Leandro Seawright

Transcrição

Leandro Seawright
0
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PODER E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA:
UMA HISTÓRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL
NA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1960
Por
Leandro Seawright Alonso
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
1
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PODER E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: UMA HISTÓRIA DE UM CISMA
PENTECOSTAL NA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA NA DÉCADA
DE 1960.
Por
Leandro Seawright Alonso
Orientador:
Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião, para
obtenção do grau de Mestre.
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
2
LEANDRO SEAWRIGHT ALONSO
PODER E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA:
UMA HISTÓRIA DE UM CISMA PENTECOSTAL
NA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA NA DÉCADA DE 1960
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião, para a
obtenção do grau de Mestre.
Área de Concentração: Teologia e História
Data da defesa:
Resultado_________________________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth _______________________________________
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos________ __________________________
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
Prof. Dr. Israel Belo de Azevedo____________________________________
FACULDADE BATISTA DO RIO DE JANEIRO
3
Aos meus pais,
Hélio e Roseli
À minha irmã,
Raquel
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por me inventar, me lançar e cuidar de mim, dando-se e
encarnando-se para salvar minha realidade. Não entendo muito, mas também agradeço pelo
ministério pastoral, estranho privilégio de sofrimento e alegria. Para mim, Deus é pessoal –
nos damos bem!
Agradeço à minha mãe por seu exemplo de vida e amor. Por jamais desistir
de me amar e cuidar de mim. Por ser amiga, intercessora, ouvinte, conselheira e por ter forte
influência em minha fé e ministério. Por vencer em sua área de atuação jurídica e pedagógica
e me levar a vencer. Por chorar quando chorei e se alegrar quando me alegrei. Porque
trabalhou para me sustentar e, não obstante, agigantou-se em passos acadêmicos tão largos.
Agradeço por se transcender em tudo o que sabemos ter acontecido e ter me ensinado lições
preciosas que levarei durante toda a vida, pois lhe prometo militância em todas as boas causas
que me ensinou desde a tenra idade. Agradeço- lhe, também, por me ensinar a ser pastor, pois
seus ensinamentos prepararam um ministro do evangelho, nas mínimas atitudes e no exemplo
de respeito ao próximo e à dignidade humana.
Ao meu pai que, sempre com muito cuidado, me aconselhou em diversos
momentos de minha vida, orientando- me sobre o futuro e as dificuldades do percurso.
Agradeço por seu exemplo de proteção e incentivo, bem como por aceitar minha escolha
quando, aos 17 anos, saí de casa, no interior do Estado de São Paulo, para cursar Teologia e
seguir minha vocação pastoral.
À minha irmã – você sempre me ajudou, maninha – compreendendo- me e
apoiando-me com amor e boa vontade. Obrigado por me animar em meus intentos pessoais e
acadêmicos, jamais deixando de me ouvir. Agradeço- lhe, inclusive, por assistir às minhas
aulas de filosofia, ainda que eu estivesse com a cara inchada e a voz rouca, no primeiro ano
do mestrado, quando voltava para casa às três da manhã [risos].
Aos meus avós paternos – Vô Alonso e Vó Noêmia, muito obrigado pela
acolhida em São Paulo e pelo cuidado durante o período de minha graduação. Agradeço- lhes
pela ternura com que me receberam, sempre com um sorriso e muito afeto. Agradeço- lhes
porque sempre me incentivaram nos estudos, inclusive nos momentos de maior tensão e
dificuldade. Vocês são muito importantes para mim, pois sem a ajuda preciosa que me deram,
muitas coisas teriam sido impossíveis.
5
Aos meus avós maternos, Vô Pipe (in memoriam) e Vó Dusolina. Agradeço
pelo exemplo de garra e amor. Vó, obrigado por torcer por mim e me incentivar toda vez que
ouviu sobre meu trabalho. Eu a tenho como exemp lo de fé e cuidado familiar, bem como de
grande mãe, matriarca da família.
Aos meus tios, Olídio e Solange, muito obrigado pelo constante apoio em
forma de carinho, motivação e boas percepções do meu trabalho de pesquisa. Vocês sempre
estiveram ao meu lado nos momentos decisivos da minha vida.
Ao Prof. Dr. Lauri E. Wirth, por me oferecer com mestria uma orientação
acadêmica consistente, pela paciência com minha infantilidade durante o mestrado. Obrigado
por me embasar e por ter fornecido as ferramentas teóricas e metodológicas para o
cumprimento de minhas tarefas.
Ao Pr. Manoel de Jesus Thé, por me amar e me ajudar a atravessar os
desertos pré- ministeriais por que passei. Sem dúvida, devo- lhe as grandes e preciosas lições
do ministério pastoral e agradeço pelos conselhos e por toda a dedicação. Sou grato por ter se
tornado meu “grande pai” no ministério.
Ao Pr. Daniel Messias, grande amigo, obrigado por sua ajuda e apoio em
todo o tempo. Entre os amigos, você foi o mais presente em minha vida acadêmica e
ministerial.
À Isabel Cristina Le lis Ferreira, pela amizade, por toda a dedicação e
excelência na revisão ortográfica da presente dissertação.
Ao Prof. Ms. Marcelo Santos, obrigado por ter me incentivado a realizar a
presente pesquisa quando fui seu aluno, na graduação.
A uma família bastante especial: Noêmia, José Mardônio, Paloma e Bruno.
Obrigado pela acolhida em São Paulo e por me tratarem de forma amorosa e cuidadosa. Eu os
levarei para sempre no coração e na memória e os terei em alto grau de importância, sempre e
sempre! Libertem-se [risos].
À Paloma, pelo incentivo e apoio constantes e pelo interesse que demonstrou
pela presente pesquisa. Obrigado por me ajudar nos diversos processos desse período em que
realizei meu mestrado em Ciências da Religião.
À Primeira Igreja Batista no Jabaquara, obrigado pelo carinho, amor e
acolhida. Exerço com dedicação o ministério titular entre vocês e desejo que cresçamos juntos
na graça, no conhecimento e no amor que nos une.
6
Aos professores que criam – Cidinha, Célia, Lia, Catarina, Ana Lúcia e Eri.
Obrigado pela confiança, amor e dedicação. Vocês estão vivas em minha memória e sempre
caminharão comigo nas veredas da existência.
Aos professores que não criam – A todos/as vocês: obrigado por causar um
ambiente de instabilidade, pois, sem essas situações, talvez eu não tivesse conseguido mostrar
que, mesmo não sabendo, fiz- me um tolo aprendiz na mediocridade. Em tempo: eu já
aprontei, lendo Nietzsche durante a aula de matemática.
Aos professores da graduação na Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
Agradeço especialmente aos professores Dr. Lourenço Stelio Rega, Dr. Jorge Pinheiro dos
Santos, Dra. Gina Valbão Strozzi Nicolau, e Ms. Alberto Kenji Yamabuchi. Agradeço o
incentivo essencial que me deram, não somente na minha formação ministerial, mas também
na acadêmica.
Aos professores da Pós-Graduação, especialmente Dr. Geoval Jacinto da
Silva, Dr. Jung Mo Sung, Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães e Dr. Etienne Alfred
Higuet. Agradeço pelas boas conversas que travamos durante o tempo em que cursei as
disciplinas oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Também
agradeço pelas conversas de corredor, as quais foram fundamentais e corroboraram, mesmo
informalmente, meu preparo acadêmico formal.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),
que me auxiliou no processo de pós-graduação concedendo- me uma bolsa de mestrado sem a
qual jamais teria sido possível prosseguir meus estudos na Universidade Metodista de São
Paulo.
7
“O problema político essencial para o intelectual
não é criticar os conteúdos ideológicos que
estariam ligados à ciência ou fazer com que sua
prática científica seja acompanhada por uma
ideologia justa; mas saber se é possível constituir
uma nova política da verdade. O problema não é
mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas
têm na cabeça, mas o regime político, econômico,
institucional de produção da verdade. Não se trata
de libertar a verdade de todo sistema de poder –
que seria quimérico na medida em que a própria
verdade é poder – mas de desvincular o poder da
verdade das formas de hegemonia (sociais,
econômicas, culturais) no interior das quais ela
funciona no momento”.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In.
MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do
Poder, p. 14.
8
SEAWRIGHT, Leandro Alonso. Poder e Experiência Religiosa: uma História de um Cisma
Pentecostal na Convenção Batista Brasileira na Década de 1960. São Bernardo do Campo,
2008. Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de São Paulo.
RESUMO
A presente dissertação é resultado de uma pesquisa acerca de um cisma
pentecostal na Convenção Batista Brasileira, na década de 1960. No foco do conflito
encontra-se um Movimento de Renovação Espiritual, que defendia uma experiência de êxtase
religioso, designada de batismo com o Espírito Santo, como confirmação da relação do crente
com Deus. A progressiva adesão de comunidades batistas a tal proposta transformou-a numa
rede alternativa de poder que causou instabilidade nas relações de poder no interior da
denominação batista no Brasil. A pesquisa reconstrói os embates decisivos deste episódio e
ofereceu uma interpretação a partir das teorias de Michel Foucault e Michel de Certeau, na
medida em que tenta decifrar os mecanismos institucionais de controle em confronto com as
táticas das redes de poder. No contexto histórico brasileiro de efervescência não só religiosa,
os mecanismos de vigilância da Convenção Batista Brasileira mostraram-se insuficientes para
a manutenção da unidade ameaçada, uma vez que puniu os grupos opositores com a exclusão.
Palavras-chave: Convenção Batista Brasileira, batismo no Espírito Santo, cisma pentecostal,
redes de poder, vigilância, experiência religiosa.
9
SEAWRIGHT, Leandro Alonso. Power and Religious Experience: a Hhistory of a
Pentecostal Schism in the Brazilian Baptist Convention in the Decade of 60’s. São Bernardo
do Campo, 2008. Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de São Paulo.
10
ABSTRACT
This dissertation is the result of a search about a Pentecostal schism in the
Brazilian Baptist Convention, in the decade of 1960. The center of interest of the conflict is a
Spiritual Renewal Movement, which defended an experience of religious ecstasy, called
baptism with the Holy Spirit, as confirmation of the relationship of the believer with God. The
gradual adhesion of Baptists communities to such proposal transformed it into an alternative
web of power that caused instability in the relations of power within the Baptist denomination
in Brazil. The research reconstructs the shocks of this crucial episode and offered an
interpretation from the theories of Michel Foucault and Michel de Certeau, trying to decipher
the institutional mechanisms of control in battles with the tactics of the web of power. In the
historical context of Brazilian effervescence not only religious, the mechanisms of
surveillance of Brazilian Baptist Convention have proved inadequate for maintaining the unity
threatened, since the opposing groups were punished with the exclusion.
Words Key: Brazilian Baptist Convention, baptism in the Holy Spirit, pentecostal schism, web of
power, surveillance, religious experience.
11
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................................12
1. UM PERÍODO DE EFERVESCÊNCIA E O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO
ESPIRITUAL..............................................................................................................19
1.1. Um locus de transformações político-religiosas e de efervescência................19
1.2. Um locus fragmentário do protestantismo no Brasil: Uma grande
miscelânea........................................................................................................30
1.3. Um locus oscilante no vaivém das ondas: uma antidisciplina
pentecostal........................................................................................................37
1.4. Ondas vêm e ondas vão: Um locus de belicosidade para o Movimento de
Renovação Espiritual e para Rosalee Mills Appleby ......................................45
2. A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO
TEOLÓGICO BATISTA DO SUL DO BRASIL E A FORMAÇÃO DAS REDES
DE PODER..................................................................................................................59
2.1. José Rego do Nascimento e Enéas Tognini: Duas experiências religiosas de
constituição no entretecimento da belicosidade histórica................................59
2.2. Da academia à experiência religiosa: Poder e êxtase na biblioteca e as redes de
poder.................................................................................................................70
2.3. Um barulho que veio da biblioteca: Poder e repressão da religião oficial.......82
2.4. Na abrangência das redes de poder: Um manifesto da minoria excluída da
Igreja Batista da Lagoinha...............................................................................92
3. A FORMAÇÃO DA COMISSÃO DOS 13 E O MODELO PANÓPTICO DE
VIGILÂNCIA...........................................................................................................101
3.1. Um cisma na Convenção Batista Mineira......................................................101
3.2. A Convenção Batista Brasileira de 1962 e a formação da Comissão dos
13....................................................................................................................108
3.3. A doutrina do Espírito Santo e os embates fiscalizadores ............................118
3.4. Os pareceres da Comissão dos 13: Um cisma na Convenção Batista
Brasileira........................................................................................................131
12
4.
O FUNDAMENTALISMO POLÍTICO-RELIGIOSO POR DETRÁS DAS
TRINCHEIRAS........................................................................................................150
4.1. O fundamentalismo do Movimento de Renovação Espiritual.......................150
4.2. Rubens Lopes e Enéas Tognini: Campanhas de Evangelização e Encontros de
Renovação......................................................................................................163
Considerações Finais.............................................................................................................170
Bibliografia............................................................................................................................180
Anexos....................................................................................................................................187
13
Introdução
No seio das igrejas batistas pertencentes à Convenção Batista Brasileira é
possível identificar um período intenso composto por incontáveis conflitos de poder ocorridos
em âmbito denominacional. O período de 1956 a 1965 fo i impactado pelas controvérsias
teológicas ocasionadas pelo Movimento de Renovação Espiritual no interior das igrejas
batistas. Através da influência de Rosalee Mills Appleby, alguns líderes denominacionais,
como José Rego do Nascimento e Enéas Tognini, alegaram uma experiência de batismo no
Espírito Santo posterior à experiência de salvação nas categorias batistas de compreensão
soteriológica 1 .
Os entreveros denominacionais e os debates acerca da verdade sobre a
doutrina do Espírito Santo conduziram e fomentaram disputas institucionais, premeditadas ou
não, que tiveram como uma de suas principais conseqüências o primeiro cisma ocorrido na
Convenção Batista Brasileira. No presente texto intentar-se-á uma abordage m acerca do
período mencionado, verificando os conflitos de poder que conduziram os batistas brasileiros
ao cisma denominacional. Outrossim, adotar-se-á, para a abordagem do referido episódio, as
teorias de Michel Foucault e de Michel de Certeau como respaldos teóricos para entender o
conflito em pauta.
A influência do Movimento de Renovação Espiritual nas igrejas batistas
brasileiras já foi objeto de diferentes estudos. Destacam-se aqueles de cunho marcadamente
apologético, produzidos no calor dos embates em torno da questão. Há também referências à
questão em trabalhos de conclusão de curso de graduandos em Teologia. Contudo, salvo
melhor juízo, o presente trabalho é a primeira tentativa de investigação científica do cisma no
campo batista.
Para tanto, sabe-se que dois tipos de fontes possibilitam a pesquisa e o
conhecimento no âmbito da história, a saber, as fontes primárias e as fontes secundárias.
Fontes primárias ou originais são aquelas que documentam um fato, uma circunstância, um
vivido. São os documentos escritos, objetos de uso pessoal e coletivo, instrumentos
diversificados. Essas fontes requerem a verificação do contexto histórico, social, político e
cultural, porquanto é preciso empregar metodologias hermenêuticas para lançar mão de suas
informações.
1
Termo utilizado nos estudos de Teologia Sistemática para designar as compreensões acerca da salvação, nas
molduras da teologia cristã.
14
Em contrapartida, as fontes secundárias referem-se às muitas leituras das
fontes primárias que os pesquisadores realizam. Mesmo que haja a possibilidade de que as
fontes secundárias se transformem em novas fontes primárias de pesquisa, as fontes
secundárias são postas no mercado de bens culturais para o consumo de diferentes categorias
de sujeitos, a saber: os pesquisadores, os professores, os estudantes e os curiosos de maneira
geral. As fontes primárias distinguem-se das fontes secundárias principalmente porque estas
estão ligadas à difusão do conhecimento histórico, enquanto aquelas à produção do
conhecimento da história 2 .
Para a abordagem que se propõe na presente dissertação, ressalta-se a
utilização de fontes primárias, tais como: cartas, jornais denominacionais, jornais seculares e
atas. Algumas das correspondências utilizadas, anexadas ao presente texto estão em poder de
Enéas Tognini, enquanto outras foram publicadas em seus livros. Consultou-se também O
Jornal Batista, veículo oficial de informações da Convenção Batista Brasileira 3 . Da mesma
forma, lançou-se mão de O Estado de São Paulo, para verificar determinado período histórico
em evidência no quarto capítulo. Como se mencionou, atas de Assembléias da Convenção
Batista Brasileira também foram utilizadas e constituíram fontes primária s preciosas .
No que tange às fontes secundárias, procurou-se consultar livros
apologéticos e doutrinários que evidentemente possuem caráter confessional e, por via de
regra, compõem e corroboram discursos bélicos na história dos batistas brasileiros durante o
período em que se situa o referido campo de pesquisa.
As publicações de Enéas Tognini e José Rego do Nascimento forneceram
boas interpretações acerca do belicismo no período e na fundamentação do Movimento de
Renovação Espiritual. Além das obras desses autores militantes, muitas outras serviram de
fontes secundárias para a amostragem dos conflitos denominacionais que culminaram no
primeiro cisma da história dos batistas no Brasil.
Não se pretende lançar uma hipótese com pressupostos solidificados com a
finalidade de afirmá- la ou negá- la. Entretanto, pretende-se elaborar suspeitas, não para que se
tornem soberanas e determinantes sobre alguma investigação ou afirmação, mas para que tais
suspeitas tragam consigo as instigações acadêmicas sobre o campo de pesquisa estabelecido,
bem como sobre o problema que se suscitará, os quais se farão evidenciar na elaboração dos
2
3
Cf. SOUZA, João Valdir Alves de. Fontes para uma reflexão sobre a história do Vale do Jequitinhonha, p. 2.
Mais informações sobre O Jornal Batista in: AVEZEDO, Israel Belo de. A palavra marcada: um estudo sobre
a teologia política dos batistas brasileiros, de 1901 a 1964, segundo O JORNAL BATISTA.
15
capítulos. Nesta dissertação também não se objetiva um trabalho doutrinário, mas uma sucinta
contribuição para se pensar parte do processo histórico e denominacional dos batistas no
Brasil.
“O intelectual não tem mais que desempenhar o papel
daquele que dá conselhos. Cabe àqueles que se batem e
se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas,
os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode
fazer é fornecer os instrumentos de análise, e é este hoje,
essencialmente, o papel do historiador”. 4
Desse modo, elaborar-se-ão suspeitas para a investigação historiográfica. Por
conseguinte, na instrumentação do leitor, será visibilizada a tensão existente no período
mencionado, pois as suspeitas indicarão o viés pelo qual se trilhará e um laboratório de
verificação do Movimento de Renovação Espiritual em curso na Convenção Batista
Brasileira. Segundo Foucault, jamais se pode dizer: “eis o que vocês devem fazer”. Portanto,
também não se pretende demonstrar nenhuma verdade cristalizada e tampouco a forma como
se deve pensar, pois se trata de fornecer instrumentos para o cump rimento do papel do
historiador.
Assim, a primeira suspeita é a de que as experiências religiosas são
legitimadoras das atitudes de poder político na história da Convenção Batista Brasileira e que
as experiências produzidas e vivenciadas pelo Movimento de Renovação Espiritual foram
causadoras de desequilíbrio no âmbito da denominação batista. Segundo Foucault, a
referência da história, a qual também se estabelece para a escrita da historiografia, é o modelo
da guerra e o da batalha 5 , uma vez que se deve verificar a inteligibilidade das lutas, das
estratégias e das táticas para uma abordagem de um episódio político-religioso, como no caso
em tela.
Sendo, pois, plaus ível uma abordagem que se constitua para além de uma
redução da história a determinados eventos e a determinados modelos estabelecidos pela
língua, está posta a primeira suspeita, que se baseia no aspecto belicoso da história pelo
confronto das redes de poder no seu interior. Dessa forma, poder e experiência religiosa
parecem estabelecer uma importante relação, fazendo do modelo de governabilidade
congregacional um grande campo de batalhas, de onde a história se pronuncia pela narrativa
dos sujeitos que promoveram seus embates.
4
5
FOUCAULT, Michel. Poder - corpo. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 151.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 5.
16
Há uma segunda suspeita, a saber, a de que cada sujeito religioso agiu, com
base na legitimação do poder a partir das experiências religiosas, inscrevendo-se por uma
opção de favorecimento numa rede de poder, pela qual se tornava promotor de embates com
outras redes opositoras no processo histórico do período de atuação do Movimento de
Renovação Espiritual.
Com base nessa suspeita, parece ter ocorrido um desencadeamento de ações
que demonstram a formulação de um fundamentalismo religioso por parte do Movimento de
Renovação Espiritual e de alguns sujeitos religiosos opositores ao mencionado Movimento.
Desse modo, parece haver relações de poder a partir de onde os sujeitos religiosos se
posicionaram, pois se torna deveras importante a observância do lugar vivencial onde as
batalhas se deram. Os eventos ocorridos, os quais serão tratados nesse texto, são singulares na
história dos batistas no Brasil e precisam ser notados, bem como distinguidos em suas
especificidades e em suas redes de poder.
A terceira suspeita que se elabora neste ensejo requer um trabalho acurado,
pois pensa-se que, possivelmente, através da formação da Comissão dos 13, que se verificará
no terceiro capítulo, houve um avanço na tecnologia do poder exercido no âmbito da
Convenção Batista Brasileira. Entretanto, depois do desenvolvimento de um processo de
vigilância, parece ter havido um retrocesso muito similar às ações inquisitórias, como se verá.
Não puniu-se num primeiro momento, mas puniu-se depois do trabalho da Comissão dos 13, o
que implica as mencionadas ações inquisitórias por parte da denominação ou a insistência do
Movimento de Renovação Espiritual a fim de provocar de forma premeditada um cisma
pentecostal em uma denominação histórica.
Propôs-se, pois, uma estrutura de capítulos em que se viabilizou um
observatório político-religioso que, como se mencionou, objetiva evidenciar os confrontos no
seio da Convenção Batista Brasileira no período outrora aludido. Quer, desse modo, fornecer
uma leitura teórica que contemple o locus altamente belicista, as experiências religiosas de
êxtases e os embates mais decisivos em âmbito denominaciona l.
Assim, na estrutura dos capítulos, se concederá a amostragem de um
trabalho, ainda que sucinto e limitado, que objetiva a constituição de instrumentos para a
análise do poder e da experiência religiosa que se formulou no interior da Convenção Batista
Brasileira. Contudo, lança-se um olhar ao sistema “guerra-repressão”, bem como sobre a
sistemática da vigilância e da punição, que parecem ter proporcionado uma “prática, no
17
interior de uma pseudo-paz, de uma relação perpétua de força”. Portanto, é possível que se
veja no decurso dos capítulos uma constante reflexão acerca da “luta e da submissão”. 6
Desse modo, no primeiro capítulo, que trata de “Um período de
efervescência e o Movimento de Renovação Espiritual”, constatar-se-á uma grande
mobilidade político-religiosa por meio da breve narrativa do contexto político do Brasil e
também da efervescência do pentecostalismo no País. Também se verificará um lugar
altamente fragmentário para o protestantismo no Brasil, inclusive por sua diversificação, por
suas ramificações e por sua pluralidade, arriscando-se numa tipologia e a partir de suas raízes
históricas.
Nesse capítulo se demonstrará a insuficiência do tratamento do
pentecostalismo no Brasil através da idéia de ondas, porquanto se quer evidenciar que, à luz
dessa concepção, há uma falta de lugar histórico para o Movimento de Renovação Espiritual.
Porém, lançando-se a fragmentariedade político-religiosa e a formação contextual das
concepções religiosas e dos movimentos pentecostais, especialmente no período de 1950 e 60,
quer-se oferecer à demonstração um locus bélico para a atuação do Movimento de Renovação
Espiritual no seio da Convenção Batista Brasileira.
Ainda no primeiro capítulo, será possível constatar uma narrativa da
influência carismática da missio nária Rosalee Mills Appleby, que forneceu bases para o início
do Movimento de Renovação Espiritual, o que se fará tratando-a como alguém que vivenciou
experiências religiosas fundantes, as quais se reproduziram na s experiências religiosas de
importantes líderes batistas no Brasil.
A abordagem que se proporá no segundo capítulo refere-se a uma
experiência fundante ocorrida na biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil,
no Estado do Rio de Janeiro. Quer-se demonstrar, no aludido capítulo, as experiências
religiosas de José Rego do Nascimento e Enéas Tognini, as quais foram determinantes para
episódios extáticos ocorridos na mencionada instituição teológica e na denominação batista.
Rego, quando pastoreava a Igreja Batista da Lagoinha, foi convidado para
fazer uma série de explanações aos alunos do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
acerca do “despertamento espiritual”. As palestras tiveram a duração de uma semana e, após
suas ministrações, algo inusitado ocorreu e marcou a experiência do Movimento de
Renovação Espiritual. Assim, se reconstituirá tal experiência denotando a inscrição dos
sujeitos religiosos e redes de poder que, aparentemente, haviam partilhado de manifestações
6
FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 177.
18
pentecostais para a inserção em determinados grupos militantes no seio da Convenção Batista
Brasileira.
Aludir-se-á, concomitante ao exposto, uma transmutação ocorrida na
biblioteca do Seminário, porquanto houve a passagem de vivências acadêmicas para vivências
pentecostais, através da experiência religiosa vivenciada no interior da biblioteca, na dinâmica
de um lugar. O lugar que passou a ser praticado, na biblioteca, foi fundamental para os
desdobramentos institucionais que contribuíram para a formação das redes de poder no
interior da Convenção Batista Brasileira. Após experiências de êxtases de Rego e dos
seminaristas da mencionada instituição teológica, a belicosidade instaurou-se devido à
autenticação e adesão de líderes às redes de poder no interior da trama denominacional. Após
tais vivências pentecostais, foram inúmeras as expressões de repressão por parte da religião
oficial, no caso, de líderes influentes no âmbito da Convenção Batista Brasileira.
Acerca do terceiro capítulo, alegar-se-á um desenvolvimento na vigilância
criada no interior da denominação batista através da Comissão dos 13, dispositivo armado na
44ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira, ocorrida em 1962. Após o cis ma da
Convenção Batista Mineira, houve uma intensificação nos discursos e na propaganda do
Movimento de Renovação Espiritual. Entretanto, na referida Assembléia da Convenção
Batista Brasileira, criou-se uma forma de vigiar sem punir, porém puniu-se após a vigilância,
fenômeno que se quer avaliar no diálogo entre as teorias de Foucault e Certeau.
Tratar-se-á, de igual forma, sobre os embates fiscalizadores travados nas
múltiplas redes de poder no seio da Convenção Batista Brasileira, pois a doutrina do Espírito
Santo, principalmente no que tange aos conflitos acerca do batismo no Espírito Santo, trouxe
desequilíbrio denominacional, o que será suscitado do terceiro capítulo. A Comissão dos 13
ofereceu alguns pareceres em Assembléias denominacionais, o que fora decisivo para os
embates e o cisma na denominação batista.
No quarto capítulo abordar-se-á o desenvolvimento político-religioso de um
fundamentalismo no Movimento de Renovação Espiritual, pois se verifica determinado
desencadeamento de um anticomunismo por parte de Tognini e seus liderados. A imagem de
João Goulart, formada pelos veículos de comunicação no início da década de 1960, afetou,
inclusive, o pensamento de importantes líderes denominacionais e motivou ações políticoreligiosas por parte do Movimento de Renovação Espiritual.
Ainda na perspectiva do belicismo denominacional e das experiências
religiosas promovidas no seio da denominação batista, houve embates contundentes entre
Rubens Lopes, Presidente da Convenção Batista Brasileira, e Enéas Tognini, um dos
19
proeminentes líderes do Movimento de Renovação Espiritual. Portanto, encontram-se no
escopo do capítulo as contendas político-religiosas, tanto entre dois importantes líderes
religiosos, como também entre pastores e os movimentos políticos do Brasil.
20
1. Um período de efervescência e o Movimento de Renovação Espiritual
1.1. Um locus de transformações político-religiosas e de efervescência
Com Lauri Emilio Wirth, pode-se considerar que há determinado interesse
acadêmico pela constituição da religião a partir de um “sitz im leben”, a saber, de lugares
vivenciais que servem para a constituição de sujeitos vivenciais, os quais denotam, portanto,
traços que evidenciam a possibilidade de um encontro experiencial na vida do sujeito
religioso 7 . Com base no exposto, observe-se as categorias de Menshing:
“A religião é a experiência humana do encontro com o
sagrado e de ação do homem em consonância com o
impacto produzido por esse encontro”. 8
Nesses termos, o locus existencial, a partir dos elementos da religião e da
interação humana no bojo dos fenômenos, resultará em uma produção religiosa através do
impactante encontro entre o homem e o sagrado, bem como entre o sujeito religioso e os
elementos sagrados da religião. Contudo, tal encontro, entre o homem e o sagrado, demarcará
mais contundentemente um campo de desconhecimento, porque os elementos que compõem a
vivência da religião não conduzem ao conhecimento pleno do todo que sinalizam 9 .
Para Michel de Certeau, a produção do historiador deve ser considerada
como:
“(...) a relação entre um lugar (um recrutante, um meio,
um ofício, etc.), procedimentos de análise (uma
disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).
É admitir que ela faz parte da “realidade” de que trata,
e essa realidade pode ser compreendida “como
atividade
humana”,
“como
prática”.
Nessa
perspectiva, (...) a operação histórica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas
“científicas” e de uma escrita”. 10
Assim, parece haver uma relação importante entre o lugar, os procedimentos
de análise e a construção de um texto. Portanto, existe algo de vivencial na produção do
historiador que preza as observâncias a partir do lugar existencial onde a produção ocorre.
7
WIRTH, Lauri E. Novas metodologias para a História do Cristianismo: em busca da experiência religiosa dos
sujeitos religiosos, p.23.
8
MENSCHING, G. Die Religion, p. 18.
9
Cf. VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 17.
10
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
21
Desse modo, a historiografia da religião procurará verificar os encontros entre o sujeito
religioso, na sua experiência, com a política do lugar que se achará em evidência.
Dessa maneira, fazer abordagens acerca da operação histórica, considerando
suas implicações, deverá trazer um estabelecimento de narrativas vivenciais que, por
conseguinte, se formarão a partir das “verdades” que um locus poderá suscitar, tanto para o
sujeito que pratica em dado lugar, quanto para o historiador que verifica o lugar praticado.
Portanto, uma verdade historiográfica absoluta foi refutada por Certeau, entretanto, a história
pode produzir, segundo ele, algumas “verdades”, as quais são influenciadas pelo presente
dos historiadores.
No entanto, a historiografia lidará intensamente, não somente com a história
factual a que se propõe estudar, mas também, como foi dito, com o lugar reflexivo onde se
elabora, pois ele é determinante devido à constituição dos sujeitos que vivenciam as tramas 11 .
Assim, observar a experiência e a ação dos indivíduos que compõe a história de um episódio
religioso é relevante na medida em que se concebe a história como uma prática do lugar do
historiador e dos sujeitos que preenchem seus próprios lugares religiosos 12 . Da mesma forma,
verifica-se a necessidade de trabalhar na condução de idéias aos lugares e de contemplar a
viabilização do gesto de um historiador a partir disso 13 .
Hayden White afirma, no entanto, que o trabalho da historiografia é parte
integrante de uma encenação, de um teatro acadêmico, que visa conceder objetividade e
caráter científico à produção histórica
14
. Porém, Certeau, mesmo entendendo as limitações
do trabalho historiográfico, não o desaprovou, porque esse trabalho seria uma tarefa de
compreender para trazer uma continuidade da produção historiográfica. Para Certeau, como
mencionou, não se pode falar de uma verdade, mas de diversas verdades, a saber, de
“verdades no plural”, porque o historiador propõe a produção de um trabalho a partir do
presente e das preocupações de sua realidade concreta
15
. Não é um trabalho aleatório, mas
deve-se visibilizar as tensões humanas e os aspectos de subjetividade. Assim, são relevantes
as implicações contextuais, políticas e subjetivas que culminaram nas experiências religiosas
11
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 126.
CERTEAU, Michel. A OperaçãoHistórica, p. 28.
13
CERTEAU, Michel. A Oeração Hstórica, p. 17.
14
WHITE. H. A. Rejoinder. A response to professor Chartier’s four questions. Storia della Storigrafia, p. 65.
12
15
CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural, p. 224.
22
no plural, as quais se dão em contextos altamente complexos, sendo, da mesma forma, plurais
nas suas constantes remontagens a partir da apreensão de quem produzem em um locus
determinante.
Tal combinação de lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita,
concebe a operação historiográfica proposta por Certeau. Portanto, o locus a partir de onde se
vivencia a experiência religiosa, também no caso do pentecostalismo, que irrompeu a
realidade protestante brasileira, vivenciando a experiência do Espírito Santo, define o
procedimento e a constituição de um “texto” que, enquanto se forma, é fo rmativo, pois inclui
o sujeito religioso que deve ser observado também a partir de sua subjetividade e das
implicações formativas da realidade que irrompeu o seu lugar de estar.
O florescimento do pentecostalismo na América Latina se processou devido
a uma espécie de atualização religiosa que se visualizou numa remontagem de um
protestantismo brasileiro, pois vincula e mescla as novas experiências vivenciais dos sujeitos
religiosos pertencentes ao Movimento Pentecostal. Os referidos sujeitos proporcionaram uma
mensagem de experiência religiosa que parece ter contemplado as necessidades mais atuais
dos sujeitos que praticavam religião no contexto do protestantismo brasileiro.
Conforme René Padilla, em seu El evangelio hoy, o pentecostalismo
avançou porque, entre outros aspectos, havia um universo religioso que, através da
predominância do catolicismo, constituía um sistema de opressão que impunha normas e
condutas sobre a grande maioria. Para esse autor, o magisterium do catolicismo
fundamentou-se rigidamente e, a partir da busca por novos horizontes religiosos, o
pentecostalismo foi nascente, pois deu voz a sujeitos massacrados pelo modelo econômico,
político e religioso 16 .
Portanto, a religião, no seu desenvolvimento político e vivencial, se expressa
na constituição de experiências formativas que transformam e, como sistema simbólico,
estrutura-se com base na coerência relacional dos seus elementos de interesses internos, os
quais, por estabelecimento de vínculos relacionais, também formam uma experiência
religiosa. As categorias de sagrado e profano, material e espiritual, eterno e temporal,
16
PADILLA, René. El evangelio hoy. Buenos Aires: Certeza, 1975.
23
funcionam como alicerces sobre os quais a experiência vivida é construída 17 e, vez por outra,
remontada e vivenciada.
Por isso, pode haver diversos processos nos mais variados períodos da
história de um avivamento religioso. Dessa forma, nesse mesmo delineamento, verifica-se
que os motivos políticos imbricam-se com os motivos pessoais, porquanto trata-se de uma
história das transformações político-religiosas, quer no âmbito de uma igreja local, quer no
bojo de uma denominação e também, fundamentalmente, no âmbito da peculiaridade da
experiência do sujeito religioso que se vê relevante na estrutura da transformação contextual
e situacional.
No seio do protestantismo brasileiro, verifica-se a eclosão de movimentos
denominados pentecostais e até mesmo no seio de igrejas históricas. Esses avivamentos,
manifestos no âmbito do protestantismo histórico, propiciaram a fundação de diversas
denominações com ênfases nas experiências religiosas marcantes para a vida do sujeito
religioso que, através do aspecto fragmentário da subjetividade, encontra-se consigo mesmo
diante das questões últimas da vivência humana. Para Galindo, o pentecostalismo representa
um protestantismo que se desinteressa da doutrina e se centra no aspecto emocional e na
vivência do sobrenatural, mostrando-se mais interessado nas particularidades humanas.
Portanto, conforme o autor, os milagres, a glossolalia, as curas e os exorcismos são deveras
importantes para a concepção desse formato de protestantismo, pois estão vinculados ao
caráter de enunciação do sagrado que se apresenta na particularidade e é transformado na
peculiaridade das concepções vivenciais 18 .
Verifica-se, então, que a interação de elementos políticos com elementos
vivenciais e, para se obter relevância no sentido, com elementos sobrenaturais, forma uma
experiência de vida, na cotidianidade, que legitima ações de transformação no cenário
religioso brasileiro, donde ressalta-se a importância dos lugares praticados que se formam por
entre os lugares caracterizados pela solidez no que tange à ordem e ao posicionamento dos
elementos contextuais. Mesmo no campo da pesquisa, Certeau faz observações interessantes,
pois para ele o que se acha em jogo, no estatuto da análise e na sua relação com o objeto, é a
produção que se baseia no lugar onde ela se achou possível, tornando o referido campo um
observatório bastante peculiar e expressivo. Note-se, portanto, que o campo onde a pesquisa
17
18
Cf. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu, p. 179.
GALINDO, Florencio. O Fenômeno das Seitas Fundamentalistas, p.190 e 191.
24
se torna possível é um locus que demonstra inúmeros aspectos concernentes à produção, a
qual se baseia na posição do historiador e na posição do objeto abordado. Deve-se, portanto,
entender a história do pentecostalismo no Brasil a partir das concepções dos lugares onde as
tramas ocorrem. Por isso, acha-se em alta relevância, para Michel de Certeau, a distinção
realizada entre lugar e espaço, pois um dos elementos teóricos mais notáveis em Invenção do
Cotidiano, do mencionado autor, é o conceito acerca dos lugares e dos espaços.
Portanto, para Certeau, um discurso, seja ele qual for, carregará consigo as
“marcas de cientificidade”, num estatuto da análise, à medida que explicita as condições, as
regras e, principalmente, as relações de onde a produção acontece, bem como a ligação do
aporte concedido pelo lugar com o objeto da abordagem19 .
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se
distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí
se acha portanto excluída a possibilidade para duas
coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do
“próprio”: os elementos considerados se acham uns ao
lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio”
e distinto que define. Um lugar é portanto uma
configuração instantânea de posições. Implica uma
indicação de estabilidade”. 20
Há, a partir do descrito, uma formação específica do lugar através da
especificidade dos elementos estáticos que compõem a realidade, conquanto tal realidade, por
meio dos seus elementos, coexiste em si mesma e se solidifica. A realidade cotidiana e a
realidade histórica poderão ser exemplificadas nos termos desse locus humano, o qual se
entretece com uma ordem e com o sujeito que a vivencia. Porém, trata-se um locus que
poderá sofrer alterações no que tange às suas posições de estar existindo.
Assim, embora os elementos sejam estáticos e coexistam, aplicando uma
noção do lugar “próprio”, o qual deve ser considerado para fazer uma narrativa com
seriedade historiográfica, há que se rememorar o conceito de um ser humano que é um sujeito
vivo, com a capacidade de interagir com a realidade, promovendo atualizações constantes,
não somente consoante à sua própria existência, mas também referente à existência da ordem
19
20
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 110.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 201.
25
ocasionada por expressividades humanas e, portanto, também da religião que se pratica no
dia-a-dia ou na dinâmica institucional21 .
Um lugar estabelece uma relação fundamental pela qual se torna perceptível
a noção da existência de muitas coisas ao mesmo tempo e, com isso, também uma ordem de
posicionamento se forma, a saber, há uma singularidade em tudo e, ainda que no mesmo
ambiente, a essencialidade das coisas é respeitada como fator de formação do objeto ali
presente. Desse modo, aquilo que é solidifica-se na singularidade de sua existência, fazendo
um preenchimento específico das noções de uma realidade.
Sobre os espaços Certeau afirma:
“Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores
de direção, quantidade de velocidade e a variável
tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo
modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se
desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas
operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam e o levam a funcionar em unidade
polivalente de programas conflitais ou de proximidades
contratuais”. 22
Portanto,
acerca
de
um
conceito
solidamente
fundamentado
na
funcionalidade do lugar, a saber, no dinamismo adquirido pelo referido lugar na experiência
do sujeito, verifica-se que o espaço é a interação numa determinada ordem, pois, segundo
Certeau, “o espaço está para o lugar como a palavra quando falada e percebida”. Assim, na
mobilidade do lugar, na concepção da noção de espaço, em certa movimentação, acha-se um
“lugar praticado”, que melhor caracteriza o espaço movimentado por um “operador”
vivencial de realidades23 .
“Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim, a
rua geometricamente definida por um urbanismo é
transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo
modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do
lugar constituído por um sistema de signos – um
escrito”. 24
21
WIRTH, Lauri E. Novas metodologias para a História do Cristianismo: em busca da experiência religiosa
dos sujeitos religiosos, p.29.
22
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 202.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 202.
24
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 202.
