que regem a outorga desse diploma em cada uma das respectivas categorias. Tive a honra de submeter, a semana passada, à aprovação do Exmo. Sr. Ministro da Educação, a relação dos nomes dos pianistas participantes do Curso de Alta Interpretação Musical, estabelecida de acordo com as bases indicadas e as notas obtidas em cada execução, com a respectiva classificação em cada uma das três categorias de diplomas com a qual tinham direito de ser contemplados. Tenho hoje a maior satisfação em informar-vos que o Sr. Ministro dignou-se concordar integralmente com a proposta que lhe foi submetida, autorizando-me a anunciar hoje os nomes dos pianistas premiados e os respectivos diplomas que lhes são conferidos. São os seguintes os pianistas participantes do Curso de Alta Interpretação Musical, que obtiveram um diploma pelo conjunto das suas atuações no curso: 41 DIPLOMA DE APROVEITAMENTO • ANO DE 1941 Luiza Botelho da Cruz Thereza Botelho da Cruz • ANO DE 1942 Cléria Maria de Araújo Leonor Graça de Araújo - com distinção Mariana Irineu de Souza • ANO DE 1943 Alice Hansen Altino Pimenta Margarida Araújo - com distinção • ANO DE 1944 Heloisa Futuro - com distinção Lygia Messeder - com distinção Maria Acatuassú Nunes Marina Lorenzo Fernandez • ANO DE 1945 Eliane Carvalho de Azevedo Odete Dalbello Rosina de Assis - com distinção • ANO DE 1946 Maria Josefina de Castro Marina Hespanha - com distinção Murilo Tertuliano dos Santos - com distinção Ziva Blatman Tzakinowsky - com distinção • ANO DE 1947 Eliane Fayni Yolanda Antonello 42 • ANO DE 1948 Elsa Guillon Helena Pachachewsky - com distinção Henriqueta Penido Monteiro Inez Ribeiro Jenny Perelman - com distinção Raymunda Vianna Magalhães DIPLOMA DE APERFEIÇOAMENTO ARTÍSTICO • ANO DE 1942 Maria Augusta Menezes de Oliva Rodolfo Frish (São Paulo) - com distinção • ANO DE 1943 Não houve Diploma de Aperfeiçoamento Artístico • ANO DE 1944 Maria Dirce Rodrigues de Almeida (Piracicaba) • ANO DE 1945 Lúcia de Salles Penteado (São Paulo) - com distinção • ANO DE 1946 José Magalhães Graça - com distinção • ANO DE 1947 Lourdes Gonçalves - com distinção Maria Lúcia Gregori (São Paulo) Marina Ramalhete Mary Benaion • ANO DE 1948 Aleida Ferrari da Silva - com distinção Hebe Araújo de Mattos Letícia Delamarre - com distinção Maria Adelaide Moritz - com distinção Maria Aparecida Prista - com distinção Maria Lúcia de Faria Pinho - com distinção Myrian Freire de Castro Wally Freire de Souza - com distinção Wanda Latini 43 DIPLOMA DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL • ANO DE 1942 Isabel Mourão (São Paulo) Oriano de Almeida • ANO DE 1943 Julinha Wagner Cohin Neusa França de Almeida • ANO DE 1944 Heitor Alimonda Ylara Gomes Grosso Vera Cruz Pientznauer Zeila São João (São Paulo) • ANO DE 1945 Menininha Lobo (São Paulo) • ANO DE 1946 Não houve Diploma de Alta Interpretação Musical • ANO DE 1947 Célia Zaldumbide Homero Magalhães • ANO DE 1948 Nellie Braga Cabe-me comunicar aos pianistas premiados que os diplomas lhes serão entregues dentro de poucos dias, após assinados pelo sr. Ministro da Educação e Saúde, e por mim, devendo os interessados ser oportunamente informados da data em que terão que comparecer ao Ministério para esse fim. Mais de 70 pianistas executantes perderam a oportunidade de conquistar o diploma por terem participado durante um ano apenas das aulas deste curso ou por não terem obtido o mínimo de notas desejado. E, agora, resta-me agradecer aos meus queridos alunos e aos meus caros e fiéis ouvintes pela comovedora expressão do seu apreço, dirigida em nome dos pianistas participantes pela Sra. Maria Lúcia de Faria Pinho e em nome dos ouvintes pela Srta. Nelly Wanderley. Sinto-me realmente lisonjeada, mas acho que não mereço tantos elogios. Se é verdade que esteja me dedicando, de todo o coração e com todos os recursos ao meu alcance, às edificações de uma obra considerada como sendo de alto valor educativo, que tem tido certa repercussão no movimento musical de minha 44 terra, é simplesmente porque considero ser o meu dever procurar devolver ao Brasil tudo o que lhe devo e guiar a nossa talentosa juventude no caminho que escolhi. Vossa cooperação da feliz realização dessa tarefa, vossa compreensão e vosso afeto são, para mim, a fonte de uma das maiores satisfações da minha carreira e sou eu que lhes fico grata por ter tão bem sabido me compreender e auxiliar. Agradeço particularmente aos meus alunos e ouvintes pelas lindas flores que me enviaram, ficando realmente sensibilizada com a atenção dos ouvintes deste curso que tão gentilmente se uniram para me oferecer este presente que não duvido seja lindíssimo. Dirijo, também, a todos que me acompanharam pelo rádio a difusão dessas aulas, os meus sinceros agradecimentos pela atenção que estão dispensando a esse ensino e os meus votos para que o número desses ouvintes continue crescendo, conforme me foi comprovado este ano nas inúmeras e entusiastas cartas que recebo de todos os recantos do país. Enfim, desejo expressar publicamente aqui toda a minha gratidão ao Exmo. Sr. Prof. Clemente Mariani, pelo valiosíssimo e constante apoio que me tem demonstrado em tudo o que se refere à organização dessas aulas e graças ao qual o nosso curso tem alcançado resultados tão positivos, hoje concretizados nos diplomas que vêm tão justamente coroar o nosso trabalho. Muito obrigada, prezado Dr. Leal da Costa e Dr. Paulo Fontes, pela sua tão preciosa e constante colaboração. Um grande abraço para todos vós, e... até o ano que vem. 45 ABERTURA DO DÉCIMO CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1950 Exmo. Sr. Ministro, Minha Senhoras, Meus Senhores, Meus Caros Alunos, Tendo dedicado esses longos meses de ausência, por um lado, à intensa atividade artística na França, em diversos países da Europa e no Próximo Oriente, por outro ao cumprimento da honrosa missão de que me incumbira o Exmo. Sr. Ministro Prof. Clemente Mariani, visando o estudo – sem ônus para o Governo – da evolução e das modificações introduzidas no ensino das artes musicais e nos vários conservatórios da Europa, é com imensa alegria que me encontro novamente na minha terra natal e particularmente entre vós, para inaugurarmos, hoje, o Décimo Curso de Alta Interpretação Musical. Essa alegria me permite, aliás, esconder a profunda emoção que sinto diante de vossa calorosa acolhida e de todas as provas de afeto e amizade que me foram dispensadas, desde o meu desembarque há quinze dias no aeroporto, que continuo recebendo diariamente e pelas quais quero expressar-vos toda a minha gratidão. Já pude verificar, no decorrer da Audição Preliminar e também pelo grande número dos pianistas que participarão do Curso deste ano 1950, que os nossos jovens músicos souberam aproveitar essa pausa prolongada na realização destas aulas públicas, e não duvido que a audição, neste palco, do vasto repertório de obras em que se inscreveram, venha nos revelar em breve o fruto desse trabalho. Por falar neste assunto, posso acrescentar que eu, também, tenho trabalhado bastante... e bastante! Não me refiro somente à série relativamente importante das minhas atuações em concertos, recitais etc., dos mais, limitar-me-ei em recordar, entre outros: • Os três concertos para piano e orquestra: Mozart, Schumann e Saint-Saëns que toquei com a Orquestra Colonne sob a regência do Maestro Paul Paray, na minha rentrée, no Teatro dos Champs-Elisées, em Paris; • O meu recital, no mesmo Teatro dos Campos-Elíseos, com a “Sonata op. 111” de Beethoven, a “Fantasia e Fuga” de Bach-Liszt, obras de Villa-Lobos, Fauré, Reynaldo Hahn, Debussy, e uma parte reservada a Chopin; Ao qual se seguiram, ainda em Paris e no mesmo teatro: 46 • O Concerto com a Orquestra da Societé des Concerts du Conservatoire, na regência de André Cluytens, no qual interpretei o Concerto de Reynaldo Hahn; e mais tarde: • O concerto com a Orquestra Nacional da Rádio-Difusão Francesa, sob a regência de Roger Desormières. assim como: • O meu recital Chopin, em comemoração do Centenário do imortal romântico, a convite da Comissão Central Francesa, pouco depois da minha atuação em Varsóvia, na vice-presidência do Grande Júri do Quarto Concurso Internacional Chopin; Sempre na França, toquei ainda, seja em concertos com orquestra em recitais ou em ambos: • Em Bordeaux, Lyon, Marseille, Nice, Cannes, Deauville etc., além do Festival Internacional de Música de Besançon do qual participei, ao lado de Furtwängler, Segovia, Wilhelm Kempff e outros. Dos outros países da Europa, citar-vos-ei: • A Espanha, com recitais em Bilbao e São Sebastião; • A Suíça, com recitais em Genebra e Lausanne; • A Turquia, com recitais e concertos com orquestra em Istambul e Ankara, onde o Presidente da República, Sr. Ismet Ineuné, e Sua Exma. Esposa me honraram com suas presenças e me dispensaram tanta gentileza e atenção; • A Polônia, com recitais e concertos com orquestra em Varsóvia; • A Grécia, com três recitais em Atenas; e também, no Próximo Oriente: • A Palestina, com três concertos com a Orquestra de Tel-Aviv, que coincidiram com a permanência do famoso regente Paul Paray à frente daquele notável conjunto sinfônico; • O Líbano, com dois recitais em Beirute etc., etc. 47 Isso, sem falar nos diversos concertos na rádio, nas atuações de caráter especial, tal aquele inesquecível recital organizado no Grande Salão da Academia Francesa, em Paris, em comemoração do terceiro aniversário da morte de Reynaldo Hahn, no qual toquei, entre outras, composições daquele autor para dois pianos, que tenciono apresentar este ano aqui, em primeira audição. No que diz respeito ao lado “pedagógico” na minha atividade, e ao estudo pormenorizado que fiz da evolução do ensino nos vários centros musicais da Europa, dir-vos-ei, apenas, que, tendo essas indagações me levado a aprofundar quase todos os ramos da atividade musical daquele continente, resolvi juntar o abundante material recolhido desde o início da minha viagem, com o fim de concretizar e expor numa breve conferência ou preleção – a ser realizada ainda no decorrer deste curso se o tempo o permitir – as conclusões e os fatos salientes dessa minha convivência com os meios artísticos e musicais do velho mundo, assim como alguns resultados concretos que esse trabalho me permitiu alcançar e que não deixarão de interessar nossos jovens músicos e mormente os pianistas participantes destas aulas. Estabelecer um balanço dos múltiplos fatores que regem o desenvolvimento da arte musical que duas guerras mundiais travadas em menos de trinta anos vieram abalar nas suas raízes mais profundas; discernir o caminho certo, a linguagem verdadeira da música, seja que ela se dirija a uma elite ou ao povo; descobrir os rumos dominantes da composição contemporânea no meio da confusão de valores e da instabilidade características da nossa época; focalizar os grandes movimentos visando a iniciação do povo, das massas, da jovem geração, para que a música, longe de ser uma estrangeira encontrada por acaso, se revele uma companheira fiel na vida de cada um; manter a imparcialidade do senso crítico diante da variedade das interpretações e das liberdades que se outorgam alguns virtuoses, freqüentemente movidos por considerações extra-musicais; penetrar simultaneamente com os dedos e com o cérebro toda a riqueza harmônica do “piano”, desse instrumento milagroso que tanto contribuiu em salvaguardar os elevados interesses e as comovedoras aspirações da música pura, mantendo-lhes o seu completo equilíbrio arquitetural; encontrar na Música o meio de disciplinar, idealizar e transfigurar os prosaicos elementos da nossa vida diária para afirmar a magnífica vitória da arte sobre as servidões terrestres... Eis, entre tantos outros, alguns dos temas que mais ocupam, hoje em dia, as diversas correntes do mundo musical europeu, e que as próximas aulas me darão certamente o ensejo de desenvolver diante de vós, pelo menos em parte, na medida das composições a serem ouvidas neste Auditório, para que cada um, possuidor dos elementos necessários a um tal julgamento, cheque, individualmente, nas conclusões mais compatíveis com seus anseios e sua própria natureza. Uma palavra ainda a respeito da imponente floração de jovens virtuoses e principalmente de pianistas que tomam cada ano lugar mais marcante no “calendário” das salas de concertos no outro lado do Atlântico. Se falta a alguns desses talentosos artistas o poder de comover as platéias com as suas interpretações no teclado, a maioria consegue no entanto se impor à atenção do público, pelo acabamento das execuções e do domínio da técnica. Minha participação em diversos júris: no Concurso Anual do Conservatório de Paris, no concurso para a atribuição do prêmio Long-Thibaud, no Grande Concurso 48 Pianístico Internacional de Varsóvia que reuniu na banca algumas entre as maiores sumidades dos 19 países aí representados, assim os inúmeros contatos pessoais que tive com jovens estudantes de música, alunos e concertistas, ansiosos de corresponder à expectativa em torno de seus nomes, enfim, toda a minha experiência pessoal desses últimos meses de pesquisa nesse campo, me levam a uma conclusão imperativa: tudo o que esses jovens têm demonstrado nas suas apresentações em público não é apenas a natural consagração do talento, mas, também, não o esqueçamos, o fruto de muito trabalho, de árduos esforços e de uma absoluta continuidade e disciplina no estudo. É com essa observação que encerrarei o breve relato da minha excursão artística, sobre a qual terei ampla oportunidade de falar, especialmente no que tange ao ensino da música, em geral, e à repercussão do nosso Curso de Alta Interpretação Musical nas esferas européias. O fato pode parecer surpreendente, mas é pura verdade: não existe na França, na Inglaterra, na Espanha, na Itália, na Bélgica, na Suíça, nem em qualquer outro país da Europa, Curso Público de Interpretação ou mesmo Curso Público de Música, que desperte interesse e freqüência de parte do público (e que suscite ao mesmo tempo a atenção dos poderes públicos), capaz de ser posto em confronto com este Ensino, como o podereis constatar, aliás, pelos lisonjeiros comentários da imprensa estrangeira a respeito dessa esplêndida realização que devemos aos sucessivos ministros da educação que todos eles tão bem têm sabido compreender a importância destas aulas. Temos como prova de interesse sempre crescente para estas manifestações o fato de levarem-se as inscrições ao expressivo número de 48 executantes – um verdadeiro record sobre os outros anos. Depois da audição preliminar, escolhi 40 desse pianistas para serem ouvidos no decorrer destas aulas. Como vêem, teremos este ano um programa bastante carregado, e é de esperar que todos toquem muito bem para que me seja possível dar conta do recado... Quanto às inscrições de ouvintes, já alcançamos o número de 1.100 que nos faz prever um número impressionante até o fim do curso de 1950. Lembro, também, que adiamos a entrega dos diplomas conferidos na última série de aulas para a próxima chegada do Sr. Ministro Clemente Mariani, atualmente na Europa. Já tive ocasião de participar, pela imprensa, o presente régio que trouxe da França para nossos jovens pianistas. No decorrer de uma longa palestra com o Diretor Geral das Relações Culturais, Sr. Toxe, lembrei-lhe a possibilidade de ser criada, pela França, uma bolsa de estudos, reservada unicamente aos pianistas participantes deste curso, bolsa que seria disputada em concurso entre os que obtivessem o Diploma de Alta Interpretação Musical. Podem avaliar a minha satisfação quando o Sr. Toxe, que muito se interessou pelo nosso trabalho e que revela o maior desejo de estreitar o laço cultural entre os nossos dois países, me declarou estar de acordo com o meu projeto e que ficava estabelecido que a Embaixada da 49 França no Rio de Janeiro instituiria anualmente este prêmio. Parece-me desnecessário insistir sobre o estímulo e o benefício que representará tal bolsa para os nossos jovens pianistas, que terão a oportunidade de conhecer de perto uma verdadeira fonte de Arte e Cultura. Assegurei ao Sr. Toxe, de antemão, o regozijo que tal notícia despertaria no Brasil e manifestei-lhe antecipadamente toda a nossa gratidão. Com tudo que acabo de expor, não me parece, pois, excessivo adiantar, numa alteração um pouco audaciosa das palavras da Santa Escritura, que a esta Magdalena talvez “muito será perdoado pelo muito que trabalhou… ”. 50 2 Palestras sobre História da Música 51 52 A ESCOLA MODERNA FRANCESA Depois da morte de Frédéric Chopin, o mais célebre, o mais adulado dos representantes da literatura pianística, e depois da volta de Franz Liszt para sua terra, a virtuosidade sentimental assim como a ópera espetacular chegam, na França, ao seu apogeu, ocupando toda a atenção do público no plano musical, e satisfazendo todas suas aspirações. Com efeito, os amadores de música dessa época estavam fascinados, sobretudo, pelas óperas dramáticas pomposas e cheias de efeitos cênicos sensacionais, como as de Meyerbeer, e pelas execuções de obras pianísticas, marcadas por floreios excêntricos ou lânguidas efusões, que parodiavam os acentos chopinianos e as realizações orquestrais de Liszt. A música de Bach ou Mozart e o grande movimento de renascença schumanniana eram quase desconhecidos, sendo a cultura musical limitada a algumas raras audições de sinfonias de Beethoven, às quais um círculo afetado e estreito assistia com deferente enfado. É verdade que um pequeno núcleo se formara, com um grupo entusiástico e ardente de poetas, de estudantes e de pintores, em volta do único verdadeiro artista musical desse período: Hector Berlioz. Infelizmente, mesmo depois do seu épico esforço, na realização de magníficos “frescos” líricos, e de ter escrito esses dois momentos da música dramática: La Damnation de Faust e Les Troyens, Berlioz foi incapaz de contrabalançar a opinião da burguesia elegante. Esse compositor genial, esse potente criador, ficou isolado e incompreendido do grande público que não soube apreciar, entre outras, essa obra-prima de ternura e de delicadeza: A Infância do Cristo. Após um efêmero triunfo, que foi, antes, um sucesso de curiosidade, Berlioz, reconhecido como uma grande figura, porém admitido com ásperas reservas, tornou a ser abandonado por um público que só procurava, na música e no teatro, um divertimento fácil e um prazer imediato. Esse divertimento, esse prazer, se concretizaram desta vez na opereta. Efetivamente, tudo o que podia se expressar de modo superficial, amável, banal, alegre e pueril, achava-se reunido nesse gênero musical, do qual Offenbach foi o mestre incontestável, e a opereta, na sua floração gloriosa, alcançou facilmente a mais extraordinária popularidade. Mas, ao mesmo tempo que esses estribilhos eram popularizados através a Europa, a preguiça e a incompetência do público iam crescentes, atrasando a verdadeira cultura clássica, reduzindo os recursos técnicos dos compositores e agindo a uma desmoralização realmente perigosa para o futuro da música. A França do Segundo Império devia ficar nessa grave estagnação artística, até a vinda de Charles Gounod e a representação da sua obra-prima: Faust. Essa feliz adaptação ao teatro lírico, do poema de Goethe – apesar de ser inferior, sob certos pontos de vista, às obras escritas sobre o mesmo tema, por 53 Berlioz, Liszt e Schumann –, revelou, repentinamente, uma inspiração profunda, uma dignidade e um conjunto de qualidades técnicas, que consagraram Gounod, como um grande compositor e um músico verdadeiro. Ele teve, antes de tudo, o mérito excepcional de ter podido se apaixonar pela grande música, numa época marcada por preocupações tão fúteis, e, se é difícil considerá-lo como um precursor pelas suas inovações, no domínio musical ou dramático, esse grande mestre foi sem dúvida um precursor, por ter restaurado com a arte da melodia um ideal abandonado e por ter tomado a direção de um movimento de renascença, que devia levar a música, dramática e sinfônica até um nível digno da antiga tradição. A mais de “Faust”, que pode ser considerado como o maior acontecimento musical daquele período, Gounod, cuja carreira gloriosa se manteve até sua morte em 1893, compôs, entre outras obras célebres: Mireille, Philémon et Baucis, e Roméo et Juliette, que se assinalaram por esse gosto da beleza, essa concepção graciosa, essa escritura fácil e agradável, e esse fervor imbuído de fé religiosa, tão característicos do seu gênio. Depois da derrota militar de 1870, a reação iniciada por Gounod se manifestou no espírito do público francês, pelo desejo de aperfeiçoar sua educação artística e de conhecer outra música que a da pomposa ópera, ou banal opereta, enquanto que, nos meios musicais, o estudo técnico tornou a ser admitido como base indispensável. Conheceis a ousada tentativa de Georges Bizet, que morreu em 1875 – aos 37 anos – do desgosto causado pelo veredicto injusto do público, a respeito das suas composições. Ele nunca imaginara que essa hostilidade se converteria, poucos anos mais tarde, numa homenagem universal à sua obra. Apesar dela não ter conseguido influenciar diretamente a música da sua época, a produção de Bizet com: La Jolie Fille de Perth, L’Arlésienne, e, particularmente, com Carmen, ópera tão berlioziana, colorida e realística, abre uma outra página importante na história da música. Jules Massenet herdou do fervor que o grande público manifestara por Gounod. Esse técnico prestigioso deixou, ao mesmo tempo que algumas maravilhosas obras-primas, tais: Werther e Manon, numerosas outras obras, que refletem demasiadamente sua preocupação de agradar e de conquistar o público. Mesmo assim essas óperas ou outras composições conservam o encanto e as felizes inspirações, que elevaram Massenet, durante algum tempo, ao apogeu do proscênio musical. Citar-vos-ei, também, dois compositores menos favorecidos pelo destino, no decorrer da sua existência, e cujo renome só se verificou mais tarde: Emmanuel Chabrier, deslumbrante colorista da orquestra, autor de Gwendoline e outros dramas líricos, assim como dessa famosa rapsódia España, que alcançou grande voga, no início deste século; e Edouard Lalo, que revelou, com o Roi d’Ys, tanta ousadia anti-wagneriana, e escreveu, a mais de um delicioso bailado Namouna e da admirável Rhapsodie Norvegienne, alguns concerti e interessantes obras sinfônicas. Teria desejado, nesta altura do nosso estudo, falar-vos de modo pormenorizado, das lutas curiosas e ardentes suscitadas na França, pelo “wagnerismo”, e da crise que resultou no mundo musical desse país, depois da morte do gênio de Bayreuth em 1883. “Esse músico talvez genial, porém 54 incompreensível, cacofônico, feio e enfadonho” – é assim que a crítica francesa o descrevia – causou durante 50 anos a divisão da opinião pública, entre dois campos nitidamente desiguais e opostos, até que a tenacidade de uma minoria e os esforços de Lamoureux, culminando na representação do Ouro de Reno na Ópera de Paris, em 1909, conseguiram despertar o delirante entusiasmo do público e quase transformar em adoração o ódio manifestado até então, para com Wagner e sua obra. As conseqüências desse movimento foram ainda mais curiosas e inesperadas, do que as polêmicas: a) no domínio técnico, uma das verdades, as mais evidentes e acessíveis que surgiram, foi o emprego da polifonia, que devia modificar quase que por completo a orquestração contemporânea; b) no plano ideológico e literário, o simbolismo e a adoção do “verso livre” foram um outro resultado imediato do wagnerismo, que trouxe a transformação total do antigo libretto; c) enfim, a terceira conseqüência foi a decadência da vetusta ópera, cuja concepção era incompatível com heróis dignos dos gregos, de Shakespeare ou de Racine, tais: Tristan, Lohengrin, Brünnhilde ou Parcifal. Porém, os músicos esqueceram que o wagnerismo era realizável, à condição de possuir tanto gênio quanto o seu inventor. Tendo levado o drama lírico a uma tal perfeição, Wagner deixara pouco a fazer depois dele, obrigando seus sucessores a imitá-lo, porém com meios menos potentes. Os compositores os mais hábeis se confinaram, pois, em empregar recursos sinfônicos e em adaptar ao palco assuntos alegóricos, do mesmo gênero que Reyer lançara – com bastante êxito –, representando Sigurd e Salamboo. Os outros músicos, que desejavam demonstrar mais personalidade ou sinceridade, ficaram parados e estorvados pelos seus escrúpulos e amplificaram a crise e o mal-estar, que iam sempre crescendo. Foi nesse momento que um homem, desconhecido na França até então, encontrou a solução do problema e mostrou como podia-se sair desse dilema, sem copiar Wagner e sem ficar improdutivo. Esse homem, convencido que Wagner precipitara abusivamente a arte musical no campo da filosofia simbólica, revelou de que modo a música pura permitia resistir a esse arrastamento, focalizando a atenção do espírito sobre a forma essencialmente musical, em lugar de dirigi-la unicamente para o palco. César Franck, nascido na Bélgica em 1822, e descendente de uma talentosa dinastia de pintores da Wallonia, teria sido com certeza um brilhante desenhista, ou mesmo um célebre pintor, sem a intervenção do seu pai. Com efeito, esse banqueiro autoritário, grande amigo das artes, decidira que, apesar das suas notáveis disposições para o desenho, seu filho seria músico! A decisão paterna caiu, nesse caso, num terreno maravilhosamente adequado, e, aos onze anos, o menino realizava, através da Bélgica, sua primeira tournée. Dois anos mais tarde, tendo César completado seus estudos musicais em Liège, sua cidade natal, o pai Franck, desejoso de oferecer aos dons invulgares 55 do seu filho a possibilidade de se expandirem, no ambiente o mais propício, não hesitou em fechar o seu banco, e em se fixar em Paris, onde César, depois de assíduos estudos de fuga, de contraponto e de composição, foi admitido, em 1837, no Conservatório Real. Ele tirou o seu prêmio de piano, no primeiro ano, depois de um concurso singular e memorável, cuja história merece ser contada. Após sua execução, de maneira magistral, do Concerto em Lá Menor, de Hümmel, que era a peça exigida no concurso, o jovem pianista, em lugar de tocar, à primeira vista, a outra peça indicada, tal qual estava escrita, se divertiu em transportá-la uma terça mais baixo, tocando nesse outro tom a obra inteira, sem um erro e sem a menor hesitação. Uma tal ousadia, não prevista nos estatutos do conservatório, e a liberdade tomada por esse rapaz de 15 anos pareceram tão irreverenciosas ao velho Cherubini, que era nessa época o diretor desse austero templo da música, que ele recusou, obstinadamente, em atribuir ao jovem candidato um primeiro prêmio, no entanto tão merecido. Porém, a fim de não parecer injusto para com esse temerário e talentoso aluno, ele propôs ao júri conferir-lhe um prêmio especial hors concours, que foi pomposamente denominado: “Grande Prêmio de Honra”. (Uma recompensa desse gênero nunca mais foi concedida no Conservatório de Paris.) No ano seguinte, César Franck tirou, com surpreendente facilidade e à unanimidade do júri, o primeiro prêmio de fuga, apesar de um tema particularmente difícil, escolhido por Cherubini; e alguns meses mais tarde, depois de uma execução, igualmente marcada por uma extraordinária façanha e outras peripécias imprevistas, o primeiro prêmio no Concurso de Órgão. Foi, entre os 20 e 25 anos, que César Franck, procurando formas originais, desenhos desconhecidos e harmonias de uma sonoridade inaudita, escreveu seus primeiros trios, suas primeiras composições para piano, assim como algumas Fantasias e transcrições brilhantes, que constituíam, naquele tempo, a bagagem obrigatória do pianista compositor. Em 1848, em plena insurreição francesa, os revolucionários que enchiam a praça Notre Dame de Lorette, em Paris, ajudaram, em certo dia, um jovem casal a passar por cima das linhas de barricadas, que eles defendiam, e a chegar salvos,até a Igreja, que se tornaria inacessível atrás dessas poderosas fortificações. Foi nessas condições que se realizou, na própria igreja onde ele era organista, o casamento de César Franck com a jovem atriz pela qual ele se apaixonara. Depois de uma tentativa bastante infeliz na composição da sua primeira obra dramática, que o deixou esgotado durante dois anos, Franck foi nomeado organista na grande Basílica de Santa Clotilde, na qual fora instalado um novo órgão, considerado, naquela época, como uma verdadeira obra-prima de mecânica e de sonoridade. Esse ambiente de simplicidade, de misticismo e de serenidade, foi o berço da exteriorização do seu talento, pois, durante 30 anos, todos os domingos e todos os dias feriados, César Franck, sentado a esse órgão, deixou seu gênio se manifestar, em tantas admiráveis improvisações, e encantou seus ouvintes, com as sublimes melodias de um canto quase sobrenatural. Franck, vivendo sua simples e quieta existência de organista e de professor, que lhe deixava apenas duas horas por dia para seu trabalho de composição, 56 escreveu, no início desse período, música exclusivamente religiosa, dedicando a maior parte desse tempo à grande obra que devia imortalizá-lo: Les Béatitudes. Essa magnífica epopéia musical, em oito partes e um prólogo, escrita para soli, coto e orquestra, e somente acabada em 1879, constitui um dos mais grandiosos monumentos da música sagrada, e pode ser comparada, em beleza, grandeza e inspiração, aos mais célebres oratórios de Bach e de Haendel. Esses oito cantos que são oito poemas, proclamando a beatitude prometida pelo Cristo à humanidade sofredora, reúnem um misticismo ideal, uma ternura de efusão e um fervor quase primitivo, aos recursos de uma técnica que é, ao mesmo tempo, a mais clássica e a mais inovadora. A primeira audição desse oratório, que teve lugar na própria casa de César Franck, foi assinalada pela incompreensão total dos seus convidados. Apresentada por Colonne, quatorze anos mais tarde, essa obra foi recebida com glorioso entusiasmo; infelizmente César Franck já falecera, três anos antes. Essa falta absoluta de compreensão foi também característica da recepção feita pelo público às suas Variações Sinfônicas para piano e orquestra, executadas num andamento errado, sob a regência do velho Pasdeloup, num festival dedicado às obras do Mestre, assim como à sua Sinfonia em Ré Menor, que foi tão duramente criticada por ter César Franck ousado incluir um corno inglês, numa obra sinfônica! A Sonata para Piano e Violino, escrita para Isaye, que foi executada com grande êxito, durante a tournée desse ilustre violinista através o mundo, foi talvez, para Franck, a primeira fonte de alegria a respeito das suas composições. Não é exagerado afirmar que o único triunfo pessoal ao qual Franck teve a felicidade de assistir se realizou somente seis meses antes de sua morte. Foi na audição do seu Quarteto para Cordas, em 1890, que esse extraordinário fenômeno se produziu. Depois de ter-se convencido que era o próprio autor que o público homenageava tão delirantemente, César Franck, cumprimentando a assistência, disse em voz baixa, a um dos diretores da Sociedade Municipal que patrocinara esse concerto, que era esse, o seu primeiro verdadeiro êxito, e acrescentou: “Será que o público já começa a me compreender?”