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p e r f i l CAUSOS DO BRASIL H á mais de trinta a minha vida foi canalizada no Durante os mais de anos, ele entra na meu grande projeto. Era a minha trinta anos com o seu casa das pessoas, meta, mesmo que inconsciente, com um sorriso representar a nossa cultura, que projeto, Rolando de orelha a oreé tão pouco difundida”. Boldrin contou muitas lha, e convida a todos a conhecer Natural de São Joaquim da um Brasil inexplorado. O país da Barra (SP), Rolando foi o sétimo histórias. A mais viola, da sanfona, do cafezinho, filho de Alzira e Amadeu. Ao importante, porém, do fogão a lenha, do artesanato, todo eram 12 crianças, seis da cultura do povo. Durante esses homens e seis mulheres. Morasempre foi a de como anos, seu programa mudou de vam numa casa de quarto e amar o Brasil nome inúmeras vezes, mas o cozinha, chão batido, sem fogão “Brasil” nunca saiu do título, a gás, geladeira ou rádio. O Por Gabriela Ferigato muito menos da essência. Rolando menino de calças curtas passava Boldrin é compositor, cantor, DA REPORTAGEM as tardes nadando no riacho e ator, apresentador de televisão, roubando frutas do vizinho. porém, o mais importante, é braTodos os elementos apontavam sileiro. Desses que defende com para uma infância típica de um unhas e dentes o valor de um garoto do interior, se não fosse povo com costumes tão ricos. pela dupla Boy e Formiga, que Seu pai, Amadeu, sustentava 12 filhos no interior formou junto com o irmão mais velho. de São Paulo. Não tinha como colocá-los no coléDiretamente da Rádio São Joaquim, emissora gio, pois logo adotou uma filosofia: aprenderiam a recém-inaugurada no ano de 1947 por um homem ler e a escrever, mas depois deviam buscar um ofírico da região, o locutor introduzia: “E, com vocês, cio – sapateiro, mecânico, marceneiro, o que fosse a dupla de ouro, a dupla que vale ouro, a dupla que – o importante era escolher um. Para ele, só havia é um verdadeiro tesouro, Boy e Forrrrrrmiga”. A duas profissões nas quais pobre poderia vencer na duplinha, junto com outros talentos locais, inauvida: jogador de futebol ou radialista. Como o gurou a rádio da cidade. O sucesso foi tanto que pequeno Rolando nunca foi muito fã de “pelada”, e, foram contratados e passaram a fazer programas desde cedo, demonstrava alguns dons artísticos, de auditório todos os domingos. Nessa época, surera no rádio que deveria apostar. giam as duplas Tonico e Tinoco, Raul Torres e Ao invés de simplesmente escolher um ofício, Florêncio, e ainda Alvarenga e Ranchinho. optou por vários. Foram 35 novelas, mais de dez Além do cachê artístico de cinquenta mil réis peças de teatro, 200 obras escritas, inúmeros por mês, ganhavam também o figurino. Com o shows e incontáveis causos contados pelos quatro tecido oferecido pelo patrocinador, dona Alzira se cantos do Brasil. “Eu sonhava com o sucesso. Aliás, encarregou de fazer calças compridas, camisas eu não sonhava, eu via. Sabia que o meu caminho xadrezes e chapeuzinhos de palha. Rolando era o era esse. A soma de coisas que eu fiz durante “Boy” da dupla. Quando criança seu cabelo era tão 52 imprensa | abril 2014 299 Perfil.indd 52 25.03.14 18:04:50 Alf Ribeiro imprensa | abril 2014 299 Perfil.indd 53 53 25.03.14 18:05:01 louro que parecia branco, e seu pai, fanático pelos filmes de faroeste americano, dizia que lembrava o do ator William Boyd. A brincadeira, então, pegou. Seguiram como dupla por dois anos, até seu irmão, aos 16, cansar-se da vida. Em paralelo, o menino devorava literatura. Amava Guimarães Rosa, Nhô Bento e até adaptava, aos nove anos, poemas de Catulo da Paixão Cearense. Vou-me embora “pras capitá” Como é de praxe entre muitos garotos do interior, chega a hora de tentar a vida na capital. A primeira tentativa aconteceu aos 16 anos. Com mais dois amigos, embarcou em uma Maria Fumaça com destino à Estação da Luz, em São Paulo (SP). Os dias na cidade grande não foram fáceis. Depois de passar por diferentes empregos como os de sapateiro, frentista de posto de gasolina de beira de estrada, auxiliar de armazém, e, após muitas idas e voltas pelo interior, era o momento de ser artista. Procurou as emissoras e rádios da cidade para fazer testes. Até que um diretor da Rádio e TV Tupi Canal 3, a pedido de um de seus irmãos, o chamou para ser figurante. “Tem algumas figuras dessa época que eu gosto de citar: Plínio Marcos, Chico de Assis, Walter Negrão, Fúlvio Stefanini. Não era fácil, tanto que eu cito poucos. Num quadro de aproximadamente 200 pessoas, se dez seguiram carreira é muito. Você tinha que ter talento mesmo, não é como hoje, que muitos artistas são invenções da máquina”. Sua estreia em novelas foi em “Alma Cigana”, exibida pela TV Tupi em 1964. Escrita por Ivani Ribeiro, foi a primeira telenovela gravada em videotape e a primeira diária da emissora. Foram oito anos de Tupi. Alguns quilômetros distantes, seus pais acompanhavam, orgulhosos, o eterno “Boy”. “Eles não tinham televisão e minha mãe dizia que estava chato ir assistir o próprio filho na tevê da casa do vizinho. Fizemos uma vaquinha e compramos um aparelho para ela”, conta Boldrin. 