23
26
Com Certeau, pode-se dizer que as políticas dos lugares acham-se
subjacentes às estratégias que se formam devido à especificidade de cada mencionado lugar
e, da mesma maneira, há determinados vínculos dessas práticas com o lugar próprio de um
princípio coletivo na gestão referente a uma família ou a um determinado grupo 25 . Dessa
maneira, a ação decorrente de um lugar é a agitação dessa ordem pelo processo histórico, do
qual o sujeito jamais poderá ser alijado por ser fundamental, não na sua perpetuação, mas na
transformação a partir da concepção dos espaços.
O cotidiano, pela subjetividade da experiência do sujeito religioso, deve
fornecer, pela noção dos espaços, que são lugares praticados, um locus do indivíduo que
produz sua experiência visando à legitimação das atitudes de poder, pois o lugar determina
em muito as estratégias e as táticas de uma religião que, às vezes, é praticada de forma não
oficial sob os desdobramentos do espaço.
Para os exames das práticas do dia-a-dia que articulam essa experiência, a
oposição entre “lugar” e “espaço” gera duas espécies de determinações, a saber, uma é
definida pela fixidez de objetos reduzíveis ao estar-aí de um morto, pois, para Certeau, um
corpo inerte parece sempre, no Ocidente, fundar um lugar e, a partir do referido lugar, faz-se
a imagem de um túmulo; a outra, através de operações, quando atribuídas a uma pedra, a
uma árvore ou a um ser humano (a um cadáver?), demonstram os espaços, os quais se
formam pela não fixidez gerada por sujeitos históricos que articulam em sua própria
constituição, na ordem das coisas, e pela mutação do locus existencial26 . Em suma, o espaço
é a dinâmica proporcionada pelas articulações existenciais de um sujeito que concede
mobilidade a elementos da realidade que poderiam se petrificar numa experiência contínua
do estar-aí.
Portanto, num período em que
algumas denominações históricas
estabeleceram sua fixidez, como no caso das Igrejas da Convenção Batista Brasileira, alguns
sujeitos religiosos, que viveram intensas experiências religiosas, decidiram promover um
avivamento, conhecido como Movimento de Renovação Espiritual ocorrido na década de
1950 e 1960.
25
26
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 202.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 202 e 203.
27
Ressalta-se que, acerca do locus religioso que se transformou, pode-se dizer
que na década de 1950 e de 1960, o Brasil passou por um período de profundas modificações
que, na sua maior parte, foram conseqüências das implicações do término da Segunda Guerra
Mundial. Campos considera que após a referida guerra a situação política, econômica e
cultural sofreu profundas mudanças no Brasil 27 .
Neste contexto, o nacionalismo e o populismo, característicos no governo
Vargas, parece ter influenciado tardiamente o surgimento de certos grupos religiosos no
Brasil 28 . Exemplo clássico dessa tendência é a Igreja O Brasil para Cristo, fundada por
Manuel de Melo, na década de 50, que aliou o discurso religioso à aspiração pelo poder
político.
Segundo Rolim:
“Sem perder as características das crenças e práticas
pentecostais, O Brasil para Cristo procurava assumir
práticas sociais, através das eleições. Estas
experiências, que se poderia chamar de políticoreligiosa, foi de curta duração, uma vez que o golpe de
1964 lhe cortou o fôlego. Mas teve um aspecto bem
positivo. É que não ficou na livre iniciativa dos crentes.
E partiu da orientação dos dirigentes da Igreja. Dessa
forma, foi um ramo pentecostal, criado no início de
1950, que corajosamente tentava unir duas
experiências, a religiosa e a política. Com a repressão
dos governos militares, a partir de 1964, O Brasil para
Cristo se recolheu na religiosidade” 29 .
Incitada por Manuel de Melo a atuar diretamente nas campanhas eleitorais, a
Igreja O Brasil Para Cristo permaneceu atuante, inclusive, apresentando candidatos próprios,
entre os quais alguns foram eleitos. Tal inserção do pentecostalismo na política concedeu
uma amostragem de que havia um ambiente bastante agitado pelo nacionalismo, a partir do
qual a Igreja O Brasil Para Cristo exerce diversas influências. Assim, a década de 1950 foi
bastante agitada pelo referido populismo e pelas conseqüências dos ideais de Vargas 30 .
“Toda essa mobilidade social, cultural, econômica e
política não foi devidamente percebida pelo
protestantismo histórico, que passou a perder o
27
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 87.
28
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 87.
29
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: Uma Interpretação Sócio-Religiosa, p. 72.
30
Getúlio Vargas governou o país em dois períodos: de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954.
28
dinamismo e a apresentar crescentes sinais de exaustão
(...) Após a Segunda Guerra, o País, por influência
americana, entrou num processo de redemocratização.
O mundo experimentava os efeitos da “guerra fria”, as
organizações
comunistas
continuavam
na
clandestinidade, e os trabalhadores, dentro da camisa
de força governamental instituída no decorrer da
ditadura varguista. Predominava um clima de euforia
nacionalista, que se expressava na construção de
siderúrgicas e na estatização da produção e
distribuição do petróleo”. 31
Contudo, após o suicídio de Getúlio Vargas 32 , em 1954, o nacionalismo foi
substituído pelo otimismo de Juscelino Kubitschek e, nesse sentido, houve uma abertura no
Brasil para a implantação de indústrias estrangeiras, com destaque para as montadoras de
automóveis e a construção de Brasília. Portanto, depois da transição do ambiente nacionalista
para o ambiente agitado do internacionalismo, o Brasil experimentou uma efervescência
bastante contundente no que tange à redemocratização, à retomada da industrialização, ao
surgimento da indústria siderúrgica e à troca da influência européia pela influência norteamericana 33 .
O período da internacionalização, por meio do fortalecimento urbano 34 ,
proporcionou um contexto favorável ao surgimento de igrejas chamadas neopentecostais,
como a Igreja Universal do Reino de Deus que, vivenciando as experiências do momento,
propôs-se com um nome bastante sugestivo no que tange à sua relação com o período.
Assim, nosso objeto de estudo situa-se e é produto de um contexto político,
econômico e religioso em profundas transformações, não obstante a influência das chamadas
causas remotas, vinculadas, por exemplo, à procedência estrangeira de missionários atuantes
neste contexto, o que abordaremos mais adiante. Segundo Campos, a efervescência da época
foi muito grande, o que repercute nos novos movimentos que rompiam com os moldes
31
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 95.
32
No período do governo de Getúlio Vargas, houve um esvaziamento da zona rural, a aceleração da
urbanização, a implantação de uma indústria para substituir os bens importados. Também houve resoluções
internas, a participação do País na Segunda Guerra e a repressão dos movimentos operários e políticos de
inspiração socialista e comunista.
33
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 87.
34
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos, p. 447.
29
tradicionais das instituições religiosas. O locus do sujeito religioso alterou-se, também porque
houve um processo intenso de evolução na comunicação, e as distâncias foram reduzidas
através das novas rodovias, as quais levavam a todas as regiões geográficas.
A partir da década de 1950, também constata-se um período de êxodo rural
bastante contundente, motivado principalmente pela rápida industrialização do País.
Entretanto, mesmo com a industrialização, não houve capacidade de aproveitar toda a mãode-obra gerada pelo êxodo rural 35 . O pentecostalismo, principalmente o da chamada “segunda
onda”, terminologia utilizada por Freston e Mariano, desenvolveu-se em centros urbanos e,
portanto, participou ativamente das transformações históricas e religiosas daquele período.
Algo bastante marcante é que, a despeito do golpe político de 1964, o Brasil continuou seu
crescimento, sua urbanização e sua efervescência político-religiosa. Neste contexto, o
pentecostalismo valeu-se de elementos urbanos e da cultura no plural, incutida no sujeito que
se urbanizou.
“A partir dos anos 60, cismas pentecostalizantes
(“carismáticos”) surgiram em todas as igrejas
históricas. Contudo, estes representaram não a descida
das igrejas históricas para as massas brasileiras, mas a
subida e adequação do fenômeno pentecostal a novos
níveis sociais”. 36
Diversos movimentos religiosos tiveram início no Brasil e, na maioria dos
casos, líderes religiosos marcantes tiveram experiências contundentes. Ainda que já tivessem
sido vivenciadas por outros sujeitos, tais experiênc ias foram fundantes para os movimentos
que se puseram em curso naquele período.
Harold Williams, ex-ator de filmes de faroeste e missionário da International
Church of the Four-Square Gospel, veio da Bolívia, chegando ao Brasil em 1946. Williams
fundou após cinco anos de sua vinda ao Brasil, no interior de São Paulo, uma igreja que
pregava o avivamento. Contudo, mesmo no intento de levar uma mensagem de avivamento às
denominações tradicionais, não obteve êxito. Por isso, juntou-se com Raymond Boatrigth na
organização Cruzada Nacional de Evangelização, a qual, num primeiro momento, aderiu a
um nacionalismo, mas posteriormente tornou-se a Igreja do Evangelho Quadrangular,
bastante modificada. Com uma ênfase na pregação através de recursos radiofônicos e no uso
35
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 87.
36
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 264.
30
abundante do espaço público, a Igreja do Evangelho Quadrangular pregou de forma popular,
falando, sobretudo acerca da cura divina, da solução dos problemas gerais e das aflições
internas dos sujeitos religiosos 37 . Grande parte da liderança da referida igreja era feminina e,
por isso, também se estabeleceram certos vínculos com as demais mulheres que compunham
a comunidade e que queriam se fazer ouvidas.
Tendo uma passagem pela Assembléia de Deus e, posteriormente, pela
Igreja do Evangelho Quadrangular, Manuel de Melo intitulou-se “missionário”. Fundou, em
1956, a Igreja de Jesus Betel, que, posteriormente, teve seu nome mudado para O Brasil para
Cristo. Segundo Campos, como se mencionou, o nome da Igreja fundada por Manuel de
Melo, refletia a situação política do nacionalismo da década de 1950 38 . O líder em questão foi
o primeiro brasileiro a fundar uma igreja pentecostal. Ele realizava reuniões de milagres em
praças públicas e em estádios de futebol, e falava num programa de rádio chamado “A Vo z
do Brasil para Cristo”, que permaneceu no ar durante muito tempo. Composta, na sua maior
parte, por migrantes nordestinos, resultado da urbanização e da industrialização, a Igreja O
Brasil para Cristo fortaleceu-se e, através de seu principal líder, um templo para dez mil
pessoas foi inaugurado próximo à região central de São Paulo. Conforme Campos, depois do
processo de institucionalização e de “rotinização do carisma”, nos anos 70 e 80, o carisma
pessoal de Melo não subsistiu, permanecendo com as corriqueiras atuações 39 .
A Igreja Pentecostal Deus é Amor teve início no bairro operário de Vila
Maria e, depois de algum tempo, transferiu-se para a região central da cidade de São Paulo e,
em 1970 inaugurou sua sede, na Rua Conde de Sarzedas. O fundador da referida igreja foi
Davi Martins de Miranda, que veio do interior do Estado do Paraná em 1961, aos 26 anos de
idade. Miranda, depois de 10 anos, comprou uma fábrica desativada nas proximidades da
Praça da Sé, a qual, após os devidos reparos, se tornou a “Sede Mundial” da Igr eja
Pentecostal Deus É Amor. As inúmeras concentrações de fé são realizadas no mencionado
37
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 88.
38
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 88.
39
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo His tórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 88 e 89.
31
lugar e, além disso, há grandes estúdios de rádio nas dependências da Igreja. O grande tema
que perpassa o discurso da Igreja fundada por Miranda é a cura divina 40 .
Durante o período da década de 1950 e 1960, houve uma grande
efervescência no pentecostalismo, de tal forma que inúmeras denominações foram formadas.
Contudo, consoante ao período, não se pode ignorar a presença do Movimento de Renovação
Espiritual no Brasil, o qual não achou lugar na conceituação a respeito do pentecostalismo
entendido pela idéia de “ondas”. Nessa segunda geração de pentecostalismo, surgiram
algumas denominações advindas de cismas em denominações históricas: Congregacional
Independente (1965), Metodista Wesleyana (1967), Batista de Renovação (1970),
Presbiteriana Renovada (1972) e as igrejas autônomas oriundas da fragmentação
pentecostal41 .
É necessário que se observe a inserção do pentecostalismo também no
âmbito do protestantismo histórico no Brasil, conquanto essa verificação se fará importante
para entender o período marcado por muitos embates e seus conseqüentes cismas
denominacionais. Algumas igrejas, representantes do protestantismo histórico brasileiro,
enquanto lugares confortavelmente repletos de fixidez, experimentaram o dinamismo da
inserção pentecostal através do Movimento de Renovação Espiritual, tornando-se lugares
praticados na configuração da mobilidade dos espaços denominacionais.
1.2. O locus fragmentário do protestantismo no Brasil: Uma grande miscelânea
Alguns pesquisadores, como Emilio Willems 42 e Émile Léonard 43 ,
distinguiam o protestantismo brasileiro simplesmente como “históricos” e “pentecostais”.
Porquanto, a princípio, a religião protestante no Brasil não se apresentava com aspectos de
exacerbadas fragmentações.
Fazendo, pois, distinção entre igrejas e seitas, alguns pesquisadores
continuaram trilhando os caminhos a partir das diretrizes de Willems e Léonard. Para
40
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 89.
41
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 90.
42
Pesquisador alemão que viveu no Brasil entre os anos de 1936 e 1949.
43
Protestante francês que ministrou aulas na Universidade de São Paulo na década de 1950.
32
pesquisadores como Beatriz Muniz de Souza e Cândido Procópio Ferreira de Camargo 44 , as
chamadas “seitas” são as igrejas pentecostais e, as chamadas “igrejas” dizem respeito ao
mencionado protestantismo histórico.
Há de se enfatizar, no entanto, que os referidos autores não proporcionaram
contribuições para os momentos posteriores aos do final da primeira década do século XX. O
protestantismo, para além da singularidade, apresentando-se como fragmentário, revela,
portanto, que inúmeras expressões litúrgicas e afirmações doutrinárias tornaram-se possíveis
nos momentos subseqüentes aos da primeira década do século XX.
Mesmo antes dos anos 80, por causa da influência de uma sociologia da
religião norte-americana, falava-se de “neopentecostalismo” e de “movimento carismático”,
entretanto, foi a partir da década de 1980 que as classificações que diziam respeito ao
protestantismo foram mais bem elaboradas. Tal elaboração ocorreu devido a inúmeras
mudanças constatadas, devido a muitas fragmentações verificadas e às influências
pentecostais no bojo da existência das denominações protestantes chamadas históricas.
Houve uma abrangência maior na classificação realizada por Mendonça 45 ,
porquanto, na primeira etapa constata-se as ramificações da Reforma no Brasil através das
famílias de igrejas, mencionando as denominações oriundas do protestantismo de missões e
do protestantismo de imigração, assim como também os chamados históricos e pentecostais:
1. Anglicanos
1.1. Anglicanos propriamente ditos, advindos dos ingleses
e seus descendentes
1.2. Episcopais, oriundos dos norte-americanos
1.3. Metodistas, de origem do sul dos Estados Unidos
2. Luteranos
2.1 Luteranos vinculados à Alemanha, com destaque para
IECLB – alemães e descendentes
2.2 Luteranos ligados aos Estados Unidos, como o Sínodo
de Missouri – alemães e seus descendentes – IELB
3. Reformados
44
Os mencionados autores estudaram a problemática da anomia em zonas urbanas, pois pretenderam verificar o
papel do pentecostalismo no ajustamento dos migrantes advindos das zonas rurais, o que se configurava como
um aumento do pentecostalismo nos grandes centros urbanos.
45
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Um panorama do protestantismo brasileiro atual”. In: Sinais dos Tempos:
Tradições Religiosas no Brasil, p. 34-44.
33
3.1.
Presbiterianos,
advindos
das
missões
norte-
americanas
3.2. Congregacionais, oriundos das missões inglesas,
norte-americanas e outras
3.3. Reformados Europeus, que são igrejas de colônias,
como as dos holandeses, húngaros, franceses, etc.
4. Paralelas à Reforma
4.1. Batistas, oriundos das missões do sul dos Estados
Unidos
4.2. Menonitas, advindos de missões norte-americanas e
alemãs
5. Pentecostais
5.1. Propriamente ditos ou clássicos
5.1.1. Assembléia de Deus
5.1.2. Congregação Cristã no Brasil
5.1.3. Cruzada Nacional de Evangelização, ou Igreja do
Evangelho Quadrangular
5.1.4. O Brasil Para Cristo
5.2. Cura Divina
5.2.1. Deus é Amor
5.2.2. Inúmeras outras
A classificação de Mendonça, acima descrita, demonstra-se eficaz. Contudo,
segundo Freston, embora seja abrangente no seu intento de cobrir as ramificações da Reforma
Protestante no Brasil, tal classificação alija a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e as
igrejas que vieram a existir a partir do “movimento carismático”, a que chama “igrejas
carismáticas” 46 .
Há uma divisão, realizada por Mendonça, acerca de dois grupos, no que
tange ao pentecostalismo. Num dos grupos, composto por igrejas pentecostais chamadas
“clássicas”, são mencionadas, a partir de movimentos na década de 1910 e 1911, as igrejas:
Congregação Cristã no Brasil e Assembléia de Deus. Constata-se, através das classificações
de Mendonça, que nos anos 50 surgiram a Cruzada Nacional de Evangelização ou Igreja do
46
É possível que Mendonça não tenha mencionado a Igreja Universal do Reino de Deus porque, naquele
período, em 1987, a Igreja tinha apenas 10 anos existência.
34
Evangelho Quadrangular e O Brasil Para Cristo. Noutro grupo, denominado como “agências
de cura divina”, Mendonça inclui a Igreja Pentecostal Deus É Amor, na década de 1960 e,
assim também, inúmeras outras que irromperam a realidade protestante.
O critério utilizado por Mendonça para a classificação dos grupos
pentecostais parece ser vinculado à doutrina e não ao período histórico, porquanto igrejas que
surgiram em períodos diferentes receberam a designação de “clássicas”, enquanto outras,
cronologicamente mais aproximadas, foram denominadas como sendo de “cura divina”.
Mariano menciona o fato de que Mendonça refere-se ao pentecostalismo de
cura divina, ao neopentecostalismo e ao pentecostalismo autônomo como sendo sinônimos,
no entanto, lança mão novamente e conceitualmente do neopentecostalismo em suas
abordagens, mas sem abandonar os outros dois 47 .
Mendonça identifica, contudo, que a “agência de cura divina” é uma
terminologia utilizada para denotar grupos com formatos parecidos com os de igreja, mas que
não têm corpo de fiéis fixos, contudo, uma população flutuante à qual prestam serviços
religiosos mediante uma contribuição por parte do beneficiário 48 .
Numa outra etapa, Mendonça apresenta um segundo quadro com os
“membros das famílias de algumas igrejas da Reforma, as quais foram frutos de dissidências
nos países de origem e no Brasil”
49
:
1. Metodista (igrejas de santidade)
1.1. Igreja Metodista
1.2. Igreja Metodista Livre
1.3. Igreja Evangélica Holiness do Brasil
1.4. Irmandade Metodista Ortodoxa
1.5. Igreja do Nazareno
2. Presbiteriana (igrejas da Reforma calvinista)
2.1. Igreja Presbiteriana do Brasil
2.2. Igreja Presbiteriana Independente
2.3. Igreja Presbiteriana Conservadora
2.4. Igreja Presbiteriana Fundamentalista
47
MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando, p. 19.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual”. In: Sinais dos Tempos:
Tradições Religiosas no Brasil, p. 72.
48
49
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual”. In: Sinais dos Tempos:
Tradições Religiosas no Brasil, p. 46.
35
2.5. Igrejas reformadas de colônias holandesas,
húngaras, etc.
3. Batista (igrejas de volta ao cristianismo
primitivo)
3.1. Igreja Batista Brasileira
3.2. Igreja Batista Restrita
3.3. Missão Batista da Fé
3.4. Igreja Cristã Batista Bíblica
3.5. Igreja Batista Revelação
3.6. Menonita
Como se verificou, há o intento por parte do autor de relacionar igrejas
oriundas de dissidências ou que têm caráter cismático, segundo as origens de cada uma. Nesse
aspecto, há diversas dissidências de igrejas metodistas, presbiterianas e batistas, porquanto,
segundo Mendonça, elas possuem uma formação a partir das diversas divisões que se pode
constatar, mesmo ao longe de suas histórias.
Mas, é na terceira etapa, a partir de igrejas advindas do Movimento de
Renovação Espiritual, também mencionadas por Freston como sendo “igrejas carismáticas”,
as quais, em parte são localizadas, segundo Mendonça, no quadro que se segue 50 :
1. Pentecostais Clássicos
1.1. Assembléias de Deus (batistas)
1.2. Congregação Cristã no Brasil (presbiterianos)
2. Pentecostais Recentes
2.1. Batista Independente (batistas)
2.2. Metodista Wesleyana (metodista)
2.3. Presbiteriana Renovada (presbiteriana)
2.4. Assembléia de Deus Presbiteriana
(presbiteriana)
50
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual”. In: Sinais dos Tempos:
Tradições Religiosas no Brasil, p. 47.
36
Embora as denominações pentecostais chamadas de “desviantes da
reforma”, sejam verdadeiramente protestantes, existe, nesse sentido, uma tensão bastante
intensa:
“Não há nenhuma dúvida de que as molduras
eclesiásticas e teológicas dos pentecostais são
protestantes. No entanto, nem os protestantes
históricos estão dispostos a admiti-los como
membros da família nem os pentecostais se
identificam com os protestantes”. 51
Há uma tentativa de demonstrar que, mesmo com inúmeras classificações
realizadas para constatar a atuação pentecostal, verifica-se que a realidade pentecostal
brasileira é muito fracionada. José Bittencourt Filho 52 apresentou em 1991, através do CEDI,
uma tipologia na qual são utilizados os critérios temporais, doutrinários e também os de
transplante (missão e imigração). A tipologia proposta por Bittencourt reformulou-se em
1994, ganhando outro formato.
Para Bittencourt, o Pentecostalismo Clássico abrange as igrejas: Assembléia
de Deus, Igreja Pentecostal, Igreja de Deus, Congregação Cristã no Brasil e a Igreja do
Evangelho Quadrangular. Ainda, para o mesmo autor, o Pentecostalismo Autônomo refere-se
às seguintes igrejas: O Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Bênção, Nova Vida, Igreja
Universal do Reino de Deus e a Igreja Cristo Vive. Existe, porém, o conceito de
nodenominacionalismo, que se encontra na tipologia de Bittencourt, compreendendo as
igrejas: Batista de Renovação, Igreja Metodista Wesleyana, Igreja Cristã Presbiteriana,
Comunidade Evangélica, Igreja Renascer em Cristo e as inúmeras Comunidades Autônomas.
Se, no caso da tipologia de Mendonça, verifica-se um campo fragmentário,
esse aspecto fica mais claro quando se lança mão da tipologia de Bittencourt, pois atualmente
o pentecostalismo tornou-se uma série de desdobramentos que não poderiam ser
completamente mencionados.
Com isso, procurando visibilizar o campo da pluralidade protestante e
buscando bases para análises missiológicas a partir do contexto no qual se fazem missões,
Araújo propõe uma classificação do pentecostalismo brasileiro 53 :
51
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual”. In: Sinais dos Tempos:
Tradições Religiosas no Brasil, p. 45.
52
José Bittencourt Filho é pastor da Igreja Presbiteriana Unida, porém é oriundo do âmbito das Igrejas Batistas
Renovadas.
53
ARAÚJO, Stepheson S. A Manipulação no Processo da Evangelização, p. 54 a 57.
37
1. Pentecostais Históricos – Assembléia de Deus e Congregação Cristã no
Brasil;
2. Neopentecostais – Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Pentecostal O
Brasil para Cristo e Igreja do Evangelho Quadrangular;
3. Renovados ou Carismáticos – Igreja Batista Nacional, Igreja Presbiteriana
Renovada do Brasil, Igreja Cristã Maranata e Igreja Metodista Wesleyana;
4. Novos Carismáticos – Igreja da Restauração, Igreja Tabernáculo
Evangélico de Jesus, Casa da Bênção, Igreja Pentecostal de Nova Vida, Igreja Universal do
Reino de Deus, Igreja Pentecostal Unida, Igreja Evangélica Pentecostal, Igreja Internacional
da Graça de Deus, Igreja Evangélica Embaixadores de Cristo, Igreja Cristã Evangélica, Igreja
Betesda, Igreja Pentecostal Missionária da Arca, Igreja Evangélica Povo de Deus, Igreja do
Nazareno, Comunidade Evangélica, Igreja Evangélica Ágape, Igreja Evangélica Cristo
Ressurreto, etc.
Para Stepheson S. Araújo, o pentecostalismo, de uma forma geral, tem
características temporais-doutrinárias, porquanto não é possível fazer uma tipologia
excludente, que observa o aspecto doutrinário e alija o aspecto temporal.
Destarte, o autor prefere o termo “histórico” a “clássico” para classificar o
pentecostalismo da década de 1910. Araújo identifica, portanto, que o pentecostalismo da
década mencionada é caracterizado da seguinte forma 54 :
1. Crença no batismo com o Espírito Santo como segunda bênção;
2. Ascetismo e sectarismo caracterizados pelo extremo rigor nos usos e
costumes e constante risco de perda da salvação;
3. Ênfase nas experiências individuais;
4. Escatologia pré- milenista e pré-tribulacionista.
Para denominações constituídas a partir da década de 1950, Araújo aplica o
termo neopentecostais, que é apropriado para designar grupos advindos dos pentecostais
históricos. Segundo Araújo, os neopentecostais mantiveram as características dos
pentecostais históricos, entretanto, houve algumas alterações 55 .
“Acréscimo e decréscimo de algumas características
como as seguintes: o dom de curas e o dom de
54
55
ARAÚJO, Stepheson S. A Manipulação no Processo da Evangelização, p. 54.
ARAÚJO, Stepheson S. A Manipulação no Processo da Evangelização, p. 55.
38
revelações – ‘as divinas revelações’ – também são
evidências do batismo com o Espírito Santo e não
apenas o dom de línguas”. 56
No que tange aos conceitos de Araújo, os renovados, ou carismáticos,
constituíram grupos denominacio nais que são dissidênc ias das denominações históricas na
década de 1960. As características básicas que identificam os grupos renovados são:
1. Teologia fundamentalista baseada em doutrinas provenientes da Bíblia;
2. Batismo com o Espírito Santo como segunda bênção – o dom de línguas
às vezes é evidência da presença do mencionado batismo;
3. Escatologia pré- milenista e pré-tribulacionista;
4. Ascetismo caracterizado pela busca constante de santificação, mas sem o
risco de perda da salvação por causa da não-observância dos usos e costumes;
5. Ênfases nas experiências individuais.
1.3. Um locus oscilante no vaivém das ondas: uma antidisciplina pentecostal
O sociólogo Paul Freston introduziu, no estudo do pentecostalismo, em sua
tese de doutorado intitulada “Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao
impeachment”, o conceito de ondas e, a partir disso, objetivou um estudo acerca da história
do pentecostalismo no Brasil. Freston observou que há três ondas de implantação de igrejas
pentecostais no Brasil; entretanto, para que fosse possível essa abordagem, ele partiu da
proposta de Martin, o qual identifica o protestantismo em três ondas de dissidência 57 , a saber,
a calvinista, a metodista e a pentecostal.
Segundo Freston:
“A primeira onda é a década de 1910, com a chegada
da Congregação Cristã (1910) e da Assembléia de Deus
(1911). Estas duas igrejas têm o campo para si durante
40 anos, pois suas rivais são inexpressivas. (...) A
segunda onda pentecostal é dos anos 50 e início de 60,
na qual o campo pentecostal se fragmenta, (...) e três
grandes grupos (em meio a dezenas de menores)
56
57
ARAÚJO, Stepheson S. A Manipulação no Processo da Evangelização, p. 55.
MARTIN, David. Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin América, p. 9 a 11.
39
surgem: a Quadrangular (1951), Brasil para Cristo
(1955) e Deus é Amor (1962). (...) A terceira onda
começa no final dos anos 70 e ganha força nos anos 80.
Suas principais representante são a Igreja Universal do
Reino de Deus (1977) e a igreja Internacional da Graça
de Deus (1980)”. 58
A cada onda descrita por Freston, verifica-se, segundo o próprio autor, que
existe um contexto específico para a sua existência enquanto momento histórico, a saber, um
locus específico por entre um âmbito fragmentário. A primeira onda, com a Congregação
Cristã no Brasil e com a Assembléia de Deus, é proporcionada através do momento em que,
mundialmente, o movimento pentecostal se expandiu e se alastrou. A solidificação da
Assembléia de Deus no nordeste foi culminante num sucesso pentecostal posterior, porquanto
trata-se de uma região de fluxo migratório. A segunda onda, que ocorreu, na sua maior parte
no seio do Estado de São Paulo, coincidiu com o momento histórico da urbanização e da
formação de uma sociedade de massas, na década de 1950. Tal período histórico facilitou a
divulgação dos modelos existentes, sob a influência direta da Igreja do Evangelho
Quadrangular, que propunha diferenciados métodos de evangelização. A terceira onda, que
ocorreu, na sua maior parte, no Estado do Rio de Janeiro, utilizou-se da economia decadente,
da violência, do jogo do bicho e da política populista para as formulações de uma nova
teologia, de uma nova liturgia, de uma nova estética e de um novo âmbito evangélico. As
igrejas da terceira onda, que surgiram na década de 1970 e se fortaleceram na década de
1980, foram beneficiadas pela modernização da comunicação e da expansão do setor
urbano 59 . Essa onda teve o seu início com a Igreja Universal do Reino de Deus e com a Igreja
Internacional da Graça de Deus, as quais foram fortes propagadoras do neopentecostalismo
nascente.
A conceituação de Freston a respeito das ondas faz-se entender numa idéia
de periodização, no entanto, olhada na perspectiva das experiências religiosas históricas.
Verifica-se que há bastante mobilidade naquele período, porquanto o pentecostalismo é
altamente criativo e versátil. Contudo, uma onda que se desmancha e se dilui não pode
descrever a solidificação no Brasilda Assembléia de Deus, que se tornou a maior
denominação pentecostal brasileira, mas pode enfatizar claramente aspectos da não- fixidez
do pentecostalismo.
58
59
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66.
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66.
40
Há também um grande vácuo na conceituação do pentecostalismo quando se
trata do Movimento Pentecostal baseado na idéia das ondas, porquanto Freston não descreveu
as igrejas do Movimento de Renovação Espiritual constituídas na década de 1960, e
tampouco narrou acerca das comunidades cristãs que surgiram na década de 1980. Em sua
tese, Freston dedicou um capítulo ao qual chama de “carismatismo brasileiro de classe
média”, e, nesse intento, dividiu-o em “Renovação Carismática Protestante” e
“Comunidades Carismáticas”, porém, mesmo assim, o autor deixa de situar as igrejas que
fazem parte desses “carismatismos” na tipologia edificada a partir da idéia referente às
ondas.
Pode-se dizer que há uma grande dificuldade de classificação de um
movimento religioso brasileiro atribuindo- lhe um rótulo que é aplicado no exterior. Há
semelhanças entre o Movimento Carismático Americano e o Movimento de Renovação
Espiritual ocorrido no Brasil. No entanto, o lugar onde esses pentecostalismos ocorreram são
distintos. Uma tarefa difícil é escolher outra terminologia para designar o movimento
brasileiro, pois o termo carismatismo é mais apropriado para o protestantismo estrangeiro e,
não estando no linguajar dos pregadores da Renovação, não reflete seus ideais de
reconstituição das denominações históricas em formato de expressões pentecostais.
Mariano, lançando mão da tipologia de Freston, intentou nomear cada uma
das ondas, mesmo tendo repetido as igrejas relacionadas por Freston, que compunham a
primeira e a segunda onda. Para a primeira manteve o nome de “clássicas”, contudo, no que
tange à segunda, classificou-as como “neoclássicas”
60
.
O modelo da conceituação através das “ondas de pentecostalismo” é um
emaranhado conceitual pertencente a uma tipologia utilizada para explicar a realidade de um
protestantismo aos moldes anglo-saxões e não aos moldes brasileiros. Há uma tentativa
válida de adaptação de tal tipologia; entretanto, somente a primeira onda do pentecostalismo
brasileiro coincide com a do pentecostalismo americano, no que se refere aos aspectos
doutrinário e temporal.
A
segunda
onda
do
pentecostalismo
brasileiro,
embora
coincida
temporalmente com a segunda onda do pentecostalismo americano, insinua-se de forma
diferenciada, pois nos Estados Unidos, em boa parte das experiências, o dom de línguas não é
a evidência do batismo no Espírito Santo e os pentecostais são mantidos no âmbito das
igrejas históricas. Nas concepções de Freston e de Mariano, na manifestação pentecostal no
60
MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando, p. 22.
41
Brasil, referente à segunda onda, a qual se procedeu na década de 1950 e de 1960, o
pentecostalismo continua acreditando no dom de línguas como evidência do batismo no
Espírito Santo, mas enfatiza veementemente as curas divinas.
Encontram-se, portanto, vantagens e desvantagens em se fazer abordagens a
partir da concepção da tipologia que denota as ondas de pentecostalismo, pois não se pode
entender a realidade da experiência religiosa vivenciada no Brasil a partir dos movimentos
que tiveram origem nos Estados Unidos, conquanto além de similaridades, há distinções
marcantes entre os pentecostalismos. Segundo Freston, há uma justificação para a tipologia
baseada na idéia de ondas:
“A vantagem dessa maneira de colocar ordem no
campo pentecostal é que ressalta, de um lado, a
versatilidade do pentecostalismo e sua evolução ao
longo dos anos e, ao mesmo tempo, as marcas que cada
igreja carrega da época em que nasceu”. 61
É evidente que, para fazer um trabalho historiográfico da narrativa das
experiências religiosas, precisa-se trabalhar com determinados períodos, nos quais constatamse as manifestações experienciais. Nisto a periodização das ondas é algo pertinente e
proveitoso.
Há, nas características pentecostais, inúmeras maneiras de fazer e viver
experiências religiosas, porém, levando em consideração que o formato da idéia de ondas
pressupõe uma característica de não-fixidez, realmente o locus pentecostal da experiência
religiosa é bastante instável por conta da inserção do sujeito na experimentação do Espírito
Santo.
Os pentecostais, como sujeitos históricos que vivenciam uma experiência
religiosa, constituem mil práticas pelas quais, como usuários, se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas de produção sociocultural no âmbito das igrejas históricas.
Ressalte-se também que houve uma reapropriação das conceituações para atualizadas
produções religiosa, heurística e teológica 62 .
Freston, como fora dito, abordou os determinados “Carimatismos de
Classe Média”, mas deixou de dizer quais seriam as igrejas que representariam a
“Renovação Caristmática” e as “Comunidades Carismáticas” e, além do mais, os aludidos
grupos foram identificados demasiadamente com os protestantismos estrangeiros. Onde
61
62
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment, p. 66.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 41.
42
estariam, de fato, as igrejas do Movimento de Renovação Espiritual? Qual seria o seu locus
no grande e fragmentário mar de ondas?
As operações quase que microbianas proliferaram-se no seio da estrutura
pentecostal, formando-se em táticas que são atuantes na impregnação dos detalhes
constituídos no cotidiano dos sujeitos religiosos. Essas maneiras sutis de fazer são
evidenciadas através das experiências religiosas, as quais são como ondas, pois carregam
consigo a característica da não-fixidez de que se abordou63 .
A importância da idéia de ondas está no fato de que ela auxilia na
periodização; contudo, não se pode totalizá- la, pois, se esse fosse o intento de Freston, seria
muita pretensão devido à imensurável fragmentação do protestantismo pentecostal. O que se
pode constituir, a partir do pentecostalismo entendido através das ondas, seria uma noção da
não- fixidez da experiência religiosa, que se dá no campo da sub jetividade humana. Certeau,
em A Invenção do Cotidiano, pretende abordar alguns procedimentos e astúcias que, de
alguma forma e através das táticas articuladas sobre os “detalhes”, compõem a rede de uma
antidisciplina 64 . Portanto, acha-se em questão não somente as “ondas de pentecostalismos”,
mas as “ondas nos pentecostalismos”, enquanto fenômeno plural e fragmentário, bem como
experimental.
A antidisciplina das ondas nos pentecostalismos concede uma abordagem
bastante desconexa acerca da experiência religiosa e das ações dos sujeitos religiosos, pois
cada vivência religiosa é concebida num contexto específico. Por isso, há uma necessidade de
se assumir que o sujeito que fala deve passar por um processo hermenêutico a partir do lugar
de onde fala.
Michel de Certeau reporta-se a uma metáfora muito pertinente sobre o
estabelecimento da invenção do cotidiano e dos relacionamentos existentes entre as pessoas
por meio dos procedimentos. Ele descreve acerca de uma visão do World Trade Center, no
110º andar, donde se pode visualizar uma determinada massa que se imobiliza sob o olhar.
Há o estabelecimento de uma diferença gritante entre Nova Iorque e Roma, porquanto Nova
Iorque nunca soube o que é envelhecer curtindo seu passado, pois seu presente se inventa
sempre no ato de lançar o que adquiriu e de desafiar o futuro 65 .
63
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 41.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 42.
65
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 169.
64
43
Portanto, olhar para as massas, de cima, no World Trade Center, é
desconhecer as suas práticas. E, embora se desconheçam as práticas, tratando-se de
antidisciplinas, verifica-se que, embaixo vivem pessoas que jogam com a realidade
mobilizando o espaço como os bailarinos fazem com o salão e como o surfista faz quando
“pega uma onda”. Destarte, o lugar pentecostal de ser é definido pelos sujeitos que praticam
no referido locus contextual, mas que, de igual forma, conhecem o espaço tanto quanto
desconhecem o corpo-a-corpo amoroso. É como o surfista que “pega uma onda” sem saber
exatamente as suas dimensões, contudo, sabe que, em determinados lugares praticados, de
certas praias, há experiências muito fortes para serem vivenciadas de forma bastante
subjetiva.
O pentecostalismo, da década de 1950 e de 1960, é como a cidade descrita
por Certeau, pois tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas
organizadoras da religião, que praticada, na maioria dos casos, curtindo uma paisagem
urbanizada pelos processos históricos no Brasil. Há um grande desconhecimento e
esquecimento das práticas 66 , porém há marcas profundas de experiências que, assim como a
cidade, fazem-se vistas por sua não-fixidez67 .
A idéia de ondas, embora incompleta, auxilia na demarcação dos períodos da
trajetória pentecostal no Brasil e, no caso do pentecostalismo autônomo, põem-se em questão
os Movimentos de Renovação Espiritual, pois eles nasceram em torno de lideranças fortes.
Essas lideranças, segundo Bittencourt, revelam um pentecostalismo formado por inúmeras
pessoas de personalidades bem definidas68 , os quais vivenciaram relações de poder em
determinado locus religioso.
Os lugares históricos, portanto, através das ondas de instabilidade da
experiência religiosa pentecostal, evidenciam as organizações de lugares pelos deslocamentos
que, de certa maneira, os descrevem e os demonstram na cotidianidade tomada pelas práticas
da religião.
Há, portanto, um desconhecimento e um problema sério quando se tenta
classificar exatamente as ondas, pois a não-fixidez da experiência pentecostal está presente na
chamada segunda onda pentecostal, ventilada por Freston, aderida por Mariano e utilizada
por Campos, entre outros. Não se pode totalizar e caracterizar os pentecostalismos de forma
66
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 171.
Tal aspecto, embora indique a mobilidade da experiência religiosa, não exclui as características fundamentais
do pentecostalismo de Renovação Espiritual, descrito por Araújo, como verificou-se.
68
BITTENCOURT, José. “Remédio Amargo”. In: Antoniazzi, Alberto et alli, Nem Anjos Nem Demônios –
Interpretações Sociológicas do Pentecostalismo, p. 24.
67
44
tão contundente, pois há uma forte mobilidade no locus religioso daquele contexto, como há
grande mobilidade nos sujeitos religiosos.
Essa não- fixidez das experiências religiosas se dá justamente porque o
Movimento de Renovação Espiritua l tem similaridades com outros pentecostalismos
fragmentários e também por encontrar um lugar nas reformulações no âmbito da pluralidade
de experiências observadas no interior dos outros pentecostalismos, bem como na
particularidade de cada sujeito religioso.
Conforme Humberto Viegas Fernandes, com o batismo no Espírito Santo,
também havia pessoas que se manifestavam de diferentes formas. Algumas práticas são
mencionadas, tais como “arrependimento com lágrimas”, “quebrantamento de coração”,
“técnicas para a glossolalia” e uma ênfase nas curas, bem como a formação de uma
linguagem própria que, segundo o autor, seria repleta de “chavões” 69 . Tudo isso de diversas
maneiras, na multiforme experiência do pentecostalismo que, no caso em tela, está localizada
na década de 1950 e 60.