. Ele tinha então mais de 68 anos! Essa felicidade devia ser muito breve. Poucos meses depois dessa consagração, um estúpido acidente de ônibus, agravado por uma pleurisia, pôs fim a essa existência tão humilde quanto maravilhosa. Poucos dias antes de falecer, ele insistira em ser transportado até o seu órgão, na Basílica de Santa Clotilde, a fim de completar a registração dos seus três grandes ”Corais”, que ele deixou, da mesma forma que Bach, como supremo testamento musical. César Franck formou numerosos alunos e discípulos, entre os quais o mais notável foi Vincent D’Indy, o célebre autor da Symphonie sur un Thème Montagnard que continuou a nobre tradição da música pura instaurada por seu grandioso mestre. A obra de César Franck o coloca no plano dos maiores músicos do seu século. Entre suas composições para piano, o Prelúdio, Coral e Fuga e o Prelúdio, Ária 57 e Final, que tive o ensejo de tocar neste teatro há alguns dias, exemplos da mais impecável estrutura musical, realizam num espírito inteiramente novo, os felizes efeitos da tonalidade, com recursos puramente pianísticos, do órgão, e conseguem, com uma rara perfeição, a justaposição dos profundos sentimentos humanos e da majestosa irradiação divina. A mais de revelar uma mestria dos aspectos arquiteturais da música de piano, inigualada desde as últimas sonatas de Beethoven, a obra de Franck se tornou saliente no domínio da sinfonia, que ele soube libertar do wagnerismo, e a qual deu mais uma vez, um lugar de honra. Verdadeiro reorganizador do grande movimento iniciado em 1890, e que se continua até hoje em dia, César Franck, não somente contribuiu para aperfeiçoar e adiantar o gosto da música moderna na França, mas também, e sobretudo, ele deu a essa música uma forma que pode ser considerada, como lógico desenvolvimento da herança beethoveniana!! Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1941 58 CÉSAR FRANCK VARIAÇÕES SINFÔNICAS PARA PIANO E ORQUESTRA César Franck, a cuja longa e fecunda carreira dediquei uma preleção inteira, numa das aulas do Curso de 1941, escreveu apenas cinco grandes obras para piano, das quais três, consideradas como ocupando um lugar de honra entre as supremas obras-primas de toda a literatura pianística, são suficientes para colocar esse compositor entre os maiores expoentes da música pós-romântica e moderna: Estas três composições, bem conhecidas de vós todos, são: o Prelúdio, Coral e Fuga, as Variações Sinfônicas para piano e orquestra, e o Prelúdio, Ária e Final, para piano solo. As Variações Sinfônicas que vêm nos revelar a genial mestria do organista no domínio da orquestração se assinalam pelo fato da parte de piano não focalizar exclusivamente todos os pontos de interesse, cabendo à orquestra um papel igualmente importante, o que permite ao autor deixar sua imaginação se exteriorizar com a maior liberdade e espontaneidade nos soli confiados ao piano. Por essa razão, as Variações Sinfônicas podem ser consideradas como um exemplo quase único da engenhosa combinação do piano e da orquestra, isso apesar do imponente número de obras desse gênero, reunidas no repertório sinfônico. Entre as outras características dessa obra, assinalar-vos-ei também: o notável desenvolvimento da primeira variação, o místico ordenamento que domina a maior parte da execução, o jorro faiscante acompanhando o solo de violoncelo e a riqueza sugestiva das vozes secundárias, enfim, o brilhantismo da peroração ampliado pelo acompanhamento dos instrumentos de arco de um complexo e deslumbrante efeito virtuosístico. Outra inovação reside na importância concedida ao segundo tema, anunciado por intermédio de expressivo solo de piano na tonalidade de fá sustenido menor, e cujas variações, freqüentemente entrelaçadas com as do primeiro tema, dão a essa obra o caráter de um inteiro conjunto de variações duplas. Essa obra, que ouviremos na execução do Sr. Homero Magalhães, sendo a parte da orquestra confiada à Sra. Neusa de Almeida, testemunha do profundo conhecimento técnico de César Franck, da nobreza dos temas que escolheu e do prestigioso valor desse extraordinário gênio musical. Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1943 59 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1943 CÉSAR FRANCK PRELÚDIO, FUGA E VARIAÇÃO Depois de Johann Sebastian Bach, que abriu no repertório pianístico o ciclo desse gênero de composição, conservando-lhe no início o caráter de um desenho rítmico ou melódico persistente, para lhe conferir ulteriormente aspecto mais complexo, foram sobretudo Mozart e Mendelssohn que abarcaram a forma da fuga, da qual já tive a oportunidade de falar, numa preleção do ano passado. Com César Franck reaparece, numa intensa e poderosa expressão, o sentimento cristão, a fé religiosa que fizeram toda a beleza da arte do grande Bach. Como dizia um biógrafo do autor das Variações Sinfônicas: “Se a religião de César Franck não é exatamente a mesma que no caso de Johann Sebastian, pouco importa, já que as duas músicas são a expansão do mesmo ideal artístico, da mesma emoção, do mesmo fervor”. É essa atmosfera de sublime comunhão com o criador que César Franck concretizou ao órgão no Prelúdio, Fuga e Variação, que vamos ouvir agora, tocado pelo Sr. Heitor Alimonda, numa transcrição de Harold Bauer para piano. Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1943 60 CÉSAR FRANCK VARIAÇÕES SINFÔNICAS PARA PIANO E ORQUESTRA Embora nascido na Bélgica, César Franck é considerado como sendo um dos grandes e autênticos expoentes do gosto e da tradição musical francesa, tendo contribuído com a sua obra e a dos seus numerosos e ilustres discípulos, à restauração da música pura no seu país de adoção onde desempenhou tão fecunda atividade criadora. Durante sua longa carreira iniciada no Conservatório de Paris, onde obteve o Grande Prêmio de Honra aos 15 anos e onde voltou aos 50 anos para assumir a cátedra de órgão substituindo, na mesma classe seu professor Benoist, César Franck tornou-se célebre tanto pela sua imortal contribuição ao patrimônio musical como pela sua notável atividade pedagógica, destacando-se entre seus alunos, os nomes de Vincent D’Indy, Henri Duparc, Chausson, Lekeu, Gabriel Pierné, Samuel Rousseau e tantos outros protagonistas do movimento musical contemporâneo. Foi Franz Liszt um dos primeiros em reconhecer e divulgar a grandeza do autor do Prelúdio, Coral e Fuga, uma das obras-primas de César Franck, que além de prestigioso organista também afirmou sua genial mestria no domínio sinfônico e orquestral, no plano da música de câmara e na música lírica enriquecida com monumental produção, culminando com o incomparável oratório Les Béatitudes. As Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra, escritas em 1885 isto é aos 63 anos, e 5 anos apenas antes do fim de sua gloriosa carreira, se assinalam pelo fato da parte do piano não constituir o foco exclusivo de interesse, cabendo à parte orquestral papel igualmente importante, o que proporciona ao autor o meio de deixar sua imaginação se expandir com maior liberdade e espontaneidade nos soli confiados ao teclado. É essa a razão pela qual constituem as Variações Sinfônicas exemplo bastante raro de engenhosa superposição de piano e da orquestra em que os temas se desenvolvem até o máximo de variedade e originalidade virtuosística, sem prejudicar a parte sensível e melódica. Dessa obra-mestra do repertório para piano e orquestra convém assinalar: o interessante desenvolvimento da primeira variação, o místico ordenamento que domina a maior parte da obra, o jorro faiscante de idéias musicais, a riqueza sugestiva das vozes secundárias, e, mormente, o brilhantismo da peroração ampliado pelo acompanhamento dos instrumentos de corda e levado ao seu ponto culminante num complexo e deslumbrante efeito virtuosístico. Outra inovação reside na importância dada pelo compositor ao segundo tema, anunciado por expressivo solo de piano na tonalidade de fá sustenido menor, e cujas variações, entrelaçadas com a do primeiro tema, emprestam a essa obra o caráter de conjunto inteiro de variações duplas. 61 Foi exatamente cinco anos após a primeira audição dessa obra que César Franck, ao atravessar uma rua em Paris, foi atropelado por um ônibus. O tempo escasso de que dispomos não permite nem sequer esboçar a descrição da grande obra que nos deixou esse prestigioso compositor. As Variações Sinfônicas para piano e orquestra, que ouviremos agora, destacam-se entre as composições de César Franck pela mestria com a qual soube desenvolver um tema essencialmente profundo e expressivo, e até doloroso, aproveitando ao máximo a variedade de recursos pianísticos e orquestrais para levar essa variações às culminâncias do enriquecimento e da ampliação sonora. Caberá agora ao Sr. Caio César Pagano interpretar para nós essas Variações Sinfônicas ficando o segundo piano, que substituirá a orquestra, a cargo da professora Nellie Braga. 62 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941 A ESCOLA MODERNA FRANCESA (Ciclo de Palestras sobre a História da Música – Terceira Série) CAMILLE SAINT-SAËNS Ao mesmo tempo que a escola de César Franck, esse grande músico da “alma”, popularizava na França a beleza e o gosto da “música pura”, um outro grande compositor surgiria, e devia trazer à arte da sinfonia e à opera dramática uma imponente contribuição e vir a ser um dos ilustres artesãos da renascença musical francesa do fim do século dezenove. Camille Saint-Saëns, nascido em 1835 – isto é treze anos depois de César Franck –, foi tão precoce que parece seu contemporâneo, apesar de pertencer nitidamente à geração seguinte. Sua fecundidade se explica, em primeiro lugar, pelos seus dons excepcionais e, também, pela sua longevidade, tendo dedicado à composição 70 anos da sua longa e frutuosa existência. Criado por sua mãe e por uma tia pianista, que pusera as mãos do menino sobre o teclado, ao mesmo tempo que ele começava a falar, Saint-Saëns aos cinco anos tocava em público, no salon da Sra. Violet, uma “Sonata para piano e violino” de Beethoven, inventava lindas melodias para as quais improvisava o acompanhamento ao piano, e procurava nas partituras de Mozart (Don Giovanni entre outras), que decifrava sem o menor erro, o verdadeiro recreio para seu espírito. A Illustration daquela época descreve do modo seguinte seu triunfal concerto na Salle Pleyel: “Acabamos de assistir ao primeiro concerto de um encantador menino de 10 anos que revelou o mais admirável talento e a memória mais prodigiosa, tocando inteiramente de cor o quarto concerto de Mozart com grande orquestra, e em seguida uma Fuga e uma Ária de Haendel, uma Toccata de Kalkbrenner, um prelúdio e uma fuga de Bach, e finalmente o Concerto em Dó Menor de Beethoven. O êxito foi extraordinário!” Aluno de Halévy, na classe de piano, e de Benoist, na classe de órgão do Conservatório de Paris, onde ele tirou o primeiro prêmio logo no primeiro ano, Saint-Saëns apresentou em 1853 sua Primeira Sinfonia, que foi executada sem que o nome do autor fosse mencionado. O público e a crítica, que aclamaram essa obra, ficaram assombrados ao ouvir alguns dias mais tarde que o compositor ainda não tinha 18 anos. Nomeado organista da Grande Igreja de Sta. Magdalena em Paris, e cumulando esse cargo com o de professor na famosa escola Niedermeyer, 63 Saint-Saëns exerceu durante duas gerações inteiras, a mais benéfica influência sobre seus alunos, entre os quais: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre, André Messager, Eugéne Gigout, assim como sobre a evolução musical francesa em geral. Há poucos exemplos, no mundo musical moderno ou contemporâneo, de uma atividade igual, ao mesmo tempo de uma tal diversidade na sua produção. Saint- Saëns, de quem Gounod dizia que “já aos cinco anos, lhe faltava inexperiência”, não somente abarcou todos os gêneros da música, mas também alcançou, quase em todos, os maiores êxitos. Iniciados por esse prodígio virtuose, na idade em que tantos outros artistas nem mesmo chegaram ainda aos exercícios elementares, seus brilhantes sucessos foram sempre crescendo, até mesmo prejudicar sua própria carreira, pois o público admite raramente, ou mesmo não quer admitir às vezes, que um músico possa conseguir a mestria em gêneros demasiadamente diversos. Essa concepção, tão errada, particularmente a respeito de Saint-Saëns, foi, aliás, claramente demonstrada, pelo destino que tiveram duas das suas mais prodigiosas obras-primas: a famosa ópera Samson et Dalilah”, e a sua Terceira Sinfonia (em dó menor), que foram triunfalmente aplaudidas ulteriormente, porém fracassaram por completo nas suas respectivas estréias. Tendo decidido tomar parte em 1867 no famoso concurso de música da Exposição Universal em Paris, Saint-Saëns, receando a mesma hostilidade de parte do Júri, esqueceu, propositadamente, de assinar seu manuscrito, e foi até pedir a um amigo, que morava na Inglaterra, que mandasse de Londres essa composição ao “Comité do Concurso”, a fim de evitar qualquer suspeita. Naturalmente, foi ele quem ganhou o prêmio. Todavia ele teve que reclamar e lutar durante alguns anos, antes de conseguir que sua composição fosse executada. No início da sua carreira, Saint-Saëns se assinalara pelos seus dons pianísticos e provocara a admiração de Liszt e de Berlioz, não somente pela sua virtuosidade, mas sobretudo pelo emprego inteligente das suas faculdades na interpretação, num estilo impecável, dos mestres do teclado. Um pouco mais tarde, sua produção orquestral revelou, simultaneamente com sua obra dramática, esse magnífico desenvolvimento da sua personalidade. Erudito, de uma inteligência superior, respeitoso das obras-primas do passado, SaintSaëns ofereceu o exemplo de um espírito metódico, disciplinado, doutrinário, e procurou, às vezes de modo excessivo, reter seu temperamento musical, fogoso e espontâneo, e dominar seus ímpetos apaixonados, deixando sempre em primeiro lugar o amor do gosto, a distinção e a claridade harmoniosa, qualidades que prevalecem e se refletem tão maravilhosamente nas suas composições. Saint-Saëns reservou na sua produção uma parte preponderante à música sinfônica, notável pelo número de obras que ele escreveu, assim como pela sua incomparável variedade. Entre as composições que formam esse majestoso conjunto, citar-vos-ei: Suite Algérienne, o Quinteto, o Septeto (com trombeta), suas Sinfonias, e particularmente a Segunda e a Terceira, que marcam seu apogeu nesse gênero. A Terceira Sinfonia, para órgão e piano, dedicada a Franz Liszt, da qual vos contei há pouco a estréia infeliz, é uma das mais belas criações e um dos monumentos incontestáveis da Escola Francesa desses últimos cem anos, pela sua admirável beleza, pela harmonia das suas proporções, pela variedade e a riqueza rítmica, pelo colorido sombrio e ardente, 64 enfim pela eloqüente peroração realizada magistralmente com a intervenção do órgão. Os seus Concerti para piano, para violoncelo, para violino, dos quais alguns vieram a ser o cavalo de batalha de tantos virtuoses, nos revelam até que grau de perfeição Saint-Saëns aprofundara o estudo de cada um dos instrumentos para os quais ele escrevia, além de uma escritura impecável, viva e engenhosa, e de uma mestria técnica absoluta. Foi Saint-Saëns quem reintroduziu na França, com brilhante êxito, a forma do “poema sinfônico”. Numa das minhas preleções anteriores, dedicada a Franz Liszt, divulguei-vos como esse ilustre compositor, aproveitando a notável inovação de Berlioz que o público francês não soubera apreciar naquela época, porém modificando-a, e elevando-a, até o auge da perfeição, trouxe pela primeira vez o Poema Sinfônico à Alemanha. Alguns destes foram apresentados, mais tarde, em Paris, cujo público, decidido a ver exclusivamente em Liszt um prestigioso e deslumbrante virtuose, não prestou atenção a essas tentativas. Saint-Saëns soube apreciar o gênio de Liszt que era muito seu amigo, e conseguiu, numa forma um pouco diferente, apresentar aos parisienses, uma sucessão de “poemas sinfônicos” que são verdadeiros modelos desse gênero de produção musical, e que obtiveram, como Le Rouet d’Omphale, Phaeton, La Danse Macabre, La Jeuneusse d’Hercule, e tantos outros, um êxito triunfal. Na Fantasia, Saint-Saëns atingiu uma rara mestria, com essa estranha e deliciosa facécia zoológica, em quatorze breves episódios, intitulada Carnaval des Animaux, outra obra-prima que foi somente revelada ao público em 1922 por Gabriel Pierné, tendo o seu autor interdito que essa peça fosse representada enquanto ele vivesse. No domínio da música vocal e religiosa, encontramos trinta coros, sessenta melodias, numerosas cantatas, motetos, missas, uma coleção de obras para órgão, e esse magnificente poema bíblico para soli, coro, e grande orquestra: Le Déluge. Dir-vos-ei enfim algumas palavras a respeito da “obra dramática” de SaintSaëns, marcada por tantas decepções, tantas dificuldades, tantas lutas, até o triunfo de Samson et Dalilah no teatro de l’Opéra em Paris, em 1892. Depois de todos os teatros da capital francesa terem recusado encenar essa obra, e graças à iniciativa de Liszt, esse grandioso drama lírico foi aclamado na Alemanha (Weimar) em 1877. Cinco franceses assistiram a esse triunfo, mas a imprensa de Paris manteve um silêncio quase absoluto a esse respeito. Quinze anos mais tarde, essa mesma imprensa não achava bastantes palavras – e superlativos – para elogiar essa ópera. Efetivamente, Samson et Dalilah, verdadeira obra-prima, pela qualidade da sua música, senão pelo seu libretto, é agora a preferida entre todas a composições dramáticas de Saint-Saëns, das quais citar-vos-ei ainda: Henri VIII, que foi representada 31 vezes durante o primeiro ano da sua encenação, oferecendo ao autor, com esse êxito, uma pequena compensação para os desgostos da sua primeira tentativa; Proserpine, Ascanio, Les Barbares, Déjanire merecem igualmente ser assinaladas entre as óperas escritas ulteriormente. Le Timbre d’Argent, La Princesse Jaune e Phhryné são outras obras musicais, de caráter 65 mais leve, porém cheias de invenção, de ironia, de encanto e de vida, e também de sátiras veementes, contra todos os que não o souberam compreender, cujo efeito foi, infelizmente, aumentar o número dos seus inimigos. Todavia, o que prejudicou a popularidade de Saint-Saëns foi, em primeiro lugar, sua atitude para com o wagnerismo que ele exaltara durante um certo tempo, antes de tomar – provavelmente por patriotismo – nitidamente posição contra esse movimento, e de procurar diminuir o valor daquele gênio da música – com o fim de eliminar a fórmula wagneriana. Saint-Saëns fez voltar a ópera, legendária ou histórica, a uma formula mais parecida com a de Meyerbeer, porém com uma orquestração muito mais apurada e complexa, e um esforço notável em expressar com a própria música a vida psicológica dos seus heróis. Com tudo isso, devemos hoje reconhecer que a música de Saint-Saëns é uma das mais felizes construções do espírito. Mesmo se a sua obra revela raramente essa emoção profunda, que, como dizia Beethoven “vem do coração para alcançar outros corações”, é indiscutível que esse compositor genial nos deixou em todos os domínios obras maravilhosas das quais algumas apenas seriam suficientes para imortalizá-lo e colocá-lo entre os maiores músicos da escola moderna. Rio de Janeiro, agosto de 1941. 66 REFLEXÕES SOBRE A VIDA E A OBRA DE MEU EMINENTE MESTRE: GABRIEL FAURÉ Meus caros amigos Nos arredores da pitoresca cidade de Foix, no sul-oeste da França, a modesta capela de Montgauzy, abrigava, desde o século nove, uma milagrosa estátua de Nossa Senhora. Durante quase trinta gerações, esse santuário foi o centro de comoventes romarias, costumando os peregrinos subir de joelhos o sinuoso e íngreme caminho que levava até o convento. Apesar das revoluções e das guerras de religião, o culto de Notre Dame de Montgauzy se manteve vivaz até que, em meados de século passado, o prédio da Escola Normal veio a ser erguido sobre as ruínas do antigo convento. A capela, porém, reconstituída na época do império permanece intacta e continua sendo visitada, desde então, por numerosos romeiros e também por alguns turistas, atraídos pela serena e sedutora beleza dessa região. Gabriel Fauré tinha quatro anos apenas, quando o seu pai foi nomeado diretor da Escola de Montgauzy. Nos majestosos plátanos e magnólias que rodeiam o austero edifício, no deslumbramento primaveril das cerejeiras e das macieiras, no esplendor da paisagem que descortina de todos os lados desse jardim encantado, a poesia do mundo se revela espontaneamente a esse menino. Na capelinha, o pequeno Gabriel encontra o refúgio onde ele pode se recolher, sendo sua maior alegria ouvir tocar o modesto órgão, cuja música oferece a essa alma infantil uma expansão natural e ainda inconsciente, à torrente diária e ao frescor das suas emoções. É nesse ambiente de pureza, espiritualidade e meditação, que se desperta, entre os seus quatro e nove anos, a percepção artística dessa prodigiosa criança, que nada, nas suas origens, predestina à música e que, no entanto, durante a sua longa e exemplar existência, não fará outra coisa senão viver pela música, da música, e exclusivamente para a música. Uma capela, e um jardim! É da fusão sonora dessa duas misteriosas e dominantes atrações da sua infância, que irão nascer, ao mesmo tempo: uma linguagem das mais pessoais e encantadoras de toda a música moderna, e aquela força imaginativa que permitirá a Fauré cantar a vida e todos os seus matizes de alegria, esperança ou ansiedade, comum a voz tão irresistível que eleva, purifica e consegue ultrapassar a própria realidade. Uma capela, e um jardim! Às vibrações do velho órgão que desde o início, veicularam o seu juvenil e vibrante pensamento, à sua desmedida admiração pela obra do Criador, originada no decorrer dos longos passeios em Montgauzy e nos morros vizinhos, Fauré conseguirá dar mais do que uma substância harmônica ou uma forma melódica. Longe de recorrer aos possantes efeitos orquestrais, longe de traduzir numa música descritiva, as manifestações da natureza, Fauré deixará o piano, as vozes, as cordas expressarem livremente, 67 sem grandiloqüência, sem artifícios sonoros, tudo o que ele sente, transpondo instintivamente, no plano musical, sua ardorosa vibração pessoal e procurando apenas, na sua música, como ele mesmo nos dirá mais tarde, respeitar essa regra imutável: “fazer pouco barulho, porém sempre dizer alguma coisa!”. Durante os seus estudos musicais na famosa Escola Niedermeyer, em Paris, aquelas penetrantes influências, aqueles dignos preceitos, iluminarão e guiarão os passos do jovem e brilhante aluno de Saint-Saëns que, aos quinze anos, já demonstra, na sua primeira melodia Le Papillon et la Fleur, a ambição de expressar, numa só efusão do pensamento, e por meio do mais simples e comovedor desenho melódico, a maravilhosa união da música e da poesia. Rodeado de preciosas e entusiastas amizades, tais a de Messager, Henry Dupare, Gigout e do próprio Saint-Saëns que veio a ser seu verdadeiro guia espiritual, Gabriel Fauré inicia aos vinte anos, ao sair daquele modelar estabelecimento de ensino, a primeira grande etapa da sua carreira artística, à qual devemos a Sonata para Piano e Violino, os dois Quartetos, vinte encantadoras melodias, notável produção pianística e a Balada para Piano e Orquestra originalmente escrita para piano só. Para esse jovem compositor, ainda desconhecido, porém decidido a nunca admitir o avassalamento da sua arte, a um efeito de estilo ou qualquer fim que não seja integralmente musical, para esse autor requintado, que nunca escrevera pelo simples prazer de compor, ou para ganhar a vida, mas sim para expressar, com absoluta espontaneidade, o magnífico canto interior da sua genuína e constante inspiração, a carreira de compositor se revela particularmente árdua, levando-o a assumir durante alguns anos, o cargo de organista numa pequena igreja da Bretanha, antes de ele poder voltar a Paris, onde o chamam suas ardentes aspirações. Ele não conseguirá, todavia, se dedicar exclusivamente à composição, sendo obrigado a lecionar e aceitar as funções de organista, em diversas igrejas da capital francesa, a fim de assegurar a existência do seu lar, nesse período que coincide, entretanto, com a fase mais fecunda e resplandecente da sua produção vocal e instrumental. A sua nomeação, aos 51 anos, para Professor de Composição no Conservatório de Paris, na Cátedra anteriormente ocupada por Massenet, e a concretização, no mesmo ano, do grande sonho da sua juventude, o encargo de Grande Órgão da Igreja da Madeleine, marcam para Gabriel Fauré, ao mesmo tempo que sua libertação das preocupações materiais imediatas, a primeira consagração oficial, na vagarosa, porém ininterrupta, e tão gloriosa ascensão, que levará o sutil renovador da composição harmônica e da moderna canção francesa ao prestigioso lugar que ele ocupa, hoje em dia, no cenário musical contemporâneo. Meu primeiro contato com Gabriel Fauré se deu no dia em que me apresentei ao Concurso de Admissão ao Conservatório de Paris, do qual ele fora nomeado diretor. Eu tinha treze anos, acabava de chegar do Brasil e estava bem longe, naquela ocasião, de suspeitar o importante papel que iria desempenhar em toda minha formação artística, esse senhor tão simples e delicado, que presidia o imponente júri, e que eu tinha visto de longe, poucos dias antes, em frente à porta daquela célebre instituição, para a qual convergiam então todas as minhas esperanças. Quando fui chamada para tocar, na sala onde estava reunido o imponente júri, tive que passar bastante perto da mesa da diretoria, antes de chegar ao piano, procurando reprimir a todo custo minha emoção, sob a aparência a mais hermética. Não pude deixar, todavia, de ouvir o breve comentário que Gabriel Fauré que presidia a bancada fez a meu respeito ao 68 seu vizinho, o ilustre pianista Harold Bauer: “Aquela menina, disse Fauré, deve tocar muito bem! Eu já constatei que os candidatos que têm como ela aquele olhar de soslaio tocam, geralmente, muito melhor do que os outros”. Fiquei, pois, bastante desnorteada quando, após ter tocado doze ou quinze compassos da Terceira Balada de Chopin, fui interrompida pela campainha do Presidente, que era o sinal convencional para significar ao executante que os seus juízes já haviam ouvido bastante. Saí daquela sala num estado de absoluto desespero, convencida que o júri me achara imperfeitamente preparada, e ouvindo, no inesperado toque de campainha, a minha irremediável condenação. O que sucedeu foi, felizmente, o contrário do que imaginara, tendo sido as poucas linhas daquela execução ao piano, julgadas suficientes para que, como já acontecera outras vezes, o candidato fosse admitido sem outra formalidade. Foi logo no início do ano letivo, algumas semanas depois da minha admissão ao Conservatório, que tive, inesperadamente, minha primeira conversa com Gabriel Fauré. Meu professor Antonin Marmontel, para cuja classe fora designada, estava encerrando uma de suas aulas quando, após ter insistentemente batido à porta, um contínuo entrou e disse, em alta em pomposa voz: “O Senhor Diretor manda chamar: la petite brésilienne. Devo confessar que, se durante o trajeto entre a minha classe e a sala da diretoria, o meu coração deu sinais de profunda perturbação, não era somente devido à honra de ser recebida pelo genial autor de Promethée, chegado naquela época ao auge da celebridade, mas também, ao temor de eu ser admoestada por Deus sabe que travessura minha. Essa entrevista, no entanto, na qual eu falei do Brasil e das lindas hortênsias da minha cidade natal, e Gabriel Fauré, da música, que era sua única linguagem, foi a primeira de muitas e muitas outras, em que iam sempre crescendo o meu entusiasmo e o meu fervor por esse músico excepcional de quem me tornei, desde então, dedicada discípula e incondicional admiradora. Nunca esquecerei as incomparáveis lições de estética musical desse invulgar professor, cuja personalidade, doçura e encanto se refletiam num olhar de sonho e imaterialidade, e que não reprimia, naquele ambiente de deliciosa camaradagem, o fundo jovial e folgazão da sua fascinante natureza. Eu era, naquela época, uma menina bastante levada e não posso deixar, hoje, de ficar comovida ao evocar a indulgência e a bondade do meu ilustre mestre que nunca censurou a petite brésilienne e até se divertia como uma criança com as minhas repetidas diabruras. Guardo, fervorosamente entre as mais vivas e gratas recordações da minha carreira, a lembrança das sucessivas e maravilhosas tournées de concertos “com meu ilustre mestre, através das grandes cidades da Province francesa, no decorrer das quais, Fauré não hesitava quando faltava a orquestra, em tocar a meu lado a parte do segundo piano, para acompanhar a minha execução da sua célebre balada. Da sua índole humorística e do seu gosto da fantasia que Fauré nunca deixou transparecer nas suas composições, e constituem talvez faceta menos conhecida do seu caráter, encontramos significativa ilustração, na autêntica história que ele gostava de nos contar, a respeito da primeira execução em público do admirável Sexto Noturno. Visivelmente impressionada pela extraordinária pureza de sentimentos que dimana dessa obra, uma senhora que se julgava bastante entendida e provavelmente à espera de uma resposta 69 sensacional, perguntou ao mestre, nos bastidores da Sala de Concerto, qual era o céu luminoso que inspirava essas harmoniosas páginas. “Acredite ou não, minha senhora, respondeu o autor, idealizei o Noturno num dia de chuva ao atravessar o túnel do Simplon, no trem que me trouxe da Suíça o ano passado!”. Esse homem, essencialmente bom e generoso, sabia também ser enérgico e severo, conforme veio provar o radical programa de reformas que ele aplicou durante sua atuação à frente do Conservatório de Paris, com uma implacável tenacidade, que parecia tão contrária à sua natureza. “Dizem, confiou-me um dia o meu mestre, que está soprando nesta velha casa, um vento de revolução! Não vá contar a ninguém o que vou lhe dizer: Esse sopro é apenas o da música!” Distinguida pela preciosa e sincera amizade desse genial animador da moderna escola musical francesa, iniciou-se, logo depois, para mim, o inolvidável período durante o qual, tendo eu ultimado o estudo da maior parte de sua música de piano e câmara, Gabriel Fauré (informado por Alfred Cortot, das minhas possibilidades no plano da arte vocal) fez questão que estudasse com ele quase todas as suas melodias. A música de Gabriel Fauré! Quem podia defini-la, melhor do que ele mesmo, com essas poucas palavras escritas à sua mulher, depois de compor o primeiro Quinteto (em 1906): “tenho a impressão, escrevia ele, que a minha música ainda não está ao alcance de todos”. Houve efetivamente na França uma época, felizmente já remota, em que, nos meios artísticos, a incompetência de certos críticos se media pela sua incompreensão da música de Fauré. A arte sumamente requintada do autor de Penélope foi considerada, durante aquele período, como sendo o apanágio de uma pequena “elite” fora da qual não podiam ser apreciadas, em toda a sua plenitude, as qualidades de sensibilidade, reserva e pureza dessa música exclusivamente arquitetada para o espírito e o coração. As múltiplas e vibrantes manifestações que assinalaram, no Brasil, as comemorações do centenário do nascimento de Gabriel Fauré, e, por outro lado, a calorosa acolhida proporcionada, em todo o país a diversas obras do seu admirável repertório, abrangendo todos os gêneros, vocal instrumental e orquestral, constituem a prova indiscutível de que, neste país, não fica restrita a uma elite a penetrante beleza da música pura, e também a prova de que, o público não se deixa unicamente arrebatar pela exuberância e os efeitos sonoros, conseguindo num sussurro confidencial, fazer igualmente vibrar a alma ouvinte. Ao encerrar essas breves reflexões sobre a eminente figura do meu saudoso e querido mestre, não posso deixar de evocar a imagem da magnífica consagração da carreira de Gabriel Fauré, à qual tive a felicidade de assistir, em 1922, no Grande Anfiteatro da Sorbonne. Todo o mundo oficial, todos os seus amigos, alunos e discípulos, todos os músicos, virtuoses e compositores, grandes e pequenos, toda a França musical e também inúmeros admiradores anônimos estavam reunidos no suntuoso Teatro da Universidade de Paris, para tributar a Gabriel Fauré, que já tinha quase oitenta anos, a gratidão e o apreço do seu país, num incomparável festival em que seus colegas, entre os mais 70 ilustres, tocaram ou regeram sucessivamente algumas das suas imorredouras composições. Sentada bastante perto e em frente ao glorioso homenageado, o qual, ao lado do Presidente Mitterand, assistia com comovida satisfação, porém sem orgulho, às entusiásticas aclamações de um mundo definitivamente conquistado pela magia e o “charme” do seu genial pensamento, pude perceber, na serenidade do seu olhar, a visão longínqua de uma grande saudade. Gabriel Fauré, Membro da Academia, Diretor Honorário do Conservatório, que o Governo Francês acabava de condecorar com o mais alto grau da Legião de Honra, festejava tranqüilamente o seu triunfo, evocando naquele instante o berço encantado da sua infância: “Uma capela, e um jardim!” 