O Utilitarismo de John Stuart Mill
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O Utilitarismo de John Stuart Mill
1 O Utilitarismo de John Stuart Mill Maria Cristina Leite Gomes (mestre) Doutoranda em Filosofia - UNICAMP Professora Adjunta das Faculdades Integradas Curitiba e do Instituto Vicentino de Filosofia Professora substituta da UTFPR Resumo: O pensamento de Mill e do Utilitarismo carecem ainda de discussões principalmente por garantir que há possibilidade de adoção de alternativas ao sistema capitalista que garantam a defesa das liberdades individuais como condição imprescindível para a felicidade humana e para o progresso da sociedade. Neste artigo apresentarei os pontos nucleares de sua teoria a fim de proporcionar uma análise adequada de suas propostas. Palavras-chave: John Stuart Mill, Utilitarismo, Felicidade, Justiça, Liberdade. 1. Da formação inicial à independência intelectual John Stuart Mill nasceu em Londres a 20 de maio de 1806, filho do filósofo James Mill e de Harriet Burrow. Recebeu do pai uma educação baseada no cálculo hedonista de Bentham e na doutrina das associações psicológicas. Essa educação consistia em expô-lo prematuramente a boas companhias, protegendo-o das más. E melhor companhia que seu talentoso pai seria difícil de encontrar, portanto, James Mill tomou para si essa tarefa, não tendo o jovem Mill freqüentado qualquer escola. Em 1821 tomou contato com a obra Treatise of Legislation, de Etienne Dumont, uma exposição das doutrinas de Jeremy Bentham, que o atingiu como uma revelação religiosa, fato que fez com que se dedicasse ao estudo dos filósofos radicais, à edição dos manuscritos de Bentham, a discussões promovidas por um grupo de jovens benthamistas, e a publicação de artigos e críticas para a Westminster Review, revista que os filósofos radicais fundaram por inspiração de James Mill e na qual travou caloroso debate com owenistas, coleridgianos e thompsionistas. Vem daí seu conhecimento dos socialistas utópicos, dos românticos e dos socialistas ricardianos. Para Mill essa atividade era a própria concepção de felicidade até que uma crise emocional aos vinte anos de idade o afastou do benthamismo puro e da rigorosa educação que seu pai lhe dera. Era claro para ele, desde que lera Bentham no inverno de 1821, que sua meta era ser um "reformador do mundo", que "a idéia 2 de que eu e outros estávamos empenhados na luta por promover esta melhora [geral do mundo], me parecia suficiente para preencher de interesse e ãnimo minha existência"1. Mas no outono de 1826 Mill teve uma crise nervosa e neste estado de ânimo se fez a seguinte pergunta: Suponha que todos os seus objetivos na vida estejam realizados, que todas as mudanças em instituições e oportunidades por você ambicionadas se efetivassem naquele mesmo instante: isto seria para você uma grande alegria e felicidade? (...) uma irreprimível autoconsciência respondeu: "Não!" Senti um aperto no coração: tudo aquilo em que fundamentava a minha vida desabou. Toda a minha felicidade residiria na busca incessante daquele objetivo. O fim deixara de ter encantos e de que modo poderia encontrar 2 interesse nos meios? Aparentemente eu não tinha motivos para viver. Resolveu, então, aproveitar para corrigir o que considerou um erro de sua educação: a deficiência para cultivar sentimento e a sua própria concepção de felicidade. As experiências deste período tiveram dois efeitos marcantes em minhas opiniões e em meu caráter: Em primeiro lugar, me levaram a adotar uma teoria de vida muito diferente da que antes havia posto em prática e que tinha muito em comum com a teoria da renúncia de si mesmo de Carlyle, da qual não tinha eu, até então, nenhuma noção (...) outra mudança importante (...) foi que, pela primeira vez, dei um lugar apropriado, como uma das primeiras necessidades do bem estar humano, ao cultivo interno do 3 indivíduo. No primeiro aspecto incorpora à sua convicção de que a felicidade é a prova de todas as regras de conduta e o fim a que se persegue na vida, a noção de que esta busca não pode ser direta, mas deve estar centrada em algum objeto que não seja a sua própria felicidade: a felicidade dos outros, a melhoria da Humanidade ou alguma arte ou projeto que não se persiga como um meio, mas como uma meta em si mesmo ideal. A segunda mudança levou-o à leitura de Wordsworth que resultou ser exatamente o que necessitava: Parecia-me encontrar neles uma fonte de alegria interior, de prazer comunicável e imaginativo que podia ser compartilhado com todos os seres e que não tinha conexão nem com a luta nem com imperfeições de nenhum tipo, e que se enriqueciam mediante qualquer melhora física ou social da 4 condição humana. Data desta época seu contato com outras modalidades de pensamento e sentimentos alheios a tudo o que até então havia lhe sido ensinado: fez contato com Coleridge e debateu com seus partidários Maurice e Sterling. Conheceu e ouviu 1 Cf MILL, Autobiografia, p. 140 - 141. Idem, p. 141 - 142. 3 Idem, p. 148 - 149. 4 Idem, p. 153. 