Portanto, a antidisciplina, abordada outrora, revela um
conhecimento parcial da experiência religiosa constituída pelo Movimento de Renovação
Espiritual.
A antidisciplina das práticas religiosas do Movimento de Renovação
Espiritual não pode ser delineada com tanta exatidão, pois o pentecostalismo brasileiro difere
do americano. A mobilidade inerente às experiências religiosas vivenciadas a partir do
referido Movimento não pode caracterizar, mas descaracterizam uma exatidão, donde: no
vaivém das ondas, as experiências pentecostais são repletas da não-fixidez experiencial.
Apresentam-se, pois, alguns quadros que elucidam acerca da proposta das
três ondas, que foram descritas por Freston e por Mariano. Esses quadros também poderão
servir como comparativo:
ONDA
1ª
ANO/PAÍS
NOME DO
CARACTERÍSTICAS
PRINCIPAIS
MOVIMENTO
PRINCIPAIS
DENOMINAÇÕES
EUA – Teve início em
Pentecostalismo
Valorização do dom de
Igreja do Evangelho
1906
Clássico
línguas como evidência
Quadrangular, Igreja
do batismo no Espírito
de Deus, Assembléia
Santo.
de Deus, Igreja de
Deus em Cristo.
BRASIL – Teve início
Pentecostalismo
Valorização do dom de
Assembléia de Deus,
em 1910-11
Clássico
línguas como evidência
Congregação Cristã no
do batismo no Espírito
Brasil.
Santo.
69
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 55 a 71.
45
ONDA
ANO/PAÍS
NOME DO
MOVIMENTO
2ª
CARACTERÍSTICAS
PRINCIPAIS
PRINCIPAIS
DENOMINAÇÕES
EUA – Teve in ício em
Neopentecostalismo
Batismo no Espírito
Algumas igrejas
1960
ou movimento
Santo como sinal de
conservadoras
carismático
habilitação para a
vivenciaram a
adoração e serviço, mas
experiência
sem a evidência do dom
pentecostal sem, no
de línguas. Em algumas
entanto,
igrejas havia
experimentarem
manifestações de cura
cismas: luterana,
divina.
batista, episcopal,
metodista,
presbiteriana e
católica.
BRASIL – Teve início
Pentecostalismo
em 1953
neoclássico de cura
Ênfase na cura divina.
Igreja do Evangelho
Quadrangular, Brasil
divina ou autônomo
para Cristo, Deus é
Amor, Casa da
Bênção.
ONDA
3ª
ANO/PAÍS
NOME DO
CARACTERÍSTICAS
PRINCIPAIS
MOVIMENTO
PRINCIPAIS
DENOMINAÇÕES
EUA – Teve início em
Signs and Wonders
Enfoque na guerra
Vineyard Christian
1980
Movement
espiritual e na cura
Fellowship .
(movimento de sinais
divina e amenizado, no
e maravilhas)
que tange ao ensino e à
quebra de maldições.
BRASIL – Teve início
em 1977
Neopentecostalismo
Ênfase na guerra
Igreja Universal do
espiritual, no ensino da
Reino de Deus, Igreja
quebra de maldições e
Internacional da Graça
na teologia da
de Deus, Igreja
prosperidade.
Renascer em Cristo e
Comunidades.
46
1.4. Ondas vêm e ondas vão: Um locus de belicosidade para o Movimento de Renovação
Espiritual e para Rosalee Mills Appleby
Para o protestantismo brasileiro, em parte, algumas tipologias, apresentadas
por Mendonça e por outros, bem como a idéia de ondas, apresentada por Freston e utilizada
por inúmeros, são atraentes, pois conseguem dar conta da periodização do pentecostalismo
que se procedeu com suas especificidades. Porém, nessa pesquisa, está-se propondo uma
abordagem de um cisma pentecostal ocorrido na Conve nção Batista Brasileira na década de
1960 e, portanto, procura-se um locus para o Movimento de Renovação Espiritual que se
operacionalizou na denominação batista, vindo a culminar no referido cisma.
Há uma controvérsia referente à caracterização dos batistas como sendo
protestantes. Entretanto, para Azevedo, foi pelo uso da história que o protestantismo passou a
ser aplicado a todos os grupos religiosos decorrentes da Reforma e os batistas são chamados
de herdeiros no que tange à aplicação do termo. Notem-se as palavras de Azevedo acerca do
protestantismo:
“Pelo uso da história, passou a ser aplicado a todos os
grupos religiosos decorrentes dos movimentos
reformadores (cisões) do século 16: os matrizes
(luteranos, presbiterianos [calvinistas e zwinglianos],
anglicanos
e
anabatistas);
os
herdeiros
(congregacionais, batistas e metodistas) e os viceherdeiros (adventistas e pentecostais, entre os
principais). O traço de genericidade é dado pela
afirmação dos três princípios de Martinho Lutero
(1483-1546): Solus Chistus, Sola Fide e Sola
Scriptura”. 70 Grifo nosso
Portanto, as Igrejas Batistas são representativas do chamado protestantismo
histórico 71 . Toda Igreja Batista é autônoma e independente, bem como regida pela forma de
um governo congregacional. Por conseqüência do exposto, prega m-se as expressões de
individualismo e de autonomia nas manifestações de fé e na vida cristã. Segundo Azevedo, a
70
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo, p. 15.
Segundo Reis Pereira, existem três teorias sobre as origens dos batistas: a primeira é conhecida como JJJ, ou
seja, Jerusalém-Jordão-João, e afirma que os batistas vêm em linha ininterrupta desde os tempos em que João
Batista realizava batismos no rio Jordão; a segunda traça a origem no parentesco espiritual com os anabatistas do
século XVI; a terceira refere-se ao “fato” de que os batistas surgiram dos separatistas ingleses, pois criam no
batismo por imersão. Breve História dos Batistas. Rio de Janeiro: Juerp, 1987, p. 9.
71
47
doutrina, a moralidade, a ética e as demais expressões existentes no âmbito batista advêm da
valorização do esforço próprio, da liberdade de consciência e do acesso direto a Deus 72 .
“No auto-elogio dos Batistas, eles são os campeões da
democracia representativa e se orgulham de a praticar
no dia-a-dia da sua igreja, cujo “governo é uma pura
democracia”. Essa democracia – ensina Watson – é
“garantida pela soberania de Deus” e efetivada
“mediante a Palavra Divina e a atuação do Espírito
Santo no coração de cada crente”. 73
A partir dessa afirmativa, há fortes indícios que demonstram uma forma de
governabilidade batista que poderá ser procedida na legitimação das atitudes de poder no
ambiente congregacional. Portanto, preza-se o uso constante da Bíblia, que é considerada pelo
grupo como Palavra de Deus e, conseqüentemente, a ação do Espírito Santo nas expressões de
subjetividade humana dos sujeitos religiosos referidos. Segundo Watson, é justamente esse
aspecto que denota a soberania de Deus nas atuações governamentais, o que constitui um
sujeito religioso com determinada consciência de seu estado de instrumentalidade do divino.
Contudo, em dado momento da história dos batistas, foi necessária a criação
de uma Convenção Batista Brasileira, pois a influência dos americanos no começo do século
passado fora muito acentuada. Assim como as Igrejas Batistas dos Estados Unidos, de onde
vieram muitos missionários, também foi conveniente para as igrejas batistas brasileiras a
criação de uma Convenção que lhes pudesse servir.
“Desde o século passado até agora, o modelo
permanece o mesmo, com algumas alterações. O órgão
máximo é a Assembléia anual da Convenção, a que
comparecem os membros (pastores e leigos) das igrejas
para deliberação. No interreegno das assembléias, um
Conselho
executivo
procura
coordenar
a
implementação das decisões, cuja execução compete às
entidades (jutas), que têm um conselho consultivo (que
se reúne quatro vezes por ano) eleito nas assembléias e
uma equipe de funcionários escolhida por esse conselho
setorial. O mesmo modelo se reproduz no plano
estadual e, em menor grau de complexibilidade, no
plano regional”. 74
Desse modo, na forma batista de pensar a funcionalidade da eclesiologia, as
igrejas locais são soberanas e as Associações, as Convenções Estaduais, bem como a
72
73
74
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo, p. 304.
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo, p. 308.
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo, p. 195 e 196.
48
Convenção Batista Brasileira servem para auxiliar as igrejas, promover a cooperação e
principalmente as missões nacionais, estaduais e mundiais.
Segundo o historiador José dos Reis Pereira, a primeira intenção acerca da
criação da Convenção Batista Brasileira, através das igrejas já existentes e sob a liderança do
Pr. Salomão Guinsburg, concretizou-se somente a 22 de junho de 1907, na cidade de
Salvador, por causa da forte atuação da chamada Primeira Igreja Batista no Brasil, que se
situava naquela localidade 75 .
Portanto, no decorrer da história dos batistas no Brasil e no interior das
igrejas pertencentes à Convenção Batista Brasileira, ocorreu, como se mencionou,
determinado Movimento de Renovação Espiritual que fora marcado por um intenso
avivamento religioso. Como se referiu, tal movimento culminou, após muita militância, no
primeiro cisma pentecostal da história dos batistas no Brasil, ocorrido na Convenção anual de
1965. Há causas remotas do movimento pentecostal que resultou no cisma denominacional,
pois, segundo Reis Pereira, sempre houve nas igrejas batistas do Brasil, o que ele chama de
“santa insatisfação”, porque se queria um nível elevado de vida espiritual e moral, de tal
forma que a rotina não determinasse a pregação do evangelho e sua vivência espiritual76 .
Enéas Tognini alega que ele e seus colegas mais próximos sempre tomavam
conhecimento dos grandes avivamentos ao longo dos séculos, achavam bonitos e desejavam
que tornassem a acontecer, agora no Brasil 77 . Para Tognini, a efervescência do avivamento no
seio da denominação batista teria sido resposta das orações de Appleby. A missionária teria
sonhado com o avivamento e vivido o avivamento, conquanto ela tenha sido considerada
como a “fagulha que incendiou a pátria brasileira”
78
.
Para ele, as orações da missionária americana em prol de renovação
espiritual foram atendidas com veemência e o tão desejado avivamento entrou em curso no
75
Existe uma controvérsia acerca do início do protestantismo batista no Brasil. Alguns historiadores, como Reis
Pereira, concordam com a posição oficial da Convenção Batista Brasileira, segundo a qual a primeira igreja
batista no Brasil teria sido fundada a 15 de outubro de 1882, em Salvador, no Estado da Bahia. In: PEREIRA, J.
Reis. História dos batistas no Brasil. Rio de Janeiro, p. 251.
Entretanto, outros historiadores, como Marcelo Santos, advogam que a primeira igreja batista teria sido fundada
em Santa Bárbara, Estado de São Paulo, a 10 de setembro de 1871, a segunda igreja teria sido organizada a 02 de
novembro de 1879 e a terceira teria sido fundada em 1882 em Salvador, no Estado da Bahia. In: SANTOS,
Marcelo. O Marco Inicial Batista.
76
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 251.
77
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 75.
78
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 75.
49
Brasil, pois entre 1954 e 1985 dois homens teriam sido batizados com o Espírito Santo, a
saber, em sua ordem, José Rego do Nascimento e o próprio Enéas Tognini.
No centro da controvérsia encontra-se um fenômeno de renovação espiritual,
caracterizado pelos integrantes do Movimento como sendo o Batismo no Espírito Santo.
“Qual foi o cerne da divisão dos batistas brasileiros?
Nada mais e nada menos do que batismo no Espírito
Santo, experiência distinta do novo nascimento (...) Eu
era crente, e até um pouco mais – pois dizem que
batista é mais crente, e eu sou batista. Pastor há longos
anos, combatia os irmãos pentecostais por causa dessa
bênção e, no entanto, fui poderosamente batizado no
Espírito em 1958. E, por causa disso, deixei tudo,
entreguei meus cargos na denominação, fui mal
entendido, perseguido, caluniado”. 79
Ainda que se considerem as causas mais remotas das tendências pentecostais
no seio da Convenção Batista Brasileira, faz-se necessário averiguar também que o
Movimento de Renovação Espiritual deu-se num ponto de partida estabelecido pela atuação
veemente da missionária americana Rosalee Milss Appleby.
Desse modo, sabe-se que as idéias da missionária e o seu desejo por
renovação espiritual influenciou inúmeros líderes denominacionais e, por isso, pode-se fazer
alusão a ela como uma pessoa que impulsionou o Movimento de Renovação Espiritual através
da sua atuação no âmbito batista. Faz-se necessário, portanto, averiguar alguns eventos
ocorridos na vida de Appleby para que se tenha certa noção do impacto de sua mensagem nos
ouvintes batistas brasileiros.
A missionária nasceu em Oxford, no Mississipi, a 25 de fevereiro de 189580 .
Sua família era composta por fazendeiros bastante atuantes na vivência protestante. A mãe de
Appleby era batista e o pai metodista. A conversão da missionária teria ocorrido como
conseqüência de uma solitária experiência vivenciada aos 11 anos de idade, na casa da
família. Segundo Xavier, no dia da conversão de Appleby, o “Espírito agitou o seu coração”
e, tendo submetido sua vida a Cristo, no culto da noite confessou publicamente a Jesus como
seu salvador pessoal, sendo batizada pelo pastor local no domingo seguinte. 81 .
79
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 77.
Rosalee Mills Appleby faleceu no dia 20 de maio de 1991, aos 96 anos.
81
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 13.
80
50
Mas, foi no período de sua adolescência que Appleby teria vivido algo
bastante marcante consoante à sua fé, a saber, o testemunho de sua tia, que relatou sua
experiência de “enchimento do Espírito”, coisa que, segundo sua tia, fora concedida por Deus
“quando reconheceu que nada podia ser feito com esforço próprio”
82
.
Porém, havia certa inquietação em Rosalee, pois ela afirmava que,
desafortunadamente, grande parte dos sermões que ouvia sobre o Espírito Santo era
negativista e pregados para combater algumas denominações. Por isso, tudo o que dizia
respeito ao Espírito Santo tornou-se antipático para ela; contudo, por ocasião do seu encontro
com a tia Mollie, ela alega ter descoberto a verdade sobre a vida espiritual e acerca do
enchimento do Espírito Santo 83 .
“Rosalee lia a respeito de cristãos que possuíam algo
melhor do que os altos e baixos, a vida de “deserto-emaravilha” que a maioria dos membros nominais das
igrejas conheciam. Nessa querida mulher, ela via uma
demonstração real de vida. Depois que passou a
conhecê-la e amá-la, veio sobre Rosalee um desejo
muito grande de possuir aquela vida abundante. Como
o salmista, ela pôde então dizer: “Minha alma anseia
pelo Senhor mais que os guardas pelo romper da
manhã”. Seus passos estavam sendo ordenados pelo
Senhor”. 84
Aos 25 anos, Rosalee graduou-se no curso “Normal Superior”, na
Universidade Batista de Oklahoma, tendo realizado estudos teológicos também no Seminário
Teológico Batista do Sul, em Louisville, Kentucky. Foi nesse período de sua vida que
conheceu David Appleby, um jovem pastor com quem posteriormente se casou. O Pr. David
Appleby, quando estabeleceu contato com o Pr. Salomão Ginsburg85 e com o Pr. Francisco
Soren86 , sentiu-se “chamado por Deus” para trabalhar no Brasil.
Assim, no ano de 1924, os recém-casados, Rosalee e David Appleby,
chegaram ao Brasil e, após um período adaptativo no Estado do Rio de Janeiro, no qual se
esforçaram para aprender a língua portuguesa, a história e a geografia brasileira, foram para
Belo Horizonte, cidade de onde partiam para “fazer missões” no interior de Minas Gerais.
82
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 14.
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 15.
84
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 15.
85
De origem polonesa, o Pr. Salomão Ginsburg foi conhecido como “o judeu errante”. Foi compositor de
alguns hinos que dizem respeito à abundância espiritual. Segundo Tognini e pelo que consta no hinário oficial
dos batistas, ele traduziu o hino 161 do Cantor Cristão (Poder Espiritual), e também os hinos: 168 (Chuvas de
Bênçãos), 171 (Avivamento), e 176 (Tempo de Ser Santo). História dos Batistas Nacionais, p. 47.
86
Descendentes de huguenotes, foi pastor da Primeira Igreja Batista do Rio de janeiro.
83
51
No entanto, após adoecer com uma úlcera, o Pr. David Appleby faleceu em
outubro de 1925, no mesmo hospital em que, depois de algumas horas, Rosalee M. Appleby
deu à luz ao único filho do casal. Enquanto estava passando pelo chamado “leito de morte”,
teria dito à sua mulher: “Faça o seu trabalho e o meu”87 . Segundo Xavier, David também
sussurrou: “Eles estão me chamando, chamando, chamando – lá no céu. Não sabia que é tão
bonito! Tudo está bem com minha alma” 88 .
Desse modo, mesmo após a morte de seu marido, Rosalee começou a
evangelizar nos lares dos cristãos e fazer visitas aos crentes, principalmente nos bairros mais
pobres de Belo Horizonte. Inúmeras igrejas foram organizadas através de seu empenho
missionário. Contudo, o impacto maior que seu trabalho causou está expresso nos livros e
folhetos que escrevia, dos quais destacam-se as séries: “Vida Vitoriosa” e “Folhetos de
Poder”. Nessas literaturas encontram-se as idéias de Appleby acerca do batismo no Espírito
Santo como “segunda bênção” e, assim sendo, como fato subseqüente à salvação.
“A expressão “batismo no Espírito Santo” é bíblica e,
portanto, aceitável. João a usou. A expressão usada por
João ficou registrada nos quatro evangelhos, o que
demonstra a sua importância e valor. Eis a declaração
do profeta do deserto, João Batista: “Ele (Jesus) vos
batizará com o Espírito Santo...” (João 1:33; cf.
Mateus 3:11; Marcos 1:8; Lucas 3:16). O próprio
Senhor prometeu aos discípulos batizá-los no Espírito
(Atos 1:4, 5) e Pedro usou a expressão em conexão com
a experiência na casa de Cornélio (Atos 11:16)” . 89
Segundo Reis Pereira, o objetivo da missionária era a evangelização;
entretanto, ela dizia que para “evangelizar direito” seria necessário que se tivesse uma
experiência com o Espírito Santo 90 . Para Appleby, o batismo no Espírito Santo “traz
interesse pela salvação de outros”, sendo essa experiência fundamental para ter uma
motivação na evangelização de pessoas que não professavam a fé protestante 91 .
A missionária Rosalee M. Appleby fora muito bem aceita entre os batistas
brasileiros, porquanto sua devoção era notória e sua conduta ilibada e, sendo uma missionária
americana, Rosalee tinha autonomia sobre o que iria pregar ou ensinar. Conforme Reis
Pereira, suas palestras nas igrejas eram sempre motivo de inspiração, pois a missioná ria fazia87
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 28.
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 27.
89
APPLEBY, Rosalee Mills. O Espírito Santo: Vida e Poder, p. 17.
90
PEREIRA, J. Reis. História dos Batistas no Brasil, p. 194.
91
APPLEBY, Rosalee Mills. O Espírito Santo: Vida e Poder, p. 21.
88
52
se conhecida através de sua modéstia, de sua unção autêntica, a qual impressionava a todos92 .
Tognini e Almeida igualmente referem-se de maneira laudatória à missionária Appleby, a
ponto de situá- la na galeria dos reformadores protestantes:
“Na galeria desses servos de Deus, desfilam nomes
inesquecíveis que estiveram na crista da onda dos
avivamentos ou se destacaram como grandes
ganhadores de almas, quer nas igrejas ou campos
missionários: Savonarola, Lutero, Jonathan Edwards,
Wesley, George Whitefield, Charles Finney, Adoniram
Judson, David Livingstone, Hudson Taylor, Charles
Spurgeon, D. L. Moody, Rosalee Appleby etc.”. 93
Além da influência exercida pela tia de Rosalee, pelo sofrimento de David
Appleby, bem como pelo pedido do marido, a missionária também fora influenciada por um
sermão que ouviu de um pastor batista chamado Charles Culpepper, que foi missionário na
China por 36 anos. Culpepper teria contado acerca do avivamento ocorrido em Shantung,
sendo tal movimento bastante marcado por conversões, curas e sinais. Os relatos ouvidos por
Rosalee M. Appleby trouxeram- lhe ânimo para buscar uma experiência de avivamento
semelhante no Brasil, o que a levou para uma experiência ascética bastante profunda na
particularidade de sua fé.
Existem controvérsias com relação ao surgimento do nome “Renovação
Espiritual”, que se processou no seio da Convenção Batista Brasileira. Humberto Viegas
Fernandes, em seu Renovação Espiritual no Brasil: Erros e Verdades, alega que a missionária
americana Rosalee Milss Appleby teria iniciado na rádio de Belo Horizonte um programa
chamado: “Renovação Espiritual”. Fernandes diz ainda que teve a oportunidade de pregar
durante a programação e que isso se deu no primeiro ano de seus estudos teológicos, em 1956.
Segundo o mesmo autor, Appleby teve de voltar ao país de origem para se tratar, depois de
“ter caído gravemente enferma”. Por esse motivo, transferiu a direção do programa a José
Rego do Nascimento, o qual operacionalizou uma mudança de conotação com relação à
“Renovação Espiritual” que, a priori, se referia a um “novo nascimento” e, a posteriori, com
a direção de José Rego do Nascimento, passou a se referir ao batismo no Espírito Santo como
condição para obter mais força e privilégios na vivência cristã 94 .
92
PEREIRA, J. Reis. História dos Batistas no Brasil, p. 194.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 33.
94
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 14.
93
53
Entretanto, Tognini discorda de Fernandes, dizendo em seu livro “História
dos Batistas Nacionais”, que dialogou com Rego e com Appleby a respeito do programa
radiofônico. Com a missionária, a comunicação se deu através de correspondência e na
resposta, segundo o autor, Appleby afirmou que sua chamada “ministerial” havia sido feita
mais para que ela escrevesse literatura evangélica do que pregasse. Rego, por sua vez, em
conversa com Tognini, alegou que todas as rádios estavam “fechadas” para programas
evangélicos; no entanto, ele orou e Deus “abriu as portas” da Rádio Guarani; Nesse caso, o
programa teria se iniciado no ano de 1958, e não em 1956, como quer Fernandes95 .
Para Appleby, a partir da experiência pentecostal de batismo no Espírito
Santo, o Brasil deveria vivenciar, através da influência de igrejas cristãs, um avivamento
bastante intenso, conquanto, para ela, naquele período específico da história, entre as décadas
de 1950 e 60, notava-se um mundo com profundas transformações pertinentes. Portanto, seria
necessário que o maior “número de crentes” fossem “dominados pela Terceira Pessoa da
Trindade”.
Segundo Appleby, aquele era o período “mais oportuno da história da
humanidade”; entretanto, deveria ser também um momento de renovação espiritual,
porquanto, segundo sua narrativa, havia muitos grupos no Brasil que desejavam um
avivamento espiritual96 . A partir das concepções de Appleby, um avivamento é “a
manifestação do poder e glória de Deus na vida dos salvos. É a água da vida jorrando e
transbordando de corações remidos e mitigando a sede das multidões ao redor”
97
.
Conforme Appleby, o método para atingir um avivamento espiritual era
composto por alguns elementos, quais sejam: fé, oração, obediência a Deus e santificação de
vida98 . No entanto, para que esse método pudesse ser divulgado, Appleby concebe que
deveriam existir propagadores da renovação espiritual. Assim, ela ressalta a importância de
lideranças associadas aos avivamentos ocorridos na história do cristianismo 99 .
Fazendo alusões ao desejado avivamento no Brasil, Appleby orou:
95
96
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 53 e 54.
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil, p. 3.
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil, p. 4.
98
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil, p. 8 a 12.
99
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil, p. 12.
97
54
“Concede-nos, Pai nosso, uma visão significativa de
estarmos no Reino para tal tempo como este. Dá-nos fé
tamanha, que confiadamente olhemos para ti nos
transes mais aflitivos da vida. Vem a esta sociedade
profana e ensina-a a repartir justiça entre os
necessitados, educação a todos e eqüidade até para o
mais humilde. Vem à nossa civilização, purificando-a
de tal modo que seus princípios sejam baseados no
amor e na pureza. Vivifica a nossa qualidade de
Cristianismo que não tem conseguido combater os
males do mundo. Dá-lhe vida e poder. Aviva-nos!
“Aviva, ó Senhor, a tua obra no meio dos anos”. 100
Segundo Appleby, os cristãos dos tempos apostólicos, sem tanta
intelectualidade e prestígio social, conseguiram propagar de forma adequada o evangelho.
Contudo, Appleby ressaltou que naqueles tempos, com tantas “modernas facilidades”, os
cristãos deveriam fazer algo, pois também seria um ideal agir num empenho evangelizador
ocasionado pelo batismo no Espírito Santo 101 .
Objetivando um avivamento no Brasil, Rosalee M. Appleby foi a principal
influenciadora de líderes batistas que aderiram ao Movimento de Renovação Espiritual,
porquanto grande parte dos pastores tinha m acesso às literaturas que disseminavam seus
anseios evangelísticos e doutrinários. Appleby parecia conhecer sua credibilidade, pois
através de sua conduta ilibada, de sua nacionalidade, bem como de sua experiência
pentecostal, atingiu a inúmeras pessoas que vivenciaram, de igual forma, a experiência
pentecostal do que se chama “batismo com o Espírito Santo”.
O Movimento de Renovação Espiritual esteve em curso no âmbito da
Convenção Batista Brasileira, na década de 1950 e 60. Se o programa radiofônico ao qual nos
referimos, foi iniciado por Appleby em 1956, o Movimento de Renovação no seio da
Convenção Batista Brasileira, iniciou-se no mencionado ano. Se, no entanto, o programa
iniciou-se em 1958, também teria sido nesse ano o início efetivo do mencionado movimento
na Convenção Batista Brasileira. No entanto, verifica-se que a experiência que marcou o
início da atuação do Movimento de Renovação Espiritual, ocorreu, como se verá, na
biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
Segundo Almeida, Rosalee, assim como outros avivalistas, estiveram na
crista da onda. Isso deve explicar a boa aceitação da missionária entre os batistas brasileiros.
Desse modo, pensa-se que, por causa dos “vazios” que a idéia de ondas deixa no que tange à
100
101
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil, p. 15.
APPLEBY, Rosalee Mills. Provisão divina para cada crente, p. 3.
55
não classificação das igrejas do Movimento de Renovação Espiritual dos anos 50 e 60, devese considerar que Appleby protagonizou uma forma de experiência pentecostal no âmbito da
Convenção Batista Brasileira que movimentou a estrutura denominacional.
Veja-se o que diz Almeida acerca da experiência do avivamento:
“Avivar é tornar novo, restaurar. E quando se trata de
seres vivos, é dar-lhes vida nova, reanimá-los,
recuperar-lhe as energias. Estamos nos referindo,
entretanto, à renovação espiritual das pessoas – vida
espiritual
cristã.
Renová-las
é
avivá-las
espiritualmente. É soprar-lhes, acender-lhes as brasas
da fé. É trocar-lhes o fumegar mórbido das brasas
encobertas pelas cinzas, por vívidas outras brilhantes
labaredas. Avivamento espiritual é obra do Espírito. É
Ele quem aviva o espírito do cristão, aviva a Palavra e
efetiva os atos da fé. Foi assim nos primórdios do
cristianismo, após o derramamento do Espírito Santo
no Pentecostes, outros se tornaram os comportamentos
e agir dos discípulos e apóstolos”. 102
Segundo Almeida 103 , entre os anos de 1950 e 60 houve inúmeros fenômenos
de experiências pentecostais, os quais alcançaram as Américas, a Europa e a África e, após
narrar algumas experiências ocorridas nos Estados Unidos, diz que algumas denominações
vivenciaram a obra do Espírito Santo 104 . Tal conceito avivalista, que se pauta na experiência
do Espírito e na mobilidade da experiênc ia, bem como na não- fixidez da experiência, também
demonstra que, nas categorias conceituais de Michel de Certeau, tem-se um locus das
denominações históricas que se torna, através das experiências religiosas, em espaços, pois se
caracterizam como “lugares praticados”. Destarte, o espaço que é caracterizado pelos vetores
de direção, pela quantidade de velocidade e pela variável tempo, torna-se um cruzamento de
móveis e é animado pelo conjunto dos movimentos que se desdobram105 .
Dessa maneira, a Convenção Batista Brasileira, na década de 1950 e 60,
torna-se um locus de um protestantismo histórico que, por causa da sua grande mobilidade no
que concerne às tradições, é impactado por novas experiências religiosas produzidas pelo
Movimento de Renovação Espiritual, que recebeu influência da missionária Rosalee Mills
Appleby e dos demais líderes influenciados por ela e por outros.
102
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 31.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 18.
104
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 41.
105
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 202.
103
56
A penetração do pentecostalismo de Renovação Espiritual foi um fenômeno
marcante que se consolidou nas denominações históricas por causa de atitudes acolhedoras.
Pensava-se que poderia haver um “reavivamento religioso” sem qualquer custo institucional.
Segundo Campos, em todas as denominações havia campanhas de “oração e jejum” em prol
de um desejado “avivamento”; contudo, após algum tempo, os avivalistas questionaram a
instituição eclesiástica, pois queriam um evangelismo espiritual e transdenominacional106 , o
que encontra respaldo na seguinte afirmação de Tognini e Almeida:
“Um avivamento genuinamente do Espírito era
aspiração de denominações, de igrejas e de crentes em
geral. Os jornais das diversas denominações
evangélicas expressaram esse desejo sincero do
coração, por meio de artigos, assinados por pastores e
líderes evangélicos do Brasil”. 107
A busca pelo “mito histórico” do retorno à “Igreja Primitiva” foi muito
intensa entre os que anelavam uma Renovação Espiritual, entretanto, para que esse ideal fosse
alcançado, houve uma alteração quanto às mediações eclesiásticas construídas ao redor do
sagrado 108 :
“Para isso, elaboraram-se novos eixos hermenêuticos:
a experiência emocional intensa, a iluminação interior,
a percepção interna do sagrado. Contudo, a
experiência religiosa, longe de ser imediata, ela busca
mediadores. O pentecostalismo reconstruiu, portanto,
novas mediações escolhendo líderes carismáticos para
se tornarem o centro referencial das novas mediações
entre o sagrado e o profano. À luz dessa escolha, uma
nova eclesiologia começou a ser desenhada, e o
sagrado passou a se relacionar com uma outra
hierarquia, atrelada ao Espírito Santo” . 109
Segundo Tognini, o cisma pentecostal na Convenção Batista Brasileira teria
sido proveniente de uma obra satânica, assim como também os cismas de outras igrejas
históricas, cujas dissidências são: Igreja Metodista Wesleyana, a Cristã Presbiteriana, a
106
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 97.
107
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 53.
108
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 79 e 80.
109
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 80.
57
Aliança Congregacional e a Presbiteriana Renovada 110 . Contudo, para Tognini, as pessoas se
interessaram por uma Renovação Espiritual no Brasil. Até mesmo o Jornal Batista, que é o
órgão oficial da Convenção Batista Brasileira, publicou artigos sobre o avivamento, dando
voz a inúmeros propagadores desse tipo de tendência.
O pentecostalismo, no entanto, jamais poderá ser abordado sem que se note
os movimentos que culminaram nas dissidências e, com esse “olhar hermenêutico”, se fará
constatar o cisma pentecostal na Convenção Batista Brasileira, o qual estreitou relações entre
as experiências religiosas e os conflitos em torno do poder, porquanto, segundo Campos, o
pentecostalismo estimula paixões exacerbadas, contrárias ou favoráveis 111 . O pentecostalismo,
para o mencionado autor, adquiriu a fama de movimento contestador do “status quo” e traz
consigo um “sagrado selvagem” em oposição ao “sagrado domesticado” das igrejas
históricas 112 .
Em face do intenso avivamento pelo qual a Convenção Batista Brasileira
passou, pode-se entender a história, repleta de sujeitos constituídos através das experiências
religiosas, como sendo marcada por um constante belicismo entre os muitos sujeitos que a
compõem. Dessa forma, no que tange a uma reflexão acerca da história, verifica-se que, para
Foucault, a história que nos domina e nos determina é bélica, pois estabelece uma relação de
poder e deve ser entendida pelas lutas, pelas estratégias e pelas táticas que se estabelecem de
acordo com o lugar onde o confronto se dá 113 . Assim, os lugares foram preenchidos pelas
ações de sujeitos religiosos que, a partir de suas concepções, fizeram das denominações
históricas verdadeiros espaços, praticando em suas estruturas e transformando, de certa
forma, as suas ações ordenadas.
Há, portanto, uma história vivencial altamente belicosa e, desse modo,
inúmeras batalhas se travaram na Convenção Batista Brasileira. Destarte, ressalta-se, a
respeito dos lugares denominacionais, que se propõe um locus de belicosidade para a
reflexão acerca das tramas que culminaram no cisma pentecostal. Para isso, no entanto, é
necessário que se visibilize a estrutura, as redes e a vigilância nos combates que foram
110
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 53.
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e
Conflitos”, p. 80.
112
Campos utiliza as expressões usadas por Roger Bastide, sociólogo que registrou as expressões: “sagrado
selvagem” e “sagrado domesticado”. Le Sacre Sauvage et autres essais, p. 227.
113
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 5.
111
58
travados. Segundo Foucault, nem a dialética, enquanto lógica de contradição, nem a
semiótica, como estrutura da comunicação, podem dar conta dos aspectos inteligíveis do
confronto. A dialética seria uma forma de reduzir o aspecto da realidade aleatória e aberta a
um “esqueleto” hegeliano. A semiologia se propõe a evitar o caráter violento, o caráter
sangrento e mortal, reduzindo-o ao apaziguamento platônico da linguagem e do diálogo 114 .
O apaziguamento platônico das ondas, embora seja importante para a
periodização, não dará conta do caráter mortal do confronto e, por isso, os lugares praticados
pelos líderes religiosos das igrejas pertencentes à Convenção Batista Brasileira configurar-seão em um constante deslocamento e fragmentação de poder que, através da microfísica do
poder, criarão espaços onde se achará em questão a disciplina do olhar fiscalizador na
antidisciplina da não- fixidez das experiências religiosas legitimadoras. O que há de estético
na experiência religiosa pentecostal pode não ser tão somente estético, pois trata-se de uma
batalha em que, ondas vêm e ondas vão, se consumará configurando-se no único cisma
denominacional vivenciado pelas igrejas pertencentes à Convenção Batista Brasileira.
Estabelece-se, portanto, dois locus para o modelo bélico que se propõe: em
primeiro “lugar” verifica-se que, no período das décadas de 1950 e 60, houve um lugar na
antidisciplina das experiências religiosas e nas ondas experienciais para o pentecostalismo do
Movimento de Renovação Espiritual, bem como para Rosalee Mills Appleby. A influência da
missionária se processou através dos folhetos, pelos quais muitos se interessaram no estudo da
experiência com o Espírito Santo. Segundo Tognini, Deus acendeu o fogo do poder do
Espírito no coração de D. Rosalee Mills Appleby. Entretanto, considera-se que, quando as
labaredas tornaram-se num incêndio e houve o primeiro cisma na Convenção Batista
Brasileira, a missionária não esteve presente, pois havia voltado aos Estados Unidos em 1960.
E em segundo “lugar” acha-se em jogo um “palco” para os confrontos de poder no seio da
Convenção Batista Brasileira, a saber, o campo de batalhas do congregacionalismo batista,
onde sujeitos intentarão “golpes sangrentos” através da legitimação das atitudes de poder por
meio da experiência religiosa. É o que se verá no próximo capítulo.
114
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 5.
59
2. A experiência religiosa na biblioteca do Seminário Teológico Batista do
Sul do Brasil e a formação das redes de poder
2.1. José Rego do Nascimento e Enéas Tognini: Duas experiências religiosas de
constituição no entretecimento da belicosidade histórica
Segundo Edênio Valle, qualquer objeto da experiência cotidiana poderá ser
hierofânico. Por isso, no dia-a-dia da vivência humana, qualquer objeto poderá ser “revelador
do divino”, pois, segundo o autor, não existem acontecimentos naturais ou vitais que não
tenham sido revestidos com um caráter sagrado por alguma cultura. Entretanto, além da
revelação que “revela o divino”, há um caráter da experiência religiosa que diz respeito ao
“mistério inefável” 115 .
Portanto, em toda experiência com o sagrado, em parte se conhecerá e em
parte se desconhecerá. Desse modo, haverá um certo “jogo de esconde-esconde da
divindade”, porquanto, a partir do que se pode conhecer e do que se pode apenas tangenciar,
estabelecer-se-á uma constituição contínua de sujeitos que vivenciam uma experiência
religiosa, a qual é clarificada ao mesmo tempo em que é obscurecida. Assim, segundo Valle, a
experiência religiosa, no âmbito de uma brincadeira cotidiana com o sagrado, se dará na
formação de símbolos que jamais conduziram ao conhecimento do “Todo” que sinaliza e, por
isso, a clareza das questões é ilusória.
Há uma diversidade bastante grande no “jogo de esconde-esconde da
divindade”, porquanto as contradições e polarizações estão presentes na experiência religiosa.
Sobre tal aspecto, note o que diz Valle:
“As experiências religiosas, nesse sentido, apresentam
tensões constitutivas, como as seguintes: são (podem
ser) estáticas ou dinâmicas, passivas ou ativas,
cerradas ou abertas, intrínsecas ou extrínsecas,
libertárias ou repressivas, emocionais ou racionais,
sectárias ou universais, conscientes ou inconscientes,
neuróticas ou sãs”. 116
115
116
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 17.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 17 e 18.
60
O formato incerto das exp eriências com o sagrado produz uma fé que, a
partir do “conhecimento e do desconhecimento do divino”, produzirá uma mobilidade quanto
aos elementos formativos da experiência, pois grande diversidade se achará presente no
sujeito religioso de um cotidiano que se tornará religioso. A experiência religiosa, multiforme
em sua dinâmica, concede uma amostragem de muitos fenômenos extraordinários. Com
Sudbrachk, deve-se reconhecer que há uma pesquisa a ser levada a sério, aquela que avalia
fenômenos extraordinários que acompanham as experiências místicas propriamente ditas 117 .
Segundo Valle, a experiência religiosa multiforme pode ser verificada a
partir do senso comum e do cotidiano, pois, para o autor, o mundo é apreendido pelo sujeito
religioso não só no aspecto extático, mas também na experiência vivenciada na cotidianidade
e nos elementos mais ordinários da vida. Tal aspecto vincula-se ao modo “idiossincrático”
de algumas experiências religiosas, porquanto há grandes traços de pessoalidade na
experiência de conhecimento do mundo a partir do cotidiano da fé 118 .
No Movimento de Renovação Espiritual, verifica-se que alguns sujeitos
experimentaram diversificadas experiências religiosas, multiformes em sua essência, as quais
obviamente tinham alguns conteúdos que se pareciam, pois tratava-se de vivências
carismáticas que se estabeleciam nas novas concepções batismais acerca Espírito Santo. Com
Valle, a partir do exposto, pode-se ressaltar que, na vivência da experiência religiosa, existem
maneiras diferentes de explicar uma mesma realidade 119 , pois a pluralidade da experiência é
grande, mas a realidade do objeto referido pode ser igual, contudo, tal realidade jamais será
percebida de maneira uniforme, pois há de se notar as complexidades dos sujeitos e das
experiências religiosas.
No presente capítulo, será abordado um episódio de experiência pentecostal
ocorrido na biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. Entretanto, constatase que os pastores José Rego do Nascimento e Enéas Tognini vivenciaram experiências
fundantes imprescindíveis para a observância do referido episódio. Por isso, a experiência
religiosa, na particularidade dos sujeitos religiosos, parece ser uma antecipação da coisa
experimentada denominacionalmente.
Conforme Valle:
“Numa linguagem mais sofisticada, pode-se dizer que a
experiência é anterior à sua predicação. O indivíduo
117
SUDBRACHK, Josef. Experiência Religiosa e Psique Humana, p. 58.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 23.
119
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa,p. 26.
118
61
sabe de sua experiência “pré-predicativamente”
(Husserl). Essa vivência passa a pertencer-lhe e a ser
sentida como parte dele próprio. É em um segundo
momento que a experiência se complementa e se
totaliza predicativamente” . 120
Pretende-se não somente reconstituir a narrativa destes sujeitos principais da
experiência em foco, mas igualmente perguntar por eventuais redes de sentido e conflitos de
poder subjacentes ao episódio narrado.