71 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941 Ciclo de Palestras sobre a História da Música Terceira Série A ESCOLA MODERNA FRANCESA – GABRIEL FAURÉ Entre as recordações da minha infância, uma das mais belas, e que deixaram em mim, para sempre, a mais profunda impressão, são as horas de encanto e de emoção artística que tive a felicidade de passar ao lado desse genial animador da Escola Moderna Francesa: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre. Nunca esquecerei as maravilhosas tournées que fizemos na França, tocando, eu com ele, a dois pianos, sua famosa Balada, e ouvindo-o acompanhar o violinista e a cantora que faziam parte do nosso grupo. Quantas vezes o vi se divertindo com ninharias, revelando o caráter mais jovial e folgazão que se possa imaginar. Ele era, aliás, todo doçura e ternura, e sua natureza requintada se refletia na expressão, quase indefinível, do seu olhar, que trazia, ao mesmo tempo, o ar de sonho e de imaterialidade que lhe era tão próprio. Insuficientemente apreciado durante sua modesta e trabalhosa existência, Fauré, cuja glória começou realmente a se difundir através do mundo só depois da sua morte, em 1924, será sem dúvida ainda mais avaliado pelas gerações futuras, que o colocarão, talvez, na primeira fila dos compositores, não somente de sua terra, mas também do mundo inteiro. Do mesmo modo que Brahms, na Alemanha, é considerado como a encarnação da alma do seu país, pode-se dizer que não há gênio musical mais especificamente “francês” do que Gabriel Fauré. É verdade que a música fala uma linguagem universal que todos podem entender, e que passa por cima de todas as fronteiras. É incontestável, porém, que esse modo de expressão com Gabriel Fauré, canta o pensamento de um músico que se acha forçosamente enraizado, pelo seu coração e seu espírito, pela sua educação e sua ascendência, na terra na qual foi criado, no país e na época aos quais ele pertence. Se Mozart não tivesse nascido em Salzburg, e vivido em Viena, ele não teria escrito o mesmo Don Giovanni nem o mesmo Cosi Fan Tutte, e se Wagner soube tão maravilhosamente exteriorizar, em Tristan et Isolde, sua paixão por Mathilde Wesendonck, não é unicamente a esse sentimento ou ao seu gênio, mas também ao seu atavismo, aos poetas, e à filosofia que inspiraram sua juventude, e à essência da Alemanha daquela época que se deve essa prodigiosa ópera. Fauré, como Franck, Debussy, d’Indy, encarnou essa renascença musical graças à qual a França atingiu novamente, desde o fim do século dezenove, o lugar de honra que ela ocupava no tempo de Rameau, e enriqueceu 72 magnificamente a linguagem musical da sua terra, com uma obra de grande pureza artística que prolonga a mais bela tradição francesa, mesmo quando ele parece afastar-se dela. Efetivamente, Fauré compreendeu que, em matéria de música, “inovar” podia às vezes ser sinônimo de redescobrir o que estava esquecido, restituir um tesouro perdido, ou, simplesmente, tornar acessíveis, por meio de uma linguagem mais adequada, tantas belezas que certas formas arcaicas não permitem perceber. Se as novas harmonias que Fauré inventou são tão originais que marcam inconfundivelmente suas composições, é interessante notar que sua obra nos lembra, muitas vezes, os antigos mestres do fim da Idade Média, enquanto os adoráveis arabescos das suas melodias despertam o eco adormecido dos velhos cânticos orientais do século 16. Essa ponte espiritual que Fauré lançou para ligar uma época tão distante com as aspirações do mais recente modernismo, esse milagre realizado pela fusão dos poetas da Grécia Antiga e da música dramática contemporânea, no mesmo desejo e no mesmo ímpeto de liberdade, constitui, a meu ver, a característica essencial de seu gênio. Examinando a sua obra, tão diversa e abundante, que se estende sobre 60 anos de fecunda produção, podemos constatar a esplêndida evolução, ou melhor, a constante ascensão da sua notável personalidade. Mesmo quando, aos 20 anos, ele nos deixa ainda perceber suas origens, assim como certas influências bem nítidas, sua originalidade surge, com audácia e potência. E pouco a pouco, até chegarmos à segunda metade da sua vida, cada uma das suas obras se revela mais apurada do que a precedente, mais libertada dos seus enfeites, e se aproxima cada vez um pouco mais da luz verdadeira e deslumbrante para nos descobrir enfim, desta vez, até o fim da sua carreira, a mais pura e genuína irradiação do seu genial pensamento. Na escola de Música Religiosa Niedermeyer, onde ele foi admitido aos 9 anos, Fauré estudou ao mesmo tempo com Messager e Gigou. Sua grande ambição era de vir a ser organista e, quando um certo dia, passeando com um dos seus camaradas em cima da Butte Montmartre, Fauré lhe disse brincando e mostrando os magníficos monumentos da Capital: “Você terá a Igreja de St. Augustin! Eu terei a da Madeleine” ele não podia imaginar que isso se realizaria. Foi durante seus árduos estudos nessa escola que Fauré se imbuiu do sentido profundo da música “eclesiástica”, ao mesmo tempo que ele se apaixonava pela obra de Mozart, curioso contraste que devia ser uma das originalidades do seu gênio. Saint-Saëns, que foi seu mestre antes de vir a ser seu grande amigo, revelou a Fauré a música de Schumann e de Liszt, e levou-o à Alemanha na época da encenação de Samson e Dalilah, em Weimar. Mais tarde, Fauré falando do seu mestre, para o qual ele sempre conservou uma infinita gratidão, dizia: “É a ele (Saint-Saëns) que devo tudo!”. Maravilhosa palavra que honra tanto o aluno quanto o professor, que suscitou um tal elogio. Fauré escreveu uma grande parte da sua obra para vozes, piano e instrumentos de música de câmara. Foi somente mais tarde que ele abordou a música dramática. Ele gostava, aliás, tão pouco do trabalho da instrumentação, que não hesitou em confiar a dois dos melhores alunos a orquestração de algumas obras-primas, entre as quais, uma composição para canto que veio enriquecer o repertório dos concertos sinfônicos: L’Horizon Chimérique. 73 Os primeiros sucessos de Fauré foram obtidos na composição dessas encantadoras melodias: La Chanson du Pêcheur, Lydia, Aprés un Rêve, Mandoline, Les Berceaux, e dessas ternas e sutis harmonizações dos poemas de Paul Verlaine, que o consagraram como um dos renovadores do Lied na França, ao mesmo tempo que Ernest Chausson e Henri Duparc. À antiga Romança de Gounod ou de Massenet, Fauré substituiu uma obra vocal, na qual o canto, a prosódia e o comentário se juntam para criar, como o fez Schumann, uma harmoniosa obra de conjunto. Evitando o uso de títulos sugestivos, que Debussy devia mais tarde tornar tão popular, Fauré compôs uma imponente obra para piano e música de câmara, entre outros: numerosos noturnos, dois quartetos para piano, dois quintetos, um quarteto para cordas, duas sonatas para piano e violino, uma para piano e violoncelo, a redução para piano da sua célebre Balada para Piano e Orquestra, o brilhante Thème et Variations, etc. ...., conjunto maravilhoso no qual dominam a riqueza e a originalidade harmônica, a nobre grandeza, a graça poética e a sutil elegância que dão a toda a sua música esse imorredouro perfume! No domínio do drama lírico, citar-vos-ei Promethée, cuja música é de uma rara perfeição, apesar da sua ousadia, e Pénelope, que nos leva, com um libretto de um poeta contemporâneo, e depois de um admirável prelúdio, à idílica beleza de uma legenda homérica, e ficará para sempre, como uma das maiores obras primas da música dramática francesa. Nas duas suítes de Shylock e de Pelléas, assim como no coro de Caligula, encontramos a mesma discreta e transparente poesia, unida à escritura de uma requintada concisão, que imortalizaram suas melodias. Um dos meus colegas do Conservatório de Paris, que teve a feliz oportunidade de assistir outrora a uma aula de Fauré (ele foi professor de Composição antes de ser nomeado diretor dessa Academia Musical), me contava que, longe de ser um professor como tantos outros, ele era mais um conselheiro, e um guia para seus alunos, dedicando a maior parte do seu ensino a interessantes palestras estéticas e deixando apenas alguns instantes para a correção dos exercícios que eles traziam. Ele exigia, antes de tudo, dos seus alunos, a pureza da forma, a ciência do vigoroso desenvolvimento, indignando-se com o desejo de brilhar, e ambição do sucesso que, segundo ele mesmo dizia, “sempre levam os músicos às piores concessões”. Nas suas aulas, nada de solene ou de dogmático, nada que pudesse intimidar o executante, o qual sempre encontrava essa deliciosa familiaridade, essa cordial camaradagem, pelas quais todos o amavam. Com modéstia, seu desdém da glória, numa época em que os mais medíocres conseguiam fazer tanto barulho, prejudicou notavelmente a carreira desse compositor, conhecido sobretudo pelas suas melodias, e que não fazia o menor esforço a fim de impor ao grande público suas obras mais importantes. Sua carreira foi tão modesta quanto sua pessoa, e se Fauré, rodeado somente pela admiração dos verdadeiros músicos e pelos intelectuais, adquiriu em numerosas ocasiões, no decorrer da sua longa existência, a convicção absoluta que suas obras iriam crescendo na compreensão do público e que um dia o 74 mundo lhe faria justiça, isso não impede que ele tenha pago essa certeza com tantos desgostos, tantas dúvidas, e mesmo tantas humilhações. É difícil acreditar que, no dia da morte desse grande músico, o Ministro da Educação daquela época, François Albert, solicitado a prestar ao antigo Diretor do Conservatório uma ultima homenagem oficial, tenha perguntado: “Fauré! Quem é esse senhor?”. Koechlin, discípulo e amigo íntimo do compositor, que chefiava a delegação do Ministério da Educação, teve a maior dificuldade em obter que o Governo fizesse a esse “pobre desconhecido”, no entanto membro da Academia, exéquias nacionais. A arte de Fauré, toda de ternura e firmeza, de elegância e de vigor, foi nesses últimos anos, freqüentemente comparada à de Mozart, com a qual existem realmente, sob certos pontos de vista, indiscutíveis analogias. Como o autor da Flauta Mágica, Fauré possui um estilo de uma transparência tão nítida, que perde uma grande parte da sua beleza, se um detalhe, aparentemente insignificante, for omitido na execução. Como Mozart, ele se distingue pela sua graça elegante, pelo encanto do seu espírito, pela nobreza da sua inspiração, e pela pureza da sua escritura. Enfim, como é o caso em Mozart, a música de Fauré é matizada pelas misérias e pelos sofrimentos humanos, ficando todavia sempre sensível à beleza, e elevando a humanidade até esferas mais altas onde a arte sonora possa aliviá-la e confortá-la. Apesar de seus últimos anos terem sido marcados por uma surdez, talvez mais trágica ainda do que no caso de Beethoven, pois essa se manifestava por perturbações que falseavam a percepção dos sons, Fauré soube, como Mozart, dominar qualquer grito de revolta, e ficar, até o seu último fôlego, mestre de si mesmo, e digno da maior admiração pelo seu indomável gênio! Rio de Janeiro, agosto de 1941 75 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951 – 5a Aula O ESTILO DE GABRIEL FAURÉ Na preleção que dediquei a Debussy na aula inaugural do Curso deste ano, referi-me à barreira, em aparência intransponível, erguida contra a expansão da arte popular, na França, pela escola “debussista” cuja produção, inspirada por excessivo individualismo, requinte e abstração, não conseguiu alcançar senão uma pequena minoria, pelo fato dessas obras não falarem uma linguagem universal, pretensa definição da arte musical. No entanto, o verdadeiro precursor daquela música do espírito e daquelas audácias harmônicas que marcaram durante mais de meio século a evolução da música francesa contemporânea, foi Gabriel Fauré, nascido quase vinte anos antes do autor de Pélleas et Mélissande e em cuja obra já germinavam quase todas as conquistas e as temerárias antecipações da escritura moderna. Foi, efetivamente, Fauré o primeiro a revelar aos músicos da sua época, que o enriquecimento e o desenvolvimento daquela escritura, só poderiam resultar dos progressos da harmonia, já que, no plano do “contraponto” era difícil encarar qualquer meio de exceder o grau de absoluta perfeição atingido por Bach, ao passo que eram necessárias repetidas e constantes inovações no plano do “mecanismo harmônico” a fim de ampliar um vocabulário sempre julgado insuficiente pelos compositores para traduzir todos os seus pensamentos e seus sonhos. Pondo em prática esse conceito com a maior naturalidade, Fauré agregou à encantadora elegância e originalidade do seu fraseado recursos harmônicos desconhecidos até então, incorporando às cadências gregorianas da sua paleta uma inesperada diversidade de coloridos de rara finura e delicadeza, transpondo no plano musical um conjunto de sutis emoções, de carícias e frêmitos misteriosos, de ecos e ressonâncias inauditos, manobrando com incrível destreza os equívocos tonais, os encadeamentos de acordes assim como as mais imprevistas modulações, e envolvendo esses maravilhosos poemas da inteligência com aquele halo imponderável e com aquele cativante perfume que pairam sobre essa genial produção. Outro grande mérito de Gabriel Fauré foi ter realizado essa obra milagrosa, quase que com o único recurso da escritura pianística, ao invés de Debussy e Ravel que, para captar semelhantes graduações e matizes, tiveram de recorrer à orquestração. Ele não pensava orquestralmente e, confinou-se em instrumentar, sempre com simplicidade e às vezes com o auxilio de um ou outro dos seus discípulos, aquelas obras que pareciam exigir intervenção orquestral, o que se deu, por exemplo, com a célebre Balada, a Fantasia e Dolly, todas essas escritas originalmente para piano, quatro mãos ou dois pianos. 76 Quando Fauré recorreu à voz humana para concretizar seu devaneio, foi também ao piano, e ao voluptuoso envolvimento da linha melódica, que ele pediu para traduzir diretamente o sentido íntimo do poema, deixando quase sempre o pianista ultrapassar a cantora na interpretação do texto. Mais de cem melodias, escritas entre os quinze e setenta e sete anos e abrangendo os mais diversos poemas, de Théophile Gautier e Victor Hugo até Verlaine e Baudelaire, imortalizaram, desse modo, numa infinita variedade de acentos e sensações um gênero estritamente pessoal. Situado a meio caminho do Lied e da romança e ensejando ao seu autor o perfeito congraçamento da encantadora linha melódica com as profundas volúpias de uma sensibilidade harmônica sem igual, o estilo faureano consegue esgotar, com alguns compassos apenas, todo o conteúdo de sonho e de infinito, do poema que o inspira. Voltando a sua esplêndida eclosão pianística que reúne, entre outras obras primas, treze barcarolas, treze noturnos, quatro Valses-Caprices, três Romanças sem Palavras, uma lindíssima Mazurka, o monumental Tema com Variações, os cadernos de Dolly e da Fantasia, dir-vos-ei que toda essa produção encarna, com absoluta espontaneidade, as qualidades de discrição, gosto e requinte do modesto compositor que sempre se recusou em admitir o avassalamento da sua arte a um efeito de estilo ou a qualquer fim que não fosse integralmente musical, limitando-se a expressar, fielmente, o magnífico canto interior da sua genuína inspiração. Se Debussy foi um ambicioso, um conquistador, animado – desde a juventude pelo desejo de fugir da sua aldeia natal e de se elevar, Fauré, pelo contrário, embora ciente do seu próprio talento, ficou sempre compenetrado da relatividade dos esforços humanos e desdenhoso – das honrarias que vieram coroar sua gloriosa carreira, assinalando-se, na sua existência como na sua obra, pela sobriedade, pela modéstia, pela discrição e conseguindo a rara felicidade de realizar o seu sonho, por ter sido aquele sonho imbuído do gênio de um sábio e das tradições ancestrais de uma sólida e modestíssima família francesa. Talvez permaneça verdadeira, por algum tempo ainda, a definição que o próprio Fauré deu, numa carta à sua mulher, depois de compor o Primeiro Quinteto (em 1906) a quem ele escrevia: “Tenho a impressão que minha música ainda não está ao alcance de todos!” No entanto, as múltiplas e vibrantes manifestações que, durante os meses de maio e junho de 1945, assinalaram no Brasil a comemoração do centenário do nascimento do meu ilustre e saudoso mestre, e também a calorosa acolhida proporcionada antes e depois desta data às obras do seu prodigioso repertório, constituem a prova indiscutível de que, neste país, não fica restrita a uma elite a penetrante beleza e o sutil perfume da música de Gabriel Fauré de quem ouviremos hoje, em primeira audição integral no Rio, uma das composições mais características intitulada Dolly. As páginas admiráveis reúnem sob esse título (que quer dizer Bonequinha, em português), seis quadros singelos chamados respectivamente Berceuse Mi-a-ou Le Jardin de Dolly Kitty Valse 77 Tendresse Le pas espagnol Embora escritas para o divertimento de uma criança e, por conseguinte num estilo e num espírito às vezes aparentemente infantil, irradiam na realidade a quintessência da emoção, do humor e do espírito faureano. Não duvido, pois, que este primor da literatura pianística contemporânea, de carretar tão delicado e penetrante, impressione igualmente os meus ouvintes “adultos” que talvez já conheçam a transcrição para duas mãos do primeiro quadro “Berceuse”, que tive ensejo de tocar no Rio em diversos recitais. Tenho, pois, imenso prazer em oferecer-vos e interpretar hoje essa obra, no seu conjunto, sendo que, escrita por Fauré para quatro mãos, Dolly ser-vos-á apresentada com a colaboração de mais duas mãos – e da fina musicalidade da pianista Laís Prado Vasconcellos. Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1951 78 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941 Ciclo de Palestras sobre a História da Música Terceira Série A ESCOLA MODERNA FRANCESA CLAUDE ACHILLE DEBUSSY Na época da morte de Wagner, em 1883, o mundo musical parecia ter acabado sua grande revolução lírica e realizado suas maiores ambições artísticas. Na França, as sociedades de Concertos Pasdeloup, Lamoureux e Colonne difundiam por meio das suas famosas orquestras a grande obra de Wagner, apresentando, no início, fragmentos sinfônicos, e, mais tarde, cenas e atos inteiros extraídos dos seus dramas, criando desse modo um público não somente apaixonado de música, mas também capaz de compreender um gênero de obras que teriam ficado inacessíveis à geração precedente ou que a teriam simplesmente deixado indiferente. Simultaneamente, com essa ação tão benéfica, uma verdadeira renascença se produzira por aquele punhado de artistas que fundou a Société Nationale de Musique, entre os quais César Franck e Saint-Säens, e que empreenderam a nobre tarefa de restituir à música francesa sua dignidade e seu prestígio, e de revelar ao grande público que a música de câmara e a sinfonia eram, também, formas superiores da arte sonora. O momento era, pois, psicologicamente oportuno para o aparecimento no meio do mundo musical, de alguém bastante genial para lhe trazer exatamente o que esse mundo esperava naquela hora, e para suscitar essa prodigiosa vibração que Goethe chamava: “o melhor do homem”! Aliás, o caminho já fora aberto por Gabriel Fauré cuja obra tive a oportunidade de esboçar na minha última preleção, e que foi um dos primeiros, com a introdução dessas harmonias que lhe são tão próprias e com a sua remodelação da técnica sonora, em descobrir esses horizontes que seus discípulos e seus sucessores souberam tão maravilhosamente explorar. O homem que teve a felicidade de surgir, na França, na época em que o seu gênio podia melhor se desenvolver e ter a maior repercussão, o compositor que devia revolucionar a música do mundo inteiro, e libertá-lo de tantas áridas tradições, o músico, enfim, cuja glória iguala a de Wagner, foi Claude Achille Debussy! Nascido em 1862 – 17 anos depois de Fauré, – em Saint-Germain-en-Laye perto de Paris, Debussy, ao contrário de quase todos os compositores que estudamos nestas aulas, teve a sua infância e seu primeiro ambiente totalmente desprovidos de música. Seu pai, modesto comerciante de louça, se preocupou 79 muito pouco com sua educação e deixava o menino vadiar, passear, dançar com seus pequenos camaradas e colecionar borboletas, em lugar de forçá-lo a freqüentar a escola primária com regularidade. Aos nove anos, sua madrinha, que morava no sul da França e que gostava muito dele, convidou-o a passar as férias na sua residência em Cannes, onde ele começou a estudar piano com um italiano chamado Gerutti, o qual nada percebeu de notável nas atitudes pianísticas do seu aluno. Ao voltar à sua casa, porém, o pequeno Claude desdenhando suas distrações habituais e a companhia dos seus amigos se divertia em tirar acordes do mau piano do qual podia dispor, e procurava reproduzir nesse instrumento as peças que a banda militar costumava tocar perto da sua casa. Uma senhora amiga da família, e antiga aluna de Chopin, Mme. Mauté, percebeu imediatamente os dons do garoto e decidiu tomar conta dele depois de ter convencido o pai Debussy que seu filho, ignorante de tantas coisas, e sem cultura nenhuma, achara no piano o elemento que lhe era o mais natural, e devia se dedicar à carreira musical. Foi o precioso ensino de Mme. Mauté, professora inteligente e desinteressada, e sua admirável devoção a essa criança, que parecia predestinada a um papel tão preponderante, que encaminharam Debussy para seu glorioso destino. Em 1873, isto é, apenas dois anos mais tarde, Debussy era admitido no Conservatório de Paris. Gabriel Pierné, que pertencia à mesma turma, o descrevia do modo seguinte: “Esse rapaz esquisito os surpreendia com sua execução, que era ainda mais singular do que a sua pessoa. Não sei se era por falta de jeito ou por timidez, mas ele se arremessava literalmente sobre o teclado, forçando todos os efeitos! Ele parecia tomado de uma espécie de raiva contra o instrumento, arrebentando-o com gestos violentos e impulsivos, e soprando barulhentamente ao executar os trechos. Às vezes defeitos iam se atenuando, e ele obtinha então efeitos sonoros de uma admirável suavidade e de uma inesperada doçura. Com esses defeitos e essas qualidades, sua maneira de tocar sempre deixava uma impressão estranha e muito particular”. Esses detalhes são verdadeiramente significativos, já que nesse espírito de combatividade, nessa rebelião contra a ditadura da tradição, Debussy, aos 12 anos, revelava repentinamente, essa rara personalidade e esse espírito revolucionário, sem os quais toda a música moderna teria, talvez, seguido um rumo diferente. No Conservatório, Lavignac, seu professor de solfejo, se entusiasmou pela extraordinária sensibilidade desse aluno que lhe fazia esquecer as horas, com suas observações sobre a partitura de Tannhäuser ou outras obras dramáticas. Na classe de piano, Debussy manifestava, sem dissimulação nenhuma, sua aversão em se conformar com a ginástica severa que Marmontel, professor exigente e autoritário, procurava impor aos seus alunos, e sua preferência para a leitura, nas horas de trabalho, das obras-primas da época clássica e do romantismo. Marmontel, muito aborrecido com esse discípulo fantasista, que improvisava “prelúdios” de um aspecto tão barroco e de tonalidades tão 80 longínquas, dizia dele, no primeiro ano dos seus estudos: “Ele não parece gostar muito do piano, mas ele gosta muito de música”. Esse julgamento estava, aliás, completamente errado, no que tange à primeira parte, pois, Claude, bem pelo contrário, gostava intensamente do instrumento do qual ele veio a ser um dos magos mais perturbadores. Todavia, ele trazia, no aproveitamento dos recursos pianísticos, uma personalidade demasiadamente audaciosa para não chocar um professor tão conservador. Seus companheiros não adivinharam os dons geniais desse rapaz “tímido, desajeitado, brusco e um pouco selvagem”. O próprio diretor do Conservatório, Ambrosio Thomas, não gostava dele, nem das suas interpretações, ao seu ver, demasiadamente expressivas, do Cravo Bem-Temperado de Bach, considerado naquela época como “um caderno de exercícios secos e polifônicos”. Isso nos explica, pelo menos até um certo ponto, que Debussy não tenha conseguido tirar, ao se apresentar ao concurso no primeiro ano, senão um segundo accessit. Ambicionando, como todos os alunos, o primeiro prêmio, ele se apresentou novamente, no ano seguinte, tirando apenas um primeiro accessit. No terceiro ano, o júri decidiu que sua execução da Sonata 111 de Beethoven não merecia recompensa nenhuma. Debussy, mais teimoso do que nunca, se apresentou no ano seguinte, pela quarta vez, com a Sonata em Sol Menor de Schumann; ele conseguiu apenas tirar um segundo prêmio e chegou à amarga conclusão que não podia, com o que todos chamavam “seus defeitos”, aspirar à mais alta recompensa. Sem desanimar, continuou seus estudos musicais na classe de acompanhamento de Bazille, tirando um primeiro prêmio, em 1880, apesar das suas proezas na realização das modulações e das harmonias! Foi nessa época, cheia de wagnerismo e do culto de Bayreuth – ao qual Debussy não escapou, apesar da originalidade da sua linguagem musical nascente – ele foi recomendado a uma grande dama russa, que o contratou como pianista, levando-o até Moscou, onde se familiarizou com a música de Borodine e dos novos compositores desse país, e em seguida a Viena, onde ele assistiu à representação de Tristan et Isolde dirigido por Hans Richter, e a Veneza, onde teve a felicidade de falar pessoalmente com o ídolo da Europa inteira, com o deus da música, chegando naquele momento, ao cume da sua glória: Richard Wagner. Naquele dia, Debussy não pôde prever que ele mesmo empreenderia, mais tarde, uma cruzada de libertação contra a arte do próprio gênio de Bayreuth, pelo qual ele teve, no entanto, durante anos, a mais entusiasta paixão. Depois de seis anos de estudos, de composição e harmonia, Debussy, em 1885, tomou parte no concurso para o Grand Prix de Rome apresentando uma cantata L’Enfant Prodigue, na qual pode-se constatar ainda a nítida influência do maneirismo amável de Massenet. Essa composição ganhou o Grande Prêmio tão cobiçado, porém ao receber essa notícia Debussy logo teve a sensação que sua estada em Roma, apesar das múltiplas possibilidades que lhe ofereceria, seria dificilmente compatível com seu desejo de liberdade e suas aspirações à mais completa independência. Com efeito, a Villa Medicis, em Roma, não o seduziu e antes mesmo de completar os seus três anos de permanência nessa capital, no entanto tão 81 cheia de beleza e de encanto, ele voltava a Paris, único lugar onde podia realmente trabalhar a seu gosto, e seguir o curso natural da sua inspiração. Nessa capital, a influência dos escritores e dos poetas se revelou muito mais forte sobre Debussy que a dos músicos, dos quais – com a exceção de Paul Dukas, Vincent d’Indy, Chausson, Pierné e Emmanuel – ele não gostava. Efetivamente, sua maior alegria em palestrar com os numerosos amigos que tinha no mundo literário, e particularmente com Pierre Louys, o qual, com a mais encantadora cordialidade, se encarregara de aperfeiçoar a educação artística incompleta do jovem compositor, e lhe proporcionou sob todas as formas, em todos os momentos e até seu glorioso apogeu, o mais precioso e indefectível amparo! Falando mais tarde desses amigos tão dedicados, com os quais ele devia sempre manter a mais íntima colaboração, Debussy dizia: “Verlaine, Mallarmé, Laforgue me traziam novas sonoridades. Projetando sobre suas palavras uma luz nunca vista até então, e empregando meios desconhecidos dos poetas das gerações precedentes, elas conseguiam dar à matéria verbal os mais inesperados efeitos de sutileza e de força. Concebendo os versos e a prosa como se fossem músicos, e rodeando esses versos e essa prosa de um verdadeiro carinho de músicos, eles combinavam, do mesmo modo que os músicos o teriam feito, as imagens e sua correspondência sonora”. Impressionismo, simbolismo, realismo poético se confundiam nessas reuniões, num grande entusiasmo de curiosidade e de paixão intelectual. Todos, pintores, poetas, escultores, decompunham a matéria, interrogavam-na, deformando e reformando-a à sua fantasia e aplicando-se a tirar das palavras, dos sons, das cores, do desenho, das nuvens, sentimentos novos e espontâneos. Foi nessa atmosfera – favorável como a de uma estufa à eclosão de uma flor delicada –, nesse ambiente sincero e original, que o talento e o gênio de Debussy se desabrocharam. Decidido a dar uma forma definida ao gosto instintivo, às idéias pessoais e à nova linguagem, dos quais ele já possuía todos os elementos, e também com o fim de dissipar sua dúvidas e suas inquietações, Debussy fez uma primeira romaria a Bayreuth. Ao ouvir Tristan, Os Mestres Cantores, Parsifal, ele ficou profundamente impressionado e comovido, e seu entusiasmo pelo wagnerismo atingiu seu apogeu. Porém, de volta a Paris, ele logo percebeu que uma tal emoção podia vir a ser destruidora da sua própria personalidade, e que Wagner, com seu gênio, tornara inacessível esse domínio no qual ele, Debussy, tinha a intenção de penetrar. Sua segunda viagem a Bayreuth o deixou mais insensível, e a fim de escapar definitivamente a uma influência que às vezes o enfeitiçava por completo, e de poder com inteira liberdade forjar suas armas para a vitória final, ele decidiu esquecer Wagner, ignorá-lo e destruí-lo em si mesmo. Imbuído novamente da música russa, das sonoridades brilhantes e exóticas de Moussorgsky, ele voltou à França, onde encontrou finalmente seus verdadeiros aliados contra o lirismo romântico, na poesia, no simbolismo, nesse mundo de símbolos e de encantos, onde “les parfums, les couleurs et les sons se répondent”. 