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editoRial
BioétiCa e Saúde amBiental: algumaS queStõeS paRa diSCuSSão
Bioethics and Env ironmental Health: some quest ions for debate
Mar isa Pa lac ios 1 , Serg io Tavares de A lme ida Rego 2
A consolidação do campo disciplinar da Bioética é recente. Embora possamos
apresentar vários marcos históricos de sua construção, alguns merecem especial
referencia aqui. Por exemplo, a habitualmente reconhecida primeira vez em que
a palavra Bioética foi usada, por Van Potter em 1971, que a definiu como a
ciência da sobrevivência e propunha que integrasse ciência e valores humanos.
Mas, a rigor, as reflexões sobre a ética de práticas relacionadas com a saúde
haviam se intensificado desde 1901, pelo menos, quando foi criada a primeira
regulamentação sobre ética em pesquisa na Prússia. Ainda neste campo, outro
marco fundamental é o Código de Nuremberg, em 1947, que representa a
resposta às atrocidades que médicos nazistas cometeram em nome da ciência.
É instituída, em nível internacional, a necessidade de se observar os aspectos
éticos envolvidos nas pesquisas que envolvem humanos. Mas foi na década de
setenta do século passado, nos Estados Unidos, que o campo disciplinar foi
se organizando. Inicialmente foi criado em 1971 o Kennedy Institute of Ethics na
Georgetown University – pioneiro dedicado à Bioética. Outro evento que foi
determinante para a consolidação do campo foi a publicação, em 1979, do livro
Principles of Biomedical Ethics, de TL Beauchamp e JF Childress. Este livro, ao
propor uma abordagem teóricamente bem elaborada e que, de alguma forma,
estava ancorada no ethos profissional médico, proporcionou um instrumental de
fácil compreensão e aplicabilidade e que se difundiu em todo mundo.
A partir desse marco inicial, outras correntes foram se estruturando,
originárias das tradições do pensamento filosófico, se desenvolveram aplicadas
às questões éticas que emergiam da introdução de novas tecnologias na área da
saúde e das pesquisas.
Por um tempo parecia que a proposta inicial de Potter teria se transformado
em uma ética aplicada aos problemas biomédicos e da pesquisa apenas. Mas em
2005, após significativo esforço dos representantes dos países em desenvolvimento,
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Doutora em Engenharia de Produção. Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva –
Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
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Doutor em Saúde Coletiva. Pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ
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a Declaração Universal, sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, incorporou,
em seu Artigo 17 como preocupação dos Estados signatários, a “Proteção do Meio
Ambiente, da Biosfera e da Biodiversidade”. Afirma o documento:
“Devida atenção deve ser dada à inter-relação de seres humanos com outras formas de vida,
à importância do acesso e utilização adequada de recursos biológicos e genéticos, ao respeito
pelo conhecimento tradicional e ao papel dos seres humanos na proteção do meio ambiente,
da biosfera e da biodiversidade.”
Desta forma a Declaração de Bioética da UNESCO tornou-se o primeiro
documento internacional que incluiu o ambiente, a biosfera e a biodiversidade como
objetos da reflexão Bioética, a despeito de algumas resistências que ocorreram em
sua deliberação.
Em seu artigo 28 – Recusa a Atos Contrários aos Direitos Humanos, às Liberdades
Fundamentais e Dignidade Humana - o referido documento afirma: “Nada nesta
Declaração pode ser interpretado como podendo ser invocado por qualquer Estado,
grupo ou indivíduo, para justificar envolvimento em qualquer atividade ou prática
de atos contrários aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade
humana.” Essa é mais uma forma de reafirmar que os direitos humanos, a liberdade
e a dignidade humanas são a base sobre a qual se deve pensar as melhores ações
praticadas em nome do Estado.
A Ética e suas teorias voltadas para a reflexão sobre a moralidade de atos
humanos, tem uma vocação para a universalidade. E falar em universalidade em
nossas sociedades multiculturais implica, em primeiro lugar, em reconhecer uma
ampla variedade de modos legítimos de viver, constituindo comunidades morais
diversas. Isso implica, se adotamos a ética do discurso como nosso referencial teórico,
que as normas morais válidas são aquelas aceitas (ou que poderiam ser aceitas) por
todos os afetados por elas como participantes em um discurso prático. Entendendo
as votações como um instrumento da política, não da ética, afirma-se que esses
“todos” os afetados não significam a maioria, ou os mais ativos politicamente ou
mesmo os mais poderosos. Como afirma Adela Cortina (Cidadãos do mundo. Ed.
