Leia um trecho do livro

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Leia um trecho do livro
A Cura
Título Original: Healer
Copyright © 2010 by Carol Wiley Cassella
Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2012.
Editor: Paulo Fernando Ferrari Lago
Coordenação Editorial: Claudio Kobachuk
Coordenação Gráfica: Renata Sklaski
Tradução: Liliana Negrello
Revisoras: Claudia Cabral Oliveira, Adriana Gallego Mateos, Valquíria Molinari
Capa: Fabio Paitra
Diagramação: Cláudio R. Paitra, Marline M. Paitra
Nota: A edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais.
Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Grafia atualizada segundo o acordo
ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
EDITORA NOSSA CULTURA LTDA
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Mossunguê
Curitiba – PR – Brasil
Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108
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Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Cassella, Carol.
A cura / Carol Cassella ; tradução: Liliana Negrello. Curitiba, PR : Nossa Cultura, 2012.
330 p. ; 23 cm.
Tradução de: Healer.
ISBN 978-85-8066-085-2
1. Ficção americana. I. Título.
CDD (22ª ed.)
813.5
Dedicatória
“Para Kathie e Ray,
que me mostraram como se constrói um bom casamento.”
A Cura
C a rol W i ley C a s sel l a
•
1•
O corpo é um milagre, a forma como ele se cura. É como uma fábrica de
sobrevivência e autorreparo. Tão logo ocorre um corte na carne, as células
começam a se dividir espontaneamente e a se conectar umas às outras numa
cicatriz de proteção. Um milhão de novas ligações orgânicas atravessa o local
machucado, sem que seja levada em conta a forma como o ferimento ocorreu.
Em seus anos de residência, Claire tratou um paciente em choque que sentiu
apenas uma breve fisgada, olhou para a mão amputada e se perguntou a quem
aquele membro pertencia – mesmo a dor pode ceder ao silêncio quando diante
do imperativo de continuar vivendo.
Tantos anos depois, Claire ainda compreende o corpo humano. Ela
entende seus mecanismos involuntários de cura. Mas como curar um
casamento machucado – isso ainda é um mistério.
A casa está muito fria. Os dedos de Claire permanecem completamente
brancos das juntas até as pontas – ela tirou as luvas logo depois que terminaram
de descarregar a carreta, algumas horas atrás. Não devia mais sentir tanto
frio agora que estava dentro de casa, mas parece que a sensação encontrou
o caminho até seu coração e de lá se irradia para todos os lados, gelando os
cômodos. Eles não estiveram nesta casa desde o último verão. A poeira cobre
todas as superfícies e há fezes de ratos, que parecem sementes, espalhadas nas
almofadas do sofá e nas bancadas. A lívida luz que atravessa a janela parece
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fraca demais para carregar em si qualquer cor; tudo na sala está reduzido a
uma sombra cinzenta.
Jory se senta em uma caixa de papelão com os braços cruzados em frente
ao corpo, o cabelo solto sobre os ombros. “Quando o papai vai chegar?”,
pergunta.
“Ele está em uma viagem de negócios. Vai vir assim que puder.” Claire
responde calma e suavemente, da mesma forma como tem falado sobre
qualquer assunto com Jory nos últimos dias, apontando até mesmo as opções
de cereais para o café da manhã, mostrando suas caixas, como se fossem
pomadas, ou pílulas verbais de Frontal ou Vicodin. Ela se ajoelha para abrir
a portinhola da lareira e amassa um jornal entre os pedaços de madeira,
olhando através de Jory e procurando na filha alguma outra emoção, além de
raiva mal-humorada. Claire acende um fósforo, protegendo-o com a concha
da mão até que ele atinja a borda do jornal e as previsões para o mercado de
ações da semana se tornem uma chama alaranjada e quente. A fumaça fere
seus olhos e ela pisca, fechando em seguida a grossa porta de vidro da lareira
e puxando a alavanca até que o ar do interior da chaminé comece a expulsar
faíscas cinza-prata na noite.
Jory fica em silêncio por alguns minutos. Então, diz, em tom quase
acusador: “Não temos muita lenha.”
Claire vacila, o que ouve é “Pais é que fazem fogo, mães só sabem ligar o
termostato”, e sente vontade de retrucar que hoje elas duas têm muito menos
do que tiveram um dia graças ao marido. “Temos bastante madeira lá no
barracão”, responde. “Preciso ensinar você a usar a lareira.”
Jory a ignora, enfiando as duas mãos entre os joelhos e se virando para
a janela, de modo que tudo o que Claire pode ver é a cascata de cabelos
dourados da filha.
“É uma boa lareira”, Claire continua. O corretor de imóveis dissera isso,
não foi? Ela não deu grande importância na época; nunca esperava ter de
dormir aqui no inverno. “Vou chamar o homem da calefação amanhã. E papai
pode trazer alguns aquecedores quando vier.”
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“As aulas começam amanhã”, diz Jory. Claire atira mais madeira
para dentro da lareira e bate a porta antes que a pilha de lenha se desfaça
e escorregue para fora. “As aulas começam amanhã”, repete Jory, em tom
acusador agora.
Claire olha para ela e responde, pela primeira vez no dia, de igual para
igual. “Vai dar tudo certo. Há uma escola em Hallum se ficarmos muito tempo
por aqui.” Ela percebe a expressão pétrea no rosto de Jory e acrescenta: “Ou
você pode estudar com uma professora particular. O que preferir.”
Jory parece encolher, como se pudesse se transformar em uma bolinha.
Seu rosto está enfiado dentro dos braços cruzados e sua voz é quase inaudível.
“Quero voltar.”
Claire se senta no chão coberto de cinzas e observa as faíscas que se
chocam com a porta de vidro da lareira como se fossem pequenos animais
lutando para escapar de um inferno. “Bem. Não é possível. Pelo menos por
enquanto.” As palavras saem duras como uma bofetada, e não era isso que
ela queria. Cerra os dentes ao terminar a frase. Mas outras palavras ainda
estão queimando em sua cabeça, palavras que ela prefere sufocar para evitar
machucar a pessoa que ama – uma ladainha de todas as coisas para as quais
Jory não vai mais poder voltar: não haverá mais escola particular, nem aulas
de balé, ou mesmo a confiança inabalável de que o dia de amanhã vai ser o
mesmo ou melhor do que hoje. Não haverá mais caminhadas para pechinchar
no mercado local e passeios nos arredores de sua casa, próxima à região do
lago, em Seattle.
