Publicar, publicar, publicar! - Salutis Scientia
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Vol.6 – Março 2014 Editorial Publicar, publicar, publicar! Just publish! “O conhecimento utiliza e gera informação” (1, p. 2). Em Março de 2012 iniciámos o Editorial com esta frase para ilustrar a importância do registo clínico para os profissionais de saúde. Dois anos depois reforçamos a sua importância, agora com ênfase para a necessidade da publicação do que se regista diariamente. Os registos clínicos fazem parte das tarefas diárias que os profissionais de saúde desenvolvem, e são na verdade uma importante ferramenta de auxílio a que recorrem quando estabelecem objetivos de intervenção ou elaboram prognósticos. A leitura de Estudos de Caso, Revisões Sistemáticas de Literatura e de Artigos Originais de Investigação faz parte da cultura do Saber fazer dos Profissionais de Saúde e são elementares para uma prática que se quer atual, rigorosa e fundamentada na melhor evidência científica. Assim, o convite que Vos fazemos hoje, neste primeiro número de 2014, é mais uma vez o de dar um passo em frente, e publicar, publicar, publicar! Ficamos à espera dos Vossos artigos, Até já! Nota 1. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Parecer sobre informação de saúde e registos informáticos de saúde [página inicial na Internet]. c2011 [citada 2014 Mar 30]. Disponível em: http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1318269169_CNECV%20P_60_2011%2010.10.11.pdf Sandra Alves 1 1 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa. Email: [email protected] Vol.6 – Março 2014 Artigo de Opinião Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical na regeneração cardíaca após enfarte do miocárdio Application of mesenchymal stem cells from the umbilical cord tissue in cardiac regeneration after acute myocardial infarction Helder Soares da Cruz1* 1 ECBio – Investigação e Desenvolvimento em Biotecnologia, S.A. A terapia celular tem sido usada recentemente em pacientes com enfarte agudo do miocárdio mas os resultados apontam para uma modesta melhoria da função e estrutura do ventrículo esquerdo, devido a limitações do produto celular e a grande variabilidade de dose, muitas vezes sub-terapêutica. As células estaminais mesenquimais derivadas do tecido do cordão umbilical, quando administradas no miocárdio de murganhos submetidos a enfarte do miocárdio, diminuem o impacto na perda de função cardíaca, atenuam o processo de remodelação, aumentam a densidade de capilares, limitam a extensão da apoptose e favorecem a proliferação de células progenitoras cardíacas. Cellular therapy has been used recently in patients suffering from acute myocardial infarction but the results show only a modest improvement in left ventricular structure and function, due to limitations of the cellular product and of the variable dose, often sub-therapeutic. Mesenchymal stem cells from the umbilical cord tissue, when administered into the mice myocardium after induction of myocardial infarction, have decreased the negative impact in the cardiac function, decreasing remodeling, increasing capillary density, limiting cardiomyocyte apoptosis and favoring the proliferation of cardiac progenitor cells. PALAVRAS-CHAVE: Células estaminais mesenquimais; tecido do cordão umbilical; enfarte do miocárdio; regeneração cardíaca. KEY WORDS: Mesenchymal stem cell; umbilical cord tissue; myocardial infarction; cardiac regeneration. Submetido em 7 março 2014; Publicado em 31 março 2014. * Correspondência: Helder Soares da Cruz. Email: [email protected] Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical… INTRODUÇÃO Na incessante procura de melhorar os resultados em pacientes com enfarte agudo do miocárdio e insuficiência cardíaca, nos últimos 10 anos, uma nova abordagem foi impulsionada - a terapia celular. Estudos independentes têm demonstrado que a terapia com células estaminais adultas pode melhorar a função cardíaca, atenuar a remodelação do ventrículo esquerdo (VE) e reduzir o tamanho do enfarte. Nestes estudos foram utilizadas principalmente células derivadas da medula óssea, nomeadamente, células mononucleadas da medula óssea (BMMNCs) - estudo REPAIR-AMI; células de medula óssea não fracionada (estudo BOOST); células estaminais mesenquimais da medula óssea (BMMSCs); frações de medula óssea, células CD133+ e células progenitoras do sangue periférico (estudo TOPCARE-AMI). A meta-análise dos dados obtidos indica que a terapia celular leva a uma modesta melhoria da função e estrutura do VE em pacientes com enfarte agudo do miocárdio e com cardiomiopatia isquémica crónica. Conquanto o perfil de segurança pareça ser bom, não se tendo verificado efeitos adversos relevantes nestes ensaios nos primeiros anos de follow-up, os mecanismos subjacentes aos benefícios da terapia celular ainda requerem um estudo mais aprofundado. De facto, as células utilizadas nestes estudos apresentam ainda limitações como a caracterização incompleta do produto celular e a grande variabilidade de dose, por vezes sub-terapêutica, mesmo dentro do mesmo estudo. Limitações das células estaminais da medula óssea Mais especificamente, a utilização das BM-MSCs apresenta várias limitações importantes, como sejam: i) o processo de obtenção da medula óssea a partir do próprio paciente não deixa de ser um processo invasivo, acarretando algum risco; ii) as BM-MSCs existem em pequenas quantidades relativas na medula óssea, e a sua multiplicação é limitada. Isto faz com que se opte por um preparado heterogéneo e indefinido que não dá garantias de sucesso; iii) a Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP eficiência com que se isolam BM-MSCs viáveis a partir de doentes debilitados, por vezes com historial clínico complexo, é mais baixa e, para além disso, a eficiência de isolamento de BM-MSCs está ainda relacionada de forma negativa com a idade do paciente; iv) a necessidade de infra-estrutura em ambiente hospitalar e know how técnico e regulamentar para isolar e expandir BM-MSCs a partir de uma população celular altamente heterogénea, assim como para elaborar um preparado farmacêutico em tempo útil para o paciente, acarreta questões técnicas e logísticas difíceis de ultrapassar. Como tal, opta-se normalmente por um preparado de medula óssea, contendo uma fração de células mononucleadas da medula contendo uma população heteróloga de células sem qualquer definição quantitativa ou qualitativa relativamente ao conteúdo de MSCs. O ideal seria ter acesso imediato a um produto celular, seguro, superior em termos de potência terapêutica, que estivesse armazenado e disponível sempre que necessário administrar ao paciente, sem limitações de dose e tempo para administração. A controvérsia gerada pelas células estaminais embrionárias (ESC), e a mais recente descoberta de que as células pluripotentes induzidas (iPS) têm grande instabilidade genómica após expansão1, tem conduzido cada vez mais à investigação sobre o potencial das células estaminais adultas e neonatais como alternativas terapêuticas. Células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical A ECBio - Investigação e Desenvolvimento em Biotecnologia, SA, é uma empresa biofarmacêutica dedicada ao desenvolvimento de medicamentos inovadores à base de células estaminais isoladas a partir de tecidos neonatais (www.ecbio.com). Nos últimos anos, a ECBio tem vindo a focar a sua actividade na aplicação clínica do subtipo de células estaminais mesenquimatosas (mesenchymal stem cells - MSCs) presentes no tecido do cordão umbilical. As MSCs são caracterizadas por terem um enorme potencial de auto-renovação, sendo capazes de se diferenciar em múltiplos tipos de células Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 3 Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical… especializadas, como sejam células ósseas, células cartilagíneas, células constituintes do músculoesquelético, células produtoras de insulina e células neurais2. Para além disso, as MSCs têm a capacidade de promover a regeneração autóloga de tecidos através de mecanismos parácrinos, envolvendo a secreção de fatores tróficos como as citocinas e fatores de crescimento que estimulam a ação regenerativa de células precursoras residentes nos tecidos lesados, assim como o recrutamento de outras células circulantes2,3. Na ECBio desenvolveu-se um protocolo de isolamento de MSCs a partir do tecido do cordão umbilical bem definido em termos do número de células obtidas por massa de tecido inicial4. O processo de obtenção de cordões umbilicais, considerados resíduos cirúrgicos, é um processo totalmente não invasivo, não acarretando qualquer risco para o dador. Para além disso, o nível de eficiência atingido após otimização fez com que este protocolo originasse uma população de células bem caracterizada a partir de 100% das amostras biológicas de cordão umbilical processadas, e em números compatíveis com o desenvolvimento de bancos de células para terapia em humanos4. Ao contrário das BM-MSCs, as células do tecido do cordão umbilical existem em grandes quantidades na Geleia de Wharton, não estando a sua expansão para aplicação clínica limitada por senescência celular, mesmo em situações onde a administração de doses múltiplas poderá ser necessária. Foi comprovado que estas células mantêm o fenótipo mesenquimal, estabilidade genómica e ausência de propensão para induzir a formação de teratomas até níveis de expansão muito elevados, bastante acima do necessário para estabelecer um Master Cell Bank (MCB) e Working Cell Bank (WCB) para terapias celulares (Figura 1)4. Estas características fazem com que este protocolo seja ideal para ser aplicado em rotina em investigação e serviços de criopreservação e terapia celular. Tanto os aspetos técnicos como as aplicações do método estão protegidos por patente4. Recentemente, foi efetuado o registo de marca do primeiro produto terapêutico à base de células estaminais - UCX®. A marca UCX® foi criada no sentido da aplicação clínica, Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP mais precisamente, o método patenteado foi adaptado para a produção de um produto medicinal de terapia avançada (Advanced Therapy Medicinal Product - ATMP), de acordo com as diretivas europeias5,6. O registo nacional e internacional da marca UCX® foi um dos principais resultados obtidos a partir dos projetos QREN 2008/1467 (TERACEL) e QREN 2009/5294 (CARDIOCEL), promovidos pela ECBio. Estes projetos permitiram também reunir evidências científicas que suportam não só aspetos de segurança/qualidade, mas também as especificidades relacionadas com a potência do produto UCX®, como seja a sua capacidade de diferenciação cardiomiocítica (Figura 1). A ECBio foca agora a sua intervenção em áreas que claramente tiram partido das propriedades alogénicas (ausência de imunogenicidade), imunossupressoras do produto UCX®, claramente comprovadas7. RESULTADOS RECENTES Nos últimos anos a ECBio tem vindo a estudar uma população específica de células estaminais mesenquimais humanas derivadas do tecido do cordão umbilical, designadas por células UCX®, isoladas, expandidas e criopreservadas com base em tecnologia proprietária. Quando administradas no miocárdio de murganhos submetidos a enfarte do miocárdio, as células UCX® diminuem o impacto na perda de função cardíaca verificada em animais não tratados, atenuam o processo de remodelação cardíaca, aumentam a densidade de capilares e limitam a extensão da apoptose no tecido isquémico. Neste contexto experimental, as células UCX® parecem favorecer a proliferação de células indiferenciadas, designadas de progenitoras cardíacas, isoladas do miocárdio. Resumindo, as células UCX® minimizam os danos causados pelo enfarte do miocárdio por um conjunto de mecanismos que de forma indireta favorecem os principais constituintes celulares do coração, i.e. os cardiomiócitos e a vasculatura. Estes resultados foram apresentados numa recente publicação científica8. Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 4 Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical… Figura 1 – Propriedades das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical. A B C D E F A capacidade de expansão ex vivo em cultura do produto celular da ECBio - UCX® foi controlada sob vários pontos de vista: morfologia (A), capacidade de expansão (B), manutenção do fenótipo mesenquimatoso, através da análise de expressão de marcadores de superfície celular específicos para as MSC (C); e estabilidade genómica, através da análise da estabilidade do cariótipo ao longo da expansão celular (D). A caracterização do produto em termos de potência passa pela avaliação da capacidade das células se diferenciarem em células especializadas das três camadas germinativas. No caso da diferenciação em cardiomiócitos, as células foram detetadas através de imunofluorescência, utilizando um anticorpo primário contra uma proteína típica dos tecidos musculares, a Troponina T cardíaca. Para efeitos de localização das células em cultura, os núcleos celulares foram detetados com o fluorocromo DAPI. Na cultura das células controlo só é possível detetar os núcleos corados com DAPI (E). Nas células diferenciadas é possível também observar o citoesqueleto, corado para a Troponina T (F). Barras de escala = 100 μm. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 5 Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical… CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS O recurso à terapia celular em enfarte agudo do miocárdio é recente e os resultados até agora têm sido modestos, devido, no entender do autor, a limitações do produto celular e a grande variabilidade de dose, muitas vezes subterapêutica. As células estaminais mesenquimais derivadas do tecido do cordão umbilical, quando administradas no miocárdio de murganhos submetidos a enfarte do miocárdio, diminuem o impacto na perda de função cardíaca, atenuam o processo de remodelação, aumentam a densidade de capilares, limitam a extensão da apoptose e favorecem a proliferação de células progenitoras cardíacas. Estas células possuem ainda outras características que as tornam fortes candidatos terapêuticos já que não dão origem a teratomas ou outras lesões neoplásicas in vivo, têm uma colheita fácil, podem ser expandidas para obter os elevados números necessários para terapia (frequentemente superiores a 100 milhões de células por dose) e podem ser armazenadas no longo prazo para uso no futuro. A utilização das células UCX® em estudos clínicos está prevista dentro do próximo um a dois anos. 1. Gore, Li, Fung et al. Somatic coding mutations in human induced pluripotent stem cells. Nature. 2011; 471: 63–7. AGRADECIMENTOS Agradece-se ao Hospital Universitário Karolinska, SE, INEB-UP, iMed-UL, IMM-FMUL, Helmholtz-Centre for Infection Research, Braunschweig, DE; Health Research Institute of Santiago (IDIS.Complexo Hospitalario Universitario de Santiago de Compostela/SERGAS, ES), ICBAS, CECA/ICETA-UP, empresa Cytothera, S.A., (Grupo Medinfar, PT), Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E; HPP Hospital de Cascais; Hospital de Santa Maria – Lisboa; e Clínica Médica de Ginecologia Ginetrícia, Lisboa. Agradece-se ainda ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional - PO Lisboa: QREN SI&DT 2008/5294; QREN SI&DT 2008/1467; QREN SI&DT 2012/24765; QREN SI&DT 2013/30196. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP 2. Williams, Hare. Mesenchymal stem cells: Biology, pathophysiology, translational findings, and therapeutic implications for cardiac disease. Circ Res. 2011; 109: 923-40. 3. Ripa, Haack-Sorensen, Wang, et al. Bone marrow-derived mesenchymal cell mobilization by granulocyte-colony stimulating factor after acute myocardial infarction: Results from the Stem Cells in Myocardial Infarction (STEMMI) trial. Circulation. 2007; 116: I-24-30. 4. Instituto Nacional da Propriedade Industrial [INPI]. Patente de Invenção Nacional N.