Loyola, 2005) a construção das normas passa necessariamente por uma atitude
dialógica que implica em:
– Reconhecer as demais pessoas como interlocutores válidos, com direito a expressar
seus interesses e a defendê-los com argumentos
– Estar igualmente disposto a defender seus interesses com argumentos
– Não crer que possui toda a verdade – o outro não seria alguém a se convencer,
mas com quem dialogar.
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– Estar preocupado em encontrar a solução correta e, portanto, entender-se com
seu interlocutor. Entender-se não significa fazer um acordo, mas descobrir o que
temos em comum.
– A decisão final, para ser correta, não deve atender a interesses individuais ou
grupais, mas a interesses universalizáveis
Compreendemos, mesmo que intuitivamente, que há em nossas ações
aspectos morais. De uma maneira mais prática podemos identificar uma questão
moral como aquilo que nos parece justo ou correto fazer, ou, de outra forma,
aquilo que afeta (ou pode afetar) o bem estar de outros. Assim, que questões
morais podem ser identificadas na Saúde Ambiental? É possível identificá-las?
Em princípio podemos dizer que em qualquer atividade humana que envolva
além do proprio é possível encontrar questões morais envolvidas na decisão do
que fazer. Assim, quem exerce cargos que possuem poder político para decidir,
seja em que esfera de governo esteja, deve considerar que suas decisões podem
afetar profundamente a vida de muitas pessoas. Tomemos como exemplo casos
hipotéticos de contaminação ambiental. Há decisões a tomar, quais seriam as
mais adequadas? Se há contaminação de alimentos e é a única fonte protêica
para a população do entorno? Ou, qual a responsabilidade de quem contamina
e até que ponto deve estar implicado com a sua solução? Se pensamos na
realização de pesquisas, qual o papel dos órgãos oficiais na investigação de
qualquer questão relacionada a Saúde Ambiental? Como os riscos devem ser
comunicados? Que compromissos com benefícios concretos devem ser esperados
e exigidos? Enfim, as respostas a todas essas questões não são fáceis. Qualquer das
respostas que podemos aventar implicará em benefícios e prejuízos que devem
ser repartidos de forma justa entre os afetados. Como ser justo? Como proteger
aqueles que são historicamente desconsiderados e vítimas do distanciamento da
ação civilizatória do Estado? O que propomos, amparados na proposta da ética
do discurso, é que a busca de uma solução justa para esses problemas inclua,
necessariamente, todos os possíveis implicados – o que proporcionaria uma ação
bastante diferente do que tradicionalmente observamos. Mas, poderão dizer
alguns, esta visão idealizada é inaplicável para a realidade em que vivemos.
Sim. A regra política se aplicará às situações políticas. Mas o que defendemos é
uma radicalização democrática, para a qual é indispensável o engajamento da
sociedade em geral e que se preparem as novas gerações para tal. A competência
democrática e a competência moral dependem de uma prática permanente.
Em uma sociedade tão desigual como a brasileira, não é razoável que se
espere transformações espontâneas, mas se deve trabalhar ativamente para sua
consecução.
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O que estamos defendendo aqui é uma postura que demanda reflexão,
diálogo, construção de um ambiente de negociação onde todos os interesses
possam estar representados e respeitados e que se possa construir saídas em
que todos possam de alguma forma ter interesses atendidos. Essa maneira de
conduzir as questões do campo da saúde ambiental demanda um esforço no
sentido de formar pessoas que possam empreender essa tarefa de conduzir esse
processo. Esse é um sentido da educação para a cidadania: formar pessoas
críticas, comprometidas com o diálogo e com o respeito aos direitos humanos.
RefeRênCiaS
Cortina, a. Cidadãos do mundo para uma teoria da cidadania. São Paulo: Editora
Loyola, 2005. 216p.
UnESCo. organização daS naçõES UnidaS para EdUCação, CiênCia E
CUltUra. Proteção do Meio Ambiente, da Biosfera e da Biodiversidade.Portugal, artigo
17, 2005.
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