José Rego do Nascimento 121 vivenciou experiências marcantes na história de
sua fé, porquanto, depois da missionária Rosalee Mills Appleby, o referido pastor foi o
principal porta-voz do Movimento de Renovação Espiritual no seio da Convenção Batista
Brasileira. Segundo Tognini, o pastor Rego teria sido colocado por Deus ao lado de Appleby,
pois representou um reforço para o Movimento de Renova ção Espiritual122 . Por mais que
fosse respeitada e embasasse o movimento, a referida missionária não teria o alcance de um
líder homem, pois na denominação batista não é permitido que mulheres exerçam o ministério
pastoral.
Tendo sido alfabetizado por seu pai, José Rego do Nascimento teve seus
estudos marcados por contratempos, pois, ao iniciar sua vida estudantil num colégio, no
Estado da Paraíba, precisou abandonar a escola por causa de um acidente. Quando chegou ao
Estado do Rio de Janeiro, aos 12 anos, retomou os estudos em escolas públicas do
subúrbio 123 . Rego do Nascimento, assim como seu pai, exerceu o ofício de sapateiro e
desenvolveu-se bastante num estabelecimento cujos donos eram portugueses, tornando-se
autodidata. Contudo, a realização pessoal de Rego se deu depois de ter passado num concurso
para o exercício de um cargo no Banco Aliança, atual Itaú124 .
Rego do Nascimento, mesmo antes de sua formação teológica, em algumas
experiências, teve certo contato com pentecostais, tendo participado, inclusive, de cultos na
Assembléia de Deus. Sua experiência de conversão ocorrera aos 15 anos de idade. Na Igreja
Batista de Anchieta, no Rio de Janeiro, para onde se transferiu aos 12 anos 125 . Outrossim,
Rego declara-se predestinado a ser carismático, pois numa das vezes em que se entusiasmou
observando uma Igreja Assembléia de Deus, declarou:
120
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 28.
José Rego do Nascimento nasceu a 24 de dezembro de 1921. Atualmente Rego reside em Belo Horizonte e
encontra-se bastante enfermo.
122
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 53.
123
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 42 e 43.
124
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 47 a 49.
125
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, 43 a 45.
121
62
“Então o Espírito derramou água viva dentro de mim.
Senti gozo e uma alegria espiritual extraordinários.
Então, eu deduzo que já nasci predestinado a ser um
carismático”. 126
Xavier alega que a conversão de Rego fo i genuína, porque, depois da
experiência de meditar na crucificação de Cristo narrada pelo Evangelho de Lucas, deixou de
ser um crente tradicional para ter uma vida de compromisso com Jesus Cristo e com a sua
experiência 127 .
Rego do Nascimento formou-se no Seminário Teológico Batista do Sul do
Brasil no curso de “graduado” em teologia, que não era o principal curso oferecido pela
instituição, sendo o principal o bacharelado em teologia
128
. Graduou-se, portanto, aos 26
anos de idade e em 1951. Almeida relata que Rego do Nascimento era portador de uma
grande cultura literária e de vastos conhecimentos gerais. Portanto, tal gosto pela literatura o
ajudou a cultivar uma linguagem clara e o ajudou também a se tornar um grande pregador,
tanto por sua retórica, como por seus recursos de linguagens. Segundo Almeida, Rego sabia
se expressar com uma boa utilização de pronomes, tornando-se, por esse e por outros
motivos, um exímio orador 129 .
No período em que fez o curso de “graduado em teologia”, Rego do
Nascimento, assim como sua esposa, Joselina de Oliveira Nascimento, freqüentaram a Igreja
Batista de Anchieta. Foi ordenado ao ministério pastoral a 20 de dezembro de 1951, exerceu
as funções do ministério na Igreja Batista de Olinda, Estado do Rio de Janeiro.
No ano de 1954, Rego do Nascimento deixou a Igreja de Olinda, assim
como também deixou o Banco, para exercer o ministério pastoral em duas igrejas de cidades
vizinhas, quais sejam, as igrejas de Laje e Ubaíra, no Estado da Bahia. Dado seu bom êxito
nesses ministérios, foi convidado a pastorear uma igreja maior, a de Vitória da Conquista,
onde realizou um brilhante trabalho ministerial, pois a referida igreja experimentou o impacto
de um pastorado bastante próspero. Dessa maneira, foi pastoreando a Igreja de Vitória que
Rego, após tomar conhecimento de determinados avivamentos no período, teve a experiência
do “batismo com o Espírito Santo”. Segundo Almeida, no pastorado daquela igreja, o Senhor
visitou a Rego poderosamente com o batismo no Espírito Santo, dando- lhe uma nova
percepção e visão da obra de Deus, o que teria garantido seu sucesso pastoral130 .
126
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 45.
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 45.
128
O curso de “graduado” em teologia era oferecido em 3 anos.
129
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 89.
127
130
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 90.
63
Certa feita, Rego estava sozinho em seu gabinete, orando e lendo o livro The
Power of Pentecost, de John Rice, evangelista batista norte-americano cuja preocupação era
tentar fundamentar sua crença de que no batismo com o Espírito Santo não necessariamente
precisaria haver a evidência do dom de línguas estranhas, chamado glossolalia. Rego do
Nascimento também leu, nessa ocasião, um dos “Folhetos de Poder” escritos por Rosalee
Mills Appleby, intitulado: “Como diversos servos de Deus foram cheios do Espírito Santo”.
Foi depois do impacto dessas leituras que Rego do Nascimento orou e buscou em Deus que
essa “segunda bênção” lhe fosse concedida.
“Rego começou a buscar o batismo no Espírito e o
recebeu de uma forma diferente. (...) De repente se viu
invadido por um fogo, que lhe entrou pelo peito e
produziu nele uma dinamização tal, que ele caiu
sentado na cadeira. Ria. Ria e chorava ao mesmo
tempo. (...) Depois, quando quis andar, quase não
conseguia. Parecia que seus ossos doíam.
Aparentemente, nada mudou nele. O que ele sabia,
continuou sabendo; o que ele cria, continuou crendo;
mas a dedicação, a partir daí, foi bem maior. O ardor
era tão grande! Isso se manifestou no crescimento da
igreja”. 131
Conforme Almeida, num relato bastante posterior, assim como se referiu
anteriormente, foi após o advento do batismo no Espírito Santo que Rego do Nascimento
teria sido revestido de poder e de graça, tendo, a partir de então, suas mensagens e profecias
sempre ungidas por Deus, porquanto a obra do Espírito estava em marcha na sua vida
particular e na sua vivência da fé cristã 132 .
Rego tinha o sonho de pastorear em Belo Horizonte e isso aconteceu quando
foi convidado a assumir o pastorado da recém fundada Igreja Batista da Lagoinha 133 , em
1958. Segundo Reis Pereira, Vitória da Conquista tornou-se demasiadamente pequena para os
intentos de Rego, pois seu desejo era de que a sua voz fosse irradiada para todo o País.
“Quanto leigos de Belo Horizonte conceberam a idéia
de fundar uma igreja que fosse um exemplo de pureza
evangélica, além de ardorosa na evangelização.
131
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 54.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 90.
133
A Igreja Batista da Lagoinha foi fundada em 20 de dezembro de 1957, com aproximadamente 20 pessoas em
seu rol de membros. Atualmente conta com mais 30 mil membros e se inclina ao neopentecostalismo,
enfatizando, prioritariamente, a mística como mecanismo de experiências religiosas e como elemento de
proselitismo
religioso.
Para
mais
detalhes
ver
o
site:
http://200.195.77.153/engine.php?pag=art&secpai=12&sec=54&cat=356&art=4312. Acesso no dia 13 de janeiro
de 2008.
132
64
Convidaram Rego para liderá-los nesse plano e ele, que
já vinha sonhando com Belo Horizonte, o grande centro
que desejava, aceitou o convite e, deixando Vitória da
Conquista, assumiu o pastorado da recém fundada
Igreja da Lagoinha, em 17 de maio de 1958”. 134
O vínculo de Rego com o Movimento de Renovação Espiritual, desde sua
alegada experiência de batismo no Espírito Santo, foi bastante estreitado, tanto assim que na
Rádio Guarani, em Belo Horizonte, dirigiu um programa chamado Renovação Espiritual.
Appleby possivelmente iniciou o programa radiofônico no ano de 1956 e, após tê- lo
transferido a Rego, o pastor teria mudado a conotação de “Renovação Espiritual”, vinculando
o batismo no Espírito Santo à Renovação Espiritual. Almeida se recorda das mensagens de
Rego e alega que o impacto das mensagens nos ouvintes era muito grande. Muitos
começaram a procurar igrejas evangélicas e muitos “crentes desviados” retornaram às suas
igrejas. 135 Assim, o início do ministério de Rego, em Belo Horizonte, na Igreja Batista da
Lagoinha, teria sido bastante eficaz graças à sua atuação na Rádio Guarani.
Acerca do dinamismo e da ascensão de Rego, o historiador Reis Pereira diz
que o referido pastor recebeu o programa de rádio da missionária Rosalee Mills Appleby,
continuou a escrever para O Jornal Batista, preparou o livro Calvário e Pentecostes e atendia
às constantes solicitações de vários lugares para pregações e séries de conferências. Contudo,
com o passar do tempo e com o envolvimento de Rego no Movimento de Renovação
Espiritual, a igreja de Lagoinha sentiu falta de seu pastor, tendo enfrentado certa estagnação.
Rego, a convite de seminaristas, promoveu um encontro pentecostal na
biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, o qual será descrito mais adiante.
Também atuou como pregador num programa radiofônico, como foi dito, e participou da
Comissão dos 13, a qual também será abordada posteriormente. Rego deixou uma importante
obra acerca do batismo com o Espírito Santo e acerca da Renovação Espiritual: Calvário e
Pentecostes 136 .
Enéas Tognini nasceu em 1914 137 , na cidade de Botucatu , interior do Estado
de São Paulo, porém foi registrado na cidade de Avaré, no mesmo Estado 138 . Quando Tognini
fez dois anos de idade, sua família mudou-se para a cidade de Campo Grande, no Estado do
134
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 195.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 108.
136
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 252.
137
Enéas Tognini está com 94 anos. Atualmente ele reside na cidade de São Paulo. Após ter recebido o título de
“Presidente Honorário” da Convenção Batista Nacional disse que “não terminaria sua carreira de pijama, mas
cairia na batalha, de farda”. In: XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 97.
138
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 20.
135
65
Mato Grosso do Sul. Porém, foi quando Enéas Tognini atingiu os 18 anos que, fazendo
contato com alguns evangélicos, passou a freqüentar uma igreja batista na cidade onde
morava. De família católica, converteu-se ao protestantismo batista aos 19 anos de idade,
quanto também foi batizado.
Ainda sobre sua conversão, Enéas Tognini diz que, na vida que antecedeu
sua adesão ao protestantismo batista, foi católico e devoto de Santa Teresinha. Nutria
profunda antipatia pelos protestantes e sempre que passava próximo à Primeira Igreja Batista
em Campo Grande procurava se desviar do templo. Entretanto, por influência da esposa do
dono da oficina onde Tognini trabalhava, passou a freqüentar a referida igreja. 139 . Tognini
narra, em sua Autobiografia, que se converteu ao ouvir um sermão pregado pelo Pr. Egídio
Gióia e foi batizado no dia 17 de setembro de 1933. Sentindo-se muito alegre, também teve a
percepção de que seus pés haviam criado “asas de borboletas” e “não pisavam no chão”.
Tendo essa alegria, também quis falar de sua experiência religiosa para todas as pessoas de
seu convívio. Contudo, enfrentou dificuldades com sua família, que era católica, e os amigos,
a quem Tognini chama “amigos de pecado”
140
.
Acerca de sua conversão, Tognini diz:
“De 14 aos 18 anos de idade perdi-me no pecado. Meus
irmãos mais velhos ensinaram-me a fumar desde os seis
anos de idade. Fui para o jogo, fui para a prostituição.
Mas Deus me encontrou. (...) Converti-me mesmo ao
Senhor Jesus. Senti um alivio e paz no meu coração e
um gozo profundo em minha alma”. 141
Com apenas seis meses de convertido ao protestantismo batista, Tognini
sentiu-se vocacionado para o exercício do ministério pastoral. Portanto, retomou os estudos
num período de cinco anos, tendo sido influenciado por um professor particular chamado
Reinaldo Julian Decoud Larrosa, então cônsul paraguaio no Brasil. Larrosa pertenc ia à
“Igreja dos Irmãos Unidos” e, além de ministrar diversas disciplinas, também lhe ensinou a
Bíblia e o idioma francês. Entusiasmado, Tognini também se dedicou ao estudo do idioma
inglês, através do contato que travou com um missionário presbiteriano, sendo bastante
curioso e desejoso por conhecimento 142 .
No ano de 1938, Tognini iniciou o curso de bacharel em teologia no
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, no Estado do Rio de Janeiro, tendo sido o
único aluno de sua turma a se bacharelar, o que ocorreu em 1941. Depois de ter cursado
139
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 22.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 23.
141
TOGNINI, Enéas. Renovação Espiritual no Brasil, p. 11.
142
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 28 e 29.
140
66
teologia, também decidiu se casar e foi ordenado ao ministério pastoral batista no mesmo ano
em que concluiu o curso teológico. Seu primeiro ministério se deu numa igreja em Belo
Horizonte, no Estado de Minas Gerais. Durante seu pastorado, Tognini exerceu diversos
cargos denominacionais, entretanto, somente em nível estadual.
Enéas Tognini, no ano de 1946, transferiu-se para a cidade de São Paulo,
onde assumiu o pastorado da Igreja Batista de Perdizes, que era composta por apenas duas
famílias e um grupo de estudantes. A permanência de Tognini na liderança da mencionada
igreja estendeu-se até o início do ano de 1964, quando a deixou com aproximadamente 400
membros e um templo construído.
Durante o tempo em que exerceu o ministério pastoral na Igreja Batista de
Perdizes, Tognini também foi vice-diretor do Colégio Batista Brasileiro e auxiliou na
fundação da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, tendo sido docente em ambas as
instituições. Tognini, no exercício das funções denominacionais, em nível estadual e
nacional, foi bastante reconhecido por sua habilidade administrativa e pastoral.
Enéas Tognini narra uma experiência que o sensibilizou, levando-o a
“quebrantar o coração”, pois durante um período muito difícil da sua vida, em 1958, quando
alguns ladrões tentaram invadir sua casa por três vezes e quando estava demasiadamente
cansado de trabalhar 16 horas por dia, teve a experiência de ouvir Rosalee Mills Appleby
ministrar palestras no Colégio Batista, recebendo-a, inclusive, em sua casa no mês de julho.
Nesse mesmo período e ocasião, o Congresso Jovem Batista do Brasil
ocorreu no Colégio Batista e, além da atuação de Appleby, teve Rego como orador principal.
Mesmo tendo participado de todas as palestras, Tognini desprezava a mensagem de
avivamento e não concordava com nada do que Rego dizia, mas, mesmo assim, recebeu aos
poucos as doses que Appleby distribuía. Porém, no penúltimo dia, uma “seta do Espírito”
atravessou o coração de Enéas Tognini, fazendo-o chorar
143
.
Segundo o próprio Tognini, ele não cria em avivamento e tampouco nos
avivalistas, conquanto combatia-os vorazmente. Conforme o autor, havia em seu arquivo uma
grande quantidade de trabalhos escritos para combater “a obra do Espírito Santo”, porquanto
ele nunca “perdeu tempo” para estudar o batismo no Espírito Santo à luz da Bíblia 144 .
Enéas Tognini teve diversas experiências de leitura dos folhetos de Rosalee
Mills Appleby e com a mensagem de Rego, contudo, foi num certo dia, bastante marcante,
que sua experiência religiosa mais intensa ocorreu:
143
144
Cf. TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 37.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 38.
67
“Corria o dia 16 de agosto de 1958. Era pastor da
Igreja Batista de Perdizes e diretor do Colégio Batista
de São Paulo. Ó, se me lembro! Era um sábado.
Levantei-me às cindo da manhã e entrei em meu
escritório na casa pastoral da Rua João Ramalho, 436.
Orei cerca de uma hora e meia, e o céu me parecia de
bronze. Deus estava em silêncio, profundo silêncio! Fui
tomar café e voltei para a batalha da oração. Mais duas
horas de luta, como Jacó no vau de Jaboque. Nenhuma
resposta do céu. Desacoroçoado, levantei-me dos
joelhos e sentei-me na mesma poltrona de onde hoje
escrevo esta nota. Apoiei a cabeça nas mãos,
decepcionado por Deus não me responder à oração. E,
nessa aflição, ouvi a voz de Deus pela segunda vez, tão
perfeita como a de qualquer mortal, que me dizia num
tom profundamente imperativo: ENTREGA... Ao ouvila, não tive dúvida nenhuma de que era realmente a voz
de Deus. E eu respondi: ENTREGA O QUÊ, SENHOR?
E Deus me disse: A BIBLIOTECA (tinha uma biblioteca
de aproximadamente quatro mil volumes e era para
mim um grande e terrível ídolo); e eu disse: ENTREGO,
SENHOR! E Deus me pediu o segundo ídolo: A
DIREÇÃO DO COLÉGIO BATISTA; e eu disse logo:
ENTREGO TAMBÉM, SENHOR! E Deus foi ao meu
terceiro ídolo: O PASTORADO DA IGREJA BATISTA
DE PERDIZES; e eu respondi: ENTREGO, SENHOR!
Então, Deus continuou e me disse: A FAMÍLIA; relutei
um pouco, mas disse ENTREGO, ENTREGO,
SENHOR! Ao entregar o último ídolo, veio sobre mim,
um PODER tal como nunca experimentara em minha
vida. Um gozo profundo no meu coração! Uma paz
maravilhosa. Banhei com lágrimas a minha mesa de
estudos. Fui revestido do poder do Alto”. 145
Enéas Tognini alega que não está louco, pois Deus realmente falou com ele.
Ele se compara a Pedro, João, Wesley e Moody, pois teria deixado o conforto, o dinheiro, a
posição e mil outras vantagens para viver nos ônibus, nos trens, nos aviões e longe da família,
bem como com pouquíssimos recursos, o que poucas pessoas teriam entendido 146 .
Quanto aos “ídolos”, Tognini diz que a biblioteca Deus não levou,
porquanto não precisa de livros e, por isso, ela ficou no segundo plano. A direção do Colégio
Batista foi transferida ao Dr. Werner Kaschel, em 1960. A igreja, só conseguiu deixar no dia
primeiro de janeiro de 1964. E, por fim, a família ficou em segundo plano, pois ele nunca a
“deixou” 147 .
Segundo Tognini, a partir da experiência de batismo no Espírito Santo houve
grandes mudanças em sua vida, pois ele passou a renunciar a algumas coisas para se tornar
145
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 40.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 41.
147
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 42.
146
68
um pregador itinerante, desvencilhando-se dos cargos denominacionais e aderindo à idéia do
batismo no Espírito Santo, conforme José Rego do Nascimento prega va por toda parte.
Tognini foi convidado a pregar em inúmeros lugares do Brasil e, com isso, no período de 20
anos (1960 – 1980), cruzou o Brasil pregando a mensagem do Movimento de Renovação
Espiritual.
Enéas Tognini, em sua autobiografia, alega, argumentando a partir de
categorias bíblicas, que há duas fases na vida de um crente: a primeira, a conversão, e a
segunda, o batismo no Espírito Santo. Sobre sua tradição batista, Tognini não a descarta;
tratava-se de Renovação, ou seja, de aproveitar o que já existia 148 . Segundo Tognini, no
princípio do movimento não havia interesse de se formar uma nova denominação, mas de
reformar as igrejas vinculadas à Convenção Batista Brasileira.
“Eu era crente, e até um pouco mais – pois dizem que
batista é mais crente, e eu sou batista. Pastor há longos
anos, combatia os irmãos pentecostais por causa dessa
bênção e, no entanto, fui poderosamente batizado no
Espírito em 1958. E, por causa disso, deixei tudo,
entreguei meus cargos na denominação, fui mal
entendido, perseguido, caluniado. Pastor Rubem Lopes,
então Presidente da Ordem de Pastores Batistas, do
Estado de São Paulo, mandou que eu me retirasse dum
Retiro de Pastores Batistas que se realizava na vizinha
cidade de Sumaré”. 149
Alguns missionários americanos repugnavam o Movimento de Renovação
Espiritual por cultivarem uma vivência bastante conservadora da fé protestante. Segundo
Tognini, ele foi visitado muitas vezes por pastores e missionários, os quais queriam, de todo
jeito, separá-lo de Rego. Algumas esposas de pastores teriam pressionado, inclusive, a esposa
de Tognini, para que ela, por sua vez, o pressionasse. Portanto, em face dessas pressões, o
ano de 1959, para Tognini, foi de muitas decisões importantes.
Rego esteve na cidade de Ceres, Estado de Goiás, pois havia sido convidado
a falar num encontro dos pastores batistas goianos e, segundo Tognini, houve alguns atritos
com os pastores conservadores, mas, mesmo assim, Rego teria conseguido sucesso em suas
pregações 150 .
Neste ensejo, algo foi bastante marcante para Tognini:
148
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 52.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 77.
150
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 67.
149
69
“Um dos pastores que assistiram ao retiro de Pastores
em Ceres escreveu-me longa carta, logo após esse
retiro: “Pastor Enéas, Rego esteve conosco e foi uma
bênção. Se esse homem é do diabo, então o diabo se
converteu. Esta carta veio encontrar-me num período
de maré baixa. Li a carta, tornei a ler; orei e, ao
levantar-me dos joelhos, estava decidido: com Rego;
portanto, com Renovação Espiritual, custe o que custar.
Puxei uma folha de papel, meti-a na máquina e escrevi
a minha definição, enviando-a ao Jornal Batista, que me
devolveu”. 151
Assim, posterior ao seu alegado batismo no Espírito Santo, Tognini decidiuse por Renovação Espiritual e por lutar ao lado de Rego, sendo bastante curioso o fato de que
tal militância seria a “qualquer custo”, pois, diante de tantas pressões dos missionários
americanos e das esposas de pastores, ele teve de se posicionar de forma bastante
contundente. Por isso, o ano de 1959, para Tognini, foi marcante, tanto em termos pessoais,
quanto em termos ministeriais.
Percebe-se que, a experiência do batismo no Espírito Santo, para Tognini,
foi uma experiência que lhe custou muitas coisas, no entanto, como teria vivido o referido
pastor depois de tal experiência religiosa? Desde então, segundo Tognini, seu trabalho teria
sido o de pregar, o de escrever e o de gravar suas mensagens. Com o retorno de Rosalee Mills
Appleby aos Estados Unidos, quer por ter se aposentado 152 , ou por ter caído enferma 153 ,
Tognini foi incumbido de continuar o Movimento da missionária americana e de fortalecer as
fileiras da Renovação Espiritual, porquanto teria sido batizado no Espírito Santo. Assim,
segundo o próprio Tognini, ele influenciou, nas categorias do Movimento de Renovação
Espiritual, os avivamentos das igrejas batistas, das igrejas presbiterianas, das igrejas
metodistas e das igrejas congregacionais 154 , sendo um dos principais pregadores itinerantes
do pentecostalismo de Renovação.
“As orações de D. Rosalee foram respondidas. Deus,
em 1954 e 1958, batizou dois homens que eram líderes
nas fileiras batistas: José Rego do Nascimento e Enéas
Tognini. José Rego, cerca de quatro anos antes. E este
homem começou a pregar com poder que abalava.
Como uma tempestade soprou nos arraiais batistas e
derrubou muitos “cedros” do Líbano. As experiências,
vividas por este servo de Deus, carecem de um grosso
volume para serem narradas. Em 1958, Enéas Tognini
151
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 67.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 51.
153
Cf. FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 14.
154
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 51.
152
70
foi batizado no Espírito Santo, depois de ouvir as
poderosas mensagens de D. Rosalee e Pastor José
Rego. (...) Renovação Espiritual nasceu no coração de
D. Rosalee, do pastor José Rego do Nascimento e no
meu. Depois, o “fogo” da misericórdia de Deus se
alastrou para outras vidas, para outras igrejas, e para
outras denominações”. 155
Percebe-se, portanto, que Rego foi um pastor que, a partir da experiência
religiosa do alegado batismo no Espírito Santo, tendo sido cativado pelas idéias avivalistas de
Appleby, também cativou a Tognini, o qual desenvolveu uma forte liderança no Movimento
de Renovação Espiritual.
E, de acordo com as categorias de Valle, essas experiências fundantes foram
demonstrativos prévios do que ocorreria na Convenção Batista Brasileira, pois é sempre num
segundo momento que a experiência se complementa e se totaliza predicativamente. Portanto,
o que foi vivenciado no gabinete pastoral de Rego e no escritório da casa pastoral de Tognini
também se fará notar nos desdobramentos institucionais e no episódio religioso da biblioteca
do Seminário, pois tais experiências foram uma “antecipação da coisa experimentada”
denominacionalmente.
2.2. Da academia à experiência religiosa: Poder e êxtase na biblioteca e as redes de
poder
Intenta-se, com as discussões a partir de Foucault, as quais se procederão
nesse ensejo, uma abordagem do episódio que ocorreu na biblioteca do Seminário Teológico
Batista do Sul, o qual será descrito no presente capítulo. Tais abordagens e teorizações serão
de imprescindível importânc ia para a observância da experiência fundante, não somente de
Rego e de Tognini, mas também do Movimento de Renovação Espiritual, a fim de que se
verifique m as formações das redes de poder no interior da trama histórica que está se
abordando, a qual culminará num cisma na Convenção Batista Brasileira, o que será descrito
no próximo capítulo.
A partir das concepções de Foucault, buscar um “sentido” para a história, no
vazio da linguagem roma ntizada, é uma tentativa de evitar o caráter violento, o caráter
sangrento e o caráter mortal das suas táticas e dos seus golpes nas muitas operacionalizações
e, nesse caso, corre-se o risco de reduzi- la ao apaziguamento platônico da linguagem e do
155
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 250.
71
diálogo. Da mesma maneira, tratar a história de forma dialética é uma tentativa de reduzir o
aspecto da realidade aleatória e aberta a um “esqueleto” hegeliano
156
.
A grande referência da história, que também deve ser observada para a
escrita da historiografia, não são os signos e tampouco o modelo da língua, mas o da guerra e
o da batalha, como diz Michel Foucault. A história é inteligível e pode ser analisada, mas
segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias e das táticas em meio às batalhas157 .
A falta de “sentido” da história e os lugares vivenciais que ela proporciona
para o sujeito que se constitui nas suas tramas devem ser entendidos como num locus para
verdadeiros embates de poder. Entretanto, o sentido belicoso não existiria de forma tão
contundente não fossem os elementos de guerra que ficam disponíveis para observá- lo
enquanto expressão das relações de poder, as quais se distinguem das relações baseadas no
discurso romantizado da lingüística platônica.
“Creio que aquilo que se deve ter como referência não
é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da
guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e
nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de
poder, não relação de sentido. A história não tem
“sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou
incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser
analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas”.
158
Segundo Foucault, as sociedades modernas apresentam uma nova maneira de
organizar o poder, que se desenvolveu a partir do século XVIII. Nessa organização referente
ao poder, tem-se um poder que supera a repressão, pois se dissemina quando se fragmenta,
desdobrando-se para os diversos setores da vida humana. O poder desloca-se do macro e
redireciona-se em micropoderes, tornando-se, por conseqüência, mais eficazes. Foucault
analisou os micropoderes que se espalham pelas muitas instituições da vida social, pois para
ele, os poderes são exercidos por uma rede imensa de pessoas que interiorizam e cumprem as
normas estabelecidas pela disciplina social. Por exemplo: os porteiros, os pais, os
enfermeiros, os professores, os guardas, os fiscais 159 e, como no caso em tela, os pastores, as
lideranças religiosas e as pessoas que compõem as redes imensas que interagem numa
disciplina social.
156
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.5.
Cf. FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.5.
158
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.5.
159
Cf. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 228 e 229.
157
72
Os micropoderes, através dos lugares por onde permeiam, encontram, na
formação de redes produtivas e imensas, uma eficácia que se dá por meio da constituição de
sujeitos que optam de diferentes formas por um exercício das ações que estabelecem táticas
belicosas. Essas táticas encontrarão nas próprias redes sujeitos de fundamental constituição
nas tramas históricas, eis, em parte, o aspecto genealógico das categorias de Foucault
160
.
Constata-se a importância de inúmeros sujeitos numa trama histórica, contudo, verifica-se
também que é preciso se livrar dos sujeitos constituintes, a fim de visibilizar a constituição de
um sujeito que compõe uma rede imensa de interligação histórica numa trama extremamente
plural e minuciosamente articulada.
Sendo o poder exercido de maneira microfísica, não se subordina a nada,
pois existe numa multiplicidade na sua dinâmica e possui caráter formador de realidades e de
coisas, tendo, inclusive, uma notável positividade. Foucault dissocia a dominação da
repressão e transcende as abordagens que evidenciam os aspectos negativos do poder, como
proibir, censurar, interditar, coagir e reprimir. Entrementes, o poder possui a positividade de
produzir saberes, discursos, sujeitos e desejos e é altamente eficaz quando se observa sua ação
nas inúmeras redes que se estabelecem.
Uma rede de poder faz-se no entretecimento criativo de sujeitos
constituídos, os quais promovem um entrecruzamento dinâmico no imbricamento de suas
malhas e de sua produtividade no que tange ao exercício mais fino dos micropoderes. Assim,
não é suficiente, através da historiografia, indicar acontecimentos e os sujeitos constituintes,
pois é necessário distinguir os acontecimentos e encontrar a diferenciação das redes de poder,
bem como promover uma reconstituição dos fios que as ligam e que são fundamentais para o
funcionamento dessas redes que se formam no interior da história e das batalhas.
Portanto, é preciso fazer diferenciações e abordar os eventos com as devidas
distinções nas engrenagens que trazem a funcionalidade do poder. É um jogo de vaivém no
qual o sujeito se torna seu centro produtor e transmissor, estando sempre em posição de
exercer o poder e, por conseguinte, sofrer a ação desse mesmo poder, a partir da constituição
dos seus discursos, seus desejos e seus corpos. Destarte, para Foucault, o indivíduo não é o
outro poder, mas é um dos seus primeiros efeitos, a partir dos efeitos de verdades no interior
160
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 7.
73
dos discursos formados pelo prazer ocasionado na vivência de uma produtividade do
poder161 .
O poder é algo bastante impregnante, através das redes e por entre as redes,
pois o exercício do poder nas micro-relações faz com que, a partir de sua dinâmica, perpasse
o cotidiano de indivíduos, fazendo-se atravessar e circundar tais sujeitos. Com isso, destacase a força do poder, a qual não se deve à repressão, pois, seria deveras frágil, como ressalta
Foucault.
“O que faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só
como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma
saber, produz discurso. Deve-se considerá -lo
como uma rede produtiva que atravessa todo o
corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir”. 162
Ora, segundo Foucault, é necessário que entenda-se o poder não como uma
força que, aos moldes repressivos, diz “não”, mas como uma dinâmica que, de alguma
maneira, permeia a conjuntura das redes através de fios e induz ao prazer (religioso), forma
um saber (pela experiência religiosa) e, fundamentalmente, produz um discurso (religioso).
Admitir que o poder se exerce tão somente de forma repressiva, seria eliminar a criatividade
do poder e entendê-lo como frágil. A criatividade do poder, no entanto, existe em
contrapartida dos conceitos de ideologia, quer numa conceituação acerca de uma corrente
política ou de uma corrente religiosa. Privilegiar as noções que giram em torno da ideologia
de um determinado grupo de pessoas, seria admitir que há uma oposição a alguma coisa que
seria a verdade e, nesse sentido, conforme Foucault, o problema real é ver quais discursos, no
interior da história, promovem eficazmente os “efeitos de verdade”, os quais não são “nem
verdadeiros nem falsos”163 .
No caso em tela, verifica-se que os discursos que se formaram no interior de
uma experiência de poder, bem como as relações de poder em si, serão vinculadas aos
conceitos de experiência religiosa, pois o poder e a experiência religiosa, na vivência do
161
FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 183.
162
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 8.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 7.
163
74
cotidiano denominacional, se confundiram, sendo que a autenticação das atitudes de poder
parece ser proveniente das experiências religiosas.
Abordar-se-á, doravante, através da constatação de uma experiência
religiosa na biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, um campo de real
belicosidade que se forma num palco de constituição de sujeitos, de lugares, de experiências
e do poder que perpassa uma rede bastante produtiva.
Houve uma experiência fundante para o Movimento de Renovação
Espiritual, a qual se deu em decorrência de um período de avivamentos na história do
protestantismo brasileiro e que foi resultante das experiências pentecostais vivenciadas por
Rego. A referida experiência fundante ocorreu com um episódio bastante marcante na
biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
José Rego do Nascimento, depois do mês de setembro de 1955, após o
alegado batismo no Espírito Santo, passou a ser um propagador das idéias e das experiências
religiosas do Movimento de Renovação Espiritual. A mensagem de Renovação alcançou
inúmeras igrejas e líderes denominacionais, inclusive o tão proeminente pastor Enéas Tognini,
em julho de 1958. Segundo Ferreira, o Movimento, no seu princípio, conquistou a simpatia de
muitos, pois pregava a pureza espiritual e o fervor espiritual164 .
No tempo em que pastoreava a Igreja Batista da Lagoinha, em Belo
Horizonte, José Rego do Nascimento vivenciou uma intensa experiência religiosa que, ao
contrário do seu mencionado batismo no Espírito Santo, não trouxe conseqüências somente
para a vivência de sua fé, mas também para o âmbito denominaciona l.
Houve, no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, localizado na
cidade do Rio de Janeiro, uma “Semana de Renovação Espiritual”, porque a efervescência
ocasionada pela propagação do Movimento de Renovação Espiritual era bastante acentuada e,
dessa forma, até mesmo os seminaristas se interessaram pelo assunto. Tal Semana de
Renovação Espiritual aconteceu de 11 a 18 de outubro de 1958. Foi nesse ensejo que os
seminaristas convidaram Rego, ex-aluno do seminário, para lhes falar principalmente sobre o
tema: “O Pentecostes se Repete?”
Rego ficou hospedado no seminário, na semana em que esteve falando aos
seminaristas. Na noite do dia 16, uma sexta- feira, Rego realizou alguns trabalhos fora das
dependências do seminário, em igrejas situadas na cidade do Rio de Janeiro 165 . Depois de ter
164
165
FERREIRA, Ebenézer Soares. História dos Batistas Fluminenses, p. 164.
XA VIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 59.
75
pregado naquela noite, quando no seu retorno, foi recebido por alguns seminaristas que
estavam ansiosos por sua volta. Tais seminaristas propuseram que Rego estivesse realizando,
com eles, uma reunião de oração na biblioteca do seminário. Ocorre que, quando Rego
retornou das suas atividades, estava cansado por causa da pregação que realizou e do forte
calor que fazia no Rio de Janeiro, entretanto, não negou a realização da mencionada reunião
de oração que, segundo Tognini, não teria sido programada 166 .
Note as palavras de Reis Pereira sobre tal reunião de oração:
“Em outubro, os alunos do Seminário o convidaram
para falar numa semana especial de despertamento
espiritual. No final dessas reuniões, numa sexta-feira,
foi realizada, na sala da biblioteca do Seminário, uma
noite de oração, sob a direção de Rego. Cinqüenta
seminaristas, quatro visitantes e Rego se reuniram na,
então, pequena sala da biblioteca e foram até a
madrugada, cantando e orando, mas fazendo tal bulha
que se poderia ouvir à distância”. 167
Constata-se, com isso, que algo não programado ocorreu, na biblioteca do
Seminário, onde se atraíram 55 pessoas para realizar uma reunião de oração. Tem-se,
portanto, um relato da mencionada experiência religiosa ocorrida numa instituição de ensino
teológico, no âmbito da Convenção Batista Brasileira. Acha-se em questão, doravante, uma
experiência religiosa vivenciada no interior de uma importante propriedade dos batistas
brasileiros, onde a religião oficial cultivada pelos batistas formulava seus fundamentos
teológicos. A partir desse fato, inúmeros desdobramentos ocorrerão na formação das redes de
poder no interior de um lugar inserido numa instituição onde o discurso oficial estava
presente.
O documento que narra detalhadamente as experiências religiosas do
episódio ocorrido na biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil é uma carta
cujo remetente é Rego e o destinatário é Tognini 168 .
Na Semana de Renovação Espiritual, suscitou-se uma pergunta: “O
Pentecoste se Repete?”. Na aludida carta de Rego, que narra a experiência religiosa ocorrida
na biblioteca, há uma resposta vivencial, a saber, “por volta da quarta oração, aconteceu o
pentecostes”. Ou seja, a “visitação do Senhor”, na contundência daquela experiência,
comprovou o que Rego estava se propondo a responder. Porém, antes que a resposta da
166
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 55.
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 255 e 256.
168
No Anexo 1 a carta é reproduzida na íntegra.
167
76
pergunta em questão se procedesse, houve cânticos, houve orações e houve leitura da Bíblia,
pois se buscava a referida resposta num “encontro com o sagrado” e no impacto produzido
por esse encontro.
Segundo Rego, assim que houve o pentecostes, o “Espírito caiu sobre a
casa, possuindo a muitos” e, no “cair do Espírito”, inúmeros seminaristas também caíram no
chão e nas mesas, confessando pecados com “voz alta”, com “gemidos” e com “choro
incontido”.
A pergunta: “O Pentecostes se Repete?” foi respondida não com uma coisa
que seria a verdade, mas com uma experiência que denotava um “efeito de verdade” na
terminologia de Foucault
169
. Portanto, a experiência que respondeu a pergunta principal da
Semana de Renovação foi um desfecho formativo interessante no interior de uma trama que
proporcionou a experiência fundante, a qual inaugurou uma rede que acreditava, portanto, na
repetição do pentecostes com o batismo no Espírito Santo.
Na experiênc ia da biblioteca, verifica-se que o início da constituição das
redes de poder, no Movimento de Renovação Espiritual, se deu num lugar específico da
religião, através das inscrições de sujeitos que compartilharam uma experiência religiosa,
vivenciada de forma diferente, mas abordando uma mesma temática da realidade pentecostal.
Ora, com tanto espaço nas dependências do seminário, por que fizeram a reunião de oração
logo numa pequenina biblioteca? Teriam eles receio de que o ruído pudesse ser ouvido por
algué m?
O poder, que poderia ter sido exercido na esfera do “macro”, tornou-se
fragmentário quando se redimensionou no exercício do “micro” e, por isso, adquiriu grande
eficácia na operacionalização das redes. Portanto, tendo achando um lugar para se exercer,
para além do discurso oficial da Convenção Batista Brasileira, cujos fiéis não tinham o
costume de viver a experiência religiosa com altos sons, choros e gemidos, bem como de
forma pentecostal, iniciou-se tal redimensionamento de importância singular para a rede de
poder que estava se formando, a qual encontrou uma forma a se exercer extraordinariamente
na experiência pentecostal de uma pequenina biblioteca.
Quase distante da presença de sujeitos portadores de discursos oficiais, por
entre uma noite num espaço religioso, constata-se uma atuação de um poder que, a partir da
mencionada experiência religiosa extática baseada no jogo de “esconde-esconde da
169
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 7.
77
divindade”, desdobrou-se na formação de um esconderijo religioso que caracterizou um lugar
para o exercício da religião proibida.
Destarte, não somente há um jogo de “esconde-esconde da divindade”, mas
também um jogo de “esconde-esconde” do pentecostalismo no interior de uma instituição
vinculada a uma denominação histórica. Percebe-se, contudo, que há um vínculo marcante na
formação das redes, pois poder e experiência religiosa, nesse jogo de “esconde-esconde”,
tanto da divindade, que se dá a (des)conhecer na auto-revelação multiforme, quanto dos
sujeitos de percepções multiformes, os quais se constituem de forma mútua num jogo extático
de “revela-revela” altamente imprevisível e autenticador.
Com isso, o que marcou a referida experiência religiosa foi o êxtase
vivenciado pelos sujeitos que compunham a inauguração de uma rede de poder, pois, segundo
Rego: “O Espírito caiu sobre a casa, possuindo a muitos”. Houve, a partir do alegado, nas
categorias de Mendonça, uma possessão da divindade com relação aos sujeitos.
Veja o que diz Mendonça:
“Regra geral, o êxtase está ligado à possessão. O
indivíduo é possuído pela divindade. Neste estado ele
perde sua personalidade e passa a falar e agir como
mero instrumento do sobrenatural, seja pelo efeito de
técnicas ou de alucinógenos. No primeiro caso, estão o
espiritismo e os cultos afro-brasileiros e, no segundo, o
já citado Santo Daime. Aproximam-se muito do
primeiro caso, também, os cultos pentecostais e os que,
não tipicamente pentecostais, buscam formas de
emotividade intensa”. 170
A partir das concepções de Mendonça, pode-se dizer que a mencionada
possessão do pneuma171 , no âmago do sujeito religioso, resultou numa perda de
personalidade, o que proporcionou, em observância ao conceito da instrumentalidade do
sujeito que faz perpassar o poder, uma legitimação dos atos que se configuraram no exercício
do poder através da “indução ao prazer” de uma experiência extática que também se compõe
num discurso.