º 103843 – Método de isolamento de células precursoras a partir do cordão umbilical humano [página inicial na Internet]. C2008 [citada 2014 03 13]. Disponível em http://servicosonline.inpi.pt/pesquisas/main/patentes.jsp?lang=P T 5. European Medicines Agency. Guideline on the minimum quality and non-clinical data for certification of advanced therapy medicinal products [página inicial na Internet]. c2010 [citada 2014 Mar 12]. Disponível em http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scien tific_guideline/2010/01/WC500070031.pdf 6. European Medicines Agency. Draft guideline on the risk-based approach according to Annex I, part IV of Directive 2001/83/EC applied to Advanced Therapy Medicinal Products [página inicial na Internet]. c2012 [citada 2014 Mar 12]. Disponível em: http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scien tific_guideline/2012/01/WC500120989.pdf 7. Santos, Bárcia, Simões et al. The role of human umbilical cord ® tissue-derived mesenchymal stromal cells (UCX ) in the treatment of inflammatory arthritis. J Transl Med. 2013; 11:18. 8. Nascimento, Mosqueira, Sousa et al. Human umbilical cord tissue-derived mesenchymal stromal cells attenuate remodeling after myocardial infarction by proangiogenic, antiapoptotic, and endogenous cell activation mechanisms. Stem Cell Research & Therapy. 2014; 5:5. Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 6 Vol.6 – Março 2014 Artigo Original de Investigação Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste MRSA nasal carriage in Portuguese-speaking African countries (PALOP) and East-Timor Teresa Conceição1*, Céline Coelho1, Isabel Santos Silva2, Hermínia de Lencastre2,3, Marta Aires de Sousa2 1 Laboratório de Genética Molecular, Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), Universidade Nova de Lisboa (UNL) 2 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa (ESSCVP) 3 Laboratory of Microbiology and Infectious Diseases, The Rockefeller University, New York Os Staphylococcus aureus resistentes à meticilina (MRSA) são um dos principais agentes patogénicos a nível mundial. Contudo para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e em Timor-Leste não é conhecida a prevalência de MRSA. Entre Novembro 2010 e Julho 2013 efetuou-se um rastreio nasal para deteção de MRSA em 826 doentes e 480 profissionais de saúde em seis hospitais nos PALOP (São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde) e dois em TimorLeste. Detetou-se colonização por S. aureus em 258 indivíduos (19,8%), dos quais 86 (33,3%) eram portadores de MRSA, correspondendo a uma taxa global de colonização por MRSA de 6,6%. A prevalência de MRSA em Angola foi a mais elevada (13,8%), seguida de São Tomé e Príncipe (4,2%) e Cabo Verde (1,3%). Não se detetaram MRSA em Timor-Leste. A resistência à meticilina foi mais elevada entre S. aureus isolados em Angola (58,1%) e São Tomé (26,9%) comparativamente a Cabo Verde (6%). A prevalência de MRSA foi semelhante nos doentes e profissionais de saúde (7,1% vs 5,6%; p=0,3). Destes, os auxiliares de limpeza (10,5%) apresentaram maior taxa de colonização por MRSA, seguidos dos médicos (7,4%) e enfermeiros (6,8%). As Unidades de Cuidados Intensivos (11,7%) e os serviços de Pediatria (6,8%) e Ortopedia (6,3%) foram aqueles onde as percentagens de MRSA foram mais elevadas. Os dados obtidos mostram que as taxas de MRSA são preocupantes em alguns PALOP, tornando-se necessários futuros estudos de vigilância epidemiológica e a implementação urgente (nomeadamente em Angola) de medidas de controlo de infeção eficazes. Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste Methicillin-resistant Staphylococcus aureus (MRSA) is a major human pathogen worldwide. However, MRSA prevalence in the Portuguese-speaking African countries (PALOP) and East-Timor is unknown. Between November 2010 and July 2013, 826 inpatients and 480 healthcare workers from six hospitals located in PALOP countries (São Tomé and Príncipe, Angola and Cape Verde) and two hospitals in East Timor were nasal swabbed for MRSA carriage. Two hundred and fifty height individuals (19.8%) were S. aureus nasal carriers, out of which 86 (33.3%) were resistant to methicillin, corresponding to a global MRSA carriage rate of 6,6%. The highest MRSA prevalence was detected in Angola (13.8%), followed by São Tomé and Príncipe (4.2%) and Cape Verde (1.3%). No MRSA were found in East Timor. Methicillin resistance was higher among S. aureus isolates from Angola (58,1%) and São Tomé (26,9%) comparing to Cape Verde (6%). Moreover, the MRSA prevalence was similar between patients and healthcare workers (7.1% vs 5.6%; p=0.3), out of which the hospital cleaning staff (10.5%) showed the highest MRSA carriage rate, followed by physicians (7.4%) and nurses (6.8%). Regarding the hospital wards, higher MRSA rates were detected in Intensive Care Units (11.7%), pediatrics (6.8%) and orthopedics (6.3%). The high MRSA rates are worrisome in some of the PALOP countries, pointing out to the need of future surveillance studies and the implementation of more strict and effective infection control measures. PALAVRAS-CHAVE: Staphylococcus aureus; MRSA; África; PALOP; Timor-Leste; colonização nasal. KEY WORDS: Staphylococcus aureus; MRSA; Africa; PALOP; East Timor; nasal carriage. * Correspondência: Teresa Conceição. Email: [email protected] INTRODUÇÃO O Staphylococcus aureus é uma bactéria Grampositiva, conhecida pela sua extraordinária capacidade de colonização assintomática do ser humano, e que tem como nicho principal as fossas nasais1. Apesar de cerca de 30% da população saudável ser portadora assintomática de S. aureus, quando há uma quebra das defesas naturais do hospedeiro, nomeadamente barreiras cutâneas ou diminuição da imunocompetência do sistema imunitário, esta bactéria pode causar uma grande variedade de infeções da pele e dos tecidos moles, toxinoses (infeções provocadas pela presença de substâncias tóxicas produzidas pelas células bacterianas) ou infeções potencialmente fatais como Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP septicémias, endocardites, meningites, osteomielites e pneumonias. Os S. aureus resistentes à meticilina (MRSA, do inglês “methicillin-resistant Staphylococcus aureus”) surgiram muito pouco tempo depois da introdução da meticilina na prática clínica em 19591960. Nos anos seguintes, nomeadamente a partir da década de 1980, os MRSA adquiriram sucessivamente resistências à maioria dos antibióticos disponíveis clinicamente, tornando-se um dos principais agentes patogénicos a nível mundial, tanto nos hospitais como na comunidade2,3. A colonização nasal é considerada um factor de risco para a subsequente infeção pelo agente colonizador. Constitui um reservatório endógeno de estirpes potencialmente patogénicas para o hospedeiro, ou que podem ser disseminadas de doente para doente Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 8 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste ou de um profissional de saúde colonizado para os doentes4,5. Os estudos de vigilância epidemiológica são fundamentais na prevenção e controlo da disseminação de estirpes MRSA, que apesar de merecedores de elevado investimento financeiro nos países desenvolvidos, são praticamente inexistentes nas regiões mais desfavorecidas do globo. Contudo, no continente Africano, existe um elevado risco de infeção por MRSA, nomeadamente devido aos baixos recursos financeiros, e às deficientes condições de higienização das mãos, que resultam numa ausência ou limitação de práticas de controlo de infeção6. A determinação da prevalência de S. aureus e principalmente de MRSA nos países em desenvolvimento torna-se fundamental para um controlo eficaz do MRSA à escala mundial7. Apesar dos estudos em África serem escassos, observa-se uma variação considerável na prevalência de MRSA nos vários países em que há dados. Estudos de colonização nasal por MRSA revelaram isolados esporádicos no Mali8 e na Tanzânia9, prevalências que variaram de 1,3% a 3,7% no Gabão e no Gana10,11 e entre os 14,8% e os 52% em países da costa este e sulafricana como a ilha de Madagáscar e o Uganda12-14. Em isolados de infeção, observaram-se valores mais elevados, que variaram entre 11% no Gabão10, 15% em cinco cidades da região subsaariana15, 16% na Nigéria16, 33.6% no Gana17, 27% na África do Sul18, 37.5% no Uganda12,19 e 84.1% no Quénia20. A informação existente relativamente aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste resume-se a um estudo de isolados clínicos em Moçambique que revelou uma prevalência de MRSA de 8% num único hospital, entre 2001 e 200621, e um estudo em Cabo Verde, realizado em 1997, em que não se detetaram MRSA em colonização nasal em doentes e profissionais de saúde de dois hospitais22. As estreitas relações demográficas e económicas entre estas nações e Portugal, que é atualmente um dos dois únicos países Europeus com uma taxa de MRSA superior a 50%2, podem potenciar a transmissão de estirpes multirresistentes entre os diferentes continentes, nomeadamente pelo frequente intercâmbio de doentes entre unidades de saúde dos diferentes países. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Com este estudo pretende-se determinar a prevalência de MRSA em vários PALOP e em TimorLeste através do rastreio nasal de doentes e profissionais de saúde de forma a contribuir para a implementação de medidas de controlo de infeção locais e consequentemente um controlo global do MRSA. METODOLOGIA Hospitais Foram recolhidas amostras em oito hospitais situados em quatro países: (i) São Tomé e Príncipe - Hospital Ayres Menezes (HAM): é o único hospital central no país que serve toda a população do arquipélago. Tem uma dimensão média (441 camas) e uma taxa diária de admissões na urgência de 45 a 70 indivíduos; (ii) Angola - Hospital Américo Boavida (HAB), Hospital Pediátrico David Bernardino (HPDB) e Clínica Sagrada Esperança (SE), todos situados em Luanda. O HAB é um hospital central de grandes dimensões (624 camas) que serve uma população de aproximadamente 2.500.000 indivíduos. O HPDB é o hospital pediátrico de referência nacional, tem 350 camas e serve uma população de mais de 500.000 indivíduos. A SE é uma clínica privada com 150 camas que serve uma população de 500.000 indivíduos; (iii) Cabo Verde - Hospital Agostinho Neto (HAN) e Hospital Baptista de Sousa (HBS). O HAN, situado na cidade da Praia (ilha de Santiago), é o maior hospital do arquipélago (400 camas), tem uma taxa de admissão diária na urgência de 150 adultos e 90 crianças e serve cerca de metade da população do arquipélago (236.000 habitantes). O HBS é um hospital de menores dimensões (220 camas), situado na cidade do Mindelo (ilha de São Vicente), e tem uma taxa de admissão diária na urgência de 120 indivíduos; (iv) Timor-Leste - Hospital Guido Valadares (HGV) e Clínica do Bairro Pité (CBP), ambos situados em Díli. O HGV tem 260 camas e é o hospital de referência nacional. A CBP é uma clínica gerida por uma organização não-governamental que funciona com o auxílio de voluntários estrangeiros e fornece cuidados Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 9 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste primários diariamente a cerca de 250 a 300 indivíduos. Rastreio nasal e isolamento de S. aureus O rastreio nasal foi realizado por uma enfermeira credenciada, a doentes e profissionais de saúde de diferentes serviços hospitalares, nomeadamente naqueles em que o risco de infeção por S. aureus é habitualmente mais elevado como os de Medicina, Cirurgia, Pediatria, Ortopedia e as Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). Os rastreios decorreram entre novembro de 2010 e julho de 2013 (São Tomé e Príncipe – 1.º rastreio: novembro 2010, 2.º rastreio: abril 2012; Angola: junho 2012; Cabo Verde: fevereiro 2013; Timor-Leste: julho 2013). O estudo foi aprovado pelas direções dos hospitais envolvidos e foi obtido um consentimento informado oral de cada indivíduo, ou parental em caso de menores, no momento do rastreio. Foram definidos como critérios de exclusão: (i) indivíduos internados há menos de 48h; (ii) indivíduos cujas narinas estavam inacessíveis devido à presença de dispositivos médicos; (iii) crianças que estavam a ser amamentadas no momento do rastreio; (iv) indivíduos que se recusaram a participar no estudo. A recolha de exsudados nasais consistiu na introdução e rotação de uma zaragatoa estéril em ambas as narinas dos indivíduos. As zaragatoas foram depois conservadas em meio de transporte Stuart até chegarem ao laboratório em Lisboa para serem processadas. Cada zaragatoa foi inoculada em paralelo num meio de crescimento rico, Tryptic Soy Agar - TSA (Becton, Dickinson & Co, New Jersey, EUA) e num meio cromogénico seletivo para S. aureus Chromagar Staph aureus (ChromAgar, Paris, França). No caso das amostras provenientes de Cabo Verde e Timor-Leste, a inoculação em meio sólido foi precedida de um enriquecimento por adição de 2 mL de meio Mueller-Hinton (Becton, Dickinson & Co, New Jersey, EUA) a cada zaragatoa e incubação a 37ºC durante a noite. Colónias com cor e morfologia características de S. aureus foram submetidas ao teste da coagulase por aglutinação de partículas de látex pelo kit comercial Staphaurex (Remel, Kansas, EUA) Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP ou por aglutinação de plasma de coelho em tubo (Becton Dickinson & Co, New Jersey, EUA) nos casos dúbios. A espécie bacteriana foi confirmada pela reação de amplificação em cadeia (PCR, do inglês “Polimerase Chain Reaction”) do gene nuc, que codifica uma nuclease específica de S. aureus23. A deteção da presença do gene mecA, por PCR, permitiu a identificação de isolados MRSA24. Análise estatística Variáveis categóricas foram comparadas através do teste de χ2 ou do teste exato de Fisher, quando apropriado, utilizando o software GraphPad Prism versão 6.0 (GraphPad Software Inc. La Jolla, CA). Considerou-se um valor de p ≤ 0.05 estatisticamente significativo. RESULTADOS Prevalência de S. aureus e MRSA Durante o estudo recolheram-se 1.306 exsudados nasais, provenientes de 826 doentes e 480 profissionais de saúde (Tabela 1). O número de amostras recolhidas variou consoante o país tendo sido mais elevado em Angola (n=494). Entre os 1.306 indivíduos rastreados, 258 estavam colonizados por S. aureus (19,8%). Destes, 86 (33,3%) apresentaram resistência à meticilina, indicando uma taxa de colonização nasal por MRSA na população global do estudo de 6,6%. Angola foi o país onde se observaram taxas de colonização mais elevadas, tanto para S. aureus (23,7%) como para MRSA (13,8%) - Tabela 1 e Figura 1. À exceção de Timor-Leste onde não se detetaram isolados resistentes à meticilina, Cabo Verde apresentou o menor número de portadores MRSA (1,3%), tendo sido identificados apenas quatro indivíduos colonizados. É de salientar que, em São Tomé e Príncipe, apesar de se ter observado uma taxa de colonização por S. aureus ligeiramente menor que em Cabo Verde (15,7% vs 21,5%), a prevalência de isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus foi claramente superior (26,9% vs 6%). Por outro lado, Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 10 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste Tabela 1 – Colonização nasal por S. aureus e MRSA em doentes e profissionais de saúde nos diferentes países. a No. amostras No. portadores S. aureus (%) No. portadores MRSA (%) % S. aureus resistentes à meticilina (MRSA/S. aureus) Doentes 258 37 (14,3) 11(4,3) 29,7 Tomé e PS 74 15 (20,3) 3 (4,1) 20,0 Príncipe Total 332 52 (15,7) 14 (4,2) 26,9 Angola Doentes 295 74 (25,1) 4 (15,3) 60,8 PS 199 43 (21,6) 23 (11,6) 53,5 Total 494 117 (23,7) 68 (13,8) 58,1 Cabo Doentes 181 39 (21,5) 3 (1,7) 7,7 Verde PS 131 28 (21,4) 1 (0,8) 3,6 Total 312 67 (21,5) 4 (1,3) 6,0 Timor- Doentes 92 6 (6,5) 0 0,0 Leste PS 76 16 (21,1) 0 0,0 Total 168 22 (13,1) 0 0,0 Total doentes 826 156 (18,9) 59 (7,1) 37,8 Total PS 480 102 (21,3) 27 (5,6) 26,5 Coleção total 1306 258 (19,8) 86 (6,6) 33,3 País Indivíduoa São PS - profissionais de saúde. Figura 1 – Taxas de colonização nasal por S. aureus e MRSA nos diferentes países. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 11 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste em Angola, a maioria dos S. aureus isolados apresentou resistência à meticilina (58,1%). Não se observaram diferenças nas taxas de colonização nasal por S. aureus e MRSA entre indivíduos do sexo feminino e masculino (S. aureus: 19,5% vs 20,1%; p=0,780 - MRSA: 6,1% vs 7,2%; p=0,501). No entanto, tanto a taxa de MRSA (< 18 anos: 9,9%; ≥ 18 anos: 5,5%; p=0,009) como a percentagem de isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus (< 18 anos: 50%; ≥ 18 anos: 28%; p=0,002) foi superior nos indivíduos com menos de 18 anos. Colonização nasal entre profissionais de saúde doentes e Apesar das diferenças não serem significativas, o número de portadores de S. aureus foi superior nos profissionais de saúde (p=0,313), enquanto o número de portadores de MRSA foi superior nos doentes (p=0,300) - Tabela 1. Se considerarmos cada país individualmente, em Angola e Cabo Verde as taxas de colonização por S. aureus foram semelhantes entre doentes e profissionais de saúde, enquanto que em Timor-Leste se observou uma diferença acentuada, com cerca de três vezes mais profissionais de saúde colonizados por S. aureus do que doentes (p=0,010). Em Cabo Verde, dos quatro portadores de MRSA, apenas um era profissional de saúde (Tabela 1). Colonização nasal por S. aureus e MRSA nas diferentes categorias de profissionais de saúde Consideraram-se seis categorias dentro dos profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, auxiliares de limpeza, estagiários de medicina e enfermagem e outros (incluindo técnicos de diagnóstico e terapêutica, farmacêuticos, assistentes sociais, pessoal administrativo, auxiliares de cozinha ou copeiras e voluntários). Observámos que metade dos estagiários rastreados eram portadores de S. aureus, constituindo a categoria com maior taxa de colonização por esta bactéria, embora nenhum indivíduo estivesse colonizado por MRSA (Figura 2). Mais de um quarto (26,3%) dos auxiliares de limpeza estavam colonizados por S. aureus, seguidos dos enfermeiros (20,3%), dos auxiliares de ação médica (17,6%), e por fim dos médicos (16%). Relativamente às taxas de MRSA, os auxiliares de limpeza apresentaram o valor mais elevado (10,5%), seguido dos médicos (7,4%), dos enfermeiros (6,8%) e dos auxiliares de ação médica (1,5%). Figura 2 – Prevalência de portadores de S. aureus e MRSA entre os profissionais de saúde. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 12 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste Determinou-se uma prevalência de colonização nasal por S. aureus semelhante nos diferentes países incluídos no estudo (entre 13,1% em Timor-Leste e 23,7% em Angola) que são comparáveis aos valores noutros países Africanos como o Mali (19,6%), o Gana (16,6%) e o Gabão (29%)8,11,22,25. No entanto, a taxa de colonização nasal por MRSA pelo contrário é muito variável, sendo nula em Timor-Leste e atingindo os 14% em Angola. Em países da costa este de África e na África do Sul foram encontradas prevalências de colonização muito elevadas, nomeadamente 14.8% na ilha de Madagáscar13,14, 28,8% em profissionais de saúde etíopes26 e 52% em colonização de doentes e profissionais de saúde numa unidade cirúrgica no Uganda12,19. Em países da costa oeste, como o Mali (0,2%)8, o Gana (1,3%)11 ou o Gabão (3,7%)10, geograficamente mais próximos dos PALOP incluídos neste estudo, as taxas publicadas são mais semelhantes às reportadas no presente trabalho. Distribuição de portadores de S. aureus e MRSA por serviço hospitalar Para a análise das taxas de colonização por serviço hospitalar, consideraram-se os serviços comuns a todos os hospitais incluídos no estudo. Assim, na coleção total, os serviços de Ortopedia (29,4%) e UCI (20,4%) foram aqueles onde se observaram as taxas mais elevadas de portadores de S. aureus, acima da taxa de colonização observada para a população total (19,8%) - Figura 3. Os serviços de UCI, Pediatria e Ortopedia, foram aqueles onde se observaram as taxas de colonização por MRSA mais elevadas (11,7%, 6,8% e 6,3%, respetivamente). É de salientar que em São Tomé e Príncipe várias crianças internadas na unidade de Queimados e na Pediatria estavam colonizadas por MRSA. DISCUSSÃO Apesar da prevalência de MRSA ser ainda relativamente baixa nos diferentes PALOP, a proporção de isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus recolhidos foi elevada, especialmente em Angola (58,1%), comparável apenas com as taxas citadas para a Etiópia (44.1%) e Marrocos (44.4%)26,27. O facto dos hospitais em Luanda terem uma maior disponibilidade de antibióticos em comparação com Neste estudo apresentam-se os primeiros dados relativos à prevalência de colonização nasal por S. aureus e MRSA em doentes e profissionais de saúde em Angola, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste e atualizaram-se os dados de Cabo Verde que datavam de 199722. São Tomé e Príncipe Angola Timor-Leste Outros UCI Pediatria Ortopedia Cirurgia Outros Medicina UCI Pediatria Ortopedia Cirurgia Outros Medicina UCI Cabo Verde S. aureus Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Pediatria Ortopedia Cirurgia Outros Medicina UCI Pediatria Ortopedia Cirurgia Outros Medicina UCI Pediatria Ortopedia Cirurgia 40 35 30 25 20 15 10 05 00 Medicina % indivíduos colonizados Figura 3 – Distribuição de indivíduos colonizados por S. aureus e MRSA por serviço. Coleção Total MRSA Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 13 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste outros PALOP e Timor-Leste, o que se traduz num maior consumo, poderá justificar a elevada prevalência de resistência à meticilina. Por outro lado, um número considerável de doentes angolanos recebe cuidados médicos em Portugal, país com uma das taxas de MRSA mais elevadas na Europa (>50%)2, o que poderá também ter resultado na disseminação de MRSA de Portugal para Angola. Em 1997, nenhum dos S. aureus isolados em Cabo Verde era resistente à meticilina22, pelo que a deteção de estirpes MRSA em 2013 poderá estar também relacionada com um aumento das trocas demográficas de doentes e profissionais de saúde com Portugal. De um modo geral, as diferenças de colonização por MRSA entre doentes e profissionais de saúde foram pouco significativas, um cenário diferente do observado no Gana, no Gabão e no Quénia onde nenhum dos profissionais rastreados era portador de MRSA11,25,28. Os auxiliares de limpeza, médicos e enfermeiros a exercerem nos hospitais dos PALOP incluídos neste estudo, apresentaram uma prevalência de colonização nasal por MRSA não negligenciável, o que não é de estranhar dado que os profissionais de saúde têm sido considerados importantes reservatórios de MRSA dentro do meio hospitalar, e possíveis veículos de transmissão de estirpes hospitalares para a comunidade4,29. O facto de nestes países os auxiliares de limpeza terem um acentuado contacto físico com os doentes pode estar na origem da elevada colonização nasal por MRSA. Há que realçar que na generalidade dos hospitais envolvidos neste estudo não existiam lavatórios nas enfermarias, o que facilita a transmissão cruzada entre doentes e entre doentes e profissionais de saúde. A Organização Mundial de Saúde sugere a lavagem das mãos como a principal medida de prevenção e controlo das infeções hospitalares, tendo promovido a introdução com sucesso de programas de prevenção baseados na higienização das mãos em diferentes países africanos6. As UCI e a Pediatria onde são habitualmente internados doentes com níveis de imunocompetência do sistema imunitário mais elevados, foram os serviços onde se observaram taxas de colonização mais elevadas tanto por S. aureus como por MRSA e Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP consequentemente um risco de infeção acrescido nos doentes colonizados. Elevadas taxas de colonização por S. aureus em unidades de cuidados intensivos e em unidades pediátricas foram detetadas também em hospitais no Gabão e no Gana, respetivamente11,25. A maior prevalência de MRSA nas crianças também se justifica pelo facto de terem contacto físico e partilharem brinquedos com as outras crianças hospitalizadas facilitando a transmissão cruzada. CONCLUSÃO Este estudo mostrou que a taxa de colonização nasal por MRSA era nula em dois hospitais de Timor-Leste, relativamente baixa em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe (< 5%) e mais elevada nos hospitais de Luanda (~ 15%). Preocupante é o facto da proporção de isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus recolhidos atingir quase 60% em Angola e ultrapassar os 25% em São Tomé e Príncipe. A identificação de reservatórios de MRSA em diferentes categorias de profissionais de saúde e em diferentes serviços hospitalares requer a implementação urgente de medidas de controlo de infeção, nomeadamente o incentivo à higienização/desinfeção das mãos. Futuros estudos que envolvam a determinação da suscetibilidade aos antimicrobianos e a caracterização molecular dos isolados são fundamentais para a determinação de políticas antibióticas, identificação de surtos e avaliação dos níveis de transmissão cruzada nestes hospitais. AGRADECIMENTOS Este trabalho foi financiado pelo projeto PTDC/SAUSAP/118813/2010 e contrato No. PEst-OE/ EQB/LA0004/2011 (para o Instituto de Tecnologia Química e Biológica) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Portugal. Teresa Conceição e Céline Coelho foram financiadas respetivamente, pelas bolsas SFRH/BPD/72422/2010 e 036/BI-BI/2012 da FCT, Portugal. Agradecemos aos profissionais de saúde dos diferentes hospitais a assistência e disponibilidade Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 14 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste durante os rastreios. Às Embaixadas de Portugal nos diferentes países, agradecemos o apoio prestado. À enfermeira Helga Aguiar, agradecemos a colheita de exsudados nasais, em 2010, em São Tomé e Príncipe. REFERÊNCIAS 1. Verhoeven, Gagnaire, Botelho-Nevers et al. Detection and clinical relevance of Staphylococcus aureus nasal carriage: An update. Expert Review of Anti-Infective Therapy. 2014; 12: 75-89. 2. European Center for Disease Prevention and Control. Antimicrobial resistance surveillance in Europe - Annual report of the European Antimicrobial Resistance Surveillance Network (EARS-Net) 2012 página inicial na internet. c2005 citada 2014 Mar 25. Disponível em http://www.ecdc.europa.eu/en/publications/Publications/antimic robial-resistance-surveillance-europe-2012.pdf 3. de Lencastre, Tomasz. The CEM-NET initiative: Molecular biology and epidemiology in alliance - tracking antibiotic-resistant staphylococci and pneumococci in hospitals and in the community. International Journal of Medical Microbiology. 2011; 301: 623-9. 4. Albrich, Harbarth. 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Unexpected absence of meticillin-resistant Staphylococcus aureus nasal carriage by healthcare workers in a tertiary hospital in Kenya. Journal of Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 15 Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste Hospital Infection. 2012; 80: 71-3. 29. Wertheim, Melles, Vos et al. The role of nasal carriage in Staphylococcus aureus infections. The Lancet Infectious Diseases. 2005; 5: 751-62. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 16 Vol.6 – Março 2014 Artigo de Revisão de Literatura Cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia Implantable cardioverter defibrillator (ICD) in athletes: the controversy Maria de Fátima Costa Ribas 1* 1 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa A 36ª conferência de Bethesda e a European Society of Cardiology (ESC) elaboraram documentos de consenso para a elegibilidade ou desqualificação de atletas com doenças do foro cardíaco. Estes documentos, relativamente a atletas com cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) e a prática de desporto, recomendam apenas a realização de desportos de baixa intensidade e em que não haja risco de trauma para o dispositivo. A National Collegiate Athletic Association (NCAA) não segue nenhuma das recomendações anteriormente citadas estando a decisão inteiramente nas mãos dos médicos. Aos membros da Heart Rhythm Society (HRS), foi realizado um estudo, com o objetivo de se saber o que recomendam os médicos relativamente à prática desportiva em indivíduos com CDI. Deste estudo obtiveram-se resultados controversos. Em 2012, Rachel Lampert e seus colaboradores, apresentaram na HRS os resultados de um estudo prospetivo em que afirmam que atletas com CDI podem, efetivamente, realizar desportos vigorosos e de caráter competitivo. Em Maio de 2013, o estudo supracitado foi publicado na revista Circulation. O presente artigo tem como objetivo fulcral evidenciar a controvérsia entre as recomendações dos documentos de consenso existentes, o que realmente se recomenda na prática clínica corrente e os resultados de um estudo pioneiro realizado por Rachel Lampert e seus colaboradores, relativamente à prática de desporto por parte de atletas com CDI. The 36th Bethesda Conference and the European Society of Cardiology (ESC) developed consensus documents for eligibility or disqualification of athletes with heart disease. These documents, for athletes with implantable cardioverter defibrillator (ICD), only recommend the practice of low intensity sports and with no risk of trauma to the device. The National Collegiate Athletic Association (NCAA) does not follow any of the previously mentioned recommendations and Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia stating that doctors are entirely responsible for the decision. In order to understand what doctors recommend to subjects with ICD regarding the practice of sports, a survey was applied to the members of the Heart Rhythm Society (HRS). This survey yielded conflicting results. In 2012, Rachel Lampert and collaborators presented at the HRS the results of a prospective study, in which they state that athletes with ICD can effectively perform vigorous sports and participate in sports competitions. In May 2013, the aforementioned study was published in the Circulation journal. The aim of the present paper is to highlight the controversy among the recommendations of the existing consensus documents, what is really recommended in current clinical practice, and the results of a pioneering study by Rachel Lampert and collaborators regarding the practice of sports by athletes with ICD. PALAVRAS-CHAVE: Atleta; desporto; cardioversor desfibrilhador implantável; participação em desportos. KEY WORDS: Athlete; sport; implantable cardioverter defibrillator; participation in sports. Submetido em 12 setembro 2013; Aceite em 17 dezembro 2013; Publicado em 31 março 2014. * Correspondência: Maria de Fátima Costa Ribas Email: [email protected] INTRODUÇÃO O coração do qual Aristóteles dizia ser a sede das paixões, das sensações e da inteligência, é hoje em dia um dos responsáveis pelas elevadas taxas de mortalidade existentes em todo o mundo. A morte súbita cardíaca em jovens atletas é uma realidade e como tal não deve ser ignorada, sendo que a sua incidência varia entre 1:100 000 e 1: 300 0001. Para colmatar a condição súbita citada, em 1980 surge o cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) e consequentemente a sua primeira implantação. Com o passar das últimas décadas, a implantação de CDI’s cresceu exponencialmente, visto que as indicações, hoje em dia, abrangem indivíduos, que apesar de terem função miocárdica normal, têm alterações genéticas que podem provocar arritmias potencialmente fatais. Para além disso, e atendendo ao avanço da tecnologia, estes dispositivos podem ser colocados em indivíduos cada vez mais jovens e em atletas2. Após a colocação do CDI, muitos são os atletas que desejam voltar a realizar atividade física. Contudo, e tal como em todas as terapêuticas, e os CDI’s não são exceção, existem complicações, tais Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP como o deslocamento ou fratura dos eletrocateteres, choques inapropriados, entre