Parece uma piada perversa, pensa Claire, que depois de anos de
poupanças e seguros não tenha sido um incêndio, uma inundação ou uma
doença que fizeram seu mundo entrar em colapso. Não foi o aquecimento
global ou o terrorismo, não foram impostos sonegados ou tsunamis, ou
nenhuma das manchetes ameaçadoras que a levaram a reabastecer seus kits
de emergência da Rubbermaid e esconder chumaços de dinheiro nos bolsos
internos dos paletós guardados na parte de trás do armário. Em vez disso,
para Claire, Addison e Jory, o problema foi bem mais pessoal, como uma
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bomba colocada precisamente para destruir apenas as suas vidas, deixando
seus vizinhos e amigos ilesos e amistosamente embasbacados.
Claire descobrira o primeiro indício de sua ruína escaldante ao ter um
cartão de crédito Visa recusado durante um passeio de compras de Natal
com Jory. Ela iria comprar, entre todas as possibilidades mais irônicas,
apenas um guarda-chuva portátil de doze dólares. Deixou uma mensagem
no telefone celular de Addison advertindo-o de que o cartão de crédito havia
sido hackeado, imaginando que o problema podia ser do banco ou do sistema
de computadores. Certamente, eles estavam sendo injustiçados por alguma
força externa.
A luz do dia praticamente já desapareceu, mas ela não quer sair de perto
do fogo nem mesmo para acender a luz. É mais fácil sem Addison por perto. O
pensamento atinge a superfície do subconsciente de Claire com a velocidade
de um pássaro em perigo. Jory está encarando o chão de pinho cheio de
riscos, alheia à angústia da mãe. Claire consegue manter uma fachada falsa
para Jory – a maternidade ensina como fazer isso desde o primeiro sorriso
tranquilizador que você dá ao seu bebê depois que ele sofre uma queda pela
primeira vez. Mas se Addison estivesse aqui, ele poderia ver o que estava se
passando com Claire, ela tem certeza disso. Ele perceberia a dúvida e, em
seguida, a dúvida se tornaria real – poderia ser o limite para uma separação.
Isso a faz quase desejar que sua vida aqui seja muito difícil sem ele. Afinal,
se elas puderem fazer tudo sozinhas, apenas ela e Jory, o que uniria a família
além de tênues lembranças agradáveis?
Jory está tremendo de frio e Claire busca em volta delas a caixa onde
estão os agasalhos. Ela rasga a fita que fecha as caixas de porcelanas, calçados
e lençóis – o som decidido dos puxões no papelão quase bem-vindos diante
do silêncio determinado de Jory. Na terceira caixa, Claire descobre alguns
agasalhos antigos, dos tempos de colegial de Addison, envolvendo vasos,
castiçais e uma de suas tigelas Waterford favoritas. Joga um moletom para
Jory e coloca outro sobre seu corpo, apertando o cordão do capuz ao redor do
rosto e sentindo um cheiro familiar em meio ao tecido de algodão grosso: um
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toque de bolor e madeira velha e até mesmo, imagina, do armário do colégio
de Addison, o perfume indelével de seu suor adolescente. Ela alinha as frágeis
peças de cristal ao longo do suporte da lareira, tirando o pó da tigela com as
mangas da luva antes de colocá-la no suporte.
“Por que você está desfazendo essas caixas?”, pergunta Jory, escondida
atrás do manto formado por seus cabelos.
“Não tenho motivo para deixar tudo empacotado”. Claire desembrulha
um conjunto de baixelas, buscando em suas reservas emocionais alguma
forma de suavizar a desolação que percebe na voz da filha. “Elas não são
bonitas? Podemos usá-las também enquanto estamos aqui.”
“Só para sujar ou quebrar tudo.”
“Sua avó nos deu essas baixelas pouco antes de você nascer.” Claire olha
para a sua imagem distorcida na prata e imagina sua própria mãe sentando à
mesa com elas nesse cômodo gelado, franzindo os lábios ao servir rodelas de
tomate ou torta de frutas enquanto Claire tenta explicar por que elas tiveram
de se mudar. “Você pode colocar isto sobre a mesa, por favor?”
Jory nem se mexe. Claire abandona a baixela em cima de outra caixa
fechada e se levanta, limpando as cinzas de sua calça jeans. “Vamos jantar
fora.”
Sem olhar para ela, Jory diz: “Pensei que não pudéssemos mais nos dar
ao luxo de comer fora.”
“E não podemos.” Claire procura nos bolsos e nos jornais espalhados
pelo cômodo. “Onde deixei minhas chaves?”
***
A comida ajuda. Às vezes, quanto mais barato e gorduroso, melhor. Com
um cheeseburger diante de si, Jory começa a falar novamente: uma conversa
sobre chapinhas para o cabelo, qual será a largura ideal das pás do aparelho?;
sobre curvex, será que ele pode realmente arrancar seus cílios?; sobre o balé,
claro, sobre seus amigos da escola de dança e o que eles pensam do próximo
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recital. E se pergunta se poderá pedir que alguém envie novas sapatilhas de
ponta pelo correio, já que certamente não deve haver onde comprá-las nessa
cidade minúscula.
Com o tempo, Claire passou a ver a adolescência como uma porta giratória
compartimentalizada. A abertura ocorre de repente e leva a diferentes setores
da vida da filha. O truque é estar sempre pronta para pular para dentro. Há
um aspecto de viagem no tempo nessa metáfora: ela pode mostrar aspectos
futuros , como Jory com dezoito anos, competente e cheia de esperanças, ou
um vislumbre do passado, Jory aos oito, faladora, cheia de uma admiração
entusiasmada e desinibida.
Claire empurra as batatas fritas por cima da mesa de fórmica na direção
da filha e descansa o queixo nas mãos entrelaçadas. “Vamos até Seattle
novamente quando você precisar de novas sapatilhas de ponta. Não é tão
longe, se as estradas estiverem desimpedidas. Podemos passar um final de
semana lá vez ou outra. Juntar seus amigos.” Ela não menciona o fato de que
não há uma escola de balé em Hallum Valley. “Assim que a mobília toda
chegar, por que você não convida alguns amigos para virem até aqui?”
“Para fazer o quê?”
“Esquiar. Fazer caminhadas. Mountain bike.” Claire come outra batata
frita, lutando para encontrar alguma coisa que adolescentes realmente
poderiam achar interessante em Hallum. “Não sei. O que você gostaria de
fazer?”
“Ir ao cinema. Fazer compras. Passear no shopping. Nada que possa ser
feito aqui.” Jory afunda no silêncio novamente. “Falando nisso, onde vou
dormir hoje à noite?”
“Era isso que a estava preocupando? Você vai dormir comigo.” A casa
estava minimanente mobiliada. Tinha um sofá, comprado num brechó no
ano anterior, um conjunto de cadeiras dobráveis ​​de metal e uma mesa de
jantar. Até que o caminhão de mudança chegasse, elas teriam apenas uma
velha cama de casal que haviam conseguido colocar na carreta de mudança,
espremida em meio às caixas menores. “Vai ficar mais quentinho desse jeito.”