82 Foi um poema de Mallarmé que inspirou esse magnifico e sutil poema sinfônico Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, obra que nos revela um Debussy inteiramente libertado das influências passadas, e uma linguagem musical inédita, que tantos músicos deviam mais tarde procurar imitar. O Quarteto para Cordas, escrito no mesmo ano, é de uma originalidade similar, desde as primeiras notas, e se a crítica daquela época não quis admitir sem algumas reservas, essa arte um pouco desconcertante, o fato é que o Prélude foi triunfalmente bisado no dia da sua estréia e posto, desde então, bem em evidência no repertório sinfônico. Debussy encontrara, finalmente, o “clima” e o modo de expressão da sua arte. Desejoso de confirmar sua conquista, e entusiasmado pela misteriosa tragédia de Maeterlinck, Pelleas et Melisande, ele decidiu escrever um drama lírico, de uma fórmula nova, na qual segundo ele mesmo dizia, “a música começa no ponto em que a palavra é incapaz de expressar, já que a música é feita para o inexprimível” e, também, mais adiante, “os personagens desse meu drama, procuram cantar como pessoas naturais e não numa língua arbitrária, feita de tradições antiquadas”. Essa obra, à qual Debussy dedicou dez anos de intenso trabalho, encontrando a hostilidade de um público refratário a tantas inovações, fracassou por completo, na sua estréia, no palco da Opéra-Comique de Paris em 1902. Porém, a tenacidade do compositor assim como a compreensão de um núcleo de amigos e admiradores conseguiu impor Pelleas et Melisande dois anos mais tarde, e não somente alcançar o triunfo que essa obra-prima do simbolismo devia perpetuar desde então, mas também, e sobretudo, consagrar Debussy como o criador de uma verdadeira religião musical. Entre as maravilhosas contribuições de Debussy à música sinfônica, devo também assinalar Les Nocturnes, longínquo deslumbramento de uma Festa imaginária; La Mer, prodigioso tríptico que evoca, com o mais perfeito e alucinador realismo, todos os aspectos das ondas. Images, poema sinfônico em três partes: “Gigue”, “Ibéria”, e “Rondes de Printemps”, no qual a virtuosidade músico-pictural consegue, com um poder infinito de sugestão plástica, nos revelar um colorido orquestral de uma rara sedução. Enfim, Le Martyre de Saint Sébastien, cuja música foi escrita em 1911, sobre um poema de Gabriele d’Annunzio, que a crítica considerou como o Parsifal de Debussy. No que diz respeito à música de piano, Debussy soube captar sua verdadeira beleza antes de procurar inová-la. É por isso que, para bem interpretá-la, devese procurar penetrar seu segredo, ler essa música com inteligência, e descobrir as suas claridades sonoras com a arte de um pintor. Tocando ao piano as obras de Debussy, o intérprete deve fazer abstração da velocidade pianística “habitual” e procurar reproduzir esse conjunto de claridades, essa fluidez, essa transparência, esse som suspirado, essa doçura, e, também, passar sem transição aos acentos da mais veemente energia, do mais sombrio vigor, diversidade tão característica do seu estilo. É essa prestigiosa palheta, e a essa estupenda imaginação que devemos entre tantas outras obras: as duas Arabesques, a Suite Bergamasque – o “Prélude”, “Sarabanda” e “Toccata”, Estampes que reúne três peças muito conhecidas: “Pagodes”, “Soirée de Grenade”, “Jardins sous la Pluie”; as duas séries de Images, das quais “Poissons d’Or” e “Reflets dans l’Eau” são os mais tocados. Falar-vos-ei numa próxima aula da visão exótica e deslumbrante revelada por essa maravilhosa obra-prima: L’Isle Joyeuse, que analisarei também ao ponto de vista interpretativo. Conheceis todos os dois volumes de Préludes, que reúnem em 83 vinte e quatro obras, a quintessência da volúpia sonora, e descrevem com recursos originais de uma incomparável variedade, a grandeza e o mistério da natureza, o espírito e a fantasia, os perfumes evocadores, as paisagens e as impressões imponderáveis de um mundo imaterial, rodeado por esse encanto indefinível que a música sabe exalar quando baseada sobre o sentimento poético. Enfim, Children’s Corner que nos divulga as influências inglesas das quais Debussy soube tirar um tal proveito e os Doze Estudos, nos quais o compositor desenvolveu com tanta mestria todos os recursos da técnica pianística. Encontramos a mesma irradiação da arte mais sutil na sua música de câmara, e particularmente no Quarteto para Cordas, na Flûte de Pan e nas suas três sonatas, a primeira para violoncelo e piano, a segunda para flauta, harpa e alto, e a terceira para piano e violino, que foi uma das suas últimas composições. Das suas obras vocais, inspiradas pelos poemas mais raros, a esse compositor requintado que os soube cantar novamente com tanto amor, citarei somente: Proses Lyriques, Ariettes Oubliées, Chansons de Bilitis, essas últimas sobre poesias de Pierre Louys, Trois Ballades de François Villon, e esse admirável conjunto de melodias inesquecíveis que mereciam ser enumeradas uma por uma. No dia 17 de março de 1918, Debussy assinou sua carta de candidatura à Academia. Nove dias mais tarde, no momento em que a Alemanha lançava sua ofensiva contra Paris, ele sucumbia, aos 56 anos, a uma grave moléstia, destruindo, no momento de morrer, uma Cantata e duas outras obras que ele não conseguira acabar. Numa carta que ele escrevia a Pierre Loys em 1895, isto é, no início apenas da sua prodigiosa carreira, encontramos a seguinte e tão comovente profecia: “Eu estou trabalhando em certas coisas que serão somente compreendidas pelos netos do vigésimo século! Somente essas futuras gerações poderão constatar que os antigos ídolos da música eram em realidade, tristes esqueletos, cobertos por um véu que não deixava perceber a verdadeira expressão musical”. Felizmente, Debussy não teve que esperar tanto para que o mundo lhe fizesse justiça, e aclamasse o homem que transformou a própria noção da música, para abrir um horizonte talvez ilimitado ao material inteiro da expressão musical. Não é exagero afirmar que sua influência é e será ainda mais geral, mais profunda e mais fecunda do que a do wagnerismo. O fato é que não existe hoje em dia um só jovem compositor de valor, na Europa, que escreva como se Debussy nunca tivesse existido! Rio de Janeiro, agosto de 1941 84 CURSO DE APERFEIÇOAMENTO E INTERPRETAÇÃO DE 1940 – 5º AULA Senhoras, Senhores, As minhas quatro primeiras aulas desse Curso de Aperfeiçoamento e Interpretação foram dedicadas aos quatro compositores entre os mais representativos das escolas clássica e romântica: de um lado, Mozart e Beethoven; por outro, Schumann e Chopin. Já que essas “conferências” são confinadas à primeira parte desse Curso – as cinco aulas que compõem a segunda parte devendo ser exclusivamente reservadas às execuções –, resta-me somente esta aula para tratar da música moderna. O único compositor moderno marcado no programa das execuções de hoje é Debussy. Todavia, julgo mais aproveitável, apesar do pouco tempo do qual disponho, em vez de limitar os meus comentários a esse ilustre mestre, fazervos um pequeno bosquejo de alguns dos traços característicos da música qualificada de “moderna”. Para muitos, o termo moderno, no domínio que nos interessa, é sinônimo de música dissonante, extravagante, povoada de cacofonias, ou bem implica que ela deve trazer-nos um conjunto de elementos novos, ou de sensações desconhecidas senão heteróclitas. Ora, em realidade, a apelação “música moderna” não significa nada mais que o fato de pertencer à nossa época ou ao nosso século. Seria, por conseguinte, mais correto denominá-la: música “contemporânea”, o que pouparia a certas pessoas muitas desilusões na perseguição do estranho e do inédito! Efetivamente, não há uma música moderna, mas várias músicas modernas. Tanto em música, como em pintura ou qualquer outra arte, não existe só uma escola moderna. Há um mundo entre, por exemplo, a concepção musical de um Reynaldo Hahn, inspirado na forma pelo clássico-romantismo, ou de um Richard Strauss, inteiramente wagneriano, e a concepção de um Hindemith, geométrico percuciente, ou de um Darius Milhaud de quem conheceis o constante intento de sonoridades inéditas e inesperadas. Os “títulos” descritivos tão empregados na música contemporânea já eram freqüentemente usados no século XVIII. Couperin os prezava muitíssimo, e deixou-nos, notadamente, peças intituladas: As Barricadas Misteriosas, O Murão, A Voluptuosa, O Despertador, Os Velhos Galãs etc., todos estes títulos eminentemente sugestivos. 85 Grande número de compositores, depois de Couperin, se absteve, quase por completo, de empregar este meio de aclarar-nos sobre as significações das suas inspirações. Certos “românticos” puseram de novo em prática o título evocador; particularmente, Schumann com: Papillons, Carnaval, Scènes de Bal, Tableaux d’Orient, Humoresque, Scènes d’Enfant etc. O próprio clássico Beethoven, que já era um grande romântico – que se queira ou não – denominou igualmente certas das suas obras, como a maior parte das que ouvimos anteontem, assim como: a Pastoral, a Primavera, o Momento Glorioso, a Heróica, e tantas outras. Chopin, ele, afastou-se desse processo quase completamente. E sabemos, no entanto, quanto a sua música presta-se a todas as divagações do coração e do espírito! O “impressionismo” incitara os seus adeptos a usar novamente os títulos indicativos. Liszt, que foi o precursor deste modo particular de expressão musical, lançou-se deliberadamente nas denominações descritivas, e lhe devemos numerosas composições, reveladoras neste sentido. Acontece, com freqüência, um autor dar a uma das obras um título ao qual ele não presta a sua real significação. É por isso que, salvo no caso de uma indicação bem determinada do autor, eu considero que as evocações sugeridas pelos títulos são o direito exclusivo do intérprete. Gabriel Fauré, que não era particularmente um descritivo, e cujo gênio faz mais apelo às emoções interiores, consentiu raramente livrar, pelos seus títulos, o verdadeiro sentido das suas inspirações. Seria talvez unicamente por pudor? Afinal não o creio! Tive o grande privilégio de conhecê-lo muito, e, antes, atribuo esse fato ao respeito que Fauré professava para com a liberdade da concepção alheia. (Confesso-vos que Fauré era um homem encantador. Durante uma tournée que fizemos juntos, na França, tocando a sua famosa Balada para dois Pianos, nada o divertia mais que ver-me descascar as laranjas à moda da nossa terra, deixando somente o centro da fruta no garfo). Quantas imagens, pelo contrário, nos sugerem os títulos da música de Ravel: Pavanne pour une Infante Défunte, Alborada del Grazioso, Les Miroirs, e quase todos os outros ! Falando de Ravel – de quem, infelizmente, não teremos a fortuna de ouvir, hoje, nenhuma obra, assim como eu o teria desejado, – sempre lutei contra certos amadores, críticos e músicos que só querem ver neste compositor um relojoeiro astucioso, sábio e inventivo, que soube tirar partido de muitas coisas, porém não conhece os arremessos do coração. Na verdade, Ravel ressente perfeitamente os impulsos da sensibilidade, todavia ele os exprime com certo pudor na efusão! Além disso, a sua natureza o leva a um estilo muito apurado, que incita facilmente o público ao equívoco! Debussy, ele, fez inteiramente sua a fórmula do título sugestivo, e isso com real maestria. Na sua produção para piano, os dois livros de Prelúdios, com doze 86 prelúdios em cada um, são um flagrante significativo do título evocador! Poderia citá-los todos: Brouillards, Feuilles Mortes, Les Fées sont d’Exquises Danseuses, Ondine, Feux d’Artifices, La Fille aux Cheveux de Lin, Les Collines d’Anacapri etc. etc. Cada um deles é uma pedra preciosa da grande obra-prima que estes dois livros representam. Não garanto, todavia, que o título seja meio infalível de facilitar a compreensão dos textos em geral. Em todos os casos, para certa música futurista, somos bem felizes, de ter um título sobre o qual apoiar-nos, pois que, sem ele, não poderíamos nem mesmo adivinhar a significação de notas tão abracadabrantes quanto multiplicadas. Acrescento, aliás, que nesse caso é freqüente, apesar do título, que não estejamos mais adiantados! Com Debussy, não há que temer semelhante inconveniente. É indiscutível que os seus títulos contribuem amplamente a fertilizar a nossa imaginação, e podem até fazer-nos, às vezes, ultrapassar as suas intenções. “Eu não me esperava a tanto!”, poderia ele ter dito em certos casos. Felizmente, essa escolha é geralmente evitada, pois é mais habitual ver-se trair um autor por falta de compreensão que por excesso! Ao meu ver, nada é pior, no que diz respeito à interpretação, que a indiferença. Mais vale ainda enganar-se, porém agir, o elemento vida, sobretudo na música moderna, sendo absolutamente primordial. Ainda mais que, se os clássicos se limitavam com preferência à exaltação do espírito, os românticos, sobretudo às devassidões do coração, os modernos, eles, acharam em numerosos assuntos novos, múltiplos motivos de exteriorização musical. E isto, com meios técnicos que entram por muito em conta na possibilidade de sugestão total. A água, sob seus diferentes aspectos, terá desempenhado um grande papel, desde o início da música impressionista, e é esse um elemento que a nova escritura musical soube evocar prodigiosamente. Entre as ilustrações as mais conhecidas desse maravilhoso elemento da natureza, citar-vos-ei: Liszt, com À Beira de uma Fonte, São Francisco de Paula caminhando sobre as Ondas, Les Jeux d’Eau de la Villa d’Este; Ravel, com Jeux d’Eau; Debussy, com Les Jardins sous la Pluie, e tantos outros. Não há dúvida que Debussy tenha sido, na sua época, um libertador, e compreende-se facilmente que a fluidez iriada da sua escritura, a essência das suas sonoridades emanavam de um gênio, de antemão pouco disposto a um amor imoderado dos acentos massivos beethovenianos. É assim que, ao ensaio geral do seu bailado Jogos, e antes da execução, Debussy virando-se para os músicos da orquestra, lhes dizia: “Sobretudo uma recomendação: não toquem a minha música como a do velho surdo!”. É inútil dizer-vos o espanto dos músicos diante do que eles consideravam como uma profanação. Debussy, como o sabeis, abarcou todos os domínios da música. Teria tanto desejado falar-vos da obra mais importante que ele nos deixou: Pelleas et Melisande, essa admirável ópera, inspirada do drama de Maeterlinck, que foi 87 estreada em Paris em 1902. Com essa obra, Debussy trouxe ao teatro lírico uma nova orientação, um estilo novo, tanto na melodia vocal como no comentário orquestral que cresce e decresce com tanta poesia, segundo a intensidade da ação cênica, envolvendo as vozes num ambiente sonoro, culminante no quarto ato, com os recursos de uma estética discreta e refinada que representa o maior contraste com a concepção wagneriana. Que dizer da sua música para orquestra que não levasse a palestrar infinitamente! A sua música de câmara é dominada pela Sonata para Piano e Violino, verdadeiro primor de fantasia!, e também pelo Quarteto para Cordas que indiscutivelmente é, no seu gênero, a produção a mais feliz da música de hoje. A respeito de quarteto, vem-me ao espírito uma anedota sucedida ao Quarteto Capet do qual já vos falei no outro dia. (Anedota) Debussy – humorista quanto poeta, penetrou com rara felicidade a maior parte dos segredos da natureza da qual ele tinha uma compreensão admirável. Todos os ruídos ou sussurros que ela espalha, Debussy os transformava em harmonias. De fato, a qualidade que, em música mais o comovia, ele a definiu como segue: “Uma transposição sentimental do que é invisível, na natureza”. É muito disso que é feita toda a sua música, tantas vezes e extraordinariamente comentada, porém, sem embargo, nunca se conseguirá determinar de todo, porque não se define o indefinível! Entre os vários prelúdios que ouviremos hoje, escolho dizer-vos só algumas palavras sobre A Cathédrale Engloutie, que é uma das ilustrações as mais manifestas da diversidade de inspiração que Debussy possuía e da sua prodigiosa faculdade de assimilar-se integralmente ao assunto tratado. Não é assim tão simples descrever verbalmente essa Catedral, com o seu aspecto grave e grandiosamente sombrio na qual o jogo de sonoridades dos sinos, longínquos ou próximos, estabelece uma atmosfera fervorosa. Eu a suponho surgindo das vagas, na névoa de um país nórdico. A neblina se dissipa, a Catedral resplandece em toda a sua soberana majestade. Logo, alguns compassos nos dão a sensação confusa do perigo que mina essa massa possante – mais alguns compassos, tão dolorosos, e os sinos fúnebres, desta vez, nos fazem sentirmos o soberbo símbolo da fé, ferido em pleno coração. Por fim, o redemoinho no qual a Catedral soçobra e se absorve, pacífica, a despeito de tudo! Palavras estas minhas bem fracas diante de uma obra tão magnificente! Os outros prelúdios e as outras peças que serão tocadas agora vos trarão mais uma confirmação de que Debussy permanece, sem dúvida, o compositor que 88 mais libertou a música das fórmulas já totalmente exploradas e o inovador incontestável dos sentimentos e das exteriorizações musicais deste século. Apesar de que muitos dentre vós acham, provavelmente, que durante estas minhas aulas eu monopolizei o piano ao ponto de não permitir quase aos participantes desse curso de tocarem, e atendendo ao pedido que me foi feito, vos tocarei, como despedida até a semana próxima, uma das peças de Debussy que escolhi para vós entre as eleitas do meu coração: L’Isle Joyeuse. São Paulo, 23 de outubro de 1940 89 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941 Ciclo de Palestras sobre a História da Música Terceira Série A ESCOLA MODERNA FRANCESA A OBRA DE MAURICE RAVEL Nascido em 1875 em Ciboure, pequena cidade do Sul da França, vizinha da fronteira espanhola, Maurice Ravel não revelou na sua infância os dotes precoces que foram o apanágio de tantos ilustres compositores. Todavia, se não contam a seu respeito anedotas fabulosas, parecidas com a do bebê mitológico que aos dois meses estrangulou duas gigantescas cobras no seu berço, e se ele não foi tampouco o mais brilhante aluno da sua classe no Conservatório, ele soube, desde suas primeiras obras, afirmar sua ousada e lúcida personalidade, e trazer desde então, à música francesa moderna, com uma presciência infalível, e numa constante ascensão, uma das mais originais e notáveis contribuições. Suas primeiras composições: Sérenade Grotesque, Les Sites Auriculaires, e Habanera foram escritas em 1896, isto é, aos 20 anos, logo depois de ter completado, no Conservatório de Paris, seus estudos de piano, contraponto e harmonia, porém dois anos antes de ser admitido na classe de composição de Gabriel Fauré. Já se pode constatar nessas obras, e particularmente em Habanera, cujo tema deveria ser aproveitado mais tarde, pelo próprio autor, na sua Rapsodie Espagnole, as qualidades de claridade, de inteligência e de ingênua ternura velada pela ironia, que encontraremos nas composições escritas em plena maturidade. Seu estudo com Fauré e a maravilhosa irradiação desse mestre encantador desenvolveram em Ravel a distinção, a eloquência do “pianíssimo”, o poder da evocação, em surdina, e o cunho desse ensino se percebe nitidamente – ao mesmo tempo que a influência de Emanuel Chabrier – na sua primeira obraprima, Pavane pour une Infante Défunte. Originalmente escrita para piano, a versão sinfônica regida pouco depois por Ravel, revelou com eloqüente mestria, o suave encanto, e as sonoridades longínquas da frase melódica, repetida cada vez com um acompanhamento diferente, e alcançou e continuou alcançando um grande êxito no repertório orquestral. Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a uma atmosfera libertada de influências alheias, e magistralmente evocada, tanto pela escritura duma original fantasia, quanto pela sutil e sensível poesia do desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta beleza sobre os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que envolvem tantas sonoridades originais para reproduzir a brilhante vivacidade das águas que surgem e das gotas que caem, enfim a frescura da poesia, milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse 90 deslumbrante “Capricho” seja hoje em dia a obra pianística mais popular de Ravel e a que melhor satisfaz a maioria dos virtuoses. Tendo descoberto novamente, e engenhosamente desenvolvido o segredo dessa técnica cintilante e desse impressionismo de reflexos e de sonoridades, Ravel, depois de ter escrito um drama lírico Scheherazade, e seu Quarteto para Cordas tão cheio de graça, de mistério e de ironia, inicia, então, o período incomparável e feliz durante o qual, de 1905 até 1918, ele devia enriquecer a literatura pianística com tantas maravilhosas obras-primas. Conheceis, todos, a Sonatine, sua construção perfeita e sua poética intimidade, e Miroirs, suíte de cinco imagens descritivas, nas quais Ravel, num constante espírito de invenção e de descoberta, manifesta seu notável poder imaginativo. Entre essas cinco pinturas do mais poético impressionismo, a mais conhecida é a “Alborada del Gracioso”, que reúne, sob a cadência nervosa de um ritmo espanhol, cenas de danças e de canto, perfeitamente estilizadas, e que foi orquestrada mais tarde, com a máxima fidelidade. Foi também a Espanha que inspirou a primeira obra escrita por Ravel diretamente para Orquestra: Rapsodie Espagnole, na qual, segundo um dos seus biógrafos, o compositor, “sorridente geômetra do mistério, soube dosar, sobre as balanças mais certas e mais sensíveis, os imponderáveis da substância sonora”, assim como L’Heure Espagnole, poema sinfônico alucinante de espírito e da mais infinita variedade. Essa linguagem profundamente pessoal, essa deslumbrante mestria, se assinalam talvez mais ainda, nas “Fantaisies” de Gaspard de la Nuit, na esplêndida realização pianística das miragens sedutoras do mar, dos sinos diabólicos e fúnebres, e das sonoridades pitorescas, que caracterizam respectivamente cada um dos três poemas, reunidos nessa engenhosa composição. A suíte de Ma Mère l’Oye, encantadora coleção, escrita para dois pianos, de anedotas infantis, transportadas numa língua moderna, atrás das quais o sorriso enigmático do compositor se percebe a cada instante; as oito Valsas Nobres e Sentimentais, que evocam com tanta poesia as peripécias de uma linda história de amor, no meio duma festa elegante, o sublime “Trio” tão exuberante e sugestivo nas suas cores; enfim, esse admirável bailado Daphnis et Chloé, baseado sobre a legendária história do rapto de Chloé, e que contém algumas das mais belas páginas sinfônicas, escritas até hoje, são as mais célebres entre as obras de Ravel, nessa segunda época que vai até a guerra de 1914-1918, na qual o compositor tomou parte ativa. Depois da guerra, e até a sua morte, em 1937, constatamos na obra de Ravel uma reação, que se manifesta por mais simplicidade, por uma disciplina mais austera, e um controle às vezes heróico do seu gosto natural da sonoridade vibrante e instrumental. A produção pianística dessa última época se reduz, além de dois Concerti, em sol e em ré, dos quais o segundo escrito somente para a mão esquerda, a uma obra-prima, dedicada inicialmente a um dos maiores cravistas franceses, e à qual a guerra devia dar um caráter mais patriótico: Le Tombeau de Couperin. A última parte dessa suíte, a célebre Toccata, encerra numa irradiação gloriosa, esse hino à memória dos que morreram para a pátria, no qual o compositor revela as qualidades mais significativas do seu gênio. 91 Ravel era já ilustre. Porém, ele alcançou verdadeiramente a popularidade com o Boléro. De um dia para o outro, ele se tornou o favorito do grande público, com essa única frase, dó, si, dó, ré, dó, si, lá, dó, dó, lá, dó, que as crianças assobiavam nas ruas de Montmartre e nos arredores de Paris, e que o rádio e o gramofone difundiram com uma fulgurante rapidez, só atingida até então, pela glória das estrelas do cinema. Essa obra sinfônica, de uma mestria tão desconcertante, estreada em 1928 por Ida Rubinstein, no Teatro da Ópera de Paris, foi aliás tanto criticada quando idolatrada por esse ritmo obsedante da dança espanhola, realizado sem o auxílio de castanholas, nem dos outros instrumentos, geralmente empregados nesse gênero de evocação, que vai crescendo até a violência, sem qualquer modificação rítmica, e que acaba numa rasgão realmente alucinante. A Valsa, outra obra sinfônica, escrita também naquela época, se assinala por uma concepção nitidamente diferente das suas Valsas de 1910, e deixa adivinhar a catástrofe que transtornou o mundo para criar uma Europa nova. Enfim, a Sonata para Piano e Violino, o Duo para Violino e Violoncelo, L’Enfant et les Sortilèges, assim como numerosas outras obras vocais, entre as quais seu “canto” supremo, Don Quichotte à Dulcinée, escrito em 1934, três anos antes da sua morte, terminam a enumeração, muito rápida, e forçosamente incompleta, das composições mais distintivas desse grande músico. Durante a primeira parte da sua carreira, os críticos e o mundo musical procuraram ver na obra pianística de Ravel uma espécie de continuação da arte de Debussy. Porém, a personalidade de Ravel e a originalidade do seu gênio logo se assentaram, tornando mais saliente com cada nova obra, as diferenças e até as divergências entre as duas concepções. Não procurarei definir os aspectos nitidamente característicos da música de Ravel, no que tange às suas realizações pianistas, às suas tendências a um virtuosismo engenhoso, à escolha dos temas, à mobilidade, à fantasia, à construção orquestral da sua música de piano, a todo esse conjunto de fatores e de qualidades que lhe permitiram afirmar as conquistas de Debussy, colocá-las sobre o plano da inteligência, em vez de exteriorizá-las somente num mundo sensível, e desenvolver com seu instinto lógico, e imbuído de classicismo, as maravilhosas inovações da arte impressionista. Dir-vos-ei somente, encerrando esse meu esboço da sua obra, que o gênio lúcido e requintado de Ravel, a perfeição da sua escritura, sua intensa e misteriosa poesia e sua engenhosa fórmula pianística constituem os mais irresistíveis títulos da sua glória, e explicam sua profunda influência sobre os músicos da sua época, mesmo fora da França e da Europa. Ele soube enriquecer a música moderna, conseguindo expressar alguma coisa que ninguém definira antes dele, e dizer com a sua música, o que tantos outros dizem, menos bem, com palavras. A única coisa que faltou a Ravel, para igualar a Debussy, diante da história e do mundo, foi, talvez, não ter sido o primeiro! _______________ 92 Diante do número de executantes a serem ouvidos nestas duas últimas aulas, do Curso deste ano, tenho que encurtar a preleção de hoje, e também a da aula de sexta-feira, e deixar para um curso ulterior, o estudo da Música Moderna nos outros países da Europa. Eu teria desejado encerrar o esboço da Escola Moderna, à qual dediquei as preleções desta terceira série, com um breve estudo de conjunto, através da Rússia, da Hungria, da Itália, da Áustria, da Espanha, e tornar salientes as tendências e as realizações musicais dos vários países, do mesmo modo que o fiz para a Alemanha e a França. Resumindo as minhas observações sobre a evolução da música moderna, devo acrescentar que, com o progresso da ciência e dos meios de comunicação, com o extraordinário desenvolvimento do gramofone, e do rádio, que permite, hoje em dia, a maior vulgarização das produções musicais, e um intenso intercâmbio entre todas as partes do mundo, a Música Moderna e a Música Contemporânea, caracterizadas por uma tal abundância e tanta diversidade, atingem a uma universalidade desconhecida nos séculos passados. As novas idéias e as novas concepções se desenvolvem quase simultaneamente, e se manifestam por movimentos paralelos, em diversos países, e pode-se afirmar que jamais a música teve tanta vitalidade, tanta fecunda curiosidade e tantos recursos inventivos para impor-se com firmeza e convicção a um público sempre crescente. E aos que podem ainda pensar que a música já chegou ao seu apogeu, e que será difícil a futuros criadores abrirem um caminho glorioso, depois de gênios como Beethoven, Chopin ou Debussy, lembrarei somente a profecia de Théophile Gautier, que dizia ao seu filho, há mais de 80 anos: “Meu caro filhinho, nunca deixes alguém dizer que uma arte qualquer veio a ser esgotada pelo gênio de qualquer homem! Depois de Shakespeare, escreveramse ainda obras dramáticas e teatrais; depois de Victor Hugo, compôs-se versos franceses; e depois de Beethoven, ainda se inventou música! Richard Wagner que admiras, e que eu fui o primeiro em revelar à França, será ainda superado em ousadia, e teus filhos o julgarão arcaico! Não esqueças que o espírito humano é lento e rebelde, e que o mundo, mais cedo ou mais tarde, acaba admirando e elogiando o que durante anos procurara destruir. Olha com respeito uma pintura que a gente qualifica de insensata, escuta até o fim a música que assobiam, lê até a última linha o livro ridicularizada pela crítica, e lembra-te!! Artista, fala sempre segundo o impulso da tua consciência, e deixa tua alma aberta a todas as manifestações imprevistas da arte... Beethoven foi vilipendiado, Schumann foi tratado de bárbaro bêbedo, Wagner veio a Paris arriscando sua vida. Porém a música é imortal, e todos os músicos até hoje, foram apenas precursores!” Rio de Janeiro, agosto de 1941 93 PRELEÇÃO DE MAGDALENA TAGLIAFERRO RELATIVA ÀS OBRAS DE REYNALDO HAHN E DARIUS MILHAUD Antes de iniciar as execuções para dois pianos com as quais encerraremos este turno de aulas, dir-vos-ei algumas palavras dos dois autores, cujas obras serão ouvidas hoje, tratando-se não somente de compositores que se acham inscritos pela primeira vez no programa das audições deste Curso, mas também de obras que ouvireis em primeira audição integral no Brasil. REYNALDO HAHN Uma das grandes figuras da música francesa contemporânea. Nascido na Venezuela, em Caracas, em 1874; veio à França aos 3 anos, ingressou aos onze anos no Conservatório de Paris, estudou com Massenet, revelando um talento e uma precocidade que, desde os 14 anos, o tornaram conhecido pelo requinte da sua arte, pelas triunfais incursões que realizou no campo da melodia, da opereta e pelo estilo que conseguiu manter em toda sua obra numa época artística em que, na França, soprava uma certa desordem e confusão no plano artístico em geral e na música em particular. Considerado hoje, apesar de todas as lutas que enfrentou, como um dos protótipos da escola musical francesa contemporânea, Reynaldo Hahn, mais conhecido do grande público pela sua obra melódica, incorporou a mesma elegância e o mesmo espírito característicos do seu gênio em toda sua produção da qual destacarei o Concerto para Piano e Orquestra que me é dedicado e que tive ensejo de tocar no Rio, sob a regência do maestro Charles Münch e com a Orquestra Sinfônica Brasileira. As cinco valsas que ouviremos hoje em primeira audição fazem parte de uma importante obra escrita para dois pianos, intitulada Le Ruban Dénoué e nitidamente representativa dessa sensibilidade, desse sentido poético, e dessa graça elegante que ele soube defender até sua morte – em 1947, época em que atuava como Diretor da Ópera de Paris. DARIUS MILHAUD Deste outro grande compositor francês, nascido em Aix-en-Provence em 1892, talvez mais conhecido dos brasileiros por ter sido durante a guerra de 1914-18 adido à legação francesa no Rio de Janeiro, dir-vos-ei apenas que foi o poeta- 94 diplomata Paul Claudel sob cujas ordens Milhaud atuava no Rio quem lhe forneceu o libreto das mais importantes entre as suas obras dramáticas. Quando voltou à França em 1919 após ter colhido no Brasil os temas de várias composições, entre as quais os três cadernos de obras intituladas Saudades do Brasil, assim como os das três peças que ouviremos hoje, reunidas sob o título de Scaramouche, Darius Milhaud, desempenhou relevante papel no famoso Grupo dos Seis ao qual aderiram Honegger, Georges Auric, Germaine Taillefer e Jean Francix, cuja obra reveste-se do cunho de Erik Satie no plano musical e de Jean Cocteau na forma estética. A obra de Darius Milhaud é monumental e reúne todos os gêneros, sendo que sua última composição, uma ópera evocando a epopéia de Bolivar, foi estreada na Ópera de Paris há dois meses apenas. Auditório do Ministério da Educação, 7 de julho de 1950 95 O MOVIMENTO ROMÂNTICO FRANZ LISZT Os poucos instantes dos quais ainda disponho não me permitem esboçar nem uma parte infinitesimal do que desejaria dizer-vos a respeito da existência excepcional e da obra admirável de Franz Liszt. Nascido numa pequena aldeia húngara, em 1811, dois anos mais tarde que Chopin e Mendelssohn e um ano depois de Schumann, numa época de apogeu romântico e instrumental, Liszt foi, indiscutivelmente, o mais cintilante, o mais realista, o mais magistral dos músicos de sua época. O gosto de pequeno Franz para a música se manifestou repentinamente aos seis anos, quando ouviu pela primeira vez o seu pai (que era intendente da família Esterhazy) tocar ao piano um concerto de Ries, contemporâneo de Beethoven. Nessa mesma noite, durante o jantar, ele cantou a maior parte desta obra, sem fazer o menor erro, e declarou que queria estudar música, sem perder nem sequer um dia! Desde as primeiras aulas, essa criança revelou as mais prodigiosas faculdades, transpondo sem hesitação nenhuma em tema de um tom para outro, acrescentando variações e ligando frases improvisadas por meio de modulações de uma frescura já expressiva. Os