outras2,3. Para além das complicações, as recomendações da 36ª conferência de Bethesda e da European Society of Cardiology (ESC), no que diz respeito à realização de desportos, por parte de atletas com CDI, são que estes devem apenas realizar desportos de baixa intensidade e em que não haja risco de trauma para o dispositivo (golf, bowling, bilhar, entre outros)4. Apesar das recomendações existirem, muitos são os clínicos que afirmam seguirem atletas com CDI que realizam desportos mais intensos que o golf ou o bowling (Lampert, Cannom, & Olshansky, 2006). Após a apresentação dos resultados em 2012 na Heart Rhythm Society (HRS)6, em Maio de 2013, na revista Circulation, Rachel Lampert e seus colaboradores, publicaram os resultados de um estudo prospetivo em que afirmam que atletas com CDI podem realizar desportos vigorosos7. Começa, então, aqui a controvérsia. Atendendo às recomendações existentes e ao facto de existir pelo menos um estudo publicado em que se afirma, que atletas com CDI podem realizar desportos Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 18 Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia vigorosos e de competição, a abordagem deste tema torna-se extremamente interessante. É, portanto, objetivo deste artigo de revisão revelar o estado da arte, relativamente ao tema supracitado, e demonstrar a sua controvérsia. caem inanimados durante um jogo de futebol, basquetebol, ou outro. Se analisarmos o que foi descrito nas duas frases anteriores podemos mesmo admitir que este tipo de acontecimentos são um tanto ou quanto paradoxais, são como uma violação inexplicável da ordem natural. DEFINIÇÃO DE ATLETA E DESPORTO Morte súbita cardíaca é definida como “uma morte inesperada e súbita, de causa cardíaca, não traumática, num indivíduo sem suspeita de qualquer doença potencialmente fatal”1(p. 274). A condição “súbita” varia de autor para autor, contudo, vários especialistas consideram que esta pode surgir uma hora após o início dos sintomas1,12. A incidência de morte súbita cardíaca em atletas jovens com idade até aos 35 anos, varia entre 1:100 000 e 1:300 000. É mais frequente em indivíduos do sexo masculino e na raça negra1, sendo que as causas mais comuns são: cardiomiopatia hipertrófica, commotio cordis, anomalia das artérias coronárias, hipertrofia ventricular esquerda de causa indeterminada, miocardite, rutura de aneurisma aórtico, displasia arritmogénica do ventrículo direito, cardiomiopatia dilatada, síndrome do QT longo, entre outras. A patologia que lidera o topo da tabela é a cardiomiopatia hipertrófica12,13. Pode-se definir atleta como sendo aquele que participa em desportos, individuais ou inserido numa equipa organizada, que tem como objetivo uma competição regular e um treino sistemático, geralmente, de carácter intenso. Esta definição abrange apenas os atletas amadores e os atletas de elite (atletas de competição), excluindo os restantes, ou seja, exclui aqueles que realizam atividades recreativas/lazer8-10. A definição de desporto varia muito, contudo podemos definir este como sendo uma atividade organizada, competitiva e de entretenimento que requer compromisso, estratégia e fair play, em que o vencedor é definido de acordo com determinados objetivos e regras. Esta definição não contempla atividades recreativas/lazer, visto que esta não é considerada uma atividade competitiva2. Neste aspeto, a definição de atleta e de desporto intersetam-se. O desporto, de acordo com o relatório obtido na 36ª conferência de Bethesda, pode ser classificado consoante o tipo (estático ou dinâmico), a intensidade do exercício realizado (baixo, moderado ou alto), o perigo de lesão corporal devido à colisão e às consequências de síncope. Através desta classificação é possível estratificar os riscos para atletas com doenças cardíacas e/ou com CDI que queiram realizar desporto11. MORTE SÚBITA CARDÍACA EM JOVENS ATLETAS O atleta jovem é considerado um ícone de saúde e invulnerabilidade. Contudo, com alguma frequência lêem-se, ouvem-se e vêem-se nos meios de comunicação social, notícias sobre jovens atletas que Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP CARDIOVERSOR IMPLANTÁVEL (CDI) DESFIBRILHADOR Michel Mirowski e a sua equipa iniciaram as investigações que deram origem ao CDI e em 1980, este dispositivo, foi implantado pela primeira vez num ser humano. Os primeiros CDI´s apresentavam dimensões semelhantes às de um maço de cigarros, cerca de 8 x 11.5 cm, 170 cm3, e pesavam, aproximadamente, 280 gramas. O procedimento para a colocação deste dispositivo era bastante agressivo estando associadas grandes complicações, pois, era necessário a realização de toracotomia e este era colocado no abdómen. Atualmente, são mais pequenos e podem ser implantados através da realização de uma pequena incisão junto à clavícula. Os eletrocateteres são colocados por via transvenosa. Estes dispositivos são constituídos, essencialmente, por um gerador e por um ou dois eletrocateteres e Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 19 Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia têm várias funções, estas, essencialmente, são sensing, pacing, aplicação da terapia (desfibrilhação ventricular ou antitaquicardia pacing [ATP]), monitorização do ritmo cardíaco depois da terapia aplicada e armazenamento dos episódios/ informação14. Tal como em todas as terapêuticas, e os CDI´s não são exceção, existem complicações, que podem ser, deslocamento ou fratura dos eletrocateteres, migração do gerador, choques inapropriados, entre outras3,2. Para orientação dos médicos, relativamente à implantação de CDI´s, foram publicadas guidelines. Em 200115, estas guidelines foram publicadas na Europa pela European Society of Cardiology (ESC) e atualizadas em 200316. Em 199817, estas guidelines foram publicadas nos Estados Unidos da América através da American College of Cardiology (ACC) e da American Heart Association (AHA) e foram atualizadas em 200218 e 200819. De uma forma muito sumária e no que diz respeito à prevenção primária, as últimas guidelines recomendam a implantação de CDI em doentes com as seguintes características: doença coronária aguda e disfunção ventricular esquerda, doença coronária crónica e fração de ejeção igual ou inferior a 30% e patologias de alto risco, como por exemplo a síndrome de Brugada e a síndrome do QT longo. No que diz respeito à prevenção secundária as indicações para a colocação de CDI são: paragem cardíaca devido a taquicardia ventricular ou fibrilhação ventricular, taquicardia ventricular sustentada associada a patologia cardíaca estrutural, síncope associada a taquicardia ventricular ou fibrilhação ventricular e síncope associada a patologia cardíaca avançada sem outra causa identificável19. DOCUMENTOS DE CONSENSO E ESTUDOS REALIZADOS A 36ª conferência de Bethesda e a ESC recomendam a atletas com CDI a realização de desportos de baixa intensidade e em que não haja risco de trauma para o dispositivo. Recomenda-se, apenas, a realização de desportos como golf ou bowling, por exemplo4. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Na National Collegiate Athletic Association (NCAA) não existem critérios para determinar a elegibilidade da realização de desporto por parte de atletas com doença do foro cardíaco. Em consequência, esta responsabilidade é colocada nas mãos do médico e tal como é indicado no manual da NCAA, o médico é que tem a responsabilidade de determinar quando o estudante/atleta é impedido de participar em desportos. A autorização para o indivíduo regressar à atividade desportiva é, também, da inteira responsabilidade do clínico e da sua equipa10. Visto que há uma grande controvérsia relativamente às recomendações, foi realizado um estudo aos membros da Heart Rhythm Society (HRS) em 2006, com o objetivo de se saber o que recomendam os médicos relativamente à prática desportiva em indivíduos com CDI. Dos 614 clínicos, que responderam, 10%, (N = 62) recomendam, apenas, a prática de desporto de baixa intensidade, como por exemplo o golf ou o bowling. A maioria (76%, N = 464) recomenda a não realização de desportos de contacto. Alguns (45%, N = 273) desaconselham desportos de competição. Cerca de 71% afirmam seguir atletas com CDI que continuam a realizar desportos vigorosos e de competição, tais como basquete, corrida e esqui. Destes que realizam desporto, verificou-se que em 1% dos indivíduos não houve danos físicos, 5% tiveram danos a nível do CDI e em 1% houve choques inapropriados. Os eventos mais frequentes foram danos nos eletrocateteres devido a atividades repetitivas como, por exemplo, o golf. Deste estudo, conclui-se que existem muitos indivíduos com CDI a realizar desportos mais vigorosos do que os que são recomendados e muitos deles fazem mesmo desporto de competição5. Atendendo a este estudo realizado e aos documentos de consenso elaborados pela 36ª conferência de Bethesda e a ESC, é de denotar uma certa contradição no que diz respeito à prática de golf, pois apesar de este ser um dos desportos recomendados pela sua baixa intensidade de esforço, é aquele que, neste estudo, foi considerado como sendo, um dos desportos, que causou danos nos eletrocateteres devido a movimentos de repetição. Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 20 Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia Em Maio de 2013, Rachel Lampert e seus colaboradores publicaram na revista Circulation um estudo prospetivo que incluiu 372 atletas com CDI que realizavam desportos com alguma intensidade, tais como, basquete, futebol e corrida. A idade média dos participantes era de 33 anos. A amostra foi recolhida através de processos clínicos e entrevistas por telefone As patologias cardíacas mais comuns dos atletas, com CDI, que constituíam a amostra eram, respetivamente, a síndroma do QT longo, cardiomiopatia hipertrófica e displasia arritmogénica do ventrículo direito. Durante a investigação verificouse que não houve nenhuma morte. De 372 atletas, 48 (13%) receberam pelo menos um choque apropriado e 40 (11%) receberam pelo menos um choque inapropriado. Durante a competição/ prática de desporto verificaram-se 49 choques em 37 participantes (10%), durante outra qualquer atividade física, 29 atletas (8%) receberam 39 choques e durante o repouso 24 indivíduos (6%) receberam 33 choques. Após cinco anos da implantação do CDI verificou-se apenas 3% de mau funcionamento/ danos nos eletrocateteres e, após dez anos, constatou-se apenas 10%. Este estudo é pioneiro nesta área atendendo que foi o primeiro a demonstrar/ concluir que atletas com CDI podem realizar desportos vigorosos e/ou de competição sem danos físicos ou falha de determinação de arritmia por parte do dispositivo, apesar da ocorrência, em pequeno número, de choques apropriados e inapropriados7. Com este artigo de revisão, pretende-se chamar a atenção para a importância deste tema, que é bastante controverso e existem poucos estudos nesta área. Para além disso, pode-se estar a discriminar, de certa forma, indivíduos que têm como objetivo a prática de desportos mais vigorosos que os recomendados. REFERÊNCIAS 1. Calado, Pereira, Teixeira, Anjos. Morte súbita no jovem atleta: O estado da arte. Acta Pediatr Port. 2010; 41: 274–80. 2. Law, Shannon. Implantable cardioverter-defibrillators and the young athlete: Can the two coexist? Pediatr Cardiol. 2012; 33: 387–93. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desporto adquiriu, nas últimas décadas, uma crescente dimensão social, com a mediatização cada vez maior dos atletas e dos seus feitos desportivos. A segurança da realização de desporto por parte de atletas com CDI atualmente é controversa e não é totalmente conhecida, visto que até hoje só foi realizado um estudo no âmbito desta temática. Para além disso, as recomendações dos médicos, relativamente a este tema variam imenso20. Devido aos riscos que a prática desportiva pode trazer aos atletas com CDI, as atuais guidelines recomendam que estes, não devem participar em desportos, exceto se Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP forem desportos de baixa intensidade e em que não haja nenhum perigo de trauma para o dispositivo, exemplos desses desportos são, o golf, o bilhar, o bowling, entre outros4. Contudo a realização de movimentos de repetição, nestes desportos recomendados (exemplo: golf), pode levar à deslocação/danos dos eletrocateteres5. De acordo com os parágrafos anteriores podemos constatar que a nível internacional não existe ainda consenso relativamente a este tema. Em Portugal, esta realidade também pode estar presente, na medida em que não há conhecimento, de quais as recomendações dadas pelos médicos e se existem realmente atletas com CDI a realizar desporto de média e alta intensidade, visto que desportos com baixa intensidade são os recomendados. 3. Schinkel, Vriesendorp, Sijbrands, Jordaens, ten Cate, Michels. Outcome and complications after implantable cardioverter defibrillator therapy in hypertrophic cardiomyopathy: Systematic review and meta-analysis. Circ Heart Fail. 2012; 5: 552–9. 4. Pelliccia, Zipes, Maron. Bethesda conference #36 and the European Society of Cardiology consensus recommendations revisited: A comparison of U.S. and european criteria for eligibility and disqualification of competitive athletes with cardiovascular abnormalities. JACC. 2008; 52: 1990–6. 5. Lampert, Cannom, Olshansky. Safety of sports participation in patients with implantable cardioverter defibrillators: A survey of heart rhythm society members. JCE. 2006; 17: 11–5. 6. Heart Rhythm Society. Study of International ICD Sports Safety Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 21 Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia Registry shows restriction of all competitive sports for those with implantable cardioverter defibrillators (ICDs) may not be necessary [página inicial na internet]. c2012 [citada 2013 Feb 2]. Disponível em: http://www.hrsonline.org/News/PressReleases/2012/05/Study-Of-International-ICD-Sports-SafetyRegistry 7. Lampert, Olshansky, Heidbuchel, et al. Safety of sports for athletes with implantable cardioverter-defibrillators: Results of a prospective, multinational registry. Circulation. 2013; 127: 2021– 30. 18. Epstein, DiMarco, Ellenbogen, et al. ACC/AHA/HRS 2008 Guidelines for device-based therapy of cardiac rhythm abnormalities - A report of the American College of Cardiology / American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Writing Committee to revise the ACC/AHA/NASPE 2002 Guideline Update for implantation of cardiac pacemakers and antiarrhythmia devices) - developed in collaboration with the American Association for Thoracic Surgery and Society of Thoracic Surgeons. JACC. 2008; 51: e1–e62. 8. Ferreira, Santos-Silva, de Abreu, et al. Sudden cardiac death athletes: A systematic review. Sports Med Arthrosc Rehabil Ther Technol. 2010; 2: 19. TH 9. Maron, Zipes. 36 Bethesda Conference - Introduction: Eligibility recommendations for competitive athletes with cardiovascular abnormalities— general considerations. JACC. 2005; 45: 1318–21. 10. Do, Patton. Cardiovascular implantable electronic devices in athletes. Cardiovasc Ther. 2010; 28: 327–36. 11. Mitchell, Haskell, Snell, Van Camp . Task Force 8: Classification of sports. JACC . 2005; 45: 1364–7. 12. Zipes, Wellens. Sudden cardiac death. Circulation. 1998; 98: 2334–51. 13. van Welsenes , Borleffs, van Rees, et al. Improvements in 25 years of implantable cardioverter defibrillator therapy. Neth Heart J. 2011; 19: 24–30. 14. Priori, Aliot, Blomstrom-Lundqvist, et al. Task Force on sudden cardiac death of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2001; 22: 1374–450. 15. Priori, Aliot, Blomstrom-Lundqvist, et al. Update of the guidelines on sudden cardiac death of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2003; 24: 13–5. 16. Gregoratos, Cheitlin, Conill, et al. ACC/AHA Guidelines for implantation of cardiac pacemakers and antiarrhythmia devices: Executive summary - A report of the American College of Cardiology / American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Committee on Pacemaker Implantation). Circulation. 