2 3 Carlyle com simpatia. Encontrou muito que admirar nos sainsimonianos, cujo tom mais racional e as dúvidas quanto à justiça da propriedade hereditária recebiam sua aprovação. Ficou impressionado com a filosofia da história de Comte, tendo-o como chave para a compreensão social. Para Mill, o ponto de vista histórico dos seguidores de Saint-Simon, a apreciação do valor das velhas instituições feitas por Coleridge, enriqueciam o benthamismo, que negligenciava tais valores. As linhas gerais da filosofia da história de Saint-Simon e de Comte, em especial a teoria da alternância entre períodos críticos, em que a sociedade destrói formas antiquadas de vida e tende à desintegração, e períodos orgânicos quando novas formas de vida social em comum são desenvolvidas e restabelece-se a coesão social, foram importantes contribuições para a sua teoria de economia política. Mas não se tornou discípulo de ninguém. Este contato forneceu as diretrizes dos projetos de Mill para o problema da renovação social. Não bastava colocar de lado tudo o que fosse antiquado e obsoleto, era necessário analisa-los dentro do contexto histórico a que haviam servido, como um estágio anterior e necessário. Defendia também que um reformador deveria ter suas táticas vinculadas à sua época, sem pretensões de atingir soluções absolutas. A partir de 1830 Mill contribuiu com vários periódicos e a extensão de seus interesses permite notar sua tentativa em dar novo rumo ao radicalismo inglês. São deste período suas obras sistemáticas em lógica e economia política, domínios em que deu suas principais contribuições teóricas. Sempre preocupado com os problemas sociais pretendia criar um método inatacável para abordar as questões morais e sociais. Mill visualizou seu projeto de formular um método de investigação científica que possibilitava agregar uma nova lógica à antiga, publicando, em 1843, os dois volumes de seu System of Logic: Ractionative and Inductive. Em economia política o desenvolvimento de suas idéias costuma ser dividido em três períodos: o primeiro situa-se em torno de 1844 com a edição dos Ensaios sobre algumas questões duvidosas de economia política5. É caracterizado pela influência das idéias de David Ricardo. O segundo período é marcado pela publicação dos Princípios de Economia Política, em 1848. Nele, Mill defende a criação de propriedades para os camponeses, como solução para os problemas 5 Reunidos em Collected Works, nos volumes 4 e 5 sob o título: Essays on economics and society. 4 mais graves da Irlanda. Pouco depois se inicia o terceiro período, com a leitura de autores socialistas. Mill estava convencido de que os problemas sociais são tão importantes quanto os políticos. Separava as questões de produção e as de distribuição, pois não aceitava uma distribuição que condenasse a classe operária a uma existência de misérias. Apesar de não chegar a uma solução socialista, teve, o grande mérito de haver considerado os alicerces da sociedade. Para Bobbio Mill foi o primeiro entre os teóricos do liberalismo a ressaltar, no contexto da concepção liberal de Estado algumas instâncias colocadas pelo socialismo pré-marxista europeu: a exigência de uma repartição justa da produção entre todos os membros da sociedade, a eliminação dos privilégios de nascimento e a substituição gradual do egoísmo do indivíduo que trabalha e acumula unicamente em benefício próprio por um novo espírito comunitário. Além disso, enfatizando com clareza e distinção entre ciência e política econômica e aceitando intervenções estatais na economia, Mill foi, sem dúvida, o precursor da instituição fundamental da ideologia liberal6 socialista. Este terceiro período é marcado também por uma participação bastante decisiva de Harriet Hardy Taylor, que Mill conheceu em 1830 e com quem se casou em 1851. Apesar de os amigos considerarem excessivos os sentimentos de Mill para com Harriet, não a considerando nem tão bnita, nem tão inteligente quanto ele a julgava, Mill afirma que ela exerceu sobre ele grande influência, em especial na redação de On Liberty e na sua atitude em relação ao socialismo. É marcado também por seu trabalho na Companhia das Índias. Com o tempo tomado por questões burocráticas não lhe era possível dedicar-se à atividade intelectual, como era seu desejo. Harriet falece em 1858 e Mill busca consolo na publicação de uma série de livros, os quais haviam sido parcialmente escritos com sua colaboração. São trabalhos que versam sobre política e ética, e sistematizavam pontos de vista já expostos em artigos e ensaios, como Sobre a Liberdade e Idéias sobre Reforma Parlamentar, de 1859; Considerações sobre o Governo Representativo, de 1861. No mesmo ano publica Utilitarismo, obra que procura refutar algumas objeções levantadas contra a sua teoria ética além de esclarecer algumas interpretações não muito fiéis ao seu pensamento. Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton, de 1865, contesta as idéias do maior filósofo intuicionista da Inglaterra e Auguste Comte e o Positivismo, escrita neste mesmo ano, aborda dois aspectos do pensamento comteano: Mill é favorável a filosofia positivista, mas não poupa críticas a religião da humanidade por ser mais 6 BOBBIO, Norberto. Diconário de Política. p. 705 5 uma tentativa de se impor uma hierarquia clerical à já sofrida humanidade. Os escritos da última fase do pensamento de Mill mostram uma aproximação com a linguagem de Jeremy Bentham e de seu pai James Mill, como nunca antes houvera tido. Esta reaproximação está presente também na reedição, feita em 1869, da obra de James Mill Análise dos fenômenos do Espírito Humano, acrescida de ilustrações e notas explicativas de Stuart Mill. Retirado em Avignon, na França, desde 1860, mantinha viva suas preocupações teóricas e seu interesse pela humanidade. São desta época vários artigos sobre problemas jurídicos de doação, propriedade de terra e trabalho. Participou da primeira sociedade pela luta dos direitos de voto para as mulheres, que se transformou na União das Sociedades pelo Sufrágio das Mulheres. Publicou em 1869 o livro A submissão das Mulheres, escrito em 1861. Além destas participações sociais esteve por dois períodos no Parlamento, entre 1865 e 1868. Tendo vivido durante o período vitoriano, fortemente marcado pelas lutas entre a poliítica conservadorista de Gladstone e a mentalidade progressista de Disraeli, Mill se destaca por sua preocupação com os problemas sociais e políticos, em especial aos decorrentes da produção econômica e da distribuição de rendas injusta, que condenava os trabalhadores à inanição. Vivendo o período de extraordinário desenvolvimento do capitalismo industrial britânico, suas propostas coincIdem com algumas posições socialistas. A democracia tende a suprimir a individualidade e dominar as minorias, e sua preocupação era mostrar a importância da liberdade pessoal, do desenvolvimento de um caráter individual forte, esboçando as maneiras de encorajar seu crescimento. Faleceu em Avignon, a 8 de maio de 1873. 