Tal atuação do poder, no imbricamento com a experiência religiosa, se fará
notável porque permeia as redes, que só possibilitam a dinâmica do poder porque não são
170
171
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos, p. 151.
Palavra grega para se referir ao Espírito.
78
pautadas na repressão, mas na produção de coisas, na indução ao prazer, na formação do saber
e na produção do discurso 172 , com efeitos de verdade.
Rego também diz em sua carta, que depois da mencionada “visitação do
Espírito”, ele se levantou e foi fechar os basculantes da sala, no intento de tomar uma medida
que evitasse o excesso de barulho nas casas da vizinhança. Entretanto, no decorrer dessa ação,
sentiu-se repreendido pelo Espírito, voltando ao seu lugar no grupo de oração.
Ora, a reunião de oração teria ocorrido na biblioteca do Seminário para que o
elevado som não fosse ouvido pela vizinhança? É importante saber que, conforme uma
declaração do Seminário que será abordada posteriormente, o reitor A. Ben Oliver também
morava nos arredores do prédio e talvez não quisesse ser incomodado por um forte rumor,
sendo alguém de expressividade notória numa denominação histórica que não estava
acostumada a essa maneira de orar. Teria Rego se lembrado de que poderia, com tanto
barulho, causar algum incomodo para A. Ben Oliver?
Essa primeira fase da experiência na biblioteca ocorreu até “cerca de
1h30min” e foi, para Rego, “como se apenas cinco minutos se tivessem passado”. Após a
primeira fase das experiências religiosas vividas na biblioteca do seminário, o grupo de
semina ristas iniciou um período de cânticos e, logo depois de tal período, os seminaristas
puderam se expressar com diversas confissões de fé, de pecados e de experiências
comoventes.
Quando tais testemunhos chegaram ao final, novamente o grupo se pôs a orar
e, segundo Rego, “recomeçou a visitação do Espírito”, entretanto, dessa vez algumas pessoas
pediram “ao Senhor que parasse a visitação – o Batismo do Espírito”, no entanto, alguns
seminaristas não continham suas emoções e “andavam rindo por todo o canto da sala”. A
reunião também foi marcada por uma “visão”, na qual um dos seminaristas viu a Jesus,
enquanto estava de olhos fechados e, tendo se agarrado em Rego, não queria, de forma
alguma, abrir os seus olhos.
Segundo Rego, essa que se chama segunda fase da experiência vivenciada na
biblioteca do Seminário do Sul teve seu final “cerca de quatro horas da manhã”, quando
encerraram um período de orações, no qual teria havido uma segunda “visitação do Espírito”,
com batismos no Espírito Santo.
Para Mendonça, nas práticas religiosas que valorizam o êxtase, existe uma
passagem do estado de consciência para o estado extático, que pode ser conseguida através de
172
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 8.
79
técnicas. Nesse caso, com o emprego de técnicas, o êxtase é um estado geral desejável como
configuração de um culto ou da prática religiosa a que se propõe. Por isso, a partir da
experiência de êxtase, existe um estado de satisfação bastante notório por parte dos
praticantes das técnicas, conquanto tal êxtase é o ápice da vivência para quem pratica religião
dessa forma 173 . O transe, enquanto experiência religiosa fundamental para o episódio na
biblioteca é necessário para a caracterização coletiva de uma configuração pentecostal, porque
“o transe está no coração da experiência emocional pentecostal”
174
.
Conforme Mendonça, no que tange ao emprego de técnicas de transe
pentecostal coletivo, verifica-se uma caracterização acentuada desse tipo de expressão
religiosa:
“Técnicas como movimento do corpo, gestos repetidos,
cânticos ritmados e orações de intensidade crescente
podem levar ao êxtase coletivo, em que o grau de
alteração de consciência, embora variável de indivíduo
para indivíduo, configura o culto extático. Assim, a
maioria dos cultos pentecostais, em maior ou menor
grau, aproxima-se bastante do culto extático”. 175
As técnicas parecem ter sido utilizadas de acordo com a maneira com a qual
se cria na vivência espiritual e, portanto, o êxtase, enquanto alteração do estado de
consciência levou um dos seminaristas a dizer para Rego que estava vendo Jesus e que não
queria abrir os olhos, deixando de viver a mencionada experiência religiosa e o suposto
prazer de uma alteração de consciência induzida por todas as técnicas presentes naquela
reunião de oração.
O estado emotivo dos seminaristas, em que alguns riam bastante e por todo o
lado, parece demonstrar que a aplicação das técnicas referidas por Mendonça foi eficaz e
proporcionou um êxtase coletivo, com grau elevado de alteração da consciência. Nem todos
os seminaristas vivenciaram da mesma maneira a experiência religiosa da biblioteca, pois
alguns somente se comoveram, ao passo que outro teve até mesmo uma visão. Mas isso se
refere ao aspecto, já mencionado, de que a realidade dos objetos de fé, que parecem girar em
torno das experiências, apresenta realidades vislumbradas a partir de diferentes percepções.
Assim, a primeira e a segunda fase da experiência religiosa que irrompeu a
madrugada do dia 17 para o dia 18 de outubro de 1958, parecem ter se constituído como
experiências legitimadoras da rede de poder que se formou naquele ensejo, porque a
173
174
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos, p. 150.
BASTIAN, Jean-Pierre. Os pentecostalismos: afirmação de uma singularidade religiosa latino-americana, p.
29.
175
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos, p. 150.
80
pergunta: “O Pentecostes se Repete?”, foi pertinente para impulsionar uma resposta
experiencial formativa que, com a alteração dos estados de consciência dos seminaristas, um
verdadeiro êxtase marcou a trama histórica na vivência religiosa do batismo no Espírito
Santo, através do que Rego chama de “visitação do Espírito”.
Com Mendonça, pode-se mencionar que o êxtase é ideal para romper as
barreiras que impedem ou dificultam o relacionamento com o sagrado e, num aspecto
relacional altamente belicoso, as experiências extáticas causam rupturas maiores ou menores
dos laços que ligam indivíduos à realidade, quer na compreensão do mundo ou no
entendimento do meio onde pratica religião. No bojo da experiência extática de ruptura,
acham-se os tremores, a voz embargada ou inarticulada, o choro e até os estados de total
inconsciência, o que é legitimado pela possessão da divindade, como já foi referido 176 .
Ademais, segundo Mendonça, a busca por uma religiosidade mais intensa é
baseada nas rupturas e no anseio pelos contatos mais íntimos com Deus. Segundo o autor, tais
práticas de sujeitos religiosos são movimentos que ocorrem à margem da igreja oficial, sendo
a principal característica desses movimentos a aversão às normas e doutrinas da igreja, pois
entendem que o Espírito revela todas as coisas necessárias para a vivência da religião 177 .
Portanto, a partir das concepções de Mendonça, tem-se, na biblioteca do
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, uma vivência religiosa baseada na experiê ncia
pentecostal que legitimou a inauguração de uma rede de poder que, mesmo no início, contou
com algumas inscrições através de experiências extáticas, o que caracterizou a maneira com a
qual a religião se constituiu nas práticas do Movimento de Renovação Espiritual, sendo tal
movimento decorrente de batismos no Espírito Santo.
Dessa forma, a partir dessas experiências formativas, o próprio Rego admite
que, naquele ensejo, havia começado um movimento no interior da Convenção Batista
Brasileira, porquanto diz: “Podemos proclamar: começou o avivamento em nossa Pátria”.
Contudo, para que esse avivamento pudesse se operacionalizar, também se iniciou, como se
mencionou, um processo de formação das redes de poder, por ocasião da Semana de
Renovação Espiritual.
Não se pode esquecer, entretanto, que algumas experiências extáticas
causam ruptura e que, alem disso, o reitor Oliver morava nos arredores das dependências do
seminário. Dessa forma, o barulho que adveio da biblioteca, na vivência religiosa de um lugar
específico, fez-se ouvir e alastrou-se pelos campos de batalha, nos quais o poder oficial de
176
177
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos, p. 151.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos, p. 151 e 152.
81
uma Convenção Batista Brasileira está presente e, dessa forma, a belicosidade, nessa
experiência fundante, encontra-se nas formações das inúmeras redes que se prepararão para
os golpes mais sangrentos do primeiro cisma denominacional na referida Convenção.
Faz-se, pois, necessária uma reflexão acerca da biblioteca do Seminário
Teológico Batista do Sul do Brasil como um espaço utilizado por Rego para que se
procedesse a uma experiência religiosa extática. Portanto, suscita-se uma pergunta crucial:
Por que Rego e os seminaristas elegeram a biblioteca como espaço propício para a vivência
das experiências extáticas?
A biblioteca, enquanto lugar, tinha uma ordem própria, a qual era regida pela
intelectualidade acadêmica que procura se pautar nos estudos e na dedicação teórica através
das leituras. Para Certeau, no lugar “impera o lugar do“próprio”: os elementos considerados
se acham uns ao lado dos outros”. Por isso, cada livro, um ao lado do outro, também define
uma “configuração instantânea de posições”, o que denota “estabilidade” 178 . Dessa forma,
insinuar-se com uma experiência pentecostal pautada nas composições do caráter extático em
meio a um lugar de intelectualidade acadêmica e de formação teológica é causar desequilíbrio
na religião oficial que preza pelo conhecimento e pela formação seminarística de seus
pastores e missionários.
Dessa forma, pratica-se religião na biblioteca onde a organização causada
pelo desejo de conhecimento teológico é notória. Sendo o espaço “um lugar praticado”,
também pode marcar uma ordem desequilibrada por um lugar praticado na contrariedade da
formação proposta pelos organizadores, pois, quando os sujeitos se expressaram e alteraram a
ordem primeira, também se enunciaram por entre a mobilidade de suas experiências no
referido espaço.
Rego havia visitado o Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil para dar
palestras sobre questões referentes à doutrina do Espírito Santo, porém houve uma passagem
das palestras à prática daquilo que fora proposto pelo palestrante, porquanto a academia
tornou-se o lugar praticado de uma experiência religiosa extática de adesão ao Movimento de
Renovação Espiritual.
178
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 201.
82
2.3. Um barulho que veio da biblioteca: Poder e repressão da religião oficial
Para Foucault, na formação das redes, há determinada funcionalidade do
poder, a partir da constituição de um discurso que tem em si o mencionado “efeito de
verdade”. Para o autor, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e
constituem a trama histórica. Por tal aspecto, tais relações não podem se dissociar, se
estabelecer e nem funcionar sem uma produção, uma acumulação e uma circulação no
funcionamento de um discurso 179 .
Na verdade, para Foucault, o poder é capaz de submeter o homem à
produção da verdade, sendo o exercício do poder através da própria produção da verdade.
Entretanto, o poder é exercido em redes e, de acordo com o modelo bélico da abordagem
acerca da história que nos domina e nos determina, o poder se fará perpassar em redes que
criam discursos culminantes em embates sangrentos nas batalhas que tal poder atravessa.
“O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas
malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre
em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação;
nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (...)
Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos,
discursos e desejos sejam identificados e constituídos
enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de
poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro poder: é um
de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito de
poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser
um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa
através do indivíduo que ele constituiu.”. 180
A partir das categorias de Foucault, o poder posiciona indivíduos
estrategicamente em uma rede ou em diferentes redes, pois os indivíduos pertencentes a essas
redes serão sujeitos portadores de uma mobilidade e, de igual forma, instrumentos por onde o
poder se fará perpassar, porque sendo o indivíduo um efeito de poder, também se coloca
como um transmissor eficaz do poder que o constituiu.
Porém, também se verifica que a conseqüência do poder que se exerce nas
redes, é o estabelecimento de uma “via de mão dupla”, porquanto os indivíduos estão sempre
179
FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 179.
FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 183
e 184.
180
83
postos em posições de exercer um poder que ocasionará, para o sujeito através do qual o
poder se exerceu, uma conseqüência de sofrer a rápida ação do poder.
Constata-se, a partir dessas concepções, que o poder estabelece, em outras
palavras, determinados “custos de suas ações”, a saber, há diversas formas de conseqüências
e implicações do exercício do poder 181 e, na maioria dos casos, quando há uma formação de
redes de poder, também os indivíduos se comprometem constituindo-se e doando-se como
verdadeiros instrumentos por onde a mobilidade da dinâmica do poder perpassa.
Portanto, nenhuma rede se formará isoladamente, pois o poder atravessa por
entre as malhas das redes de uma forma produtiva e nunca é detido por nenhum indivíduo,
porque, como se disse, os corpos são instrumentos por onde o poder perpassa, ou seja, são
pontos de interligação, porquanto ninguém poderá “segurar” o poder, embora possa se iludir
no momento em que é utilizado por sua dinâmica, na transmissão desse poder disseminado.
Destarte, enquanto seres humanos vivos, os sujeitos religiosos que
vivenciaram a formação de uma rede de poder na biblioteca são altamente produtivos por
conta da produtividade das redes nas dinâmicas das experiências legitimadoras. Tais sujeitos
também serão identificados por suas expressões, as quais, enquanto participantes de uma
rede, são mencionadas por Foucault como sendo através do “corpo”, dos “gestos”, dos
“discursos” e dos “desejos”, pois esses são elementos constatáveis da constituição de
indivíduos nos primeiros efeitos do poder. No caso em tela, os sujeitos religiosos, na
experiência extática da biblioteca, através da aplicação de técnicas, utilizaram de forma
constitutiva as mencionadas expressões, configurando a experiência religiosa naquele
momento e lugar.
Não se pretende fazer uma abordagem meramente descritiva no que tange
aos processos de objetividade histórica, pois se quer abordar, de igual forma, a partir da
experiência religiosa ocorrida na biblioteca do Seminário, a constituição e a tensão das
demais redes formadas pela religião oficial que pode ouvir nitidamente os barulhos da
experiência extática que configurou a reunião de oração não autorizada e proporcionou a
resposta para a pergunta: “O Pentecostes se repete?”
181
Cf. FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.
183.
84
Veja o que diz Wirth:
“Assim, a escrita da história de um determinado grupo
não se esgota na descrição de processos supostamente
objetivos, mas problematiza este processo, captando
suas diferentes perspectivas, suas diferentes redes de
significados, explicitando as formas de apropriação
pelos diferentes sujeitos em questão e visibilizando as
tensões entre os diferentes significados. No que se
refere à memória religiosa, implica, por exemplo,
distinguir entre o discurso oficial e as diferentes formas
de apropriação deste discurso pelos fiéis”. 182
Por isso, problematizar o processo que se verifica na experiência da
biblioteca significa observar e ponderar sobre as tensões no interior da instituição onde a
biblioteca estava localizada e, com isso, constatar a tensão que se estabelece entre a
experiência religiosa que ocorreu às margens e a instituição portadora de um discurso oficial,
inclusive exe rcendo um papel de formação de teólogos batistas, entre os quais, muitos
ordenados ao ministério pastoral batista. Por isso, é relevante notar as tensões entre as redes
de poder que se entretecem no interior de um grupo denominacional, pois, além dos embates
no âmbito de uma denominação, deve-se perceber que há diferentes formas de apropriação
das referidas experiências pelos diferenciados fiéis.
Visando identificar as tensões entre as redes de poder que estavam se
inaugurando naquele ensejo, percebe-se que Rego tinha uma consciência bem arraigada
acerca do movimento que começou a acontecer, pois na sua carta à Tognini, Rego diz:
“começou o avivamento em nossa Pátria”, e, por conseguinte, ele também disse: “A reação
já se faz sentir”. Ora, quando um movimento encontra diante de suas articulações algumas
reações que se fazem “sentir”, constata-se a formação de outra rede de poder. No caso em
tela, segundo Rego, “um professor do Seminário já teria culpado o reitor por ter aberto as
portas do Seminário a um herético” e, ainda segundo ele, “as discussões já começam a
surgir”, pois “o sentimentalismo, a emoção barata, têm sido chamados para justificar o
ocorrido”. Entretanto, Rego alega que os seminaristas eram mais “racionais do que
simplórios” e, com isso, pretende dizer que todo o processo de experiência religiosa ocorrido
na biblioteca passou pelas vias da consciência, o que concedia responsabilidades também aos
seminaristas que vivenciaram de forma consciente a experiência.
182
WIRTH, Lauri E. Novas metodologias para a História do Cristianismo: em busca da experiência religiosa
dos sujeitos religiosos. In. COUTINHO, Sérgio Ricardo (Org). Religiosidades, Misticismo e História no Brasil
Central, p. 31.
85
Portanto, a experiência fundante ocorrida na biblioteca traz a rápida
consciência de que um avivamento se encaminharia e, da mesma maneira, responsabiliza a
todos os seminaristas por um entendimento mais ou menos certo daquilo que havia ocorrido,
porque eles eram mais “racionais do que simplórios” e, desse modo, poderiam discernir, até
mesmo
fazendo
uso
do
embasamento
histórico-teológico
adquirido
nos
estudos
seminarísticos, do que havia ocorrido na experiência religiosa ocasionada pela pergunta: “O
Pentecostes se Repete?”.
Em sua carta, após uma tentativa de cativar Enéas Tognini, Rego faz
algumas perguntas que demonstram claramente a belicosidade do momento pelo qual o
Movimento de Renovação Espiritual estava passando. Rego pergunta: “Enéas, estamos
prontos para o martírio nesta hora desafiante?”. Tal pergunta remonta a um campo de
batalhas em que parece haver uma consciência do poder que lhes tornava instrumentos
produtivos naquele momento histórico. A mencionada pergunta parece denotar ainda, que
havia uma consciência, por parte de Rego, de que o Movimento de Renovação Espiritual
seria culminante num determinado processo inquisitório dos seus praticantes, em especial de
Rego.
Assim, para Rego, havia um desafio naquele momento crucial, a saber, o
martírio iminente que, como se mencionou, seria a conseqüência de uma “via de mão dupla”
no exercício do poder nas malhas das redes de poder. A referida pergunta é bastante
intrigante e, a partir do que foi suscitado por Rego, cabem outras indagações: teria Rego
previsto algum cisma na Convenção Batista Brasileira? Teria Rego previsto que seria
desligado da denominação? Tendo em vista que o martírio supostamente enaltece a figura do
mártir, teria Rego desejado passar pela experiência de martírio?
Com base nessas reflexões, constata-se que a experiência religiosa extática,
a partir da possessão da divindade e das muitas manifestações com gestos “extraordinários”,
quando combinada e misturada com o poder exercido em redes, parece conceder um estado
de consciência sobre as ações cometidas por quem estava experimentando uma determinada
situação de amostragem parcial da divindade. Portanto, parece haver uma legitimação dessa
consciência pelas experiências religiosas que foram vivenciadas, porém, tal consciência
também faz saber que esse início oficial que se deu às margens da religião oficial, através do
barulho ecoado, fez-se notar fazendo o movimento conhecido pela instituição.
A reunião pentecostal ocorrida num lugar religioso da biblioteca do
Seminário do Sul foi bastante notória na denominação, pois a Administração e o Corpo
86
Docente do seminário lançaram mão de O Jornal Batista183 , veículo oficial da Convenção
Batista Brasileira, para publicar uma declaração 184 .
Na referida declaração, a Administração e o Corpo Docente manifestam o
desejo de esclarecer os pastores e as igrejas sobre a posição do Seminário com relação aos
acontecimentos que foram verificados. Admite-se, no menc ionado documento, que o grêmio
formado pelos alunos do seminário convidou “certo pastor” para dirigir reuniões de oração e
fazer preleções aos alunos; entretanto, admitem-se também que não é concebível que uma das
reuniões, “que durou a noite inteira”, tenha ocorrido sem “consentimento e autorização da
Administração do Seminário”.
Na declaração da Administração e do Corpo Docente também consta que os
professores estavam “sendo argüidos por terceiros” acerca do episódio ocorrido na aludida
madrugada. Portanto, a declaração enfatiza que a reunião se deu com “extremado
emocionalismo e excessos perturbadores”. Vê-se, doravante, que a experiência pentecostal
vivenciada na biblioteca não foi tida por legítima pela religião oficial, a qual ouviu o ecoar
constante de barulhos que perduraram por quase toda a madrugada.
Nesse sentido, o Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil estava sendo
citado em outras reuniões pentecostais como um lugar onde tais experiências se procederam
e, dessa maneira, segundo a mencionada declaração, precisava-se dizer que a Administração
e o Corpo Docente desaprovavam os aspectos da reunião ocorrida na biblioteca e que os fiéis
deveriam “distinguir entre a verdadeira espiritualidade e os excessos de emocionalismo”,
que seriam, segundo a declaração, “desvirtuamentos perigosos contra os quais” devia-se
“acautelar”. Portanto, a partir dessa declaração, verifica-se que há determinado propagador
das idéias do Movimento de Renovação Espiritual que, além de proceder com práticas as
quais não eram aprovadas pela religião oficial, também parece se valer da imagem do
seminário para a propagação do avivamento.
Tendo a Administração e o Corpo Docente do Seminário Teológico Batista
do Sul do Brasil desaprovado as experiências religiosas vivenciadas na biblioteca, também
identificaram- nas como “excessos perturbadores” e como “excessos de emocionalismo”, o
que parecia denotar um desvirtua mento das práticas batistas. O protesto veemente contra
Rego e contra a reunião que aconteceu na biblioteca demonstrou que a experiência religiosa
183
Cf. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, nov. 1958, p. 7.
184
No Anexo 2 a declaração é reproduzida na íntegra.
87
ocorrida havia se tornado pública e que também havia chegado até os pastores e as igrejas da
denominação.
O propagandista Rego do Nascimento não somente conseguiu atingir Enéas
Tognini, mas também parece ter atingido as estruturas denominacionais, bem como pastores e
igrejas, a partir da experiência fundante da biblioteca. Ele mesmo declara isso na sua carta à
Tognini: “Enéas, Deus continua quebrantando pastores. Três estão nas mãos do Espírito. Em
Maceió. Em São Paulo também”. Outrossim, Rego sabia que Tognini teria um grande
potencial para ajudá- lo, pois declara na carta: “Meu amado irmão, espero tanto na sua
influência nesta hora”.
Além do mais, como já se mencionou, parece que Rego estava usando o
êxtase religioso ocorrido na biblioteca como experiência propagadora do Movimento de
Renovação Espiritual, pois, em sua carta à Tognini, Rego diz: “o irmão pode usar esta carta
como desejar”, prevendo que ela pudesse ser publicada ou até mesmo propagada. Com isso,
através de suas inúmeras pregações pelas igrejas batistas da Convenção Batista Brasileira,
Rego utiliza-se do poder perpassado para promover a constituição de outros sujeitos
religiosos na rede de poder da Renovação Espiritual.
A belicosidade das redes de poder opositoras do Movimento de Renovação
Espiritual continuou se entretecendo e abrangendo os sujeitos religiosos, pois assim que Rego
iniciou sua propaganda, também o Seminário do Sul, através da Administração e do Corpo
Docente, deu início à reação. Entretanto, a rede de poder denominacional continuou
abrangendo com eficácia, pois a Junta Administrativa do Seminário Teológico Batista do Sul
do Brasil decidiu, de igual forma, fazer uma declaração oficial185 .
Depois da reunião plenária ocorrida no dia 19 de dezembro do ano de 1958,
estando 12 dos 15 membros da Junta Administrativa, três medidas foram tomadas, a saber:
Em primeiro lugar, como consta na declaração da Junta Administrativa, o
plenário aprovou a anterior declaração da Administração e do Corpo Docente do Seminário
do Sul, pois, segundo o documento da Junta Administrativa, os fatos ocorridos na biblioteca e
em igrejas vizinhas, durante a estada de Rego no Rio de Janeiro, foram “desagradáveis”.
Em segundo lugar, a declaração da Junta Administrativa dirigiu um “apelo
urgente às Igrejas Batistas do Brasil no sentido de se acautelarem” e de estarem “em alerta
contra qualquer desvirtuamento da gloriosa doutrina do Espírito Santo”. Tal desvirtuamento
poderia ocasionar “excessos de emocionalismo” e ainda algumas “conseqüências
185
No Anexo 3 a declaração é reproduzida na íntegra.
88
imprevisíveis”, as quais gerariam “dúvidas e confusão no seio das igrejas batistas”. A
declaração da Junta Administrativa também alertou que as dúvidas e confusões poderiam até
“provocar cisão” na denominação e, tendo tais coisas suscitado certo temor com relação ao
perigo da cisão, consta na declaração uma oração acerca do referido perigo : “rogamos ao
Senhor que nos livre e guarde”.
Em terceiro lugar, a Junta Administrativa “lamenta a atitude tomada pelo
Pastor José Rego do Nascimento”, pois tendo “levado a efeito tais reuniões; principalmente,
a que se realizou na Biblioteca do Seminário, sem prévio acordo com o irmão Reitor, que foi
surpreendido em altas horas da noite pelos estranhos acontecimentos que se passavam
naquele recinto”. A Junta Administrativa ainda insere mais uma oração na sua declaração:
“A Junta do Seminário roga ao Senhor que oriente os irmãos envolvidos nesses
acontecimentos, a fim de que reflitam a tempo e evitem desvirtuamentos e exageros”, pois,
segundo a Junta, os “desvirtuamentos de uma boa doutrina são sempre perigosos e
funestos”.
Estavam presentes à reunião plenária os seguintes membros da Junta
Administrativa: Almir S. Gonçalves, Moysés Silveira, John L. Riffey, Samuel de Souza,
Mathan Lopes da Silva, Ernani de Souza Freitas, Joaquim José da Silva, M. Tertuliano
Cerqueira, Jayme Lunsford, João Emílio Henck, Pedro Gomes de Melo e J. J. Cowsert. Enéas
Tognini também era membro da Junta Administrativa, porém alega que, por motivo justo,
não compareceu; entretanto, ele diz que votaria contra a referida declaração da Junta
Administrativa 186 . Esses nomes compuseram uma rede de poder bastante atuante, através do
discurso contido na declaração que fizeram, bem como nos embates decorrentes da
mencionada declaração.
Assim, segundo Xavier, a reunião do seminário ficou bastante famosa e
Rego passou a ser criticado veementemente por ter se tornado um pentecostal, numa
conotação bastante pejorativa. Segundo o mencionado autor, a reação da Administração e do
Corpo Docente, bem como a reação da Junta Administrativa, não foi nada cordial, pois, como
se verificou, um dos professores culpou o reitor por ter permitido que um “herege” falasse na
Semana de Renovação Espiritual. Xavier atribui tal rejeição ao tradicionalismo que os
batistas cultivavam, pois, segundo o autor, algumas pessoas “não tinham o coração aberto
para o que o Espírito iria fazer daí em diante” 187 .
186
187
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 60.
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 59.
89
Existe, com tantos discursos, uma verdadeira guerra instaurada a partir das
conseqüênc ias da experiência religiosa na biblioteca, pois se nota que cada rede de poder que
se formava também constituía seu discurso próprio, que, com determinadas declarações,
pareciam ser bastante conscientes de algumas implicações de suas ações. Os poderes
exercidos em rede, através da instrumentalidade dos sujeitos religiosos, além de constituir,
também compuseram determinados efeitos de verdade no interior de discursos bastante
definidos e belicosos, em meio ao início de uma guerra institucional.
Os discursos estão diretamente vinculados ao poder que se exerce em redes,
pois os referidos discursos é o que define o objeto do desejo manifesto na tradução das lutas,
das guerras e das batalhas em termos de dominação. Acerca disso, Michel Foucault afirma :
“Por mais que o discurso seja aparentemente bem
pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo,
rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.
Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso –
como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também,
aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a
história não cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou o sistema de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o
poder do qual nos queremos apoderar”. 188
Quer-se, portanto, através do que diz Foucault, evidenciar uma rede de poder
que, a partir do momento no qual constata uma ação na biblio teca também se forma na
constituição de sujeitos. Há, a partir da formação dessas redes, quer com a declaração da
Administração e do Corpo Docente, quer com a declaração da Junta Administrativa, uma luta
pelo poder de exercer os “efeitos de verdade” contidos na ação de um discurso. Verifica-se,
portanto, uma notória diferenciação na belicosidade das redes de poder; entretanto, toda a
formação dos discursos confrontativos culminaram em embates contundentes entre as redes
que se formaram num emaranhado denominacional.
Assim, todos quiseram se fazer ouvidos, tanto Rego, que escreve uma carta
à Tognini e prega em diversas igrejas, como as redes opositoras, que se farão ouvir através do
“discurso oficial” impresso nas páginas de O Jornal Batista. Investe-se belicosamente em
propaganda, tanto por parte do Movimento de Renovação Espiritual, quanto por parte dos
opositores oficiais da Convenção Batista Brasileira.
Desse modo, o confronto se ampliou na medida em que passou o tempo e na
medida em que O Jornal Batista publicou artigos contendo discursos das redes de poder
188
FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 10.
90
oficial, a qual se formou no âmbito da Convenção Batista Brasileira. Quando mais se mexia
na questão, mais a propaganda do Movimento de Renovação Espiritua l cresceu, assim como
também o movimento de resistência.
Portanto, a vivência da experiência religiosa na biblioteca do Seminário
Teológico Batista do Sul do Brasil constituiu-se num entrecruzar da experiência do
“Erlebnis” com a experiência do “Erfahrung”. Esses vocábulos alemães auxiliam bastante
na compreensão de tais experiências, pois “Erlebnis” demonstra algo que vem do fundo, que
seria vivenciado desde “dentro” do sujeito que pratica religião, sendo que os alemães dizem
“Erlebnis” para mostrar que na vivência religiosa há determinada emocionalidade. A palavra
“Erfahrung” designa uma experiência religiosa menos subjetiva, pois “fahren”, ao contrário
de “leben”, significa “viajar”, tendo uma conotação de externalidade. Entretanto,
“Erfahrung”, embora se refira a um conhecimento externo, não tem a riqueza subjetiva de
“Erleben”, que é proveniente de uma experiência de vida 189 .
Assim, a partir de uma experiência extática que trouxe determinado
conhecimento avivalista para os sujeitos que praticaram religião na biblioteca, também o
entrecruzamento de “Erlebnis” e “Erfahrung” trouxe um estado de consciência posterior
acerca de todo o risco que se estava correndo por conta da barulhenta reunião, na qual os
sujeitos religiosos vivenciaram a experiência do “Erlebnis”. Da mesma forma, através da
experiência do “Erfahrung”, os sujeitos religiosos gozaram de um conhecimento do seu
campo de batalha, pois “viajaram” por entre o risco e o perigo do campo de batalhas.
Desse modo, Otto Maduro considera que a experiência religiosa está
intimamente vinculada ao conhecimento, no seu esforço para entender, classificar e explicar
a realidade que está no entorno do sagrado 190 . Em verdade, tal conhecimento da experiência,
no entrecruzamento de “Erlebnis” e “Erfahrung”, faz com que o conhecimento, tanto do
prazer quanto do risco, bem como do campo de batalha, gere uma experiência mais intensa e
legitimadora, fazendo com que as redes de poder, na militância cotidiana, ganhem mais e
mais poder, tanto no seu entretecimento, como no seu perpassar e na sua dinâmica
abrangência.
Sabe-se que, com a produtividade e a criatividade das redes, o poder é eficaz
quando não se propõe a ser repressivo, porquanto, enquanto força positiva, não há nenhuma
189
190
54.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa, p. 26 e 27.
MADURO, Otto. Mapas para a festa. Reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento, p. 19 e
91
fragilidade no seu exercício, pois, por onde perpassa, carrega uma determinada “força”
bastante interessante e, como foi dito, altamente positiva. Para Foucault, a força da eficácia
do poder está no fato de que ele não está baseado, a princípio, na exclusão, no impedimento,
no recalcamento e, por derradeiro, ele não é negativo. Entretanto, constata-se que houve um
intento da religião oficial, através de inúmeras tentativas repressoras, de desmerecer o
Movimento de Renovação Espiritual e, nesse caso, verifica-se que o poder não se exerceu de
forma eficaz, pois, caso tivesse obtido êxito, seria um grande “superego”, nas categorias de
Foucault.
A fragilidade da religião oficial, no caso em tela, evidenciou-se porque, a
partir de tentativas repressoras das pessoas vinculadas ao Seminário, a propaganda do
Movimento de Renovação Espiritual, através de Rego e de outros, passou a ser notória.
Dessa forma, de “certo pastor”, como consta na declaração da Administração e Corpo
Docente, Rego passou a ser identificado como “pastor José Rego do Nascimento”,
constituído numa trama como tantos e também como propagandista do Movimento. Além
disso, a Semana de Renovação Espiritual, de uma simples semana de atividades promovidas
pelo grêmio, passou a ser mencionada no âmbito de toda a Convenção Batista Brasileira.
Tudo isso, porque o que torna o poder aceitável e o que sustenta o poder é o fato de que ele
não se constitui como uma força que diz “não”, mas, sendo produtivo, ele “permeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber e produz um discurso”
191
.
Portanto, por entre as inúmeras propagandas, programadas ou não, o campo
de batalhas começou a ficar mais definido, sendo que as informações se alastraram e se
disseminaram no seio da Convenção Batista Brasileira. Com isso, as redes de poder
possibilitaram uma conexão de informações, de origens e naturezas experienciais
diversificadas. Tais redes, interagindo entre si, não encontraram um término identificável,
mas um avanço imprescindível. Para Foucault, a análise a partir das redes de poder percorre
um campo do saber que é infinito por si só, pois também as redes não podem ser reprimidas,
pois fazem perpassar um poder quase imensurável e inexorável.
191
FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder. São
Paulo: Editora Graal, 1994, p. 183
92
2.4. Na abra ngência das redes de poder: um manifesto da minoria excluída da Igreja
Batista da Lagoinha
Segundo Machado, quando Foucault analisa o poder, ele o faz tendo em
vista investigações bem delimitadas e circunscritas, bem como objetos bem demarcados. Por
isso, para Machado, sempre que se constata uma abordagem de Foucault com o respaldo nas
teorias de poder, também se nota uma partic ularização das análises. Conforme o mencionado
autor, Foucault teria explicitado a questão do poder para dar prosseguimento à pesquisa sobre
a história da penalidade192 .
Na presente abordagem, concorda-se com Machado; entretanto, admite-se
que, além de haver uma particularização nas abordagens referentes ao poder, Foucault
também aludiu ao poder, para além da verificação restrita à história da penalidade, pois
Foucault fez uso das teorias de poder na observância de outras instituições, como os
hospitais, o exército, as escolas, as fábricas, entre outras. Na presente abordagem, reconhecese que a particularização referente ao caso em tela, nesse ensejo, é o episódio da experiência
pentecostal ocorrida no interior da biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do
Brasil, contudo, também se admite que haja desdobramentos e deslocamentos das redes de
poder, o que se faz notar pela imensidão produtiva das malhas do poder e, com isso, constatase inúmeras reações denominacionais no âmbito da Convenção Batista Brasileira.
O poder não pode se estagnar, pois se isso ocorresse, não haveriam
sucessivas constituições de sujeitos nas redes e, por conseguinte, o exercício do poder,
através da instrumentalidade dos sujeitos, não teria chances de ocorrer com maior eficácia e
criatividade. Assim, o poder causa tensão entre as redes e, no embate decorrente das tensões,
causa confrontos mortais através da oposição entre as aludidas redes de poder. Com
Machado, pode-se dizer que as abordagens que tangem ao poder precisam ser menos
englobantes, no entanto, a abrangência das redes de poder faz-se notória através da
verificação da dinâmica que promove um perpassar do poder através dos indivíduos.
Segundo Foucault, consoante à dinâmica no exercício do poder, suscita-se
que “ninguém” havia se preocupado com a forma detalhada e concreta com a qual se procede
ao exercício do poder por entre a conjuntura social. De acordo com o teórico, “ninguém” se
preocupou com o exercício do poder na especificidade de suas técnicas e de suas táticas.
Antes das abordagens de Foucault, contentava-se em analisar o poder denunciando-o no
192
FOUCAULT, Michel. Introdução. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. XVI.
93
“outro” que se achava em questão, sempre no adversário. Desse modo, a abordagem que diz
respeito às malhas mais finas do poder, só pôde ser pensada a partir de 1968, a partir de um
embasamento nas lutas cotidia nas no âmbito das redes que se formavam nas tramas
históricas 193 .
Portanto, a abordagem do poder que irrompe a realidade cotidiana é de
suma importância para Foucault, pois ela pode se proceder de uma forma notável, sendo
visibilizada no que diz respeito à sua funcionalidade nos verdadeiros embates e nas
verdadeiras tensões, porque o que deve ser primado é a verificação das engrenagens do poder
e do funcionamento do poder.
Com tal argumentação, quer-se demonstrar que o poder, embora não possa
ser observado de uma maneira globalizante, poderá ser constatado, no seu funcionamento
cotidiano, nas engrenagens microfísicas da religião e das redes que se formaram de forma
bastante abrangente no âmbito da Convenção Batista Brasileira. Embora o poder exercido nas
redes tenha abarcado as igrejas locais, sendo abrangente, também é particularizado e
demarcado. Com isso, vê-se que o dinamismo proporciona uma boa funcionalidade para o
poder, pois é capaz de abarcar pessoas que, dia após dia se constituem de forma a se tornarem
sujeitos transmissores do poder a partir das suas experiências religiosas.
Com a abrangência das redes e o deslocamento constante do poder, constatase que a religião é formada por inúmeros paradoxos de opostos, o que configura contextos e
situações. E, portanto, nota-se a dinâmica da abrangência das redes e o redimensionamento
constante do poder através do sujeito religioso que vive os paradoxos. Para Pereira, a fé é
geradora de conflitos, pois, contraditoriamente, ela também é resultante de situações
conflitais 194 .
Portanto, a partir da belicosidade do modelo de abordagem a que se propõe,
o episódio da experiência na biblioteca, bem como os seus desdobramentos, é algo que se
deve perceber como uma experiência pentecostal geradora de conflitos, não pela sua
natureza, mas pela formação diversificada de redes de poder, cuja fé é estabelecida de forma
grupal e parcialmente definida. A autenticação da experiência religiosa deve ocorrer quando
determinada rede a inclui como legítima a partir da maneira com a qual a referida rede se
acostumou em termos de prática religiosa.
193
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 6.
194
PEREIRA, Josias. A fé como fenômeno psicológico, p. 71.
94
Pereira suscita um conflito gerado pelos desdobramentos do ato de crer, a
saber, o sujeito que atende ao seu imperativo interior, vez por outra, se verá desacreditado
pelo grupo ao qual oficialmente pertence, entretanto, caso o sujeito religioso ceda às pressões
do grupo, tais circunstâncias o farão entrar em conflito consigo mesmo e com as noções
adquiridas a partir da particularidade de uma experiência com o sagrado 195 .
“Mas como no contexto sociocultural a conduta das
pessoas é regida por modelos e padrões, a tendência é
apresentar-se um padrão de resposta fiducial. O meio
exige que, para ser creditada como fé, a manifestação
precisa ser testemunhada conforme o modelo definido
pelo grupo social no qual o sujeito está inserido. Tal
inserção não depende da autodecisão daquele que crê,
mas sim da aprovação circunscrita pelo contingente
social, onde a pessoa está introduzida”. 196
Entrementes, no entanto, a vivência da experiência religiosa, no período do
Movimento de Renovação Espiritual, “destoou” de forma contundente, tanto dos padrões da
denominação batista, como das maneiras litúrgicas das igrejas locais, as quais, a partir da
constituição dos seus sujeitos religiosos em diversificadas redes de poder, tornaram-se um
“campo de batalhas” bem definido e particularizado, embora bastante abrangente nos
desdobramentos do alcance do poder e da experiência religiosa.
Como se pôde constatar documentalmente, houve um embate entre a rede de
poder formada na biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e as redes da
Administração e Corpo Docente, bem como com a rede da Junta Administrativa. Como se
viu, os sujeitos envolvidos com o Movimento de Renovação Espiritual, bem como os seus
opositores, fizeram, querendo ou não, determinadas propagandas do movimento. Portanto,
toda a denominação, a partir dos documentos que fizeram circular, ficou em estado de alerta
sobre o movimento que estava em curso. Por isso, a abrangência do poder foi notória,
porquanto até mesmo a Igreja Batista da Lagoinha, após os muitos protestos
denominacionais, resolveu interagir. Alguns fiéis que se ajuntaram por não concordar com as
idéias de Rego resolveram se manifestar também197 .