1998; 97: 1325–35. 17. Gregoratos, Abrams, Epstein, et al. ACC/AHA/NASPE 2002 Guideline Update for implantation of cardiac pacemakers and antiarrhythmia devices: Summary article - A report of the American College of Cardiology / American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (ACC/AHA/NASPE Committee to Update the 1998 Pacemaker Guidelines). Circulation. 2002; 106: 2145–61. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 22 Vol.6 – Março 2014 Artigo Original de Investigação Espirometria em idade pré-escolar Spirometry in preschool children Ana Filipa Dias1, Liliana Andrade e Raposo1,2* 1 2 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital Pulido Valente A espirometria tem sido utilizada ao longo das últimas décadas como modo de avaliação da função respiratória em adultos e crianças, maioritariamente aplicada a indivíduos com idades superiores a seis anos. Atualmente, um número significativo de trabalhos tem vindo a reportar sucesso no treino das crianças em idade pré-escolar (dos dois aos seis anos), na realização de espirometria. O objetivo da presente revisão de literatura foi analisar os artigos mais recentes e relevantes no que diz respeito à realização de espirometria em idade pré-escolar, identificando quais são os critérios a avaliar na realização da espirometria bem como as normas de controlo de qualidade que melhor se aplicam a esta faixa etária. Foram procurados trabalhos na base de dados Pubmed, tendo sido analisados 30 artigos, após exclusão dos trabalhos que não se incluíam na temática a abordar. Os parâmetros a avaliar neste grupo são diferentes dos utilizados nos adultos, sugerindo-se a valorização do FEV0.5 e FEV0.75 em detrimento do FEV1 devido à incapacidade destas crianças na manutenção do tempo expiratório superior a 1 segundo. O parâmetro que mais parece influenciar a determinação das equações de referência é a altura da criança. É importante recorrer a programas de incentivo que demonstraram ser eficazes na melhoria da colaboração para a realização da espirometria. Os métodos de interpretação da espirometria mostraram ser diferentes entre crianças e adultos, utilizando-se preferencialmente no primeiro grupo, os Z-scores. Prevê-se num futuro próximo a validação da utilização desta técnica nesta faixa etária, bem como a sua aplicação na prática clínica diária. Spirometry has been used over the past decades as a way to assess respiratory function in adults and children, applied mostly to individuals older than six. Currently, a significant number of papers are reporting success in training children in preschool age (from two to six years) to perform a spirometry. The aim of the present review is to analyze the most Espirometria em idade pré-escolar recent and relevant papers, regarding the use of spirometry in preschool children, identifying the criteria to be used to assess the performance of the spirometry and the quality control standards that are better to apply to this age group. After searching the Pubmed database, a total of 30 papers were analyzed after exclusion of studies that did not address the subject of interest. The assessment parameters in this age group are different from those used in adults, being suggested the use of FEV0.5 and FEV0.75 instead of FEV1 due to the inability of these children to maintain an expiration time greater than 1 second. It seems that the most important parameter with a higher influence in reference equations is the child height. It is important to use incentive programs that proved to be effective in improving the children’s adherence collaboration to the tests. The methods for the interpretation of spirometry are different in children and adults, using preferably the Z-scores in the first group. It is expected, in the near future, that the validation of this technique in this age group, as well as its application in daily clinical practice, will happen. PALAVRAS-CHAVE: Espirometria; idade pré-escolar; provas funcionais respiratórias; criança. KEY WORDS: Spirometry; preschool age; pulmonary function tests; child. Submetido em 10 janeiro 2014; Aceite em 18 fevereiro 2014; Publicado em 31 março 2014. * Correspondência: Liliana Raposo. Email: [email protected] INTRODUÇÃO As provas funcionais respiratórias, nomeadamente a espirometria são utilizadas há várias décadas na avaliação da função respiratória dos adultos e adolescentes. Sendo consideradas fundamentais para a confirmação diagnóstica de diversas patologias do foro respiratório, para o controlo da sua evolução natural ou para avaliação da resposta à terapêutica instituída, uma correta execução da técnica e a interpretação dos resultados é mandatória1. Os procedimentos de orientação técnicos e interpretação dos resultados encontram-se estandardizados para a população adulta2, mas a sua realização e interpretação na idade pré-escolar tem sido objecto de estudo nos últimos anos pelas peculiaridades que esta faixa etária apresenta. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP A idade pré-escolar corresponde ao intervalo entre os dois e os seis anos e constitui um dos maiores desafios em termos de avaliação funcional respiratória, quer pelas dificuldades de coordenação e colaboração destas crianças na execução das manobras exigidas, quer pela inadequação dos critérios de realização e avaliação publicados para a idade adulta, muitas vezes utilizados neste grupo. Por estes motivos os estudos funcionais respiratórios nesta faixa etária estiveram durante largos anos apenas restritos à investigação3. A comunidade científica tem tido especial atenção para a avaliação funcional respiratória na idade préescolar, e diferentes métodos de medição, nomeadamente no que respeita ao tempo de execução das provas ou os parâmetros a avaliar têm sido sugeridos, especialmente para a espirometria, com resultados encorajadores4. Neste grupo torna-se Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 24 Espirometria em idade pré-escolar fulcral a interação avaliador/criança, de modo a que esta colabore na realização das provas. Alguns trabalhos têm demonstrado que é possível efetuar a avaliação respiratória neste grupo, particularmente recorrendo à espirometria animada, tendo sido possível aferir a sua viabilidade. A sua reprodutibilidade mostra que pode ser utilizada na prática clínica diária5. O aumento da incidência das doenças respiratórias pediátricas, geralmente de natureza obstrutiva, e a elevada morbilidade devido a doenças crónicas com tendência para o seu incremento, obriga a que exista uma metodologia uniforme a aplicar na avaliação da função respiratória neste grupo, de forma a se proceder a uma correta interpretação dos resultados adquiridos6. Observando como exemplo a asma brônquica, a evidência cumulativa do aumento da sua incidência em crianças, com o possível impacto do tratamento precoce na sua evolução, justifica a necessidade da implementação de provas de função pulmonar fiáveis para avaliar o grau de obstrução pulmonar nestas idades. O diagnóstico tardio e o tratamento inadequado da asma brônquica grave na criança condicionam o progressivo aumento da limitação ao fluxo aéreo, com o aumento do risco de morte em idade adulta6. Pela relevância que esta temática envolve e devido a alguma incerteza acerca dos critérios de aceitabilidade e reprodutibilidade a serem empregues, bem como quais as equações de referência a utilizar, diversos trabalhos foram realizados na tentativa de uniformizar os critérios de realização e interpretação de resultados nessa faixa etária que originaram a elaboração de um documento pelas American Thoracic Society/European Respiratory Society (ATS/ERS) em 20077. Apesar da importância de que o documento se reveste, este foi elaborado com base em estudos com populações e metodologias diferentes, i.e. com crianças a partir dos três anos de idade, com populações muito reduzidas, ou que incluíam crianças com patologia/sintomatologia respiratória. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Após esta importante publicação, continuaram a surgir na comunidade científica nacional e internacional, trabalhos sobre este tema. Assim, parece-nos pertinente compilar uma visão abrangente sobre este assunto, sendo o objetivo do presente trabalho analisar os artigos mais recentes e relevantes no que diz respeito à realização da espirometria em idade pré-escolar, identificando quais são os critérios a avaliar na realização desta técnica, bem como as normas de controlo que qualidade que melhor se aplicam a esta faixa etária. METODOLOGIA Tendo por objetivo o anteriormente apresentado, foi realizada uma revisão simples da literatura. Para aceder aos artigos publicados acerca deste tema, foi utilizado o motor de busca Pubmed, usando as seguintes palavras-chave: “spirometry” AND/OR “Children” AND/OR “pulmonary function tests” AND/OR “preeschool spirometry” com os filtros ativados: English language; Children 2-5 years; Journal articles and reviews; full text available. Um total de 889 artigos foi encontrado. Após a leitura do título, do resumo e do texto, excluíram-se 616 trabalhos que não se enquadravam no tema do estudo, 83 por se encontrarem repetidos e 129 por ser utilizada uma população com idade superior a seis anos. Os restantes 40 e outros encontrados em referências bibliográficas nos artigos anteriormente referidos (27), encontram-se na lista de referências apresentada subsequentemente. A ESPIROMETRIA NA CRIANÇA EM IDADE PRÉ-ESCOLAR Os primeiros passos com vista à normalização dos procedimentos técnicos e clínicos relativamente à espirometria foram direccionados para o adulto. Estas normas estão completamente estandardizadas em vários documentos elaborados ao longo dos anos2. Alguns autores, aplicando esses critérios a crianças em idade pré-escolar, realizaram diversos trabalhos que alertaram para o facto dos critérios utilizados Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 25 Espirometria em idade pré-escolar para os adultos, não deverem ser utilizados com rigor em crianças, pelas particularidades existentes nessa faixa etária8-10. Um dos primeiros passos dados na diferenciação dos critérios de aceitabilidade das manobras executadas nessa faixa etária relativamente aos adultos, foi o tempo expiratório. Um estudo conduzido por Kanengiser e Dozor 11 que avaliou as espirometrias realizadas por 98 crianças com idade entre os três e os cinco anos seguindo as recomendações da ATS/ERS de 2005 para os adultos, veio alertar para a necessidade de criar diferentes critérios de avaliação para as crianças nesta faixa etária. Os valores obtidos simultaneamente para o volume expiratório máximo no primeiro segundo (FEV1) e para a capacidade vital forçada (FVC) foram aceites em apenas 30% das manobras e somente em crianças com cinco anos de idade. Alguns anos mais tarde, Arets et al10 concluíram que apenas 15% das crianças obtinham manobras de duração superior a seis segundos, o que veio reforçar a necessidade da criação de critérios adequados para este grupo8,9, nomeadamente quanto à duração da manobra expiratória nesta faixa etária. Com o objetivo de identificar quais os critérios de aceitabilidade das manobras, a partir do tempo expiratório obtido em crianças pertencentes a esta faixa etária, Crenesse et al12 desenvolveram um estudo em que incluíram 473 crianças entre os três e os cinco anos de idade. Referiram que a capacidade de obter manobras com duração superior a um segundo aumentava com a idade da criança, reportando índices de sucesso crescentes em consonância com a faixa etária. Também Nystad et al13 alertaram para a necessidade de utilização de outros parâmetros na avaliação da função respiratória neste grupo, após a avaliação de 652 crianças entre os três e os seis anos de idade, concluindo que 10% não conseguiam manobras expiratórias com duração de um segundo, particularmente as mais novas. Concordantemente Burity et al14, concluíram ao avaliar 240 crianças saudáveis, entre os três e os seis anos de idade, que apesar das manobras terem tempos expiratórios de curta duração, traduzindo-se em términos abruptos, podem apresentar resultados reprodutíveis. Um Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP estudo desenvolvido em Portugal está também de acordo com os autores anteriores, afirmando que a fiabilidade da metodologia empregue para a realização de espirometria, e os critérios utilizados para a escolha das curvas débito-volume no que diz respeito à aceitabilidade e reprodutibilidade das manobras, devem ser diferentes dos utilizados para o adulto, uma vez que na criança em idade pré-escolar as manobras expiratórias são de menor duração15. Esses achados parecem resultar das crianças terem vias aéreas proporcionalmente maiores que seus volumes pulmonares, e uma força de retração elástica do pulmão maior que a dos adultos, expirando a totalidade da sua capacidade vital (VC) em poucos segundos16,17. Devido à presença de um tempo expiratório reduzido em crianças, percebeu-se que a utilização do FEV1, tão importante na avaliação da gravidade das alterações ventilatórias nos adolescentes e adultos, não poderia ser utilizado com o mesmo rigor na idade pré-escolar, especialmente nas crianças de menor idade. Dois estudos envolvendo crianças com idades inferiores a seis anos utilizaram equações com o parâmetro volume expiratório máximo aos 0,75 segundos (FEV0,75), observando ser esse um dos parâmetros mais adequados para esta faixa etária18,19. Baseados em alguns dos trabalhos anteriores10-13, foram publicadas pela ATS em 2007 novas diretrizes relativamente às provas de função pulmonar em idade pré-escolar, nas quais se reforça a importância da utilização de parâmetros como o volume expiratório máximo aos 0,5 segundos (FEV0.5) e o FEV0.75 na sua avaliação, em detrimento do FEV17. Num trabalho de Stanojevic et al.20, foi apontado que em idade pré-escolar, mesmo quando se consegue atingir um FEV1, o seu valor clínico permanece questionável. Concluíram que é mais apropriado utilizar o FEV0.75 ou o FEV0.5 como meio para distinguir a normalidade neste grupo etário, o que veio reforçar uma vez mais a necessidade da utilização de critérios adequados a esta população. Um trabalho de Santos et al.3 estudou 1239 crianças nas quais foi possível reportar o FEV1 em 801 crianças com idade média de 4,5 anos (65%), o FEV0.75 em 268 crianças com idade Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 26 Espirometria em idade pré-escolar média de 4 anos (22%) e o FEV0.5 em 23 crianças com idade média de 3,5 anos (2%). Concluíram que a espirometria em idade pré-escolar é exequível na prática clínica diária, com um aumento do sucesso em crianças mais velhas e que o registo de manobras com duração de 0,5 ou 0,75 segundos permite a avaliação funcional respiratória de um maior número de crianças. Desde a publicação do documento, vários estudos têm sido conduzidos para verificar a validação destes critérios, na interpretação dos resultados espirométricos neste grupo, todos com resultados concordantes com os anteriores8,14,16,21. como um instrumento de medida do adequado crescimento e desenvolvimento pulmonar infantil24. De acordo com as guidelines publicadas em 20077, que referem que a par da interpretação dos resultados da espirometria destas crianças, é necessária uma avaliação cuidadosa dos aspectos morfológicos das curvas, Borrego et al5 verificaram que na criança em idade pré-escolar é mandatório cumprir os critérios de qualidade da manobra pela sua inspeção visual, não sendo possível cumprir os restantes critérios, particularmente a duração da manobra de expiração forçada superior a seis segundos. Concordantemente, outro estudo22 refere a importância da visualização dos aspectos morfológicos das curvas, nomeadamente da porção inspiratória. A utilização de software de incentivo à colaboração destas crianças, constituído por um conjunto de jogos (velas, balões, bowling, apitos), denomina-se de espirometria animada25. Este tipo de software tem sido tema de vários estudos, no que respeita à