Publicar, publicar, publicar! - Salutis Scientia

Transcrição

Publicar, publicar, publicar! - Salutis Scientia
Vol.6 – Março 2014
Editorial
Publicar, publicar, publicar!
Just publish!
“O conhecimento utiliza e gera informação” (1, p. 2).
Em Março de 2012 iniciámos o Editorial com esta frase para ilustrar a importância do registo
clínico para os profissionais de saúde. Dois anos depois reforçamos a sua importância, agora com
ênfase para a necessidade da publicação do que se regista diariamente.
Os registos clínicos fazem parte das tarefas diárias que os profissionais de saúde desenvolvem, e
são na verdade uma importante ferramenta de auxílio a que recorrem quando estabelecem
objetivos de intervenção ou elaboram prognósticos.
A leitura de Estudos de Caso, Revisões Sistemáticas de Literatura e de Artigos Originais de
Investigação faz parte da cultura do Saber fazer dos Profissionais de Saúde e são elementares para
uma prática que se quer atual, rigorosa e fundamentada na melhor evidência científica.
Assim, o convite que Vos fazemos hoje, neste primeiro número de 2014, é mais uma vez o de
dar um passo em frente, e publicar, publicar, publicar!
Ficamos à espera dos Vossos artigos,
Até já!
Nota
1.
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Parecer sobre informação de saúde e registos informáticos de saúde
[página inicial na Internet]. c2011 [citada 2014 Mar 30]. Disponível em:
http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1318269169_CNECV%20P_60_2011%2010.10.11.pdf
Sandra Alves 1
1
Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa. Email: [email protected]
Vol.6 – Março 2014
Artigo de Opinião
Aplicação das células estaminais mesenquimais do
tecido do cordão umbilical na regeneração cardíaca
após enfarte do miocárdio
Application of mesenchymal stem cells from the umbilical cord tissue in
cardiac regeneration after acute myocardial infarction
Helder Soares da Cruz1*
1
ECBio – Investigação e Desenvolvimento em Biotecnologia, S.A.
A terapia celular tem sido usada recentemente em pacientes com enfarte agudo do miocárdio mas os resultados
apontam para uma modesta melhoria da função e estrutura do ventrículo esquerdo, devido a limitações do produto
celular e a grande variabilidade de dose, muitas vezes sub-terapêutica. As células estaminais mesenquimais
derivadas do tecido do cordão umbilical, quando administradas no miocárdio de murganhos submetidos a enfarte do
miocárdio, diminuem o impacto na perda de função cardíaca, atenuam o processo de remodelação, aumentam a
densidade de capilares, limitam a extensão da apoptose e favorecem a proliferação de células progenitoras
cardíacas.
Cellular therapy has been used recently in patients suffering from acute myocardial infarction but the results show only
a modest improvement in left ventricular structure and function, due to limitations of the cellular product and of the
variable dose, often sub-therapeutic. Mesenchymal stem cells from the umbilical cord tissue, when administered into
the mice myocardium after induction of myocardial infarction, have decreased the negative impact in the cardiac
function, decreasing remodeling, increasing capillary density, limiting cardiomyocyte apoptosis and favoring the
proliferation of cardiac progenitor cells.
PALAVRAS-CHAVE: Células estaminais mesenquimais; tecido do cordão umbilical; enfarte do miocárdio; regeneração
cardíaca.
KEY WORDS: Mesenchymal stem cell; umbilical cord tissue; myocardial infarction; cardiac regeneration.
Submetido em 7 março 2014; Publicado em 31 março 2014.
* Correspondência: Helder Soares da Cruz. Email: [email protected]
Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical…
INTRODUÇÃO
Na incessante procura de melhorar os resultados em
pacientes com enfarte agudo do miocárdio e
insuficiência cardíaca, nos últimos 10 anos, uma nova
abordagem foi impulsionada - a terapia celular.
Estudos independentes têm demonstrado que a
terapia com células estaminais adultas pode melhorar
a função cardíaca, atenuar a remodelação do
ventrículo esquerdo (VE) e reduzir o tamanho do
enfarte.
Nestes
estudos
foram
utilizadas
principalmente células derivadas da medula óssea,
nomeadamente, células mononucleadas da medula
óssea (BMMNCs) - estudo REPAIR-AMI; células de
medula óssea não fracionada (estudo BOOST); células
estaminais mesenquimais da medula óssea (BMMSCs); frações de medula óssea, células CD133+ e
células progenitoras do sangue periférico (estudo
TOPCARE-AMI). A meta-análise dos dados obtidos
indica que a terapia celular leva a uma modesta
melhoria da função e estrutura do VE em pacientes
com enfarte agudo do miocárdio e com
cardiomiopatia isquémica crónica. Conquanto o perfil
de segurança pareça ser bom, não se tendo verificado
efeitos adversos relevantes nestes ensaios nos
primeiros anos de follow-up, os mecanismos
subjacentes aos benefícios da terapia celular ainda
requerem um estudo mais aprofundado. De facto, as
células utilizadas nestes estudos apresentam ainda
limitações como a caracterização incompleta do
produto celular e a grande variabilidade de dose, por
vezes sub-terapêutica, mesmo dentro do mesmo
estudo.
Limitações das células estaminais da
medula óssea
Mais especificamente, a utilização das BM-MSCs
apresenta várias limitações importantes, como sejam:
i) o processo de obtenção da medula óssea a partir do
próprio paciente não deixa de ser um processo
invasivo, acarretando algum risco; ii) as BM-MSCs
existem em pequenas quantidades relativas na
medula óssea, e a sua multiplicação é limitada. Isto
faz com que se opte por um preparado heterogéneo e
indefinido que não dá garantias de sucesso; iii) a
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eficiência com que se isolam BM-MSCs viáveis a partir
de doentes debilitados, por vezes com historial clínico
complexo, é mais baixa e, para além disso, a eficiência
de isolamento de BM-MSCs está ainda relacionada de
forma negativa com a idade do paciente; iv) a
necessidade de infra-estrutura em ambiente
hospitalar e know how técnico e regulamentar para
isolar e expandir BM-MSCs a partir de uma população
celular altamente heterogénea, assim como para
elaborar um preparado farmacêutico em tempo útil
para o paciente, acarreta questões técnicas e
logísticas difíceis de ultrapassar. Como tal, opta-se
normalmente por um preparado de medula óssea,
contendo uma fração de células mononucleadas da
medula contendo uma população heteróloga de
células sem qualquer definição quantitativa ou
qualitativa relativamente ao conteúdo de MSCs. O
ideal seria ter acesso imediato a um produto celular,
seguro, superior em termos de potência terapêutica,
que estivesse armazenado e disponível sempre que
necessário administrar ao paciente, sem limitações de
dose e tempo para administração.
A controvérsia gerada pelas células estaminais
embrionárias (ESC), e a mais recente descoberta de
que as células pluripotentes induzidas (iPS) têm
grande instabilidade genómica após expansão1, tem
conduzido cada vez mais à investigação sobre o
potencial das células estaminais adultas e neonatais
como alternativas terapêuticas.
Células estaminais mesenquimais do
tecido do cordão umbilical
A ECBio - Investigação e Desenvolvimento em
Biotecnologia, SA, é uma empresa biofarmacêutica
dedicada ao desenvolvimento de medicamentos
inovadores à base de células estaminais isoladas a
partir de tecidos neonatais (www.ecbio.com). Nos
últimos anos, a ECBio tem vindo a focar a sua
actividade na aplicação clínica do subtipo de células
estaminais mesenquimatosas (mesenchymal stem
cells - MSCs) presentes no tecido do cordão umbilical.
As MSCs são caracterizadas por terem um enorme
potencial de auto-renovação, sendo capazes de se
diferenciar em múltiplos tipos de células
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Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical…
especializadas, como sejam células ósseas, células
cartilagíneas,
células
constituintes
do
músculoesquelético, células produtoras de insulina e
células neurais2. Para além disso, as MSCs têm a
capacidade de promover a regeneração autóloga de
tecidos através de mecanismos parácrinos,
envolvendo a secreção de fatores tróficos como as
citocinas e fatores de crescimento que estimulam a
ação regenerativa de células precursoras residentes
nos tecidos lesados, assim como o recrutamento de
outras células circulantes2,3.
Na ECBio desenvolveu-se um protocolo de isolamento
de MSCs a partir do tecido do cordão umbilical bem
definido em termos do número de células obtidas por
massa de tecido inicial4. O processo de obtenção de
cordões umbilicais, considerados resíduos cirúrgicos,
é um processo totalmente não invasivo, não
acarretando qualquer risco para o dador. Para além
disso, o nível de eficiência atingido após otimização
fez com que este protocolo originasse uma população
de células bem caracterizada a partir de 100% das
amostras biológicas de cordão umbilical processadas,
e em números compatíveis com o desenvolvimento
de bancos de células para terapia em humanos4. Ao
contrário das BM-MSCs, as células do tecido do
cordão umbilical existem em grandes quantidades na
Geleia de Wharton, não estando a sua expansão para
aplicação clínica limitada por senescência celular,
mesmo em situações onde a administração de doses
múltiplas poderá ser necessária. Foi comprovado que
estas células mantêm o fenótipo mesenquimal,
estabilidade genómica e ausência de propensão para
induzir a formação de teratomas até níveis de
expansão muito elevados, bastante acima do
necessário para estabelecer um Master Cell Bank
(MCB) e Working Cell Bank (WCB) para terapias
celulares (Figura 1)4.
Estas características fazem com que este protocolo
seja ideal para ser aplicado em rotina em investigação
e serviços de criopreservação e terapia celular. Tanto
os aspetos técnicos como as aplicações do método
estão protegidos por patente4. Recentemente, foi
efetuado o registo de marca do primeiro produto
terapêutico à base de células estaminais - UCX®. A
marca UCX® foi criada no sentido da aplicação clínica,
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mais precisamente, o método patenteado foi
adaptado para a produção de um produto medicinal
de terapia avançada (Advanced Therapy Medicinal
Product - ATMP), de acordo com as diretivas
europeias5,6. O registo nacional e internacional da
marca UCX® foi um dos principais resultados obtidos a
partir dos projetos QREN 2008/1467 (TERACEL) e
QREN 2009/5294 (CARDIOCEL), promovidos pela
ECBio.
Estes projetos permitiram também reunir evidências
científicas que suportam não só aspetos de
segurança/qualidade, mas também as especificidades
relacionadas com a potência do produto UCX®, como
seja
a sua capacidade
de
diferenciação
cardiomiocítica (Figura 1). A ECBio foca agora a sua
intervenção em áreas que claramente tiram partido
das
propriedades
alogénicas
(ausência
de
imunogenicidade), imunossupressoras do produto
UCX®, claramente comprovadas7.
RESULTADOS RECENTES
Nos últimos anos a ECBio tem vindo a estudar uma
população específica de células estaminais
mesenquimais humanas derivadas do tecido do
cordão umbilical, designadas por células UCX®,
isoladas, expandidas e criopreservadas com base em
tecnologia proprietária. Quando administradas no
miocárdio de murganhos submetidos a enfarte do
miocárdio, as células UCX® diminuem o impacto na
perda de função cardíaca verificada em animais não
tratados, atenuam o processo de remodelação
cardíaca, aumentam a densidade de capilares e
limitam a extensão da apoptose no tecido isquémico.
Neste contexto experimental, as células UCX® parecem
favorecer a proliferação de células indiferenciadas,
designadas de progenitoras cardíacas, isoladas do
miocárdio. Resumindo, as células UCX® minimizam os
danos causados pelo enfarte do miocárdio por um
conjunto de mecanismos que de forma indireta
favorecem os principais constituintes celulares do
coração, i.e. os cardiomiócitos e a vasculatura. Estes
resultados foram apresentados numa recente
publicação científica8.
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Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical…
Figura 1 – Propriedades das células estaminais mesenquimais do tecido
do cordão umbilical.
A
B
C
D
E
F
A capacidade de expansão ex vivo em cultura do produto celular da ECBio - UCX® foi controlada
sob vários pontos de vista: morfologia (A), capacidade de expansão (B), manutenção do fenótipo
mesenquimatoso, através da análise de expressão de marcadores de superfície celular
específicos para as MSC (C); e estabilidade genómica, através da análise da estabilidade do
cariótipo ao longo da expansão celular (D). A caracterização do produto em termos de potência
passa pela avaliação da capacidade das células se diferenciarem em células especializadas das
três camadas germinativas. No caso da diferenciação em cardiomiócitos, as células foram
detetadas através de imunofluorescência, utilizando um anticorpo primário contra uma proteína
típica dos tecidos musculares, a Troponina T cardíaca. Para efeitos de localização das células em
cultura, os núcleos celulares foram detetados com o fluorocromo DAPI. Na cultura das células
controlo só é possível detetar os núcleos corados com DAPI (E). Nas células diferenciadas é
possível também observar o citoesqueleto, corado para a Troponina T (F). Barras de escala = 100
μm.
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Aplicação das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical…
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
O recurso à terapia celular em enfarte agudo do
miocárdio é recente e os resultados até agora têm
sido modestos, devido, no entender do autor, a
limitações do produto celular e a grande variabilidade
de dose, muitas vezes subterapêutica. As células
estaminais mesenquimais derivadas do tecido do
cordão umbilical, quando administradas no miocárdio
de murganhos submetidos a enfarte do miocárdio,
diminuem o impacto na perda de função cardíaca,
atenuam o processo de remodelação, aumentam a
densidade de capilares, limitam a extensão da
apoptose e favorecem a proliferação de células
progenitoras cardíacas. Estas células possuem ainda
outras características que as tornam fortes candidatos
terapêuticos já que não dão origem a teratomas ou
outras lesões neoplásicas in vivo, têm uma colheita
fácil, podem ser expandidas para obter os elevados
números necessários para terapia (frequentemente
superiores a 100 milhões de células por dose) e
podem ser armazenadas no longo prazo para uso no
futuro. A utilização das células UCX® em estudos
clínicos está prevista dentro do próximo um a dois
anos.
1. Gore, Li, Fung et al. Somatic coding mutations in human induced
pluripotent stem cells. Nature. 2011; 471: 63–7.
AGRADECIMENTOS
Agradece-se ao Hospital Universitário Karolinska, SE,
INEB-UP, iMed-UL, IMM-FMUL, Helmholtz-Centre for
Infection Research, Braunschweig, DE; Health
Research Institute of Santiago (IDIS.Complexo
Hospitalario
Universitario
de
Santiago
de
Compostela/SERGAS, ES), ICBAS, CECA/ICETA-UP,
empresa Cytothera, S.A., (Grupo Medinfar, PT),
Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de
Setúbal, E.P.E; HPP Hospital de Cascais; Hospital de
Santa Maria – Lisboa; e Clínica Médica de Ginecologia
Ginetrícia, Lisboa. Agradece-se ainda ao Fundo
Europeu de Desenvolvimento Regional - PO Lisboa:
QREN SI&DT 2008/5294; QREN SI&DT 2008/1467;
QREN SI&DT 2012/24765; QREN SI&DT 2013/30196.