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Ela espera que a reação de Jory seja péssima, mas o rosto da menina suaviza,
como se tivesse sido aliviado de um grande fardo. O colchão da cama, pensa
Claire, é o mesmo em que Jory foi concebida.
A garçonete traz a conta e pergunta se elas querem sobremesa. Claire
pede dois sorvetes e um café, apenas para adiar ter de olhar os números. Cada
centavo gasto ali é de dinheiro emprestado; eles estão emprestando para pagar
juros de dinheiro emprestado. O que é mais um sorvete nesse contexto? Jory
puxa a caderneta de plástico que contém a conta e abre-a para conferir o total,
depois, fecha-a novamente e empurra na direção da mãe. “Vamos supor que o
papai encontre um novo investidor na próxima semana. Poderíamos comprar
nossa casa de novo?” Jory assume uma careta cômica que sempre indica que
ela está no limite – pronta para reprimir seus sentimentos e transformar tudo
numa piada.
Claire faz seu melhor para sorrir. Sua boca alarga, ela pode forçá-la a isso,
mas não consegue alterar a expressão do resto do rosto – os olhos exaustos,
as rugas na testa. Tem vontade de perguntar a Jory o quanto ela escutou por
trás das portas, que rumores ouviu na escola para além das explicações que
Addison e Claire deram. E, ao mesmo tempo, não quer saber. Não tem mais
energia para garantir a Jory que a família é o verdadeiro lar – e que ela não
pode ser vendida ou perdida. Como se agraciada por um momento de instinto
precoce, Jory desvia o olhar do rosto da mãe e volta sua atenção para desenhar
alguma coisa em seu sorvete derretido. “Vamos encontrar uma casa melhor
dessa vez. Você poderá escolher os cômodos”, diz Claire. Jory deixa escapar
uma risadinha curta, sem olhar para cima, e Claire não consegue saber se ela
está apreciando seu esforço de otimismo ou ridicularizando a simplicidade
de sua mãe.
“Então”, diz Jory, após um suspiro profundo, seu tom completamente
transformado, como se as frases anteriores houvessem sido ditas por outra
pessoa em outro lugar. “O que você vai fazer amanhã?”
“Desempacotar. Tirar o pó. Quer me ajudar?”
“Não”, responde Jory, balançando-se em sua cadeira.
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“Ótimo! Então a decoração de seu quarto fica comigo?”, pergunta Claire,
saboreando seu sorvete em seguida.
“Pensei em pintar alvos ao redor das manchas de bolor das paredes.
Então, o que você vai fazer depois de desempacotar tudo?”
“Depois de nós desempacotarmos tudo?” Claire segura sua colher e
leva o creme espesso e doce até sua língua – um prazer dos mais simples.
Qualquer assunto parece mais fácil para ela agora. “Talvez comece a procurar
um emprego.”
“Um emprego?”, Jory soa aturdida, e as pernas da frente da cadeira batem
no chão de concreto. “Fazendo o quê?”
Claire balança a cabeça diante da incredulidade de Jory, espera um
momento para que a filha se recomponha e responde: “Como médica. O que
mais seria? Acha que eu poderia ganhar dinheiro como mãe profissional?”
Jory não responde imediatamente. Olha para a mãe, conciliadora,
e assume um ar momentâneo de seus futuros dezoito anos de idade. “Não
consigo imaginá-la como médica.” Claire dá de ombros e mergulha a colher
cheia de sorvete no café, observando a mancha turva marfim se misturar ao
líquido formando um tom de chocolate. Jory bufa – a menina de quatorze
anos está de volta. “Quer dizer, sei que você é médica. Mas você já deve ter
esquecido tudo a esta altura. Quanto tempo faz desde que você realmente
atendeu um paciente?”
“Bem, quantos anos você tem?”
“Quatorze. E três meses. E treze dias”, responde Jory, depois de se
demorar um momento nos cálculos.
“Tudo bem. Então, faz quatorze anos, seis meses e vinte dias desde que
atendi um paciente”, responde Claire, lembrando das treze semanas em que
ficou de cama, desejando todo o tempo que seu útero se mantivesse tranquilo
para nutrir os delgados pulmões de Jory mais um dia, mais uma hora, só
o suficiente para garantir sua sobrevivência. Todos os anos gastos em sua
formação como médica seriam absurdamente inúteis se o preço final a pagar
fosse perder a vida dentro dela.
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“Deus. Por favor, que eu não seja a primeira cobaia”, diz Jory. “Então,
você vai usar um jaleco branco e tudo?”
“Não sei. É isso que faz de alguém um médico?”
Jory fica em silêncio por um momento. Estuda a mãe com um olhar
cético que faz com que Claire se sinta estranhamente insegura. Ou talvez não
seja ceticismo – talvez seja constrangimento. Estaria Jory com vergonha de
imaginar sua mãe atendendo pacientes reais, possivelmente seus próprios
colegas de classe se, na verdade, ela se dignasse a frequentar a escola em
Hallum?
Claire se mexe desconfortavelmente na cadeira e coloca os dedos sobre
a orelha da xícara de café. Então, enfia as mãos entre os joelhos e se inclina
na direção da mesa, como se fosse contar um segredo: “Talvez você possa
me ajudar a escrever meu currículo. Sabe como fazer isso?” Jory nega
com a cabeça, mas suga o lábio inferior, provavelmente considerando as
possibilidades que ela poderia tirar dessa oferta.
Claire observa seu silêncio. “Você poderia me ajudar a praticar minhas
falas para uma entrevista. Ou pelo menos me ajudar a escolher o que vestir.”
Jory pega sua Coca-Cola e segura o recipiente frio nas mãos envoltas
pela manga comprida do moletom de gola alta. É um visual renascentista
que combina com ela, pensa Claire, um visual que harmoniza com o
comprimento de seu cabelo e com sua pele pálida – como uma Julieta
pensando sobre a proposta de casamento feita por Paris. Ou Portia
contemplando a misericórdia. Ou iria o duro destino invadir a casa dos
Boehning e transformá-la em uma Ofélia enlouquecida?
“Bem, faça o que fizer, não use vermelho. Sabe aquele terninho que você
tem? Deveria sumir com ele, mamãe. Sinto muito”, acrescenta, num autêntico
pedido de desculpas.
“O preto é melhor?”
Jory dá de ombros e pega seu copo para tomar o último gole de Coca-Cola, retendo um anel de gelo com a língua. “Pox axumar xeu cabexo?”
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Claire franze o rosto, confusa, enquanto Jory engole o gelo. “Posso arrumar
seu cabelo?”
“O que você sugere?”, Claire pergunta, passando os dedos pelos cabelos.
“Uma franja. Para esconder as rugas. E pintar os fios cinzas.”