sua utilização nesta faixa etária, com o objetivo de perceber se os resultados obtidos por este meio, são ou não, aceitáveis e adquiridos com maior facilidade. Em 2001, Vilozni et al.26 publicaram um estudo em que foram incluídas 112 crianças em idade préescolar, obtendo-se uma taxa de sucesso de 70%, na obtenção de espirometrias aceitáveis e reprodutíveis através da utilização de animação. Também Santos et al3, efetuaram uma análise retrospetiva de provas funcionais respiratórias realizadas em crianças entre dois e seis anos de idade utilizando a espirometria animada, antes e após 400 µg de salbutamol. Das 1239 provas funcionais respiratórias realizadas, 1092 (88%) cumpriram critérios de aceitabilidade e reprodutibilidade recomendados para esta faixa etária. Amplamente reconhecida pela comunidade científica como método de diagnóstico e follow-up de patologias respiratórias, a espirometria assenta primordialmente na colaboração do indivíduo aquando da realização das manobras. As crianças com idades entre os dois e os seis anos podem ter dificuldades em compreender as explicações para a realização de manobras expiratórias adequadas e distraem-se facilmente durante a abordagem inicial. Desta forma, os técnicos de Cardiopneumologia que realizam os exames devem ser atenciosos, mostrar entusiasmo e ser conhecedores das limitações inerentes a este grupo etário23. A idade pré-escolar é uma fase específica, não só pela falta de colaboração das crianças para a realização das manobras forçadas, mas também pela necessidade de utilização de estratégias especiais na realização dos testes. A avaliação da função pulmonar é importante não apenas como um parâmetro clínico, mas também Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Nestas crianças torna-se difícil obter essa colaboração, sendo necessária uma motivação por reforço positivo, com várias tentativas e erros25. O ambiente do laboratório de função pulmonar deve ser aconchegante e lúdico com o objetivo de aumentar a interação avaliador/criança23, sendo fundamental para a obtenção de resultados fiáveis neste grupo, o encorajamento, a empatia e a confiança com a criança. Relativamente às equações de referência para a espirometria em crianças em idade pré-escolar, são vários os estudos que tentaram perceber qual ou quais seriam as mais adequadas, para este grupo. De acordo com alguns autores mencionados adiante, na faixa etária dos dois aos seis anos apenas a altura da criança influencia as equações de referência, ao contrário das dos adultos que são influenciadas por outros dados antropométricos além da mesma, como a idade, o género ou a raça. Zapletal e Chalupová27 num estudo realizado com 173 crianças saudáveis Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 27 Espirometria em idade pré-escolar entre os três e os seis anos de idade, demonstrou que os valores dos parâmetros espirométricos estudados estavam positivamente correlacionados com a altura da criança, sendo a correlação com a idade menos expressiva, tendo concluído que a altura parece ser o parâmetro que mais influencia os resultados da espirometria. Também Eigen et al28 que estudaram crianças em idade pré-escolar, publicaram equações de referência para os valores espirométricos que se baseiam numa equação única, exclusivamente dependente do logaritmo natural da altura da criança em estudo, sendo independente da idade e do peso. Reportaram 82% de sucesso nas espirometrias das 259 crianças estudadas. De acordo com os anteriores, Ranganathan et al8 afirmaram que a altura é o factor que exerce maior influência sobre a VC na infância, sendo a relação entre ambas bem descrita por equações exponenciais. No que respeita à interpretação dos resultados espirométricos, as orientações da ATS/ERS de 2007 mencionam a utilização de Z-scores ou percentis, em detrimento das percentagens do previsto. Consiste num programa informático de análise estatística que permite gerar equações dos valores previstos por regressão linear múltipla utilizando as variáveis espirométricas como variáveis dependentes e a altura, peso, idade, género e raça como variáveis independentes no modelo de regressão29. Este método permite a geração de equações que expressam os resultados em Z-scores o que facilita a interpretação dos resultados em espirometria na idade pré-escolar7. Alguns autores, nomeadamente em Portugal, analisaram a eficácia da utilização dos Zscores. Num estudo com 53 crianças em idade préescolar, foi obtida uma taxa de sucesso de 85% na avaliação funcional respiratória por espirometria animada, utilizando este método. Os valores foram expressos em Z-scores, e conforme as guidelines de 2007, ajustados para o género, altura e idade. Foram reportados resultados de acordo com a literatura internacional, com valores de normalidade entre ± 230. Também Veras e Pinto24 realizaram uma análise aos resultados da espirometria em crianças com idades inferiores a seis anos, que incluiu 74 crianças e obteve uma taxa de sucesso de 82%, com uma Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP melhoria no desempenho do teste nas idades entre os cinco e os seis anos. Os resultados foram analisados através de Z-scores, constatando-se que 21,6 % das crianças apresentavam um padrão obstrutivo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A avaliação da função respiratória em idade préescolar reveste-se de particularidades metodológicas, e tem vindo a ganhar um interesse crescente na comunidade científica nacional e internacional. A evolução dos espirómetros, as animações utilizadas e a discussão sistemática sobre esta temática possibilitam o debate sobre quais serão os melhores parâmetros para a análise efetiva das medidas da função pulmonar nestas idades. A espirometria, sendo um instrumento de quantificação objetiva do compromisso pulmonar, possibilita a sua aplicação em crianças mais novas, com benefícios evidentes e com a garantia de atempadamente acompanhar o curso natural de determinadas doenças. A existência de padrões unânimes de avaliação préescolar para a espirometria é essencial para facilitar as comparações intraindividuais e a comparação de resultados entre diversos laboratórios de função respiratória. Contudo, continuam a ser necessários mais estudos para a correta estandardização dos procedimentos técnicos e equipamentos a utilizar nesta faixa etária. REFERÊNCIAS 1. Lum, Stocks. Forced expiratory manoeuvers. Eur Respir Mon. 2010; 47: 46–65. 2. et al. Standardization of spirometry. Eur Respir J. 2005; 26: 319–38. 3. Santos, Almeida, Couto, Morais-Almeida, Borrego. Feasibility of routine respiratory function testing in preschool children. Revista Portuguesa de Pneumologia. 2013; 19: 38–41. Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 28 Espirometria em idade pré-escolar 4. Larsen, Kang, Guilbert, Morgan. Assessing respiratory function in young children: Developmental considerations. allergy clin immunol. 2005; 115: 657–666. 19. Piccioni, Borraccino, Forneris et al. Reference values of forced xxpiratory volumes and pulmonary flows in 3-6 year children: A cross-sectional study. Respiratory Research. 2007; 8: 14. 5. Borrego, Couto, Almeida, Morais-Almeida. Espirometria em idade pré-escolar na prática clínica. Rev Port Imunoalergologia. 2012; 20: 23–31. 20. Stanojevic, Wade, Cole et al. Spirometry centile charts for young caucasian children: The Asthma UK Collaborative Initiative. Amer Jf Respir Crit Care Med. 2009; 180: 547–52. 6. Marchal, Loos. Lung function testing in preschool children. Pediatr Pulmonol.1999; Supplement 18: 21–3. 21. Vilozni, Barker, Jellouschek, Heimann, Blau. An interactive computer-animated system (SpiroGame) facilitates spirometry in preschool children. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2001; 164: 2200–2205. 7. Beydon, Davis, Lombardi et al. An official American Thoracic Society/European Respiratory Society statement: Pulmonary function testing in preschool children. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2007; 175: 1304–45. 8. Ranganathan, Stocks, Dezateux et al. The evolution of airway function in early childhood following clinical diagnosis of cystic fibrosis. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2004; 169: 928–33. 22. Gaffin, Shotola, Martin, Phipatanakul. Clinically useful spirometry in preschool-aged children: Evaluation of the 2007 American Thoracic Society guidelines. J Asthma. 2010; 47: 762– 767. 23. Pérez-Yarza, Villa, Cobos etal. Forced spirometry in healthy preschool children. An Pediatr. 2009; 70: 3-11. 9. Seed, Wilson, Coates. Children should not be treated like little adults in the PFT lab. Respiratory Care. 2012; 57: 61-74. 24. Veras, Pinto. Feasibility of spirometry in preschool children. J Bras de Pneumol. 2011; 37: 69–74. 10. Arets, Brackel, van der Ent. Forced expiratory manoeuvers in children: Do they meet ATS and ERS criteria for spirometry? Eur respir J. 2001; 18: 655–60. 25. Antunes, Borrego. Importância da avaliação funcional respiratória em idade precoce. Revista Portuguesa de Imunoalargologia.2009; 17: 489-505. 11. Kanengiser, Dozor. Forced expiratory manoeuvers in children aged 3 to 5 years. Pediatr Pulmonol. 1994; 18: 144–9. 26. Vilozni, Efrati, Barak, Yahav, Augarten, Bentur. Forced inspiratory flow volume curve in healthy young children. Pediatr Pulmonol. 2009; 44: 105–111. 12. Crenesse, Berlioz, Bourrier, Albertini. Spirometry in children aged 3 to 5 years: Reliability of forced expiratory maneuvers. Pediatr Pulmonol. 2001; 32: 56–61. 13. 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Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 29 Vol.6 – Março 2014 Artigo de Revisão de Literatura Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular Contribution of physiotherapy on temporomandibular joint dysfunction Cátia Concórdia1*, Rodrigo Martins1, Sandra Alves1 1 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa A articulação temporomandibular faz parte de um sistema complexo que envolve a dentição, mandibula, crânio, coluna cervical e cintura escapular. A sua disfunção atinge em grande parte a população adulta, entre os 20 e os 40 anos de idade, e compreende uma condição complexa e multifactorial envolvendo um variado número de sinais e sintomas não existindo consenso sobre a sua etiologia ou critério de diagnóstico. Também quanto ao tipo de tratamento apresenta alguma discordância no que diz respeito ao tipo de técnicas utilizadas e profissionais de saúde integrantes nessa abordagem. Este estudo teve como objectivo perceber qual o contributo da fisioterapia neste tipo de condições e a relevância da sua integração no processo de avaliação e tratamento potencializando a máxima funcionalidade e qualidade de vida do utente. The temporomandibular joint is part of a complex system involving the teeth, jaw, skull, cervical spine and shoulder girdle. Its dysfunction affects largely the adult population between 20 and 40 years old and comprises a complex and multifactorial condition involving a number of different signs and symptoms. There is no consensus on its etiology or diagnostic criteria. Also, there is some disagreement regarding the type of treatment, namely concerning the type of health professionals and techniques involved. This study aimed to understand the contribution of physiotherapy in this type of conditions and the relevance of its integration in the evaluation and treatment process leveraging a maximum functionality and quality of life of the patient. PALAVRAS-CHAVE: Disfunção temporomandibular; fisioterapia; intervenção; tratamento. KEY WORDS: Temporomandibular joint dysfunction; physiotherapy; intervention; treatment. Submetido em 16 abril 2014; Aceite em 1 fevereiro 2014; Publicado em 31 março 2014. * Correspondência: Cátia Concórdia. Email: [email protected] Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular INTRODUÇÃO tratamento, de acordo com Pinto e Mota em 20008. O sistema mastigatório é a unidade funcional do corpo responsável pela mastigação, fonação e deglutição. Este sistema é composto por ossos, articulações, ligamentos, dentição e musculatura específica a que se junta a componente neurológica que regula e coordena todos estes elementos estruturais. Portanto, este sistema é uma unidade complexa e altamente refinada sendo essencial a compreensão da sua anatomia funcional e biomecânica1 . Apesar da existência de uma extensa literatura científica ao longo de várias décadas, a etiologia das formas mais comuns de DTM permanece amplamente desconhecida e o seu diagnóstico é feito de uma forma descritiva tendo por base os sinais e sintomas presentes6. Assim, a etiologia da DTM é complexa e multifactorial, sendo que alguns autores (McNeill e colegas em 1980 e Okenson em 1996) referem os factores de predisposição, iniciantes e perpetuantes como elementos contributivos na etiologia desta condição1. O sucesso na abordagem da DTM depende da identificação e controlo desses factores contributivos1. Bell, em 1982, indicou que o termo disfunções temporomandibulares (termo doravante identificado como DTM) não sugere apenas problemas confinados às articulações mas também inclui todas as perturbações associadas à disfunção do sistema mastigatório1 tais como queixas de cefaleia, dor na região da mandíbula, ouvidos ou face2 e também disfunções da coluna cervical, que contribuem para a perpetuação da sintomatologia da DTM3. Assim, a DTM é um termo colectivo usado para um número de problemas clínicos que envolvem os músculos da mastigação, as articulações temporomandibulares (termo doravante identificado por ATM), e/ou outras estruturas associadas4,5. Os sinais e sintomas mais comuns na DTM são a dor persistente nos músculos da mastigação ou na articulação e, menos frequentemente, nas estruturas adjacentes a esta; limitações ou desvios no movimento da mandíbula; e ruídos articulares6. A dor é o sintoma mais comum e, inicialmente, resultante de hábitos parafuncionais tais como cerramento dos dentes ou bruxismo, podendo dever-se a causas piscogénicas ou estarem relacionados com factores tais como stress, ansiedade ou depressão4. Os sinais estão presentes em cerca de 60% a 70% da população, ainda assim apenas um em cada quatro indivíduos têm consciência disso ou referem quaisquer sintomas, segundo Graber, Rakosi e Petrovic em 20097. Num estudo realizado em Portugal, a prevalência de sintomas foi de 51% mas os sinais clínicos abrangiam 72% dessa população e apenas 5% apresentaram necessidade de recorrer ao Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP A literatura sugere que os maiores factores associados à DTM, variam de indivíduo para indivíduo, sendo eles: a condição da oclusão dentária, cerramento dos dentes, condições traumáticas, stress emocional, depressão, angústia, dor profunda, hábitos parafuncionais nocturnos e posturas incorrectas, de acordo com LeResche, em 1997; Fricton, em 1998, McNeill, em 19905,1. Vários estudos epidemiológicos (de De Kanter, Truin e Burgersdijk, em 1993; de Von Korff e colaboradores, em 1988, e de Dworkin, Le Resche e Von Korff, em 1990)1 revelam que a maioria dos sintomas são observados na faixa etária dos 20 anos aos 40 anos de idade, sendo que a prevalência desta disfunção varia entre 8% e 15% no género feminino e 3% a 10% no género masculino9. O género feminino é aquele que mais procura tratamento comparativamente ao género masculino numa escala de um homem em cada quatro mulheres, não sendo claro o porquê deste fenómeno desde que se suspeita que a DTM afecta tanto o género feminino como o masculino, segundo Rugh e Solberg, em 19857. Um grupo de investigadores sugere que este factor possa estar relacionado com a variação dos níveis hormonais no ciclo menstrual (LeResche, Mancl, Sherman, Gandara e Dworkin, em 200310) e, desta forma, o género masculino apresenta um menor risco de desenvolver sintomatologia devido ao efeito protector da testosterona em combinação com o baixo nível de estrogénio10. De ressalvar que face às dificuldades de Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 31 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular estudo na população ainda não existem conclusões empíricas face ao motivo. A articulação temporomandibular apresenta características únicas e a sua disfunção é frequente. Este estudo insere-se no projecto de final de curso de licenciatura em Fisioterapia da Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa e apresenta como principal objectivo compreender em que medida o contributo da fisioterapia é relevante no processo de tratamento e prevenção destas condições, tendo em conta quais os tratamentos usados para estas condições e de que forma estão implementados. Para concretizar este objectivo considera-se relevante rever os conceitos sobre a articulação temporomandibular e a sua relação com as restantes estruturas do corpo na medida em que se deve ter deste uma visão holística. REVISÃO DE CONCEITOS A articulação temporomandibular (ATM) O sistema mastigatório compreende três grandes componentes ósseos, a maxila, a mandíbula e o osso temporal. A área onde a mandíbula articula com o crânio, a ATM, é uma das articulações mais complexas do corpo1, sendo esta classificada como uma bielipsoido-discartrose conjugada, e estabelecendo-se entre superfícies articulares que pertencem à mandibula e ao temporal em conjugação com o menisco interarticular11. Por definição, uma articulação conjugada necessita da presença de, pelo menos, três ossos, ainda assim a ATM é constituída por, apenas, dois, o temporal e a mandíbula. Funcionalmente, o disco articular apresenta-se como um terceiro componente ósseo que permite movimentos articulares complexos1,11. O disco interarticular torna-se necessário porque as duas superfícies articulares não concordam entre si, pois enquanto o côndilo da mandíbula é fortemente convexo, a superfície articular temporal é simultaneamente côncava e convexa11. Pina, em 2010, refere que o disco articular, unido à Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP cápsula, divide a cavidade articular em duas porções, pelo que podem considerar-se duas sinoviais distintas: uma superior ou têmporo-discal, entre o disco e o temporal; e outra inferior ou mandíbulodiscal, entre o disco e o côndilo da mandíbula. Por esta razão, a ATM é referida como sendo uma articulação sinovial. Okenson em 20081 refere que o termo menisco é frequentemente utilizado, contudo, pode não ser o mais correcto pois esta estrutura não é de todo um menisco. Um menisco não divide a cavidade articular, isolando o líquido sinovial nem funciona como parte determinante do movimento de uma articulação. Na ATM o disco funciona como uma verdadeira superfície articular. No que respeita ao revestimento das superfícies articulares, este apresenta uma particularidade, pois ao contrário de outras articulações sinoviais, a sua superfície articular é composta por tecido conjuntivo fibroso em vez de cartilagem hialina, segundo DeBont, em 1984; DeBont, em 19851. As fibras estão fortemente comprimidas e conseguem suportar as forças do movimento e, assim, pensa-se que haja uma série de vantagens deste em relação à cartilagem hialina como, por exemplo, ser menos susceptível aos efeitos da idade, ser menos propenso ao desgaste e também pela maior capacidade de reparação, defende Robinson, 19931. Posto isto, é necessário então rever alguns conceitos sobre a anatomia funcional da ATM e quais os movimentos que esta desempenha. Biomecânica da ATM A ATM é um sistema articular extremamente complexo. O facto das duas articulações serem conectadas pelo mesmo osso, a mandíbula, todo o movimento desta estrutura vai implicar a função do sistema mastigatório. Cada articulação pode simultaneamente atuar em separado, no entanto, sofrem a influência uma da outra1. Assim sendo, a ATM compreende três movimentos funcionais: movimentos de descida/ depressão/ abertura e elevação/ oclusão da mandíbula, que se Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 32 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular efectuam em torno de um eixo transversal que passa um pouco acima do forame da mandíbula; movimentos de projeção anterior/ propulsão/ protusão e de projeção posterior/ retropulsão/ retrusão, sendo executados segundo um plano sagital e muito limitados no homem; e movimentos de lateralidade/ didução/ excursão em que a mandíbula se desloca alternadamente para a direita e para a esquerda e que também envolve um mecanismo complexo de ambas as articulações12,13,11. lateral superior na biomecânica desta articulação pois, este músculo encontra-se inserido no bordo anterior do disco articular e quando activo, as suas fibras tracionam anterior e medialmente o disco nos movimentos de elevação da mandíbula1. Ainda dentro dos movimentos funcionais ocorrem dois movimentos articulares, a artrocinemática, o primeiro momento refere-se aos tecidos que rodeiam a cavidade sinovial inferior, côndilo e disco articular, que pelo facto de o disco estar fortemente ligado ao côndilo, o único movimento que pode ocorrer entre essas superfícies é o rolamento do disco na superfície articular do côndilo no movimento de rotação; o segundo momento é composto pelo complexo côndilo-disco que se move contra a fossa mandibular, através de um movimento de deslize na cavidade articular superior. Este movimento ocorre quando a mandíbula se move anteriormente, num movimento de translação1. Grande parte da rotação e translação ocorre simultaneamente durante a amplitude de movimento funcional, embora seja ainda controverso a sequência destes no início do movimento de abertura da boca, de acordo com Chen, em 1998 e Ferrario e colegas em 200513. Musculatura da ATM As superfícies articulares devem ser mantidas em contacto permanente no sentido de promover uma estabilidade articular e, desta forma, a actividade constante dos músculos que rodeiam a articulação é necessária, mesmo na fase de repouso, mantendo assim a pressão interarticular1. O músculo temporal apresenta três porções, a anterior com fibras verticais, a porção média com fibras a tornarem-se oblíquas e a porção posterior com fibras quase horizontais. Tem origem na fossa temporal e na superfície externa do crânio. Na contração bilateral deste músculo verifica-se a elevação e retrusão da mandíbula e na contração unilateral uma ligeira excursão ipsilateral1,12. A combinação da pressão interarticular e morfologia do disco são essenciais na manutenção de um posicionamento adequado do disco articular durante a função, ou seja, quando este apresenta uma forma regular, a superfície articular do côndilo deve situar-se na zona intermédia entre as duas porções mais espessas do disco, a anterior e a posterior1. De salientar a importância do músculo pterigoideu Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Exposto isto falta ainda referir a musculatura envolvida neste complexo articular, onde a sintomatologia, como acima referido, se encontra mais presente. Quatro pares de músculos formam o grupo designado por músculos da mastigação: o masséter, o temporal, o pterigoideu medial e o pterigoideu lateral1. O masséter é um músculo bastante potente que fornece a força necessária a uma mastigação eficiente e apresenta duas porções, uma superficial, com as suas fibras oblíquas, e uma profunda, com fibras predominantemente verticais. Tem origem no arco zigomático dirigindo-se para baixo até à face externa do ramo da mandíbula. Na sua contração bilateral existe uma elevação da mandíbula e ligeira protusão e na contração unilateral uma ligeira excursão ipsilateral. Quando existe uma protusão da mandíbula, pela porção superficial, e a força da mordida é aplicada a porção profunda estabiliza o côndilo contra a eminência articular1,12. O músculo pterigoideu medial tem origem na fossa pterigoideia e as suas fibras dirigem-se para baixo, para trás e para fora inserindo-se ao longo da superfície interna do ângulo da mandíbula1. Apresenta tamanho e orientação da força semelhante ao masséter. A sua contração bilateral eleva a mandíbula e provoca uma ligeira protusão e a Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 33 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular contração unilateral uma excursão contra-lateral bastante eficaz da mandíbula devido à orientação de força oblíqua12. O músculo pterigoideu lateral é apresentado como tendo duas porções pois actuam de maneira distinta, sendo uma superior e outra inferior. O músculo pterigoideu lateral inferior tem origem na superfície externa da lâmina pterigoideia e dirige-se para trás, para cima e para fora inserindo-se principalmente no colo do côndilo da mandíbula. A sua contração bilateral provoca a protusão e depressão da mandíbula. Uma contração unilateral promove excursão contra-lateral da mandíbula. O músculo pterigoideu lateral superior é consideravelmente menor que o inferior e tem a sua origem na superfície infra-temporal da grande asa do esfenóide e dirige-se de forma quase horizontal para trás e para fora inserindo-se na cápsula articular, no disco e no colo do côndilo da mandíbula. Contudo, a inserção exacta deste músculo no disco ainda é alvo de debate1. A sua activação provoca uma força ântero-medial na cápsula e no disco podendo esta ação muscular estar envolvida no mecanismo patogénico do excessivo deslocamento anterior e medial do disco (segundo Lafreniere, Lamontagne e El-Sawy, em 199712). Durante a abertura da boca, o músculo pterigoideu lateral superior permanece inactivo, iniciando apenas a sua activação quando em conjunto com os músculos elevadores da mandíbula. Este músculo está especialmente activo durante os movimentos contraresistidos que envolvem a elevação da mandíbula tais como, mastigação ou cerramento dos dentes1. Um facto interessante revela que aproximadamente 80% das fibras de ambos os pterigoideus laterais são do tipo I, ou seja, são músculos com relativa resistência à fadiga (de acordo com Erickson, em 1981; Mao, Stein e Osborn, em 19921). Importa, desde já, fazer a ressalva que embora o músculo digástrico não seja considerado um músculo da mastigação, este tem um papel importante na funcionalidade da mandíbula. Este apresenta duas porções, uma posterior com origem na apófise mastóide e inserção no osso hióide, e uma anterior com origem na superfície lingual da mandíbula e Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP inserção por um tendão comum à porção posterior. Quando o digástrico direito e o digástrico esquerdo se contraem, o osso hioide é estabilizado pelos músculos supra e infra-hiodeus e a mandíbula realiza um movimento de abertura e os dentes deixam de exercer contacto1. Em suma, os músculos paravertebrais, que fixam a posição do crânio, e os músculos supra-hiodeus e infra-hioideus, que fixam o osso hioide, são indispensáveis para a execução dos movimentos da mandíbula, pois é necessária uma base fixa para os músculos, que têm uma ação sobre a mandíbula, se moverem (de acordo com Sicher e Dubrul, em 197714). Após a revisão de conceitos, é relevante então perceber qual a relação entre a ATM e as restantes estruturas adjacentes a esta. Relação entre ATM, crânio e cervical Rocabado, em 1979, observou a relação entre o crânio e coluna cervical e refere que a maior parte do peso do crânio, incide na parte anterior da coluna cervical e nas articulações temporomandibulares. Desta forma, o crânio mantém a sua posição ortostática através de um mecanismo muscular complexo, envolvendo músculos da cabeça, cervical e cintura escapular. Consequentemente uma alteração, em alguma destas regiões, poderá levar a distúrbios da postura, não somente locais, como também nas demais cadeias musculares do corpo humano e viceversa15. Outros autores também referem que o posicionamento da mandíbula em relação ao crânio está inseparavelmente relacionada com o posicionamento do crânio com a cervical (segundo Ayub, em 1984; Dale, em 1999, Gillies, e colegas, em 1998; McKay, em 199913), e também que o posicionamento do crânio altera a direção da ação dos músculos que realizam a abertura da mandíbula (segundo Koolstra, Eijden, em 200213). Tendo em conta a anatomia muscular, assume-se que a postura da cabeça pode influenciar a mandíbula (de Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 34 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular acordo com Darnell, em 1983; Goldstein, Kraus, Williams e colegas em 1984; Mannheimer e Dunn, em 199112). Uma anteriorização da cabeça combina a flexão da coluna torácica e cervical inferior e a extensão da cervical superior, postura esta que alonga os músculos infra-hioideus gerando, por sua vez, uma tração do osso hioide no sentido inferior e posterior. Desta forma os músculos supra-hioideus tracionam a mandíbula no sentido de uma retrusão e depressão12. Num estudo realizado por Ries e Bérzin, em 2007, foram avaliados vários parâmetros como o índice de oscilação, por exemplo, tendo em conta três posicionamentos da mandíbula (posição de repouso, de contração isométrica e de contração isotónica) num grupo experimental com DTM e num grupo de controlo. Foi então concluído que indivíduos com DTM apresentam uma assimetria postural relativa em comparação aos indivíduos sem esta condição. Também Oatis, em 200913, refere que uma anteriorização da cabeça tende a aumentar a tensão da musculatura da região cervical, incluindo os músculos supra-hioideus. Desta forma, foi realizado um estudo pioneiro onde a avaliação da actividade dos músculos superficiais da cervical, nomeadamente o esterno-cleido-mastoideu e escaleno anterior, em indivíduos com DTM, era o principal objectivo. Estatisticamente não se observaram diferenças significativas na atividade eletromiográfica destes músculos, contudo, os indivíduos com DTM tendem a manter uma maior actividade muscular em comparação com indivíduos saudáveis17. Oatis, em 200913, refere ainda que a postura do crânio e cervical podem contribuir significativamente para o mecanismo patogénico da ATM pelo que os utentes com sintomatologia dolorosa nesta região devem realizar uma avaliação postural. As disfunções da articulação temporomandibular e dos músculos dessa região anatómica poderão estar associados a sintomas da coluna cervical superior (C0-C3), segundo Feinstein, e colaboradores, em 195418. Assim, a avaliação da região temporomandibular deve ser sempre acompanhada pela avaliação da coluna cervical superior18. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Neumann, em 200212, refere ainda que uma fraca postura a nível da cintura escapular também deve ser tida em conta pois, o músculo omo-hioideu, com a sua origem na escápula e inserção no osso hioide, pode, indirectamente, gerar tensão sobre a mandíbula. Uma disfunção postural geralmente não influencia apenas uma região do corpo e, desta forma, a avaliação postural da cabeça, coluna cervical, torácica e membros superiores deve ser realizada tanto na posição ortostática como na posição de sentado18 pois, um fraco alinhamento da cabeça, coluna cervical e cintura escapular não pode ser corrigido sem a correção do alinhamento do tronco e cintura pélvica19. A maioria dos estudos, apesar de algumas evidências discordantes, comprova que os distúrbios musculares e posturais são frequentes em utentes com DTM e estabelecem algum tipo de correlação entre o tipo de oclusão, existência de sinais e sintomas de DTM, dimensões crânio-faciais, anteriorização da cabeça e desequilíbrio postural, embora nem sempre seja possível explicar o mecanismo subjacente. Apesar destas contradições, existe a necessidade de uma abordagem biomecânica global quando se procede a uma avaliação e elaboração de um plano de tratamento no utente com DTM em que é aconselhável um exame postural cuidadoso20. Após a análise da literatura existente pode aferir-se que existem muitas discordâncias entre a relação da mandíbula com o crânio e deste com a coluna cervical. Contudo, é necessário ter em conta todos estes aspectos no que diz respeito a uma avaliação cuidadosa contemplando todas estas estruturas de forma a poder realizar um melhor diagnóstico e plano de tratamento sobre a condição. Posto isto, seria importante perceber quais os critérios de diagnóstico mais utilizados aquando da avaliação de utentes com este tipo de condição. Critérios de diagnóstico Segundo Wright, em 20055 e Okeson, em 20081, a avaliação inicial deve envolver uma entrevista ao Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 35 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular utente contemplando os sintomas, potenciais factores contributivos e potenciais factores de disfunção que não sejam DTM, sendo esta a forma mais completa e consistente no que diz respeito ao historial do utente. Assim sendo, a formulação de questionários poderá ser um coadjuvante na obtenção de dados relativos à condição do utente de forma a melhor encaminhar o exame físico. No que diz respeito a escalas de avaliação, são vários os estudos epidemiológicos e clínicos sobre a DTM que utilizam um critério de diagnóstico padrão, o Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular disorders (termo doravante designado por RDC/TMD), apresentado inicialmente por Dworkin e LeResche em 199221. Este critério de diagnóstico surge na tentativa de ultrapassar a falta de critérios de diagnóstico claros na classificação dos diversos subtipos de DTM, a falta de critérios de diagnóstico válidos cientificamente na medição de sinais e sintomas e a pesquisa de alterações emocionais, comportamentais e factores psicológicos (de acordo com Dworkin e LeResche, em 19928). Este é um instrumento de avaliação constituído por dois eixos, onde o primeiro faz um diagnóstico da disfunção propriamente dita e o segundo realiza uma avaliação psicossocial, importante para a averiguação de estados de ansiedade e depressão, entre outros6. É composto por quatro partes: um questionário ao utente, uma ficha de exame clínico, especificações para o exame e um protocolo de resultados para o eixo I e o eixo II8. No eixo I é feita a classificação entre três grupos: Grupo I, desordens musculares; Grupo II, deslocamentos do disco; Grupo III, doenças articulares inflamatórias ou degenerativas. No eixo II é feita a avaliação do grau de dor crónica, a depressão e somatização6. Este critério de diagnóstico foi traduzido para vinte idiomas, sendo o método de diagnóstico mais comum22 e forneceu um passo importante para um sistema baseado na etiologia, disponibilizando descrições operacionais bem definidas de forma a distinguir casos de disfunção da ATM de outros assim Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP como auxiliando na definição do subtipo de disfunção da ATM (de acordo com Dworkin, LeResche, em 1992; DeRouen, em 199521). Em Portugal, o RDC/TMD foi traduzido e adaptado à cultura portuguesa permitindo assim futuros trabalhos de investigação na área da DTM, preenchendo os requisitos necessários numa correcta avaliação dos utentes e identificando os subtipos de DTM8. Tendo por base os pressupostos analisados, pode avançar-se que a maioria dos estudos contemplou entrevistas clínicas ou o RDC/TMD como meios de diagnóstico da DTM e é possível, em Portugal, utilizar este último critério na prática clínica. Intervenção na DTM A importância de uma abordagem multidisciplinar, em situações de disfunção temporomandibular, é salientada por diversos autores, pois, na generalidade, a sua origem é multifactorial e uma abordagem com diferentes profissionais é, geralmente, mais efectiva do que uma abordagem singular15,5. Um tratamento conservador na disfunção da ATM continua a ser o mais eficaz em cerca de 80% dos utentes com esta condição, envolvendo um diferente número de especialistas que trabalham em equipa multidisciplinar4. A fisioterapia enquadra-se, geralmente, nas terapias conservadoras que, na grande maioria, são utilizadas em conjunto com outros tratamentos (segundo Colt e Winber, em 1994; Grieder, e colegas, em 19715. Rocabado, em 197915 explicou a importância da fisioterapia no tratamento da DTM através de tratamentos como o calor superficial, calor profundo, crioterapia, estimulação eléctrica transcutânea (TENS) ou biofeedback, e que estes podiam activar a circulação sanguínea, eliminar toxinas, acelerar processos de reparação tecidular, aliviar a dor e promover um relaxamento muscular. Quanto ao uso da electroterapia, duas revisões sistemáticas, não verificaram a sua evidência na Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 36 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular diminuição da dor, ainda assim, tratamentos com níveis moderados de laser, assim como programas com técnicas de relaxamento e biofeedback parecem diminuir os níveis de dor e aumentar o grau de abertura da mandíbula. Os autores referem que os estudos relativos a estes resultados são fracos mas devem ser tidos em conta23,24. No que diz respeito à postura, Rocabado, em 1979, refere que a ATM é uma articulação com musculatura intimamente envolvida com a coluna cervical e cintura escapular e, desta forma, quando ocorre algum desequilíbrio nesta região poderá haver tanto uma intervenção local ou uma reorganização postural global pela fisioterapia15. Utentes com DTM e sintomatologia da região cervical ou dor difusa podem ser referidos para a fisioterapia no sentido de tratar a região cervical5 pois este tipo de utentes não obtêm os mesmos progressos no tratamento que outros utentes com DTM e sem esse tipo de sintomatologia (Rammelsberg, LeResche, Dworkin e Mancl, em 2003; Raphael, Marbach e Klausner, em 2000; Raphael e Marbach, em 20013). Tendo em conta os exercícios posturais, Ayub, Glasheen-Wray e Kraus, em 198425, descreveram um estudo de caso onde davam ênfase ao posicionamento da cabeça e a sua influência na mandíbula. Desta forma, um indivíduo que apresentava como principal queixa alterações da arcada dentária, diminuição do tamanho dos dentes, dor cervical e cefaleia há quatro anos, foi avaliado pela odontologia e fisioterapia, em que o objectivo desta última seria restabelecer a postura anteriorizada da cabeça. Após 10 sessões de tratamento, onde estavam incluídos mobilização articular, exercícios activos, educação e elaboração de um programa de exercícios, por exemplo, foram comprovadas melhorias na anteriorização da cabeça. Santiesteban, em 198926, apresenta também um caso de uma utente com sintomatologia dolorosa e bloqueio do movimento da mandíbula assim como alterações posturais a nível da coluna cervical. O tratamento consistiu em exercícios posturais a nível da cabeça, cervical e tronco superior com contrações Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP isométricas resistidas no consultório e em casa, assim como técnicas de relaxamento e o uso de uma placa de oclusão dentária durante a noite. Após uma semana verificou-se uma diminuição dos bloqueios articulares e da sintomatologia dolorosa. Após duas semanas a utente referiu que não tinha bloqueios articulares, a dor diminui significativamente, e a anteriorização da cabeça também diminuiu, estando a utente mais consciente da sua postura. Um ensaio clínico aleatório controlado refere que utentes com disfunção da ATM em que lhes são dados exercícios de reeducação postural e auto-cuidado da ATM, em média, reduzem 42% a sintomatologia da DTM e 38% reduzem a sintomatologia da cervical. Utentes com anteriorização da cabeça tinham uma elevada probabilidade de melhorar a sintomatologia derivada da DTM através dos exercícios e instruções27. O uso de exercícios orais activos e passivos e exercícios posturais são intervenções eficazes na redução de sintomas associados à DTM e aumento do grau de abertura da mandíbula, contudo não é possível perceber qual ou quais as combinações mais eficazes23,24. A terapia cognitivo-comportamental é também um elemento das terapias conservadoras a ter em conta e é indicada para utentes com hábitos diários ou factores psicossociais persistentes (Gremillion, em 20025) e engloba principalmente a inversão de hábitos, relaxamento, hipnose, biofeedback, gestão de stress e terapia cognitiva geralmente providenciada por psicólogos5. Apenas 5% dos utentes que se submetem a um tratamento conservador não evoluem de forma positiva e, então, é necessário uma intervenção cirúrgica4. Numa revisão de literatura, Marzola, Marques e Marzola, em 200215, referem uma forte evidência da intervenção da fisioterapia no pósoperatório onde também se apresenta como fulcral na recuperação do utente, promovendo um alívio da dor e aumento da função articular e muscular num considerável curto período de tempo, quando comparados com utentes que não receberam este tipo de tratamentos. Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 37 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular Wright e North, em 20093, sugerem situações onde é recomendada a referenciação de utentes com DTM para a fisioterapia referindo factores como coluna cervical e sintomatologia proveniente desta área, padrão postural e orientação/ensino do utente no que diz respeito à sua condição ou mesmo em situação pré e pós-cirúrgicas . Desta forma, o fisioterapeuta também deve encaminhar utentes que referem dor nocturna, onde o médico dentista poderá recorrer a uma placa de oclusão no tratamento entre outros métodos, e também quando há referência de dor de dentes. Embora a fisioterapia seja usada com o objectivo de reduzir a sintomatologia associada à DTM, ainda se encontra por estabelecer a evidência que suporta cada tipo de tratamento específico, sendo necessária a realização de ensaios clínicos aleatórios controlados bem projectados onde seja avaliada a intervenção da fisioterapia nas DTM, em que estes ensaios sejam em grande número para que haja uma significância clínica e que inclua resultados válidos e fidedignos23. CONCLUSÃO A disfunção da ATM não é um campo primário na fisioterapia nem na odontologia, e o conhecimento sobre esta condição varia consoante a formação ministrada nas instituições de ensino superior frequentadas e muito desse conhecimento é geralmente obtido na formação pós-graduada. Poucos fisioterapeutas têm formação especializada ou extensa experiência no tratamento de utentes com disfunção da ATM5 e a importância da formação e conhecimento da anatomia e biomecânica da ATM é essencial para uma avaliação cuidada, diagnóstico apropriado e tratamento eficaz15,14. Dos estudos acima referidos podemos concluir que, apesar de alguns contrassensos sobre qual o tratamento mais eficaz, a fisioterapia é parte integrante no tratamento da DTM e tem um papel fundamental nesta condição. Sendo o fisioterapeuta por excelência um elemento conhecedor da estrutura e função do corpo humano assim como da postura e movimento, este é capaz de avaliar e intervir da forma Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP mais adequada potencializando a funcionalidade do utente. Facto este referido por Sahrmann, em 200219, citando que a base educacional de um fisioterapeuta assenta no conhecimento da anatomia, fisiologia e biomecânica do corpo que constituem o princípio de avaliação da performance muscular e do movimento do utente. O fisioterapeuta, além de trabalhar os sintomas, através dos meios eletrofísicos e mecânicos como, por exemplo, calor, crioterapia, TENS e biofeedback, também trata a causa, pois a DTM muitas vezes vem acompanhada por disfunções posturais. Assim, a avaliação da postura global é importante, onde o posicionamento da cabeça, coluna cervical, coluna torácia, cintura escapular18, tronco e cintura pélvica19 são factores a ter em conta. O tratamento fisioterapêutico inclui a prática de exercícios desenvolvidos no sentido de auxiliar os utentes a melhorar o seu controlo do movimento e também instruções que permitem ao utente a manutenção de uma postura correcta e o uso de padrões de movimento correctos na sua vida diária19. Tratamentos aplicados pela fisioterapia auxiliaram o utente na obtenção de uma postura da cabeça e tórax desejáveis25. Exercícios isométricos para cabeça e cervical e exercícios direccionados para a anteriorização da cabeça parecem tornar o utente mais consciente da sua postura e sendo este capaz de a corrigir26. As placas de oclusão são o tratamento comummente realizado por médicos dentistas3 e geralmente benéficas na dor dos músculos da mastigação, dor na ATM, ruídos na ATM e na mobilidade da mandíbula (Bush, Abbot, Butler e Harrington, em 19985). Esta ortótese deve ser utilizada como parte integrante de um tratamento conservador com outras abordagens terapêuticas e não isoladamente5. Utentes com DTM e pouca adaptação psicossocial apresentam grande melhoria sintomatológica quando o tratamento é feito em conjunto com uma intervenção cognitivo-comportamental (Dworkin, Turner, Mancl, Wilson, Massoth, Huggins, LeResche e Truelove, 20025). Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 38 Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular O tratamento conservador é considerado o mais eficaz e a fisioterapia está enquadrada neste tipo de abordagem e, desta forma, a coordenação entre profissionais de saúde, nomeadamente o médico dentista, o fisioterapeuta e o psicólogo é importante no que diz respeito à avaliação e intervenção, devido à sua causa multifactorial, e tendo sempre como objectivo o melhor e mais adequado tratamento do utente. Este estudo apresenta algumas fragilidades e/ou limitações resultante das visões antagónicas e dispersas dos autores que já se debruçaram sobre o tema. Existe uma falta de consenso entre estudos sobre a etiologia da condição assim como o seu diagnóstico, uma vez que não há concordância sobre qual ou quais os parâmetros de avaliação adequados. Ainda assim, o RDC/TMD é o critério de diagnóstico mais utilizado em estudos epidemiológicos e clínicos. Este apresenta-se como um instrumento fidedigno, válido e clinicamente útil pela sua capacidade de identificar subtipos de DTM e realizar também uma avaliação psicossocial. Contudo, é necessário, ainda, uma futura avaliação em termos da sua fidedignidade e validade6. Anderson e colegas em 2010 sugerem ainda que uma maior utilização do RDC/TMD por parte dos clínicos iria beneficiar o campo da DTM e, para tal, retirar a palavra Research (pesquisa) do nome poderá incentivar o uso mais amplo por parte dos clínicos, passando a denominar-se Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders (DC/TMD). Em Portugal, torna-se imperativo um entendimento de que a disfunção da articulação temporomandibular é um problema significativo para a população e que a fisioterapia tem um papel fundamental nesta condição. Desta forma são necessários mais estudos que verifiquem o estado actual destas condições clínicas no nosso país assim como estudos de investigação acerca da relevância da fisioterapia em Portugal na intervenção nesta condição no sentido de ampliar a sua avaliação e intervenção. REFERÊNCIAS 1. Okeson. Management of temporomandibular disorders and occlusion (6.ª ed.). St. Louis: Mosby; 2008. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP 2. Jerolimov. Temporomandibular disorders and orofacial pain. Medical Sciences. 2009; 33: 53-77. 3. Wright, North. Management and treatment of temporomandibular disorders: A clinical perspective. Journal Man Manip Ther. 2009; 17: 247-54. 4. Dimitroulis. Temporomandibular disorders: A clinical update. BMJ. 1998; 317: 190. 5. Wright. Manual of temporomandibular disorders. Iowa: Blackwell; 2005. 6. Dworkin, Huggins, Wilson. 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Foram selecionados artigos desde 1979 a 2011 com idiomas em inglês e português, pois mesmo os artigos publicados nos fins da década de setenta ainda hoje são referidos em artigos recentes, com um grande número de citações. Não foram encontrados artigos na base de dados PEDro, sendo apenas obtidos artigos a partir da base de dados PubMed. Em suma, foram incluídos todos os artigos que fizessem uma abordagem da disfunção temporo-mandibular, a sua etiologia, a sua influência na postura e o papel da fisioterapia nesta prática, sendo excluídos os restantes que não fizessem referência a estes critérios, sendo utilizados um total de 20 artigos para este estudo. Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP Vol.6 Março 2014 www.salutisscientia.esscvp.eu 40