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
2. Williams, Hare. Mesenchymal stem cells: Biology,
pathophysiology, translational findings, and therapeutic
implications for cardiac disease. Circ Res. 2011; 109: 923-40.
3. Ripa, Haack-Sorensen, Wang, et al. Bone marrow-derived
mesenchymal cell mobilization by granulocyte-colony stimulating
factor after acute myocardial infarction: Results from the Stem
Cells in Myocardial Infarction (STEMMI) trial. Circulation. 2007;
116: I-24-30.
4. Instituto Nacional da Propriedade Industrial [INPI]. Patente de
Invenção Nacional N.º 103843 – Método de isolamento de células
precursoras a partir do cordão umbilical humano [página inicial
na Internet]. C2008 [citada 2014 03 13]. Disponível em
http://servicosonline.inpi.pt/pesquisas/main/patentes.jsp?lang=P
T
5. European Medicines Agency. Guideline on the minimum quality
and non-clinical data for certification of advanced therapy
medicinal products [página inicial na Internet]. c2010 [citada 2014
Mar
12].
Disponível
em
http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scien
tific_guideline/2010/01/WC500070031.pdf
6. European Medicines Agency. Draft guideline on the risk-based
approach according to Annex I, part IV of Directive 2001/83/EC
applied to Advanced Therapy Medicinal Products [página inicial
na Internet]. c2012 [citada 2014 Mar 12]. Disponível em:
http://www.ema.europa.eu/docs/en_GB/document_library/Scien
tific_guideline/2012/01/WC500120989.pdf
7. Santos, Bárcia, Simões et al. The role of human umbilical cord
®
tissue-derived mesenchymal stromal cells (UCX ) in the treatment
of inflammatory arthritis. J Transl Med. 2013; 11:18.
8. Nascimento, Mosqueira, Sousa et al. Human umbilical cord
tissue-derived mesenchymal stromal cells attenuate remodeling
after myocardial infarction by proangiogenic, antiapoptotic, and
endogenous cell activation mechanisms. Stem Cell Research &
Therapy. 2014; 5:5.
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Artigo Original de Investigação
Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de
Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
MRSA nasal carriage in Portuguese-speaking African countries (PALOP) and
East-Timor
Teresa Conceição1*, Céline Coelho1, Isabel Santos Silva2, Hermínia de Lencastre2,3, Marta
Aires de Sousa2
1
Laboratório de Genética Molecular, Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), Universidade Nova
de Lisboa (UNL)
2
Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa (ESSCVP)
3
Laboratory of Microbiology and Infectious Diseases, The Rockefeller University, New York
Os Staphylococcus aureus resistentes à meticilina (MRSA) são um dos principais agentes patogénicos a nível mundial.
Contudo para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e em Timor-Leste não é conhecida a
prevalência de MRSA.
Entre Novembro 2010 e Julho 2013 efetuou-se um rastreio nasal para deteção de MRSA em 826 doentes e 480
profissionais de saúde em seis hospitais nos PALOP (São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde) e dois em TimorLeste. Detetou-se colonização por S. aureus em 258 indivíduos (19,8%), dos quais 86 (33,3%) eram portadores de
MRSA, correspondendo a uma taxa global de colonização por MRSA de 6,6%. A prevalência de MRSA em Angola foi a
mais elevada (13,8%), seguida de São Tomé e Príncipe (4,2%) e Cabo Verde (1,3%). Não se detetaram MRSA em
Timor-Leste. A resistência à meticilina foi mais elevada entre S. aureus isolados em Angola (58,1%) e São Tomé
(26,9%) comparativamente a Cabo Verde (6%). A prevalência de MRSA foi semelhante nos doentes e profissionais de
saúde (7,1% vs 5,6%; p=0,3). Destes, os auxiliares de limpeza (10,5%) apresentaram maior taxa de colonização por
MRSA, seguidos dos médicos (7,4%) e enfermeiros (6,8%). As Unidades de Cuidados Intensivos (11,7%) e os serviços
de Pediatria (6,8%) e Ortopedia (6,3%) foram aqueles onde as percentagens de MRSA foram mais elevadas.
Os dados obtidos mostram que as taxas de MRSA são preocupantes em alguns PALOP, tornando-se necessários
futuros estudos de vigilância epidemiológica e a implementação urgente (nomeadamente em Angola) de medidas de
controlo de infeção eficazes.
Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
Methicillin-resistant Staphylococcus aureus (MRSA) is a major human pathogen worldwide. However, MRSA prevalence
in the Portuguese-speaking African countries (PALOP) and East-Timor is unknown.
Between November 2010 and July 2013, 826 inpatients and 480 healthcare workers from six hospitals located in PALOP
countries (São Tomé and Príncipe, Angola and Cape Verde) and two hospitals in East Timor were nasal swabbed for
MRSA carriage. Two hundred and fifty height individuals (19.8%) were S. aureus nasal carriers, out of which 86 (33.3%)
were resistant to methicillin, corresponding to a global MRSA carriage rate of 6,6%. The highest MRSA prevalence was
detected in Angola (13.8%), followed by São Tomé and Príncipe (4.2%) and Cape Verde (1.3%). No MRSA were found in
East Timor. Methicillin resistance was higher among S. aureus isolates from Angola (58,1%) and São Tomé (26,9%)
comparing to Cape Verde (6%). Moreover, the MRSA prevalence was similar between patients and healthcare workers
(7.1% vs 5.6%; p=0.3), out of which the hospital cleaning staff (10.5%) showed the highest MRSA carriage rate, followed
by physicians (7.4%) and nurses (6.8%). Regarding the hospital wards, higher MRSA rates were detected in Intensive
Care Units (11.7%), pediatrics (6.8%) and orthopedics (6.3%).
The high MRSA rates are worrisome in some of the PALOP countries, pointing out to the need of future surveillance
studies and the implementation of more strict and effective infection control measures.
PALAVRAS-CHAVE: Staphylococcus aureus; MRSA; África; PALOP; Timor-Leste; colonização nasal.
KEY WORDS: Staphylococcus aureus; MRSA; Africa; PALOP; East Timor; nasal carriage.
* Correspondência: Teresa Conceição.
Email: [email protected]
INTRODUÇÃO
O Staphylococcus aureus é uma bactéria Grampositiva, conhecida pela sua extraordinária
capacidade de colonização assintomática do ser
humano, e que tem como nicho principal as fossas
nasais1. Apesar de cerca de 30% da população
saudável ser portadora assintomática de S. aureus,
quando há uma quebra das defesas naturais do
hospedeiro, nomeadamente barreiras cutâneas ou
diminuição da imunocompetência do sistema
imunitário, esta bactéria pode causar uma grande
variedade de infeções da pele e dos tecidos moles,
toxinoses (infeções provocadas pela presença de
substâncias tóxicas produzidas pelas células
bacterianas) ou infeções potencialmente fatais como
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septicémias, endocardites, meningites, osteomielites
e pneumonias. Os S. aureus resistentes à meticilina
(MRSA, do inglês “methicillin-resistant Staphylococcus
aureus”) surgiram muito pouco tempo depois da
introdução da meticilina na prática clínica em 19591960. Nos anos seguintes, nomeadamente a partir da
década de 1980, os MRSA adquiriram sucessivamente
resistências à maioria dos antibióticos disponíveis
clinicamente, tornando-se um dos principais agentes
patogénicos a nível mundial, tanto nos hospitais como
na comunidade2,3.
A colonização nasal é considerada um factor de risco
para a subsequente infeção pelo agente colonizador.
Constitui um reservatório endógeno de estirpes
potencialmente patogénicas para o hospedeiro, ou
que podem ser disseminadas de doente para doente
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
ou de um profissional de saúde colonizado para os
doentes4,5. Os estudos de vigilância epidemiológica
são fundamentais na prevenção e controlo da
disseminação de estirpes MRSA, que apesar de
merecedores de elevado investimento financeiro nos
países desenvolvidos, são praticamente inexistentes
nas regiões mais desfavorecidas do globo. Contudo,
no continente Africano, existe um elevado risco de
infeção por MRSA, nomeadamente devido aos baixos
recursos financeiros, e às deficientes condições de
higienização das mãos, que resultam numa ausência
ou limitação de práticas de controlo de infeção6. A
determinação da prevalência de S. aureus e
principalmente de MRSA nos países em
desenvolvimento torna-se fundamental para um
controlo eficaz do MRSA à escala mundial7.
Apesar dos estudos em África serem escassos,
observa-se uma variação considerável na prevalência
de MRSA nos vários países em que há dados. Estudos
de colonização nasal por MRSA revelaram isolados
esporádicos no Mali8 e na Tanzânia9, prevalências que
variaram de 1,3% a 3,7% no Gabão e no Gana10,11 e
entre os 14,8% e os 52% em países da costa este e sulafricana como a ilha de Madagáscar e o Uganda12-14.
Em isolados de infeção, observaram-se valores mais
elevados, que variaram entre 11% no Gabão10, 15%
em cinco cidades da região subsaariana15, 16% na
Nigéria16, 33.6% no Gana17, 27% na África do Sul18,
37.5% no Uganda12,19 e 84.1% no Quénia20. A
informação existente relativamente aos Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e
Timor-Leste resume-se a um estudo de isolados
clínicos em Moçambique que revelou uma
prevalência de MRSA de 8% num único hospital, entre
2001 e 200621, e um estudo em Cabo Verde, realizado
em 1997, em que não se detetaram MRSA em
colonização nasal em doentes e profissionais de saúde
de dois hospitais22. As estreitas relações demográficas
e económicas entre estas nações e Portugal, que é
atualmente um dos dois únicos países Europeus com
uma taxa de MRSA superior a 50%2, podem potenciar
a transmissão de estirpes multirresistentes entre os
diferentes
continentes,
nomeadamente
pelo
frequente intercâmbio de doentes entre unidades de
saúde dos diferentes países.
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Com este estudo pretende-se determinar a
prevalência de MRSA em vários PALOP e em TimorLeste através do rastreio nasal de doentes e
profissionais de saúde de forma a contribuir para a
implementação de medidas de controlo de infeção
locais e consequentemente um controlo global do
MRSA.
METODOLOGIA
Hospitais
Foram recolhidas amostras em oito hospitais situados
em quatro países:
(i)
São Tomé e Príncipe - Hospital Ayres Menezes
(HAM): é o único hospital central no país que serve
toda a população do arquipélago. Tem uma dimensão
média (441 camas) e uma taxa diária de admissões na
urgência de 45 a 70 indivíduos;
(ii)
Angola - Hospital Américo Boavida (HAB),
Hospital Pediátrico David Bernardino (HPDB) e Clínica
Sagrada Esperança (SE), todos situados em Luanda. O
HAB é um hospital central de grandes dimensões (624
camas)
que
serve
uma
população
de
aproximadamente 2.500.000 indivíduos. O HPDB é o
hospital pediátrico de referência nacional, tem 350
camas e serve uma população de mais de 500.000
indivíduos. A SE é uma clínica privada com 150 camas
que serve uma população de 500.000 indivíduos;
(iii)
Cabo Verde - Hospital Agostinho Neto (HAN) e
Hospital Baptista de Sousa (HBS). O HAN, situado na
cidade da Praia (ilha de Santiago), é o maior hospital
do arquipélago (400 camas), tem uma taxa de
admissão diária na urgência de 150 adultos e 90
crianças e serve cerca de metade da população do
arquipélago (236.000 habitantes). O HBS é um
hospital de menores dimensões (220 camas), situado
na cidade do Mindelo (ilha de São Vicente), e tem
uma taxa de admissão diária na urgência de 120
indivíduos;
(iv)
Timor-Leste - Hospital Guido Valadares (HGV)
e Clínica do Bairro Pité (CBP), ambos situados em Díli.
O HGV tem 260 camas e é o hospital de referência
nacional. A CBP é uma clínica gerida por uma
organização não-governamental que funciona com o
auxílio de voluntários estrangeiros e fornece cuidados
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
primários diariamente a cerca de 250 a 300
indivíduos.
Rastreio nasal e isolamento de S. aureus
O rastreio nasal foi realizado por uma enfermeira
credenciada, a doentes e profissionais de saúde de
diferentes serviços hospitalares, nomeadamente
naqueles em que o risco de infeção por S. aureus é
habitualmente mais elevado como os de Medicina,
Cirurgia, Pediatria, Ortopedia e as Unidades de
Cuidados Intensivos (UCI). Os rastreios decorreram
entre novembro de 2010 e julho de 2013 (São Tomé e
Príncipe – 1.º rastreio: novembro 2010, 2.º rastreio:
abril 2012; Angola: junho 2012; Cabo Verde: fevereiro
2013; Timor-Leste: julho 2013).
O estudo foi aprovado pelas direções dos hospitais
envolvidos e foi obtido um consentimento informado
oral de cada indivíduo, ou parental em caso de
menores, no momento do rastreio. Foram definidos
como critérios de exclusão: (i) indivíduos internados
há menos de 48h; (ii) indivíduos cujas narinas estavam
inacessíveis devido à presença de dispositivos
médicos; (iii) crianças que estavam a ser
amamentadas no momento do rastreio; (iv) indivíduos
que se recusaram a participar no estudo.
A recolha de exsudados nasais consistiu na introdução
e rotação de uma zaragatoa estéril em ambas as
narinas dos indivíduos. As zaragatoas foram depois
conservadas em meio de transporte Stuart até
chegarem ao laboratório em Lisboa para serem
processadas. Cada zaragatoa foi inoculada em paralelo
num meio de crescimento rico, Tryptic Soy Agar - TSA
(Becton, Dickinson & Co, New Jersey, EUA) e num
meio cromogénico seletivo para S. aureus Chromagar Staph aureus (ChromAgar, Paris, França).
No caso das amostras provenientes de Cabo Verde e
Timor-Leste, a inoculação em meio sólido foi
precedida de um enriquecimento por adição de 2 mL
de meio Mueller-Hinton (Becton, Dickinson & Co, New
Jersey, EUA) a cada zaragatoa e incubação a 37ºC
durante a noite. Colónias com cor e morfologia
características de S. aureus foram submetidas ao teste
da coagulase por aglutinação de partículas de látex
pelo kit comercial Staphaurex (Remel, Kansas, EUA)
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
ou por aglutinação de plasma de coelho em tubo
(Becton Dickinson & Co, New Jersey, EUA) nos casos
dúbios.
A espécie bacteriana foi confirmada pela reação de
amplificação em cadeia (PCR, do inglês “Polimerase
Chain Reaction”) do gene nuc, que codifica uma
nuclease específica de S. aureus23. A deteção da
presença do gene mecA, por PCR, permitiu a
identificação de isolados MRSA24.
Análise estatística
Variáveis categóricas foram comparadas através do
teste de χ2 ou do teste exato de Fisher, quando
apropriado, utilizando o software GraphPad Prism
versão 6.0 (GraphPad Software Inc. La Jolla, CA).
Considerou-se um valor de p ≤ 0.05 estatisticamente
significativo.