Alguns sujeitos interagiram de forma bastante decisiva nos embates, pois se
fizeram enunciar com um manifesto. Henrique Blanco de Oliveira, Tasso Brasileiro do Vale e
Rui Brasileiro do Vale se formaram numa rede autodenominada “minoria fiel” da Igreja
195
PEREIRA, Josias. A fé como fenômeno psicológico, p. 72.
PEREIRA, Josias. A fé como fenômeno psicológico, p. 72.
197
No Anexo 4 o manifesto é reproduzido na íntegra.
196
95
Batista da Lagoinha, a qual, segundo Tognini, “levantou-se contra o pastor”
198
. Isso ocorreu
justamente por não concordarem com as experiê ncias de Rego na biblioteca e com a
propagação do Movimento de Renovação Espiritual.
Um manifesto da chamada “minoria fiel”, utilizando uma linguagem
bastante belicosa, declarou que se “negam a dar validade a quaisquer atos praticados ou que
venham a ser praticados pela dissidência da Igreja Batista da Lagoinha”. Portanto, com tal
afirmação, percebe-se que a chamada “minoria fiel” chama de “dissidência” a maior parte
do grupo, que estava ao lado da rede de poder constituída juntamente com Rego. Assim,
nenhum dos atos que fossem praticados pela chamada “dissidência” seria válido para a rede
opositora, pois, segundo a referida declaração, a Igreja Batista da Lagoinha havia se tornado a
“Igreja Batista Pentecoste” e eles não reconheceriam como legítimo o movimento que estava
ocorrendo no interior daquela igreja local.
Segundo a referida declaração, a chamada “minoria fiel” repudiava as
experiências pentecostais, tais como : “segunda experiência (batismo no Espírito Santo),
línguas estranhas e confusão nas reuniões”. Com isso, a mencionada rede também dizia que
Rego seria uma espécie de “profeta da nova seita”.
Dessa forma, a declaração segue condenando Rego no seu intento
propagandista e, de igual forma, o condena porque a Igreja Batista da Lagoinha começou a
realizar cultos em outros templos de Belo Horizonte. Na referida declaração também se alega
que Rego teria classificado de forma pejorativa algumas igrejas, chamando-as de “igrejas
secas”, bem como atacando os seus pastores “violentamente”. Entretanto, segundo a
chamada “minoria fiel”, mesmo depois das classificações proferidas por Rego, os templos
dessas igrejas estavam sendo utilizados pela Igreja Batista da Lagoinha. Inclusive, a
declaração menciona que Rego teria dito que a “Primeira Igreja Batista da Capital” estava
em suas mãos, o que a chamada “minoria fiel” achava um verdadeiro abuso.
A “desarmonia” no seio da “família batista do Brasil”, segundo o grupo
contestador, estava sendo causada por Rego, pois, para eles, o movimento em curso não tinha
“procedência do Alto”. A autodenominada “minoria fiel” declara que continuarão as lutas
em prol da “preservação da fé” e alertam que os membros da Igreja Batista da Lagoinha
deveriam “pensar duas vezes antes de se precipitarem em lutas fratricidas” que seria de
interesse exclusivo do pastor Rego.
198
PEREIRA, Josias. A fé como fenômeno psicológico, p. 60.
96
O grupo diz reafirmar a fé nos “princípios batistas do Novo Testamento e,
sem sensacionalismos, estardalhaços ou exotismos” afirma a continuidade de sua militância
contra os que “consideram doutrina coisa secundária”, responsabilizando também a Rego,
pois diziam que ele era “provocador, incoerente, atrabilário, herético, pentecostal e espírita
capaz de tudo menos de tornar-se na hora a que é chamado a fazer”.
As três pessoas que escreveram a mencionada declaração foram excluídas do
rol de membros da Igreja Batista da Lagoinha, a qual eles chamavam de “Igreja Batista
Pentecoste”. A exclusão se realizou no dia 23 de novembro de 1958, no templo da Igreja
Batista em Santa Efigênia. A chamada “minoria fiel” alega que a Igreja Batista da Lagoinha
não era, de fato, uma igreja batista, porquanto renegaram as doutrinas lidas no dia 20 de
dezembro de 1957, quando no concílio de organização da Igreja.
Pelo fato de terem trocado os cadeados do lugar onde se realizavam os
cultos, a Igreja Batista da Lagoinha, ainda não registrada, temeu que o grupo opositor a
registrasse antes, por isso, Rego tomou a iniciativa de regularizar a situa ção da igreja. Porém,
a rede contestadora, acerca das igrejas verdadeiramente batistas, alega que “não é batista
aquela que pensa sê-lo só por registrar, a toque de caixa, para fins inconfessáveis, ridículos
e esdrúxulos os Estatutos da Igreja Batista da Lagoinha”.
Reconhecendo-se como a “minoria fiel”, o grupo também, obviamente,
identifica a maioria como sendo infiel às doutrinas batistas e afirma que, não querendo levar
o caso aos “juízes infiéis”, através de uma ação judicial, esperam uma decisão da
denominação e, se a opinião dos pastores responsáveis for favorável à “maioria dissidente”,
comprometem-se a entregar as chaves dos novos cadeados. Tognini chama esse ato de trocar
os cadeados como sendo “a operação cadeado”, reconhecendo que houve uma tática para
inibir os cultos da Igreja Batista da Lagoinha, que estaria sofrendo uma reprimenda por parte
desse grupo. Segundo Tognini, todos os objetos levados da igreja por ocasião da troca de
cadeados acabaram destruídos num incêndio, enquanto estavam sendo utilizados por igrejas
do interior. Para o autor, o fato de os móveis terem sido destruídos nessas circunstâncias
revela a justiça de Deus 199 , o que, obviamente, colocaria Deus ao lado da autodenominada
“minoria fiel”.
199
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 66.
97
Após a tramitação da declaração do gr upo autodenominado “minoria fiel”,
também Rego decidiu escrever uma carta a João Filson Soren, seu colega de ministério, a
respeito de tudo quanto estava ocorrendo, segundo sua própria percepção200 .
Ora, na referida carta de Rego a Soren, constatam- se declarações
importantíssimas para se entender os embates que se verificou na Igreja Batista da Lagoinha
e, posteriormente, com a “minoria fiel” excluída do rol de membros da igreja.
Na carta, Rego diz que em Belo Horizonte ele sentia que “mãos poderosas”
estavam “empurrando um grupo” contra ele, referindo-se à autodenominada “minoria fiel”.
Esse grupo, segundo suas percepções, intentava liquidá- lo; entretanto, ainda segundo ele, tal
grupo havia sido “exortado em particular”, sendo essa uma das razões pelas quais
guardavam reservas “contra” a pessoa de Rego.
Conforme Rego, inúmeras promessas estavam sendo feitas ao grupo
autodenominado “minoria fiel”, pois alguns missionários americanos, de linha assaz
conservadora, vinham inflamando o grupo. Portanto, Rego sent ia que “mãos poderosas”
estavam se movendo nos bastidores contra ele.
Em sua carta, Rego diz a Soren que “o caso do seminário foi a oportunidade
desejada”, pois “levantaram bandeira da ortodoxia, numa campanha soez e impiedosa,
deturpando fatos ocorridos no seminário” e apontando- lhe “como herético e pentecostal”.
Verifica-se, portanto, que a rede belicosa de poder, composta por alguns participantes da
autodenominada “minoria fiel”, formou-se a partir das experiências religiosas na biblioteca
do Seminário do Sul.
Em face desses acontecimentos, Rego decidiu resolver a questão numa
assembléia regular da Igreja Batista da Lagoinha, submetendo-se a “julgamento” e colocando
o assunto das referidas classificações na “ordem do dia”, alega ndo que queria ver a atuação
da igreja de um “modo democrático e limpo”. Rego comprometeu-se a deixar o pastorado da
Igreja Batista da Lagoinha caso fosse considerado e classificado como “herético”. Com voto
secreto, cada membro da igreja se pronunciou optando pela classificação de Rego como
“Herético” ou como “Batista”. A Igreja tinha 51 membros, dos quais 41 estavam presentes;
entretanto, apenas 40 membros votaram, pois o pastor se absteve. Logo após a votação,
verificou-se 9 votos contrários ao pastor, classificando-o como “herético”, 2 votos neutros e
29 votos que “prestigiaram” o pastor como sendo “Batista”. Portanto, a partir das decisões
tomadas de forma congregacional, Rego continuou sendo o pastor da igreja.
200
No Anexo 5 a carta é reproduzida na íntegra.
98
Conforme diz Rego em sua carta, como já se mencionou, foi após “sua
vitória” na assembléia da igreja que “três homens movimentaram um grupo” e “ousaram o
inacreditável”. A partir da percepção de Rego, a autodenominada “minoria fiel”, por ter se
chateado com a derrota na assembléia, “abusaram da confiança da igreja e fraudaram-na na
sua casa de cultos”, pois, na mesma noite, “depois que todos haviam se retirado”, trocaram
todos os cadeados do lugar e colocaram outros novos, tomando o salão. Na carta de Rego a
Soren consta que “tomaram o santuário com bancada, piano, púlpito, alto falante, tudo
enfim”, deixando a Igreja Batista da Lagoinha sem nada e na rua. Com isso, Rego teria
percebido que “lutava com homens inconseqüentes”, entendendo que seriam capazes de
fraudar a igreja até no nome. No dia seguinte ao da assembléia, em 22 de novembro de 1958,
o deputado Elmir Guimarães Maia, membro da Igreja Batista da Lagoinha, ajudou na
aprovação dos Estatutos da Igreja para registro. Rego alega que o “intuito único era
salvaguardar o nome da Igreja”, pois a “minoria fiel” poderia se reunir “e organizar,
naquele momento, a Igreja Batista da Lagoinha”. Porém, segundo Rego, “no domingo
seguinte, em sessão regular, os três irmãos foram excluídos”; entretanto, “repudiados pela
opinião publica, e sentindo que os seus aliados de ontem, já agora, se mostravam reservados,
os três descambam ainda mais nas suas atitudes temerárias, fazendo imprimir uma
circular”, a qual fizeram “correr livremente”, até mesmo para “fora de Belo Horizonte”.
Para Rego, a referida circular é uma demonstração de “impiedade, ódio e calúnia”. Trata-se
da abordada declaração da autodenominada “minoria fiel”.
Rego estaria pronto a “abdicar” do seu povo e sofrer o “exílio” de sua fé,
caso as doutrinas defendidas por ele não fossem batistas. Com isso, Rego se sente perseguido
e entende que “uma parcela dominante” da denominação estava se esforçando no sentido de
alijá-lo sob a classificação de “herético”. Conforme Rego, as portas dos seminários e
similares estavam fechadas para ele; mesmo assim, se submeteria a julgamento
denominacional.
Na carta de Rego a Soren, o remetente declara que vivenciou as gloriosas
experiências do Senhor, que recebeu o Espírito, que estudava cuidadosamente a Bíblia, a
teologia, os pais da igreja, os teólogos e pastores batistas. Mas, no entanto, alega que se
provassem a ele seu erro doutrinário, renunciaria ao Movimento de Renovação Espiritual.
Rego declara ainda que foi “surpreendido com a manifestação gloriosa do Senhor” e diz que
não poderia haver, nessa altura de sua vida denominacional, um esmagamento inquisitório, o
qual seria falta de “respeito a Deus e consideração ao próximo”.
99
Conforme Rego, ele tinha mais de 60 convites para falar no ano seguinte, em
1959, contudo, só poderia aceitar 10. Tendo em vista esse papel exercido por Rego, de
divulgador do Movimento de Renovação Espiritual, ele declara que não quer “dividir” seu
povo e diz ainda que alguns fatos são prenúncios de que “alguma coisa grave” poderia
ocorrer na história denominacional com a divisão que todas as reprimendas poderiam
ocasionar. Com isso, Rego pede oração e ajuda a Soren por causa de “forças poderosas que
levarão a Convenção Mineira, a realizar em julho numa cidade do interior, a nos expulsar
sumariamente da Convenção, reconhecendo o grupo fraudador como genuínos batistas”. A
Igreja Batista da Lagoinha foi excluída da Convenção Batista Mineira somente em julho de
1961, o que se abordará posteriormente.
É impressionante que, no decorrer do processo, Rego parece pressentir
inúmeras vezes os acontecimentos, pois se verifica a palavra “divisão”, tanto quanto um
prenúncio de que “forças poderosas” poderiam excluir a Igreja Batista da Lagoinha da
Convenção Batista Mineira. Eis nessa consciência uma grande medida de conhecimento
prévio, contudo, tal consciência parece ser um desencadeamento de ações de poder bem
articuladas que parecem, a partir das redes constituídas no Movimento de Renovação
Espiritual, na pessoa de Rego, saber que haveria boas chances de um processo “inquisitório”.
Em meio a uma entrevista que Deleuze faz com Foucault, acerca dos
intelectuais e do poder, por entre questões políticas, Foucault suscita a dúvida se de fato
conhece-se o que é o poder e, nesse sentido, complementa que, tendo sido necessário esperar
o século XIX para saber o que é a exploração, talvez ainda não se saiba concretamente o que
seja o poder. Segundo Focault, Marx e Freud também não são suficientes para ajudar no
conhecimento acerca do poder, que é tão enigmático. Sendo dessa forma, tão enigmático, o
poder é ao mesmo tempo visível e invisível, bem como presente e oculto. Com Foucault,
considera-se que o poder é um grande desconhecido. “Quem exerce o poder? Onde o
exerce?”
Daí, em parte conhecemos as redes constituídas, em parte desconhecemolas. Entretanto, ressalta-se que, segundo Rego, “forças poderosas”, através de “mãos
poderosas”, estavam se levantando contra ele e impulsionando um grupo contra ele.
Portanto, o que se pode conhecer das redes é o que delas identifica e ao mesmo tempo se
desconhece: poder que constitui, poder que permeia, poder que produz coisas, poder que
induz ao prazer, poder que forma saber e poder que produz discurso.
Na abordagem da história do cisma na Convenção Batista Brasileira se verá
a funcionalidade da disciplina na antidisciplina, a saber, do panóptico que se operacionaliza
100
nos lugares praticados. Poder centralizador, fiscalizador e disciplinador, que se exerce num
lugar dinâmico e desconexo, com operações constantes, conhecidas e desconhecidas, nos
lugares praticados.
101
A formação da Comissão dos 13 e o modelo panóptico de vigilância
3.1. Um cisma na Convenção Batista Mineira
Faz-se necessário abordar, no início do presente capítulo, um cisma
denominacional ocorrido na Convenção Batista Mineira. Tal cisma parece ter sido decorrente
de um verdadeiro embate entre as redes de poder formadas no interior da história dos batistas
no Brasil, durante o período de atuação do Movimento de Renovação Espiritual. Os “fatos”
que serão expostos nesse início ajudarão na compreensão acerca das tomadas de decisões da
denominação batista no Brasil, porquanto, tal cisma nas igrejas do Estado de Minas Gerais
motivou as mencionadas tomadas de decisões por parte da Convenção Batista Brasileira.
Segundo Tognini, depois dos embates na Igreja Batista da Lagoinha, não
houve nenhuma reprimenda por parte da liderança da Convenção Batista Mineira para com as
pessoas que organizaram o chamado “manifesto da minoria fiel”. Sua crítica agora se dirige à
liderança da Convenção Batista Mineira por sua suposta conivência com a chamada minoria
fiel, especialmente na apropriação do patrimônio da igreja.
A Igreja Batista da Lagoinha, no entanto, foi acolhida pela Igreja Batista do
Bairro Santa Ifigênia, cujo pastor era Achilles Barbosa. Desse modo, aos domingos, no
templo da Igreja pastoreada por Barbosa, passou a se reunir a Igreja pastoreada por Rego. A
Igreja Batista da Lagoinha contou também com o apoio da Igreja Batista da Floresta, a qual
cedeu o templo para que a Igreja Batista da Lagoinha realizasse seus cultos no meio da
semana. Houve muitos conflitos na Igreja Batista da Floresta, tendo em vista que o
missionário Harrington, diretor do Colégio Batista de Belo Horizonte, era contrário às idéias
do Movimento de Renovação Espiritual. Desse modo, Munelar Maia, pastor da Igreja Batista
da Floresta, teve dificuldades com um grupo da igreja e com Harrington, que se retirou do rol
de membros após a chegada da Igreja Batista da Lagoinha 201 .
Tendo recebido uma oferta financeira de Rosalee Mills Appleby, a Igreja
Batista da Lagoinha alugou um novo local para servir como sede e como “lugar de culto”.
Com bastante festa, a 3 de janeiro de 1959, num culto cujo orador foi Barbosa, o pastor Rego
conduziu a Igreja ao estabelecimento efetivo na nova sede. Depois do culto inaugural, na
201
Cf. TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p.
102.
102
nova sede, a Igreja Batista da Lagoinha experimentou um significativo avanço devido a um
crescimento numérico. O crescimento também foi ocasionado pelos trabalhos intensos de
Rego, que continuou dirigindo o programa na Rádio Guarani e divulgando as idéias
avivalistas202 .
Nesse período, o Movimento de Renovação Espiritual espalhou-se por toda
a parte do Estado de Minas Gerais e de outros Estados do Brasil. Segundo Tognini, os
“combatentes” da Convenção Batista Brasileira começaram a se mostrar e a proferir
discursos contrários ao Movimento. Para Tognini, entretanto, quanto mais se faziam as
“expressões de discórdia”, mais o trabalho de Rego e dos seus companheiros crescia e se
expandia 203 .
A chamada “minoria fiel”, tendo se alijado de sua convivência na Igreja
Batista da Lagoinha, tentou reabrir o “lugar de culto” em que a Igreja se reunia outrora,
porém, sem sucesso. Por isso, a Igreja teria ficado sem o apoio denominacional necessário ao
prosseguimento do objetivo de organizar uma nova igreja204 .
Para Tognini, o ano de 1959 foi bastante releva nte devido ao
posicionamento que teve de tomar através de suas decisões. Nesse tempo, Enéas Tognini
chegou a declarar: “Com Rego; portanto, Renovação Espiritual, custe o que custar”. Essa
tomada de posicionamento foi bastante crucial para o Movimento de Re novação Espiritual,
pois Tognini corroborou de forma contundente a disseminação das idéias pentecostais na
Convenção Batista Brasileira. Desde 1958, após o episódio de experiência religiosa na
biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rego não podia se expressar da
mesma forma na denominação; entretanto, Tognini falou algumas vezes a convite do Grêmio
Estudantil daquela instituição teológica.
O Movimento de Renovação Espiritual estava no ápice de seus trabalhos no
ano de 1960, pois encont rou na “mocidade” um grande aliado. Houve, em Governador
Valadares, naquele ano, um retiro de carnaval organizado pela liderança do Movimento e
pela liderança da mocidade do Estado de Minas Gerais. O orador oficial do retiro foi Enéas
202
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p.
103.
203
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p.
105.
204
Um dos signatários da declaração da autodenominada “minoria fiel”, a saber, Rui Brasileiro do Vale,
transferiu-se para Brasília e filiou-se à Igreja Batista Memorial de Brasília, tornando-se colaborador ativo na área
da música, inclusive como regente do coral. Depois de sua filiação à Igreja Batista Memorial de Brasília, Rui
Brasileiro do Vale teria participado de um culto na Igreja Batista da Lagoinha e pedido perdão publicamente por
ter assinado a declaração da chamada “minoria fiel” In: TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História
dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 105.
103
Tognini e, tendo recebido ajuda de Appleby, bem como de outros importantes líderes, a
ênfase das “mensagens” foi o batismo no Espírito Santo, bem como o desafio da “entrega
incondicional”, o que teria sido pregado por Tognini no último dia. Inúmeras experiências
religiosas são constatadas nesse evento, tanto que houve o “despertamento” por militância na
juventude batista do Estado de Minas Gerais.
Assim, através de uma ação da “mocidade”, da liderança de Rego, da
liderança de Appleby e da participação constante de Tognini, o ano de 1960 foi marcado por
episódios de longo alcance para a Convenção Batista Mineira e por uma série de
desdobramentos institucionais, que determinaram o andamento da militância no seio da
Convenção Batista Brasileira.
“O ano de 1960 foi agitado pelos ventos de Renovação
Espiritual. O Espírito Santo trabalhava os corações e
sacudia as igrejas do Senhor. Mas o diabo não dormiu
nesse período. Formaram-se em Minas Gerais, os
paladinos da oposição à obra do Espírito de Deus”. 205
A Igreja Batista da Floresta convidou Enéas Tognini a participar de um
trabalho especial. Contudo, na percepção de Tognini, havia um desejo denominacional de que
a Igreja Batista da Lagoinha não estivesse mais no rol de igrejas que compunham a
Convenção Batista Mineira. Desse modo, ao che gar à Igreja Batista da Floresta, Tognini
alega que durante sua pregação havia um ambiente de guerra e bastante transtorno.
Conforme Tognini, os opositores do Movimento de Renovação Espiritual
estavam com “papel e lápis” para copiar suas declarações, sendo tais anotações um
preparativo para a Convenção Batista Mineira, que estava prestes a se reunir em Juiz de Fora
no mês de julho de 1961. Assim, na percepção do autor, havia determinado sentimento de
ódio e de partidarismo. Desse modo, a luta final estava prestes a se proceder no Estado de
Minas Gerais.
Outrossim, os integrantes do Movimento de Renovação Espiritual atuavam
de forma intensa no Estado de Minas Gerais. Algumas igrejas, no conhecimento dos fatos
verificados na Convenção Batista Mineira, estavam deveras integradas na propagação das
idéias e das motivações do Movimento em curso. O ano de 1960 foi “agitado” por diversos
“eventos” de participações expressivas dos pastores Tognini e Rego, bem como de Appleby e
de outros. Contudo, foi no ano de 1961 que a Convenção Batista Mineira decidiu tomar uma
decisão drástica no que concerne, principalmente, à Igreja Batista da Lagoinha.
205
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 79.
104
Para Tognini, houve um preparo do “terreno” para a Convenção Batista
Mineira. Segundo o autor, os “ânimos” estavam “incendiados” e alguns pastores ajuntaramse contra Rego, fazendo propaganda contrária ao Movimento de Renovação Espiritual.
“A campanha dos opositores durou meses e foi bem
preparada em cada igreja do Estado de Minas Gerais.
E nas 32 igrejas, que sabiam eles, não concordavam
com o processo violento para expulsar Lagoinha da
Convenção Batista Mineira, não fizeram propaganda
alguma; diante, porém, da resistência delas,
abandonaram esse campo”. 206
Desse modo, teria havido uma propaganda contra a Igreja Batista da
Lagoinha e cont ra Rego. Assim, tanto o Movimento de Renovação Espiritual movia-se
objetivando a propagação de suas experiências religiosas, quanto o conservadorismo de
algumas lideranças, no sentido de preparar um ambiente para a Convenção Batista Mineira. O
1º Vice-Presidente da Convenção Batista Mineira, Murillo Cassete, pastor da Primeira Igreja
Batista de Belo Horizonte, travou duros embates com Rego, sob a acusação de que o líder do
Movimento de Renovação Espiritual era pentecostal e criava discórdias em âmbito
denominacional.
Por isso verifica-se que após o episódio das experiências religiosas na
biblioteca do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rego, escrevendo à Tognini, faz
uma pergunta crucial: “Enéas, estamos prontos para o martírio nesta hora desafiante?”.
Logo mais, em sua carta à Soren, Rego alega que ouvira a notícia de que “forças poderosas”
levariam a Convenção Batista Mineira a se realizar em julho de 1961, numa cidade do
interior, onde as forças do conservadorismo eram grandes. Rego diz pressentir que tais forças
expulsariam a Igreja Batista da Lagoinha do rol de igrejas que integravam aquela Convenção
estadual. Segundo Rego, ainda na carta destinada à Soren, havia “prenúncios de que alguma
coisa grave” poderia ocorrer na “história denominacional” dos batistas no Brasil 207 .
Há uma carta bastante intrigante escrita por Rego e enviada à Tognini às
vésperas da Convenção Batista Mineira. Nos termos de sua breve carta, Rego diz:
“Amanhã seguirei para Juiz de Fora para a
Convenção. Há expectativas desconcertantes em
muitos, menos em Lagoinha. Estamos em paz, dispostos
a deixar que os inimigos movimentem as águas ao seu
bel prazer. Ontem tivemos uma reunião íntima com a
igreja e havia alegria em todos os corações. Não há
206
207
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 80.
A carta de Rego à Tognini encontra-se no Anexo 1 e a carta de Rego à Soren encontra-se no Anexo 5.
105
qualquer preocupação com essa tal Convenção Batista
Mineira. Mentiram tanto, mas tanto, que o que esses
‘líderes’ fizeram valem tanto como nada. Recebo cartas
revoltadas do interior, contando as mentiras que estão
(os pastores) fomentando, inclusive que estou liderando
um grupo para tomar o Colégio Batista e demais
‘pertences’ da Convenção Mineira. É o fim!”. 208
Na percepção de Rego, seria o fim e assim aconteceu. Por ocasião da reunião
plenária da Convenção Batista Mineira, na dinâmica dos debates, embora tivessem ocorridas
incontáveis discussões, houve o desligamento da Igreja Batista da Lagoinha na assembléia da
Convenção estadual. Segundo Reis Pereira, a alegação principal que justificaria o
desligamento foi a de que a igreja pastoreada por Rego era um dos eixos do Movimento de
Renovação Espiritual e, além do mais, suas práticas foram classificadas como sendo
pentecostais. As referidas práticas tornariam inviável, na percepção daquela Convenção, a
presença da Igreja Batista da Lagoinha em seu rol de igrejas cooperantes.
Sobre os desdobramentos da reunião plenária da Convenção Batista Mineira,
Tognini diz:
“A eleição da nova diretoria, os relatórios com os
respectivos pareceres e todos os demais trabalhos
transcorreram normalmente. Mas, chegou o momento
suspirado da exclusão de Lagoinha... a caldeira que há
meses, estava sendo aquecida, nesse momento
psicológico, não soltou o vapor, explodiu. Foi um tal de
pedir a palavra; uma discussão bravia, que chegou ao
tumulto. Chegou bem perto do teatro de Éfeso, quando
a multidão alucinada, pedia a cabeça de Paulo”. 209
Dessa forma, até mesmo um pastor veterano, nesse ambiente tumultuado
exclamou que votaria na exclusão da Igreja Batista da Lagoinha até mesmo “com o pé”.
Segundo Tognini, houve um “ódium theologicum” por parte dos mensageiros participantes
da assembléia e, com isso, foi difícil acalmar os ânimos para a votação final. Mesmo depois
da votação, a contagem dos votos precisou ser reverificada. Conforme Tognini, tudo isso teria
ocorrido “no recinto sagrado de um templo batista”
210
. Para Xavier, as discussões
ocasionadas pelos debates intensos foram “tremendas” e a menção ao nome da Igreja Batista
208
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 79
e 80.
209
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 81.
210
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais. Brasília: Lerban, 2007, p. 81.
106
da Lagoinha, teria sido “como se houvesse explodido uma bomba”
211
, o que denota a
grandiosidade do tumulto ocorrido entre os congregacionais.
Nas discussões, por entre muito entrevero, algumas igrejas se posicionam a
favor da Igreja Batista da Lagoinha. Conforme Reis Pereira, foram 30 igrejas desligadas do
rol da Convenção Batista Mineira, entre as quais, como se mencionou, a Igreja pastoreada por
Rego 212 . O número de igrejas desligadas da Convenção Batista Mineira é bastante divergente,
pois, segundo Tognini, teria m sido 28 igrejas, chegado a 32 no decorrer dos dias 213 . Rego se
refere assim às decisões da Convenção em Juiz de Fora:
“A “histórica” Convenção Batista Mineira, reunida em
Juiz de Fora, terminou sombriamente sem a Igreja de
Lagoinha. E o pior ainda foi que grande parte das
Igrejas do Vale do Rio Doce se solidarizaram com
Lagoinha e também Floresta, Terceira da Capital
mineira e a da Fazenda Santo Antônio – norte do
Estado. Ao todo 28. No correr dos dias, esse número
chegou a 32, somente em Minas Gerais”. 214
Segundo Tognini, houve um “pastor de renome na denominação” que
assistiu aos trabalhos daquela Convenção estadual. Reis Pereira, pastor batista e historiador,
escreveu uma carta à Tognini relatando sobre os acontecimentos da assembléia
convencional215 .
Segundo Reis Pereira, a Convenção Batista Mineira de 1961, “foi a pior” a
que ele já havia assistido até então. Para o historiador, “o relógio batista em Minas atrasouse vinte anos”, pois, para ele, havia premeditações sobre a exclusão de Rego e de sua Igreja.
Aliás, conforme Reis Pereira, parecia que “o objetivo único da Convenção era excluir a
Igreja da Lagoinha”.
Portanto há, por um lado, a narrativa de Tognini sobre os grande golpes de
alguns pastores contra Rego. Por outro lado, até mesmo o historiador da Convenção Batista
Brasileira, como é conhecido, disse que “tudo estava preparado contra Rego”. Acha-se em
evidência um extremado belicismo denominacional que, como verificado nos termos de Reis
Pereira, foge até mesmo da posição em que se percebe a situação, tamanho ato de
estouvamento.
211
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação. Belo Horizonte: Lerban, 1997, p. 66.
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 255.
213
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 125.
212
214
215
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 125.
No Anexo 6 a carta é reproduzida na íntegra.
107
Reis Pereira alega que poderia admitir “que se excluísse a Igreja, mas os
métodos usados, foram deploráveis”. Segundo a percepção do historiador, houve muito
“ódio”, “rancor” e “despeito” por parte dos obreiros que estiveram presentes à assembléia
convencional. O remetente da carta alega ainda que o ocorrido foi de “envergonhar qualquer
batista sério”. Assim, ele mesmo não se conformava com o que ocorreu “numa Convenção
Batista, numa Igreja Batista”.
Da mesma forma com a qual Rego “pressentiu” que um processo aos
moldes “inquisitórios” se sucederiam a ele e à sua Igreja, também Reis Pereira menciona sua
suspeita de que, após a Igreja Batista de Lagoinha ter sido excluída da Convenção Batista
Mineira, quereriam também excluí- la da Convenção Batista Brasileira.
Entretanto, Rego alimentou uma expectativa de que a Convenção Batista
Brasileira lhe beneficiaria 216 . O pastor acreditava que sua Igreja também seria agraciada, bem
como as demais igrejas solidárias para com a Igreja Batista da Lagoinha. Para Tognini, havia
certa expectativa de Rego de que a Convenção Batista Brasileira fizesse justiça ao caso da
Igreja Batista da Lagoinha. Conforme o autor, Rego imaginava que teria espaço para explanar
suas idéias na assembléia convencional das igrejas batistas do Brasil, a qual ocorreria no ano
de 1962217 .
Entrementes, as igrejas desligadas da Convenção Batis ta Mineira decidiram
organizar uma outra, a saber, a Convenção Batista do Estado de Minas Gerais. A nova
Convenção foi organizada, com o fundamento no princípio da autonomia batista, com 26
igrejas, representadas por 275 mensageiros. A organização da referida Convenção se deu a 22
de agosto de 1961 e, no seu funcionamento, exerceu suas atividades até 29 de abril de 1965.
A primeira diretoria eleita para trabalhar na Convenção Batista do Estado de Minas Gerais foi
composta pelos fiéis: Presidente. Pr. Achilles Barbosa; 1º Vice Presidente – Pr. Benjamim
Maia; 2º Vice Presidente – Pr. Tito Eler de Matos; 1ª Secretário. Drª. Ana de Brito Vilela; 2ª
Secretario. Drª. Naim de Abreu e Silva Leite; Tesoureiro. Rui Carreteiro Santiago. E ainda,
como presidente de honr a, foi eleito um importante pregador do Estado de Minas Gerais, a
saber, Pr. Henrique E. Cockel.
“A nossa tomada de posição não visa dar apoio ao
pensamento esposado e que foi de uma maneira não
muito justa condenado na última assembléia da
Convenção Batista Mineira. Não temos o propósito de
216
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 125.
217
Ibid, p. 125.
108
nos pronunciar sobre aspectos da doutrina combatida
pela Convenção Batista Mineira naquela Assembléia.
Desejamos sim, trabalhar unidos num ambiente em que
os obreiros de Deus não sejam tachados de cães e ala
do diabo. Onde haja o respeito, a compreensão, a
fraternidade e sobretudo o propósito de alcançar as
massas do Estado de Minas Gerais”. 218 Grifo nosso
Portanto, segundo Fernandes, o campo batista “se dividiu em dois” no
Estado de Minas Gerais. Criou-se um novo eixo que propagava o Movimento de Renovação
Espiritual naquele Estado, a Convenção Batista do Estado de Minas Gerais. Para o autor,
havia verdadeiras “trincheiras” no campo de batalhas mineiro e somente aqueles que
estavam dentro delas tinham a percepção exata do que elas significavam naquela militância.
Desse modo, a denominação batista no Estado de Minas Gerais, no belicismo do momento,
esperava pela Convenção Batista Brasileira que estava prevista para janeiro de 1962,
porquanto diziam acreditar que teriam voz e que um novo ambiente se formaria 219 .
3.2. A Convenção Batista Brasileira de 1962 e a formação da Comissão dos 13
Após o descrito cisma na Convenção Batista Mine ira, Rego do Nascimento
alimentou expectativas para a Convenção Batista Brasileira marcada para janeiro de 1962.
Numa verificação a respeito das decisões plenárias da mencionada Convenção, se constata a
formação de uma “Comissão dos 13”, que foi designada para “estudar a doutrina do Espírito
Santo”. Cria-se, portanto, aquilo que o presidente da Convenção Batista Brasileira, pastor
Rubens Lopes, chamava de “dispositivo bem armado”
220
, cuja finalidade principal parecia
ser a fiscalização doutrinária do que estava havendo no Movimento de Renovação Espiritual
ou, como se admite, abriu-se mormente a possibilidade de um “shake-up” denominacional221 .
No presente texto se fará um empenho para entender este procedimento institucional a partir
daquilo que Foucault chama de “dispositivo panóptico”.
Após a exclusão da Igreja Batista da Lagoinha, na Convenção Batista
Mineira, como se mencionou, Rego do Nascimento esperou a chegada do período em que se
realizaria a reunião plenária da Convenção Batista Brasileira. Xavier alega que o referido
218
ATA nº 1 da Convenção Batista do Estado de Minas Gerais, 1961.
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 16.
220
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 9.
221
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 7.
219
109
pastor esperava por justiça na Convenção Batista Brasileira do ano de 1962
222
. Tognini, por
sua vez, diz que Rego havia se tornado vítima na Convenção Batista Mineira, pois, ao
contrário do que queria, não teve oportunidades de expor seus pensamentos naquele
ensejo 223 .
Porém, nesse entremeio, mesmo com a exclusão da Igreja Batista da
Lagoinha da Convenção Batista Mineira, Rego não parou a divulgação do discurso do
Movimento de Renovação Espiritual:
“Nesse período de seis meses, o Pastor Rego continuou
liderando Lagoinha e espalhando o fogo do Espírito por
onde ia. Os convites continuavam e ele falava a
congressos de pastores, retiros espirituais e congressos
de mocidade. A Convenção em Curitiba seria diferente.
Assim pensava Rego. Haveria amor e justiça e seria
firmado um acordo cristão. Havia ansiedade na espera
por Curitiba”. 224
No dia esperado por Rego, por ocasião da 44ª Assembléia da Convenção
Batista Brasileira, que se reuniu em janeiro de 1962, na cidade de Curitiba, foi nomeada uma
comissão integrada por treze pastores com o objetivo de estudar a doutrina do Espírito
Santo 225 . Assim, na décima quarta sessão da Assembléia da Convenção Batista Brasileira,
houve uma proposta especial, a saber, Muryllo Cassete, mostrando-se contrário ao
Movimento de Renovação Espiritual, propôs que se nomeasse uma comissão para o estudo
do Espírito Santo à luz do que os integrantes da comissão entendessem por “doutrina
batista”.
Com a incumbência de trazer o resultado de seus estudos à reunião plenária
da Convenção Batista Brasileira no ano de 1963, o plenário aprovou a proposta com 311
votos em favor do que propôs o pastor Cassete
226
.
Criou-se, portanto, como disse Rubens Lopes, determinado “dispositivo bem
armado”, que teria como função um “shake-up” na denominação. Isto parece indicar certa
fragilidade nos fundamentos teológicos da Convenção Batista Brasileira sobre a doutrina do
Espírito Santo, fragilidade esta que a controvérsia em pauta traz à tona. Fica, contudo, a
222
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 66.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 127.
224
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 66 e 67.
225
Cf. COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 11.
226
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 127.
223
110
pergunta pela real função desta comissão. Sua função seria esclarecer uma controvérsia
teológica no interior da Convenção ou tratar-se- ia de uma estratégia de vigilância no sentido
do“panoptismo” de Foucault?
Dessa forma, torna-se necessário que se verifique determinado anseio por
vigilância por parte de alguns congregacionais que participaram da 44ª Assembléia da
Convenção Batista Brasileira, quer impulsionados pela liderança denominacional, quer
motivados por perspectivas pessoais e experiências contundentemente vivenciadas. Parece
evidente que não há ausência de influências nos desdobramentos institucionais e, com sujeitos
inebriados por conceitos e idéias, bem como por motivações políticas, constatam-se ações
efetivas para a constituição de um “dispositivo” armado para observar os sujeitos religiosos e
os conseqüentes discursos, quer nas ações em favor do Movimento de Renovação Espiritual
ou nas inações frente ao Movimento.
A Comissão dos 13, na sua constituição, parece ser a articulação de um poder
exercido de modo congregacional por alguns sujeitos fundamentais na articulação das lutas
que se estava travando no seio da Convenção Batista Brasileira. Ora, Rego e sua Igreja, bem
como outras igrejas batistas, haviam sido desligadas da Convenção Batista Mineira e
esperavam que existisse imediata ponderação acerca de suas questões, entretanto, vê-se um
desejo por parte da liderança denominacional de que a questão fosse tratada numa rede
específica, a qual pode ser concebida como um eficaz “dispositivo” para a “disciplina”
congregacional em âmbito denominacional.
De imediato, não houve um processo inquisitorial na 44ª Assembléia da
Convenção Batista Brasileira, pois certamente tal golpe faria suscitar implicações maiores
para a vivência das igrejas batistas no Brasil e os custos do poder seriam catastróficos porque
poderiam causar desconfianças e confusões, bem como frustrações nos fiéis, o que seria
funesto para igrejas, pastores e leigos. Instaurou-se, pois, uma disciplina meticulosa e
rocambolesca, donde se intentaram táticas ávidas por um exercício disciplinar no bojo do
congregacionalismo batista. Por certo, as atitudes do plenário, do presidente e, em especial, do
pastor Cassete, se deram a fim de criar um grupo de estudos que, certamente, formou-se numa
rede bastante diversificada, porém (in)definida, para a operacionalização de um poder
denominacional altamente criativo e dinâmico, conquanto parecia haver consciência das
decisões institucionais a serem levadas a cabo.
Doravante, com o aporte de Foucault, a partir de um modelo de abordagem
denominado como “dispositivo panóptico”, se verificará um exercício eficaz do poder no
âmbito da “disciplina” que será descrita. Tal dispositivo disciplinar refere-se a um sistema de
111
vigilância bastante perspicaz, sendo encontrado nos modelos de um “simulacro teórico” na
estrutura da prisão, como se detalhará posteriormente nesse capítulo. O ambiente
denominacional criado para a vigilância pode ser visibilizado com bastante notoriedade,
porquanto passou a funcionar um “dispositivo” pertinente para o exercício do poder nas
categorias do olhar. Entretanto, para que se contemple tal funcionalidade na perspicácia do
poder vigilante, através das muitas redes consolidadas no interior da história denominacional,
será necessário observar os fundamentos teóricos que nortearão a abordagem dos aparatos
táticos na conjuntura institucional da Convenção Batista Brasileira.
Nesse sentido, no constatar e no desdobrar de uma vigilância, verifica-se que
Foucault objetivou a descrição da “história do poder de punir” nas molduras de uma
“história da prisão”, cujo estilo organizacional se fará evidenciar numa transformação da
instituição através da passagem do “suplício do corpo”, de uma época medieval, para a
“utilização do tempo” em um “arquipélago carcerário” do capitalismo formado na
modernidade, em que vigiar seria mais eficaz e mais barato do que punir
227
. Dentre outras
possibilidades, arrisca-se que tal custo reduzido na aplicação da vigilância e da penalidade
deve-se mormente ao modelo arquitetônico, criado com suas especificidades para o exercício
do poder, no que tange ao exemplo da estrutura prisional e da versatilidade do panoptismo na
cotidianidade da vida institucional.