“Estou muito grisalha?” Claire desistira do compromisso no cabeleireiro,
sabendo de antemão quanto ele custaria – um impulso infantil para se vingar
de Addison, imaginando que ele poderia contar os meses de dureza por que
passassem pelo comprimento de seu cabelo grisalho.
“Desde o Natal que você está deixando assim. Na verdade, fica até bem
em você, mas ninguém vai querer contratar alguém que é velho”, Jory se
empertiga, com uma confiança crescente nos olhos.
Claire sente como se parte dela estivesse derretendo, como se o seu corpo
de repente encolhesse dentro da pele. Nesse momento, não tem condições de
lidar com o fato de que a idade pode ser um fator importante para um médico,
quando vem acompanhada de experiência e credenciais. Claire se levanta.
“Vamos”, diz, colocando os braços em seu casaco.
Jory hesita, sua confiança oscilando. “Eu não queria...”
“Está tudo bem. Só tenho que manter o fogo aceso ou a casa ficará muito
fria durante a noite.”
•
2•
O fogo está completamente apagado quando elas chegam em casa, não
há qualquer sinal de fumaça saindo da chaminé e as janelas da sala estão
completamente escuras. Claire pensa que deveria ter deixado uma luz acesa,
algum sinal luminoso ao final da longa e sinuosa estrada, ladeada por losnas
e árvores baixas, que leva até a casa. O reflexo das estrelas na neve é a única
fonte de luz – uma situação de isolamento que é mais agradável quando
Addison está junto delas, e quando eles todos acabam de chegar para um
descanso da cidade. Ela passa o telefone celular para o assento traseiro do
carro. “Ligue para seu pai. Ele provavelmente já está de volta ao hotel agora.”
Claire ouve o fim da conversa de Jory, cheia de descrições exageradas sobre a
forma como a carreta foi descarregada, sobre a dificuldade de subir o colchão
pela escada estreita, sobre quando eles vão instalar a internet para que ela
possa checar sua página do Facebook e sobre a cor que ela pretende pintar a
parede de seu quarto. Ele não precisa ficar esperando pelo momento em que
a porta giratória vai permitir que pule para dentro da vida de Jory. Claire
estaciona e tira mais duas caixas do porta-malas, depois bate na janela traseira
do carro pra chamar Jory para dentro.
“Então, como foi sua reunião?”, ela pergunta ao marido, quando Jory
finalmente abandona o telefone. Claire tenta, como sempre nesses dias,
perguntar de forma despreocupada e simples, como se seu destino não
dependesse da resposta.
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“Ótimo. Muito bom.”
“Muito bom?” Ela equilibra uma das caixas entre o quadril e a parede
enquanto destranca a porta da casa. Jory está encolhida atrás dela, pulando
de um pé para o outro para se manter aquecida.
“O que posso dizer? Há uma série de laboratórios trabalhando em
medicamentos antiangiogênese. Marquei reuniões com duas empresas para
o mês que vem.”
“Então, não houve nenhuma conversa sobre possíveis contratos.” Claire
morde os lábios, dizendo a si mesma mais uma vez para não iniciar cada uma
das conversas entre eles com uma pergunta sobre trabalho, cheia de esperança
de ouvir uma resposta que ela sabe que ainda não vai escutar.
“Ninguém quer se comprometer imediatamente, Claire. Mesmo os
gigantes estão sentindo o aperto do crédito.”
Ela entra na casa e desliza a caixa de papelão até o chão, pressionando
em seguida a testa contra a porta fechada e apertando a mandíbula para se
defender do frio. “Está menos oito graus esta noite. Estão dizendo que pode
chegar a menos dezessete na próxima semana. Vou chamar o cara da calefação
novamente amanhã. Não vamos conseguir aquecer a mais de doze positivos
só com a lareira.”
“Faça o possível para convencê-lo a arrumar a que já existe na casa.”
Claire odeia o tom sóbrio e agourento do marido, que dá a entender
que ela já não sabia o que fazer. Todas as suas conversas parecem gravitar
ao redor do dinheiro, o vórtice que os suga para o fundo mais rápido do que
eles conseguem nadar. Ela respira e tenta mudar de assunto. “Seu hotel é
agradável? Traga para mim algum xampu bacana se for de graça.”
“Está tudo bem. Estou no Sheraton. A conferência em Chicago vai
acontecer no Drake, mas posso ficar no aeroporto.”
Claire se senta em uma das cadeiras da mesa de jantar, ainda com seu casaco, e passa a mão nos cabelos, puxando-os para trás da testa e massageando
o couro cabeludo.
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“Addison, se hospede onde está acontecendo o encontro. Metade dos
negócios são fechados no bar do hotel de qualquer forma – você sempre diz
isso.” Ela se afunda um pouco mais na cadeira e passa a ponta dos dedos nos
vincos da mesa. “Acho que vou tentar escrever meu currículo hoje à noite.”
Diz tudo sem rodeios, cansada demais para fingir uma voz de líder de torcida
animada.
Addison dá uma risadinha, como se ela tivesse feito uma brincadeira,
mas quando Claire não responde ao gracejo, acrescenta: “Podemos aguentar
mais uns meses. Você não está querendo tentar isso de verdade, né?”
Agora é Claire que começa a rir, tão alto que logo o rosto de Jory aparece
do outro lado do sofá. Claire baixa a voz. “Só estou pagando juros de dezoito
por cento em um cheeseburger!” De repente, lembra-se da festa de despedida
que suas amigas mais próximas organizaram no último minuto, já que
Claire não tinha tido coragem de contar a ninguém que seriam obrigados a
deixar Seattle e que sua casa estava sendo vendida. Elas trouxeram presentes
femininos e indulgentes – sais de banho, latinhas de chá de ervas, um cupom
para passar o dia no spa e cozidos que Claire poderia congelar para levar
para as montanhas. Tudo ia muito bem, até que uma das amigas perguntou
como Addison estava lidando com as notícias decepcionantes a respeito dos
medicamentos nos quais ele havia apostado e as outras fizeram um silêncio
constrangido. Sua amiga Anna, casada com o maior investidor de Addison,
finalmente salvou a pátria brincando que ele tinha condições de ganhar um
milhão mais rápido do que Wall Street conseguiria fazer a mesma soma
desaparecer. Mas Claire não conseguiu renovar seu humor, e os presentes
pareciam agora apenas mais dívidas que não poderiam ser pagas.
Addison pigarreia e ela praticamente pode vê-lo apertar o telefone,
navegando outra vez para um assunto mais calmo. “Então, vocês estão bem
por aí? Tem lenha suficiente, não é? Não se esqueça de avisar os Hendler de
que vocês estão usando a casa – ou eles vão chamar a polícia quando virem a
fumaça.”
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“Sim. Estou ficando boa em fazer fogo. Traga alguns aquecedores quando
vier, de qualquer forma, tá? E ratoeiras.”