RESULTADOS
Prevalência de S. aureus e MRSA
Durante o estudo recolheram-se 1.306 exsudados
nasais, provenientes de 826 doentes e 480
profissionais de saúde (Tabela 1). O número de
amostras recolhidas variou consoante o país tendo
sido mais elevado em Angola (n=494). Entre os 1.306
indivíduos rastreados, 258 estavam colonizados por S.
aureus (19,8%). Destes, 86 (33,3%) apresentaram
resistência à meticilina, indicando uma taxa de
colonização nasal por MRSA na população global do
estudo de 6,6%. Angola foi o país onde se observaram
taxas de colonização mais elevadas, tanto para S.
aureus (23,7%) como para MRSA (13,8%) - Tabela 1 e
Figura 1. À exceção de Timor-Leste onde não se
detetaram isolados resistentes à meticilina, Cabo
Verde apresentou o menor número de portadores
MRSA (1,3%), tendo sido identificados apenas quatro
indivíduos colonizados. É de salientar que, em São
Tomé e Príncipe, apesar de se ter observado uma taxa
de colonização por S. aureus ligeiramente menor que
em Cabo Verde (15,7% vs 21,5%), a prevalência de
isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus foi
claramente superior (26,9% vs 6%). Por outro lado,
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
Tabela 1 – Colonização nasal por S. aureus e MRSA em doentes e profissionais de saúde nos diferentes países.
a
No.
amostras
No. portadores
S. aureus (%)
No. portadores MRSA
(%)
% S. aureus resistentes à
meticilina
(MRSA/S. aureus)
Doentes
258
37 (14,3)
11(4,3)
29,7
Tomé e
PS
74
15 (20,3)
3 (4,1)
20,0
Príncipe
Total
332
52 (15,7)
14 (4,2)
26,9
Angola
Doentes
295
74 (25,1)
4 (15,3)
60,8
PS
199
43 (21,6)
23 (11,6)
53,5
Total
494
117 (23,7)
68 (13,8)
58,1
Cabo
Doentes
181
39 (21,5)
3 (1,7)
7,7
Verde
PS
131
28 (21,4)
1 (0,8)
3,6
Total
312
67 (21,5)
4 (1,3)
6,0
Timor-
Doentes
92
6 (6,5)
0
0,0
Leste
PS
76
16 (21,1)
0
0,0
Total
168
22 (13,1)
0
0,0
Total doentes
826
156 (18,9)
59 (7,1)
37,8
Total PS
480
102 (21,3)
27 (5,6)
26,5
Coleção total
1306
258 (19,8)
86 (6,6)
33,3
País
Indivíduoa
São
PS - profissionais de saúde.
Figura 1 – Taxas de colonização nasal por S. aureus e MRSA nos diferentes países.
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
em Angola, a maioria dos S. aureus isolados
apresentou resistência à meticilina (58,1%).
Não se observaram diferenças nas taxas de
colonização nasal por S. aureus e MRSA entre
indivíduos do sexo feminino e masculino (S. aureus:
19,5% vs 20,1%; p=0,780 - MRSA: 6,1% vs 7,2%;
p=0,501). No entanto, tanto a taxa de MRSA (< 18
anos: 9,9%; ≥ 18 anos: 5,5%; p=0,009) como a
percentagem de isolados resistentes à meticilina
entre os S. aureus (< 18 anos: 50%; ≥ 18 anos: 28%;
p=0,002) foi superior nos indivíduos com menos de 18
anos.
Colonização nasal entre
profissionais de saúde
doentes
e
Apesar das diferenças não serem significativas, o
número de portadores de S. aureus foi superior nos
profissionais de saúde (p=0,313), enquanto o número
de portadores de MRSA foi superior nos doentes
(p=0,300) - Tabela 1. Se considerarmos cada país
individualmente, em Angola e Cabo Verde as taxas de
colonização por S. aureus foram semelhantes entre
doentes e profissionais de saúde, enquanto que em
Timor-Leste se observou uma diferença acentuada,
com cerca de três vezes mais profissionais de saúde
colonizados por S. aureus do que doentes (p=0,010).
Em Cabo Verde, dos quatro portadores de MRSA,
apenas um era profissional de saúde (Tabela 1).
Colonização nasal por S. aureus e MRSA
nas diferentes categorias de profissionais
de saúde
Consideraram-se seis categorias dentro dos
profissionais de saúde: médicos, enfermeiros,
auxiliares de ação médica, auxiliares de limpeza,
estagiários de medicina e enfermagem e outros
(incluindo técnicos de diagnóstico e terapêutica,
farmacêuticos,
assistentes
sociais,
pessoal
administrativo, auxiliares de cozinha ou copeiras e
voluntários).
Observámos que metade dos estagiários rastreados
eram portadores de S. aureus, constituindo a
categoria com maior taxa de colonização por esta
bactéria, embora nenhum indivíduo estivesse
colonizado por MRSA (Figura 2). Mais de um quarto
(26,3%) dos auxiliares de limpeza estavam colonizados
por S. aureus, seguidos dos enfermeiros (20,3%), dos
auxiliares de ação médica (17,6%), e por fim dos
médicos (16%). Relativamente às taxas de MRSA, os
auxiliares de limpeza apresentaram o valor mais
elevado (10,5%), seguido dos médicos (7,4%), dos
enfermeiros (6,8%) e dos auxiliares de ação médica
(1,5%).
Figura 2 – Prevalência de portadores de S. aureus e MRSA entre os profissionais de saúde.
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
Determinou-se uma prevalência de colonização nasal
por S. aureus semelhante nos diferentes países
incluídos no estudo (entre 13,1% em Timor-Leste e
23,7% em Angola) que são comparáveis aos valores
noutros países Africanos como o Mali (19,6%), o Gana
(16,6%) e o Gabão (29%)8,11,22,25. No entanto, a taxa de
colonização nasal por MRSA pelo contrário é muito
variável, sendo nula em Timor-Leste e atingindo os
14% em Angola. Em países da costa este de África e
na África do Sul foram encontradas prevalências de
colonização muito elevadas, nomeadamente 14.8% na
ilha de Madagáscar13,14, 28,8% em profissionais de
saúde etíopes26 e 52% em colonização de doentes e
profissionais de saúde numa unidade cirúrgica no
Uganda12,19. Em países da costa oeste, como o Mali
(0,2%)8, o Gana (1,3%)11 ou o Gabão (3,7%)10,
geograficamente mais próximos dos PALOP incluídos
neste estudo, as taxas publicadas são mais
semelhantes às reportadas no presente trabalho.
Distribuição de portadores de S. aureus e
MRSA por serviço hospitalar
Para a análise das taxas de colonização por serviço
hospitalar, consideraram-se os serviços comuns a
todos os hospitais incluídos no estudo. Assim, na
coleção total, os serviços de Ortopedia (29,4%) e UCI
(20,4%) foram aqueles onde se observaram as taxas
mais elevadas de portadores de S. aureus, acima da
taxa de colonização observada para a população total
(19,8%) - Figura 3. Os serviços de UCI, Pediatria e
Ortopedia, foram aqueles onde se observaram as
taxas de colonização por MRSA mais elevadas (11,7%,
6,8% e 6,3%, respetivamente). É de salientar que em
São Tomé e Príncipe várias crianças internadas na
unidade de Queimados e na Pediatria estavam
colonizadas por MRSA.
DISCUSSÃO
Apesar da prevalência de MRSA ser ainda
relativamente baixa nos diferentes PALOP, a
proporção de isolados resistentes à meticilina entre os
S. aureus recolhidos foi elevada, especialmente em
Angola (58,1%), comparável apenas com as taxas
citadas para a Etiópia (44.1%) e Marrocos (44.4%)26,27.
O facto dos hospitais em Luanda terem uma maior
disponibilidade de antibióticos em comparação com
Neste estudo apresentam-se os primeiros dados
relativos à prevalência de colonização nasal por S.
aureus e MRSA em doentes e profissionais de saúde
em Angola, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste e
atualizaram-se os dados de Cabo Verde que datavam
de 199722.
São Tomé e Príncipe
Angola
Timor-Leste
Outros
UCI
Pediatria
Ortopedia
Cirurgia
Outros
Medicina
UCI
Pediatria
Ortopedia
Cirurgia
Outros
Medicina
UCI
Cabo Verde
S. aureus
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
Pediatria
Ortopedia
Cirurgia
Outros
Medicina
UCI
Pediatria
Ortopedia
Cirurgia
Outros
Medicina
UCI
Pediatria
Ortopedia
Cirurgia
40
35
30
25
20
15
10
05
00
Medicina
% indivíduos colonizados
Figura 3 – Distribuição de indivíduos colonizados por S. aureus e MRSA por serviço.
Coleção Total
MRSA
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
outros PALOP e Timor-Leste, o que se traduz num
maior consumo, poderá justificar a elevada
prevalência de resistência à meticilina. Por outro lado,
um número considerável de doentes angolanos
recebe cuidados médicos em Portugal, país com uma
das taxas de MRSA mais elevadas na Europa (>50%)2,
o que poderá também ter resultado na disseminação
de MRSA de Portugal para Angola. Em 1997, nenhum
dos S. aureus isolados em Cabo Verde era resistente à
meticilina22, pelo que a deteção de estirpes MRSA em
2013 poderá estar também relacionada com um
aumento das trocas demográficas de doentes e
profissionais de saúde com Portugal.
De um modo geral, as diferenças de colonização por
MRSA entre doentes e profissionais de saúde foram
pouco significativas, um cenário diferente do
observado no Gana, no Gabão e no Quénia onde
nenhum dos profissionais rastreados era portador de
MRSA11,25,28. Os auxiliares de limpeza, médicos e
enfermeiros a exercerem nos hospitais dos PALOP
incluídos neste estudo, apresentaram uma
prevalência de colonização nasal por MRSA não
negligenciável, o que não é de estranhar dado que os
profissionais de saúde têm sido considerados
importantes reservatórios de MRSA dentro do meio
hospitalar, e possíveis veículos de transmissão de
estirpes hospitalares para a comunidade4,29. O facto
de nestes países os auxiliares de limpeza terem um
acentuado contacto físico com os doentes pode estar
na origem da elevada colonização nasal por MRSA. Há
que realçar que na generalidade dos hospitais
envolvidos neste estudo não existiam lavatórios nas
enfermarias, o que facilita a transmissão cruzada
entre doentes e entre doentes e profissionais de
saúde. A Organização Mundial de Saúde sugere a
lavagem das mãos como a principal medida de
prevenção e controlo das infeções hospitalares, tendo
promovido a introdução com sucesso de programas
de prevenção baseados na higienização das mãos em
diferentes países africanos6.
As UCI e a Pediatria onde são habitualmente
internados doentes com níveis de imunocompetência
do sistema imunitário mais elevados, foram os
serviços onde se observaram taxas de colonização
mais elevadas tanto por S. aureus como por MRSA e
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
consequentemente um risco de infeção acrescido nos
doentes colonizados. Elevadas taxas de colonização
por S. aureus em unidades de cuidados intensivos e
em unidades pediátricas foram detetadas também em
hospitais no Gabão e no Gana, respetivamente11,25. A
maior prevalência de MRSA nas crianças também se
justifica pelo facto de terem contacto físico e
partilharem brinquedos com as outras crianças
hospitalizadas facilitando a transmissão cruzada.
CONCLUSÃO
Este estudo mostrou que a taxa de colonização nasal
por MRSA era nula em dois hospitais de Timor-Leste,
relativamente baixa em Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe (< 5%) e mais elevada nos hospitais de
Luanda (~ 15%). Preocupante é o facto da proporção
de isolados resistentes à meticilina entre os S. aureus
recolhidos atingir quase 60% em Angola e ultrapassar
os 25% em São Tomé e Príncipe.
A identificação de reservatórios de MRSA em
diferentes categorias de profissionais de saúde e em
diferentes
serviços
hospitalares
requer
a
implementação urgente de medidas de controlo de
infeção,
nomeadamente
o
incentivo
à
higienização/desinfeção das mãos. Futuros estudos
que envolvam a determinação da suscetibilidade aos
antimicrobianos e a caracterização molecular dos
isolados são fundamentais para a determinação de
políticas antibióticas, identificação de surtos e
avaliação dos níveis de transmissão cruzada nestes
hospitais.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi financiado pelo projeto PTDC/SAUSAP/118813/2010
e
contrato
No.
PEst-OE/
EQB/LA0004/2011 (para o Instituto de Tecnologia
Química e Biológica) da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), Portugal. Teresa Conceição e Céline
Coelho foram financiadas respetivamente, pelas
bolsas SFRH/BPD/72422/2010 e 036/BI-BI/2012 da FCT,
Portugal. Agradecemos aos profissionais de saúde dos
diferentes hospitais a assistência e disponibilidade
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Colonização nasal por MRSA nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste
durante os rastreios. Às Embaixadas de Portugal nos
diferentes países, agradecemos o apoio prestado. À
enfermeira Helga Aguiar, agradecemos a colheita de
exsudados nasais, em 2010, em São Tomé e Príncipe.
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Vol.6 Março 2014
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16
Vol.6 – Março 2014
Artigo de Revisão de Literatura
Cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) em
atletas: a controvérsia
Implantable cardioverter defibrillator (ICD) in athletes: the controversy
Maria de Fátima Costa Ribas 1*
1
Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa
A 36ª conferência de Bethesda e a European Society of Cardiology (ESC) elaboraram documentos de consenso para a
elegibilidade ou desqualificação de atletas com doenças do foro cardíaco. Estes documentos, relativamente a atletas
com cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) e a prática de desporto, recomendam apenas a realização de
desportos de baixa intensidade e em que não haja risco de trauma para o dispositivo. A National Collegiate Athletic
Association (NCAA) não segue nenhuma das recomendações anteriormente citadas estando a decisão inteiramente
nas mãos dos médicos. Aos membros da Heart Rhythm Society (HRS), foi realizado um estudo, com o objetivo de se
saber o que recomendam os médicos relativamente à prática desportiva em indivíduos com CDI. Deste estudo
obtiveram-se resultados controversos. Em 2012, Rachel Lampert e seus colaboradores, apresentaram na HRS os
resultados de um estudo prospetivo em que afirmam que atletas com CDI podem, efetivamente, realizar desportos
vigorosos e de caráter competitivo. Em Maio de 2013, o estudo supracitado foi publicado na revista Circulation.
O presente artigo tem como objetivo fulcral evidenciar a controvérsia entre as recomendações dos documentos de
consenso existentes, o que realmente se recomenda na prática clínica corrente e os resultados de um estudo
pioneiro realizado por Rachel Lampert e seus colaboradores, relativamente à prática de desporto por parte de
atletas com CDI.