2. O Utilitarismo de Mill O pensamento de Mill deve ser analisado a partir de suas obras Utilitarianism e On Liberty, seguramente, como atesta E. Guisán7, as duas obras de maior expressão do ponto de vista da filosofia moral, constituindo “ajuda inegável” para a compreensão das transformações pelas quais Mill passou no desenvolvimento de sua doutrina. E. Guisán afirma ainda que toda análise da doutrina de Mill deve dar particular atenção aos pontos nucleares, em especial a um suposto naturalismo de Mill, ao seu 7 GUISÁN, E, História de la ética, p. 485. 6 respeito ou falta de respeito à individualidade e inviolabilidade das pessoas, às considerações ou desconsiderações da justiça dentro do esquema de promoção da maior felicidade do maior número. Uma vez tendo bem determinados os pontos centrais do seu pensamento, poderemos analisar de forma adequada suas propostas. Três conceitos servem de base para a doutrina moral de Mill: a Felicidade, a Justiça e a Liberdade. Vamos analisar cada um destes conceitos para procurar compreender seu pensamento. 2.1 A Felicidade Mill diz que o Utilitarismo é a crença que aceita como fundamento da moral a Utilidade, ou o princípio da maior felicidade8. Mantém que as ações são corretas (right) na medida em que tendem a promover a felicidade e incorretas (wrong) quando tendem a produzir o contrário da felicidade. Entende-se por felicidade o prazer e a ausência de dor, por infelicidade a dor e a falta de prazer. E este é o fundamento da teoria da moralidade, ou seja, que o prazer e a extinção do sofrimento são os únicos atos desejáveis da conduta humana. Como os seres humanos possuem faculdades mais elevadas que os apetites animais, a felicidade está na gratificação destas faculdades, admitindo-se, sobretudo, a superioridade dos prazeres mentais sobre os corporais. Com estas faculdades superiores podemos relacionar o sentido de dignidade, que constitui uma parte essencial da felicidade. Assim como Bentham e a tradição utilitarista, Mill acredita ser a felicidade a principal preocupação do homem, aquilo que busca com mais intensidade. Por isso o critério utilitarista é a felicidade. Não a sua maior quantidade total, nem a felicidade do agente, mas a felicidade do maior número de envolvidos. No princípio da utilidade, ou da maior felicidade, como denominado por Bentham, o fim último, com relação ao qual todas as demais coisas são desejáveis, é uma existência livre, na medida do possível, de dor e tão rica quanto seja possível em prazeres, tanto em relação à quantidade quanto à sua qualidade, constituindo o critério da qualidade e a regra para compará-la com a quantidade a preferência experimentada por aqueles que, nas suas oportunidades de experiência, estão mais 8 MILL, John Stuart, El Utilitarismo. p. 45. 7 bem dotados dos meios que permitem a comparação. O fim da ação humana é a busca da felicidade, guiada pelo critério da sua qualidade, este é também o critério da moralidade, isto é, a ação humana moralmente aceita. A conduta moral é aquela que busca a maior felicidade possível para o maior número de pessoas. A moral utilitarista reconhece nos seres humanos a capacidade de sacrificar seu próprio bem maior pelo bem dos demais, mas a única auto-renúncia que se apóia é o amor à felicidade ou aos meios que conduzem à felicidade dos demais ou da coletividade, ou de indivíduos particulares, dentro dos limites que impõem os interesses coletivos da humanidade. Entre a felicidade pessoal do agente e a dos demais, o utilitarista se obriga a total imparcialidade. Como forma de se aproximar mais deste ideal, as leis e organizações sociais devem procurar harmonizar os interesses de cada com os interesses do grupo. Deve também cuidar para que a educação e a opinião pública utilizem seu poder para estabelecer uma associação íntima entre sua própria felicidade e o bem estar do grupo. Deste modo nenhum indivíduo terá na sua própria felicidade um bem moral se para isto houver provocado dano a outros. Além disso, a multiplicação da felicidade é, conforme a ética utilitarista, o objeto da virtude ou a possibilidade de cada um tomar em suas mãos a felicidade dos outros, tornando-se um benfeitor público. Vista assim, a doutrina utilitarista pretende um novo modelo de homem virtuoso, onde não se pede sacrifícios do agente, mas sua participação na busca da felicidade do maior número. Mas estas são situações especiais. O que se deve ter sempre em mente é que cada indivíduo responde pela felicidade de um pequeno número. E que suas ações, ou omissões, repercutem neste grupo. Existe entre os utilitaristas, bem como em outras doutrinas éticas, uma larga margem de flexibilidade na aplicação de seus critérios. Também a diversidade de opiniões a respeito das questões morais não é exclusividade do utilitarismo, tendo sempre existido, desde que os homens se organizaram em sociedades. No entanto, o utilitarismo permite uma nova proposta de análise para decisão entre as diferentes opções existentes. Já seria de grande ajuda se a única função deste sistema fosse comparar utilidades em conflito. Mas faz mais que isto, permitindo uma nova abordagem das questões morais. Ao longo da historia, a humanidade vem aprendendo, por sua própria experiência, para onde tendem suas ações. Destas experiências dependem tanto a 8 sua prudência quanto toda a moralidade de sua vida. Através destas experiências as ações que formam o conjunto das regras morais são constantemente analisadas, tornando-se passíveis de melhoras sem limites. Isso não quer dizer que a cada ação praticada