É obvio que, no escopo da pesquisa, não se trata de um poder exercido na
esfera do Estado, mas de um poder “microfísico” que se fragmenta e se dissemina nas
relações humanas verificadas em uma estrutura denominacional. Contudo, ainda assim,
observar-se-á que, com a formação da Comissão dos 13, evita-se, ainda que num primeiro
momento, o poder soberano e absoluto que conduz à culminância de uma penalidade que
poderia criar o nascedouro do terror e do ódio.
Por certo, a Convenção Batista Brasileira também almejou uma economia
do poder, tendo em vista a consciência dos altos custos de um poder exercido com soberania,
principalmente numa esfera de suposta democracia. Quando Rubens Lopes fez parte da
montagem de um “dispositivo bem armado”, ele parece fazê- lo com certa consciência dos
custos amenizados, caso se considerasse a possibilidade de cisão denominacional. Há de se
detectar tal benefício de um trabalho realizado em rede, de onde se enunciam 3 pastores
contrários ao Movimento de Renovação Espiritual e 3 favoráveis ao referido Movimento.
Contudo, é duvidosa a informação de que os 7 outros integrantes da Comissão eram neutros,
227
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 13 a 20.
112
principalmente se observadas as posturas doutrinárias aderidas ao longo da história da própria
Comissão.
Houve, portanto, uma mixórdia no “dispositivo” montado para a vigilância
na denominação, pois a Comissão teria sido formada com sujeitos pertencentes às várias redes
e sub-redes de poder. Vê-se, destarte, as mencionadas redes e sub-redes de vigilâncias
indefinidas de poder, onde o custo do seu exercício provavelmente seria bem mais baixo em
relação a decisões de supremacia tomadas e manifestas publicamente, de forma a criar
prejuízos maiores causados por tentativas de exercício soberano do poder de “punir”.
Num processo medieval exacerbadamente valorizado na sociedade antiga
aludida por Foucault, havia determinado caráter “inquisitorial” na penalidade, o qual se
procedia não antes de intervenções “secretas”, pois se tratava de uma sucessão de
interrogatórios que visavam a confissão do acusado e, sob juramento, havia coação por
palavras ou torturas, através das quais moviam um acusado ao desfecho mais cruel e
sangrento nas penas.
Assim, com completo desconhecimento das acusações e das provas por parte
do povo que assistia ao suplício, procedia-se a “execução penal” que deveria ser sempre
pública a fim de que o medo fosse gerado, a repressão e um suposto controle social228 . Para
Foucault, em face de tal medievalidade na aplicação da “repressão penal”, seria necessário
abdicar das concepções tradicionais dos “efeitos negativos” da aludida repressão, aceitos
pelas formas jurídicas onde a figura do soberano opressor é importante e estruturante, para
aderir à observância “microfísica” do poder.
Dessa forma, tendo estudado com afinco a prisão, Foucault verificou que
seria necessária a pesquisa dos “efeitos positivos” do poder como a “tática política” de
“dominação” encaminhada e balizada pelo “saber científico” que redefiniu a “tecnologia”
na eficácia do poder, pois sendo repensado nas suas malhas mais produtivas, o autor constatou
uma precisão no ato de punir, sendo caracterizado pelo “corpo” nas “relações de poder”
229
.
Assim, suscita-se, pois, uma importante indagação acerca da teoria de
Foucault e do seu simulacro teórico: Por qual motivo a prisão230 , em situação marginal numa
sociedade feudal, sem caráter drástico na punição, se tornou o principal lugar de castigo da
sociedade capitalista? Dessa mesma forma, pode-se questionar o motivo da formação de uma
228
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 33 a 61.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 26 e 27.
230
Segundo Foucault, alguns pensadores da antiguidade, como historiadores da literatura e os filósofos, estavam
habituados com “uma história das sumidades”. Entretanto, o autor ressalta que, depois de algum tempo, tais
pensadores já aceitaram o chamado material “não nobre”. Por isso, teria sido importante o trabalho sobre a
prisão e a criação de um simulacro teórico.
229
113
Comissão dos 13 para os estudos acerca da doutrina do Espírito Santo, pois considerando que
o Movimento de Renovação Espiritual não foi bem quisto entre os conservadores da
Convenção Batista Brasileira, seria, de igual forma, um grupo sem prestígio e concederia, à
vista dos conservadores, uma articulação com dado material tido como não nobre. Em suma,
concebe-se que a prisão, como recipiente de sujeitos não nobres, foi vista como um lugar de
produtividade do poder para o exercício “microfísico” de táticas que se formavam no anelar
do exercício de “controle”. A referida Comissão dos 13, formada numa situação plenária de
bastante curiosidade religiosa e de política denominacional, foi constituída por pessoas que
talvez pudessem ser vistas como não nobres, porquanto eram pertencentes a uma das duas
grandes redes de poder e, mesmo levando esse aspecto em conta, houve uma articulação bem
elaborada no transpassar o poder institucional no ato da vigilância mutua.
Ora, parece haver algumas considerações pertinentes para tais indagações
acerca do modelo “disciplinar”, quando da passagem da dura punição ao conceito de
controle. Segundo a forma “disciplinar” de conceber a questão suscitada, verifica-se, em
foco, a própria “microfísica do poder”, consolidada e constituída para o “controle” e para a
“sujeição” do corpo do submetido, no intento de ocasionar um indivíduo “dócil e útil”.
Trata-se de uma determinada política de coerção para o domínio do corpo alheio. Por isso,
adestram-se os dominados para que façam o “que” a disciplina do poder quer e também
“como” tal mecanismo quer231 . Seriam os 7 pastores submetidos a um olhar fiscalizador que
os remeteriam comportamentalmente à docilidade e à manipulação por meio de forças
maiores na conjuntura denominacional? Por que motivo o presidente Rubens Lopes foi eleito
para a Comissão dos 13? Qual foi o papel exercido por ele no grupo dos 7 neutros? Rubens
Lopes demonstrou-se contrário ao Movimento de Renovação Espiritual e, mesmo nos tempos
em que supostamente fazia parte dos neutros da Comissão dos 13, afirmou que o objeto a ser
tratado e o Movimento em pauta era uma “bomba perigosa e não um fruto inofensivo, como
na lenda” 232 .
Há, na composição da disciplina de Foucault, determinados aspectos
fundamentais para deno tar seu exercício, quais são: Em primeiro lugar, a distribuição dos
corpos, de acordo com as funções predeterminadas; em segundo lugar, o controle da atividade
individual, na reconstituição do corpo como portador de forças dirigidas; em terceiro lugar, a
organização das gêneses, pela aprendizagem das funções; em quarto lugar, a composição das
forças, pela relação funcional das forças corporais em aparelhos diferentes. As maneiras que
231
232
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 53 e 54.
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 10.
114
compõem a disciplina proposta por Foucault são constituídas por um método de adestramento
do corpo, onde há a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
É perceptível, a partir da distribuição dos corpos, que, tanto quanto no
modelo que se verá, a Comissão dos 13 foi formada com sujeitos que exerciam funções
previamente estipuladas, com papéis bastante delineados, conquanto José Rego do
Nascimento, Enéas Tognini e Achilles Barbosa eram, desde o início, tidos como favoráveis e
pertencentes ao Movimento de Renovação Espiritual e, de outra maneira, Harald Schaly,
Delcyr de Souza Lima e Reinaldo Purim eram contrários ao referido Movimento. Achava-se
em questão também, através da reorganização, da “docilidade” e da “utilidade”, a adesão dos
supostamente neutros que faziam parte da Comissão dos 13. Desse modo, a aprendizagem das
funções deu-se com bastante propriedade por aqueles que se diziam neutros.
Segundo Foucault, há um modelo muito propício para o exercício do poder
na sociedade disciplinar, a saber, o panóptico. Para Foucault, o panóptico é como se fosse
“Um acont ecimento na história do espírito humano” e “Um tipo de ovo de Colombo na
ordem da política”. O mencionado aparato disciplinar foi criado por Jeremy Bentham, o qual
Foucault chama de um “Fourier de uma sociedade policial”. Assim, o panóptico se refere a
um dispositivo eficaz que proporciona o funcionamento do poder disciplinar 233 .
O panóptico de Benthan seria um princípio de anatomia política, uma nova
mecânica da disciplina aplicada na construção de um novo modelo de sociedade e de um
dispositivo que impulsio na a ordenação das multiplicidades humanas conforme as táticas de
poder, com a diminuição da força política e o conseqüente aumento da força útil dos sujeitos
submetidos. Por isso, criou-se um dispositivo de transformar os submetidos em “corpos
dóceis” e em “corpos úteis”
234
. Dessa forma, há uma identificação terminológica do
panoptismo criado por Bentham e a Comissão dos 13 que, ao que parece, foi fomentada por
Rubens Lopes. Parece existir, concomitante à identificação terminológica, uma similaridade
com os conceitos do panoptismo e a funcionalidade da Comissão dos 13, porquanto se nota
um desejo de submeter e, com isso, uma vontade de que os mencionados submetidos tornemse “corpos dóceis” e “corpos úteis”, proporcionando um adestramento denominacional e
uma vigilância que submete.
Segundo Foucault, Bentham teria descoberto uma tecnologia de poder
própria para resolver os problemas de vigilância, porque ele havia pensado que seu sistema
233
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 209.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 173 a 199.
115
ótico seria a grande inovação que permitiria o exercício bom e fácil do poder. O panóptico,
entre os dispositivos de vigilância no modelo da prisão, era um mecanismo arquitetural
utilizado para o domínio da distribuição de corpos em diversas superfícies e, por assim ser,
na estrutura referida por Foucault, o panoptismo corresponde à observação total e é a tomada
integral da vida de um sujeito por parte do poder disciplinador. O indivíduo em questão é
vigiado durante todo o tempo, sem que veja o seu observador, nem que saiba em que
momento está sendo vigiado. A vigilância torna-se, portanto, permanente nos seus efeitos,
mesmo que não seja na sua ação e, como conseqüência disso, organiza certo poder
disciplinador dos sujeitos, às vezes anônimos, às vezes líderes, que observam sem serem
observados. Assim, de acordo com esse simulacro teórico, Foucault entendeu ter descoberto,
fazendo reapropriações das concepções de Bentham, uma tecnologia de poder que resolveria
os problemas da vigilância.
Para Foucault, o princípio do panóptico se mostra arquiteturalmente:
“Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma
torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a
parte interior do anel. A construção periférica é dividida
em celas, cada uma ocupando toda a largura da
construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se
para o interior, correspondendo às janelas da torre;
outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse
a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia
na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um
doente, um condenado, um operário ou um estudante.
Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas
prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o
princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia
captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia”. 235
Segundo Foucault, Bentham suscita o problema da visibilidade organizada
inteiramente em torno de um olhar dominador e vigilante, pois o que parece ser notável nesse
dispositivo é que ele concede determinada visibilidade universal que age concomitante e no
bojo de um poder rigoroso e meticuloso 236 . Ao invés de massacrar um preso no escuro da
masmorra, o que na verdade trazia proteção por causa da falta de visão, submetem-se pessoas
ao olhar do vigia, porém nem sempre há uma vigilância efetiva e real. Contudo, a consciência
da possibilidade de estar sendo visto conduz a dominação de um preso, assim como a
235
236
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 210.
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 215.
116
dominação de um fiel, pois mesmo contrariando a estrutura institucional alguém será e
pensará ser vigiado em todo o tempo, tornando reais os efeitos da vigilância.
“Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o
pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto
de observar a si mesmo; sendo assim, cada um
exercerá esta vigilância sobre e contra si
mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder
contínuo e de custo afinal de contas irrisório”.
237
Assim, no contexto prisional, através da iluminação e não de armamentos,
exerce-se um poder que, para além do medo ocasionado pela escuridão de uma masmorra, se
estabelecerá uma dinâmica perspicaz de um olhar que vigia os submetidos e submete os
vigilantes, porquanto trata-se de uma luminosidade de um “poder exercendo-se por
transparências”. O conhecimento dos sujeitos que foram submetidos traz a certeza de um
olhar imediato, de um olhar coletivo e de uma visão que, às vezes, é exercida no
anonimato 238 .
Tem-se impressão de que o dispositivo panóptico proposto por Bentham,
pelo qual todos ficam submetidos pelo olhar, criou um “mundo infernal” do qual ninguém
poderá escapar, nem os que os que olham e nem os que são olhados 239 . Sobre essa impressão,
Foucault observa da seguinte forma:
“Sem dúvida, é o que há de diabólico nesta idéia
assim como em todas as suas concretizações.
Não se tem neste caso uma força que seria
inteiramente dada a alguém e que este alguém
exerceria isoladamente, totalmente sobre os
outros; é uma máquina que circunscreve todo
mundo, tanto aqueles que exercem o poder
quanto aquelas sobre os quais o poder se exerce
(...) O poder não é substancialmente identificado
com um indivíduo que o possuiria ou que o
exerceria devido a seu nascimento; ele torna-se
uma maquinaria de que ninguém é titular.
Logicamente, nesta máquina ninguém ocupa o
mesmo
lugar.
Alguns
lugares
são
preponderantes e permitem produzir efeitos de
supremacia”. 240
237
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 218.
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 216.
239
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 219.
240
FOUCAULT, Michel. O olho do Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p. 219.
238
117
Portanto, arquiteturalmente, criou-se um simulacro teórico em que, a partir
do formato arquitetural da prisão, verifica-se sujeitos que, através da onividência do olhar,
fiscalizam e são continuamente fiscalizados, mediatizados pela vigilância panóptica. Em si
mesma, a vigilância panóptica indica um olhar que a tudo vê, do qual ninguém jamais
escapará, pois ele se operacionaliza e age no âmbito de uma disciplina bastante certeira e
esclarecedora.
Assim, para Foucault, a visibilidade tornou-se uma armadilha, pois, através
dela e desse olhar diabólico, do qual não se pode escapar, verifica-se um efeito importante do
dispositivo panóptico, a saber, a indução de um detento ao estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o automático funcionamento do poder. Desse modo, tal dispositivo
de onividência funciona como um verdadeiro laboratório do poder, pois seus mecanismos de
observação são eficazes na penetração do comportamento dos homens, podendo transformálos através da dominação
241
.
A Comissão dos 13 teve por função o estudo das questões acerca do Espírito
Santo à luz da doutrina batista ou sua função maior era a vigilância denominacional? Deve-se
considerar que, além de três pastores favoráveis e três contrários ao Movimento de
Renovação Espiritual, havia sete pastores que foram tidos por neutros; entretanto, também é
necessário saber que tal neutralidade foi extinta aos poucos, talvez por nunca ter existido
realmente.
Enéas Tognini, José Rego do Nascimento e Achilles Barbosa foram vistos
durante as reuniões da Comissão dos 13 e também puderam ver aos pastores que se
posicionaram de forma contrária à militância do Movimento de Renovação Espiritual. É
possível constatar a vigilância panóptica, porque se verifica um olhar infernal que, durante
todo o tempo, se operou numa disciplina do poder que, possivelmente, visava à “docilidade”
e a “utilidade” dos sujeitos religiosos. Nessa vigilância panóptica, na rede da Comissão dos
13, ninguém fugia ao olhar do aparato disciplinar que se instaurou, tal como o sujeito
submetido numa prisão panóptica. Contudo, é possível verificar duas redes de poder distintas
que compunham uma rede maior, a da Comissão dos 13.
O Movimento de Renovação Espiritual e o conservadorismo foram
colocados em situação de ampla visibilidade. Porém que stiona-se: havia o desejo de estudar a
doutrina do Espírito Santo ou de promover embates diretos de poder? Queria-se resolver a
241
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 167 e 168.
118
dissensão ou fazer uma cisão na Convenção Batista Brasileira? Viam-se como
verdadeiramente irmãos ou como verdadeiramente dominadores? Havia o desejo de “vigiar”
para dominar ou de “punir” para excluir?
A Comissão dos 13 parece realmente propiciar que, cada um, a partir do
seu lugar, “seja vigiado por todos ou por alguns outros” e, nesse aspecto, o aludido aparelho
de vigilância gera indagações relevantes, porque se refere a um dispositivo que incute
“desconfiança total e circulante”, sendo o resultado de um entrelaçamento de malevolências,
as quais conferem perfeição ao dispositivo “panóptico”.
3.3. A doutrina do Espírito Santo e os embates fiscalizadores
No período mencionado no primeiro capítulo, a respeito da atuação de
Rosalee Mills Appleby no Brasil, verifica-se uma grande produção de literaturas e de
folhetos, cujos objetivos eram vinculados aos ideais de difusão dos fundamentos que
caracterizaram as vivências do Movimento de Renovação Espiritual. Segundo Xavier, a
referida missionária, em tenra idade, teria se tornado “antipática” à doutrina do Espírito
Santo, pois os sermões que ouviu teriam sido explanados a fim de combater determinadas
denominações242 . Entretanto, no período em que esteve no Brasil, após o falecimento de seu
esposo, Appleby dedicou-se à produção literária, tendo em vista que, após experiências
pentecostais, corroborou a formação do pensamento do Movimento de Renovação Espiritual.
Num de seus folhetos, um dos primeiros a serem editados, Appleby
escreveu acerca de “trinta e três razões porque” cria “numa experiência da plenitude do
Espírito Santo, imediata ou subseqüente à conversão”.
Na quarta razão, Appleby escreveu:
“Jesus ensinou o BATISMO no Espírito Santo (At 1:4-5).
Êle o ordenou! (Lc 24:49). Foi por determinação divina
que este registro ficou exarado na Bíblia. E a experiência
de milhares através de vinte séculos tem evidenciado o
ensino da Bíblia”. 243
Assim, para Appleby, após o batismo no Espírito Santo, os “servos de
Deus” iniciam uma nova vida de experiências cotidianas, as quais foram demonstradas pelos
242
243
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 15.
APPLEBY, Rosalee M. Trinta e três razões. Belo Horizonte: Folhetos de Poder, p. 2.
119
avivalistas que compõem determinada galeria, quais são: Wesley, Whitefield, Fletcher,
Moody, Christmas Evans, Charles Finney, A. B. Earle, A. J. Gordon, General Booth,
Catherine Booth, B. H. Carrol e outros 244 . Portanto, Appleby busca embasamentos bíblicos e
experienciais para a pregação da crença no batismo com o Espírito Santo, pois anunciou no
período em que esteve no Brasil um momento de avivamento para as denominações
históricas 245 .
Essa tendência de Appleby de buscar referências bíblicas para embasar as
ações do Movimento de Renovação Espiritual, as quais não foram bem vistas pelo
conservadorismo da Convenção Batista Brasileira, foi marca do Movimento. Ver-se-á que os
líderes que compunham a rede de poder do Movimento de Renovação Espiritual buscaram
experiências parecidas com as dos personagens bíblicos. Desse modo, recorrendo aos
avivalistas e aos personagens bíblicos, há um desejo bastante intenso de fortalecer o
Movimento de Renovação Espiritual em face de batalhas contra a oposição.
Dessa forma, a missionária definiu o avivamento da seguinte maneira:
Avivamento é o derramamento do Espírito Santo nos
corações. “A sua extensão depende do número de crentes
dominados pela Terceira Pessoa da Trindade”. 246
Em sua concepção, Appleby explicita sua opinião sobre o batismo no
Espírito Santo, justamente por crer que tal experiência ocorre de forma subseqüente ao
momento em que um indivíduo é salvo, nas categorias do protestantismo.
“O novo nascimento é de fato a experiência que marca
nossa entrada no reino de Deus e nos faz participantes
da família celestial. Mas depois disso vem o batismo no
Espírito Santo. Pode vir logo após e seria melhor que
seguisse imediatamente a regeneração, mas geralmente
há um compasso de espera”. 247
Portanto, como se verificou, há distinção entre a experiência salvífica e a do
batismo no Espírito Santo e, nesses termos, as compreensões “soteriológicas” e
“pneumatológicas” encontram-se em momento de divergência na teologia dos batistas no
Brasil, uma vez que houve uma alteração significativa nessas formas de compressão
244
APPLEBY, Rosalee M.
APPLEBY, Rosalee M.
246
APPLEBY, Rosalee M.
247
APPLEBY, Rosalee M.
245
Trinta e três razões, p. 13.
Trinta e três razões, p. 16
O Espírito Santo – vida e poder, p. 5.
O Espírito Santo – vida e poder, p. 12.
120
teológica somente com as inovações do Movimento de Renovação Espiritual no Brasil248 .
Assim, para que se reúna uma grande parte de pessoas no Movimento de Renovação
Espiritual, que era tipo por “Movimento do Espírito”, era necessário ser batizado pelo
Espírito Santo, porquanto, sendo assim, todos apresentariam características cristãs bastante
profundas e decisivas.
No entanto, com a divulgação do Movimento de Renovação Espiritual, tanto
por Appleby, quanto principalmente por Rego, a missionária faz uma pergunta importante:
“Se o movimento do Espírito em nossos dias é mandado por Deus, por que há tanta
oposição?”
A mesma Appleby quer propor uma resposta a essa pergunta:
“Paulo disse que “todos quantos quiserem viver
piedosamente em Cristo, serão perseguidos” (2 Timóteo
3.12). Quanto mais fiel for o servo de Deus, mais sujeito
estará a tribulações, dificuldades e oposições. Vêm as
incompreensões. Cada grande avivamento no passado
teve as suas batalhas e este do nosso tempo envolve o
mundo inteiro e não será exceção” 249 .
Quando Appleby menciona os avivamentos vivenciados outrora, há, na
verdade, um esforço por não abrir mão da produção de sentido. Ora, a instituição opôs-se ao
Movimento de Renovação Espiritual e, por sua vez, o Movimento recorre ao campo de
sentido para significar suas experiências à luz do que vivenciaram alguns autores e
personagens bíblicos. Quando a missionária recorre aos movimentos diversos de avivamento,
através dos seus preconizadores, vê-se um anseio por legitimação daquilo que estava-se
vivendo naquele ensejo. A fundamentação histórica, ainda que romantizada, e a
fundamentação bíblica, foram formativas de um campo de sentido, bem como de uma
legitimação que os preparou para a batalha.
Appleby alega que alguns avivamentos do passado experimentaram
objeções e a belicosidade das batalha s, entretanto, enfatiza a necessidade e urgência de que
os cristãos fossem batizados no Espírito Santo 250 . Assim, a autora admite que havia um grupo
248
Aos moldes da teologia sistemática, “soteriologia” é o estudo da salvação e de suas implicações. Assim
também, “pneumatologia” é o estudo do Espírito Santo e suas características pessoais. Essas doutrinas são
destacadas por inúmeros pensadores da Teologia Sistemática, dentre os quais Erickson demonstra a importância
de tais teologias para o pensamento protestante. In: ERICKSON, Millard. J. Introdução à Teologia Sistemática,
p. 343 a 430.
249
APPLEBY, Rosalee M. O Espírito Santo – vida e poder, p. 7.
250
APPLEBY, Rosalee M. A Vida Abrasada Pelo Espírito, p. 1.
121
de pessoas que, nas categorias pentecostais, por serem batizadas no Espírito Santo,
experimentariam fortes “tribulações” e dificuldades nas batalhas denominacionais.
Novamente assume-se, na estrutura de fundamentação de Appleby, uma tendência bíblica,
até mesmo o apóstolo Paulo foi mencionado para fornecer plausibilidade aos preceitos
experienciais do Movimento de Renovação Espiritual, o que conferiu aos integrantes do
Movimento uma consciência do belicismo que os perseguiria.
Appleby entende que havia, no período em que esteve no Brasil, um grande
avivamento no mundo. Desse modo, também alega que havia um avivamento em curso no
Brasil. A missionária diz que aquele período, provavelmente da década de 50, fazia parte do
“tempo mais oportuno na história da humanidade” e que existiam grupos ansiando por
avivamento no Brasil 251 . Para Appleby, o desejo por avivamento era uma obra do Espírito
Santo que queria impressionar a “sociedade e os homens de toda a parte” 252 .
Desse modo, a influência de Rosalee Mills Appleby foi muito grande e,
através de suas aptidões literárias, ela fomentou o pensamento que embasou o Movimento de
Renovação Espiritual. Até mesmo os cristãos mais conservadores no âmbito da Convenção
Batista Brasileira tinham apreço pela missionária e talvez esse aspecto tenha propiciado uma
maior divulgação nas igrejas da Convenção Batista Brasileira.
“A missionária Rosalee Appleby já vinha, há anos,
trabalhando e orando nesse sentido e esperando que o
“avivamento viesse à pátria brasileira”. Ela era,
realmente, a grande animadora de um despertamento no
seio das igrejas. Com seus livros maravilhosos como
Ouro, Incenso e Mirra, Melodias na Alvorada, Vida
Vitoriosa, folhetos e palestras, ela ia, paulatinamente,
semeando um ideal que, há muito, acalentava”. 253
Embora o trabalho literário de Appleby tenha sido assaz intenso e bastante
interessante para o embasamento do Movimento de Renovação Espiritual, também dois
homens, Enéas Tognini e José Rego do Nascimento, com o alcance pastoral bastante
alargado no âmbito batista, utilizaram-se da escrita sobre o Espírito Santo para movimentar
igrejas pertencentes à Convenção Batista Brasileira.
Assim, foram lançados dois livros, a saber, Batismo no Espírito Santo, de
Enéas Tognini, e Calvário e Pentecostes, de José Rego do Nascimento. O livro de Tognini
251
APPLEBY, Rosalee M. Um Avivamento no Brasil, p. 3.
APPLEBY, Rosalee M. Um Avivamento no Brasil, p. 4.
253
FERREIRA, Ebenézer Soares. História dos Batistas Fluminenses, p. 164.
252
122
fora lançado a 8 de fevereiro de 1960 e o de Rego, em junho de 1960. Portanto, a partir
dessas datas verifica-se um empenho bastante grande no intento de continuar consolidando e
difundindo idéias do Movimento de Renovação Espiritual.
Tais obras também têm a finalidade militante de fundamentar o que estava
sendo pregado pelo Movimento de Renovação Espiritual:
“O que nos moveu a preparar o conteúdo do presente volume
foi definir nossa posição em face do Movimento de Renovação
Espiritual, atendendo os reclamos instantes da presente
conjuntura dos tempos. Deus chama os seus servos para a
grande batalha da fé nos últimos tempos de apostasia”. 254
Sobre o seu livro, Rego traz palavras parecidas:
“O livro que o leitor tem em mãos representa a minha
contribuição para a melhor compreensão da doutrina do
Espírito Santo, nesta hora profética do ministério da Sua
dispensação”. 255
Tendo sido prefaciado por Appleby, Batismo no Espírito Santo, de Tognini,
foi escrito no anseio de buscar fundamentos para o batismo no Espírito Santo e, assim,
demonstrar de forma prática como se poderia alcançar essa experiência religiosa.
Veja o que diz Tognini sobre o batismo no Espírito Santo:
“Foi qual um torneirão que Deus abriu no dia de
Pentecostes. Abriu e continua aberto. Só será fechado
quando o Senhor arrebatar a Igreja. Os sinais que
ocorreram no dia de Pentecostes, podem se repetir se o
Senhor julgar necessário numa ou noutra conjuntura.”256
Dessa maneira, Tognini alega a continuidade das “bênçãos” do “advento
cristão de pentecostes”, entretanto, reconhece-o como fato único ocorrido na história 257 .
Entretanto, o autor destaca que “novo nascimento é uma coisa e batismo no Espírito Santo
outra completamente diferente” 258 .
Para Tognini, o batismo no Espírito Santo promove transformação, assim
como também inserção no Movimento de Renovação Espiritual. É, portanto, uma forma de
254
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 5.
NASCIMENTO. José Rego do. Calvário e Pentecoste, p. 11.
256
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 22.
257
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 31.
258
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 30 e 31.
255
123
adesão, não somente a uma nova vida, mas também ao Movimento que estava em curso no
seio da Convenção Batista Brasileira.
Tognini refere-se a si mesmo como um privilegiado por ter o Espírito
Santo, bem como por viver uma vida correta no ministério, veja:
“Bendito seja Deus que me deu esta bênção preciosa,
maravilhosa. Oh! Se todos os meus amados colegas de
ministério e meus queridos irmãos experimentassem esta
benção! Então, não haveria mais competições, e nem
rixas, e nem partidos em nossas igrejas, nos trabalhos do
Mestre. E com ela, Deus abriria caminho para bênçãos
maiores de poder e graça para glória de Jesus, nosso
Senhor!”. 259
Assim, para Tognini, viver uma nova vida seria viver a Renovação
Espiritual, através de posturas mais retas diante das situações pessoais e denominacionais 260 .
Dessa maneira, Tognini termina seu livro com 6 itens conclusivos: primeiro,
“não adianta concordarmos com o que escrevemos aqui e nem discordar”; segundo, “não
adianta gostar, aplaudir o que foi estudado”; terceiro, “não adianta fazer transferência de
responsabilidade e dizer: isto que foi escrito é excelente para fulano e beltrano não, essa
atitude é farisaica e só traz condenação”; quarto, “não adianta ter medo deste ou daquele.
Não adianta pensar que fulana é contra e beltrano é a favor”; e sexto, “Precisas parar um
pouco no caminho da tua vida, aceitar a repreensão do Senhor, endireitar os teus caminhos,
abandonar o pecado, renunciar os teus pretensos direitos, abrir mão de tudo, e render-te
incondicionalmente ao Senhor, de modo a dizeres como Isaías: “Eis-me aqui; envia-me a
mim”.
No entanto, mesmo com todos esses itens conclusivos, que alertam sobre
uma suposta necessidade de uma auto-avaliação, Tognini aconselha os leitores a que
busquem o “poder” do Espírito Santo por meio do “batismo no Espírito Santo”. Entretanto,
segundo Tognini, para que haja a “aquisição” da “bênção” do batismo, bem como da
plenitude do Espírito Santo, é necessário seguir os“7 passos” indicados por Andrew Murray:
primeiro, “Existe tal bênção para o crente”; segundo, “Ela é para mim”; terceiro, “Não a
possuo”; quarto, “Estou ansioso por obtê-la”; quinto, “Estou pronto a abandonar tudo o
259
260
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 45.
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 49.
124
que me impede de recebê-la”; sexto, “Entrego-me agora completamente a Deus com o
propósito de recebê-la”; sétimo, “Recebo-a, agora, PELA FÉ”261 .
Em seu livro, Calvário e Pentecostes, Rego do Nascimento torna clara sua
concepção acerca do batismo no Espírito Santo, porquanto, para o autor, trata-se de uma
“experiência da possessão plena do salvo pelo Espírito Santo e conseqüente purificação do
coração, e revestimento de poder para o serviço” 262 . Desse modo, Rego acredita que:
“Ser batizado com o Espírito Santo e ser cheio do
Espírito são, então, experiências inteiramente distintas.
Ser batizado com o Espírito representaria o ato de
recepção do Espírito na regeneração; ser cheio do
Espírito é um processo que se executa paulatinamente na
vida do salvo”. 263
Ainda segundo Rego, o batismo no Espírito Santo “é uma experiência
independente da regeneração e identificada com a purificação”
264
. Outrossim,
concomitante a isso, o Espírito Santo, conforme o autor, deve ser percebido através de um
processo bastante complexo. Segundo Rego, se a experiência de alguém se estagna no
momento de sua salvação, embora tenha o Espírito Santo como fator “vivificante” para o seu
espírito, não desfrutará de uma possessão do Espírito e, por isso, ficará prejudicado em sua
vivência cristã. Destarte, na concepção de Rego, existem pessoas que têm o Espírito Santo,
mas que não o receberam de forma batismal e, desse modo, segundo o autor, o recomendável
é que deve haver uma possessão da vida da pessoa pela divindade.
“A doutrina do batismo no Espírito é a primeira
importância depois do Calvário, por conseguinte, uma
concepção clara, bíblica, desse ensino, impõe-se como a
grande necessidade da igreja de hoje, como o foi para a
igreja de ontem. Grandes são as bênçãos dispensadas
pelo Senhor a uma alma possuída e usada pelo Espírito.
Terrível e decepcionante será para a salvação
negligenciá-la. Estará frustrado em sua possibilidade de
santificação e serviço, e conhecerá de amarga decepção
no grande dia, quando o Senhor pedir contas da sua
mordomia. Busquemos, humildemente, com a ajuda do
mesmo Espírito, a real significação do glorioso batismo.
Êle nos dará sabedoria. Entremos no grande templo
despojados de quaisquer preconceitos, pessoal ou mesmo
denominacional, conscientes de que a terra que pisamos
é santa”. 265
261
TOGNINI, Enéas. Batismo no Espírito Santo, p. 68.
NASCIMENTO, José Rego. Calvário e Pentecostes, p. 36.
263
NASCIMENTO, José Rego. Calvário e Pentecostes, p. 36.
264
NASCIMENTO, José Rego. Calvário e Pentecostes, p. 37.
265
NASCIMENTO, José Rego. Calvário e Pentecostes, p. 60.
262
125
Dessa forma, Rego não se limita a demonstrar o processo pelo qual ocorre o
batismo com o Espírito Santo, mas, além da necessidade de tal experiência, o autor também
explora os resultados experienciais de uma pessoa que adere aos fundamentos da doutrina do
Espírito Santo difundida pelo Movimento de Renovação Espiritual. Assim, a possessão da
divindade com relação à vida do sujeito religioso é marca fundamental do Movimento de
Renovação Espiritual, pois, desde o episódio na biblioteca do Seminário Teológico Batista
do Sul do Brasil, houve a inserção da experiência do êxtase e do transe como sinal de adesão
ao Movimento.
Além da literatura espalhada por Appleby e seus simpatizantes, também
algumas pessoas escreviam no “Jornal Batista”, sobre o avivamento que estava em curso no
Brasil. Um desses articulistas foi o pastor Ebenézer Soares Cavalcante 266 , um proeminente
pastor batista no período do Movimento de Renovação Espiritual.
No Jornal Batista de 9 de março de 1961 foi publicado um artigo intitulado
“Conceito bíblico de avivamento” cujo autor era Cavalcante. O referido artigo desvincula o
conceito de avivamento daquela época para caracterizá-lo de forma a demonstrar, através da
leitura dos salmos, um esforço de retorno aos preceitos das escrituras. Por isso, segundo
Cavalcanti, não há lugar no avivamento bíblico para “campanhas de avivamento espiritual”
e, tampouco, para receitas de experiências religiosas infalíveis 267 .
No dia 23 de março de 1963, no Jornal Batista, Cavalcante publicou um
artigo com o título “Atribuições especiais do Espírito Santo”. Em sua narrativa, o autor
alega-se mais tolerante com os batistas que estavam buscando coisas novas a respeito da
vitalidade espiritual da experiência religiosa. No entanto, Cavalcanti oferece ao leitor alguns
dos atributos do Espírito Santo e alega que nenhum dessas características do Espírito Santo
teria caráter emocionalista e sensacionalista 268 .
Cavalcante, em sua abordagem, buscando fundamentação na experiência
dos apóstolos diz que:
“Não há vislumbre de outros efeitos, de patéticos e
dramáticos efeitos emocionalistas. Lemos que houve um
lúcido e vigoroso testemunho da verdade, por meio de
pregação que resultou em conversões. E só.” 269
266
Ver detalhes biográficos In: BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes
Cavalcanti, p. 19 a 30.
267
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti, p. 189.
268
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti, p. 216.
269
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti, p. 217.
126
Houve muito embate denominacional com as literaturas, porquanto
inúmeros artigos foram publicados afirmando, assim como Cavalcante, uma posição mais
conservadora, tendo em vista o grande volume de material escrito pelos componentes do
Movimento de Renovação Espiritual. Depois de tantas especulações e disseminações, na 44ª
Assembléia da Convenção Batista Brasileira, uma Comissão foi constituída para “estudar a
doutrina do Espírito Santo à luz do que” entendia-se “por doutrina batista”270 . Parte do
trabalho da Comissão dos 13 foi publicado pela Casa Publicadora Batista, entretanto, alguns
membros da Comissão não tiveram voz. É bem verdade que, depois do primeiro parecer da
Comissão, Tognini e Rego se desligaram das atividades do grupo. Contudo, somente os
integrantes contrários aos preceitos do Movimento de Renovação Espiritual e os integrantes
supostamente neutros tiveram voz.
A fundamentação dos pareceres da Comissão dos 13 consolidou-se com
pequenas monografias que acompanharam a publicação do “Parecer da Comissão dos 13”.
Todas as monografias procuraram refutar as concepções pentecostais do batismo com o
Espírito Santo e, da mesma maneira, as experiências religiosas vivenciadas pelos sujeitos que
compunham o Movimento de Renovação Espiritual.
A primeira monografia, de Reinaldo Purim, acerca de “O Batismo no
Espírito Santo – Seu Significado Bíblico”, afirma que “à luz das escrituras” o “crente”, no
momento de sua salvação, passa a ter o Espírito Santo em sua vida. Da mesma forma, Purim
refuta a idéia de uma experiência de batismo no Espírito Santo após sua “conversão” e
“salvação”
271
.
Delcyr de Souza Lima, também contrário ao Movimento de Renovação
Espiritual, descreveu acerca de “Duas questões sobre o batismo no Espírito Santo”. O
mencionado autor entende que o batismo no Espírito Santo é “um fato histórico para não
mais se repetir”. Desse modo, Lima encoraja os leitores a um processo bíblico de
“crescimento” e a “perseverança do estudo da palavra” 272 .
270
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 11.
PURIM, Reinaldo. O Batismo no Espírito Santo – Seu Significado Bíblico. In. COMISSÃO DOS TREZE.
Doutrina do Espírito Santo, p. 34 e 35.
272
LIMA, Delcr de Souza. Duas Questões sôbre o batismo no Espírito Santo. In. COMISSÃO DOS TREZE.
Doutrina do Espírito Santo, p. 48.
271
127
“O dom de línguas à luz do Novo Testamento”, cujo autor é João Filson
Soren, que supostamente era neutro na Comissão dos 13, abordando as experiências
religiosas de glossolalia, as quais eram vivenciadas entre os integrantes do Movimento de
Renovação Espiritual, alega a inexistência do referido “dom”, pois, para Soren, o que explica
essa expressividade é a “fraude”, a “ação diabólica”, a “sugestão hipnótica” e alguns
problemas de ordem psicológica 273 . Segundo Soren, portanto, não se deve dizer que o “dom
de línguas” é “obra do Espírito Santo” e não se pode “espiritualizar o que não é sinal de
espiritualidade”.
Acerca “Do dom de línguas na história”, fazendo uma abordagem factual,
José dos Reis Pereira diz que havia naquela época “uma revivescência glossolálica”
inclusive nas denominações históricas e, portanto, “até mesmo os batistas” estavam falando
em línguas 274 . Para Reis Pereira, esses “desvios doutrinários”, caracterizados pelas práticas
pentecostais, eram resultados de uma vida cristã vagarosa em termos devocionais. O autor
admite que, caso os batistas não se despertassem, continuariam sendo “presa de fanáticos ou
iluminados que” os levariam aos “descaminhos do pentecostalismo”.
“A questão das curas milagrosas”, da autoria de Harald Schaly, o qual era
contrário às crenças do Movimento de Renovação Espiritual, afirma que os milagres são
bastante raros e que a utilização dos serviços médicos deveria ser enfatizada nas igrejas
batistas. Schaly também diz que a maioria das supostas curas milagrosas, quer por meio de
pastores evangélicos, de santos católicos ou de médiuns espíritas “são falsas”
275
.
David Gomes, membro supostamente neutro na Comissão dos 13,
abordando “A doutrina na cura divina biblicamente apreciada”, alega que o chamado
“movimento de cura divina” era contrário às doutrinas do Novo Testamento. Entretanto,
admite que, quando há uma intervenção divina também deve ocorrer a “glorificação de
Deus” por causa da benevolência divina
276
.
O autor de “O dom da profecia nas igrejas do Novo Testamento” é Werner
Kaschel, cuja participação na Comissão dos 13 se deu como alguém que era tido por neutro.
Kaschel entende que, com a “Revelação de João”, no livro de “Apocalipse”, se finda a era
273
SOREN, Josão F. O Dom de Línguas à Luz do Nôvo Testamento. In. COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do
Espírito Santo, p. 68 e 69.
274
SOREN, Josão F. O Dom de Línguas à Luz do Nôvo Testamento. In. COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do
Espírito Santo, p. 68 e 69.
275
276
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 112.
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 126.
128
da profecia. Segundo o autor, “desde que se completou o Novo Testamento”, Deus não
forneceu “nenhuma revelação” complementar
277
.
Desse modo, verifica-se que o Movimento de Renovação Espiritual divergia
das concepções dos batistas brasileiros acerca da doutrina do Espírito Santo. Por isso, o
conservadorismo batista reagiu às expressões pentecostais nas literaturas dos sujeitos
religiosos vinculados ao pentecostalismo que surgiu no seio da denominação batista. Houve
uma grande produção de literaturas, tanto por parte dos integrantes do Movimento de
Renovação Espiritual, como também por meio daqueles que eram contrários aos
fundamentos das experiências religiosas vivenciadas pelo referido Movimento.