The 36th Bethesda Conference and the European Society of Cardiology (ESC) developed consensus documents for
eligibility or disqualification of athletes with heart disease. These documents, for athletes with implantable cardioverter
defibrillator (ICD), only recommend the practice of low intensity sports and with no risk of trauma to the device. The
National Collegiate Athletic Association (NCAA) does not follow any of the previously mentioned recommendations and
Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia
stating that doctors are entirely responsible for the decision. In order to understand what doctors recommend to
subjects with ICD regarding the practice of sports, a survey was applied to the members of the Heart Rhythm Society
(HRS). This survey yielded conflicting results. In 2012, Rachel Lampert and collaborators presented at the HRS the results
of a prospective study, in which they state that athletes with ICD can effectively perform vigorous sports and participate
in sports competitions. In May 2013, the aforementioned study was published in the Circulation journal.
The aim of the present paper is to highlight the controversy among the recommendations of the existing consensus
documents, what is really recommended in current clinical practice, and the results of a pioneering study by Rachel
Lampert and collaborators regarding the practice of sports by athletes with ICD.
PALAVRAS-CHAVE: Atleta; desporto; cardioversor desfibrilhador implantável; participação em desportos.
KEY WORDS: Athlete; sport; implantable cardioverter defibrillator; participation in sports.
Submetido em 12 setembro 2013; Aceite em 17 dezembro 2013; Publicado em 31 março 2014.
* Correspondência: Maria de Fátima Costa Ribas
Email: [email protected]
INTRODUÇÃO
O coração do qual Aristóteles dizia ser a sede das
paixões, das sensações e da inteligência, é hoje em dia
um dos responsáveis pelas elevadas taxas de
mortalidade existentes em todo o mundo. A morte
súbita cardíaca em jovens atletas é uma realidade e
como tal não deve ser ignorada, sendo que a sua
incidência varia entre 1:100 000 e 1: 300 0001. Para
colmatar a condição súbita citada, em 1980 surge o
cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) e
consequentemente a sua primeira implantação. Com
o passar das últimas décadas, a implantação de CDI’s
cresceu exponencialmente, visto que as indicações,
hoje em dia, abrangem indivíduos, que apesar de
terem função miocárdica normal, têm alterações
genéticas
que
podem
provocar
arritmias
potencialmente fatais. Para além disso, e atendendo
ao avanço da tecnologia, estes dispositivos podem ser
colocados em indivíduos cada vez mais jovens e em
atletas2. Após a colocação do CDI, muitos são os
atletas que desejam voltar a realizar atividade física.
Contudo, e tal como em todas as terapêuticas, e os
CDI’s não são exceção, existem complicações, tais
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como o deslocamento ou fratura dos eletrocateteres,
choques inapropriados, entre outras2,3. Para além das
complicações, as recomendações da 36ª conferência
de Bethesda e da European Society of Cardiology
(ESC), no que diz respeito à realização de desportos,
por parte de atletas com CDI, são que estes devem
apenas realizar desportos de baixa intensidade e em
que não haja risco de trauma para o dispositivo (golf,
bowling, bilhar, entre outros)4. Apesar das
recomendações existirem, muitos são os clínicos que
afirmam seguirem atletas com CDI que realizam
desportos mais intensos que o golf ou o bowling
(Lampert, Cannom, & Olshansky, 2006). Após a
apresentação dos resultados em 2012 na Heart
Rhythm Society (HRS)6, em Maio de 2013, na revista
Circulation, Rachel Lampert e seus colaboradores,
publicaram os resultados de um estudo prospetivo em
que afirmam que atletas com CDI podem realizar
desportos vigorosos7. Começa, então, aqui a
controvérsia.
Atendendo às recomendações existentes e ao facto de
existir pelo menos um estudo publicado em que se
afirma, que atletas com CDI podem realizar desportos
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18
Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia
vigorosos e de competição, a abordagem deste tema
torna-se extremamente interessante. É, portanto,
objetivo deste artigo de revisão revelar o estado da
arte, relativamente ao tema supracitado, e
demonstrar a sua controvérsia.
caem inanimados durante um jogo de futebol,
basquetebol, ou outro. Se analisarmos o que foi
descrito nas duas frases anteriores podemos mesmo
admitir que este tipo de acontecimentos são um tanto
ou quanto paradoxais, são como uma violação
inexplicável da ordem natural.
DEFINIÇÃO DE ATLETA E DESPORTO
Morte súbita cardíaca é definida como “uma morte
inesperada e súbita, de causa cardíaca, não
traumática, num indivíduo sem suspeita de qualquer
doença potencialmente fatal”1(p. 274). A condição
“súbita” varia de autor para autor, contudo, vários
especialistas consideram que esta pode surgir uma
hora após o início dos sintomas1,12. A incidência de
morte súbita cardíaca em atletas jovens com idade
até aos 35 anos, varia entre 1:100 000 e 1:300 000. É
mais frequente em indivíduos do sexo masculino e na
raça negra1, sendo que as causas mais comuns são:
cardiomiopatia hipertrófica, commotio cordis,
anomalia das artérias coronárias, hipertrofia
ventricular esquerda de causa indeterminada,
miocardite, rutura de aneurisma aórtico, displasia
arritmogénica do ventrículo direito, cardiomiopatia
dilatada, síndrome do QT longo, entre outras. A
patologia que lidera o topo da tabela é a
cardiomiopatia hipertrófica12,13.
Pode-se definir atleta como sendo aquele que
participa em desportos, individuais ou inserido numa
equipa organizada, que tem como objetivo uma
competição regular e um treino sistemático,
geralmente, de carácter intenso. Esta definição
abrange apenas os atletas amadores e os atletas de
elite (atletas de competição), excluindo os restantes,
ou seja, exclui aqueles que realizam atividades
recreativas/lazer8-10.
A definição de desporto varia muito, contudo
podemos definir este como sendo uma atividade
organizada, competitiva e de entretenimento que
requer compromisso, estratégia e fair play, em que o
vencedor é definido de acordo com determinados
objetivos e regras. Esta definição não contempla
atividades recreativas/lazer, visto que esta não é
considerada uma atividade competitiva2. Neste
aspeto, a definição de atleta e de desporto
intersetam-se. O desporto, de acordo com o relatório
obtido na 36ª conferência de Bethesda, pode ser
classificado consoante o tipo (estático ou dinâmico), a
intensidade do exercício realizado (baixo, moderado
ou alto), o perigo de lesão corporal devido à colisão e
às consequências de síncope. Através desta
classificação é possível estratificar os riscos para
atletas com doenças cardíacas e/ou com CDI que
queiram realizar desporto11.
MORTE SÚBITA CARDÍACA EM JOVENS
ATLETAS
O atleta jovem é considerado um ícone de saúde e
invulnerabilidade. Contudo, com alguma frequência
lêem-se, ouvem-se e vêem-se nos meios de
comunicação social, notícias sobre jovens atletas que
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CARDIOVERSOR
IMPLANTÁVEL (CDI)
DESFIBRILHADOR
Michel Mirowski e a sua equipa iniciaram as
investigações que deram origem ao CDI e em 1980,
este dispositivo, foi implantado pela primeira vez num
ser humano. Os primeiros CDI´s apresentavam
dimensões semelhantes às de um maço de cigarros,
cerca de 8 x 11.5 cm, 170 cm3, e pesavam,
aproximadamente, 280 gramas. O procedimento para
a colocação deste dispositivo era bastante agressivo
estando associadas grandes complicações, pois, era
necessário a realização de toracotomia e este era
colocado no abdómen. Atualmente, são mais
pequenos e podem ser implantados através da
realização de uma pequena incisão junto à clavícula.
Os eletrocateteres são colocados por via transvenosa.
Estes dispositivos são constituídos, essencialmente,
por um gerador e por um ou dois eletrocateteres e
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19
Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia
têm várias funções, estas, essencialmente, são
sensing, pacing, aplicação da terapia (desfibrilhação
ventricular ou antitaquicardia pacing [ATP]),
monitorização do ritmo cardíaco depois da terapia
aplicada e armazenamento dos episódios/
informação14. Tal como em todas as terapêuticas, e os
CDI´s não são exceção, existem complicações, que
podem ser, deslocamento ou fratura dos
eletrocateteres, migração do gerador, choques
inapropriados, entre outras3,2.
Para orientação dos médicos, relativamente à
implantação de CDI´s, foram publicadas guidelines.
Em 200115, estas guidelines foram publicadas na
Europa pela European Society of Cardiology (ESC) e
atualizadas em 200316. Em 199817, estas guidelines
foram publicadas nos Estados Unidos da América
através da American College of Cardiology (ACC) e da
American Heart Association (AHA) e foram atualizadas
em 200218 e 200819. De uma forma muito sumária e
no que diz respeito à prevenção primária, as últimas
guidelines recomendam a implantação de CDI em
doentes com as seguintes características: doença
coronária aguda e disfunção ventricular esquerda,
doença coronária crónica e fração de ejeção igual ou
inferior a 30% e patologias de alto risco, como por
exemplo a síndrome de Brugada e a síndrome do QT
longo. No que diz respeito à prevenção secundária as
indicações para a colocação de CDI são: paragem
cardíaca devido a taquicardia ventricular ou
fibrilhação ventricular, taquicardia ventricular
sustentada associada a patologia cardíaca estrutural,
síncope associada a taquicardia ventricular ou
fibrilhação ventricular e síncope associada a patologia
cardíaca avançada sem outra causa identificável19.
DOCUMENTOS DE CONSENSO E ESTUDOS
REALIZADOS
A 36ª conferência de Bethesda e a ESC recomendam a
atletas com CDI a realização de desportos de baixa
intensidade e em que não haja risco de trauma para o
dispositivo. Recomenda-se, apenas, a realização de
desportos como golf ou bowling, por exemplo4.
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Na National Collegiate Athletic Association (NCAA)
não existem critérios para determinar a elegibilidade
da realização de desporto por parte de atletas com
doença do foro cardíaco. Em consequência, esta
responsabilidade é colocada nas mãos do médico e tal
como é indicado no manual da NCAA, o médico é que
tem a responsabilidade de determinar quando o
estudante/atleta é impedido de participar em
desportos. A autorização para o indivíduo regressar à
atividade desportiva é, também, da inteira
responsabilidade do clínico e da sua equipa10.
Visto que há uma grande controvérsia relativamente
às recomendações, foi realizado um estudo aos
membros da Heart Rhythm Society (HRS) em 2006,
com o objetivo de se saber o que recomendam os
médicos relativamente à prática desportiva em
indivíduos com CDI. Dos 614 clínicos, que
responderam, 10%, (N = 62) recomendam, apenas, a
prática de desporto de baixa intensidade, como por
exemplo o golf ou o bowling. A maioria (76%, N = 464)
recomenda a não realização de desportos de
contacto. Alguns (45%, N = 273) desaconselham
desportos de competição. Cerca de 71% afirmam
seguir atletas com CDI que continuam a realizar
desportos vigorosos e de competição, tais como
basquete, corrida e esqui. Destes que realizam
desporto, verificou-se que em 1% dos indivíduos não
houve danos físicos, 5% tiveram danos a nível do CDI
e em 1% houve choques inapropriados. Os eventos
mais frequentes foram danos nos eletrocateteres
devido a atividades repetitivas como, por exemplo, o
golf. Deste estudo, conclui-se que existem muitos
indivíduos com CDI a realizar desportos mais
vigorosos do que os que são recomendados e muitos
deles fazem mesmo desporto de competição5.
Atendendo a este estudo realizado e aos documentos
de consenso elaborados pela 36ª conferência de
Bethesda e a ESC, é de denotar uma certa contradição
no que diz respeito à prática de golf, pois apesar de
este ser um dos desportos recomendados pela sua
baixa intensidade de esforço, é aquele que, neste
estudo, foi considerado como sendo, um dos
desportos, que causou danos nos eletrocateteres
devido a movimentos de repetição.
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20
Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia
Em Maio de 2013, Rachel Lampert e seus
colaboradores publicaram na revista Circulation um
estudo prospetivo que incluiu 372 atletas com CDI
que realizavam desportos com alguma intensidade,
tais como, basquete, futebol e corrida. A idade média
dos participantes era de 33 anos. A amostra foi
recolhida através de processos clínicos e entrevistas
por telefone As patologias cardíacas mais comuns dos
atletas, com CDI, que constituíam a amostra eram,
respetivamente, a síndroma do QT longo,
cardiomiopatia hipertrófica e displasia arritmogénica
do ventrículo direito. Durante a investigação verificouse que não houve nenhuma morte. De 372 atletas, 48
(13%) receberam pelo menos um choque apropriado
e 40 (11%) receberam pelo menos um choque
inapropriado. Durante a competição/ prática de
desporto verificaram-se 49 choques em 37
participantes (10%), durante outra qualquer atividade
física, 29 atletas (8%) receberam 39 choques e
durante o repouso 24 indivíduos (6%) receberam 33
choques. Após cinco anos da implantação do CDI
verificou-se apenas 3% de mau funcionamento/
danos nos eletrocateteres e, após dez anos,
constatou-se apenas 10%. Este estudo é pioneiro
nesta área atendendo que foi o primeiro a
demonstrar/ concluir que atletas com CDI podem
realizar desportos vigorosos e/ou de competição sem
danos físicos ou falha de determinação de arritmia
por parte do dispositivo, apesar da ocorrência, em
pequeno número, de choques apropriados e
inapropriados7.
Com este artigo de revisão, pretende-se chamar a
atenção para a importância deste tema, que é
bastante controverso e existem poucos estudos nesta
área. Para além disso, pode-se estar a discriminar, de
certa forma, indivíduos que têm como objetivo a
prática de desportos mais vigorosos que os
recomendados.
REFERÊNCIAS
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estado da arte. Acta Pediatr Port. 2010; 41: 274–80.
2. Law, Shannon. Implantable cardioverter-defibrillators and the
young athlete: Can the two coexist? Pediatr Cardiol. 2012; 33:
387–93.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desporto adquiriu, nas últimas décadas, uma
crescente dimensão social, com a mediatização cada
vez maior dos atletas e dos seus feitos desportivos. A
segurança da realização de desporto por parte de
atletas com CDI atualmente é controversa e não é
totalmente conhecida, visto que até hoje só foi
realizado um estudo no âmbito desta temática. Para
além disso, as recomendações dos médicos,
relativamente a este tema variam imenso20. Devido
aos riscos que a prática desportiva pode trazer aos
atletas com CDI, as atuais guidelines recomendam que
estes, não devem participar em desportos, exceto se
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forem desportos de baixa intensidade e em que não
haja nenhum perigo de trauma para o dispositivo,
exemplos desses desportos são, o golf, o bilhar, o
bowling, entre outros4. Contudo a realização de
movimentos de repetição, nestes desportos
recomendados (exemplo: golf), pode levar à
deslocação/danos dos eletrocateteres5. De acordo
com os parágrafos anteriores podemos constatar que
a nível internacional não existe ainda consenso
relativamente a este tema. Em Portugal, esta
realidade também pode estar presente, na medida
em que não há conhecimento, de quais as
recomendações dadas pelos médicos e se existem
realmente atletas com CDI a realizar desporto de
média e alta intensidade, visto que desportos com
baixa intensidade são os recomendados.