deva-se recorrer a um primeiro princípio, de caráter universal. Qualquer que seja o princípio fundamental da moralidade que venhamos a adotar precisará de princípios subordinados que tornem possível sua aplicação. Vale notar também que não existe sistema moral onde não se originem obrigações conflitantes, quando isto acontece é recomendável recorrer-se aos primeiros princípios para a eliminação dos conflitos, e também, nas obrigações morais de um modo geral, sempre estão implícitos princípios secundários que lhes dão suporte. Outra questão bastante freqüente em relação ao utilitarismo está relacionada a uma tendência por parte de alguns opositores em catalogá-la como uma doutrina ateia. Mill argumenta que, se é verdadeira a crença que Deus deseja a felicidade de suas criaturas, tendo sido este o propósito da criação, o utilitarismo não apenas não é uma doutrina ateia como é a mais profundamente religiosa entre as doutrinas morais. Além disso, os requisitos do princípio da utilidade estão de acordo com as revelações divinas sobre as questões morais, não entrando em conflito com a vontade de Deus. As questões relativas aos fins dizem respeito a coisas que são desejáveis. Pela doutrina utilitarista a felicidade é desejável, mais: é a única coisa desejável como fim, enquanto todas as outras são desejáveis para alcançá-la. Mas a única prova que se pode dar de que alguma coisa seja realmente desejável é o fato de o desejarmos realmente. Poderíamos oferecer como prova de que a felicidade geral é desejável o fato de que cada pessoa deseja, efetivamente, sua felicidade. Este é um dos pontos mais problemáticos da teoria de Mill. Segundo E. Guisán9 a falácia naturalista denunciada por G. E. Moore, em 1903, constituiu-se na mais obstinada crítica contra o Utilitarismo. Com efeito, não se pode deduzir a partir de uma premissa descritiva, restrita ao âmbito puramente subjetivo (a felicidade é desejada por todos), uma conclusão valorativa, um juízo de valor universal (a felicidade é, portanto, desejável). 9 Idem, p. 12. Introdução da tradução espanhola. 9 Berger10 aponta três abordagens na obra de Mill que pretendem sua teoria. São elas: 1. As pessoas desejam e procuram apenas a felicidade. 2. Felicidade é prazer e ausência de dor, desta maneira, as pessoas desejam e procuram apenas prazeres e anulação da dor. 3. Todas as outras coisas são desejadas e procuradas pelo prazer que contem, isto é, o prazer de tirar delas aquilo que se deseja, que não é a coisa em si. Se a felicidade é a única ação desejável por si mesma, isto basta como prova suficiente para justificar que seja um bem. Sendo um bem para cada um é também um bem para o conjunto das pessoas. Deste modo é um dos fins da conduta humana e, portanto, um dos critérios da moralidade. Algumas pessoas, se opondo ao critério utilitarista, inferem que existem outros fins nas ações humanas além da felicidade. Mas a doutrina utilitarista não nega que se deseje, por exemplo, a virtude, ou que a virtude não seja algo que deva ser desejado, mas apenas que deve ser desejado por ela mesma. Qualquer que seja a opinião dos moralistas utilitaristas com relação às condições originais que fazem com que a virtude só tenha como conseqüência ações virtuosas, e que as ações são virtuosas quando promovem outro fim além da virtude, mesmo tendo em conta essas considerações colocam a virtude a frente das coisas que são boas como meios para um fim último, e reconhecem, como fato psicológico, a possibilidade de que constitua para o indivíduo um bem em si mesmo, sem buscar outro que não este. Também um estado de ânimo não é adequado ao princípio da utilidade porque não é o melhor estado que conduza à felicidade geral, a menos que seja um amor à virtude desejável em si mesmo. A felicidade compreende várias coisas e cada uma delas deve ser desejável por si mesma. O princípio da utilidade não deve considerar qualquer prazer determinado como um meio para algo coletivo - a Felicidade. Devem ser desejados e desejáveis em si e por si mesmo. Além de meios são partes do fim. A virtude, de acordo com a doutrina utilitarista, não é parte do fim, mas pode chegar a sê-lo se vista como parte da felicidade. A virtude é um meio para outra coisa e por sua associação com o que é meio passa a ser desejada por si mesma, com maior intensidade. Assim como o dinheiro que, de um meio para se conseguir a 10 BERGER, Fred R. Hapiness, Justice and Freedom - The moral and political philosophy of John Stuart Mil. p. 32. 10 felicidade se converte no principal característica que um indivíduo tem da felicidade. Outros grandes objetivos da vida humana são também vistos deste modo, como o poder e a fama. O que antes se desejava como meio para obter a felicidade desejase agora por si mesmo, mas, não obstante isso, é desejado como parte da felicidade. Seu desejo não é distinto do desejo de felicidade, tudo está incluído nela. A felicidade não é uma idéia abstrata, mas sim um todo concreto, composto de várias partes. A virtude, ao contrário do amor ao dinheiro, ao poder ou a fama que não raro tornam o indivíduo nocivo à sociedade, é a que promove mais benefícios para os demais, quando cultivada de forma desinteressada. Conseqüentemente, o critério utilitarista tolera e aprova todos os outros desejos adquiridos, desde que não sejam prejudiciais à felicidade geral, e recomenda o cultivo da virtude por considerá-la, acima de tudo, importante para a felicidade. De todas estas considerações segue-se que não existe nada que seja desejado além da felicidade. Tudo que é desejado é uma parte da felicidade. Quem deseja a virtude está consciente que ela lhe proporciona prazer ou que sua falta lhe causa dor, ou por ambas as razões. Se isto é psicologicamente verdadeiro, se a natureza humana não deseja nada que não seja a felicidade ou um meio para sua conquista, esta é a prova de que estas