“Claro. Está tudo na minha lista.” Addison parece aliviado por ter
uma tarefa que pode ser realizada tão facilmente. E Claire sabe que ele vai
escrever um bilhete para não esquecer nada assim que desligar o telefone –
Addison sempre adorou fazer listas para ter o prazer de ir riscando tudo. Ela
o apanhara, em mais de uma ocasião, rabiscando tarefas já realizadas. Certa
vez, Claire chegou a descobrir seu presente de aniversário – o Audi – quando
viu um bilhete que Addison deixara para se lembrar de ligar para a empresa
de seguros.
Claire se levanta e caminha até um canto escuro da cozinha, enquanto
Jory se agacha perto da lareira, amassando bolas de papel e procurando na
caixa de lenha alguns gravetos menores. A pia da cozinha cheira a bolor
e Claire liga a torneira de água quente para tentar lavar o ralo. “Addison?
Você acha, ou você ouviu alguma coisa no encontro que explique por que
o estudo foi interrompido? É por isso que você não está conseguindo novos
investimentos?”
Addison respira profundamente e Claire quase deseja poder engolir a
questão. “Não, acho que não. Isso deveria estar protegido como informação
confidencial; ninguém tem permissão legal para falar sobre o assunto. Nem
mesmo Rick Alperts.”
Claire se abraça com força, tremendo por baixo do próprio casaco. “Você
não o encontrou em nenhuma das conferências, encontrou? Você acha que
poderia acontecer?” É uma pergunta ridícula. Rick é movido a riscos. Mas,
por alguma razão, é mais fácil transformá-lo num inimigo comum.
“Ouvi dizer que ele voltou para a Califórnia. As pessoas sabem que nosso
tempo e nosso dinheiro acabaram, mas ninguém conhece os detalhes.”
“Então, você tem certeza de que ele não falou com a Nature ou com o
Wall Street Journal?”
Addison ri, mas ela percebe a tensão no som de sua voz. A risada do
marido a deixa mais relaxada, como sempre, faz com que esqueça por alguns
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minutos os últimos meses e lembre que uma aposta estúpida não pode
arruinar o amor que há entre os dois. “Não, ainda não, pelo menos. Durma
bem, tá? Vejo você no sábado”, ele diz.
Na quarta-feira de manhã, Claire pendura seu terninho preto, que ficara
três semanas embalado em uma caixa, no canto do banheiro, esperando que o
vapor quente do chuveiro ajude a apagar os vincos do tecido. Porém, esquece
da camisa e, quando a encontra, percebe que está amarrotada em uma outra
caixa, junto com lenços de seda e lingeries. Será necessário abotoar o paletó
até o pescoço para esconder a camisa amassada. Os sapatos finos estão em
algum outro lugar, outra caixa, marcada com uma grossa caneta preta em
uma das laterais: ROUPAS DA MAMÃE. Por volta das duas da madrugada
anterior ao dia limite para deixar a casa de Seattle, Claire desistira do asseio
e começara a atirar seu guarda-roupa na primeira caixa que ainda estivesse
aberta, e a maioria delas não tinha nem mesmo sido entregue ainda. Claire
mergulha o rosto na caixa mais provável, cujas laterais estão começando a
ceder com o peso dos acessórios pessoais, e de onde sai um único salto de
sapato de couro preto. O outro pé aparece duas caixas mais tarde, debaixo de
um rádio-relógio, de um necessaire de perfumes e de três bolsas Tumi.
“Seu cabelo está um desastre”. Jory se aproxima da porta, quase
totalmente escondida pelo enorme e espesso roupão de Addison – círculos
pretos de rímel borrados sob seus olhos.
“Bem, então eles estão combinando com as minhas roupas. Seu pai
esqueceu de levar o roupão de banho?”
Jory dá de ombros, pega a escova de cabelos, posiciona-se de pé em
frente de sua mãe e começa a penteá-la lentamente, separando mechas nas
curvas dos dedos.
“Fique de pé e se vire. Seu visual está bom. Não parece uma médica, mas
está bom.”
“Bem, não precisarei me preocupar em vestir roupas bonitas se tiver
que colocar um jaleco branco todos os dias. Você vai ficar bem aqui sozinha
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por algumas horas? Tem cereais e uma pizza no congelador. Vou passar no
mercado hoje.”
“Ficaria melhor se tivesse chegado uma TV”, diz Jory, escovando seu
próprio cabelo, enrolando-o no topo da cabeça como uma torre e posando,
com o batom na mão como se fosse um microfone.
“Pelo menos o computador está funcionando. Tem uma caixa de DVDs
embaixo da cadeira. Acho que vamos precisar de algum tipo de satélite para
a internet.” Claire se olha de corpo inteiro no espelho pendurado na parede,
enquanto Jory se espalha na cama logo atrás dela. Há semanas que Claire não
usa nada além de jeans e moletom e o terno parece feito para outra mulher. Ela
alisa o tecido sobre o abdome e se vira para olhar por outro ângulo. O corte,
decide, não será problema.
“Então, esta roupa está boa?”
Jory se rola de costas no colchão e diz, olhando para o teto: “Claro.”
Claire se aproxima da cama e se inclina para entrar no campo de visão da
filha. “Estou apenas indo conversar com algumas pessoas no hospital, Jory.
Provavelmente vamos estar de volta a Seattle antes mesmo que eu consiga um
emprego, ok? Não coma só batata frita e refrigerante no almoço. Coloque algo
com proteína no cardápio. Acho que, se precisar, você consegue me ligar no
celular. Tenho quase certeza que o sinal pega lá.”
Claire apanha sua pasta executiva – deve ser a terceira vez que ela a usa
desde que a comprou há dez anos. Dentro, estão os currículos nos quais
ela e Jory trabalharam ontem o dia inteiro. Jory fora à biblioteca da cidade
para fazer download de alguns modelos e pescar adjetivos para que os fatos
relevantes da curta carreira de Claire pudessem preencher ao menos três
quartos da página. No bolso interno da pasta, Claire leva ainda cópias de seu
diploma médico, do certificado de estágio e da licença para clinicar. Ninguém
pediria para vê-los, a menos que a tomassem por uma charlatã completa. Mas
os documentos a fazem se sentir mais segura. Claire beija Jory no rosto e anda
na ponta dos pés até o carro para não quebrar seus saltos finos no gelo.
•
3•
Existem em Hallum Valley três clínicas médicas e um hospital com
capacidade para tratar problemas menores de ortopedia, partos de baixo
risco, apendicectomias e uma eventual laparotomia exploradora, se o tempo
estiver muito ruim para chegar à cidade mais próxima. Em noventa minutos é
possível ir de carro até Wenatchee, onde quase todos os problemas médicos e
cirúrgicos podem ser arrumados. Há muitas oportunidades de trabalho para
um médico. Claire repete a frase para si mesma, como o fez há vinte anos.