seus primeiros concertos, realizados no castelo do príncipe Esterhazy, apenas um ano mais tarde, e nos quais ele já tocava obras de Bach e Beethoven, e dava como bis improvisações suas sobre temas populares, foram uma tal sensação que seu pai decidiu se instalar em Viena a fim de assegurar ao seu filho uma sólida educação musical. Aos nove anos, Liszt estudava com Carl Czerny, enquanto que Salieri, o último professor de Beethoven, lhe ensinava a composição e a harmonia. Seus triunfos diante do público vienense, dois anos depois da sua chegada nesta capital, não lhe apreciam uma consagração suficiente; seu grande desejo, sua profunda ambição, era ser ouvido pelo grande Beethoven. Schindler, uma amigo íntimo do célebre mestre, depois de ter vencido as maiores dificuldades, a desconfiança inata de Beethoven para com toda criança prodígio, conseguiu realizar essa memorável entrevista. “Que diabo de menino!” disse ele, após a execução de uma Fuga de Bach e da primeira parte do seu próprio Concerto em Dó Menor. “Você deve ser feliz com os seus prodigiosos dons, mas a coisa mais bela ainda será a felicidade que você dará ao mundo!” Alguns dias depois, entre as 4.000 pessoas que assistem ao seu grande concerto do Esdoutensaal, Liszt, cumprimentando o público, reconhece Beethoven, sentado bem perto, nas primeiras filas. Tremendo pela primeira vez, Franz olha a fisionomia imponente de “Gênio de Bonn”, ataca a primeira peça, e, dominando sua emoção, executa, com a mais rara mestria e fantástica virtuosidade, o Concerto de Hummel, assim como uma das suas próprias fantasias. Mal ele tinha acabado, no meio do delirante entusiasmo dos 96 fragmentos vienenses, Beethoven, apressando-se ao palco, abraça o menino e lhe dá um beijo sobre a fronte. Essa homenagem do venerado mestre foi mais cara a Liszt que todos os elogios e os superlativos que os jornais do dia seguinte dedicaram à sua glória nascente. Liszt não atingira 13 anos quando seu pai o leva para a França. Os salões de Paris logo se abrem diante desse jovem, esguio e aristocrático, que tocava com tanto brilho e que improvisava com tanta facilidade, achando o meio de apresentar cada vez um programa diferente. Londres o acolhe com o mesmo carinho, e o rei George IV recebendo-o no Palácio de Windsor lhe expressa sua admiração, não somente pela perfeição das suas execuções, mas também pela riqueza das suas idéias. No ano seguinte, depois de uma tentativa pouco frutuosa, com a apresentação, na Academia Real de Paris, da sua primeira ópera, Dom Sanche, Liszt, já consagrado como “Rei dos pianistas” (aos 13 anos), entra na vida e inicia sua verdadeira carreira. Dessa carreira, tão longa quanto fértil em acontecimentos maravilhosos e comoventes, dir-vos-ei somente que, antes de se dedicar à composição original, Liszt se confirmou na primeira parte da sua juventude à interpretação e às transcrições de obras célebres, assim como ao desenvolvimento engenhoso de temas conhecidos. Sua arte da variação, seu poder de vivificar com uma interpretação bem própria, as obras de outros músicos, suas transposições geniais e harmoniosas das visões e do pensamento dos pintores e dos escritores do seu século, enfim, suas faculdades de assimilação e sua rara cultura o consagraram como o virtuose mais deslumbrante e audacioso, que superava em potência, em mestria e em realismo, tudo o que fora ouvido até então. O fato de ter parafraseado Mozart, Paganini, Rossini, Schubert e tantos outros, apesar da inteligente compreensão e da verve brilhante que emana desse gênero de composição, explica, a meu ver, o preconceito da maioria do público que hoje em dia não sabe apreciar as qualidades da música de Liszt, e para quem esse nome é unicamente sinônimo de Rapsódia Húngara. É verdade que são principalmente estas rapsódias e as suas resplandecentes transcrições das árias e dos temas de sua terra natal que contribuíram em popularizá-lo. Porém, não devemos esquecer que o verdadeiro Liszt é antes de tudo o criador do “poema sinfônico” como Faust, Prometeo, Dante, os Prelúdios; o autor místico e inspirado da célebre Missa de Gran, dos Oratórios e outra imponente música religiosa; o que enriqueceu o piano e a orquestra de tantas fórmulas novas e engenhosas, o autor dos Estudos Transcendentais, dos Anos de Peregrinação, o compositor de Lieder originais e realistas, enfim, o precursor do “impressionismo musical”, rumo que Debussy devia seguir com tanta personalidade, alguns anos mais tarde. É indispensável que todos se convençam que em suas composições pianísticas, Liszt não tinha por objetivo deixar a virtuosidade tomar sempre o primeiro lugar. Foram os executantes vindos depois dele que semearam essa falsa interpretação, talvez por não terem podido resistir à tentação do virtuosismo nas partes mais brilhantes, e procuraram ir muito mais longe que as intenções do próprio autor. O fato de Liszt ter sido um pianista prestigioso e o mestre inigualado da técnica e de todos os recursos pianísticos não é razão suficiente para o intérprete centralizar suas faculdades nas acrobacias técnicas, 97 em detrimento do lado verdadeiramente musical. Liszt, além de um grande técnico, foi também um poeta, e dou-vos como prova a primeira parte da “leggerezza” aliás intitulada por ele mesmo: Caprice Poétique; o Rêve d’Amour; tantas frases da Grande Sonata em Si Menor; muitas das peças dos três volumes de Anos de Peregrinação; as Harmonias Poéticas e Religiosas etc. etc. Efetivamente, a maior parte das obras de Liszt são guiadas pela poesia, sob todas as formas, lírica, serena, religiosa ou apaixonada; porém, o temperamento aristocrático e altivo do seu autor o leva ao mesmo tempo a certa grandiloqüência e mesmo a uma hipertrofia da ênfase e do sentimento dramático, o que, às vezes, traz alguma confusão na interpretação dessa obras, cheias do mais belo e patético romantismo. Conheceis com certeza as circunstâncias dramáticas da morte desse invulgar gênio que ocorreu em Bayreuth, poucos depois de Tristão e Isolda, à qual assistira na frisa da sua filha, Cosima Wagner. Após ter dedicado os vinte últimos anos da sua vida ao serviço da Igreja, na ordem dos Franciscanos, após uma das carreiras mais extraordinárias e uma existência inspirada de quatro grandes preceitos: servir o próximo, o amor, a bondade, a generosidade, o abade Liszt morreu deixando atrás de si, além da sua obra incomparável, toda a sua fortuna que constava de sua batina, de alguma roupa branca, e de sete lenços! Rio de Janeiro, 1940 – 1947 98 A MÚSICA ESPANHOLA Entre os eminentes historiógrafos dos séculos passados e da nossa era moderna, são poucos os que souberam avaliar o importante papel que as artes e as letras desempenharam na história da civilização. A maioria dos que escrutam as origens e a evolução dos diversos povos restringem seus estudos às guerras e às dinastias soberanas, à política e aos tratados, olvidando que a história da humanidade é a síntese das conquistas. É na arte que encontramos o derradeiro símbolo dessas conquistas, o meio de expressão mais elevado em torno do qual se realiza a mais completa unidade. Seria naturalmente exagerado afirmar que o espírito de uma época se reflita unicamente nas artes e nas letras, sendo cada período, cada civilização, a resultante tanto da teologia como da ciência, da literatura como da economia ou da indústria, de todas as formas, enfim, da atividade humana, as quais escrevem, cada uma na sua esfera, sua página da história universal. Se é verdade que a concepção artística e as formas de expressão estão geralmente subordinadas à época e ao ambiente em que vive o pintor, o músico ou o poeta, deve-se igualmente admitir que os grandes artistas, por seu lado, contribuíram, desde os tempos mais remotos, em criar os sucessivos ambientes, dando-lhes um estilo bem definido, e concretizando cada época através da sua própria personalidade. No estudo das “Origens e da Evolução da Música Espanhola”, devemos pois, antes de passar revista às personalidades e às obras dominantes desse país, nos compenetrar dessa estreita correlação, entre o desenvolvimento cultural de um povo, e os grandes movimentos políticos da sua história, lembrando-nos mormente, neste caso, que a Espanha só veio a formar uma nação unida no século quinze, isto é, relativamente tarde, tendo-se assinalado, até aquela época, pelo seu caráter estritamente medieval e pelo fato de constituir o país mais católico de toda a Europa. Contraste com os territórios vizinhos, pertencentes ao Islã, servia para induzir a Igreja a ficar constantemente em estado de alerta e vigilância, o que contribuiu, indiscutivelmente, em manter a Igreja mais unida na Espanha, do que em qualquer outro país. Essencialmente católica apesar do seu cunho nacional, a Igreja Espanhola, que iniciou sua missão na Europa somente após a expulsão dos mouros do seu território, em 1492, foi pouco atingida pelo Renascimento, e ficou quase inteiramente fora do alcance do Movimento da Reforma protestante, explicandose essa particularidade seja pela organização modelar das congregações religiosas, ou pelos seus preceitos escolásticos, ou mais provavelmente ainda, devido ao voluntário isolamento da Igreja, que lhe permitiu conservar intacto, seu poderio e sua influência. Com a vinda da dinastia dos Habsburgos, dinastia cavalheiresca e imperialista, que elevou, no entanto, a Península Ibérica até o nível de grande potência 99 mundial, as ambições desse país ficaram saturadas com a paixão do catolicismo, fornecendo desse modo à Santa Sé o mais formidável auxílio, o qual se concretizou na intensa atividade política de Carlos V e Felipe II, e, sobretudo, na dominadora personalidade de Inácio de Loyola, cujo papel histórico é bastante conhecido, e a quem o nacionalismo espanhol deve sua íntima fusão com o poderoso universalismo de Roma. É por essa razão que a cultura espanhola não pode ser separada da sua história religiosa, levando inevitavelmente qualquer estudo das artes e das letras desse país às portas da Igreja Católica. Outro importante fator na formação geral da cultura do povo espanhol reside na extrema diversidade que marca as próprias origens da raça, resultado da fusão de elementos ibéricos, celtas, bascos. Godos, árabes e berberes, aos quais essa cultura deve o seu cunho um tanto exótico que segregou, durante alguns séculos, a Espanha, das outras nações românicas. É pois do místico ascetismo do espanhol, do seu culto rigoroso da tradição, da sua fiel perseverança a serviço da Igreja e, sobretudo, da própria alma desse povo, modelado nas lutas seculares contra os invasores africanos, e endurecido debaixo do severo clima da rochosa Castilha, que surgiu a cultura, tão original e específica, desse país. Apesar dos mouros terem ocupado a Espanha até o fim do século XV, a influência mourisca, ao contrário do que muita gente acredita, não desempenhou nessa longa e progressiva evolução, papel realmente fundamental. Lembremo-nos do aristocrático senso da forma e da ostentação, oriundo do feudalismo e do cavalheirismo da Idade Média; lembremo-nos da nobreza da palavra, do caráter poético e da notável habilidade retórica, que assinalam qualquer manifestação da arte espanhola; lembremo-nos, enfim, que a tendência oriental à ornamentação, foi sempre matizada na Espanha, por um incontestável realismo, conforme o vieram demonstrar a implantação do estilo barroco e tantas outras concretizações artísticas. No que tange à evolução da arte musical espanhola, durante a Idade Média, o Renascimento e até o início do Barroco, há pouca coisa a dizer, na ausência quase completa de autêntica documentação, mesmo em matéria de música religiosa. Não resta dúvida, todavia, que a vida musical da Espanha tenha sido extraordinariamente rica naquela época, principalmente na primeira metade do século XV, durante o reinado de Afonso, o magnânimo, rei de Aragão e conquistador de Nápoles, que foi um entusiástico e esclarecido protetor das artes e das letras, e que contribuiu à realização prática, de proveitoso intercâmbio com a Itália, onde numerosos jovens espanhóis vieram tomar parte no coro da capela papal, enquanto alguns outros eram admitidos na corte dos Sforza, em Milão. Na Espanha, como aliás nos outros países da Europa Central e Ocidental, a música medieval nasceu da poesia, das romanças que os trovadores iam cantando de cidade em cidade, acompanhando-se à vihuela, que era uma espécie de alaúde, e improvisando variações sobre temas de uma ingênua simplicidade, designados sob o nome de “tonadas”. Foi somente na primeira metade do século XIV, que o humor espanhol, com as picarescas fábulas e novelas do poeta Juan Ruiz, recebeu sua consagração no 100 palco, enquanto que os “Cancioneros” estendiam sua influência à fidalguia e à corte. Essa maravilhosa união da música e da poesia me foi confirmada de maneira eloqüente, há poucos anos, quando descobri um dos raros exemplares do famoso livro de Francisco Barbieri, intitulado Cancionero Musical de los Siglos XV e XVI, livro que infelizmente deixei na França, e que procurei em vão encontrar no Brasil. Recordo-me porém que, dentre as 500 canções reunidas nesse interessantíssimo volume, as da autoria do célebre poeta Juan del Encina chamaram particularmente a minha atenção, por serem precedidas de um preâmbulo no qual o autor, para descrever a arte poética espanhola naquela época, isto é, no fim do século XV, usa as palavras “arte de trobar”! Melhor do que qualquer descrição pormenorizada, essa expressão “arte de trobar” me parece suficiente para realçar o antigo preceito da ligação entre a poesia e a arte musical, entre o poeta e o compositor, ligação magnificamente posta em evidência, nas baladas e canções daquele período, notáveis até hoje em dia pela sinceridade profunda, a devoção e o beato encanto que essas obras refletem. Juan del Encina, que ocupou os mais altos cargos na corte da rainha Joana de Castilha, e junto ao papa Júlio II, e empreendeu a viagem até Jerusalém, a fim de celebrar sua primeira missa na Igreja do Santo Sepulcro, foi, sem dúvida, o mais notável dos poetas-compositores da sua época, impondo-se com invulgar mestria, pela frescura da sua inspiração no gênero “pastoril”, pela sua verve mordaz e uma espécie de maliciosa candura, não desprovida de certa ironia. Enobrecidas e transformadas pela sua ciência e seu pensamento requintados, as composições desse grande artista, criador do drama nacional espanhol, se assinalam pelo seu gosto e sua elegância, até nas mais singelas “eglogas” como, por exemplo nessa encantadora poesia pastoril dialogada, e entrecortada por trechos musicais, intitulada “Del escudero que se tornó pastor”, ou numa outra fábula do mesmo caráter, “De los pastores que se tornáron palaciegos”. (Palaciegos é a palavra espanhola equivalente a cortesão.) O cenário da primeira dessa obras nos apresenta uma linda pastora entre seus dois namorados, um escudeiro a serviço de um rico senhor, e um pobre pastor. Ao contrário do que acontece geralmente nos poemas e nos contos de fadas, a moça resolve casar com o primeiro dos pretendentes, tendo ele, o escudeiro, renunciado ao seu cargo e desistido de voltar à cidade. No meio do enredo, os versos são interrompidos pela parte musical, de uma graça cativante, que consta de uma sucessão de canções e de danças, encerrando-se a composição, com um atraente “Villancico”, sorte de canção amorosa e encomiástica, com sutil acompanhamento ao alaúde. Enredo da segunda egloga, parece o lógico desenvolvimento do tema que acabo de vos contar. Assistimos aqui as melancólicas divagações do escudeiro que se tornou pastor e que, após um breve período de felicidade no campo, está com tantas saudades da corte do seu antigo senhor que não pode mais resistir à tentação de voltar por algum tempo à cidade, levando nessa viagem a sua mulher e outro casal amigo. Na suntuosa residência do fidalgo, onde foram hospedados, os quatro protagonistas desse singelo poema não se conformam com a perspectiva de abandonar tão confortável ambiente, e conseguem ficar todos a serviço do generoso duque, sendo esse ingênuo drama, narrado com 101 encantadora poesia, e o contraste entre a vida senhorial e campestre, evocado com picante humor e espírito. Em todas as obras de Juan del Encina, a influência da arte popular torna-se evidente e decisiva, inspirando-se o autor diretamente das tradições e do verdadeiro espírito da sua raça. O hábito, adotado em quase todos os países da Europa, de escrever poesias para serem cantadas segundo tal ou outro timbre, e do qual nasceram o Vaudeville francês, o Liederspiel alemão, e o Ballad’s Opera inglês, nunca existiu na Espanha, onde o poeta era, quase sempre, também músico e concebia, ao mesmo tempo, os versos e a parte musical. Essa particularidade encontra incontestável ilustração na obra de Juan del Encina, que nunca tratou musicalmente senão suas próprias criações, adaptando maravilhosamente, desse modo, a melodia às necessidades do texto, sem que o canto venha a dominar a palavra, nem se sujeitar a ela, e alcançando esses dois elementos folclóricos específicos de cada província, desenvolvem-se as várias escolas musicais, cada uma com suas características individuais e facilmente reconhecíveis, das quais citar-vos-ei a escola “castelhana”, cujo grande mestre e protagonista será o glorioso Tomas Luiz de Vistoria, a “sevilhana”, ou mais exatamente, a “andaluza”, que será ilustrado por Cristobal de Morales e Francisco Guerreiro, a escola “valenciana”, com o original Juan Ginez Perez, enfim a “catalana”, cujas tradições serão mantidas durante um longo período, graças às atividades do célebre Mosteiro de Montserrat. Foi o reinado dos Reis Católicos que inaugurou, na última parte do século XV, essa era de maravilhoso e inigualado esplendor, que ia se prolongar até a metade do século XVII. O casamento de Ferdinando e Isabel reuniria as duas coroas de Castilha e Aragão, poucos anos antes da tomada de Granada, que pôs, em 1492, quase toda a Península Ibérica, sob o mesmo cetro real. A descoberta da América, um dos mais importantes acontecimentos da história universal, realizou-se, também, no mesmo ano, iniciando a maravilhosa era da expansão colonial da Espanha, que culminou na conquista de um império sobre o qual o sol jamais deixava de brilhar. A prosperidade material do país deu-se simultaneamente com o seu magnífico desenvolvimento cultural, científico e artístico, prosseguindo a música, durante um século inteiro, na sua ascendente e ininterrupta progressão. Na corte de Ferdinando e Isabel, a arte sonora ocupava efetivamente, um lugar de honra, com um imponente estado maior de músicos, organistas, instrumentistas e trovadores, e um coro, de qualidade, na capela. Ao contrário, porém, dos outros países do continente, todos esses músicos eram espanhóis natos, e possuíam profunda tradição musical, conservando a produção musical daquele período esse caráter nitidamente nacionalista, até a intensa imigração flamenga, e as outras influências estrangeiras, as quais, aliadas a um excessivo conservadorismo dos músicos da escola antiga, contribuíram, no caso da Espanha, em doar à música desse país, um rumo bastante diferente, levando-a gradualmente, no fim do século XVII, ao declínio e à desintegração. No princípio, a influência dos compositores flamengos foi aliás de inegável proveito para música espanhola, cujos protagonistas souberam adaptar sua arte a esse novo estilo, sem se afastar em demasia, das suas características raciais; Morales e seu discípulo Tomas de Victoria foram os que melhor escreveram música no puro estilo polifônico flamengo, o qual veio a ser o estilo polifônico 102 universal do catolicismo, e conseguiram ao mesmo tempo manter nas suas composições o tradicional e autêntico espírito espanhol. Falar-vos-ei, na minha próxima preleção, do místico poder visionário e da estupenda arte contrapontística de Francisco Morales e Tomas de Victoria, da influência do Barroco, do drama lírico espanhol e de diversas figuras que se destacam gloriosamente do cenário desse país, onde a música constituía, e permanece até hoje em dia, parte integral da existência do seu povo. Rio de Janeiro, 1940 – 1947 103 PALESTRA SOBRE LUDWIG VAN BEETHOVEN Tenho certeza de que todos aqui presentes conhecem os pormenores da vida do Titã da música, Ludwig van Beethoven. Assim sendo, não vou esboçar uma biografia longa e completa. Todavia, nunca me parece desnecessário relembrar que esse portentoso compositor foi a última e apoteótica encarnação do classicismo musical, até nos abrir caminho às primeiras eclosões do Romantismo. Nós todos sabemos quanto o ambiente pode influir e para sempre se gravar num cérebro infantil. O fato de ter, em criança, vivido ao lado de um pai alcoólatra e de uma mãe tuberculosa não pôde deixar de influenciar o caráter, o humor e a saúde dessa criatura excepcional. No entanto, não resta dúvida que Beethoven tenha sido escolhido pela Providência como mensageiro da Divina Verdade entre os eleitos marcados milagrosamente para tornar este Universo mais ameno, mais nobre e grandioso, para, enfim, aliviar com a beleza da sua arte, no mundo das sonoridades, a tristeza e a ânsia de tantos corações. Para bem compreender e penetrar a sua obra, convém não olvidar que Beethoven tomou contato com a vida através da aflição e da angústia, e que seu gênio se desabrochou no meio de uma sucessão ininterrupta de sofrimentos, motivos talvez pelos quais, ele veio a doar à humanidade uma tão profunda mensagem, já que sabemos que a dor enaltece as almas generosas. Ora, Beethoven recebera de Deus um coração elevado e, na firme visão de um nobre ideal assim como no legítimo valor, esse artista genial conseguiu, em boa hora, encontrar a razão de ser, senão a consolação de uma existência sobrecarregada de sofrimentos. Convém salientar um fato às vezes esquecido e que teve, no entanto, predominante influência sobre o caráter da produção beethoveniana. É que Beethoven nascera exatamente no ano em que o piano, inventado muitos anos antes, começara somente a tomar o lugar do cravo, esse instrumento já tendo sido inteiramente posto de lado, quando Beethoven compôs suas primeiras obras. Ao contrário de Mozart e de Haydn, Beethoven teve a seu dispor, desde o início da sua carreira, um instrumento com novos e múltiplos recursos, dos quais o seu espírito genial soube aproveitar, a fim de atuar no estilo musical, a uma expressão mais profunda e mais potente. As freqüentes alternativas de amor exaltado, de revolta contra o destino, de efêmera quietude, de irremediável desconsolo, inspiraram uma parte importante da sua gigantesca produção e mormente desse incomparável conjunto de trinta e duas obras-primas, que reúne, sob a modesta denominação de “Sonatas”, uma das mais eloqüentes, poderosas e comovedoras autobiografias exteriorizadas até hoje através do teclado. 104 Sabemos que, pessoalmente, Beethoven só deu títulos a duas das suas Sonatas: a Patética e a Appassionata, e todas as outras denominações foram inscritas pelo seu primeiro editor, à revelia do compositor. Desejo dar-vos a prova de como desde a sua segunda sonata, a opus 13, a Patética, Beethoven conseguiu transpor um profundo sentimento de bela serenidade, cortado na parte mediana por uma frase um tanto dolorosa. Vou ilustrar estas minhas palavras tocando-vos o Adagio Cantabile da Sonata Patética. (Execução) Foi somente aos 25 anos que Beethoven começou a publicar suas composições, julgando que as primeiras, por ele compostas desde os treze anos e até então, eram insuficientemente perfeitas e originais para serem perpetuadas. São dois os Trios para Piano, Violino e Violoncelo, encomendados pelo Príncipe Lichnowsky nos quais ele indicou op. 1, que deviam marcar para as gerações futuras, o verdadeiro início do primeiro período dessa fecunda e gloriosa produção, que revela, ao mundo musical, a vigorosa e vitoriosa eclosão desse gigantesco talento. Chegamos, assim, ao segundo período dessa épica existência em que Beethoven, libertado pouco a pouco das influências alheias e procurando escrever sua própria vida, em lugar de simples música, confia magistralmente, no plano sonoro, suas paixões, suas emoções, seus sofrimentos físicos e morais, e nos deixa penetrar até os recantos mais profundos da sua alma, desvendando-nos fervorosamente os três grandes amores que enchem seu coração exaltado: a mulher, a natureza e a pátria. No momento em que a reputação do jovem mestre se estabelecia brilhantemente em Viena, ele teve a amarga desventura de ser atingido pelo mais terrível golpe que o destino pode infligir a um músico: a surdez! Esta começou seus estragos desde os 26 anos do compositor e devia atrozmente entristecer e afligir o resto da sua vida. Durante muitos anos, a ninguém disse que zoavam-lhe os ouvidos dia e noite; nem mesmo aos amigos mais caros; porém, suas faculdades auditivas, apesar de vários tratamentos sugeridos por eminentes especialistas, iam enfraquecendo numa inexorável progressão, e não podendo mais ocultar sua enfermidade, Beethoven procurou fugir do mundo. Aos trinta e um anos, esse músico, pobre e condenado a viver da música, deve renunciar a esconder seu angustiante segredo, e, numa carta escrita a seu grande amigo Wegeler, encontramos essa dolorosa confissão: “Vivo numa existência miserável! Há dois anos que estou evitando qualquer companhia, por ser-me impossível conversar. Estou surdo! Se tivesse outro ofício, ser-me-ia ainda possível, mas, no meu caso, é uma situação terrível e desesperadora. Que dirão disso os meus inimigos, cujo número não é 105 pequeno? No teatro, devo colocar-me bem junto à orquestra, para entender o ator. Se fico um pouco distante do palco, não ouço os sons dos instrumentos e das vozes. Quando falam suavemente mal percebo! Quando gritam não tolero! Tenho, constantemente amaldiçoado a vida e o mundo ... Plutarco me levou à resignação! Quero, se for possível enfrentar o destino, mas, há momentos em que sou a mais lamentável das criaturas de Deus ... Resignação! Que triste refúgio para mim! E é entretanto, o único que me resta!”. O mesmo Dr. Wegeler nos conta que Beethoven foi também vítima, durante essa época, de outro gênero de moléstia: a do amor! Ele se apaixonava a todo instante. Sonhava com felicidades, logo seguidas de derrotas e de amargos sofrimentos. Seus amores, todavia, parecem ter sido sempre de uma grande pureza, seja por causa das suas idéias bastante intransigentes sobre a santidade desse sentimento, ou pelo fato de nunca ter ele sido amado como o sonhara. A religião que sustentava Beethoven, no meio das suas decepções sentimentais, era sua fé na música e na divina missão da qual fora incumbido. “Não existe coisa mais bela, escrevia ele, do que se aproximar da divindade, e de difundir seus maravilhosos raios sobre a humanidade.” É nessas alternativas de amor exaltado e de revolta contra o Destino, traduzidas em obras-primas musicais, que se deve procurar a fonte a mais fecunda das inspirações de Beethoven que conheceu raros momentos de contentamento e de paz. Na época em que Giulieta Guicciardi, a coquete e vaidosa Condessa, era o objeto da sua paixão, ele escrevia: “Vivo mais suavemente e convivo melhor com os homens. Essa transformação foi realizada pelo encanto de uma querida jovem, que amo e me ama! De dois anos para cá, são estes os primeiros momentos de felicidade!” Ele devia pagar duramente essa momentânea doçura do destino. Esse amor o fez perceber, ainda mais, a miséria da sua enfermidade e as condições precárias da sua vida, que tornaram impossível o casamento com o qual sonhara. Quando Giulieta casou-se com o Conde Gallemberg, a dor pungente causada por esse acontecimento inspirou mais algumas obras-primas, entre outras a Appassionata que constitui, talvez, em todo o repertório pianístico, o mais comovedor e pungente grito de angústia e desespero que um compositor tenha conseguido exteriorizar no teclado. A seu amigo Schindler que lhe pedira a significação da Appassionata, Beethoven respondeu: “Leia A Tempestade de Shakespeare!” A resposta do compositor parecia um tanto enigmática e o vento da tempestade não sopra, neste caso, somente na ilha nem sobre o mar, mas se desencadeia 106 no coração, num coração que sofre, ruge, ama e finalmente triunfa na sua luta contra o Destino. É justamente essa torrente de uma força implacável e quase selvagem, e a soberania do pensamento, vencedor da matéria e do sofrimento, tão significativos da arte beethoveniana nessa época de maturidade, que encontramos nessa magistral evocação, a respeito da qual o compositor disse uma vez a Teresa de Brunswick: “Se os que ouvem as minhas obras soubessem em que estou pensando quando as escrevo, ficariam apavorados!” A devastação do coração motivada por essa transbordante paixão, no caso de um indivíduo já enfraquecido pela moléstia como o era Beethoven, arriscou aniquilá-lo por completo. Foi este o único momento da sua vida em que ele esteve prestes a sucumbir, e a crise desesperada que Beethoven atravessou nos é revelada pelo seu inesquecível “Testamento de Helligenstadt” que o compositor mandou aos seus irmãos, com a seguinte inscrição: “Para ler e executar depois de minha morte”. Cada vez que, numa palestra sobre Beethoven, cometi a imprudência de citar integralmente esse grito de revolta e de dor pungente, não pude conter a minha emoção e desatei em público num pranto tal, que sempre me deixou estarrecida, não querendo me expor hoje à mesma inconveniência, limitar-me-ei em citar-vos apenas algumas linhas desse memorável documento. “Até aquela grande coragem que me sustinha se dissipou, escrevia ele nesse testamento. Dê-me ó Providência, ainda uma vez, um dia só de verdadeira felicidade! Há quanto tempo que o som profundo da alegria me é totalmente estranho! Quando, oh! meu Deus, poderei encontrá-la? Nunca? Não! Isto seria demasiadamente cruel!” Felizmente para a música, sua natureza poderosa não se resignava cair e essa força colossal, essa energia sobre-humana, fizeram-no adotar uma profunda filosofia que encontramos no terceiro período da sua obra. Foi com um olhar confiante e calmo que vai além das estrelas que ele se resignou ao inevitável. No entanto, sua saúde piorava dia a dia, além da surdez que se tornara completa. Já nos seus últimos anos, ele se servia, dizem, de uma vareta da qual uma extremidade era colocada na caixa do seu piano e a outra, entre seus dentes. Quando compunha usava desse meio para ouvir! É conhecida a dolorosa conclusão da representação da ópera Fidélio, em 1822. Beethoven insistira em reger o ensaio geral dessa sua famosa obra. Porém, desde o dueto, ele não ouvia nada do que se passava no palco. Seguiu-se uma confusão geral que obrigou Beethoven a deixar precipitadamente o teatro, com o coração ferido, e tão profundamente que até a sua morte ficou gravada, no seu espírito, a terrível impressão desse dia fatal. Emparedado dentro de si mesmo, separado do resto dos homens, só achava consolo na natureza, onde sua inquietação e seus tormentos encontravam alguma trégua. Apesar de tudo isso, Beethoven confiava na Divina Providência, sustentado por uma fé inabalável e invencível. 