54 "eu sonhava com o sucesso. aliás, eu não sonhava, eu via. sabia que o meu caminho era esse" O amor pelo teatro o acompanhava desde a “meninice”. Quando o circo chegava a sua cidade, o garoto de São Joaquim corria para a primeira fileira da arquibancada, com os olhos azuis brilhando, para ver os atores. “Um bom ator não é realmente bom se não passar pelo teatro”, diz. Então, em 1966, foi para o Teatro Oficina, que acolheu nomes de peso, como Célia Helena, Lineu Dias, Beatriz Segall e Paulo Goulart. Mais tarde fez parte do Teatro de Arena, outra vez com nomes consagrados da televisão – Antônio Fagundes, Aracy Balabanian, dentre outros –. A passagem pelo cinema foi breve, mas não menos importante. Em 1978, a convite do diretor João Batista de Andrade, estreou no filme “Doramundo”, junto com Antônio Fagundes, Irene Ravache e Armando Bogus. Sua atuação lhe rendeu o prêmio de melhor ator pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). “Credite” no Brasil Nos anos 1980, começou seu grande projeto de vida: o de divulgar a cultura regional brasileira. E a estreia foi na TV Globo com o “Som Brasil”. “Essa ideia sempre caminhou comigo. Achava que tinha que aproveitar o meu conhecimento e mostrar que a música do nosso país não é apenas o samba. Era como se eu fosse o encarregado de uma tarefa”. A iniciativa passou por diferentes emissoras: “Empório Brasileiro” (TV Bandeirantes, 1984), “Empório Brasil” (SBT, 1989), “Estação Brasil” (CNT, 1997) e o atual “Senhor Brasil” (TV Cultura). Os nomes mudaram, mas nunca a essência. “Tivemos uma convivência diária durante quase um ano no SBT e nos consideramos irmãos de sangue. Insisti muito para ele levar o nome ‘Senhor Brasil’ para a Cultura, porque ele é, de fato, o Sr. Brasil. É quem mais se dedicou a mostrar a música local e faz isso como ninguém. Junta o trabalho de ator com o talento para imprensa | abril 2014 299 Perfil.indd 54 25.03.14 18:05:13 Arquivo Alf Pessoal Ribeiro representar seus causos, e isso é único. Nós compartilhamos os mesmos ideais, cada um dentro da sua profissão, mas fazemos a mesma coisa: batalhamos por uma cultura rica e que tem pouco espaço na mídia”, conta o seu “compadre”, o artista gráfico Elifas Andreato. Rolando pode ser considerado o padrinho de muitos cantores e duplas caipiras, como de Pena Branca e Xavantinho, Caju e Castanha, e do grande violeiro Almir Sater. No começo, convidava para o programa músicos que conhecia de outros carnavais, mas, com o tempo, passou a receber milhares de fitas cassetes de cantores que queriam mostrar trabalho. Mesmo com o aumento da procura, a regra sempre foi clara: não iria trabalhar com o sucesso. Quando Milton Nascimento participou de um espetáculo, o apresentador não o deixou cantar suas canções mais famosas. Milton tocou sanfona e contou causos. O segredo era fazer coisas que os artistas não estavam acostumados a fazer, sair do “comum”. Boldrin, hoje aos 77 anos, afirma que a música caipira nunca mudou. O que mudou foi o conceito que o público criou com o título sertanejo, que, para ele, nada tem a ver com o caipira tradicional. “Acredito que o termo surgiu na década de 1950, para tirar aquela coisa pejorativa de ser chamado de caipira, que vinha com a imagem do Jeca Tatu. Algumas duplas tinham certo pudor em serem chamadas assim, aí inventaram o nome sertanejo, e ainda carregavam no ‘r’. Isso virou uma corrente de música de mau gosto e vende muito. Acham que ficar rico é bom e a mídia cai em cima desses. Nós remamos contra a corrente”. Ele compartilha da opinião do “compadre” Elifas, e acredita que os meios de comunicação do país não exploram a cultura brasileira. “É uma pena. Felizmente meu projeto gerou o interesse em outras cidades. Em Belo Horizonte (MG), por exemplo, tem o ‘Arrumação’, que teve como base a minha ideia. São formiguinhas