3. Schinkel, Vriesendorp, Sijbrands, Jordaens, ten Cate, Michels.
Outcome and complications after implantable cardioverter
defibrillator therapy in hypertrophic cardiomyopathy: Systematic
review and meta-analysis. Circ Heart Fail. 2012; 5: 552–9.
4. Pelliccia, Zipes, Maron. Bethesda conference #36 and the
European Society of Cardiology consensus recommendations
revisited: A comparison of U.S. and european criteria for eligibility
and disqualification of competitive athletes with cardiovascular
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5. Lampert, Cannom, Olshansky. Safety of sports participation in
patients with implantable cardioverter defibrillators: A survey of
heart rhythm society members. JCE. 2006; 17: 11–5.
6. Heart Rhythm Society. Study of International ICD Sports Safety
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21
Cardioversor desfribrilhador implantável (CDI) em atletas: a controvérsia
Registry shows restriction of all competitive sports for those with
implantable cardioverter defibrillators (ICDs) may not be
necessary [página inicial na internet]. c2012 [citada 2013 Feb 2].
Disponível
em:
http://www.hrsonline.org/News/PressReleases/2012/05/Study-Of-International-ICD-Sports-SafetyRegistry
7. Lampert, Olshansky, Heidbuchel, et al. Safety of sports for
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18. Epstein, DiMarco, Ellenbogen, et al. ACC/AHA/HRS 2008
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American Heart Association Task Force on Practice Guidelines
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8. Ferreira, Santos-Silva, de Abreu, et al. Sudden cardiac death
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13. van Welsenes , Borleffs, van Rees, et al. Improvements in
25 years of implantable cardioverter defibrillator therapy. Neth
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Executive summary - A report of the American College of
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Guidelines (Committee on Pacemaker Implantation). Circulation.
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17. Gregoratos, Abrams, Epstein, et al. ACC/AHA/NASPE 2002
Guideline Update for implantation of cardiac pacemakers and
antiarrhythmia devices: Summary article - A report of the
American College of Cardiology / American Heart Association Task
Force on Practice Guidelines (ACC/AHA/NASPE Committee to
Update the 1998 Pacemaker Guidelines). Circulation. 2002; 106:
2145–61.
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22
Vol.6 – Março 2014
Artigo Original de Investigação
Espirometria em idade pré-escolar
Spirometry in preschool children
Ana Filipa Dias1, Liliana Andrade e Raposo1,2*
1
2
Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa
Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital Pulido Valente
A espirometria tem sido utilizada ao longo das últimas décadas como modo de avaliação da função respiratória em
adultos e crianças, maioritariamente aplicada a indivíduos com idades superiores a seis anos. Atualmente, um
número significativo de trabalhos tem vindo a reportar sucesso no treino das crianças em idade pré-escolar (dos
dois aos seis anos), na realização de espirometria. O objetivo da presente revisão de literatura foi analisar os artigos
mais recentes e relevantes no que diz respeito à realização de espirometria em idade pré-escolar, identificando quais
são os critérios a avaliar na realização da espirometria bem como as normas de controlo de qualidade que melhor se
aplicam a esta faixa etária.
Foram procurados trabalhos na base de dados Pubmed, tendo sido analisados 30 artigos, após exclusão dos
trabalhos que não se incluíam na temática a abordar.
Os parâmetros a avaliar neste grupo são diferentes dos utilizados nos adultos, sugerindo-se a valorização do FEV0.5 e
FEV0.75 em detrimento do FEV1 devido à incapacidade destas crianças na manutenção do tempo expiratório superior
a 1 segundo. O parâmetro que mais parece influenciar a determinação das equações de referência é a altura da
criança. É importante recorrer a programas de incentivo que demonstraram ser eficazes na melhoria da colaboração
para a realização da espirometria.
Os métodos de interpretação da espirometria mostraram ser diferentes entre crianças e adultos, utilizando-se
preferencialmente no primeiro grupo, os Z-scores. Prevê-se num futuro próximo a validação da utilização desta
técnica nesta faixa etária, bem como a sua aplicação na prática clínica diária.
Spirometry has been used over the past decades as a way to assess respiratory function in adults and children, applied
mostly to individuals older than six. Currently, a significant number of papers are reporting success in training children
in preschool age (from two to six years) to perform a spirometry. The aim of the present review is to analyze the most
Espirometria em idade pré-escolar
recent and relevant papers, regarding the use of spirometry in preschool children, identifying the criteria to be used to
assess the performance of the spirometry and the quality control standards that are better to apply to this age group.
After searching the Pubmed database, a total of 30 papers were analyzed after exclusion of studies that did not address
the subject of interest.
The assessment parameters in this age group are different from those used in adults, being suggested the use of FEV0.5
and FEV0.75 instead of FEV1 due to the inability of these children to maintain an expiration time greater than 1 second. It
seems that the most important parameter with a higher influence in reference equations is the child height. It is
important to use incentive programs that proved to be effective in improving the children’s adherence collaboration to
the tests.
The methods for the interpretation of spirometry are different in children and adults, using preferably the Z-scores in
the first group. It is expected, in the near future, that the validation of this technique in this age group, as well as its
application in daily clinical practice, will happen.
PALAVRAS-CHAVE: Espirometria; idade pré-escolar; provas funcionais respiratórias; criança.
KEY WORDS: Spirometry; preschool age; pulmonary function tests; child.
Submetido em 10 janeiro 2014; Aceite em 18 fevereiro 2014; Publicado em 31 março 2014.
* Correspondência: Liliana Raposo.
Email: [email protected]
INTRODUÇÃO
As provas funcionais respiratórias, nomeadamente a
espirometria são utilizadas há várias décadas na
avaliação da função respiratória dos adultos e
adolescentes. Sendo consideradas fundamentais para
a confirmação diagnóstica de diversas patologias do
foro respiratório, para o controlo da sua evolução
natural ou para avaliação da resposta à terapêutica
instituída, uma correta execução da técnica e a
interpretação dos resultados é mandatória1. Os
procedimentos
de
orientação
técnicos
e
interpretação
dos
resultados
encontram-se
estandardizados para a população adulta2, mas a sua
realização e interpretação na idade pré-escolar tem
sido objecto de estudo nos últimos anos pelas
peculiaridades que esta faixa etária apresenta.
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A idade pré-escolar corresponde ao intervalo entre os
dois e os seis anos e constitui um dos maiores
desafios em termos de avaliação funcional
respiratória, quer pelas dificuldades de coordenação
e colaboração destas crianças na execução das
manobras exigidas, quer pela inadequação dos
critérios de realização e avaliação publicados para a
idade adulta, muitas vezes utilizados neste grupo. Por
estes motivos os estudos funcionais respiratórios
nesta faixa etária estiveram durante largos anos
apenas restritos à investigação3.
A comunidade científica tem tido especial atenção
para a avaliação funcional respiratória na idade préescolar, e diferentes métodos de medição,
nomeadamente no que respeita ao tempo de
execução das provas ou os parâmetros a avaliar têm
sido sugeridos, especialmente para a espirometria,
com resultados encorajadores4. Neste grupo torna-se
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24
Espirometria em idade pré-escolar
fulcral a interação avaliador/criança, de modo a que
esta colabore na realização das provas. Alguns
trabalhos têm demonstrado que é possível efetuar a
avaliação respiratória neste grupo, particularmente
recorrendo à espirometria animada, tendo sido
possível aferir a sua viabilidade. A sua
reprodutibilidade mostra que pode ser utilizada na
prática clínica diária5.
O aumento da incidência das doenças respiratórias
pediátricas, geralmente de natureza obstrutiva, e a
elevada morbilidade devido a doenças crónicas com
tendência para o seu incremento, obriga a que exista
uma metodologia uniforme a aplicar na avaliação da
função respiratória neste grupo, de forma a se
proceder a uma correta interpretação dos resultados
adquiridos6.
Observando como exemplo a asma brônquica, a
evidência cumulativa do aumento da sua incidência
em crianças, com o possível impacto do tratamento
precoce na sua evolução, justifica a necessidade da
implementação de provas de função pulmonar fiáveis
para avaliar o grau de obstrução pulmonar nestas
idades. O diagnóstico tardio e o tratamento
inadequado da asma brônquica grave na criança
condicionam o progressivo aumento da limitação ao
fluxo aéreo, com o aumento do risco de morte em
idade adulta6.
Pela relevância que esta temática envolve e devido a
alguma incerteza acerca dos critérios de
aceitabilidade e reprodutibilidade a serem
empregues, bem como quais as equações de
referência a utilizar, diversos trabalhos foram
realizados na tentativa de uniformizar os critérios de
realização e interpretação de resultados nessa faixa
etária que originaram a elaboração de um documento
pelas
American
Thoracic
Society/European
Respiratory Society (ATS/ERS) em 20077. Apesar da
importância de que o documento se reveste, este foi
elaborado com base em estudos com populações e
metodologias diferentes, i.e. com crianças a partir dos
três anos de idade, com populações muito reduzidas,
ou
que
incluíam
crianças
com
patologia/sintomatologia respiratória.
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Após esta importante publicação, continuaram a
surgir na comunidade científica nacional e
internacional, trabalhos sobre este tema. Assim,
parece-nos pertinente compilar uma visão
abrangente sobre este assunto, sendo o objetivo do
presente trabalho analisar os artigos mais recentes e
relevantes no que diz respeito à realização da
espirometria em idade pré-escolar, identificando
quais são os critérios a avaliar na realização desta
técnica, bem como as normas de controlo que
qualidade que melhor se aplicam a esta faixa etária.
METODOLOGIA
Tendo por objetivo o anteriormente apresentado, foi
realizada uma revisão simples da literatura. Para
aceder aos artigos publicados acerca deste tema, foi
utilizado o motor de busca Pubmed, usando as
seguintes palavras-chave: “spirometry” AND/OR
“Children” AND/OR “pulmonary function tests”
AND/OR “preeschool spirometry” com os filtros
ativados: English language; Children 2-5 years;
Journal articles and reviews; full text available. Um
total de 889 artigos foi encontrado. Após a leitura do
título, do resumo e do texto, excluíram-se 616
trabalhos que não se enquadravam no tema do
estudo, 83 por se encontrarem repetidos e 129 por
ser utilizada uma população com idade superior a seis
anos. Os restantes 40 e outros encontrados em
referências bibliográficas nos artigos anteriormente
referidos (27), encontram-se na lista de referências
apresentada subsequentemente.
A ESPIROMETRIA NA CRIANÇA EM IDADE
PRÉ-ESCOLAR
Os primeiros passos com vista à normalização dos
procedimentos técnicos e clínicos relativamente à
espirometria foram direccionados para o adulto. Estas
normas estão completamente estandardizadas em
vários documentos elaborados ao longo dos anos2.
Alguns autores, aplicando esses critérios a crianças
em idade pré-escolar, realizaram diversos trabalhos
que alertaram para o facto dos critérios utilizados
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25
Espirometria em idade pré-escolar
para os adultos, não deverem ser utilizados com rigor
em crianças, pelas particularidades existentes nessa
faixa etária8-10.
Um dos primeiros passos dados na diferenciação dos
critérios de aceitabilidade das manobras executadas
nessa faixa etária relativamente aos adultos, foi o
tempo expiratório. Um estudo conduzido por
Kanengiser e Dozor 11 que avaliou as espirometrias
realizadas por 98 crianças com idade entre os três e
os cinco anos seguindo as recomendações da ATS/ERS
de 2005 para os adultos, veio alertar para a
necessidade de criar diferentes critérios de avaliação
para as crianças nesta faixa etária. Os valores obtidos
simultaneamente para o volume expiratório máximo
no primeiro segundo (FEV1) e para a capacidade vital
forçada (FVC) foram aceites em apenas 30% das
manobras e somente em crianças com cinco anos de
idade. Alguns anos mais tarde, Arets et al10
concluíram que apenas 15% das crianças obtinham
manobras de duração superior a seis segundos, o que
veio reforçar a necessidade da criação de critérios
adequados para este grupo8,9, nomeadamente quanto
à duração da manobra expiratória nesta faixa etária.
Com o objetivo de identificar quais os critérios de
aceitabilidade das manobras, a partir do tempo
expiratório obtido em crianças pertencentes a esta
faixa etária, Crenesse et al12 desenvolveram um
estudo em que incluíram 473 crianças entre os três e
os cinco anos de idade. Referiram que a capacidade
de obter manobras com duração superior a um
segundo aumentava com a idade da criança,
reportando índices de sucesso crescentes em
consonância com a faixa etária. Também Nystad et
al13 alertaram para a necessidade de utilização de
outros parâmetros na avaliação da função
respiratória neste grupo, após a avaliação de 652
crianças entre os três e os seis anos de idade,
concluindo que 10% não conseguiam manobras
expiratórias com duração de um segundo,
particularmente as mais novas. Concordantemente
Burity et al14, concluíram ao avaliar 240 crianças
saudáveis, entre os três e os seis anos de idade, que
apesar das manobras terem tempos expiratórios de
curta duração, traduzindo-se em términos abruptos,
podem apresentar resultados reprodutíveis. Um
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estudo desenvolvido em Portugal está também de
acordo com os autores anteriores, afirmando que a
fiabilidade da metodologia empregue para a
realização de espirometria, e os critérios utilizados
para a escolha das curvas débito-volume no que diz
respeito à aceitabilidade e reprodutibilidade das
manobras, devem ser diferentes dos utilizados para o
adulto, uma vez que na criança em idade pré-escolar
as manobras expiratórias são de menor duração15.
Esses achados parecem resultar das crianças terem
vias aéreas proporcionalmente maiores que seus
volumes pulmonares, e uma força de retração elástica
do pulmão maior que a dos adultos, expirando a
totalidade da sua capacidade vital (VC) em poucos
segundos16,17.
Devido à presença de um tempo expiratório reduzido
em crianças, percebeu-se que a utilização do FEV1,
tão importante na avaliação da gravidade das
alterações ventilatórias nos adolescentes e adultos,
não poderia ser utilizado com o mesmo rigor na idade
pré-escolar, especialmente nas crianças de menor
idade. Dois estudos envolvendo crianças com idades
inferiores a seis anos utilizaram equações com o
parâmetro volume expiratório máximo aos 0,75
segundos (FEV0,75), observando ser esse um dos
parâmetros mais adequados para esta faixa etária18,19.
Baseados em alguns dos trabalhos anteriores10-13,
foram publicadas pela ATS em 2007 novas diretrizes
relativamente às provas de função pulmonar em
idade pré-escolar, nas quais se reforça a importância
da utilização de parâmetros como o volume
expiratório máximo aos 0,5 segundos (FEV0.5) e o
FEV0.75 na sua avaliação, em detrimento do FEV17.