107 É realmente comovente constatar como a crença em Deus lhe permitiu resistir aos implacáveis golpes da mais amarga fatalidade, e operou nesse gênio prodigioso, o que se pode qualificar de verdadeiro milagre! Foi do fundo desse abismo de tristeza que esse homem infeliz e constantemente atormentado pela angústia empreendeu celebrar a “Alegria”. Era o projeto de toda sua vida e ele conseguiu finalmente realizá-lo com a Nona Sinfonia, intitulada: “Sinfonia, com um coro final, sobre a alegria”. Foi só nos seus últimos anos de vida que Beethoven atingiu a essa realização, mas com que grandeza! A primeira audição da Nona Sinfonia teve lugar em Viena, em 1824, com um êxito triunfal e um público aplaudindo freneticamente o compositor, o qual, em pé, perto do regente, e virando as costas ao auditório, não ouvia o entusiasmo provocado pela sua obra magistral! Todavia, o triunfo foi efêmero, e o resultado prático nulo para Beethoven, que se viu sempre mais pobre, sempre mais doente, porém vencedor, vencedor da mediocridade, vencedor do sofrimento, vencedor do seu próprio destino! Que conquista pode igualar a glória desse esforço sobre-humano, essa vitória do Espírito? Foi esse infeliz, esse pobre, esse enfermo, esse solitário, o próprio sofrimento feito homem, a quem o mundo recusou a alegria, que criou, ele mesmo a “Alegria” para doá-la à Humanidade!!! São Paulo, 12 de julho de 1970 108 3 Análise 109 110 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951 Três Autores Clássicos: Bach, Mozart e Beethoven. Acham-se reunidos no programa das execuções da aula de hoje três compositores, entre os mais ilustres, e cuja obra se assinala, ao mesmo tempo, pela abundância e pela qualidade: Johan Sebastian Bach, que foi talvez o mais representativo dos mestres da Escola Alemã e que, conforme o dizia um dos seus biógrafos, “procriava suas cantatas semanais, assim como os seus 22 filhos, para a maior glória de Deus”, ciente que essas cantatas iam ser executadas uma só vez, e incorporando, no entanto, em cada uma delas o mesmo fervor, a mesma fé e a mesma ciência da escritura musical que caracteriza toda a monumental produção. Wolfgang Amadeus Mozart, cujo gênio escapa a qualquer definição, já que compunha com a mesma facilidade com que cantam os pássaros, e que teve uma das mais gloriosas, das mais fecundas, e também das mais curtas carreiras, na história da música. Mozart morreu aos 35 anos apenas, tendo conseguido escrever, quase que “brincando”, entre outras obras, 15 missas, 20 óperas ou composições teatrais, 40 sinfonias, 50 concertos para soli e orquestra, e mais de 100 obras de música de câmara, enfim. Ludwig van Beethoven, cujo catálogo talvez não tenha alcançado a produtividade de outros contemporâneos seus, mas que, entretanto, aproveitando o primeiro os recursos do pianoforte quando esse instrumento vem substituir o cravo, soube penetrar naquelas zonas até então inacessíveis da poesia e do patetismo, e enriquecer de sobremaneira com as suas geniais e poderosas expansões, não somente o repertório pianístico, mas, também, todas as formas musicais, sendo um dos raros exemplos de um artista elevado ao auge da popularidade pelo sufrágio unânime dos povos, que tenha merecido, durante quase dois séculos, o título de Titã da Música que lhe conferiu uma ascensão a um trono até agora incontestado. Ouviremos pois a aula de hoje: de Bach-Busoni, a Chaconne na interpretação do Senhor Luiz Mesquita; de Mozart, a Sonata em Dó Maior que será executada pela Senhorita Sary Hauser; e de Beethoven, a Sonata op. 81, “O Adeus, a Ausência, o Retorno” que será interpretada pela Senhora Jenny Perelman. Antes de iniciar a aula, desejo atender um pedido de um “ouvinte anônimo” (pela letra me parece que se trata de “um ouvinte”) perguntando-me qual era a significação da palavra “Chaconne” e se eu podia dar esse esclarecimento antes de ser tocada essa peça. Na origem, a Chaconne era uma dança folclórica mourisca, que os espanhóis já levaram ao México no fim do século dezesseis, encontrando-se num dos 111 convites para o casamento do rei Filipe III (em 1599) a menção de “uma viagem à cidade de Tampico par ali dançar a “Chacona”. Na língua basca (vasconça), a palavra chacona quer dizer “bonita” o que não parece realmente se aplicar a esse tipo de dança meio selvagem, apaixonada e até desenfreada descrita por Cervantes como “uma torrente de mercúrio que sobe e desce no corpo da dançarina”. Introduzida no século dezessete nas Suítes de Dança tão apreciadas pelas cortes, na França, na Itália e na Alemanha, a Chaconne se distingue da Passacaglia pela sua qualidade melódica e vem, pouco a pouco, a ser executada num movimento mais lento, com variações distribuídas sobre oito compassos, e foi se afastando da sua forma original até ser consagrada por Bach, Haendel e Gluck na sua feição atual. a A Chaconne de Bach é a mais conhecida, tendo sido escrita para a 4 Sonata para Piano e Violino, e sendo do famoso mestre italiano Ferrucio Busoni a transcrição para piano que ouviremos hoje. O tema da Chaconne, tal o concebemos agora, encontra-se aliás em diversas obras entre as quais convém citar: as 32 variações de Beethoven, assim como o “Final” da Quarta Sinfonia de Brahms. Espero que estas explicações satisfaçam a legítima curiosidade do nosso ouvinte a quem agradeço esse ensejo de poder esclarecer um assunto geralmente pouco conhecido. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1951 (Segunda aula) 112 BEETHOVEN Concerto op. 73, em Mi Bemol Este concerto foi escrito por Beethoven em 1809, durante aquele fecundo período em que nasceram as imortais Sinfonias, as “Ouvertures” de Fidélio, Leonora, Coriolan, Egmont e outra importante produção orquestral, e em que as composições para piano só, após as famosas 32 Variações, se limitaram a três sonatas, entre as quais a do “Adeus”, que tivemos o ensejo de estudar e comentar numa aula do curso de 1941. Já na época da sua publicação, o Concerto em Mi Bemol para Piano e Orquestra fora denominado do “Imperador” por tê-lo Beethoven composto em homenagem ao príncipe, estadista, arcebispo e herdeiro da coroa da Áustria, o seu ilustre amigo e discípulo, o arquiduque Rodolfo de Habsburgo, o qual devia substituir Napoleão, Imperador dos Franceses, para se por à frente do governo do seu país. Como sabemos, o arquiduque, além dos títulos já enumerados, era também uma personalidade notável no plano musical, tendo-lhe Beethoven dedicado numerosas obras-primas, em retribuição à sincera consideração e amizade que lhe manifestara, e ao apoio que lhe prestara nos momentos difíceis do início da sua carreira. O Concerto em Mi Bemol, do mesmo modo que a sonata “O Adeus, A Ausência, O Retorno”, é uma peça de “circunstância”, isto é, escrita propositadamente para celebrar um grande acontecimento, nesse caso, a luta contra a Revolução Francesa, a reação contra a invasão do território austríaco, e o regresso do arquiduque vitorioso e libertador. Estamos longe aqui do “Retorno” celebrado na Sonata op. 81, tratando-se nesta épica composição para piano e orquestra, da volta do glorioso chefe num imponente desfile de tropas e no meio das bélicas e frenéticas aclamações do povo em festa. Naquela época, e apesar das dificuldades que a situação política instável criara no país, Beethoven conhecera alguns anos de verdadeira e confiante felicidade, convencido que sua ardorosa paixão pela imortal bem amada, Teresa de Brunswick, encontraria um eco no coração daquela nobre e linda moça. É aliás por esse motivo que o caráter doloroso, melancólico ou trágico, que assinala tantas composições anteriores, quase desaparece por completo nas obras escritas durante este período, sendo o Concerto em Mi Bemol antes de tudo um acento triunfal, uma epopéia expressada musicalmente, para exteriorizar ao mesmo tempo sua íntima felicidade, e os profundos sentimentos que ligavam o compositor à sua terra adotiva. A primeira parte desta obra-prima do repertório sinfônico é uma espécie de idealização, de retrato estilizado, da elevada e nobre figura do arquiduque Rodolfo, tendo a parte confiada ao piano, caráter de aclamação, altivez, heroísmo e comovedora expressão. Após o feroz conflito entre o piano e a 113 orquestra, voltamos à atmosfera apaziguada e transparente, seguida pelo ritmo heróico do “tempo” e a cadência escrita aliás pelo autor. O “Adagio” é um sonho estático, em que o ouvinte sente a manta celeste caindo entre acentos de fremente lirismo, e a doçura de um piano que deve ser a própria sombra da orquestra, substituindo-se este sentimento à apoteótica exaltação que o precede. O ritmo do “Final” é significativo do ímpeto, do ardor e da alegria com que é recebido o Príncipe Vitorioso, indo até evocar uma verdadeira cavalgada, o que não impede o compositor de manter, no meio dessa heróica e pomposa evocação, a doçura de expressão e até uma certa graça que vem contrastar com o tema de dança dessa espécie de rondó. A característica marcante dessa “Sinfonia Pianística” é talvez o fato do piano ser posto em oposição à orquestra, retomando e desenvolvendo os seus temas, como se tratasse de um elemento de natureza inteiramente diferente, encerrando-se essa grandiosa obra-prima, num final deslumbrante e do mais alto efeito virtuosístico. Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1943 114 BEETHOVEN SONATA OPUS 78, EM FÁ SUSTENIDO MAIOR 1º Tempo Apesar de não ser incluída entre as prediletas do grande público, a Sonata op. 78, em Fá Sustenido Maior, escrita por Beethoven em 1809, era muito apreciada pelo próprio compositor, que dizia a Czerny: “Fala-se muito da Sonata em Dó Sustenido Menor (a que chamamos hoje impropriamente, aliás, de “Sonata ao Luar”). Escrevi, entretanto, melhor do que isso. Assim, a Sonata em Fá Sustenido Maior é outra coisa”. Se é indiscutível que esta composição iguala em beleza e encanto as mais célebres entre as trinta e duas obras-primas que constituem essa incomparável coletânea, o fato permanece que o seu caráter é completamente íntimo, como em certas peças de Schumann, que não deveriam ser ouvidas nas grandes salas de concerto, mas, antes, “sentidas” na intimidade. Ao ouvir o primeiro movimento, cheio de ternura, e até de certa ingenuidade, movimento que deve ser executado na expressão mais “cantabile” que seja possível atingir no teclado, já se percebe que esta obra é o reflexo da intelectualidade e do pensamento beethoveniano, antes do que uma verdadeira expansão do gênio do autor. Longe de captar a atenção pelos ímpetos brilhantes e apaixonados, esta música nos comove pela quietude que dimana da tonalidade igual e delicada, característica desta primeira parte. Quem negará a beleza da frase inicial, desse “Adágio”, concretizada pelo genial compositor, em quatro compassos apenas, os quais não mais aparecerão no decurso da obra, que constituem, porém, tão melódico prelúdio à terna e pura atmosfera do “Allegro”, e ao seu primeiro tema, quase lírico e tão profundamente expressivo. O segundo tema do “Allegro”, que deve ser tocado num tempo discretamente rubato, pode ser comparado pela suavidade do início, ao som de uma flauta longínqua, animando-se todavia com os arabescos de um elemento já ouvido anteriormente, e deixando perceber na atmosfera, certa ameaça de perturbação. Essa aparente agitação logo vem se desfazer, aliás, com a reexposição dos temas iniciais. Hans von Büllow, que revisou e comentou todas as sonatas de Beethoven, costumava dizer aos seus alunos: “Só é capaz de executar dignamente a Sonata op. 78 o intérprete respeitoso do andamento que sabe ao mesmo tempo dominar um perfeito tempo rubato”. Sendo a execução de hoje a cargo da senhorita Eliane Carvalho de Azevedo, limitada à primeira parte dessa Sonata, reservo para outra oportunidade, que espero nos será dada em breve, falar-vos do segundo movimento dessa Sonata, que é uma espécie de rondó, no qual alternam o humor, a alegria, o espírito faiscante e a fantasia, e que se encerra numa brilhante e felicíssima expansão. 115 É primeira parte dessa Sonata, que ouviremos agora, na interpretação da senhorita Eliane Carvalho de Azevedo. Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1943 116 BEETHOVEN SONATA OP. 81 “O ADEUS, A AUSÊNCIA, O RETORNO” Beethoven, como verdadeiro Titã da música, abarcou todos os gêneros, com essa personalidade bem característica de cada uma das suas obras, e com essa faculdade extraordinária que ele possuía de ser sempre diferente, ficando, porém, sempre ele mesmo. Para só falar da sua música de piano, temos disso uma prova irrefutável com as trinta e duas sonatas, todas irmãs, porém de uma tal diversidade, tanto no espírito como na forma. A “Appasionata”, tão característica da impetuosidade e da paixão tempestuosa levada até o seu paroxismo; a Sonata op. 53, chamada erroneamente de “Aurora”, tão cheia de frescura e de mistério; a sonata op. 27 n.º 2, que uma tradição igualmente errada costuma designar sob o nome de “Luar”, e que o próprio Beethoven intitulou: “Quasi una Fantasia”; a comovedora Opus 110, sem dedicatória nenhuma, talvez porque o genial compositor podia só dedicar a si próprio essa transposição sonora da mais íntima convulsão da sua vida; a Sonata op. 111, cuja potência de expressão dramática é precursora do estilo wagneriano, etc. etc. todas imbuídas dessa genialidade, desse poder emotivo e convincente que foram raramente igualados, sobretudo na forma musical, sempre um pouco severa, da sonata. (texto incompleto) 117 BEETHOVEN SONATA OP. 27, N.º 2 Chamada erroneamente de “Sonata ao Luar”, sendo este apenas um cognome, dado depois da morte de Beethoven que nada tem que ver com os sentimentos que inspiraram essa obra. A única precisão que possuímos a respeito dessa Sonata é a dedicatória: À Giulietta Guicciardi, por quem Beethoven estava profundamente apaixonado. Escrita em 1801, isto é, cinco anos após a aparição dos primeiros sintomas de surdez, essa sonata é o reflexo por um lado da angústia do compositor diante dos progressos da sua enfermidade, por outro, das alternativas de angústia, esperança, revolta, ternura e desespero, que lhe inspirou seu amor por Giulietta. Escrita ao mesmo tempo que o célebre Testamento de Heilgeistadt, essa Sonata nos revela, numa forma muito rica e com linguagem veemente e significativa, os sentimentos que agitavam a alma de Beethoven, antes do imenso, ..................................................................... Como já disse além da, já marcada e anunciada para amanhã, sábado incluirão a audição de mais uma participante da seção de arte vocal e, na seção de piano a execução do Prelúdio, Ária e Final, de César Franck, do Concerto n.º 5 de Beethoven, para piano e orquestra, do Concerto em Mi Bemol Maior, para piano orquestra de Liszt e, ainda, a análise interpretativa da sonata “Appassionata” de Beethoven. (Texto incompleto) 118 BEETHOVEN SONATA OP. 53 “AURORA” A Sonata op. 53 de Beethoven, chamada “Aurora”, foi escrita em 1804. Foi dedicada ao Conde Waldstein, seu protetor desde os tempos de Bonn. É clara, arejada e cheia de sol como os campos que Beethoven tanto gostava percorrer a longos e rápidos passos, é um passeio pelo teclado do qual extrai escalas e arpejos vividos como um coração que contempla avidamente a natureza. É a admirável glorificação do tom de dó maior branco como a bruma fina da Aurora. No primeiro trecho, “Allegro con Brio”, dois temas contrastam vivamente – o primeiro, algo agitado, um pouco misterioso, com as surdas percussões no grave, vai-se pouco a pouco se iluminando. O dia nascente afirma-se belo, radioso. O seguinte tema, calmo e meditativo, apoiado em largas harmonias, surge na claridade ensolarada de mi maior. A essa primeira parte segue uma curta “Introdução” ao “Rondó Final”. Desde o início, com a primeira oitava na mão esquerda, essa introdução nos mergulha em pleno mistério. Há um frêmito interior, uma emoção contida nas pausas da mão direita, que não podem ser descritas, só podemos senti-los como um belo e nostálgico canto de violoncelo – mas logo o mistério lhe apaga a voz e no grave começa a lenta descida para a harmonia que prepara a entrada do “Rondó”. Este último trecho “Allegretto Moderato” cheio de fantasia, colorido movimento e vida, não consegue esconder o sentimento interior e latente que o anima. Para cantar a natureza em festa, Beethoven não fez mais do que ouvir o seu próprio coração. 119 BEETHOVEN SONATA OP. 31 N.º 2 COMENTÁRIOS A Sonata op. 31 nº 2, que a senhorita Vera Cruz Piautznauer vai interpretar, é um dos mais belos e mais perfeitos poemas que Beethoven tenha concebido. Ele próprio dedicava a esta obra particular estima e considerou-a, muito tempo, entre todas as suas Sonatas como a sua melhor realização. A primeira parte sugere ao nosso espírito um drama interior, entrecortado por pontos de interrogação, dos quais emana uma atmosfera misteriosa sempre interrompida pelo destino inexorável, o qual, apesar das súplicas, segue o seu rumo, semeando, até o fim, a desolação. Segue, como segunda parte, um dos mais nobres e dos mais elevados “adágios” beethovenianos. Esta peça exala (irradia) um perfeito sentimento de calma e de paz, que traz com certeza, pelo menos momentaneamente, a serenidade na alma dolorosa do pobre Beethoven, sempre tempestuoso ou perturbado. Para o final, Beethoven serviu-se do tema de uma sua melodia intitulada Für Elise. Este final se desenvolve um pouco como um moto perpétuo, prestando essa continuidade rítmica a cometer um gravíssimo erro ao qual não escapam até grandes pianistas, que tocam esse “Allegretto” como se fosse um “Presto” e sem nenhuma intenção musical. Esta concepção dá a impressão de se ouvir apenas um estudo de técnica, produzindo assim um efeito desastroso, e vai inteiramente contra a vontade de Beethoven, o qual, repito, inscreveu “Allegretto” o que permite cantar a frase inicial desse desenho tão encantador. 120 BEETHOVEN SONATA OP. 90 EM MI MENOR Após a “Sonata do Adeus”, op. 81, escrita em 1810, que era a vigésima sexta, dessa prodigiosa série de obras-primas pianísticas, Beethoven se dedicou durante quatro anos, sobretudo à composição de música sinfônica e música de câmara, sendo desse período (de 1810 a 1814) a sétima e a oitava sinfonias, Egmont, a Sonata para piano e violoncelo op. 96, o Quarteto nº 11 e vários Lieder. A Sonata op. 90, em Mi Menor, inscrita nas execuções de hoje, foi composta em 1814, ano em que Beethoven dividia a sua existência entre Viena, onde passava o inverno e a estação de águas, onde, em meio a tratamentos e cuidados médicos, compunha sempre em contato estreito com a natureza. Publicada um ano mais tarde, essa Sonata, dedicada ao Conde Maurício Lichnowski, foi considerada durante certo tempo como uma das obras mais originais do Mestre de Bonn. Schindler, um dos mais íntimos amigos do compositor, dizia que Beethoven tinha dado ao primeiro tempo o título: “Combate entre a cabeça e o coração”, e ao segunda e último tempo: “Conversa com a bem-amada”. Sabemos todos quanto contrária ao temperamento e ao gênio beethoveniano era a concepção de uma música descritiva ou música com programa, fato que nos é comprovado pela ausência de título na quase totalidade da sua produção. O acontecimento pessoal, o fato ocorrido eram apenas pretexto ou causa psicológica da inspiração, libertando-se logo das contingências objetivas, para se desenvolver no plano superior da criação artística. Isso não impede, porém, que certos musicólogos admitam, nesta sonata, a predominância da forma poética sobre a musical, revelada na limitação dos tempos reduzidos a dois, e considerem o desfecho em tom maior como significativo de uma história que acaba bem. No primeiro tempo, a exposição do primeiro tema se assinala pelo esplêndido equilíbrio obtido, apesar da poderosa força dos contrastes e da vivacidade com a qual essa obra deve ser tocada, conforme o indica o próprio Beethoven. Por meio de novos contrastes, chegamos a um segundo tema, de caráter tão melancólico que Anton Rubinstein dizia: “cada nota dessa passagem deve ser uma lágrima!”. Acentuando a poesia com uma rica disposição do acompanhamento da mão esquerda, o compositor consegue, contudo, manter em todo esse primeiro movimento, a elegância aristocrática bem de acordo com a extirpe do Conde Lichnowski, que essa obra era destinada a homenagear. O segundo tempo, em mi maior, o qual, segundo Beethoven, deve ser tocado sem apressar e bem cantante, contém, a meu ver, uma das páginas mais melódicas de toda a produção do grande mestre do classicismo, página da qual dimana a mais serena felicidade que a música possa expressar. 121 A extraordinária beleza do refrão cheio de ternura, quietude e confiança no destino, só pode corresponder às ressonâncias de um coração feliz, o que vem nos confirmar que, apesar da sua enfermidade, apesar dos seus terríveis sofrimentos físicos e morais, Beethoven conseguia às vezes encontrar a felicidade e cantá-la numa expansão de lírica ternura, para doá-la aos seus contemporâneos e às sucessivas gerações que prestam desde então, incondicional homenagem à sua prestigiosa memória. É essa Sonata, verdadeira imagem da vida, com suas alternativas de luta e de alegria, que ouviremos agora, na interpretação da senhorita Lygia Coelho Messeder. 122 BEETHOVEN SONATA OP. 90, EM MI MENOR COMENTÁRIOS A Sonata em Mi Menor op. 90 é a precursora do grandioso ciclo das últimas cinco sonatas, tendo a particularidade de ser só em dois tempos. O primeiro tempo se desenvolve em forma tradicional, porém com uma tal multiplicidade de acento e de sentimentos humanos, de coloridos e timbre tão variados que vem a ser uma realização mais orquestral do que pianística. Energia viva e resignação tranqüila, força e serenidade se enlaçam nesta peça, cujo caráter é aliás indicado com a maior nitidez pelo próprio Beethoven: “com vivacidade e sempre com sentimento e expressão”. A senhorita Menininha Lobo vai certamente nos dar uma fiel execução deste preceito. O tema da segunda e última parte é um dos mais suaves, melódicos e encantadores que se possa imaginar; singelo como uma canção popular, porém requintado ao máximo. Em toda esta peça planam uma frescura, uma candura e um pudor de sentimentos que podem facilmente, se não forem bem compreendidos e executados, trazer certa monotonia, o que com certeza não será o caso com a senhorita Lobo. 123 BEETHOVEN SONATA OP. 57 1º MOVIMENTO - ALLEGRO ASSAI A sonata surge como uma aparição misteriosa e fantasmagórica, que se aproximando com ar interrogativo para criar, logo no princípio, esse ambiente de enigma, que deixa o ouvinte perplexo a respeito do que vai acontecer, afirmando-se, com a repetição da pergunta, o mistério que dimana dessa introdução, envolta no entanto de grandiosa majestade: Exemplo 1 Desde os primeiros compassos do “Allegro”, surge um apelo, obtido com a repetição de três notas iguais, seguidas de uma nota diferente - neste caso, de 3 ré bemóis e um dó. Este apelo lembra, até um certo ponto, a evocação do “Destino que bate à nossa porta” imortalizada pelo mesmo Beethoven na sua Quinta Sinfonia. No caso da “Sonata Apassionata” eis o chamamento do Destino, cuja repetição é o preâmbulo dos graves acontecimentos e das dramáticas e tempestuosas manifestações que seguirão: Exemplo 2 Após essa irriquieta introdução, irrompe o primeiro elemento da tempestade, isto é, da violenta agitação que vem perturbando a alma do compositor: Exemplo 3 Essa inquietação é momentaneamente contida. A reexposição do tema num dramático e abstrato desenvolvimento abrange a essência da dúvida, do sofrimento, do desespero humano, através das expansões desse poderoso gênio. É mister evitar, nessa afirmação da idéia inicial, qualquer modificação de ritmo, não havendo motivo para precipitar esses acordes, como se se tratasse de um andamento diferente. Ouvimos comumente: Exemplo 4 em vez do que está escrito, isto é: Exemplo 5 A modulação que segue tem por finalidade preparar a entrada da segunda idéia desta Sonata, transmitindo-nos uma sucessão de acentos angustiosos, agitados, pungentes, que o autor procura reprimir, ou pelo menos acalmar, num expressivo rallentando: 124 Exemplo 6 Aqui nasce a segunda idéia, que não é outra coisa senão a intervenção do primeiro tema, exposto desta vez na tonalidade de lá bemol maior, o que nos incitaria a evocar o nobre Próspero, da Tempestade de Shakespeare, numa expansão mais serena e acolhedora: Exemplo 7 Essa impressão de serenidade deve ser obtida sem prejudicar a unidade de conjunto, procurando o intérprete para esse fim, tocar “expressivo”, com tranqüila doçura, sem se deixar ir, no entanto, a um andamento por demais vagaroso. Essa quietude terá, aliás, de curta duração, sendo logo entrecortada por expressiva e dolorosa inflexão que parece quase uma lamentação: Exemplo 8 À significativa descida que prolonga o doloroso apelo dos trinados, segue-se a apresentação de novo tema, em lá bemol maior, que suscita na nossa mente, a visão do monstruoso Caliban, encarnação das forças do mal, que vem provocar violenta tempestade na alma do nobre duque. Sombrio, de caráter hostil e quase agressivo, este tema deve ser tocado num ritmo inexorável, alcançandose, assim, uma evocação de extraordinária potência: Exemplo 9 A essa tumultuosa agitação, sucedem dois compassos de transição em que o compositor parece meditar, resolvendo afinal recorrer novamente à exposição do primeiro tema, desta vez em mi maior: Exemplo 10 Este o leva a um desenvolvimento que conduz à re-exposição da frase tão expressiva, a própria imagem da resignação, oferecida agora no meio de um conjunto de perturbadoras modulações: Exemplo 11 A tempestade que ferve neste coração angustiado chega ao auge do desespero e irrompe com temível violência, sem conseguir, entretanto, apagar os repetidos apelos de um destino implacável, evocados com rara maestria por uma sucessão de rés, tocados fortissimo: Exemplo 12 Chegamos assim, após novas exposições e desenvolvimento de temas já conhecidos, ao ponto culminante dessa dramática evocação, dessa tempestade da alma que o compositor consegue transpor com fogosa e persuasiva eloqüência: Exemplo 13 125 Aqui, o apelo do Destino se faz ouvir novamente, num rallentando que deve ser cuidadosamente graduado. Exemplo 14 Desse ambiente de tensa expectativa é que surge, então, um último e estrondoso chamado que vem afirmar a vitória decisiva do destino. Esse grito de gloriosa conquista inicia uma peroração admirável, que nos levará ainda ao paroxismo deste conflito antes da dramática evocação final. É, pois, num último e impetuoso crescendo, no qual as fracas veleidades humanas ficam aniquiladas pela invencível fatalidade, que Beethoven encerra essa primeira parte da Sonata, arrastando os seus personagens nas profundezas do nada: Exemplo 15 2º MOVIMENTO - ANDANTE CON MOTO O tempo escasso de que dispomos hoje me obriga a limitar esta parte da minha análise às linhas essenciais. Se alguns virtuoses costumam interpretar a Primeira Parte e o Final desta sonata num andamento demasiadamente rápido, eles caem, freqüentemente, no excesso contrário, ao interpretarem o “Andante”, acreditando que este deve ser tocado muito vagarosamente. A indicação do próprio autor, “Andante con Moto”, deveria ser entretanto ser encarada como uma advertência destinada a evitar excessiva rigidez na conservação do andamento e autorizando uma imperceptível aceleração na segunda variação para chegarmos a uma aceleração mais aparente, na terceira variação. O que o intérprete deve evitar, em absoluto, é introduzir, nesses vários períodos, qualquer elemento incompatível com a serenidade contemplativa, característica essencial desta segunda parte. Procuraremos, pois, manter em todo esse segundo movimento, o caráter meditativo e a atmosfera, quase religiosa, de quietude e de paz, que envolve uma alma consolada. Se o compositor pretende associar a este Andante a figura do duque Próspero, assistimos aqui à fase da feérica lenda, em que todas as paixões se acham subjugadas, conforme o vem comprovar esta primeira frase, digna e estática. Exemplo 1 A primeira variação deve ser interpretada num andamento idêntico ao do tema. Exemplo 2 Na segunda variação, o tema deve aparecer nitidamente na mão direita, enquanto a melodia, confiada à mão esquerda, evocará as sonoridades de um belo violoncelo. 126 Exemplo 3 O “Andante” encerra-se com dois maravilhosos acordes: o primeiro, misterioso e calmo, tal a superfície do oceano após a tempestade; o segundo, poderoso, mas também interrogativo, tal um grito angustiado, deixando prever que era efêmera a serenidade expressa pelo Andante, e que o Final nos colocará novamente no clima dramático. Exemplo 4 III - ALLEGRO MA NON TROPPO Hans von Büllow costumava dizer aos virtuoses que atacavam este movimento com excessiva velocidade que não se tratava de um exercício de ginástica, mas sim uma composição musical embebida de paixão, possivelmente concebida durante uma tempestade noturna. A impetuosidade desse "Alegro", que foi aliás escrito por Beethoven, antes das outras partes da Sonata, justifica a narração de Ries, segundo o qual, durante longo passeio, o mestre cantava e gritava coisas incoerentes, voltando à casa em seguida para se por ao piano e submeter, durante duas horas, o instrumento à rude prova da primeira versão deste final. Eis o início arrebatador, dessa tempestade da alma, admiravelmente transposta no plano sonoro: Exemplo 1 Apesar do patetismo dos elementos desencadeados, dos vagalhões furiosos, do estrondo do trovão e outras empolgantes manifestações da natureza que servem para evocar toda a tragédia de um coração ferido e que o intérprete procurará exteriorizar com o mais convincente realismo, esse tumulto não pode ser inspirado, exclusivamente, pelo efeito rítmico e virtuosístico. No meio deste ambiente eletrizado, devem sobressair os acentos vibrantes e dolorosos, que se erguem para concretizar, logo no início, o elemento expressivo deste final: Exemplo 2 Inicia-se aqui o desenvolvimento da frase que acabo de tocar, após o que ouvimos comovedores gemidos. Exemplo 3 Seguem-se várias peripécias, após as quais chegamos a um novo tema que deve ser tocado expressivamente e, logo depois, em oitavas, ostentar certa fúria: Exemplo 4 Com a mesma fúria selvagem transbordam os elementos e as paixões, inclusive os realísticos acentos de um riso sarcástico obtido por meio de espécie de trinados de efeito realmente demoníaco. 127 Exemplo 5 O “Presto”, que vem findar a “Sonata Apassionata”, com toda a dramática potência que o executante é capaz de tirar do piano, é uma verdadeira orgia sonora evocadora das antigas e frenéticas correrias das “baccantes”, transpostas no plano do classicismo musical. As bacantes eram, como sabeis, sacerdotisas do deus Baco, que, na época das celebrações da primavera, costumavam correr, numa disparada endiabrada, através as ruas da Roma antiga, de cabeça cingida de hera, cantando, de tirso na mão, dançando, e enchendo a cidade com seus gritos discordantes. Os dois primeiros acordes dessa satânica bacanal devem ser tocados fortíssimo, e retidos a fim de criar a impressão de que um peso enorme os agarra ao solo. Exemplo 6 As trepidantes inflexões das colcheias, evocadoras dessa frenética procissão de bacantes, devem, pelo contrário, ser tocadas piano e, apesar do ritmo acelerado, com suficiente clareza a fim de que os penetrantes e convulsivos acordes sejam integralmente ouvidos. Exemplo 7 Chegamos, agora, aos derradeiros ímpetos dessa exaltação, aos últimos sobressaltos dessa grandiosa evocação. Exemplo 8 Três notas apenas, dó, fá, lá, repetidas quatro vezes na mão esquerda e entrecortadas de outra sucessão de duas notas, são o suficiente, nessa vertiginosa peroração, para Beethoven nos afirmar, com incisiva segurança, a inelutável soberania do pensamento. Nessa decisiva afirmação, o dó e o fá da mão esquerda revestem-se de primordial importância e devem ser assinalados com devida ênfase; as primeiras vezes o intérprete procurará evocar o som vitorioso de trombetas e no fim como se fossem emitidos por graves tímbalos destinados a marcar o encerramento dessa luta épica, entre o orgulho e a aflição, bem como os últimos clamores angustiosos, que nos levarão ao cume dessa trágica confissão. Exemplo 9 E, do mesmo modo que o compositor infeliz e torturado conseguirá, no fim da sua gloriosa carreira, celebrar a alegria com a sua famosa Nona Sinfonia, Beethoven encerra aqui a sonata “Apassionata”, com essa impressionante exteriorização da vitória do espírito, nessa luta incessante que o deixou cada vez mais pobre e mais doente, porém sempre vencedor, vencedor da mediocridade, vencedor do sofrimento e também, até um certo ponto, vencedor do seu próprio destino! 