coisas são as únicas coisas desejáveis. Sendo assim a felicidade é o único fim da ação humana e sua promoção o único critério de julgamento da conduta humana. Deve, portanto, constituir o critério da moralidade, visto que a parte está incluída no todo. Segundo Mill, a decisão se isso é realmente assim, se a humanidade realmente não deseja nada por si mesmo a não ser o que lhe produza prazer, é factível do mundo da experiência que depende de testemunhos imparciais. Os testemunhos demonstram que desejar uma coisa e considerá-la agradável, e sentir aversão por uma coisa e considerá-la dolorosa, são fenômenos inseparáveis. Assim, considerar a um objeto desejável e considerá-lo agradável é a mesma coisa e desejar algo que não seja agradável é uma impossibilidade física e metafísica. Poderíamos questionar se a vontade é algo distinto do desejo. Isto é, que uma pessoa realize seus propósitos sem pensar no prazer que possa obter dele mesmos se superados pelos sofrimentos que sua execução possa ocasionar-lhe. A 11 vontade, que é um fenômeno ativo, é distinta do desejo, um estado de sensibilidade passivo, e, mesmo sendo produto da vontade pode tomar vida própria até o ponto em que, no caso dos fins habituais, em vez de querê-los porque os desejamos, os desejamos porque os queremos. Este é um exemplo da força do hábito, às vezes inconsciente, outras vezes acompanhada de volição consciente que se torna habitual, como a aquisição de hábitos viciosos e, por último, o caso em que o hábito da vontade não é contrário à intenção geral, mas conseqüência dela. A distinção entre vontade e desejo é um fato psicológico real de grande interesse que consiste no seguinte: a vontade é modelada pelo hábito de forma que podemos querer por hábito aquilo que já desejávamos por si mesmo, ou que desejamos porque queremos. Tomando em consideração a pessoa em que a vontade virtuosa é fraca, como fazer para fortalecê-la? Diz Mill que se deve conseguir que ela deseje a virtude, que a contemple como algo prazeroso, ou que veja sua carência como dor. Associando, assim, a ação devida com o prazer e a indevida com a dor e realçando o prazer que está naturalmente implicado em um e a dor que se sofre no outro. O que resulta do hábito não é necessariamente bom. Se assim fosse o fim da virtude não estaria associado a prazer ou dor, que garantem a constância da ação na ausência do hábito. Tanto em relação aos sentimentos quanto à conduta, o hábito é o único que proporciona segurança. A vontade de agir corretamente faz com que se possa confiar nos sentimentos e condutas de uma pessoa, ou seja, o estado de vontade é um meio para o bem, não um bem em si. Também não entra em conflito com a doutrina de que não existe nada bom para o ser humano senão na medida em que o bem prazeroso seja um meio para conseguir o prazer ou eliminar a dor. Para que a felicidade humana possa efetivamente se realizar duas condições são necessárias: a liberdade e a justiça. Segundo Ana de Miguel Alvarez11 a liberdade se relaciona com a dignidade pessoal e o direito de desenvolver um projeto pessoal enquanto que a justiça determina as regras que permitem viver este projeto em segurança. Tendo alcançado estes ideais o interesse em questão será o bem público, que se não 11 ALVAREZ, Ana de Miguel, Elites y participacion politica en la obra de John Stuart Mill. p. 82 12 tornar mais feliz o agente pode, pelo menos, tornar mais felizes os que com ele convivem. 2.2 A Justiça Mill estabelece a conexão entre justiça e utilidade ou, nas suas palavras, tenta resolver um dos mais fortes obstáculos de que a doutrina da utilidade, ou da felicidade, tem encontrado, ou seja, estabelecer o que é correto e incorreto e confrontá-los com a idéia de justiça. Sua preocupação é a de estabelecer se a realidade da qual o sentimento de justiça corresponde é tal que precise de alguma revelação, isto é, se a justiça ou injustiça de uma ação é algo distinto de todas as suas demais qualidades ou apenas uma combinação de algumas destas qualidades apresentadas a partir de um ponto de vista especial. Nota-se que, objetivamente, os preceitos da justiça coincIdem com parte do âmbito da conveniência em geral, na medida em que o sentimento subjetivo de justiça é distinto do que comumente se origina da simples conveniência e, a não ser em casos excepcionais, é ainda mais imperativo em suas exigências. Mas, para encontrar os atributos comuns faz-se necessário observar os casos concretos, mesmo que de forma rápida, sem aprofundar nenhuma situação particular. Mill busca, mas formas denominadas injustas, alguma característica que seja comum a todas. Assim, portanto: 1. Considera-se injusto privar alguém de sua liberdade pessoal, sua propriedade ou qualquer outro objeto que lhe pertença legalmente, isto é, é justo respeitar e injusto violar os “Direitos Legais” de uma pessoa. 2. Considera-se injusto privar a uma pessoa ou negar-lhe aquilo a que tem “Direito Moral”. Mill entende por direito moral o que os jusnaturalistas chamam de direito natural, isto é, se uma lei para beneficiar uns provoque o prejuízo de outros a sua violação é apoiada por um critério não de tipo legal, mas da própria moralidade da ação. 3. É justo, de forma universal, que toda pessoa receba aquilo que merece, de bom ou de mal. É injusto que receba um bem ou sofra um mal imerecido. Deste ponto deve-se ressaltar que, por mérito, entende-se que uma pessoa merece o bem se age corretamente e o mal se incorretamente. 4. É injusto faltar a palavra dada a alguém. Como em outras obrigações derivadas da justiça, esta também não se considera como absoluta, mas sim 13 como suscetível de ser substituída por uma obrigação de justiça que lhe seja mais forte. 