Num trabalho de Stanojevic et al.20, foi apontado que
em idade pré-escolar, mesmo quando se consegue
atingir um FEV1, o seu valor clínico permanece
questionável. Concluíram que é mais apropriado
utilizar o FEV0.75 ou o FEV0.5 como meio para distinguir
a normalidade neste grupo etário, o que veio reforçar
uma vez mais a necessidade da utilização de critérios
adequados a esta população. Um trabalho de Santos
et al.3 estudou 1239 crianças nas quais foi possível
reportar o FEV1 em 801 crianças com idade média de
4,5 anos (65%), o FEV0.75 em 268 crianças com idade
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26
Espirometria em idade pré-escolar
média de 4 anos (22%) e o FEV0.5 em 23 crianças com
idade média de 3,5 anos (2%). Concluíram que a
espirometria em idade pré-escolar é exequível na
prática clínica diária, com um aumento do sucesso em
crianças mais velhas e que o registo de manobras
com duração de 0,5 ou 0,75 segundos permite a
avaliação funcional respiratória de um maior número
de crianças. Desde a publicação do documento, vários
estudos têm sido conduzidos para verificar a
validação destes critérios, na interpretação dos
resultados espirométricos neste grupo, todos com
resultados concordantes com os anteriores8,14,16,21.
como um instrumento de medida do adequado
crescimento e desenvolvimento pulmonar infantil24.
De acordo com as guidelines publicadas em 20077,
que referem que a par da interpretação dos
resultados da espirometria destas crianças, é
necessária uma avaliação cuidadosa dos aspectos
morfológicos das curvas, Borrego et al5 verificaram
que na criança em idade pré-escolar é mandatório
cumprir os critérios de qualidade da manobra pela
sua inspeção visual, não sendo possível cumprir os
restantes critérios, particularmente a duração da
manobra de expiração forçada superior a seis
segundos. Concordantemente, outro estudo22 refere
a importância da visualização dos aspectos
morfológicos das curvas, nomeadamente da porção
inspiratória.
A utilização de software de incentivo à colaboração
destas crianças, constituído por um conjunto de jogos
(velas, balões, bowling, apitos), denomina-se de
espirometria animada25. Este tipo de software tem
sido tema de vários estudos, no que respeita à sua
utilização nesta faixa etária, com o objetivo de
perceber se os resultados obtidos por este meio, são
ou não, aceitáveis e adquiridos com maior facilidade.
Em 2001, Vilozni et al.26 publicaram um estudo em
que foram incluídas 112 crianças em idade préescolar, obtendo-se uma taxa de sucesso de 70%, na
obtenção de espirometrias aceitáveis e reprodutíveis
através da utilização de animação. Também Santos et
al3, efetuaram uma análise retrospetiva de provas
funcionais respiratórias realizadas em crianças entre
dois e seis anos de idade utilizando a espirometria
animada, antes e após 400 µg de salbutamol. Das
1239 provas funcionais respiratórias realizadas, 1092
(88%) cumpriram critérios de aceitabilidade e
reprodutibilidade recomendados para esta faixa
etária.
Amplamente reconhecida pela comunidade científica
como método de diagnóstico e follow-up de
patologias respiratórias, a espirometria assenta
primordialmente na colaboração do indivíduo
aquando da realização das manobras. As crianças com
idades entre os dois e os seis anos podem ter
dificuldades em compreender as explicações para a
realização de manobras expiratórias adequadas e
distraem-se facilmente durante a abordagem inicial.
Desta forma, os técnicos de Cardiopneumologia que
realizam os exames devem ser atenciosos, mostrar
entusiasmo e ser conhecedores das limitações
inerentes a este grupo etário23. A idade pré-escolar é
uma fase específica, não só pela falta de colaboração
das crianças para a realização das manobras forçadas,
mas também pela necessidade de utilização de
estratégias especiais na realização dos testes. A
avaliação da função pulmonar é importante não
apenas como um parâmetro clínico, mas também
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Nestas crianças torna-se difícil obter essa
colaboração, sendo necessária uma motivação por
reforço positivo, com várias tentativas e erros25. O
ambiente do laboratório de função pulmonar deve
ser aconchegante e lúdico com o objetivo de
aumentar a interação avaliador/criança23, sendo
fundamental para a obtenção de resultados fiáveis
neste grupo, o encorajamento, a empatia e a
confiança com a criança.
Relativamente às equações de referência para a
espirometria em crianças em idade pré-escolar, são
vários os estudos que tentaram perceber qual ou
quais seriam as mais adequadas, para este grupo.
De acordo com alguns autores mencionados adiante,
na faixa etária dos dois aos seis anos apenas a altura
da criança influencia as equações de referência, ao
contrário das dos adultos que são influenciadas por
outros dados antropométricos além da mesma, como
a idade, o género ou a raça. Zapletal e Chalupová27
num estudo realizado com 173 crianças saudáveis
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27
Espirometria em idade pré-escolar
entre os três e os seis anos de idade, demonstrou que
os valores dos parâmetros espirométricos estudados
estavam positivamente correlacionados com a altura
da criança, sendo a correlação com a idade menos
expressiva, tendo concluído que a altura parece ser o
parâmetro que mais influencia os resultados da
espirometria. Também Eigen et al28 que estudaram
crianças em idade pré-escolar, publicaram equações
de referência para os valores espirométricos que se
baseiam numa equação única, exclusivamente
dependente do logaritmo natural da altura da criança
em estudo, sendo independente da idade e do peso.
Reportaram 82% de sucesso nas espirometrias das
259 crianças estudadas. De acordo com os anteriores,
Ranganathan et al8 afirmaram que a altura é o factor
que exerce maior influência sobre a VC na infância,
sendo a relação entre ambas bem descrita por
equações exponenciais.
No que respeita à interpretação dos resultados
espirométricos, as orientações da ATS/ERS de 2007
mencionam a utilização de Z-scores ou percentis, em
detrimento das percentagens do previsto. Consiste
num programa informático de análise estatística que
permite gerar equações dos valores previstos por
regressão linear múltipla utilizando as variáveis
espirométricas como variáveis dependentes e a
altura, peso, idade, género e raça como variáveis
independentes no modelo de regressão29.
Este método permite a geração de equações que
expressam os resultados em Z-scores o que facilita a
interpretação dos resultados em espirometria na
idade pré-escolar7. Alguns autores, nomeadamente
em Portugal, analisaram a eficácia da utilização dos Zscores. Num estudo com 53 crianças em idade préescolar, foi obtida uma taxa de sucesso de 85% na
avaliação funcional respiratória por espirometria
animada, utilizando este método. Os valores foram
expressos em Z-scores, e conforme as guidelines de
2007, ajustados para o género, altura e idade. Foram
reportados resultados de acordo com a literatura
internacional, com valores de normalidade entre ±
230. Também Veras e Pinto24 realizaram uma análise
aos resultados da espirometria em crianças com
idades inferiores a seis anos, que incluiu 74 crianças e
obteve uma taxa de sucesso de 82%, com uma
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melhoria no desempenho do teste nas idades entre
os cinco e os seis anos. Os resultados foram
analisados através de Z-scores, constatando-se que
21,6 % das crianças apresentavam um padrão
obstrutivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A avaliação da função respiratória em idade préescolar reveste-se de particularidades metodológicas,
e tem vindo a ganhar um interesse crescente na
comunidade científica nacional e internacional.
A evolução dos espirómetros, as animações utilizadas
e a discussão sistemática sobre esta temática
possibilitam o debate sobre quais serão os melhores
parâmetros para a análise efetiva das medidas da
função pulmonar nestas idades.
A espirometria, sendo um instrumento de
quantificação objetiva do compromisso pulmonar,
possibilita a sua aplicação em crianças mais novas,
com benefícios evidentes e com a garantia de
atempadamente acompanhar o curso natural de
determinadas doenças.
A existência de padrões unânimes de avaliação préescolar para a espirometria é essencial para facilitar
as comparações intraindividuais e a comparação de
resultados entre diversos laboratórios de função
respiratória. Contudo, continuam a ser necessários
mais estudos para a correta estandardização dos
procedimentos técnicos e equipamentos a utilizar
nesta faixa etária.
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Artigo de Revisão de Literatura
Contributo da fisioterapia na disfunção da
articulação temporomandibular
Contribution of physiotherapy on temporomandibular joint dysfunction
Cátia Concórdia1*, Rodrigo Martins1, Sandra Alves1
1
Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa
A articulação temporomandibular faz parte de um sistema complexo que envolve a dentição, mandibula, crânio,
coluna cervical e cintura escapular. A sua disfunção atinge em grande parte a população adulta, entre os 20 e os 40
anos de idade, e compreende uma condição complexa e multifactorial envolvendo um variado número de sinais e
sintomas não existindo consenso sobre a sua etiologia ou critério de diagnóstico. Também quanto ao tipo de
tratamento apresenta alguma discordância no que diz respeito ao tipo de técnicas utilizadas e profissionais de saúde
integrantes nessa abordagem. Este estudo teve como objectivo perceber qual o contributo da fisioterapia neste tipo
de condições e a relevância da sua integração no processo de avaliação e tratamento potencializando a máxima
funcionalidade e qualidade de vida do utente.
The temporomandibular joint is part of a complex system involving the teeth, jaw, skull, cervical spine and shoulder
girdle. Its dysfunction affects largely the adult population between 20 and 40 years old and comprises a complex and
multifactorial condition involving a number of different signs and symptoms. There is no consensus on its etiology or
diagnostic criteria. Also, there is some disagreement regarding the type of treatment, namely concerning the type of
health professionals and techniques involved. This study aimed to understand the contribution of physiotherapy in this
type of conditions and the relevance of its integration in the evaluation and treatment process leveraging a maximum
functionality and quality of life of the patient.
PALAVRAS-CHAVE: Disfunção temporomandibular; fisioterapia; intervenção; tratamento.
KEY WORDS: Temporomandibular joint dysfunction; physiotherapy; intervention; treatment.
Submetido em 16 abril 2014; Aceite em 1 fevereiro 2014; Publicado em 31 março 2014.
* Correspondência: Cátia Concórdia.
Email: [email protected]
Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
INTRODUÇÃO
tratamento, de acordo com Pinto e Mota em 20008.
O sistema mastigatório é a unidade funcional do
corpo responsável pela mastigação, fonação e
deglutição. Este sistema é composto por ossos,
articulações, ligamentos, dentição e musculatura
específica a que se junta a componente neurológica
que regula e coordena todos estes elementos
estruturais. Portanto, este sistema é uma unidade
complexa e altamente refinada sendo essencial a
compreensão da sua anatomia funcional e
biomecânica1 .
Apesar da existência de uma extensa literatura
científica ao longo de várias décadas, a etiologia das
formas mais comuns de DTM permanece amplamente
desconhecida e o seu diagnóstico é feito de uma
forma descritiva tendo por base os sinais e sintomas
presentes6. Assim, a etiologia da DTM é complexa e
multifactorial, sendo que alguns autores (McNeill e
colegas em 1980 e Okenson em 1996) referem os
factores de predisposição, iniciantes e perpetuantes
como elementos contributivos na etiologia desta
condição1. O sucesso na abordagem da DTM depende
da identificação e controlo desses factores
contributivos1.
Bell, em 1982, indicou que o termo disfunções
temporomandibulares (termo doravante identificado
como DTM) não sugere apenas problemas confinados
às articulações mas também inclui todas as
perturbações associadas à disfunção do sistema
mastigatório1 tais como queixas de cefaleia, dor na
região da mandíbula, ouvidos ou face2 e também
disfunções da coluna cervical, que contribuem para a
perpetuação da sintomatologia da DTM3. Assim, a
DTM é um termo colectivo usado para um número de
problemas clínicos que envolvem os músculos da
mastigação, as articulações temporomandibulares
(termo doravante identificado por ATM), e/ou outras
estruturas associadas4,5.
Os sinais e sintomas mais comuns na DTM são a dor
persistente nos músculos da mastigação ou na
articulação e, menos frequentemente, nas estruturas
adjacentes a esta; limitações ou desvios no
movimento da mandíbula; e ruídos articulares6. A dor
é o sintoma mais comum e, inicialmente, resultante
de hábitos parafuncionais tais como cerramento dos
dentes ou bruxismo, podendo dever-se a causas
piscogénicas ou estarem relacionados com factores
tais como stress, ansiedade ou depressão4.
Os sinais estão presentes em cerca de 60% a 70% da
população, ainda assim apenas um em cada quatro
indivíduos têm consciência disso ou referem
quaisquer sintomas, segundo Graber, Rakosi e
Petrovic em 20097. Num estudo realizado em
Portugal, a prevalência de sintomas foi de 51% mas os
sinais clínicos abrangiam 72% dessa população e
apenas 5% apresentaram necessidade de recorrer ao
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
A literatura sugere que os maiores factores associados
à DTM, variam de indivíduo para indivíduo, sendo
eles: a condição da oclusão dentária, cerramento dos
dentes, condições traumáticas, stress emocional,
depressão, angústia, dor profunda, hábitos
parafuncionais nocturnos e posturas incorrectas, de
acordo com LeResche, em 1997; Fricton, em 1998,
McNeill, em 19905,1.
Vários estudos epidemiológicos (de De Kanter, Truin e
Burgersdijk, em 1993; de Von Korff e colaboradores,
em 1988, e de Dworkin, Le Resche e Von Korff, em
1990)1 revelam que a maioria dos sintomas são
observados na faixa etária dos 20 anos aos 40 anos de
idade, sendo que a prevalência desta disfunção varia
entre 8% e 15% no género feminino e 3% a 10% no
género masculino9. O género feminino é aquele que
mais procura tratamento comparativamente ao
género masculino numa escala de um homem em
cada quatro mulheres, não sendo claro o porquê
deste fenómeno desde que se suspeita que a DTM
afecta tanto o género feminino como o masculino,
segundo Rugh e Solberg, em 19857. Um grupo de
investigadores sugere que este factor possa estar
relacionado com a variação dos níveis hormonais no
ciclo menstrual (LeResche, Mancl, Sherman, Gandara
e Dworkin, em 200310) e, desta forma, o género
masculino apresenta um menor risco de desenvolver
sintomatologia devido ao efeito protector da
testosterona em combinação com o baixo nível de
estrogénio10. De ressalvar que face às dificuldades de
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
estudo na população ainda não existem conclusões
empíricas face ao motivo.
A
articulação
temporomandibular
apresenta
características únicas e a sua disfunção é frequente.
Este estudo insere-se no projecto de final de curso de
licenciatura em Fisioterapia da Escola Superior de
Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa e apresenta
como principal objectivo compreender em que
medida o contributo da fisioterapia é relevante no
processo de tratamento e prevenção destas
condições, tendo em conta quais os tratamentos
usados para estas condições e de que forma estão
implementados. Para concretizar este objectivo
considera-se relevante rever os conceitos sobre a
articulação temporomandibular e a sua relação com
as restantes estruturas do corpo na medida em que se
deve ter deste uma visão holística.
REVISÃO DE CONCEITOS
A articulação temporomandibular (ATM)
O sistema mastigatório compreende três grandes
componentes ósseos, a maxila, a mandíbula e o osso
temporal. A área onde a mandíbula articula com o
crânio, a ATM, é uma das articulações mais complexas
do corpo1, sendo esta classificada como uma bielipsoido-discartrose conjugada, e estabelecendo-se
entre superfícies articulares que pertencem à
mandibula e ao temporal em conjugação com o
menisco interarticular11.