128 ROBERT SCHUMANN SONATA OPUS 11, EM FÁ SUSTENIDO MENOR 1. PRELEÇÃO Schumann adorava Clara Wieck, a qual, por seu lado, retribuía carinhosamente esta grande paixão. Ele poderia, pois, ser muito feliz! Sim, muito feliz, se não fosse o pai dela, que era ao mesmo tempo o professor do jovem músico. O senhor Frederico Wieck, orgulhoso de ter uma filha tão linda, tão moça – ela tinha apenas 15 anos naquela época – aclamada como um verdadeiro prodígio e já considerada pelos seus dotes excepcionais como sendo uma grande artista, não achava digno de tão maravilhoso conjunto de talentos e possibilidades um simples compositor, apenas um principiante nessa ingrata e árdua carreira, e que era aliás, mais conhecido como jornalista. E o professor Wieck, em absoluto, não gostava de jornalistas! Ele fez então, a partir do dia em que Schumann teve a ousadia de pedir Clara em casamento, todo o seu possível e até o impossível para contrariar e impedir essa união, despercebendo que sua vaidade e sua teimosia eram suscetíveis de comprometer a felicidade de dois seres escolhidos pelo destino para se compreenderem e se amarem, conforme os acontecimentos que seguiram vieram confirmar. Na realidade, Schumann ajudou o destino até certo ponto. Convém efetivamente lembrar aqui que o compositor, entusiasmado pelas invulgares capacidades da famosa jovem, que aos seis anos já cantava e tocava piano e violino, realizando aos treze anos inesquecível execução de uma das suas primeiras obras Papillons, resolveu estudar com o professor Wieck, mormente com o fim de se aproximar da sua encantadora filha. Efetivamente, Schumann se convencera, desde o seu primeiro encontro com Clara, que seria ela a companheira ideal da sua existência de artista, e é fácil compreender que a obstinação do pai tenha apenas estimulado seu ardoroso desejo de conquistála para sempre. Forçado pelos seus pais a cursar direito, apesar da sua evidente vocação musical, Schumann, acumulando os estudos literários e a composição, conseguiu obter o título de Doutor em Filosofia da Universidade de Iena, certo que essa alta distinção reservada aos músicos que já alcançaram a notoriedade venceria a pertinácia do seu mestre. Ele ignorava, porém, que Wieck tinha outra importante razão para justificar sua atitude: Wieck sabia que a saúde do jovem compositor era abalada por certas perturbações de origem nervosa, que a irmã de Schumann morrera aos vinte anos em conseqüência de graves desordens mentais, e que o fato do autor, já célebre, do Carnaval, e de outras obras-primas ter assegurado sua situação material não era suficiente para que escapasse a tão perigoso atavismo. Foi assim que se passaram cinco anos, durante os quais Clara usou, em vão, todos os argumentos ao seu alcance, súplicas, carinho, desespero e até ameaças, sem conseguir todavia que o seu pai abandonasse sua intransigente atitude. Nesse período, Schumann, passando por alternativas de terrível abatimento e transbordante entusiasmo, prosseguia numa carreira que, apesar do seu trágico e prematuro desfecho, aos quarenta e seis anos do genial autor, 129 devia se assinalar como uma das mais fecundas e originais de todo o romantismo musical. Após essa demorada espera, Robert Schumann e Clara Wieck, incapazes de se conformar com tão dolorosa separação, acabaram casando, a despeito da oposição paterna, tendo o casal recorrido para esse fim à Corte Real de Leipzig, a qual julgou imprópria e injustificável a recusa do professor Wieck, e autorizou o casamento, exatamente na véspera do dia em que Clara completava seus vinte e um anos. Se as trágicas ocorrências que marcaram a existência de Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelssohn ou Chopin, entre tantos outros, incentivaram até certo ponto as prodigiosas realizações desses ilustres protagonistas da arte musical, do mesmo modo, o temporário e inevitável afastamento da eleita do seu coração e os esforços necessitados pela concretização do seu ambicioso projeto criaram no espírito de Schumann, levado ao seu paroxismo por agudíssima e exaltada sensibilidade, o ambiente propício à atividade criadora, conforme ele mesmo confessou, numa carta ao seu amigo Dorn: “Minha música, escrevia o grande autor romântico, não pode deixar de ser impregnada de todas as lutas que me custou a conquista da minha Clara querida”. Foi o desejo de manifestar com maior clareza os sentimentos apaixonados que jorravam da sua alma e de revelar a todos a beata felicidade que ia brevemente alcançar que o levou a acrescentar eloqüentes palavras à sua música. Daí nasceram as 138 melodias escritas no ano que precedeu o seu casamento, que são entre os mais maravilhosos cantos de amor, e dos quais dimana tão vibrante e profundo lirismo, matizado de vez em quando pela nostalgia e as melancólicas visões do seu espírito atormentado. Numa carta, escrita à sua cunhada Teresa, encontramos outra frase significativa da sua confiança no futuro, apesar de todas as vicissitudes: “Não posso lhe dizer, escrevia Schumann, que nobre criatura é a minha noiva! Ela é, sem dúvida, única entre todas, e une tantas virtudes que não me sinto realmente digno dela. Estou convencido, no entanto, que torná-la-ei feliz ... Não lhe falarei mais nela, já que sentimentos tão profundos não podem ser traduzidos com palavras… ”. Cartas como estas são, aliás, bastante raras. Longe de procurar impressionar sua noiva com ardorosas declarações e frases banais ou frívolas, como é a regra quase universal entre namorados, Schumann confiou ao piano as expansões às vezes estranhas, porém sempre sinceras e espontâneas, reveladoras de uma inesgotável fantasia, dos ímpetos de um desejo indomado, e também de uma mórbida languidez, aliada ao mais intenso amor da natureza, sendo todos esses sentimentos imbuídos do notável senso poético, distintivo da maioria das suas composições. Felizmente para a música, as cartas de amor que Schumann não conseguiu escrever a Clara Wieck foram substituídas, tanto durante este período de angustiosa espera e penosos sacrifícios, quanto nos anos que seguiram, por admiráveis obras-primas das quais o piano veio a ser o fiel e prestigioso confidente. Foi assim que nasceram logo após as primeiras tentativas junto ao inexorável professor, o famoso Carnaval op. 9 – que já tive a oportunidade de analisar numa destas aulas, e também há dois anos, numa Conferência Musical promovida pela Cultura Artística do Rio de Janeiro –, os Seis Estudos de 130 Concerto sobre os Caprichos de Paganini, que formam o opus 10, e a grande Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, ao estudo da qual será reservada toda a segunda parte desta preleção. Dentre o imponente conjunto de composições oriundas de uma separação que se revelou tão fecunda para o repertório pianístico, e escritas todas do memorável julgamento da Corte de Leipzig, em 1840, citar-vos-ei ainda: os Fantasiestücke, em que se sucedem o mistério, a nostalgia, a ternura através as mais harmoniosas e fantásticas evocações; a Sonata para Piano, em fá menor, que o próprio autor denominou Concerto sem Orquestra, as Cenas Infantis, que deixaram os críticos daquela época pasmos diante da rara maestria do autor, que não tinha ainda 25 anos e criou com essa obra em gênero inteiramente novo; Kreisleriana, cujo título foi escolhido em homenagem ao herói de Hoffmann, o mestre de capela de Kreisler, e que nos transmite na realidade, os ecos dos mais vibrantes gritos de amor; a Fantasia, em Dó Maior (para piano), que revela a dupla preocupação poética e impressionista, do compositor, que superpõe ao frenético desenvolvimento da sua inspiração uma religiosa, sombria e vagarosa interpretação do tema inicial, como uma majestosa prece que passaria entre dois delírios; Humoresque, a respeito da qual Schumann contava a Clara: “Passei a semana inteira sentado ao piano, e compus essa obra, rindo e chorando, quase ao mesmo tempo”, as oito Novelletes, os Noturnos e Blumenstück, que refletem a genialidade lírica, tão característica do singular autor romântico, e constituem uma espécie de autobiografia psíquica, em que alternam a ternura, um irresistível poder magnético, e um sublime ardor; a Sonata para Piano, em Sol Menor dominada pela intensidade do pensamento, pelo ritmo complexo e riquíssimo, e a arte da mais elevada e poética improvisação, os Três Romances, Arabesco e essa deslumbrante revelação, intitulada Carnaval de Viena, surpreendente poema pianístico, em que a riqueza dos timbres ultrapassa o instrumento, ao ponto de se transformar numa cintilante e fogosa orquestração. Se nos compenetramos do fato quase inacreditável que toda essa prodigiosa música, cuja enumeração é forçosamente incompleta, foi escrita em menos de seis anos, entre os 19 e os 25 anos do compositor, não podemos deixar de avaliar quanto esse amor contrariado se revelou fecundo para toda a história do romantismo musical, tendo Robert Schumann, graças à sua sensibilidade exacerbada, e através suas geniais expansões, conseguido converter em jorros de melodia as tumultuosas aspirações da sua fervorosa natureza. Tendo-vos esboçado as circunstâncias que suscitaram, entre 1835 e 1840, a composição de tantas obras-primas, e a criação de um gênero de música inigualado desde então, falar-vos-ei agora, de maneira pormenorizada da Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, escrita no início daquele período, e dedicada, naturalmente à senhorita Clara Wieck. Não vejo introdução mais adequada a este estudo do que a opinião expressada por Franz Liszt, na Gazeta Musical de Leipzig, no ano que se seguiu à publicação dessa obra, isto é, em 1836. “As composições de Schumann”, dizia o imortal criador do poema sinfônico, “pertencem a essa categoria de obras-primas, que ficam escondidas na sombra, às vezes durante muito tempo, e até que sua beleza, encoberta por misterioso véu, venha a ser revelada, aos que as estudam com olho atento, carinho e amor”. 131 É talvez por essa razão que o comum dos mortais passa friamente ao lado de uma grandiosa criação artística, sem perceber a gloriosa mensagem que ela é destinada a nos transmitir, como é, por exemplo, o caso da Sonata em Fá Sustenido Menor, cuja individualidade, cujo encanto e cuja novidade na expressão nem sempre foram avaliados tanto quanto mereciam, tendo essa admirável composição levado muitos anos antes de ser verdadeiramente compreendida e antes de alcançar a popularidade que granjeia hoje em dia. Não esqueçamos que a “forma de sonata”, oriunda da antiga Suíte de Danças, atingiria com Beethoven à sua expressão mais universal, levada pela arte do divino surdo ao apogeu do seu evocador. Após esse incontestado reinado, todavia, os românticos ainda conseguiram enriquecer esse gênero musical com um elemento bastante novo. Efetivamente, apesar de respeitarem integralmente o plano geral, eles introduziram na Sonata a “sensibilidade pessoal”, elevando-a ao grau de confidente das suas íntimas emoções, sob seus sonhos e das mais secretas aspirações. Se o Romantismo foi apenas uma época, na prodigiosa história da arte universal, pode-se afirmar, no entanto, que esse grande movimento foi, antes de tudo, no plano musical, o meio mais convincente de expressão do individualismo. Foi esse individualismo, ampliado pelos recursos novos, diversos e poderosos, postos ao alcance dos compositores, após a descoberta e o aperfeiçoamento do pianoforte, que permitiu aos protagonistas da época romântica dar um aspecto quase tangível às diversas exteriorizações do seu pensamento, as quais podiam, agora, ser expressadas com maior intensidade e de modo mais integral. É esse mesmo individualismo curvado pelo gênio schumanniano às exigências da técnica, e às regras estabelecidas, porém sem prejudicar a atmosfera de poesia em que se acha envolvida, que constitui a particularidade dominante da Sonata op. 11, uma das mais notáveis produções de todo o repertório pianístico. Esta sonata foi apresentada ao público, sob os auspícios de dois personagens que desempenham, em toda a produção literária e musical schumanniana, papel tão importante que a análise desta sonata seria incompleta sem algumas palavras a seu respeito. Trata-se neste caso, de personagens puramente alegóricos e fictícios, criados pelo espírito inventivo e a fantasia do compositor, no início das usas atividades como crítico musical em Leipzig, e conhecidos, respectivamente, sob nome de Eusebius e Florestan. Dentre vós, os que conhecem o grande Carnaval de Schumann, e assistiram à minha análise dessa obra, devem certamente se lembrar desses dois simpáticos senhores, magistralmente evocados nessa cintilante fantasia, o primeiro por um melancólico adágio, e, o segundo, por uma música tumultuosa. Sabemos, pois, que esses dois personagens nasceram na época em que Robert Schumann, desejoso de dar um novo rumo à crítica musical da sua terra, e de focalizar toda a poesia e o significado estético da música romântica, criou a sociedade imaginária dos Davidsbündler, em nome da qual foram lançadas, na Gazeta Musical que ele dirigia, as mais veementes críticas contra 132 os Filisteus, denominação que reunia os seus contemporâneos que Schumann e seus colegas consideravam como inimigos do progresso e da verdadeira arte. Desde o princípio da sua carreira, Schumann sentira quanto as diversas facetas da sua própria natureza reagiam de maneira variável, diante do mesmo indivíduo, da mesma obra de arte, ou do mesmo pensamento, filosófico ou amoroso, e foi com o objetivo de expressar toda essa diversidade de emoções, com amor liberdade e exatidão, que ele inventou um grupo inteiro de personalidades, para atuarem como membros da sua sociedade imaginária, e das quais se destacavam dois tipos nitidamente opostos: Eusebius, concretização da sua índole sonhadora, melancólica e sentimental, e Florestan, que personificava o lado impulsivo, apaixonado e humorístico do seu próprio caráter. Quando a Sonata op. 11 foi executada pela primeira vez, os que ignoravam a existência desses dois personagens, surgidos da fantasia de um cérebro em que a excentricidade alternava com o mais íntimo sentimento poético, não conseguiram captar logo no início como sendo envolvida de certo mistério. Como podereis constatar, nosso conhecimento do nostálgico Eusebius e do tempestuoso Florestan se revelará de um valioso auxílio na nossa tarefa de desvendar esse pretenso mistério, e focalizar toda a beleza, a unidade e a potência significativas dessa composição, que marca indiscutivelmente uma data histórica em toda a evolução da Sonata, desde Kuhnau e Filipe Emmanuel Bach, até Ravel, Paul Dukas e os mestres contemporâneos. 2. ANÁLISE AO PIANO A Sonata em Fá Sustenido Menor, que estudaremos agora de modo sistemático, mormente sob o ponto de vista da interpretação, consta de quatro tempos: 1. Allegro Vivace, precedido de uma breve introdução; 2. Ária; 3. Scherzo – Intermezzo; 4. Final. 1. Allegro Vivace Os primeiros compassos da “Introdução” são de caráter solene e altamente expressivo, colocando-nos imediatamente numa atmosfera de intensa emotividade. Este início se assinala, a meu ver, por interessante particularidade da sua escritura musical; o canto, confiado em primeiro lugar à mão direita, e um pouco mais longe à mão esquerda, permanece em ambos os casos, apoiado sobre um movimento balançando da outra mão, evocando, desse modo, o verdadeiro estado de alma do autor. Com efeito, enquanto uma das mãos afirma a inabalável vontade e o ardoroso desejo do compositor, anunciando o tema com profunda e comovedora expressão, as flutuações da outra mão são o reflexo da incerteza e das dúvidas que agitavam a sua alma. 133 Sentimos desde o princípio a presença de Eusebius, sendo a poderosa intensidade revelada na apresentação da sua imagem inicial, obtida graças à maravilhosa precisão do desenho rítmico. Eis o solene e grandioso início dessa Introdução. Exemplo 1 O elemento doloroso e intenso desse tema vem logo a ser substituído por um sentimento mais meditado. Eusebius não pode esquecer que ele é, antes de tudo, de uma natureza terna e afetuosa. Exemplo 2 Eusebius não procura tampouco ocultar que essa confissão é apenas o prelúdio e a preparação à inefável expansão amorosa. Exemplo 3 Essa expansão, interrompida por momentos volta à realidade, acaba levandonos novamente ao cume do sentimento, que se revela desta vez num rasgo de transbordante paixão: Exemplo 4 Com isso, se termina a Introdução cuja arquitetura lembra o átrio que precedia a entrada dos templos antigos, e que os romanos construíam em frente às suas basílicas, a fim de que os fiéis tomassem o tempo de meditar, antes de penetrar na igreja. Do mesmo modo, essa introdução incita à meditação, e prepara perfeitamente o ambiente para o verdadeiro início da Sonata. Logo no princípio do “Allegro Vivace”, irrompe Florestan, cujas evoluções, apesar de inspiradas pela mais fremente e espontânea fantasia, são conduzidas com surpreendente e inexorável lógica. O primeiro tema deste movimento se repetirá três vezes no decorrer da primeira parte, e com intensidade crescente a cada vez. É essa idéia aliás que servirá para todo o desenvolvimento do “Allegro”. Exemplo 5 Se a saúde de Schumann veio, muito cedo, ser abalada pelos sintomas da grave neurastenia que ia levá-lo à loucura e ao suicídio, se a arte deste compositor tão diferente dos outros foi quase sempre dominada pela fantasia, isso não impede que, em tudo que fazia, ele obedecesse invariavelmente uma lógica impressionante, convencido que a excentricidade não era, necessariamente, sinônimo de desordem, como o vem comprovar essa segunda exposição do tema principal, o qual aparece, no estilo possante, porém visivelmente ampliado. Exemplo 6 Ampliando ainda o lógico desenvolvimento dessa idéia dominante, Florestan nos apresenta uma terceira e mais vigorosa exposição do tema, na qual ele consegue, desta vez, introduzir interessante episódica diversão. 134 Exemplo 7 Tendo chegado ao paroxismo desse fervoroso apelo, que culmina numa frase ofegante, em que Florestan sintetiza os transbordos da sua alma apaixonada. Exemplo 8 Schumann se deixa ir a uns breves instantes de desafogo. Este “più lento” é destinado aliás a servir de período transitório e a abrir caminho ao segundo tema do “Allegro”. Eis o período de desafogo, “più lento”. Exemplo 9 Inicia-se aqui com uma frase de sublime beleza e encanto, escrita na tonalidade de Lá Maior, o Segundo Tema deste “Allegro”. Estes acordes suscitam naturalmente ao nosso espírito a imagem da suprema felicidade com a qual Schumann sonhava, imagem que se torna mais realística ainda com o minucioso desenvolvimento dessa frase, e os acentos emotivos que vêm findar essa página admirável, exalando a frescura e a quietude de um coração feliz. Exemplo 10 Todo o resto do “Allegro” virá a ser agora o desenvolvimento dos temas precedentes. Exemplo 11 Temas estes que se repetirão várias vezes com transformações maiores ou menores, e a idéia primordial passando alternativamente da mão direita à esquerda, até chegarmos a um novo desenvolvimento da primeira frase da Introdução. Exemplo 12 E recaímos novamente numa transposição e re-exposição do desenvolvimento. Exemplo 13 O “Allegro” encerra-se, enfim, com a mesma frase sublime que vos toquei agora há pouco, escrita, porém, desta vez na tonalidade de fá sustenido menor, a qual introduz nessa comovente expansão um elemento de profunda melancolia. Esta frase, proferida agora, num estado de espírito bem diferente, exala uma tal nostalgia, que podemos interpretá-la como sendo o triste chamamento à realidade após um lindo sonho, e do qual o autor duvida que ainda possa voltar. Eis a encantadora melancolia e as nostálgicas saudades tais quais evocadas através de gênio de Robert Schumann. Exemplo 14 O estilo e a lógica imutável à qual obedece este “Allegro” são entre as qualidades que mais se destacam nas obras deste famoso compositor. Longe de excluírem a originalidade, tais qualidades imprimem, pelo contrário, a essa gigantesca produção seu cunho tão exclusivo, e contribuem em criar através da 135 inigualada sensibilidade do autor esse estado de alma, denominado schumanniano, por ser tão diferente de todos os outros transportos até hoje no plano sonoro. 2. ÁRIA A “Ária”, que constitui a segunda parte desta sonata, reúne algumas páginas entre as mais belas da literatura do piano. Apesar da indicação do próprio Schumann, que escreveu à margem do manuscrito: “Senza Passione”, isto é, sem paixão, esta canção de amor extasiado, transmitida por intermédio do suave Eusebius à adorada Chiarina, é caracterizada, na realidade, pelo mais apaixonado abandono. É verdade que essa paixão se mantém relativamente calma, em lugar de se exibir ruidosa e abertamente, dirigindo-se neste caso aos recantos mais sensíveis e profundos da nossa alma, e incitando-nos à mais séria meditação. Na primeira parte dessa expressiva confissão, o tema vos é revelado por um canto de inexprimível beleza. Exemplo 1 A segunda parte da “Ária”, composta de elementos inteiramente novos, é talvez mais positiva, menos estática do que a precedente, e vem evocar o canto de um belo violoncelo, servindo assim de apropriada transição com a última parte. Eis o original solo de violoncelo e os arabescos que o envolvem. Exemplo 2 Com a terceira parte, voltamos exatamente ao tema do início, o qual deve todavia, ser tocado ainda mais piano, e constituir uma mera recordação dos suaves e felizes momentos evocados anteriormente, encerrando-se numa reminiscência ainda mais longínqua, em forma de breve conclusão. A fim de não perturbar a harmonia e a idílica ternura dessa evocação, tocarvos-ei agora esta “Ária” sem interrupção. Exemplo 3 3. SCHERZO E INTERMEZZO Após ter mergulhado com Eusebius até as mais inacessíveis profundezas do pensamento e do sonho, voltamos neste “Scherzo” à verve cintilante de Florestan, magistralmente evocada nesta primeira parte, chistosa, e cheia de espírito mordaz. Exemplo 1 Segue uma parte essencialmente rítmica, em lá maior, notável pelos efeitos obtidos quando interpretada com toda leveza e a graça exigidas por esse ritmo, 136 que é quase em forma de valsa. Ao executar este trecho, impõe-se ao nosso espírito a intromissão de Eusebius no meio das evoluções de Florestan. Exemplo 2 Voltamos aqui exatamente à repetição do tema inicial. Exemplo 3 Chegamos assim ao “Intermezzo”, surpreendente pelo seu ritmo de Polonesa e pela riqueza da fantasia inesperadamente introduzida neste trecho, cuja riqueza musical merece ser assinalada. Exemplo 4 Esta estupenda e pomposa “Polonesa” se prolonga, conforme o lógico desenvolvimento significativo de toda essa obra, por uma espécie de recitativo. Escrito numa forma liberta de qualquer convencionalismo, este recitativo, sem afinidade nenhuma com o que precede, serve para testemunhar a independência e o caráter de novidade, que Schumann fez questão de introduzir nessa forma de Grande Scherzo, apesar das notáveis inovações já adotadas por Beethoven, nesse gênero de composição. Eis o recitativo acrescentado por Schumann ao seu Intermezzo. Exemplo 5 Essa parte intermediária foi também aproveitada para preparar a última parte deste “Scherzo”, com a repetição do tema já ouvido. Seria um erro considerar a repetição de algumas frases desta sonata como um sinal de pobreza, sobretudo numa obra de tamanha importância. Beethoven, cuja autoridade musical não era mais contestada na época de Schumann, usava freqüentemente da repetição dos temas, por intermédio da qual ele soube, aliás, levar a arte da variação ao seu apogeu. Eis a repetição do tema inicial do “Scherzo”, com a qual encerra-se a terceira parte desta sonata. Exemplo 6 4. FINAL O “Final” inicia-se como se se tratasse da solene abertura de grande salão de baile, lembrando até o preâmbulo do Carnaval op. 9 que foi escrito dois anos antes dessa sonata. Apesar de ser de caráter completamente distinto, o “Allegro un poco Maestoso”, deixa no entanto perceber que o compositor ainda está sob a influência daquela deslumbrante coletânea de quadros sonoros. Eis o “Allegro” que abre o final da sonata. Exemplo 1 137 Assistimos em seguida, como no Carnaval, às amáveis reverências das elegantes dançarinas. Exemplo 2 E logo depois às graciosas evoluções dos numerosos pares, que enchem o salão de baile, e cuja procissão se desenrola em volta de um tema central. Eis as evoluções dos pares dançantes. Exemplo 3 Eis o outro tema de caráter eusebiano, sumamente expressivo, Exemplo 4 Entrecortado pelo mesmo ritmo de dança. Exemplo 5 Reaparece novamente o tema central, em toda sua magnificência. Exemplo 6 Schumann, com extraordinária mestria, desenvolve agora aquela frase eusebiana, comovedora pela incontestável beleza que irradia, Exemplo 7 frase da qual surge, com crescente fervor, uma expansão de incomensurável melancolia interior, seguida de ímpetos apaixonados, reveladores de um coração torturado, os quais se multiplicam num ofegante crescendo, Exemplo 8 Ímpetos, cujas potência se desenvolve e se amplia ainda, até chegar ao ponto culminante dessa romântica evocação. Exemplo 9 Eusebius e Florestan se sucedem assim um ao outro para exteriorizar seja a felicidade interior, seja a expansiva alegria de viver, até que a volta de um sentimento estático os leve novamente à meditação, e aos graves problemas que estão ainda sem solução. Exemplo 10 Esse nostálgico sonho nos conduz a uma frase surda e misteriosa, para voltar novamente ao ponto de partida. Exemplo 11 Schumann parece ter um pouco abusado aqui dos seus dons geniais no desenvolvimento das frases musicais, e na transposição dos temas, multiplicando as repetições de tal modo que a maioria dos intérpretes desta 138 sonata acham-se obrigados de introduzir um corte importante na execução deste último tempo. Para os desejosos de estudar esta obra com o objetivo de tocá-la em público, indicarei aos que vierem me procurar com sua música, nos bastidores, no fim da aula, o corte mais adequado, o qual permite aliviar essa execução, sem prejudicar a perfeita unidade, e ao normal encadeamento dos temas. Exemplo 12a Exemplo 12b Este corte, que é aliás o único permitido, reduz de três a quatro minutos a duração total dessa execução. Chegamos, enfim, à última e imponente repetição do tema, da qual resultarão a peroração e a conclusão definitiva desta obra monumental. Exemplo 13 Este epílogo pode parecer à primeira vista, um tanto caótico; à aparente desordem, vêm, porém, se sobrepor os acentos do mais vibrante lirismo, seguidos pela triunfante epopéia sonora que apaga toda a inquietação e a ansiedade dessa alma aflita, porém orgulhosa e ciente do seu poder. Ouvindo ou interpretando essa grandiosa obra, compreenderemos todos, doravante, porque Schumann foi um dos compositores que melhor conseguiram reconstituir, no mundo das sonoridades, a atmosfera e o pensamento do seu século. Compreendermos, também, porque o talento deste gênio criador, que seus contemporâneos chamavam “o músico do inexprimido”, deu ao movimento romântico esse sublime impulso, graças ao qual aquele período se coloca hoje em dia entre as épocas marcantes de toda a história do pensamento musical. Encerrarei agora esta análise, e as minhas ilustrações ao piano, com a execução da peroração da Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, de Robert Schumann. Exemplo 14 139 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951 Robert Schumann, Fantasia op. 17 No dia em que Robert Schumann teve de escolher um pseudônimo para assinar suas críticas numa revista musical, ele só conseguiu definir sua personalidade, desdobrando-a e reencarnando-a na forma de dois irmãos gêmeos e psicologicamente inimigos um do outro: Eusebius e Florestan. O primeiro, tenro, sonhador, ávido de luar, e vivendo num perpétuo “andante”; o segundo, turbulento, apaixonado, exaltado por fogoso romantismo, não se sentia à vontade senão num “allegro furioso”. Devemos admitir que nessa recriação simbólica da sua própria individualidade, Schumann tem demonstrado notável clarividência já que toda a existência do autor de Manfred e do Carnaval ia ser dominada por essa dualidade de instintos, refletindo-se, esse antagonismo de tendências filosóficas e artísticas, em quase toda a sua produção musical. Contudo, ele não soube prever o desequilíbrio interior que ia resultar de tão trágico paroxismo e levá-lo até a demência e o suicídio! Sob o ponto de vista da criação artística, essas alternativas de inquietação, de angústia, de impetuosas expansões em busca de um ideal inacessível, de fervorosas confissões e harmoniosos arroubos, de líricas efusões e melódicos acentos, se traduzem em uma escritura pianística de esplêndida riqueza. Obedecendo aqueles instintos, ao invés de se conformar com uma disciplina escolástica, Schumann revela, na superposição de ritmos, uma surpreendente audácia e encontra, nas íntimas pulsações do seu ardoroso coração, uma torrente de secretas harmonias e misteriosas ressonâncias, que o simples estudo do contraponto nunca teria suscitado. Modelando uma matéria sonora mais requintada e alcançando mais rica interposição de timbres e inflexões, esse genial romântico arranca do teclado efeitos de um pré-modernismo inesperado, isso alguns anos apenas após a morte de Beethoven cuja concepção harmônica já nos parece empobrecida, quando posta em confronto com o “impressionismo” dos quadros schumannianos. Numa carta que ele escreveu em 1839, isto é, no ano em que foi editada a Fantasia op. 17, que ouviremos hoje, encontramos esta frase significativa em que Schumann esclarece um dos aspectos marcantes do seu conceito pianístico. “Minha música, diz ele, deve patentear os rastros das lutas que estou enfrentando para conseguir a minha querida Clara.” 140 Sabemos, efetivamente, que Schumann não se conformou com a resposta negativa do professor Wieck (com quem ele estudava) e a quem ele pedira a mão da sua filha Clara, nem todas as manobras arquitetadas por esse pai irredutível, para afastar aquele “pretensioso” compositor, o qual sofreu cinco anos de vexames e humilhações antes de recorrer à corte real de Leipzig que finalmente autorizou o seu casamento. Quando iniciada a composição da Fantasia, em junho de 1836, Schumann tinha 26 anos e já chegara ao auge da sua paixão por Clara Wieck que, com dezesseis anos apenas, já era aclamada como talentosa pianista tendo até alcançado certa celebridade. Aproveitando o pretexto de uma tournée de concertos oferecidos à jovem virtuose, o impiedoso professor interrompeu pois um idílio que considerava impróprio, provocando, na alma já bastante torturada do compositor, profundo desespero que se concretizou na escritura da primeira parte da Fantasia. Esse fato nos é claramente comprovado pelo próprio Schumann que, descrevendo alguns anos mais tarde à sua mulher, a origem dolorosa dessa peça, dizia, falando dessa primeira parte: “Essa obra não é outra coisa senão um longo e desesperado grito de amor que dirijo a você”. E o autor resume, na mesma ocasião, o significado dessa composição, com essas palavras: “Você compreenderá todo o sentido dessa Fantasia somente se se lembrar e evocar aquele infeliz período do ano de 1836 em que procuraram destruir no meu espírito a esperança de realizarmos a nossa união.” Prolongando-se a ausência da bem-amada, Schumann continua desabafando no piano, em sucessivas improvisações, o seu crescente sofrimento, conforme nos é comprovado pela frase que encabeça o início dessa composição, e nos indica como deve ser tocado: “Num sentimento constante de interpretação apaixonada e imaginativa inspiração.” Entretanto, os acontecimentos iam mudar o rumo dessa Fantasia. Tendo ingressado uma comissão de músicos constituída para erguer um monumento a Beethoven e desejoso de se inscrever entre os contribuintes dessa manifestação chefiada por Franz Liszt, Schumann modifica a feição inicial dessa composição, dando-lhe a forma de uma Sonata para Piano, em três partes, intituladas respectivamente: “Ruínas”, “Troféus” e “Palmas”, dedicando-a a Liszt para homenagear aquele que promovera essa iniciativa e pedindo ao editor encarregado de receber as subscrições, para vender os exemplares dessa obra, em benefício do monumento. Um ano mais tarde, e incapaz de se conformar com a idéia de se prevalecer de uma composição tão cheia do pensamento e da imagem da querida Clara, Schumann voltando à concepção original, reúne sob o nome de Fantasia, os três poemas cujos títulos foram novamente modificados para os de: “Ruínas”, “Arco de Triunfo”, “Formas Estreladas e Poéticas”, simbolizando o primeiro, a 141 ruína momentânea do seu amor; o segundo, a provável correlação com a glória e a conquista, e confiando à terceira parte o caráter de estático devaneio e de infinito mistério de uma noite estrelada, toda penetrada de ternura e de amor. Envolvendo esse conjunto de reminiscências sucessivamente confidenciais, ofegantes, calorosas, meditativas e transbordantes numa maravilhosa teia sonora que se estende por meio de sonoridades e vibrações quase imateriais, Schumann encerra essa obra-prima num ímpeto de irresistível emoção, exaltando com incomparável eloqüência e sensibilidade as secretas aspirações de um coração ao qual a música do século dezenove deve os mais preciosos elementos de patetismo do seu expressivo vocabulário. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1951 (Terceira aula) 142 CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1944 MAURICE RAVEL Sonatine Maurice Ravel, considerado como o maior compositor francês desde Debussy, nasceu em 1875, numa pequena cidade do sul da França, vizinha da fronteira espanhola. Seu pai, que era engenheiro e grande amador de música, encaminhou para o estudo de piano e de harmonia o menino que até os seus doze anos não revelara nenhum dos dotes precoces que foram o apanágio de tantos famosos compositores. Apesar de ele não ter sido o mais brilhante aluno da sua classe no Conservatório de Paris, Maurice Ravel soube, aos vinte anos, evidenciar com suas primeiras obras, uma lúcida e ousada individualidade, a qual devia atingir maior desenvolvimento ainda sob a esclarecida orientação do seu ilustre mestre Gabriel Fauré. A personalidade artística do jovem autor afirmou-se logo no início, incitando-o a afastar-se das clássicas combinações harmônicas e da rigidez acadêmica e convencional, para deixar sua própria natureza realizar espontaneamente essa síntese do equilíbrio musical e das audaciosas inovações que assinalam toda a sua produção e lhe permitiram trazer à música francesa, com uma presciência infalível e numa constante ascensão, uma das mais originais e notáveis contribuições. Suas primeiras composições, Sérénade Grotesque, Les Sites Auriculaires e Habanera, escritas em 1895, isto é, dois anos antes de ele ser admitido na classe de composição de Fauré, já patenteiam as qualidades de inteligência, claridade e ingênua ternura velada pela ironia, que encontraremos nas obras produzidas em plena maturidade. A cativante irradiação de Fauré e o cunho inconfundível do seu ensino, com toda a eloqüência do “pianíssimo”, com o poder da evocação em surdina, com distinção e o encanto característicos da obra desse grande mestre, percebem-se nitidamente ao mesmo tempo que certa influência de Emmanuel Chabrier, na primeira obra-prima de Ravel, intitulada: Pavane pour une Infante Défunte. Escrita originalmente para piano, a versão sinfônica desta obra, efetuada pouco depois pelo próprio Ravel, revelou com eloqüente mestria o novo caminho que o autor estava descobrindo no plano orquestral, marcado pelas suaves e longínquas sonoridades da frase melódica, repetida cada vez com acompanhamento diferente, pela procura da perfeição tanto no campo da técnica como no da poesia, e pelas qualidades de espírito, encanto e sutileza que tanto contribuíram ao grande êxito alcançado naquela ocasião. Antes de chegar, porém, ao lugar de destaque que ele ocupa, hoje em dia entre os protagonistas da música moderna, Ravel teve, do mesmo modo que a maioria dos inovadores em todos os ramos da atividade humana, que enfrentar 143 árdua e prolongada luta contra uma crítica injusta, contra a oposição acadêmica e oficial, e também contra a indiferença do público ainda refratário a uma música que desobedecia, aparentemente, a todas as regras e tradições. Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a uma atmosfera libertada de influências alheias e magistralmente evocada por uma escritura de original fantasia, e também pela sutil e sensível poesia do desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta leveza sobre os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que envolvem sonoridades tão originais na evocação da água, enfim, a frescura de uma poesia milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse feérico e deslumbrante “Capricho” seja atualmente a obra pianística mais em voga de Ravel e a que melhor satisfaz a grande número de virtuoses. Foi no mesmo ano de 1901 que Ravel se apresentou no concurso organizado anualmente para a escolha do tão cobiçado “Prix de Rome”, conseguindo apenas ser classificado no segundo lugar. Convencido que sua obra merecia mais alta distinção, Ravel se apresentou, novamente no concurso do ano seguinte, e mais uma vez em 1903, porém sem alcançar o primeiro prêmio. Quando se inscreveu pela quarta vez, em 1905, Ravel nem foi admitido na prova preliminar, a qual servia apenas para a eliminação dos candidatos incompetentes. Essa flagrante injustiça causou, como era de prever, veemente polêmica entre os diversos “grupos” artísticos franceses, a qual resultou na completa reorganização da diretoria do Conservatório, sem que tal medida viesse todavia atenuar a hostilidade oficial para com o jovem e talentoso compositor. Desistindo pois da compreensão e do apoio das instituições oficiais, Ravel iniciou, então, aquele período feliz e incomparável, de 1905 a 1918, durante o qual a literatura pianística enriqueceu-se graças a ele, com tantas maravilhosas obras-primas. Desenvolvendo engenhosamente o segredo da sua técnica cintilante, no que, dizia ele, muito o tinham ajudado os concertos de Mozart e de Saint-Saëns, e o impressionismo de reflexos e sonoridades que lhe é tão peculiar. Ravel, após ter escrito um drama lírico intitulado Schéhérazade e seu Quarteto para Cordas, tão cheio de graça, mistério e ironia, tornou mais amplo o horizonte aberto à literatura do piano, com os célebres Miroirs, suíte de cinco imagens descritivas, notáveis pelo poder inventivo e impressionista, condensado nesses curtos quadros; Gaspard de la Nuit, original fantasia que reúne em três poemas de uma linguagem profundamente pessoal as miragens sedutoras do mar, a evocação dos sinos diabólicos e fúnebres e as sonoridades que assinalam a produção desse harmonioso gênio. Não cabe, no quadro forçosamente estreito desta preleção, passar em revista toda a obra pianística de Maurice Ravel, da qual destacarei apenas a suíte infantil, a encantadora Ma Mère l’Oye, escrita para dois pianos, as poéticas e elegantes Valses Nobles et Sentimentales, e o patriótico e significativo Tombeau de Couperin, cuja “Toccata” encerra numa irradiação gloriosa um hino à memória dos que morreram pela pátria, hino ao qual a guerra de 1918 emprestou um caráter de vibrante atualidade. A Sonatine (inscrita no programa das execuções de hoje) foi publicada no princípio deste fecundo período, aos vinte e cinco anos do autor, numa fase da sua carreira em que, apesar de transparecer na sua obra a influência de 144 Debussy, Ravel já atingira um grau de perfeição que ele mesmo conseguiu dificilmente superar nas suas composições ulteriores. O título Sonatine leva alguns intérpretes a cometer o erro de encarar essa obra como se se tratasse de uma sonata fácil. Na verdade, a palavra sonatine significa apenas que os elementos constitutivos da “sonata” acham-se, neste caso, condensados numa composição um pouco mais curta e geralmente reduzida a três tempos. Clementi, Kühlau, Haydn e Mozart escreveram numerosas sonatinas, podendo também as Sonatas op. 49 e op. 79 de Beethoven serem incluídas nessa categoria, assim como algumas sonatas da escola contemporânea, cujos temas e desenvolvimentos vêm freqüentemente ser reunidos nessa forma musical essencialmente condensada. Oriunda, como sabemos, da antiga “Suíte” de danças, a “Sonata”, após ter sido marcada por notável evolução que Beethoven levou ao seu apogeu, volta com Ravel às antigas tradições dos cravistas franceses, encerrando-se assim, até um certo ponto, um magnífico ciclo ao qual o repertório pianístico deve algumas das suas imorredouras obras-primas. A Sonatine, de Ravel, assinala-se antes de tudo pela sua escritura de uma absoluta precisão, propositadamente delgada, e quase desprovida, com exceção do “Minueto”, dos poderosos baixos, na parte da mão esquerda. Percebe-se desde o ingênuo canto em fá sustenido menor do início, com os repentinos pianissimi, o colorido delicado e as ardorosas e sutis expansões. Que o autor mediu rigorosamente o sentido de cada nota, acorde ou inflexão, e que, por conseguinte, a interpretação dessa obra não admite o menor exagero, nem ralentandi ou ritenuti, que não sejam claramente indicados, tendo sido cada termo ou acento, cuidadosamente escolhido e apropriado de maneira a não permitir qualquer alteração ou excesso. Basta, por conseguinte, o executante se conformar estritamente com as indicações do autor para que essa “Sonatina” seja colocada na sua verdadeira atmosfera poética. Isso, porém, não é suficiente. O intérprete deve se compenetrar do indefinível e oculto poder descritivo dessa composição, dar às notas o colorido cheio de expressão e ternura que Ravel incorporou nelas, e bem compreender que essa escritura discreta não era outra coisa senão um meio de defesa adotado pelo autor contra os perigos da sua própria sensibilidade, tantas vezes excessiva. Essa execução deve, logo no início, evocar no espírito do ouvinte o ambiente imaterial e lendário de uma espécie de “conto de fadas”, superpondo-se ao frêmito da melancolia ao sorriso quase imperceptível, expressado nas delicadas quintas, e às ingênuas repetições que o polegar esquerdo destaca como se fossem uma sucessão de impalpáveis campainhas, prolongando-se essa atmosfera até as transparentes e nítidas terças que marcam o fim do primeiro tempo. No segundo tempo, que é um “Minueto em Trio”, ao qual o autor deu simplesmente o titulo: “Mouvement de Menuet”, Ravel nos apresenta num fundo de serenidade um pouco solene, contrastando com a suave vivacidade do “Modéré”, um quadro fosco e impreciso, no qual evoluem e deslizam vultos velados, envolvidos de cores pálidas e indefiníveis, e do qual dimana um sentimento de afetuosa melancolia, nitidamente marcado nos últimos compassos. 145 O efervescente Final, escrito em estilo de “Toccata”, faz reviver, num ritmo impetuoso e quase veemente, o canto ingênuo do primeiro tempo, cujas reminiscências se encontram também flutuando em alguns compassos vagarosos de Minueto. Esse final, resplandecente e cheio de vida, exterioriza uma profunda alegria interior, que acusa a cintilante descida de acordes em tom maior, justapostos até chegarem à rutilante tonalidade em fá sustenido maior e ao rápido crescendo que encerra, como se fosse um verdadeiro relâmpago sonoro, essa rica e efervescente evocação. É essa Sonatina, que o tempo escasso me permitiu apenas analisar rapidamente hoje, mas que mereceria estudo mais pormenorizado, que ouviremos agora na interpretação da senhorita Célia Zaldumbide. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1944 146 4 Textos Incompletos 147 148 .................................................................................................. Enfim, o problema vem a ser quase insolúvel quando procuramos explorar os períodos mais antigos, em que a atual escritura musical era desconhecida, e substituída por aquela forma de notação primitiva e imprecisa, chamada de “neumática”, que, apesar do seu caráter rudimentar, devia constituir até o ano mil da Era Cristã o único meio de expressão musical. As “Neumas” (essa palavra deriva provavelmente de neuma que na língua grega antiga significa: gesto, sinal) eram, como sabeis, sinais em forma de vírgulas, apóstrofos, acentos agudos, graves e circunflexos, e traços em várias direções, um pouco parecidos com a estenografia de hoje em dia, que já se encontram nos manuscritos dos primeiros séculos da nossa era. Esse sinais, que seguiam geralmente os cantos litúrgicos, não indicavam nem a duração do som, nem a sua altura exata, mas apenas onde a voz devia elevar-se, abaixarse ou respirar. Apesar da evolução, durante o fim do primeiro milenário, dessa escritura originalmente legata para uma forma de pontuação staccata, a notação neumática ficou essencialmente imperfeita e é fácil imaginar a variedade de teorias e de opiniões, às vezes absolutamente contraditórias, que podem resultar da interpretação forçosamente aproximativa de textos tão incompletos. Devido à ausência de uma escritura bastante clara, até chegarmos à Idade Média, qualquer estudo da evolução musical anterior a essa época não pode deixar, por conseguinte, de ser relativo e nitidamente incompleto. Sendo impossível a reprodução autêntica da música tal ela ressoava na Grécia antiga, em Roma, ou no século nove, teremos que ficar satisfeitos, nas primeiras etapas da nossa viagem ao passado musical, com uma certa aproximação nossas conclusões e mesmo às vezes com meras hipóteses, .................................................................................................. ............................................................................. No que me diz respeito, a placa que me fizestes a honra de me dedicar vem apenas concretizar um conjunto de recordações e impressões que ficam e sempre ficarão gravadas no meu coração. A calorosa acolhida que reservastes às minhas atuações, desde que voltei à minha terra, o entusiasmo e a assiduidade com que soubestes corresponder aos meus esforços no campo do ensino musical, os numerosos talentos que se revelaram durante nossas Aulas de Interpretação e Estética Musical, consolidando assim a minha fé e confirmando a grande esperança que continuo tendo no futuro artístico do Brasil. 149 Na verdade, esta placa constitui uma homenagem à cultura da juventude paulista, que estabeleceu neste Teatro um recorde mundial que não me parece ter sido suficientemente divulgado. Efetivamente, nenhum Curso Público de Interpretação Musical, seja no Conservatório ou na Escola Normal de Paris, ou nas outras capitais da Europa ou dos Estados Unidos, tem conseguido reunir um número de alunos e ouvintes tão imponente quanto em São Paulo, onde as inscrições chegaram a mais de 2700, no último ano da realização do nosso Curso, o que representa cinco ou seis vezes mais do que o maior número de ouvintes alcançado em Cursos similares em outras partes do mundo. Este troféu cabe pois, em toda eqüidade, aos estudantes de música e ao culto público desta capital, que espero rever em breve, dentro de poucos meses, na volta da tournée artística que vou empreender na Europa e nos Estados Unidos, e com quem espero aperfeiçoar a obra de divulgação musical à qual me dediquei e continuarei me dedicando, mais certa agora do que nunca, que o nosso povo, a nossa juventude, justificam e sabem corresponder a esse esforço. Fico-lhes sinceramente grata por esta tão carinhosa homenagem e pelas lindas palavras que Paulo Batista Pereira proferiu em nosso nome, e encerrarei essas palavras dizendo-vos apenas: Até muito breve!, e assegurando-vos que durante a minha curta ausência da minha terra guardarei fielmente em meu coração mais essa recordação da vossa amizade e do vosso apreço! Temos hoje entre nós um ouvinte particularmente distinto que aqui saúdo com grande prazer: o jovem e já eminente pianista francês, Charles Lillamand – por muito tempo perdurará na nossa memória entre outras, a sua magistral execução do Concerto de Ravel para a mão esquerda. Aproveito, pois, o ensejo da sua presença aqui, para assinalar-vos que Charles Lillamand teve o generoso pensamento de se oferecer para realizar um recital em benefício de obras brasileiras e francesas de assistência à criança. Concerto esse que terá lugar no próximo sábado, 21 de agosto, às 21 horas, no Teatro Municipal. Não duvido um instante que diante do valor do recitalista e a nobre causa que essa iniciativa beneficiará, todos vós tenhais a peito (?) não somente de comparecer pessoalmente a esse concerto como também de contribuir à maior propaganda possível a fim de que o Municipal se encontre repleto para essa noitada onde se conjugarão uma arte elevada e a caridade humana. 150 Meus caros amigos, No decorrer de uma tournée de concertos na África do Norte, tive a honra de ser convidada a um almoço que me era oferecido, num quadro evocador da “Mil e uma noites”, pelo governador da cidade, descendente de uma nobre e ilustre família que ia buscar sua origem até o próprio profeta Maomé. Na hora da “champanha”, um dos altos funcionários presentes tomou a palavra para me homenagear. O discurso foi muito breve, não deixando entretanto de ser bastante surpreendente a atitude do orador, que dava a impressão de certa instabilidade, como se arriscasse a cada instante de perder o equilíbrio. Depois do banquete, não podendo mais dominar a minha curiosidade, e certa que não fora um excesso de bebida a causa da particularidade que tinha reparado, já que o vinho era reservado aos convidados não muçulmanos, tomei a liberdade de perguntar ao nosso fidalgo anfitrião: “Pode Vossa Excelência me explicar porque o nosso jovem orador parecia tão instável sobre as suas pernas, durante a linda homenagem que me foi prestada?” “Mas como?, respondeu o príncipe com evidente surpresa! Será que a senhora ainda não conhece a tradição do nosso país?” E, diante do meu ar admirado, ele acrescentou: “Pois fique sabendo, minha cara senhora, que numa reunião pública seja que se trate de um ágape, ou de qualquer outra festividade, cada vez que uma pessoa toma a palavra, ela o deve fazer, ficando sobre um só pé, permanecendo nessa posição, até o fim da sua palestra. Essa regra, disse o Emir, constitui um meio realmente infalível, para termos a certeza de um discurso não ser comprido demais!” Pondo em prática esse singular costume norte-africano – que apresenta incontestáveis vantagens na maioria dos casos – dir-vos-ei, enquanto posso ficar em equilíbrio, quanto me comove essa carinhosa e original manifestação organizada com tanto espírito e humor e pela qual vejo que a data da Santa Magdalena foi mero pretexto. Sinto-me realmente feliz em conviver num ambiente de tão perfeita harmonia e estreita camaradagem entre os meus queridos alunos, e faço votos para que esses laços permaneçam e se afirmem cada vez que nos será proporcionado o ensejo de nos encontrarmos. 151 Agradeço de todo o coração essa inesquecível homenagem e todos os que colaboraram na sua tão feliz realização, contando que me seja dada em breve a alegria de recebê-los todos na minha casa de Campos do Jordão, onde a esplêndida toalha de mesa que vocês me ofereceram está a espera de outro ágape, para o qual lhes reservo outro “show”: o espetáculo da natureza, num lugar privilegiado e quase supraterrestre, onde poderemos também, como hoje, conhecer momentos de verdadeira felicidade e mútua compreensão. Mais uma vez, muito muito obrigada! 152 5 Anedotas 153 154 ANTON RUBINSTEIN Estava de saída, há alguns dias, do hotel onde estou morando para vir aqui, no Auditório, quando uma senhora se aproximou de mim. Ela se apresentou, me confiou que ela também morava no mesmo hotel, que ela me ouvia todos os dias, de manhã e de tarde, estudando durante horas seguidas, e acabou perguntando: “Uma coisa eu não compreendo, dona Magdalena! Como é que uma pessoa tão inteligente, uma virtuose tão ilustre, que tem tocado, como a senhora, no mundo inteiro, ainda precisa estudar o piano?” “Minha prezada senhora, lhe respondi! Em primeiro lugar não mereço os adjetivos lisonjeiros que a senhora me dirigiu. No que diz respeito à sua pergunta, só posso lhe citar a resposta que deu o célebre compositor Anton Rubinstein numa circunstância similar. – A senhora compreenderia logo, dizia ele: Quando fico um dia sem estudar eu bem percebo! Quando fico dois dias, o público não deixa de reparar! Se eu ficar três dias sem estudar acho que até a senhora acabaria percebendo!” E aliás o mesmo Anton Rubinstein, conhecido pela sua franqueza, que acedendo a um pedido reiterado durante semanas e meses, concordou em ouvir uma moça que desejava saber se ela devia continuar estudando piano. “Então, mestre, perguntou ela depois da audição tão esperada, o que é que o senhor me aconselha fazer?” “Casar-se o mais depressa possível, respondeu o compositor.” VON BÜLOW A respeito da separação de von Bülow e da sua mulher, contam que Cosima deixou o seu marido para se casar com Wagner, depois de ter assistido à estréia triunfal da ópera desse compositor: Tristão e Isolda. Acrescenta-se também, – e esta é a parte a mais anedótica – que logo depois da estréia da Primeira Sinfonia de Brahms, que obtivera um formidável êxito, Hans von Bülow, que regia a orquestra nessa ocasião, e que era um homem muito espirituoso, disse à sua filha, que assistia ao concerto: “Corra dizer à sua mãe de não perder esta ótima oportunidade de deixar o Wagner e de se casar depressa com Brahms!!” Talvez não conheceis a curiosa definição que o mesmo Hans von Bülow dava à “Fuga Instrumental”. Ele chamava a Fuga assim: Peça de música no decorrer 155 da qual os executantes saem uns depois dos outros, enquanto que os ouvintes saem todos de uma vez!” MASSENET Massenet era perseguido por certa marquesa cujo salão musical, em Paris, tinha grande renome. No entanto, Massenet, com a sua diplomacia habitual sempre conseguira se livrar dos múltiplos convites dessa grande dama – até que, um dia ele não pôde deixar de responder a essa senhora, que ao encontrá-lo lhe disse: “Caro maestro! A sua data, para vir na minha casa será a minha! Escolha! Que lhe pareceria combinarmos uma festinha para a terceira quinta-feira do mês que vem?” Nisto Massenet parece refletir intensamente e responde: “Oh! Cara marquesa, que pouca sorte! Justamente nesse dia, devo ir a um enterro em Bordeaux, no qual não posso deixar de comparecer!! Perguntaram um dia a Reyer o que ele pensava da música de Massenet: “Tem talento, é certo, mas procura demais agradar ao público, enfim, não gosto!” A mesma pessoa, pouco depois foi interrogar Massenet a respeito da música de Reyer: “Ah! Que maravilha! Estilo estupendo, belas idéias! Gosto muitíssimo!” Nisto o tal Senhor, admirado da amenidade de Massenet, e desgostado com a severidade de Reyer a seu respeito, lhe disse (a Massenet): “O senhor não sabe, que quando perguntei a Reyer o que ele pensava do seu talento ele foi muito menos elogioso que o senhor!” Nisto Massenet replicou: “É provavelmente porque nem um nem outro dizemos verdadeiramente o que pensamos!” GOUNOD Napoléon III que era muito distraído perguntava com freqüência às pessoas que, no entanto, ele muito conhecia: “Como é que você se chama? 156 A quinta, ou sexta vez, que o Imperador fez esta pergunta ao já célebre compositor Gounod, este lhe respondeu tranqüilamente: “Continuo me chamando Gounod, majestade!” BRAHMS Um mestre de canto alemão tocava violoncelo como simples amador. Um certo dia, num círculo íntimo, ele interpretou a última sonata de Brahms para violoncelo acompanhado ao piano pelo próprio compositor. Brahms martelava o piano com tal energia que o violoncelista, entre dois tempos lhe disse. “Por favor, maestro, não bata assim tão forte! Eu não me ouço em absoluto!” Ao que Brahms lhe respondeu: “Ah! meu velho! Que sorte você tem”. ROSSINI Rossini também era de um espírito irresistível. Logo após o falecimento de Meyerbeer, que fora um pouco seu rival, mas que todavia ele admirava sincera e respeitosamente, um sobrinho de Meyerbeer, jovem compositor de pouco talento, foi visitar Rossini, para lhe fazer ouvir a Marcha Fúnebre que ele acabara de compor, em homenagem ao seu tio, e que ele desejava ver interpretada nos funerais no dia seguinte. Depois de ter ouvido essa peça, Rossini bancando o homem distraído disse ao rapaz: “Que quer que eu lhe diga, meu caro amigo, a respeito dessa composição! Eu penso, simplesmente que teria sido preferível que o tio tivesse escrito a “Marcha” e que o sobrinho tivesse falecido!! BACH Existem poucas anedotas a respeito de Bach, cuja vida toda de trabalho e de austera honradez não se prestou a comentários engraçados. Uma das mais divertidas que ouvi, há alguns anos no sul da França, e que podeis aliás adaptar a qualquer outro compositor ou homem ilustre, é a seguinte. Estava sentado no salão de um grande hotel de Marselha, quando ouvi um senhor, recém-chegado de Paris contar a um amigo suas impressões da capital, e entre outras, uma das suas grandes emoções artísticas. Imagine, meu velho, disse o viajante, que assisti em Paris a um concerto fantástico, de composições de Bach. 157 Tive, aliás, a honra de ser apresentado a esse famoso compositor e ele foi tão gentil comigo que veio até em acompanhar à estação onde devia embarcar pelo trem das 7:45 h. Não me conte histórias respondeu outro amigo, não posso crer que seja verdade. – Será que você não acredita na minha palavra? – Naturalmente que não acredito. – E posso saber por quê? – Simplesmente, meu caro, porque o trem das 7:45 h foi cancelado há mais de duas semanas! O QUARTETO CAPET (São Paulo, 12 de junho 1942) Os quartetos para cordas de Mozart me lembram uma história, absolutamente autêntica, e que poderá parecer uma anedota aos dentre vós que ainda não a conheçam. Alguns anos atrás, o Quarteto Capet, considerado então na Europa como um dos mais célebres conjuntos desse gênero, deu um concerto numa grande capital. Certa senhora, mulher do embaixador de um país amigo, assistiu a esse concerto e quis manifestar o seu grande entusiasmo. Chegando nos bastidores, junto ao eminente quarteto, ela diz aos quatro músicos, diante dos numerosos fãs ali reunidos: “Ah! Senhores! Que maravilha! Como os senhores tocaram! Desejo-lhes a máxima felicidade e faço votos de poderem, em breve, aumentar o número de músicos da sua pequena orquestra!” Um momento! A história não acabou! O mais engraçado é que, como tantas outras anedotas, essa história fez a volta da Europa, e chegou um dia aos ouvidos da tal embaixatriz, a qual com ar de superioridade disse ingenuamente: “Imaginem, meus caros amigos, o que contam por aí, que eu andei dizendo ao Quarteto Capet, como eu não soubesse que um quarteto é composto por seis músicos!!!” SAINT-SAËNS Ensaiando com as cantoras ... Essa independência das vozes, necessária no contraponto, porém indesejável em certas outras circunstâncias, me lembra uma anedota que alguns dentro vós, talvez conheçam. 158 Duas cantoras da alta roda ensaiavam com o ilustre compositor Saint-Saëns, um dueto escrito por ele, que deveriam cantar numa festa de caridade. As vozes eram bastante lindas, porém, reinava demasiada “independência”, no compasso das parceiras, até que Saint-Saëns, um pouco irritado, perguntou: “As senhoras podem me dizer, por favor, qual das duas é que devo seguir?” Essa interrupção causou um breve instante de emoção, após o que, a mais atrevida das duas intérpretes, respondeu: “Eu, mestre, se o senhor não se importa“. É o mesmo Saint-Saëns quem, assistindo a um ensaio de uma das suas obras orquestrais, observa a meticulosa precisão com a qual o regente, que era o famoso Charles Lamoureux, acertava cada golpe de arco. O senhor não acha que fica melhor assim, pergunta o regente ao mestre, o qual com seu ar irônico bem conhecido, lhe responde: “Muito bem, meu caro, porém prefiro o que escrevi!” Outra vez, uma jovem senhorita, muito tímida fazia a sua estréia numa reunião mundana, cantando uma melodia de Saint-Saëns, e por cúmulo de imprudência, acompanhada pelo próprio compositor. Naturalmente a pobre coitada tremia a mais não poder, e com a esperança de obter de Saint-Saëns um pequeno encorajamento se dirige ao maestro e lhe diz: Ah! Maestro! Como estou com medo!” ao que ele responde: “Não tanto quanto eu!!” A MAMÃE, O PAPAI E A PROFESSORA Mal inicia a Lurdinha a sua aula de piano, a professora tem de interromper para atender a um chamado telefônico. – Aqui fala o pai da Lurdinha. Ela está em aula agora, não é? – Sim, começou agorinha mesmo. – Pois eu queria pedir-lhe o favor de fazê-la tocar logo algumas músicas. – Mas é muito cedo ainda. – Ora, ela já tem três meses de estudo e “faço gosto” que toque alguma coisa, nem que seja popular ... O cidadão não ouviu o suspiro desanimado da professora que, dias depois, ouve da mamãe da Xandoquinha, que acompanha a garota à aula, o seguinte esclarecimento: 159 – Olhe, eu dei à menina algumas explicações, segundo o método pelo qual estudei; a senhora não acha que assim, com a sua orientação e com a minha, vai muito melhor e mais depressa? E durante a aula, verifica-se a completa desorientação da aluna, que não sabe como haver-se ante solicitações contrárias. Neste assunto de educação musical (talvez mesmo em toda educação) não se devia começar pela criança, e sim pelos pais. Na maioria dos casos, manifestam incompreensão total quanto ao que seja formação musical do educando. Desinteressados, por ignorantes do problema, quanto à marcha dos estudos, necessariamente lenta e gradual, querem desde logo que algum resultado apareça, e para eles o resultado é “tocar músicas”, nem que sejam populares ... A formação musical vai a par, por determinação deles, com vários outros estudos, pois a Xandoca deve ter aulas de sanfona (perdão, harmônica), dança, trabalhos, sapateado, violão, sem falar da escolaridade do curso primário ou secundário, ao qual a criança não pode fugir, nem das “obrigações sociais”, também indispensáveis, pois a criança de hoje tem sua roda de amigos, recebe-os e é por eles recebida (ocasião em que os pais não devem estar presente), regalando-se então com sorvetes e coca-cola ... Em outros casos, a mamãe parece que tão-somente suporta que a filha estude. Diz ela: “Estudar, para quê? Eu também estudei, e afinal acabei deixando tudo com o casamento”. E assim, a professora conscienciosa, senhora de um método bem estabelecido, dedicada e competente, vê seu trabalho prejudicado, senão destruído, pela incompreensão dos pais, justamente aqueles que deveriam favorecer em tudo e por tudo, as intenções e o sistema das professoras. Uma destas, após muita experiência e muito aborrecimento, divide as mamães em três classes: as alheias e indiferentes, que não acompanham os filhos às aulas, não as assistem, não ajudam e nem atrapalham diretamente, mas prejudicam por não proporcionarem à criança, no lar, o ambiente favorável ao desenvolvimento musical; vêm depois as que acompanham os alunos, assistem à lições intrometem-se na direção do trabalho docente, dão “palpites”, interferem na orientação, e, embora bem intencionadas, atrapalham terrivelmente; em último lugar, as mães que assistem às aulas e colaboram inteligentemente, exigindo da criança regularidade no estudo, qualidade do resultado, obediência à orientação pedagógica e didática da professora. Estas, as que ajudam, são ínfima minoria, mas os seus filhos são, afinal, aqueles que aparecem, que “dão” alguma coisa. Por isso, repetimos, a educação da criança começa pela educação dos pais. Escolhido o professor no qual depositam confiança, sejam coerentes, e continuem ... confiando. Mas não interfiram, não queiram “ajudar”, porque o resultado será exatamente oposto àquele que pretendem. O Estado de S. Paulo Quinta-Feira, 7 de abril de 1955, p. 6 160
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sua aflição pelo mal que o atingia. Em 1801, com 31anos de idade, escreveu o seguinte: ...”minha faculdade mais nobre, minha audição, tem piorado muito” ... “esse problema causa-me as dificuldades ...
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