5. A justiça não pode ser parcial. A imparcialidade, no entanto, não parece ser considerada como um dever em si mesmo, mas um instrumento para algum outro dever. Além disso, mantendo-se a imparcialidade, não nos deixamos condicionar por motivos distintos que promoveriam condutas distintas àquelas que as considerações requeriam. Ligada intimamente a esta idéia de imparcialidade está a de igualdade. Neste sentido, mais que em outros, a noção de justiça varia de acordo com as pessoas, adequando-se à noção que cada um tenha de utilidade. É comumente aceito que a igualdade é uma exigência da justiça exceto quando consideram que razões de conveniência requerem a desigualdade. Pode-se dizer que Mill estabelece uma hierarquia que determina a justiça ou injustiça de uma ação de acordo com os interesses de um indivíduo ou grupo. Neste caso Mill argumenta que, aqueles que consideram que a utilidade requer diferenças de hierarquia, não consideram injusto que a riqueza e os privilégios sociais se repartam desigualmente, mas, os que consideram que esta desigualdade é inconveniente também a consideram injusta. A idéia de lei e de seus preceitos é predominante na noção de justiça e isto é certo se considerarmos que o sentimento de injustiça se vincula a todas as violações de leis e não apenas às violações das leis que deveriam, de fato, existir. Inclui-se neste grupo as leis que deveriam existir e não existem e as leis existentes porém, contrárias ao que deveria ser. Mill acredita que a idéia de uma proibição legal continua sendo a idéia matriz da noção de justiça, no entanto, a obrigação originada desta noção de justiça em nada difere da obrigação moral em geral. A idéia de uma sanção penal que é a essência da lei faz parte da própria concepção de injustiça, como de toda ação incorreta, Esta distinção é necessária para evitar que se reduza à justiça toda a moralidade. A idéia de justiça supõe duas coisas: uma regra de conduta e um sentimento que sancione a regra (um desejo de que aqueles que infrinjam a regra sofram um castigo). Ligado a esta idéia encontramos a de Direito, isto é, quando dissemos que algo constitui o direito de uma pessoa queremos dizer que pode exigir, com toda razão, que a sociedade a proteja, quer seja mediante a lei, quer seja por meio da educação e da opinião pública. 14 Ter direito é, portanto, ter algo cuja posse será defendida pela sociedade. E esta é a razão da utilidade geral. Esta ânsia, que convém a um elemento racional mas também a um sentido animal de vingança, tem sua justificação moral no tipo de utilidade a que se refere, já que o interesse envolvido é o da segurança, que é experimentado por todos como o interesse mais vital. Ainda que para Mill qualquer pretensão de justiça não fundamentada na utilidade seja discutível, considera que a justiça que está fundada na utilidade é a parte mais importante, mais sagrada e vinculante de toda a moralidade. Assim, por justiça entende-se o nome de certas classes de regras morais que se referem a condições essenciais do bem estar humano, na forma mais direta e conseqüentemente mais absolutamente obrigatórias que todas as outras regras que possam orientar nossa vida. Assim, as regras morais que proíbem que uns causem danos a outros são mais vitais para o bem estar humano que se lhes faltar alguém em quem confiar. De modo geral, a maioria das máximas de justiça, às quais se apela nas relações humanas, são simples instrumentos para tornar efetivos os princípios de justiça. Teríamos, então, como corolários destes princípios, tratar o bem com bem e o mal com mal. Este critério abstrato de justiça social deveria ser normativo para todos. Este princípio implica, necessariamente, o significado da utilidade, o princípio da maior felicidade para o maior número, que quer dizer precisamente que a felicidade de cada um deve estar ao menos em igual grau que a felicidade de qualquer outro. Para Mill, respeitadas estas condições a frase de Bentham “que cada um conte como um, ninguém como mais de um”, deveria ser a explicação para o princípio da utilidade. A justiça é, portanto, o nome de determinados requisitos morais que, coletivamente, tem um valor mais alto na escala de utilidade social e são de uma obrigatoriedade maior que os outros. 2.3 A Liberdade Em ensaio escrito em 1859, Stuart Mill defende que para se viver a liberdade é necessário a escolha entre múltiplas possibilidades. A questão principal, no entanto, não é a liberdade do querer, mas a liberdade civil ou social, isto é, a natureza e os limites do poder exercidos pela sociedade sobre o indivíduo. Mill 15 procura um ajuste entre a independência individual e o controle social. Mill pretende estabelecer um princípio simples para orientar as intervenções da sociedade no individual, quer enquanto uso de força física (penalidades legais), quer para coerção moral da opinião pública. Este princípio consiste em que a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual ou coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. Impedir dano a outrem é o único propósito pelo qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma sociedade civilizada contra a sua própria vontade. O próprio bem do indivíduo, quer seja material ou moral, não se constitui em justificação suficiente. Mill reconhece, no entanto, que este princípio simples precisa ter seu alcance delimitado. Para Feinberg12 a restrição da liberdade de alguém poderia ser justificada por seis finalidades e princípios, quais sejam: 1. para impedir que se cause dano a outras pessoas, seja: a) dano a indivíduos (o princípio do dano privado), ou b) enfraquecimento das práticas institucionais que são de interesse público (o princípio do dano público); 2. Para impedir ofensa a outrem (o princípio da ofensa); 3. Para impedir dano ao próprio indivíduo (paternalismo legal); 4. Para impedir ou punir faltas morais, isto é, para fazer respeitar a moralidade como tal (moralismo legal); 5. Para beneficiar o indivíduo (paternalismo extremo); 6. Para beneficiar outras pessoas (princípio do bem - estar). Para Mill, a única parte da conduta por que alguém responde perante a sociedade é a que concerne aos outros. No que diz respeito a ele próprio, a sua independência é, de direito, absoluta. Para Bernd Gräfrath13, "à primeira vista, parece que só o princípio 1. Impedir dano a outrem" é compatível com o liberalismo e o 'princípio muito simples' de Mill parece se limitar a prescrever a prevenção do dano".14 Para Cowling15 On Liberty não é um livro tão liberal quanto parece. Na sua 12 FEINBERG, Joel. Filosofia Social. p. 58 Texto preparado a partir da obra de GRÄFRATH, Bernd, John Stuart Mill: "Über die Freiheit". Schöningh, Paderborn, 1992, para a disciplina Ética I do mestrado em Filosofia - 1999, pela Profª. Drª. Maria Cecília M. de Carvalho. 