Por definição, uma articulação conjugada necessita da
presença de, pelo menos, três ossos, ainda assim a
ATM é constituída por, apenas, dois, o temporal e a
mandíbula. Funcionalmente, o disco articular
apresenta-se como um terceiro componente ósseo
que permite movimentos articulares complexos1,11. O
disco interarticular torna-se necessário porque as
duas superfícies articulares não concordam entre si,
pois enquanto o côndilo da mandíbula é fortemente
convexo, a superfície articular temporal é
simultaneamente côncava e convexa11.
Pina, em 2010, refere que o disco articular, unido à
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cápsula, divide a cavidade articular em duas porções,
pelo que podem considerar-se duas sinoviais
distintas: uma superior ou têmporo-discal, entre o
disco e o temporal; e outra inferior ou mandíbulodiscal, entre o disco e o côndilo da mandíbula. Por
esta razão, a ATM é referida como sendo uma
articulação sinovial. Okenson em 20081 refere que o
termo menisco é frequentemente utilizado, contudo,
pode não ser o mais correcto pois esta estrutura não
é de todo um menisco. Um menisco não divide a
cavidade articular, isolando o líquido sinovial nem
funciona como parte determinante do movimento de
uma articulação. Na ATM o disco funciona como uma
verdadeira superfície articular.
No que respeita ao revestimento das superfícies
articulares, este apresenta uma particularidade, pois
ao contrário de outras articulações sinoviais, a sua
superfície articular é composta por tecido conjuntivo
fibroso em vez de cartilagem hialina, segundo
DeBont, em 1984; DeBont, em 19851. As fibras estão
fortemente comprimidas e conseguem suportar as
forças do movimento e, assim, pensa-se que haja uma
série de vantagens deste em relação à cartilagem
hialina como, por exemplo, ser menos susceptível aos
efeitos da idade, ser menos propenso ao desgaste e
também pela maior capacidade de reparação,
defende Robinson, 19931.
Posto isto, é necessário então rever alguns conceitos
sobre a anatomia funcional da ATM e quais os
movimentos que esta desempenha.
Biomecânica da ATM
A ATM é um sistema articular extremamente
complexo. O facto das duas articulações serem
conectadas pelo mesmo osso, a mandíbula, todo o
movimento desta estrutura vai implicar a função do
sistema mastigatório. Cada articulação pode
simultaneamente atuar em separado, no entanto,
sofrem a influência uma da outra1.
Assim sendo, a ATM compreende três movimentos
funcionais: movimentos de descida/ depressão/
abertura e elevação/ oclusão da mandíbula, que se
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
efectuam em torno de um eixo transversal que passa
um pouco acima do forame da mandíbula;
movimentos de projeção anterior/ propulsão/
protusão e de projeção posterior/ retropulsão/
retrusão, sendo executados segundo um plano sagital
e muito limitados no homem; e movimentos de
lateralidade/ didução/ excursão em que a mandíbula
se desloca alternadamente para a direita e para a
esquerda e que também envolve um mecanismo
complexo de ambas as articulações12,13,11.
lateral superior na biomecânica desta articulação pois,
este músculo encontra-se inserido no bordo anterior
do disco articular e quando activo, as suas fibras
tracionam anterior e medialmente o disco nos
movimentos de elevação da mandíbula1.
Ainda dentro dos movimentos funcionais ocorrem
dois movimentos articulares, a artrocinemática, o
primeiro momento refere-se aos tecidos que rodeiam
a cavidade sinovial inferior, côndilo e disco articular,
que pelo facto de o disco estar fortemente ligado ao
côndilo, o único movimento que pode ocorrer entre
essas superfícies é o rolamento do disco na superfície
articular do côndilo no movimento de rotação; o
segundo momento é composto pelo complexo
côndilo-disco que se move contra a fossa mandibular,
através de um movimento de deslize na cavidade
articular superior. Este movimento ocorre quando a
mandíbula se move anteriormente, num movimento
de translação1. Grande parte da rotação e translação
ocorre simultaneamente durante a amplitude de
movimento funcional, embora seja ainda controverso
a sequência destes no início do movimento de
abertura da boca, de acordo com Chen, em 1998 e
Ferrario e colegas em 200513.
Musculatura da ATM
As superfícies articulares devem ser mantidas em
contacto permanente no sentido de promover uma
estabilidade articular e, desta forma, a actividade
constante dos músculos que rodeiam a articulação é
necessária, mesmo na fase de repouso, mantendo
assim a pressão interarticular1.
O músculo temporal apresenta três porções, a
anterior com fibras verticais, a porção média com
fibras a tornarem-se oblíquas e a porção posterior
com fibras quase horizontais. Tem origem na fossa
temporal e na superfície externa do crânio. Na
contração bilateral deste músculo verifica-se a
elevação e retrusão da mandíbula e na contração
unilateral uma ligeira excursão ipsilateral1,12.
A combinação da pressão interarticular e morfologia
do disco são essenciais na manutenção de um
posicionamento adequado do disco articular durante
a função, ou seja, quando este apresenta uma forma
regular, a superfície articular do côndilo deve situar-se
na zona intermédia entre as duas porções mais
espessas do disco, a anterior e a posterior1.
De salientar a importância do músculo pterigoideu
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Exposto isto falta ainda referir a musculatura
envolvida neste complexo articular, onde a
sintomatologia, como acima referido, se encontra
mais presente.
Quatro pares de músculos formam o grupo designado
por músculos da mastigação: o masséter, o temporal,
o pterigoideu medial e o pterigoideu lateral1.
O masséter é um músculo bastante potente que
fornece a força necessária a uma mastigação eficiente
e apresenta duas porções, uma superficial, com as
suas fibras oblíquas, e uma profunda, com fibras
predominantemente verticais. Tem origem no arco
zigomático dirigindo-se para baixo até à face externa
do ramo da mandíbula. Na sua contração bilateral
existe uma elevação da mandíbula e ligeira protusão e
na contração unilateral uma ligeira excursão
ipsilateral. Quando existe uma protusão da
mandíbula, pela porção superficial, e a força da
mordida é aplicada a porção profunda estabiliza o
côndilo contra a eminência articular1,12.
O músculo pterigoideu medial tem origem na fossa
pterigoideia e as suas fibras dirigem-se para baixo,
para trás e para fora inserindo-se ao longo da
superfície interna do ângulo da mandíbula1.
Apresenta tamanho e orientação da força semelhante
ao masséter. A sua contração bilateral eleva a
mandíbula e provoca uma ligeira protusão e a
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33
Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
contração unilateral uma excursão contra-lateral
bastante eficaz da mandíbula devido à orientação de
força oblíqua12.
O músculo pterigoideu lateral é apresentado como
tendo duas porções pois actuam de maneira distinta,
sendo uma superior e outra inferior. O músculo
pterigoideu lateral inferior tem origem na superfície
externa da lâmina pterigoideia e dirige-se para trás,
para cima e para fora inserindo-se principalmente no
colo do côndilo da mandíbula. A sua contração
bilateral provoca a protusão e depressão da
mandíbula. Uma contração unilateral promove
excursão contra-lateral da mandíbula. O músculo
pterigoideu lateral superior é consideravelmente
menor que o inferior e tem a sua origem na superfície
infra-temporal da grande asa do esfenóide e dirige-se
de forma quase horizontal para trás e para fora
inserindo-se na cápsula articular, no disco e no colo
do côndilo da mandíbula. Contudo, a inserção exacta
deste músculo no disco ainda é alvo de debate1. A sua
activação provoca uma força ântero-medial na cápsula
e no disco podendo esta ação muscular estar
envolvida no mecanismo patogénico do excessivo
deslocamento anterior e medial do disco (segundo
Lafreniere, Lamontagne e El-Sawy, em 199712).
Durante a abertura da boca, o músculo pterigoideu
lateral superior permanece inactivo, iniciando apenas
a sua activação quando em conjunto com os músculos
elevadores da mandíbula. Este músculo está
especialmente activo durante os movimentos contraresistidos que envolvem a elevação da mandíbula tais
como, mastigação ou cerramento dos dentes1.
Um facto interessante revela que aproximadamente
80% das fibras de ambos os pterigoideus laterais são
do tipo I, ou seja, são músculos com relativa
resistência à fadiga (de acordo com Erickson, em
1981; Mao, Stein e Osborn, em 19921).
Importa, desde já, fazer a ressalva que embora o
músculo digástrico não seja considerado um músculo
da mastigação, este tem um papel importante na
funcionalidade da mandíbula. Este apresenta duas
porções, uma posterior com origem na apófise
mastóide e inserção no osso hióide, e uma anterior
com origem na superfície lingual da mandíbula e
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inserção por um tendão comum à porção posterior.
Quando o digástrico direito e o digástrico esquerdo se
contraem, o osso hioide é estabilizado pelos músculos
supra e infra-hiodeus e a mandíbula realiza um
movimento de abertura e os dentes deixam de
exercer contacto1.
Em suma, os músculos paravertebrais, que fixam a
posição do crânio, e os músculos supra-hiodeus e
infra-hioideus, que fixam o osso hioide, são
indispensáveis para a execução dos movimentos da
mandíbula, pois é necessária uma base fixa para os
músculos, que têm uma ação sobre a mandíbula, se
moverem (de acordo com Sicher e Dubrul, em
197714).
Após a revisão de conceitos, é relevante então
perceber qual a relação entre a ATM e as restantes
estruturas adjacentes a esta.
Relação entre ATM, crânio e cervical
Rocabado, em 1979, observou a relação entre o
crânio e coluna cervical e refere que a maior parte do
peso do crânio, incide na parte anterior da coluna
cervical e nas articulações temporomandibulares.
Desta forma, o crânio mantém a sua posição
ortostática através de um mecanismo muscular
complexo, envolvendo músculos da cabeça, cervical e
cintura escapular. Consequentemente uma alteração,
em alguma destas regiões, poderá levar a distúrbios
da postura, não somente locais, como também nas
demais cadeias musculares do corpo humano e viceversa15.
Outros autores também referem que o
posicionamento da mandíbula em relação ao crânio
está
inseparavelmente
relacionada
com
o
posicionamento do crânio com a cervical (segundo
Ayub, em 1984; Dale, em 1999, Gillies, e colegas, em
1998; McKay, em 199913), e também que o
posicionamento do crânio altera a direção da ação
dos músculos que realizam a abertura da mandíbula
(segundo Koolstra, Eijden, em 200213).
Tendo em conta a anatomia muscular, assume-se que
a postura da cabeça pode influenciar a mandíbula (de
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
acordo com Darnell, em 1983; Goldstein, Kraus,
Williams e colegas em 1984; Mannheimer e Dunn, em
199112). Uma anteriorização da cabeça combina a
flexão da coluna torácica e cervical inferior e a
extensão da cervical superior, postura esta que alonga
os músculos infra-hioideus gerando, por sua vez, uma
tração do osso hioide no sentido inferior e posterior.
Desta forma os músculos supra-hioideus tracionam a
mandíbula no sentido de uma retrusão e depressão12.
Num estudo realizado por Ries e Bérzin, em 2007,
foram avaliados vários parâmetros como o índice de
oscilação, por exemplo, tendo em conta três
posicionamentos da mandíbula (posição de repouso,
de contração isométrica e de contração isotónica)
num grupo experimental com DTM e num grupo de
controlo. Foi então concluído que indivíduos com
DTM apresentam uma assimetria postural relativa em
comparação aos indivíduos sem esta condição.
Também Oatis, em 200913, refere que uma
anteriorização da cabeça tende a aumentar a tensão
da musculatura da região cervical, incluindo os
músculos supra-hioideus. Desta forma, foi realizado
um estudo pioneiro onde a avaliação da actividade
dos músculos superficiais da cervical, nomeadamente
o esterno-cleido-mastoideu e escaleno anterior, em
indivíduos com DTM, era o principal objectivo.
Estatisticamente não se observaram diferenças
significativas na atividade eletromiográfica destes
músculos, contudo, os indivíduos com DTM tendem a
manter uma maior actividade muscular em
comparação com indivíduos saudáveis17.
Oatis, em 200913, refere ainda que a postura do crânio
e cervical podem contribuir significativamente para o
mecanismo patogénico da ATM pelo que os utentes
com sintomatologia dolorosa nesta região devem
realizar uma avaliação postural. As disfunções da
articulação temporomandibular e dos músculos dessa
região anatómica poderão estar associados a
sintomas da coluna cervical superior (C0-C3), segundo
Feinstein, e colaboradores, em 195418. Assim, a
avaliação da região temporomandibular deve ser
sempre acompanhada pela avaliação da coluna
cervical superior18.
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Neumann, em 200212, refere ainda que uma fraca
postura a nível da cintura escapular também deve ser
tida em conta pois, o músculo omo-hioideu, com a
sua origem na escápula e inserção no osso hioide,
pode, indirectamente, gerar tensão sobre a
mandíbula.
Uma disfunção postural geralmente não influencia
apenas uma região do corpo e, desta forma, a
avaliação postural da cabeça, coluna cervical, torácica
e membros superiores deve ser realizada tanto na
posição ortostática como na posição de sentado18
pois, um fraco alinhamento da cabeça, coluna cervical
e cintura escapular não pode ser corrigido sem a
correção do alinhamento do tronco e cintura
pélvica19.
A maioria dos estudos, apesar de algumas evidências
discordantes, comprova que os distúrbios musculares
e posturais são frequentes em utentes com DTM e
estabelecem algum tipo de correlação entre o tipo de
oclusão, existência de sinais e sintomas de DTM,
dimensões crânio-faciais, anteriorização da cabeça e
desequilíbrio postural, embora nem sempre seja
possível explicar o mecanismo subjacente. Apesar
destas contradições, existe a necessidade de uma
abordagem biomecânica global quando se procede a
uma avaliação e elaboração de um plano de
tratamento no utente com DTM em que é
aconselhável um exame postural cuidadoso20.
Após a análise da literatura existente pode aferir-se
que existem muitas discordâncias entre a relação da
mandíbula com o crânio e deste com a coluna
cervical. Contudo, é necessário ter em conta todos
estes aspectos no que diz respeito a uma avaliação
cuidadosa contemplando todas estas estruturas de
forma a poder realizar um melhor diagnóstico e plano
de tratamento sobre a condição. Posto isto, seria
importante perceber quais os critérios de diagnóstico
mais utilizados aquando da avaliação de utentes com
este tipo de condição.
Critérios de diagnóstico
Segundo Wright, em 20055 e Okeson, em 20081, a
avaliação inicial deve envolver uma entrevista ao
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
utente contemplando os sintomas, potenciais factores
contributivos e potenciais factores de disfunção que
não sejam DTM, sendo esta a forma mais completa e
consistente no que diz respeito ao historial do utente.
Assim sendo, a formulação de questionários poderá
ser um coadjuvante na obtenção de dados relativos à
condição do utente de forma a melhor encaminhar o
exame físico.