A economia pode ir bem ou mal, guerras podem ser ganhas ou perdidas,
governos podem ser conquistados ou derrubados e as pessoas, ainda assim,
precisarão dos médicos. O tamanho da cidade não pode ser um impedimento.
A saúde é o equalizador de todos os seres humanos.
Claire tinha utilizado esse argumento para justificar o empréstimo feito
para cursar medicina, e costumava usá-lo para se sentir mais forte no meio
da noite, quando precisava de algo estável para assegurá-la de que ficaria
bem na assustadora zona do limiar entre a idade jovem e adulta, quando
sua mãe a encorajava a descobrir uma maneira de se sustentar sozinha. Ela
decidiu aprender a arte de curar, porque ninguém tiraria isso dela. Era certo
que Claire poderia guardar e carregar consigo o conhecimento no espaço
protegido de sua mente. Para sempre. Assim parecia ser, pelo menos, quando
ela era jovem e não sabia que uma decisão ruim tomada no meio da noite
podia comprometer mesmo a mais fervorosa autoconfiança.
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Carol Wiley Cassella
A padaria Sunrise fica a dezesseis quilômetros da propriedade de Claire – a
doze das pequenas estradas municipais e a mais de três da principal avenida da
cidade – é um local quase tão tranquilo quanto as estradas que trazem a Hallum
Valley nessa época do ano. Ela estaciona o Audi numa poça de lama, abre a
porta e apoia a sola do sapato de couro fino num único dedo até chegar a terra
firme, mas acaba encharcando o outro pé numa massa de neve encardida.
É um lugar pequeno, com seis mesas e um balcão simples, uma grande
janela forrada com cortinas soltas que se mexem a cada rajada de vento. Ela
espera seu café e olha ao redor da sala: alguns casais aposentados lendo
jornal, duas mulheres com coletes de lã conversando no canto, seus gorros
ainda abaixados sobre as orelhas. Uma delas olha para os sapatos de Claire e
tenta refrear um sorriso. Claire sorri de volta e paga o café. Então, atravessa a
lama novamente e dirige até em casa para trocar sua roupa por um jeans preto
e botas de neve. Em seguida, atravessa as colinas novamente até o hospital.
Hallum quase se transformou em uma cidade fantasma três décadas
atrás, encolhendo a cada primavera. A mineração, a exploração da madeira e
a agricultura foram se exaurindo e os poucos que enriqueceram haviam ido
embora. Porém, a época da economia Reagan entrou em cena e o ouro da
tecnologia começou a escoar em grandes quantidades. Primeiro enchendo
baldes, depois banheiras, piscinas e lagos. Hallum sobreviveu por cultivar
duas classes, os serventes e os servidos, ambos fazendo uma interface com os
dólares trazidos pelos turistas. Garotos de trinta anos vestidos com roupas
esportivas da REI compraram ali suas segundas e terceiras casas e, depois,
partiram para uma aposentadoria no noroeste. Eles asfaltaram a estrada
até Issaquah, North Bend, Cle Elum e continuaram em frente, dirigindo
caminhonetes por toda a extensão das Cascades até Hallum Valley, um
local que o planeta parecia ter guardado virgem até que uma quantidade
supérflua de dinheiro pudesse acionar sua única commodity: uma paisagem
de tirar o fôlego. Ações na bolsa e ofertas públicas para abertura de capital
foram convertidas em casas de cinco cômodos com painéis de energia solar e
geradores à gasolina.
A Cura
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E, assim, a cidade foi sobrevivendo, lotada e apertada nos feriados e no
verão, tranquila e folgada no resto do ano. As lojas ficam em três quarteirões
da rua principal. Os vendedores de tratores foram convertidos em negociantes
de bicicletas, as lojas de alimentos ficaram repletas de prateleiras de aço
inoxidável e passaram a ofertar trigo integral, massas e azeite importados.
Até a Sunrise adquiriu uma máquina de café expresso Gaggia e contratou
um barista. Na cidade cuja divisão entre os que têm e os que não têm era
medida pela quantidade de ferrugem na pickup, um novo paradigma de
“normalidade” se estabeleceu rápido como um gás invisível. Agora, a divisão
ficou entre os que têm mais dinheiro do que um homem pode imaginar e
os que servem esses endinheirados. No meio dos extremos ficam as pessoas
que venderam suas fazendas improdutivas – mas com vistas inacreditáveis
– e seus estabelecimentos comerciais familiares que atendiam fazendeiros
e cultivadores de orquídeas, para depois ver os preços de venda e aluguel
de suas propriedades subirem vertiginosamente, enquanto seu dinheiro
escasseava.
Claire e seu marido haviam comprado a casa aqui alguns anos depois de
Addison vender sua primeira empresa de biotecnologia, a Eugena. Todos os
seus amigos possuíam uma segunda casa e parecia quase óbvio investir em um
lugar onde eles gostavam de passar as férias. Mas Claire nunca tinha pensado
em como seria ter uma caixa postal em Hallum como seu único endereço
fixo. Seus olhos passam pelas cores da pequena cidade enquanto ela dirige,
e é como se a pele do local tivesse sido virada do avesso. A simplicidade dos
edifícios de ripas lateriais, os portões de madeira, a ausência de semáforos,
luzes de néon e shoppings. Tudo ganhou um tom mais punitivo do que
pacificador quando se tornou uma imposição.
A estrada segue o rio, negro como o petróleo, que desliza abaixo de
suas margens congeladas – numa competição entre o progresso sólido e o
gelo duro como pedra. Pequenos pássaros marrons pairam sobre os álamos
e sobre os pastos que alimentam os veados; alguns cavalos se mexem dentro
de baias enlameadas, com os traseiros inclinados e as orelhas baixas, como
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Carol Wiley Cassella
que resignados por serem incomodados pelos ventos cortantes do inverno.
Claire pensa em Addison. Ela o imagina em algum hotel como o Hilton ou
o Fairmont – em seu terno de cashmere Barneys – ajeitando-se para tomar
uma bebida no bar ou para jantar, enquanto ela dirige com o tanque quase
vazio na esperança de encontrar um posto de gasolina barato mais à frente
na estrada. É quase cômico que ele tenha feito milhões ao descobrir uma
maneira simples de diagnosticar uma doeça mortal – o câncer de ovário. Uma
fortuna construída sobre uma notícia ruim. E, então, todo seu dinheiro se
foi no limiar da possibilidade de uma nova cura. Irônico o suficiente para ser
quase engraçado.
O Hospital Sawtooth County fica meia hora de carro mais à frente, em
cima de um desfiladeiro entre dois vales vizinhos. É surpreendentemente
moderno – mas o que ela estava esperando? Um prédio da largura de dois
caminhões equipado com uma máquina de raios X? Uma cabine com
eletricidade e pias para esterilizar as mãos? Durante todos os anos em que
frequentaram Hallum Valley, eles nunca precisaram de cuidados médicos que
o kit de primeiros socorros de Claire não desse conta; e ela havia verificado
a possibilidade de eles serem levados de volta para Seattle de helicóptero em
caso de necessidade.