14 Idem, p. 05 15 COWLING, Maurice. Mill and liberalism. apud FARRELL, M. D. Métodos de la ética - El Utilitarismo. p. 190. 13 16 visão, Mill procurava defender as elites da dominação de medíocres, tentava propagar o individualismo dos mais elevados para protegê-los da mediocridade da opinião como um todo. Assim, a distinção que Mill impõe entre prazeres superiores e inferiores e entre pessoas com e sem experiência requer a intervenção paternalista em muitas áreas da conduta humana, o que torna sua teoria menos liberal que a de Bentham. Mill encara a utilidade como a última instância em todas as questões éticas, mas a utilidade baseada nos interesses permanentes do homem como ser progressivo. Interesses que autorizam a sujeição da espontaneidade individual ao controle exterior somente quanto às ações de cada um concernentes ao interesse alheio. Uma pessoa quer por suas ações, quer por sua inação, pode causar dano a outra e é justo que, em ambos os casos, responda pela sua injúria. Em tudo que diz respeito às relações do indivíduo, ele é, legalmente, responsável por aqueles cujos interesses são inquietados, sendo também responsáveis perante a sociedade, enquanto protetora destes interesses, se for necessário. A esfera da liberdade humana compreende, em primeiro lugar, o domínio íntimo da consciência, isto é, no seu mais compreensivo sentido - a liberdade de pensar e de sentir -, liberdade absoluta de opinião e de sentimentos sobre qualquer assunto, seja prático, especulativo, científico, moral ou religioso; Em segundo lugar requer a liberdade de gostos e de ocupações, de agir como preferirmos, sujeitos às conseqüências que possam resultar. Isto implica não sofrer impedimentos por parte de outrem enquanto nossas ações não os prejudiquem; Em terceiro lugar, desta liberdade individual segue-se a liberdade de associação entre os indivíduos, para a execução de qualquer propósito que não envolva danos, supondo-se, aí, que as pessoas associadas sejam emancipadas e tenham se unido sem o uso de constrangimento ou ilusão. Assim a única liberdade que merece o nome é a de procurar o próprio bem pelo método próprio, sem tentar tomar do outro o que é seu ou impedir seus esforços para obtê-lo. Mill segue deduzindo as conseqüências que o levam a afirmar a importância da liberdade de pensamento e de discussão, ou seja, que o mal específico de se impedir a expressão de uma opinião está em que se rouba o gênero humano, a posteridade e as gerações presentes, os que discordam da opinião mais até dos que a sustentam, pois perdem a oportunidade de trocar o erro pela verdade, a percepção clara e a viva impressão da verdade. 17 A completa liberdade de contestar e refutar a nossa opinião é o que verdadeiramente nos justifica de presumir a sua verdade para propósitos práticos e só nesses termos o homem pode, pelas suas faculdades, possuir uma segurança racional de estar certo e assim orientar sua conduta. Podendo corrigir seus erros através da discussão e da experiência pode o homem considerar seu juízo melhor que o de qualquer outro que não tenha se mostrado aberto às críticas, à possibilidade de refutação de suas opiniões. Chamar de certa alguma proposição sem permitir àqueles que poderiam negá-la o uso da palavra não é sentir-se seguro desta doutrina, mas arrogar-se infalibilidade. É a ousadia de decidir pelos outros, sem permitir-lhes o que possa ser dito em contrário. Para determinar se o individualismo é um dos elementos do bem estar, Mill examina se as mesmas razões que regem a liberdade de opinião não permitem ao homem agir, isto é, levando a liberdade de ação para a prática da sua vida, pode agir segundo suas opiniões sem causar dano físico ou moral aos seus semelhantes. Mill não pretende que as ações sejam tão livres quanto as opiniões e mais, as opiniões perdem a sua imunidade se a situação em que se exprimem constituírem um incitamento positivo a algum ato nocivo. Atos que produzam dano a outrem podem ser refreados se necessário até pela interferência ativa da coletividade. Assim a liberdade do indivíduo é em grande parte limitada, evitando tornar-se prejudicial aos outros. Sustenta, porém, que nas coisas que não digam respeito aos outros a liberdade individual deve se afirmar. O livre desenvolvimento da individualidade deve ser visto como um dos elementos da essência do bem-estar, não apenas um elemento constitutivo da civilização, instrução, educação e cultura, mas a condição necessária para que estas se dêem. Vista assim não haveria perigo de que a liberdade fosse subestimada e a separação entre a liberdade e o controle social não seria problemática. Existe também, por parte de Mill, uma grande preocupação com a uniformização crescente das massas e com a escolha baseada em costumes. Diz que as faculdades humanas da percepção, do juízo, do sentimento discriminatório, da atividade mental e mesmo da preferência moral requerem o exercício da escolha. Aquele que escolhe por si próprio, emprega todas as suas faculdades. Mill insiste na importância de se deixar o gênio desenvolver-se livremente, tanto no