trabalhando em "eu me considero uma pessoa comum. sou urbano, sou roceiro, sou brasileiro" paralelo. Mas, na grande mídia mesmo não tem nada. Não podemos levar em conta atrações como o ‘The Voice’, que até o título é ridículo”, diz. Em certo ponto dessa jornada bateu um cansaço, um desgaste em continuar com sua “missão”. Mas, por insistência do atual presidente da TV Cultura, Marcos Mendonça, Boldrin voltou como o atual “Senhor Brasil”. Já nos cinco primeiros meses no ar, a atração ganhou como melhor programa da televisão brasileira pela APCA. Neste ano, ele completa nove anos na emissora. Para Patrícia Maia Boldrin, sua produtora, cenógrafa e esposa há dez anos, o que mais chama a atenção durante as gravações são as “coincidências” que sempre acontecem. Certa vez, o convidado era um músico de Franco da Rocha (SP), que ia cantar a música “Nossa Senhora”. Momentos antes da gravação, chegou uma caixa com uma peça artesanal da santa, sem que estivessem esperando. “O artista acabou cantando para a imagem, foi bem emocionante. Existe um astral mágico lá. Às vezes falam de alguém e o quadro da pessoa cai, chega a ser até misterioso”, brinca Patrícia. “Contadô” de causos “Quem não gosta de um causo?”, pergunta o caboclo urbano. Desde moleque, saia pelas ruas do interior colhendo alguns para o seu repertório. Há muitos verídicos, histórias do povo. Já outros podemos dizer que são “estórias”. É quase igual piada, não tem dono. Uma pessoa conta em um canto e, numa fração de segundo, correu o mundo. Boldrin diz que tem uns 250 causos registrados, mas sempre se surpreende com um que não conhecia. Aí reconta. “Muita gravadora já quis gravar essas histórias, mas nunca aceitei. Não é apenas contar, exige toda uma atuação”, completa. Têm os clássicos, que o público sempre pede, como o “Fordinho 29”*, que, segundo ele, é verídico. Em um trecho imprensa | abril 2014 299 Perfil.indd 55 55 25.03.14 18:05:26 Arquivo Pessoal Iolanda Huzak Iolanda Huzak Arquivo Pessoal raízes a dupla boy e formiga; com ary toledo e gilberto gil, no “som brasil”; com gilberto rondon e xisto guzzi, no 5 6 i m p da ren a | aem b r1959 il 2014 teleteatro tvs tupi, 299 Perfil.indd 56 de seu livro “Histórias de Contar o Brasil”, explica: “A esses pequenos e pitorescos momentos de cada um de nós, e por terem sempre um leve toque de humor sadio no conteúdo, resolvi apelidá-los de causos. Causo, aliás, é um termo já famoso no dicionário Aurélio, vem traduzido por: uma história contada. O que justifica estar perfeitamente correto dizer causo, não sendo, portanto, esta palavra, como muita gente pensa, um jeito errado ou ‘caipiresco’ de dizer caso”. “O Rolando recebe muitos causos do público e, às vezes, durante uma refeição ou outra, conta para nós, para ver se dá efeito e se achamos graça. Eu admiro sua ética e a forma que conduz seu projeto de vida. Ele não tem um discurso separado da prática. É o Rolando Boldrin que apresenta o programa, não um personagem”, diz Patrícia. Atualmente, além da atração, ambos tocam o projeto “História de Amar o Brasil”, que envolve a ideia de produzir um documentário. “Não quero chamar os holofotes para mim como artista. Quero que as pessoas amem o meu país, assim como eu amo”. O casal leva uma vida sossegada em Granja Viana, Cotia (SP). A trilha sonora são os pássaros cantando e a decoração da casa vem de todos os lugares do país – muitos são presentes de seus convidados e amigos –. Num outro canto, repousa sua fiel companheira, a viola. Olhando para ela podemos viajar no tempo, ainda lá no interior de São Paulo, quando, bem menino e autodidata, aprendeu a tocar. Não seria exagero dizer que ela o acompanhou desde então e ajudou a construir essa sólida carreira. “Eu me considero uma pessoa comum. Sou urbano, sou roceiro, sou brasileiro”, completa. Para tentar explicar o que mais o emociona nessa amada terra do Brasil, que tanto defende, pega emprestado um verso de Érico Veríssimo. “E vendo e ouvindo este campeiro tão íntimo da terra e da vida tão iluminado pela sabedoria do coração, você compreenderá que o homem brasileiro é milagrosamente um só de norte a sul de leste a oeste, a despeito de suas distâncias geográficas, um só no que possui de essencial: a cordialidade, o horror à violência, a capacidade de dar-se e também de rir da vida dos outros e de si mesmo”. “Essa é a maior definição, para mim, do brasileiro. Nós somos únicos”. *Veja galeria de fotos e áudio de causos no Portal IMPRENSA. 25.03.14 18:05:35