No que diz respeito a escalas de avaliação, são vários
os estudos epidemiológicos e clínicos sobre a DTM
que utilizam um critério de diagnóstico padrão, o
Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular
disorders (termo doravante designado por RDC/TMD),
apresentado inicialmente por Dworkin e LeResche em
199221. Este critério de diagnóstico surge na tentativa
de ultrapassar a falta de critérios de diagnóstico claros
na classificação dos diversos subtipos de DTM, a falta
de critérios de diagnóstico válidos cientificamente na
medição de sinais e sintomas e a pesquisa de
alterações emocionais, comportamentais e factores
psicológicos (de acordo com Dworkin e LeResche, em
19928).
Este é um instrumento de avaliação constituído por
dois eixos, onde o primeiro faz um diagnóstico da
disfunção propriamente dita e o segundo realiza uma
avaliação psicossocial, importante para a averiguação
de estados de ansiedade e depressão, entre outros6. É
composto por quatro partes: um questionário ao
utente, uma ficha de exame clínico, especificações
para o exame e um protocolo de resultados para o
eixo I e o eixo II8.
No eixo I é feita a classificação entre três grupos:
Grupo I, desordens musculares; Grupo II,
deslocamentos do disco; Grupo III, doenças
articulares inflamatórias ou degenerativas. No eixo II é
feita a avaliação do grau de dor crónica, a depressão e
somatização6.
Este critério de diagnóstico foi traduzido para vinte
idiomas, sendo o método de diagnóstico mais
comum22 e forneceu um passo importante para um
sistema baseado na etiologia, disponibilizando
descrições operacionais bem definidas de forma a
distinguir casos de disfunção da ATM de outros assim
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como auxiliando na definição do subtipo de disfunção
da ATM (de acordo com Dworkin, LeResche, em 1992;
DeRouen, em 199521).
Em Portugal, o RDC/TMD foi traduzido e adaptado à
cultura portuguesa permitindo assim futuros
trabalhos de investigação na área da DTM,
preenchendo os requisitos necessários numa correcta
avaliação dos utentes e identificando os subtipos de
DTM8.
Tendo por base os pressupostos analisados, pode
avançar-se que a maioria dos estudos contemplou
entrevistas clínicas ou o RDC/TMD como meios de
diagnóstico da DTM e é possível, em Portugal, utilizar
este último critério na prática clínica.
Intervenção na DTM
A importância de uma abordagem multidisciplinar, em
situações de disfunção temporomandibular, é
salientada por diversos autores, pois, na generalidade,
a sua origem é multifactorial e uma abordagem com
diferentes profissionais é, geralmente, mais efectiva
do que uma abordagem singular15,5.
Um tratamento conservador na disfunção da ATM
continua a ser o mais eficaz em cerca de 80% dos
utentes com esta condição, envolvendo um diferente
número de especialistas que trabalham em equipa
multidisciplinar4.
A
fisioterapia
enquadra-se,
geralmente, nas terapias conservadoras que, na
grande maioria, são utilizadas em conjunto com
outros tratamentos (segundo Colt e Winber, em 1994;
Grieder, e colegas, em 19715.
Rocabado, em 197915 explicou a importância da
fisioterapia no tratamento da DTM através de
tratamentos como o calor superficial, calor profundo,
crioterapia, estimulação eléctrica transcutânea (TENS)
ou biofeedback, e que estes podiam activar a
circulação sanguínea, eliminar toxinas, acelerar
processos de reparação tecidular, aliviar a dor e
promover um relaxamento muscular.
Quanto ao uso da electroterapia, duas revisões
sistemáticas, não verificaram a sua evidência na
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
diminuição da dor, ainda assim, tratamentos com
níveis moderados de laser, assim como programas
com técnicas de relaxamento e biofeedback parecem
diminuir os níveis de dor e aumentar o grau de
abertura da mandíbula. Os autores referem que os
estudos relativos a estes resultados são fracos mas
devem ser tidos em conta23,24.
No que diz respeito à postura, Rocabado, em 1979,
refere que a ATM é uma articulação com musculatura
intimamente envolvida com a coluna cervical e
cintura escapular e, desta forma, quando ocorre
algum desequilíbrio nesta região poderá haver tanto
uma intervenção local ou uma reorganização postural
global pela fisioterapia15.
Utentes com DTM e sintomatologia da região cervical
ou dor difusa podem ser referidos para a fisioterapia
no sentido de tratar a região cervical5 pois este tipo
de utentes não obtêm os mesmos progressos no
tratamento que outros utentes com DTM e sem esse
tipo de sintomatologia (Rammelsberg, LeResche,
Dworkin e Mancl, em 2003; Raphael, Marbach e
Klausner, em 2000; Raphael e Marbach, em 20013).
Tendo em conta os exercícios posturais, Ayub,
Glasheen-Wray e Kraus, em 198425, descreveram um
estudo de caso onde davam ênfase ao
posicionamento da cabeça e a sua influência na
mandíbula. Desta forma, um indivíduo que
apresentava como principal queixa alterações da
arcada dentária, diminuição do tamanho dos dentes,
dor cervical e cefaleia há quatro anos, foi avaliado
pela odontologia e fisioterapia, em que o objectivo
desta última seria restabelecer a postura
anteriorizada da cabeça. Após 10 sessões de
tratamento, onde estavam incluídos mobilização
articular, exercícios activos, educação e elaboração de
um programa de exercícios, por exemplo, foram
comprovadas melhorias na anteriorização da cabeça.
Santiesteban, em 198926, apresenta também um caso
de uma utente com sintomatologia dolorosa e
bloqueio do movimento da mandíbula assim como
alterações posturais a nível da coluna cervical. O
tratamento consistiu em exercícios posturais a nível
da cabeça, cervical e tronco superior com contrações
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isométricas resistidas no consultório e em casa, assim
como técnicas de relaxamento e o uso de uma placa
de oclusão dentária durante a noite. Após uma
semana verificou-se uma diminuição dos bloqueios
articulares e da sintomatologia dolorosa. Após duas
semanas a utente referiu que não tinha bloqueios
articulares, a dor diminui significativamente, e a
anteriorização da cabeça também diminuiu, estando a
utente mais consciente da sua postura.
Um ensaio clínico aleatório controlado refere que
utentes com disfunção da ATM em que lhes são dados
exercícios de reeducação postural e auto-cuidado da
ATM, em média, reduzem 42% a sintomatologia da
DTM e 38% reduzem a sintomatologia da cervical.
Utentes com anteriorização da cabeça tinham uma
elevada probabilidade de melhorar a sintomatologia
derivada da DTM através dos exercícios e instruções27.
O uso de exercícios orais activos e passivos e
exercícios posturais são intervenções eficazes na
redução de sintomas associados à DTM e aumento do
grau de abertura da mandíbula, contudo não é
possível perceber qual ou quais as combinações mais
eficazes23,24.
A terapia cognitivo-comportamental é também um
elemento das terapias conservadoras a ter em conta e
é indicada para utentes com hábitos diários ou
factores psicossociais persistentes (Gremillion, em
20025) e engloba principalmente a inversão de
hábitos, relaxamento, hipnose, biofeedback, gestão de
stress e terapia cognitiva geralmente providenciada
por psicólogos5.
Apenas 5% dos utentes que se submetem a um
tratamento conservador não evoluem de forma
positiva e, então, é necessário uma intervenção
cirúrgica4. Numa revisão de literatura, Marzola,
Marques e Marzola, em 200215, referem uma forte
evidência da intervenção da fisioterapia no pósoperatório onde também se apresenta como fulcral
na recuperação do utente, promovendo um alívio da
dor e aumento da função articular e muscular num
considerável curto período de tempo, quando
comparados com utentes que não receberam este
tipo de tratamentos.
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Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
Wright e North, em 20093, sugerem situações onde é
recomendada a referenciação de utentes com DTM
para a fisioterapia referindo factores como coluna
cervical e sintomatologia proveniente desta área,
padrão postural e orientação/ensino do utente no que
diz respeito à sua condição ou mesmo em situação
pré e pós-cirúrgicas . Desta forma, o fisioterapeuta
também deve encaminhar utentes que referem dor
nocturna, onde o médico dentista poderá recorrer a
uma placa de oclusão no tratamento entre outros
métodos, e também quando há referência de dor de
dentes.
Embora a fisioterapia seja usada com o objectivo de
reduzir a sintomatologia associada à DTM, ainda se
encontra por estabelecer a evidência que suporta
cada tipo de tratamento específico, sendo necessária
a realização de ensaios clínicos aleatórios controlados
bem projectados onde seja avaliada a intervenção da
fisioterapia nas DTM, em que estes ensaios sejam em
grande número para que haja uma significância clínica
e que inclua resultados válidos e fidedignos23.
CONCLUSÃO
A disfunção da ATM não é um campo primário na
fisioterapia nem na odontologia, e o conhecimento
sobre esta condição varia consoante a formação
ministrada nas instituições de ensino superior
frequentadas e muito desse conhecimento é
geralmente obtido na formação pós-graduada. Poucos
fisioterapeutas têm formação especializada ou
extensa experiência no tratamento de utentes com
disfunção da ATM5 e a importância da formação e
conhecimento da anatomia e biomecânica da ATM é
essencial para uma avaliação cuidada, diagnóstico
apropriado e tratamento eficaz15,14.
Dos estudos acima referidos podemos concluir que,
apesar de alguns contrassensos sobre qual o
tratamento mais eficaz, a fisioterapia é parte
integrante no tratamento da DTM e tem um papel
fundamental nesta condição. Sendo o fisioterapeuta
por excelência um elemento conhecedor da estrutura
e função do corpo humano assim como da postura e
movimento, este é capaz de avaliar e intervir da forma
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mais adequada potencializando a funcionalidade do
utente. Facto este referido por Sahrmann, em 200219,
citando que a base educacional de um fisioterapeuta
assenta no conhecimento da anatomia, fisiologia e
biomecânica do corpo que constituem o princípio de
avaliação da performance muscular e do movimento
do utente.
O fisioterapeuta, além de trabalhar os sintomas,
através dos meios eletrofísicos e mecânicos como, por
exemplo, calor, crioterapia, TENS e biofeedback,
também trata a causa, pois a DTM muitas vezes vem
acompanhada por disfunções posturais. Assim, a
avaliação da postura global é importante, onde o
posicionamento da cabeça, coluna cervical, coluna
torácia, cintura escapular18, tronco e cintura pélvica19
são factores a ter em conta.
O tratamento fisioterapêutico inclui a prática de
exercícios desenvolvidos no sentido de auxiliar os
utentes a melhorar o seu controlo do movimento e
também instruções que permitem ao utente a
manutenção de uma postura correcta e o uso de
padrões de movimento correctos na sua vida diária19.
Tratamentos aplicados pela fisioterapia auxiliaram o
utente na obtenção de uma postura da cabeça e tórax
desejáveis25. Exercícios isométricos para cabeça e
cervical e exercícios direccionados para a
anteriorização da cabeça parecem tornar o utente
mais consciente da sua postura e sendo este capaz de
a corrigir26.
As placas de oclusão são o tratamento comummente
realizado por médicos dentistas3 e geralmente
benéficas na dor dos músculos da mastigação, dor na
ATM, ruídos na ATM e na mobilidade da mandíbula
(Bush, Abbot, Butler e Harrington, em 19985). Esta
ortótese deve ser utilizada como parte integrante de
um tratamento conservador com outras abordagens
terapêuticas e não isoladamente5.
Utentes com DTM e pouca adaptação psicossocial
apresentam grande melhoria sintomatológica quando
o tratamento é feito em conjunto com uma
intervenção cognitivo-comportamental (Dworkin,
Turner, Mancl, Wilson, Massoth, Huggins, LeResche e
Truelove, 20025).
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38
Contributo da fisioterapia na disfunção da articulação temporomandibular
O tratamento conservador é considerado o mais
eficaz e a fisioterapia está enquadrada neste tipo de
abordagem e, desta forma, a coordenação entre
profissionais de saúde, nomeadamente o médico
dentista, o fisioterapeuta e o psicólogo é importante
no que diz respeito à avaliação e intervenção, devido
à sua causa multifactorial, e tendo sempre como
objectivo o melhor e mais adequado tratamento do
utente.
Este estudo apresenta algumas fragilidades e/ou
limitações resultante das visões antagónicas e
dispersas dos autores que já se debruçaram sobre o
tema. Existe uma falta de consenso entre estudos
sobre a etiologia da condição assim como o seu
diagnóstico, uma vez que não há concordância sobre
qual ou quais os parâmetros de avaliação adequados.
Ainda assim, o RDC/TMD é o critério de diagnóstico
mais utilizado em estudos epidemiológicos e clínicos.
Este apresenta-se como um instrumento fidedigno,
válido e clinicamente útil pela sua capacidade de
identificar subtipos de DTM e realizar também uma
avaliação psicossocial. Contudo, é necessário, ainda,
uma futura avaliação em termos da sua fidedignidade
e validade6. Anderson e colegas em 2010 sugerem
ainda que uma maior utilização do RDC/TMD por
parte dos clínicos iria beneficiar o campo da DTM e,
para tal, retirar a palavra Research (pesquisa) do
nome poderá incentivar o uso mais amplo por parte
dos clínicos, passando a denominar-se Diagnostic
Criteria for Temporomandibular Disorders (DC/TMD).
Em Portugal, torna-se imperativo um entendimento
de que a disfunção da articulação temporomandibular
é um problema significativo para a população e que a
fisioterapia tem um papel fundamental nesta
condição. Desta forma são necessários mais estudos
que verifiquem o estado actual destas condições
clínicas no nosso país assim como estudos de
investigação acerca da relevância da fisioterapia em
Portugal na intervenção nesta condição no sentido de
ampliar a sua avaliação e intervenção.
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Apêndice – Metodologia.
Este estudo tem por base uma revisão de literatura onde se pretende explorar qual o papel da fisioterapia nas
disfunções da articulação temporomandibular (ATM). Desta forma foi realizada uma pesquisa através das
bases de dados PubMed e PEDro com as palavras-chave: physical therapy, physiotherapy, TMJ, TMD, posture,
etiology e rehabilitation. Foram selecionados artigos desde 1979 a 2011 com idiomas em inglês e português,
pois mesmo os artigos publicados nos fins da década de setenta ainda hoje são referidos em artigos recentes,
com um grande número de citações. Não foram encontrados artigos na base de dados PEDro, sendo apenas
obtidos artigos a partir da base de dados PubMed. Em suma, foram incluídos todos os artigos que fizessem
uma abordagem da disfunção temporo-mandibular, a sua etiologia, a sua influência na postura e o papel da
fisioterapia nesta prática, sendo excluídos os restantes que não fizessem referência a estes critérios, sendo
utilizados um total de 20 artigos para este estudo.
Salutis Scientia – Revista de Ciências da Saúde da ESSCVP
Vol.6 Março 2014
www.salutisscientia.esscvp.eu
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