pensamento quanto na ação, pois o gênio possui a originalidade de pensamento e de ação, pois deles, o mais das vezes, deve vir a iniciativa de todas 18 as coisas. Deve-se cuidar para não permitir ao homem de gênio apoderar-se, através da violência, do governo, ou fazer que os outros executem as suas ordens a despeito dos seus próprios desejos. Isto seria não apenas incompatível com a liberdade mas também causador de danos ao próprio homem. Deve-se dar as coisas não costumeiras a maior liberdade de expansão, permitindo assim que se convertam em costumes se for o caso, isto é, permitindo criarem-se formas melhores de ação e costumes, alertando para os riscos do conformismo social imposto pela maioria. Mill reforça o fato de que para exercer a liberdade é necessário estar aberto às opiniões, à diferença, sem permitir que se reduza a vida a um tipo uniforme, incapaz de assimilar a diversidade. Deve haver perfeita liberdade, legal e social, de cada um praticar e suportar as conseqüências de suas ações, saindo do âmbito da liberdade para o da moralidade ou lei quando se verifica um prejuízo definido ou existe um risco definido de prejuízo a um indivíduo. Ao Estado cabe informar os indivíduos, permitindo-lhes que saibam escolher, prevenindo acidentes, advertindo-os quanto aos perigos. Mas quando não existe a certeza do perigo apenas a pessoa pode julgar da sua conveniência sobre correr um risco. Deve, ao mesmo tempo, respeitar a liberdade de cada um no individual e manter um controle sobre o exercício do poder de uns sobre os outros. Para Mill a atividade governamental deve estimular o desenvolvimento dos indivíduos. Se o governo troca suas atividades pela dos indivíduos, agindo sobre eles por pressão e dominação, e não pelo desenvolvimento individual, instala-se o mal. Subestimar a capacidade dos homens, por interesses mesquinhos, ou acreditando ser mais fácil, assim, dominá-los é, ao contrário, descobrir que nada grandioso poderá ser feito, por carência de força vital. 3. De Mill aos nossos dias Estudar Mill não é importante apenas porque ele percebeu que existe possibilidade de aperfeiçoamento no capitalismo, ele nunca renunciou aos seus valores liberais, lutando sempre por fazer com que as pessoas compreendessem que as liberdades e os direitos políticos são indispensáveis para que a igualdade e a justiça social permaneçam no seio da sociedade. A liberdade, entendida como um direito à diversidade, sustentada por Mill em On Liberty, é compatível com o seu critério de igualdade, enquanto uma possibilidade que deve estar permamentemente aberta para os indivíduos, de não 19 se verem reduzidos a uma simples parte do todo social. O aperfeiçoamento que Mill defende para a sociedade cabe também ao ser humano, e nisto reside a diferença de seu Utilitarismo. Se o método de Bentham garante clareza e precisão falta-lhe o que Mill chama de Imaginação, isto é, a faculdade que permite aos seres humanos compreenderem outros seres humanos, suas circunstâncias e seus sentimentos. No seu System of logic, Mill elabora um quadro ampliado da conduta e da motivação humana e neste a ação moral é apenas uma das esferas. Este quadro chama-se "Arte da Vida" e é composto pela Moral que se dirige à nossa consciência e razão e que avalia as ações em termos de certo e errado; pela Estética que se dirige à nossa imaginação e em que as ações podem ser admiráveis ou vis; e pela Conveniência, ou seja, o aspecto simpático que envolve nossos sentimentos de simpatia e compaixão e em que predominam termos como amável e desagradável. Deste modo, a moralidade de uma ação depende de suas conseqüências previsíveis, enquanto sua beleza e sua amabilidade e as avaliações negativas correspondentes dependem das qualidades evidenciadas pela ação. Se a motivação das ações humanas continua sendo o grande debate da filosofia e do direito, Mill não pode ficar de fora. Suas análises e a forma como interpreta as várias correntes do século XIX se apresenta como uma ferramenta que pode ampliar significativamente esse debate. Referências bibliográficas: ALVAREZ, Ana de Miguel. Elites y participacion politica en la obra de John Stuart Mill. Tese de doutorado. Universidad Autonoma de Madrid, 1990. mimeo. BERGER, Fred. Happiness, Justice and Freedom - The moral and polithical philosophy of John Stuart Mill. University of California Press, 1984. COHEN, Marshall (org.). The Philosophy of John Stuart Mill. Ethical, Political and Religious. Nova Iork, The Modern Library, 1961. CRISP, Roger. Mill on Utilitarianism. Londres, Nova York, Routledge, 1997. FARRELL, Martin Diego. El liberalismo frente a Bentham y Mill. In Telos, vol. I, nº 1, 1992. pp. 23-54. _____. Metodos de la etica. Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1995. _____. El derecho liberal. Buenos Aires, Abeledo Perrot, s.d. FEINBERG, Joel. Filosofia Social. Trad. de Alzira Soares da Rocha e Helena Maria Camacho. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974. GRAY, John. Mill on Liberty: a defence. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1983. _____. O Liberalismo. Trad. de M. H. Costa Dias. Lisboa, Estampa, 1987. MILL, John Stuart. On Liberty. ed. por M. Cohen. Nova York, The Modern Library, s.d. _____. Sobre a Liberdade. Trad. de Alberto Rocha Barros. Petrópolis, Vozes, 1991. _____. El Utilitarismo. Trad. de E. Guisán. Madrid, Alianza, 1984. 20 _____, Princípios de economia política com algumas de suas aplicações à filosofia social. Introdução de W. J. Ashley. Apresentação de Raul Ekermann. Trad. de Luiz João Barauna. São Paulo, Nova Cultural, 1986, c1983. (Coleção Os Economistas). _____, Autobiografia. a cura di Franco Restaino. Bari, Laterza, 1976. _____, Mill on Bentham and Coleridge. Westpont Greenwood, 1987. (reimpressão da edição publicada em 1950 por Chatto & Windus.)
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