Claire segue as placas até a parte de trás do prédio, perto da entrada de
emergência e do estacionamento de visitantes, ao lado de duas ambulâncias.
Há um heliporto à esquerda e, mais à frente, apenas a vegetação que sobe
pelos morros e depois pelas montanhas, cobertas por uma densa floresta de
pinus. Nas partes mais baixas, as sombras enfeitam a neve azul das encostas
onduladas. O topo das montanhas desaparece na planura das nuvens
cinzentas.
O lobby da sala de emergência é estranhamente calmo, pelo menos se
comparado ao dos hospitais públicos do centro de Seattle, onde Claire fez
sua residência. Um senhor de idade se inclina para a frente em sua cadeira
com as mãos pressionando os olhos; seu jovem amigo, ou filho, lê um jornal
para ele, saltando de manchete a manchete como se não tivesse interesse
A Cura
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em nenhuma delas. Umas poucas crianças choramingam no colo das mães,
e há alguns outros murmúrios por trás das portas fechadas, provavelmente
outras crianças reclamando da vacina de tétano, ou de levar pontos, ou de
uma inspeção em suas orelhas e gargantas. A enfermeira da triagem pergunta
a Claire se ela é a nova representante de um laboratório e se anima quando
Claire responde que é uma médica que acaba de chegar à cidade e que gostaria
de conhecer os colegas que trabalham no hospital. A enfermeria não reage
ao tom autoconsciente que Claire distingue em sua própria voz e aponta o
caminho para os escritórios no fundo do corredor. O diretor clínico está de
folga e foi pescar no gelo, diz a mulher, mas a secretária dele deve estar ali e
pode informar sobre a disponibilidade de agenda.
Os tapetes recém-limpados têm cheiro de desinfetante vagamente
disfarçado em um perfume cítrico. As paredes são cobertas por plástico
lavável e as cadeiras e assentos são estofados – as cores abafadas pela
iluminação artifical das lâmpadas fluorescentes. E o local é um pouco frio,
os hospitais nunca são quentes. Claire se lembra de plantões em que rodava
pelos corredores vazios do Hospital Harborview, às três ou quatro da manhã,
com um cobertor enrolado no corpo, parecendo um dos desabrigados
que atendia. Claire podia distinguir a função e a finalidade desse hospital
mesmo se estivesse com os olhos vendados. A sensação a deixa ainda mais
desconfortável, como se fosse uma hóspede não convidada numa casa que
ela conhecesse bem. Talvez ela devesse rabiscar em um crachá o motivo de
ter vindo até aqui: “Não, não sou uma paciente. Não sou uma visitante. Sou
uma de vocês, sou do time. Só que acho que esqueci onde coloquei a médica
dentro de mim.”
Claire coloca sua pasta executiva em uma cadeira e puxa um de seus
currículos. Os dois terços iniciais, no topo da página, abrangem dez anos e
meio de sua vida, da faculdade até ela deixar a residência, três meses antes da
formatura. Tudo o que Claire consegue ver é o espaço vazio na parte inferior
da página; parece que ela teria que escrever um livro inteiro para preenchê-lo. São os detalhes que ela deixou de fora que a definem criticamente, pensa.
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Carol Wiley Cassella
Tudo acabou se misturando no final. Aquela terrível última noite de plantão
em que trabalhou na sala de emergência; pacientes esperando oito, dez, doze
horas e os dois estagiários ocupados na sala de traumas. Ela não teve tempo
de ouvir todas as reclamações tão cuidadosamente quanto deveria. Estava
assoberbada. E não ficou sabendo das consequências de sua decisão de
triagem até dias depois. Claire pode ouvir a voz de seu conselheiro aqui nesse
lobby tão claramente quanto em seu escritório há quatorze anos e meio: “Todo
médico comete erros. O instinto médico, que aponta que alguém pode estar
mais doente do que parece, não é ensinado em livro algum, Claire. É só com
anos de experiência. Tire um dia ou dois de folga. Descanse um pouco.”
Mas, no dia seguinte, seu útero iniciou o lento processo de expulsão,
fazendo o trabalho que lhe era apropriado na hora imprópria. Jory nasceu
quase três meses mais cedo, e Claire iniciou aí as semanas de vigília na UTI
neonatal, desejando que o poder de sua mente e de seu amor pudessem
fazer o que seu corpo não pudera: manter Jory viva. Claire se lembra de ter
sentido uma fúria contra o destino, contra Deus, contra seu próprio corpo
falho. Houve momentos, no meio da noite, enquanto assistia os médicos e
enfermerias de Jory fazerem o possível, em que Claire teve certeza de que isso
era uma punição pelo diagnóstico que deixara passar. O que, exatamente,
entre todas essas coisas, a fez não terminar a residência? Ela não saberia dizer.
Apenas deixou o curso da vida decidir.
Claire coloca os currículos de volta na pasta e fecha a trava. É melhor
ir embora, decide. É uma perda de tempo geral fingir que pode conseguir
um emprego aqui, que veio sem um propósito maior do que acalmar
sua consciência e provocar Addison, provando que ela não precisa ficar
assistindo tudo sem fazer nada. Olha para os lados, procurando se orientar
e pensar numa forma de chegar ao carro sem ter que passar de novo pela
sala de emergência. Uma mulher de cabelos cheios de mechas grisalhas e um
suéter azul-marinho abotoado sobre seu vestido branco de enfermeira sai do
banheiro do final do corredor e fixa os olhos em Claire, dirigindo-se a ela com
tanta autoridade que Claire fica se perguntando que tipo de erro essa mulher
A Cura
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poderia ter cometido um dia. A ideia de se explicar para essa mulher – ou
para quem quer que seja – de repente parece impossível. Ela abre a boca para
perguntar quais são as horas de visita, mas a enfermeira para em frente a ela.
“Estão todos no horário de almoço.”
“Como é?”, diz Claire.
“Se você está aqui para ver algum dos médicos, eles estão todos no
refeitório. O chefe está fora hoje.” Ela faz uma pausa rápida, esperando Claire
assentir, em seguida, toma seu braço e marcha através do lobby em direção a
um refeitório bem-iluminado.
Em uma longa mesa retangular, seis ou sete pessoas dão risada e
conversam, invadindo uns a fala dos outros como se já tivessem passado tanto
tempo juntos que não ligassem mais para os filtros da etiqueta social, indo
direto ao assunto. Todas as outras mesas parecem sóbrias, em contraste. A
enfermeira do suéter azul diz: “Na quinta é o dia do burrito. Ninguém almoça
fora. As pessoas da cidade vêm almoçar aqui na quinta só por causa do burrito.
Sou Marti. Não entendi seu nome. Como devo apresentá-la?”
“Claire. Claire Boehning.”
“Sra. Boehning, estes são os médicos da nossa equipe. E alguns intrusos.
Se olhar bem para eles, vai decidir que é melhor se manter saudável. Jim,
querem saber se você precisa de contraste naquela tomografia. Quer uma
xícara de café?”, ela pergunta, voltando-se para Claire.
Ainda bem que Claire trocou de roupa. Há cinco homens e duas
mulheres à mesa, vestidos com jeans, calças cáquis, coletes de lã e... nem um
único jaleco. Eles não parecem tão... doutores, ela pensa. Da última vez que
trabalhou no mundo da medicina, ainda acadêmica, estava em uma posição
em que os papéis e as funções eram claramente demarcados. Todos são uns
dez anos mais jovens do que ela, menos um – é um homem alto de cabelos
grisalhos que já parece ter passado da época de se aposentar. Um dos mais
jovens da mesa, um garoto de bochechas rosadas e queixo furado, aproxima-se para apertar sua mão. “Sente conosco. Não deixe esses caras assustarem
você. Z. Abra um espaço para ela.” O homem mais velho afasta sua cadeira e
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Carol Wiley Cassella
Claire desliza para um assento no final da mesa. Um prato de tortillas figura
no centro e ela se pergunta se Jory almoçou.
Marti oferece a Claire uma xícara de café e se senta na outra ponta da
enorme mesa. “Então, você está procurando um trabalho.”
Claire sorri, satisfeita de não ser a primeira a tocar no assunto. “Pareço
desempregada?” Sua voz sai mais forte do que o normal e ela tenta relaxar a
garganta.
“Ninguém por aqui carrega uma pasta executiva a menos que esteja
vendendo alguma coisa, e conhecemos todos os representantes. Você é
enfermeira?”
“Sou médica. Nos mudamos para cá. Minha família.” Ela faz uma pausa.
“Minha filha e eu.”
“Quantos anos tem sua filha?”, pergunta uma das mulheres da mesa.
“Jory tem quatorze anos. Nos mudamos de Seattle na semana passada.
Temos uma propriedade aqui há alguns anos, na Rua Northridge – fora de
Hallum.”
“Onde na Northridge?” A pergunta vem do homem baixo, loiro e
sombrio com uma franja cortada perfeitamente reta em sua testa, como se seu
cabelo tivesse sido aparado em casa com uma tesoura de costura, mas cuja voz
melódica mitiga o rosto severo.
“Uns doze quilômetros para fora da cidade. Há uma velha casa ali, com
um pomar de maçãs.”
“Ah, você está na propriedade Blackstock. É isso? É um lugar legal. Ando
de bicicleta por ali. O que você pretende fazer com a casa? Sou Steven Perry, a
propósito. Cirurgia.” Ele se levanta para alcançar a mão de Claire.
Claire confirma e toma um gole do seu café, com um rápido flash de
seus planos para a casa passando em sua mente. “Sim. Estamos felizes com a
propriedade.”
“Qual é sua especialidade?”
“Médica de família.” Ela declara, calma o suficiente, mesmo sabendo que
essa resposta implica coisas que ela não é – certificada e experiente. “Ainda
A Cura
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não temos certeza de quanto tempo vamos ficar por aqui, mas pensei que
seria bom me apresentar de qualquer forma. Para descobrir quem poderia
estar precisando de mim se decidirmos ficar.” Ela faz menção de continuar,
mas deixa o resto em aberto, dando de ombros, quase se desculpando. Em
seguida, os médicos se apresentam um a um no sentido da mesa, com nomes
e especialidades que ela tenta memorizar, sem muito sucesso, preocupada
demais em se preparar para o que podem perguntar a seguir.
“Você deveria dar uma passada na clínica de Kit, no sul da cidade, perto
do rio”, uma pediatra chamada Jenna diz. “Ela anda bem ocupada. Não
sei se abriu uma vaga, mas posso ligar para ela.” Jenna se volta para Marti.
“Richardson acaba de contratar uma enfermeira, então, provavelmente está
fechado. E Alton?”
Marti encolhe os ombros. “Talvez. Ele diz que tem feito tão pouco
dinheiro que está considerando se mudar para Wenatchee. Mas ele é um
mentiroso deslavado e pão-duro.” E ri. “Z? E você? Nunca mais vai se
aposentar?” E Marti olha para o homem de cabelos brancos sentado ao lado
de Claire. Claire supõe, por seu silêncio e sua observação passiva, que Z só
se junta ao grupo para fazer um social; e que estaria ficando cada vez mais
silencioso com o adiantado da idade. Apenas depois que Marti o provoca,
ele finalmente se apresenta. “Dan Zelaya.” Sua mão é áspera como a de um
fazendeiro, a mão de um homem que usa mais o corpo do que a mente para
ganhar a vida, articulações rígidas e nodosas, um aperto de mão firme. Ele
usa uma gravata country e uma camisa branca – com uma linha de botões
perolados envoltos em círculos de prata com tecido trabalhado em volta. Só
falta o chapéu de cowboy, Claire pensa.
Marti continua a falar, cada vez mais entusiasmada. “Dan, você toca a
clínica mais movimentada do vale só com uma enfermeira e uma caixa de
Band-aids velhos. Contrate essa mulher e leve Evelyn para passar o inverno
no Arizona.”
Um trovão de risos se eleva da mesa e Claire não consegue distinguir se
o motivo dos risos são os limites pecuniários da clínica ou a ideia do inverno
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no Arizona. Dan pisca para Claire e pega um enorme chapéu de cowboy do
assento ao lado dele; seus longos e finos dedos atravessam o topo com folga.
O chapéu é enfeitado com uma corda prateada da mesma cor da que circunda
seu pescoço, com bolinhas nas pontas que tilintam quando ele leva o chapéu
à cabeça branca. “Ela nunca vai conseguir ajeitar a casa se trabalhar comigo.”
Então, ele se levanta, mais alto do que ela podia supor, e se despede.
Steven puxa um bloquinho de prescrições do bolso da camisa e escreve
alguns nomes e orientações gerais para Claire. A mesa se esvazia lentamente;
até Marti finalmente pede licença para retornar à sua ala. Claire termina seu
café e observa os pacientes deixando suas mesas, enquanto tenta adivinhar
suas doenças, tentando recordar os diagnósticos e tratamentos. Conseguiu
superar essa incursão inicial no meio médico de Hallum com leveza, pensa,
e teve sucesso em desviar dos detalhes de por que eles deixaram Seattle. Em
nenhum momento ela ameaçou enfiar a mão na pasta executiva para puxar
seu currículo improvisado.

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