As literaturas revestiram os discursos de belicosidades. De modo que,
através das apologias, constata-se um belicismo denominaciona l em que todos os que
vivenciavam uma experiência queriam fazê- la valer. A nitidez da batalha e dos confrontos
era tão notável que, segundo o antelóquio do “Parecer da Comissão dos 13”, havia duas
ramificações que eram compostas por sujeitos religiosos pertencentes ao renovacionalismo e
por sujeitos fortemente vinculados ao conservadorismo. Ainda no mencionado antelóquio,
constata-se que os renovadores foram definidos como aqueles que “desfraldaram, no Brasil,
a bandeira do movimento denominado Renovação Espiritual” e, por sua vez, o
conservadorismo era identificado como “aqueles que se mantiveram féis aos pensamentos da
Convenção Batista Brasileira”, consoante a doutrina do Espírito Santo 278 . Segundo
Fernandes, como se mencionou, existiam trincheiras formadas no interior da Convenção
Batista Brasileira 279 e, por certo, também se viam discursos diversos, mas revestidos de
belicosidade apologética.
Entretanto, ressalte-se que os documentos produzidos por essas redes de
poder criaram grandes confrontos. Cada rede militava contundentemente por suas
afirmações, pois, em cada página das supostas fundamentações doutrinárias é possível notar
grandes embates pela vontade de ter a “verdade”. Ora, os sujeitos religiosos que, após
experiências pentecostais, aderiram às concepções do batismo no Espírito Santo como algo
subseqüente passaram a divergir com os que não acreditam dessa forma. Contudo, seria uma
luta pela fundamentação ou uma fundamentação para a luta? Seja como for, sabe-se que há
277
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo., p. 133.
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 6.
279
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 16.
278
129
uma grande batalha em torno da verdade de um discurso e, obviamente, tal verdade confere
uma transmissão do poder que se exerce nas redes e no interior da história denominacional.
“Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em
torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que
por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas
verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o
“conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos
específicos de poder”; entendendo-se também que não se
trata de um combate “em favor” da verdade, mas em
torno do estatuto da verdade” . 280
Assim, o que impulsiona o interesse pela verdade é o desejo político pelo
exercício dos efeitos de poder que ela pode conferir. Portanto, os exercícios fiscalizadores
ocorrem em todo o modelo disciplinar, pois a própria evidenciação de belicosidade nas
literaturas gera conhecimento não somente de posições e de fundamentações doutrinárias,
mas também de sujeitos que se posicionam de forma a exercer suas vontades de verdade a
fim de que, através dos discursos, as ações diversas fossem legitimadas no seio da
Convenção Batista Brasileira.
Houve, portanto, a instauração de uma inquietação frente à vigilância
generalizada e aos discursos. Assim também ocorreu com a recepção e reapropriação desses
discursos que, no seu decorrer processual, gerou amplo incômodo nos sujeitos religiosos que
diziam e ouviam os discursos das múltiplas redes de poder. O discurso, transitório no seu
exercício, mas eficaz no transpassar de seus efeitos, através do desconforto causado na
denominação, ocasionou perigos que não se imaginava, pois, a princípio, achava-se em
questão experiências religiosas vividas nos decorrer da cotidianidade, entretanto, é possível
supor que a belicosidade do discurso também incutiu inquietação na Convenção Batista
Brasileira.
Acerca da inquietação do discurso, Foucault diz:
“inquietação diante do que é o discurso em sua realidade
material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação
diante dessa existência transitória destinada a se apagar
sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos
pertence; inquietação de sentir sob essa atividade,
todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal
se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias,
280
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.13.
130
ferimentos, dominações, servidões, através de tantas
palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as
asperidades”. 281
Certamente, os textos apologéticos que foram escritos, quer por integrantes
do Movimento de Renovação Espiritual, quer por conversadores da Convenção Batista
Brasileira, configuraram situações de encorajamentos para as batalhas e, possivelmente,
motivaram as decisões regidas na política denominacional, as quais se verá posteriormente.
As inquietações ocasionadas pelos muitos discursos, devido às suposições
referidas por Foucault, denotam uma fragilidade institucional acerca das fundamentações
doutrinárias, pois a Convenção Batista Brasileira, com a formação da Comissão dos 13, além
de admitir a “vontade de verdade”, admitiu uma debilidade doutrinária no que tange à
doutrina do Espírito Santo que, como se verá, não estava tão bem solidificada.
Entretanto, mesmo com a consistência da argumentação de Foucault acerca
da relação entre a inquietação e o discurso, o autor suscita a seguinte pergunta: “Mas o que
há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente?”
282
. Em seguida, o autor concede sentido à sua pergunta quando atrela a
formação de discurso a uma sociedade de produção dos referidos discursos, porquanto há um
controle na presente sociedade, bem como nas instituições que seleciona, que organiza e que
redistribui procedimentos que exorcizam poderes e perigos, disseminando-os de forma
generalizada 283 . Por isso, além dos discursos oficialmente disseminados pela Convenção
Batista Brasileira, há os que se fazem ouvidos por sujeitos com experiências múltiplas, o que
faz proliferar indefinidamente inúmeras idéias e formatos experienciais da fé.
Desse modo, o dispositivo panóptico preza pela visibilidade, pois “a
“verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam”
284
.
Portanto, a dominação dos corpos através do olhar e a conseqüente “docilidade” e
“utilidade” são produções de um sistema vinculado à vigilância, bem como à verdade
transparecida do sujeito vigiado. Por isso, o dispositivo panóptico incomoda a ponto de
dominar o subme tido pelo controle de seu corpo e seu discurso.
Para Foucault, o panóptico funciona como “uma espécie de laboratório do
poder”. Por isso, seus mecanismos de observação ganham “em eficácia e em capacidade de
281
282
283
284
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 8.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 8.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 8 e 9.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.14.
131
penetração no comportamento dos homens”, donde se verifica “um aumento de saber” em
todas as frentes de poder
285
. Segundo Foucault, a “questão política não é o erro, a ilusão, a
consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade”
286
. Assim, o discurso literário ou
qualquer que seja, estando propenso a se vincular ou a se desligar de um Movimento,
também denota uma política institucional em terno da verdade. Ora, a política institucional
está contida na “vontade de verdade” dos sujeitos religiosos que regem o seu andamento e,
no caso em tela, os muitos discursos exerceram impacto nas igrejas batistas e foram vigiados
pela Comissão dos 13.
Portanto, a história denominacional pode ser averiguada, mesmo com o uso
do material apologético ou do material romantizado pala literatura, nas suas inúmeras
manifestações belicosas em torno que aspectos doutrinários divergentes e legitimadores das
atitudes de poder. Como se viu, a questão política é uma dimensão do próprio desdobramento
da verdade. Sendo que, para Foucault, verdade é poder.
3.4. Os pareceres da Comissão dos 13: um cisma na Convenção Batista Brasileira
Pretende-se suscitar, após a descrição factual que se objetiva, ainda que
brevemente, alguns elementos importantes da aula inaugural proferida por Michel Foucault no
“Collège de France”, a 2 de dezembro de 1970. No discurso de Foucault acerca de “A ordem
do discurso”, é possível encontrar bases sólidas para se pensar em abordagens sobre sistemas
de exclusão. Outrossim, verificar-se-á uma tentativa de “vigilância” através da Comissão dos
13 que, na verdade, trabalhou com uma “vontade de verdade” e, inusitadamente, em uma
operação de avanço na tecnologia do poder, ao mesmo tempo um retrocesso inquisitorial de
regresso ao desejo de “punir” bruscamente, como num processo medieval da disseminação
do medo. Não obstante, também posteriormente à narrativa factual, entretecer-se-á uma breve
abordagem da “disciplina” de Foucault na “antidisciplina” de Certeau, a saber, uma
operacionalização do panóptico nos lugares praticados propostos por Certeau.
Por entre o desejo de falar, de fundamentar para lutar e de vigiar para
controlar, eis que o discurso havia se acentuado de forma bastante perspicaz no bojo dos
285
286
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 169.
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.14.
132
trabalhos doutrinários, com a formação da Comissão dos 13. No funcionamento de um
dispositivo panóptico, criou-se uma situação de vigilância plena, em que a belicosidade do
discurso agravou-se e eclodiu nas decisões institucionais mais relevantes para a culminância
no primeiro cisma da Convenção Batista Brasileira.
Assim, na 44ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira, ocorrida em
janeiro de 1962, na cidade de Curitiba, constituiu-se um dispositivo panóptico condizente
com uma disciplina fiscalizadora. Entretanto, não se tratava somente da consolidação de tal
dispositivo, mas também se alimentou a expectativa sobre uma produção em torno de uma
“vontade de verdade” acerca da doutrina do Espírito Santo, o que indica não somente uma
fragilidade teológica na denominação, mas também um desejo por compreender melhor seus
fundamentos teológicos, tendo em vista a necessidade daquele ensejo.
Segundo Rubens Lopes:
“Os fatos vieram demonstrar que esse dispositivo foi bem
armado. É verdade que não houve o desejado acordo,
porque o problema tem raízes doutrinárias”. 287
Suscita-se, portanto, a seguinte pergunta: de que fatos estava falando o
presidente Rubens Lopes? Acaso seria o fato do cisma ocorrido na Convenção Batista
Brasileira? Ora, o que se sabe é que houve a intenção acerca da criação de um dispositivo que
pudesse incitar buscas pela “verdade”, o que evidentemente está fortemente vinculado aos
esforços do exercício da vigilância. A Comissão dos 13 teria sido um dispositivo disciplinar
armado para contornar as divergências doutrinarias e solidificar a doutrina do Espírito Santo
ou teria se formado um sistema de exclusão pela vontade de verdade? Deve-se considerar que
havia membros favoráveis e contrários ao Movimento de Renovação Espiritual, entretanto,
mesmo assim, haviam 7 supostos neutros que, na verdade, posicionaram-se de forma contrária
ao Movimento.
A Comissão trabalhou durante um ano depois de sua formação. Após o
trabalho que desenvolveram, decorrido algum tempo, aconteceu a 45ª Assembléia da
Convenção Batista Brasileira, reunida com a Primeira Igreja Batista de Vitória em 26 de
287
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 9.
133
janeiro de 1963, na cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo
288
. Existem atas das reuniões
da Comissão dos 13, contendo detalhes bastante interessantes sobre as discussões
289
.
No ensejo da Assembléia, os congregacionais puderam ouvir o primeiro
relatório da Comissão dos 13, contendo o parecer oficial da Comissão
290
. O relatório foi lido
por José dos Reis Pereira e não por Rubens Lopes, pois este último estava na presidência da
Assembléia. Segundo o “Relatório da Comissão sobre o problema denominacional
relacionado com a doutrina do Espírito Santo”, a Comissão dos 13 “realizou 14 reuniões em
ocasiões distintas em São Paulo, Rio e Vitória”. As reuniões teriam sido “demoradas e os
assuntos” teriam sido discutidos “com todo vagar, com oração e elevação espiritual”.
O primeiro item do parecer traz a alegação de que, “dada a natureza da
matéria, a Comissão não apresenta um parecer final e, por isso, não define, nesta conjuntura,
a doutrina bíblica do batismo no Espírito Santo”. Interessante é a percepção de que, mesmo
depois de um ano, com prováveis estudos teológicos, não se pôde apresentar, com base no
pensamento batista, um parecer que aclarasse definitivamente o que os batistas entendiam
sobre o Espírito Santo. Seria essa indefinição um motivo para que se fizesse mais um ano de
estudos ou realmente o aporte da doutrina batista e os estudos teológicos realizados pela
Comissão dos 13 não seriam suficientes para fazer as afirmações necessárias?
No segundo item encontra-se uma justificativa para a omissão quanto à
definição da doutrina do Espírito Santo. Para a Comissão, “a expressão “batismo no Espírito
Santo” nunca foi definida em declarações de fé publicadas pelos batistas”. Além disso,
reconhece-se que há muita divergência no trato dessa doutrina, pois os teólogos e pastores
batistas não eram tão conclusivos quanto às opiniões. Seria esse o motivo real de não se fazer
uma definição sobre a doutrina do Espírito Santo ou queriam prolongar as divergências entre
os líderes batistas?
Porém, mesmo reconhecendo a impossibilidade de ousar definições sobre a
doutrina do Espírito Santo, a Comissão diz que “a crença no batismo no Espírito Santo como
uma “segunda bênção”, ou seja, como segunda etapa na vida cristã ou seja ainda como uma
nova experiência posterior à conversão não tem sido crença que caracterize os batistas
brasileiros”. Com isso, parecem indicar a impossibilidade de se cultivar, nas igrejas batistas,
as experiências pentecostais referentes ao batismo no Espírito Santo.
288
Cf. TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 130.
Convenção Batista Brasileira. Atas da Comissão dos 13 constituída pela 44ª Assembléia da Convenção
Batista Brasileira. In: Atas, Relatórios e Pareceres da 45ª Assembléia Anual, p. 180 a 188.
290
No anexo 7 consta o relatório na íntegra.
289
134
Da mesma forma, assim como a Comissão rejeitou o batismo com o Espírito
Santo num momento subseqüente ao da salvação entendida nas categorias batistas, também
defendeu que “a prática do que ainda hoje chama de “dom de línguas” e “dom de curas
milagrosas” é igualmente estranha às crenças e práticas características dos batistas
brasileiros”.
Assim, a Comissão dos 13 advogou com veemência que o consenso dos
batistas sobre a atuação do Espírito é “que ela se faz como um processo em toda a sua vida,
processo esse que chamavam “de “santificação progressiva” a qual depende da cooperação
do próprio crente”.
A Comissão entendia e fez constar que, para o sujeito que havia vivenciado a
experiência religiosa, ela era, de fato, genuína. Entretanto, “de modo nenhum” poderia
“constituir um exemplo ou um padrão a ser imitado por outros crentes, tampouco pode
constituir base para doutrinamento dos outros ou para campanhas de avivamento”.
Embora a Comissão tenha feito as afirmações acima mencionadas, ainda
assim, no terceiro item alegou que não havia “divergência entre os batistas da Convenção
Batista Brasileira nos pontos fundamentais que são os que constam da “Declaração de Fé
das Igrejas Batista do Brasil”.
A Comissão dos 13, no quarto item, “achava” que deveriam reafirmar o
direito de que “cada batista” poderia pronunciar-se livremente “sobre sua matéria, mas em
linguagem cristã em que perceba preeminência do amor e o sincero desejo de um
fortalecimento espiritual”.
No quinto item, os integrantes da Comissão dos 13 “achavam” que a ênfase
na “doutrina do batismo no Espírito Santo” estava originando alguns “abusos”, a saber, em
primeiro lugar, “a realização de reuniões em que notam os mesmos vícios próprios de
reuniões pentecostais; isto é, a confusão no ambiente, a gritaria, os descontroles físicos, o
falar de línguas e outros excessos de emocionalismo”; em segundo lugar, havia, “uma
atitude de orgulho espiritual que não” queria “admitir opiniões opostas e que classifica os
que não experimentam as mesmas emoções e experiências de carnais e mundanos”; em
terceiro lugar, haviam “tentativas ostensivas ou veladas de proselitismo entre outras
igrejas”.
No sexto item, verifica-se que a Comissão dos 13 “achava conveniente que”
aquela Convenção advertisse aos que porventura assim procedam, que estão saindo fora da
linha apostólica da ordem e da decência e que prejudicam com tal comportamento as
relações entre as igrejas”. Mediante a essas afirmações, a Comissão dos 13 parece indicar
135
certa sensibilidade ecumênica, porquanto seus integrantes repudiaram o proselitismo e a
veemência das ações ostensivas dos militantes do Movimento de Renovação Espiritual.
A Comissão, por fim, no sétimo item, sugeriu três coisas. Em primeiro lugar,
que houvesse “por parte dos pastores e dos crentes em geral um estudo mais objetivo da
obra e principalmente do método de atuação do Espírito Santo”. Em segundo lugar, “que os
crentes e igrejas se” abstivessem “de atitudes precipitadas e hostis mesmo quando”
estivessem “separados uns dos outros por divergências doutrinárias no tocante à obra do
Espírito Santo”; e, finalmente, em terceiro lugar, “que, aprovado este parecer, a Comissão
continue suas reuniões e observações, examinando, inclusive, experiências espirituais de
diversos irmãos e obreiros e apresentando no próximo ano parecer final sobre a matéria de
que também constem os resultados práticos da decisão ora tomada”.
Ao final das muitas discussões e da fala de diversos oradores, que mais
divergiam do que se faziam cordatos, o plenário aprovou por unanimidade o parecer da
Comissão dos 13
291
.
Após a aprovação, em meio a muita confusão plenária, o pastor Nilson
Rodrigues Costa perguntou qual seria o andamento sobre o último ponto do parecer, a
respeito da continuidade dos trabalhos da Comissão dos 13. A mesa esclareceu à Costa que os
trabalhos continuariam para que houvesse plausibilidade nas definições e análises quanto à
doutrina do Espírito Santo.
O primeiro parecer da Comissão dos 13 e a proposta de continuidade dos
trabalhos suscitam um questionamento fundamental. Por que Rubens Lopes, presidente da
Comissão, entendeu que seria necessário continuar estudando a doutrina do Espírito Santo se
a Comissão já havia apresentado um parecer? Por que seria necessário levar os
questionamentos adiante se já havia m sido feitas diversas recomendações? A tarefa da
Comissão dos 13 era mesmo “estudar a doutrina do Espírito Santo” ou havia algo a mais?
Afinal, tratava-se de uma resolução doutrinária ou de um confronto de poder?
Tognini também faz um questionamento parecido:
“Na segunda etapa discutir-se-iam outros aspectos da
doutrina do Espírito Santo e dons espirituais. Em Vitória,
dei por terminado o meu trabalho na Comissão dos
Treze. O relatório contou com a aprovação de seus treze
membros. No meu modo de ver, deveríamos pôr aí, ponto
final. Continuar seria interferir em questão de
consciência e tocar em pontos secundários em doutrinas,
nos quais os batistas não são unânimes. Percebi que o
291
. TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 134.
136
pastor Rubens almejava definir determinados pontos
doutrinários sobre o Espírito Santo para declarar: “isto
é doutrina batista. Se você concorda é batista, se
discorda, não é batista”. Ora, isso nunca foi espírito
batista, antes é uma coerção descabida e imperialista” .
292
A Convenção Batista Brasileira parece ter sido mais ponderada do que a
Convenção Batista Mineira. Porém, ainda assim, intentou, através do dispositivo disciplinar,
uma vigilância através de uma visão generalizada sobre o andamento das ações e das
literaturas, bem como da política denominacional. Para Tognini, Rubens Lopes quis, na
verdade, definir aqueles que eram batistas e os que não o eram. Contudo, o presidente da
Convenção Batista Brasileira alega que a Comissão dos 13 se referia a um “shake-up”
denominacional impulsionado pelo Movimento de Renovação Espiritual293 . Portanto cabe a
pergunta: Quando alguém está disposto a fazer um “shake-up”, também está disposto a
propor um discurso de exclusão que opera na busca pela “verdade” politizada? Ou então: Por
que alguém, como presidente da Convenção Batista Brasileira, quereria montar o desconforto
de um discurso inquietante?
Desse modo, a Comissão, de fato, continuou seus trabalhos; contudo, ficou
sem três dos seus integrantes, Enéas Tognini em agosto de 1963, José Rego do Nascimento
em outubro do mesmo ano e Thurmo n Bryant, que teria viajado de férias para os Estados
Unidos. Segundo Rubens Lopes, a Comissão foi reduzida a 10 pastores, no entanto,
prosseguiu em seus trabalhos. Para Tognini, “o prosseguimento da Comissão dos Treze seria
fator decisivo para dividir a denominação”
294
. No entanto, também se observa que o
Movimento de Renovação Espiritual foi irredutível e não parou a militância, pelo contrário,
intensificou suas ações através de seus propagandistas e propositores, o que transgrediu o que
fora recomendado pela Comissão dos 13.
A 46ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira, reunida na cidade de
Recife, na segunda quinzena de janeiro de 1964, congregada no templo da Igreja Batista da
Capunga, na sexta sessão da assembléia, abriu a oportunidade, como estava predeterminado,
para o relatório da Comissão dos 13 acerca da doutrina do Espírito Santo.
292
. TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 134 e 135.
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 6 e 7.
294
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 135.
293
137
O relatório da Comissão dos 13, apresentado na 45ª Assembléia da
Convenção Batista Brasileira, foi reiterado quase que de forma absoluta, com alguns
acréscimos
295
. Entretanto, houve uma recomendação suplementar. Recomendou-se:
“1. Que as igrejas, orientadas por seus pastôres, sejam
intransigentes no repúdio ao mundanismo e se esforcem
no cultivo de uma vida espiritual intensa, cujos frutos se
manifestem na conversão de almas, no gôzo cristão e na
edificação dos fiéis.
(Êste ponto foi aprovado, por unanimidade, na 8.ª
sessão).
2. Que os pastôres realizem estudos a respeito da
doutrina do Espírito Santo, ministrando o ensino correto
das Escrituras sobre o assunto, bem como levando suas
igrejas a realizarem estudos sôbre a doutrina do Espírito
Santo através das Escolas Dominicais, usando para isso
a revista especial a ser preparada pelo Departamento de
Escolas Dominicais, de acôrdo com decisão já tomada
por esta Convenção
(Aprovado)
3. Que as igrejas e pastores que se tenham afastado das
doutrinas batistas e se aproximado das doutrinas
pentecostais sejam convidados com todo amor a um
reestudo de sua posição à luz do parecer ora
apresentado. Caso persistam em manter pontos de vista
contrários à posição doutrinária sustentada pela
Convenção Batista Brasileira, sintam-se à vontade para
uma retirada pacífica e honrosa, em benefício da paz na
causa de Deus. Tal recomendação se limita àqueles que
fazem de suas convicções divergentes motivo de atividade
ostensiva, provocando inquietação, confusão e divisão
(Aprovado na 8.ª sessão, por 422 a 14 votos)” . 296
De fato, em linguagem levemente charmosa na sua forma, a “recomendação
suplementar” convida aos pastores e igrejas militantes no Movimento de Renovação
Espiritual, que estavam no escopo da Comissão dos 13, em que 3 eram contrários e, agora, os
6 neutros pareciam, de igual forma, ser também contrários, a que deixassem a Convenção
Batista Brasileira. Segundo a referida recomendação, essas pessoas, como atividades
ostensivas, estavam “provocando inquietação, confusão e divisão”. Portanto, a doutrina do
Espírito Santo foi mais bem elaborada e a Comissão dos 13 fez um trabalho bastante sólido
para consolidá- la no âmbito da instituição. Dessa forma, aquele que fosse contra os cânones
da Comissão, e que estivesse “provocando inquietação, confusão e divisão”, foram
convidados a uma retirada. Ora, uma das características de uma instituição é a constituição
295
296
No anexo 8 consta o relatório na íntegra.
Convenção Batista Brasileira. Ata da Convenção Batista Brasileira. In: Atas, Relatórios e Pareceres da 46ª
Assembléia Anual, p. 171 e 172.
138
normativa de seus fundamentos, pois estabelece seus limites e delimita as ações decorrentes
dos seus membros. Assim, não é possível estar numa instituição e contrariar seus cânones.
Desse modo, a “declaração final da Comissão dos 13” foi votada e aprovada
com 459 favoráveis e 67 contrários. Contudo, depois da aprovação, alguns dos 67
mensageiros que haviam votado contra o “parecer final” encaminharam uma “proposta
especial” ao plenário congregacional
297
. Os proponentes alegavam-se neutros em relação às
duas correntes e diziam-se interessados pela “causa de Deus”.
A “proposta especial” foi escrita pelos pastores Tiago Nunes de Lima, Silas
de Brito Lopes, Valvídio de Oliveira Coelho, João Duduch, Isaías Batista dos Santos, James
E. Musgrave Jr, A. Antunes de Oliveira, Elias Brito Sobrinho e Tito Assis Ribeiro. Tal
proposta alertava para o fato de que a Convenção Batista Brasileira, em reunião plenária,
havia aprovado “por maioria esmagadora o parecer inicial da Comissão dos Treze”, em que
constava a impossibilidade de definição sobre a doutrina do Espírito Santo. A “proposta
especial” também advertiu acerca da impossibilidade de atender o terceiro item da
“recomendação suplementar” da chamada Comissão dos 13, tendo em vista o curto espaço
de tempo que se estava oferecendo para os reestudos acerca das divergências doutrinárias.
A proposta foi a seguinte:
“a) Que o parecer da Comissão dos Treze fique sobre a
Mesa até a próxima Assembléia Convencional, a fim de
dar tempo a que se ponham em prática diversas
recomendações do próprio documento.
b) Que o parecer, as atas e seus anexos, as monografias e
outros documentos relacionados com a matéria, seja
publicados no Jornal Batista, sob a supervisão do seu
redator, para que haja ampla oportunidade de
esclarecimentos do nosso povo até a próxima Assembléia
Convencional”. 298
A “proposta especial”, que concedia uma reavaliação das posições políticodoutrinárias, não “passou” pelo plenário, pois recebeu 456 votos contrários e apenas 172 votos
favoráveis. Segundo Tognini, os líderes estavam desejando ultimar os trabalhos da Comissão
dos 13 299 .
Houve um período bastante efervescente entre o ano de 1964 e 1965, porque
o Movimento de Renovação Espiritual estava realmente impactando o cenário batista das
igrejas locais. Segundo Ferreira, o “fermento” havia atingido o campo fluminense, através da
297
No Anexo 9 a “proposta especial” é reproduzida na íntegra.
298
Ver Anexo 9.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 143.
299
139
Igreja Batista do Fonseca, presidida e pastoreada pelo pastor Samuel Chagas, o qual tinha
chegado de São Paulo com afigurações pentecostais. Conforme o autor, Chagas levou a Igreja
a excluir alguns membros que lhe eram opositores nos anseios carismáticos.
“As igrejas de Niterói estavam apreensivas e perplexas
com o que se passava. Em conseqüência disso, em 12 de
novembro de 1963, a Associação Batista Niteroiense
enviou à Igreja do Fonseca uma carta pedindo que ela se
definisse, no prazo de três meses, sobre seu
comportamento doutrinário. “O pastor comentou sobre a
carta dizendo que era iníqua e que não se devia
responder”.300
A Convenção Batista Fluminense foi chamada para participar das
conversações acerca da Igreja Batista do Fonseca. O presidente daquela Convenção, Ebenézer
Soares Ferreira, se reuniu com o grupo insatisfeito da Igreja, bem como com um grupo que
estava com Chagas.
“O Pastor Samuel Chagas compareceu com um grupo de
irmãos que já estavam bem “chumbados” com os ensinos
e práticas pentecostais, trazendo um memorial no qual,
defendendo-se, acusava-se mais ainda. Em certa parte do
documento ele afirmava: O batismo do Espírito Santo é
experiência distinta do novo nascimento (regeneração e
conversão). É a segunda bênção, pela submissão, total
entrega, segunda a obra da graça, plenitude do
Espírito”. 301
Curiosamente, quer por acaso ou por premeditação devido à confusão dos
pastores e igrejas em Niterói, a 47ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira foi realizada
em janeiro de 1965, no templo da Igreja Batista de Niterói. O presidente Rubens Lopes
alegrou-se pelo grande número de mensageiros que se fizeram presentes ao encontro plenário.
O assunto que estava sendo tratado naquela Assembléia Convencional era
uma campanha de evangelização. Portanto, o ano de 1964 para os batistas foi motivado por
um preparo com a finalidade de conduzirem as igrejas no ideal de evangelização, a fim de
cumprir os objetivos da idealizada campanha de evangelização que ocorreria no ano de 1965.
No entanto, os caminhos da Assembléia foram se modificando, pois de evangelização o
assunto rumou para o Movimento de Renovação Espiritual 302 .
300
FERREIRA, Ebenézer Soares. História dos Batistas Fluminenses, p. 165.
FERREIRA, Ebenézer Soares. História dos Batistas Fluminenses, p. 165.
302
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil, p. 257.
301
140
As sessões foram dirigidas pelo mencionado presidente, que orou para que
Deus os ajudasse a resolver os problemas em torno das decisões que seriam tomadas naquela
Convenção, consoante ao Movimento de Renovação Espiritual. De saída, há uma proposta de
resolução do assunto “doutrinário” do Movimento de Renovação Espiritual e das igrejas
envolvidas com ele. O pastor Trascy R. dos Santos propôs, com bastante eloqüência, que
diante da importância do assunto, a Convenção Batista Brasileira deveria formar uma
comissão para um estudo sobre possíveis eliminações de igrejas arroladas.
“A partir da sessão de 2ª feira, 25, a Convenção tomou
outro rumo. A assembléia rejeitou um parecer que previa
o adiamento de matéria controvertida: os problemas
causados pela atuação do movimento denominado
“Renovação Espiritual”. Praticamente três sessões, de
tempo prorrogado, foram gastos no debate desse
problema. O resultado foi a não realização do programa
relacionado com a Campanha e a impossibilidade de
discutir outros assuntos trazidos pelos pareceres. Mas
quem pode prever os rumos de uma assembléia batista?
Os que contrariaram o adiamento argumentaram que
esse assunto vinha-se arrastando desde 1959 e era tempo
de dar uma definição. Assim entendeu a maioria absoluta
dos mensageiros e assim foi feito” 303 .
Entretanto, substitutivamente, o pastor Isaías Barcelos de Oliveira fez outra
proposta:
“que esta Convenção desligue, do seu rol de igrejas
cooperantes, todas as que foram excluídas das
Convenções Estaduais, por motivo de sua identificação
doutrinária-prática com o movimento renovacionista
pentecostal, ora em curso no Brasil, sempre que
solicitada a fazê-lo e que a Convenção Nacional evite
trazer para o seu rol cooperativo, igrejas que não
tiverem sido previamente ligadas às Convenções
Estaduais e ao mesmo tempo desligue se houver qualquer
Convenção Estadual ligada ao movimento supracitado”.
304
Após a proposta acima transcrita, 38 oradores inscreveram-se para abordar a
proposta de Oliveira. Na sessão do dia 27 de janeiro, os trabalhos tomaram rumos decisivos,
pois, depois de muita confusão plenária, depois de pronunciamentos, depois de
esclarecimentos diversos, a questão encaminhou-se para as propostas finais.
O pastor Delcyr de Souza Lima, integrante da Comissão dos 13, sugeriu uma
emenda “à primeira propositura da proposta de Isaías Barcelos de Oliveira”:“De que,
303
304
O Jornal Batista. Rio de Janeiro, fev. 1965.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 151.
141
doravante, passe a considerar para desligamento todos os casos que venham ser solicitados
por convenções estaduais”. 305
A primeira votação se procedeu com a emenda e o plenário aprovou por 912
votos, contra 60. A proposta com a emenda ficou assim transcrita:
“Que esta Convenção desligue do seu Rol de Igrejas
Cooperantes todas as que foram excluídas das
Convenções Estaduais, por motivo de sua identificação
doutrinária-prática com o movimento Renovacionista
Pentecostal, ora em curso no Brasil, e que, doravante,
passe a considerar para desligamento, todos os casos que
venham a ser solicitados por Convenções Estaduais”. 306
Alguns dos congregacionais entenderam que a proposta havia sido feita e
votada para que se excluíssem apenas as seguintes igrejas: Igreja Batista do Fonseca e a
Igreja Batis ta de Sião, no Estado do Rio de Janeiro e no Estado do Espírito Santo,
respectivamente. Contudo, a imprevidência se deu muito provavelmente devido às
“acaloradas discussões” plenárias. Ressaltou-se, diante disso, que, em verdade, a proposta era
destinada a todas as igrejas que participavam, de alguma maneira, do Movimento do caso em
tela 307 . Assim, houve a segunda votação:
“Plebiscito. Depois de responder à consulta que lhe foi
endereçada sobre a interpretação que dava à proposta
Isaías Barcelos, a mesa, não querendo que sua vontade
prevalecesse remeteu o assunto para o plenário. Este
respondeu por 467 votos contra 28, que votou pelo
desligamento de todas as igrejas ostensivamente ligadas
com o movimento renovacionista, interpretação que foi
esposa também pela mesa”.
O plebiscito foi realizado e consumou-se a proposta que provocou o
primeiro cisma denominacional na Convenção Batista Brasileira. Entretanto, houve mais
uma votação, a terceira que aludia à possibilidade da formação de uma comissão para
estudar as conseqüências da decisão tomada Pela Convenção de retirar as igrejas do
Movimento de Renovação Espiritual do seu rol de igrejas cooperantes.
“Na terceira votação, o plenário aprovou o Parecer da
Comissão Especial encarregada de estudar as
conseqüências de decisão tomada pela Convenção a
respeito das Igrejas de Renovação Espiritual, sendo que
aqui a aprovação foi quase unânime: 351 votos a favor e
305
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 154.
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 154.
307
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 155.
306
142
1 (um) contrário. Vale notar que, dentro dessa Comissão
Especial, composta de onze membros houve cinco votos
vencidos”.308
É relevante perceber que, na “declaração de votos”, em que alguns dos
congregacionais expressaram os motivos pelos quais votaram contrariamente a proposta de
Oliveira, verificam- se diversas palavras de indignação pela ação de sujeitos que, como
instrumentos do poder, tiveram de recorrer à exclusão e à ação medievalesca bastante
parecida com um processo inquisitorial.
Segundo A. Antunes de Oliveira:
“Voto contra – portanto, no caso, voto vencido – por dois
motivos: A – A principal implicação da proposta
Barcelos violenta, frontalmente, o sagrado princípio de
defesa do acusado: isto quer dizer que a proposta em
foco julga e condena, sem depoimentos, sem autos e sem
defesa, apenas julga e condena, ouvindo terceiros mas
não os acusados; B – que o parecer não está de acôrdo
com a própria proposição Barcelos e a decisão do
plenário, quando nomeou a Comissão, com o objetivo de
estudar implicações do votado: o parecer vai mais além
de estudos e implicações. A. Antunes de Oliveira” 309 .
Após a manhã do dia 28, quando houve a exclusão das igrejas pertencentes ao
Movimento de Renovação Espiritual, 32 igrejas, assim como na Convenção Batista Mineira,
foram excluídas com tal proposta. No entanto, A. Antunes de Oliveira manifestou-se contrário
declarando que os “acusados” não tiveram direito à defesa. A. Antunes de Oliveira também
declarou que o parecer “vai além de estudos e implicações”, ou seja, o parecer de fato denota
um processo inquisitorial em que igrejas foram desaroladas.
“À Secretaria da C.B.B. – Nesta. Eu, abaixo assinado,
declaro ter votado contra a todo o parecer da Comissão
dos 12 por julgar que no mesmo implicitamente se ensina
ser a Convenção maior do que a igreja local, o que é
anti-bíblico e anti-batista. Além disso, a decisão é antijurídica e anti-cristã, por excluir coletividade sem
identificação e sem o direito de defesa ás igrejas da
Convenção do Estado de Minas. Também é fato que a
decisão, sôbre ser injusta, estabelece um precedente e
uma jurisprudência perigosíssimos. Niterói, 29-1-1965.
Élvio C. Lindoso” 310 .
308
O Jornal Batista. Rio de Janeiro, fev. 1965, p. 3.
Convenção Batista Brasileira. Ata da Assembléia realizada em janeiro de 1965. In: Atas, Relatórios e
Pareceres da 47ª Assembléia Anual. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1965, p. 177.
310
Convenção Batista Brasileira. Ata da Assembléia realizada em janeiro de 1965. In: Atas, Relatórios e
Pareceres da 47ª Assembléia Anual, p. 177.
309
143
A partir das concepções de Lindoso, embora o plenário houvesse outorgado
determinado direito de ação à chamada Comissão dos 13, mesmo assim, a Convenção Batista
Brasileira não está acima das igrejas locais, pois estas são soberanas sobre aquela, conquanto
as Convenções existam como apoio às igrejas locais.
“Declaro que votei contra a posição da maioria na
consulta sobre a exclusão das Igrejas da Convenção
Batista do Estado de Minas Gerais por julgar que,
votando a eliminação maciça de tais igrejas, a
Convenção Batista Brasileira cometeu sérias e graves
injustiças. Walter Wedemann” 311 .
Para Wedemann, a Convenção Batista Brasileira cometeu sérias e graves
injustiças, pois, segundo sua declaração, as igrejas da Convenção Batista do Estado de Minas
Gerais não poderiam ser generalizadas somente porque não pertenciam à Convenção Batista
Mineira. Sendo assim, é possível que Wedemann estivesse questionando os critérios
adotados para a exclusão.
Segundo Tognini, na “tarde sombria de 27 de janeiro de 1965”, no ensejo
em que a Convenção Batista Brasileira encaminhava-se para a votação da exclusão das
“igrejas do Senhor”, Deus teria revelado “a sua vontade de amor, mandando forte temporal
que estremeceu a terra”. A luz faltou durante o temporal.
Veja as palavras de Tognini sobre a tempestade:
“A tempestade era a ira de Deus contra exclusão de
igrejas irmãs. E a falta de luz nada mais seria do que
Deus falando ao Seu Amado Povo Batista que faltava
“luz” para se votar proposta tão contundente. Deixando
a mesa o problema Renovação Espiritual para decisão
no dia seguinte pela manhã, Deus estava dando tempo
aos espíritos exaltados, oportunidade para ponderar e
orar. Mas, a maioria não entendeu e não atendeu a voz
do Senhor” 312 .
Assim, na obstinação de todos contra todos, houve o primeiro cisma dos
batistas no Brasil, que desarolou 32 igrejas, na sua grande maioria pertencentes ao Estado de
Minas Gerais. Às Convenções Estaduais foi concedido o direito de excluir qualquer igreja
311
Convenção Batista Brasileira. Ata da Assembléia realizada em janeiro de 1965. In: Atas, Relatórios e
Pareceres da 47ª Assembléia Anual, p. 177.
312
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 157.
144
que estivesse envolvida com o Movimento de Renovação Espiritual. Portanto, se excluída
uma igreja do rol da Convenção Estadual, do mesmo jeito seria excluída da Convenção
Batista Brasileira. Desse modo, até o final de 1965 foram excluídas 52 igrejas
313
.
Conforme Foucault, o poder estabelece uma relação impressionante com o
desejo que se forma em torno do discurso. Desse modo, nas relações institucionais de poder,
deve-se notar seu desdobramento através de sistemas de exclusão que fomentam ações de
vigilância em termos panópticos. Na verdade, o entrevero congregacional abordado nesse
capítulo parece estar fortemente vinculado a uma disciplina que se instaura e se
operacionaliza através em um dispositivo específico, a chamada Comissão dos 13.
Destarte, no entanto, a disciplina em questão só poderá ser visibilizada nas
categorias de uma antidisciplina, porque não se trata de uma absolutização totalizante dos
procedimentos e das ações, mas de uma operação microbiana, capilar e sub-reptícia por entre
uma disciplina que atua concatenando-se e engendrando-se numa antidisciplina cotidiana
multiforme nas ações políticas. Com isso, quer-se aludir ao dispositivo “Comissão dos 13”
como uma disciplina do olhar, com suposta pretensão de “vigiar”, mas que culminou na
multiplicidade dos discursos, nos embates de poder e nas inúmeras operações
antidisciplinares, as quais conduziram a Convenção Batista Brasileira a um processo negativo
do exercício do poder: a “punição”.
Para Michel de Certeau, em “Vigiar e Punir”, Foucault “substitui a
análise dos aparelhos que exercem o poder” pelos “dispositivos que vampirizam as
instituições e reorganizaram clandestinamente o funcionamento do poder”. Para o autor,
esse procedimentos são “técnicos” e “minúsculos”, pois se exercem sobre “detalhes” e
redistribuem o espaço, tornando-o em “operador de uma “vigilância” generalizada”.
Assim, Foucault privilegia, como se mencionou, um sistema altamente disciplinar314 .
“Se é verdade que por toda a parte se estende e se
precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é
descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz
a ela: que procedimentos populares (também
“minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da
disciplina e não se conformam com ela a não ser para
alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a
contrapartida, do lado dos consumidores (ou
313
314
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 156.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 41.
145
“dominados”), dos processos mudos que organizam a
ordenação sócio-política”. 315
Portanto, ainda que, através da Comissão dos 13, torne-se plausível uma
constatação da vigilância panóptica, não se deve reduzir toda abordagem a uma totalização
cega de tal teoria. Assim, no caso em tela, a “microfísica” do poder esteve regendo com
mestria toda uma estrutura móbil de um congregacionalismo de intervenção, onde igrejas
locais foram regidas pela Convenção Batista Brasileira, na movimentação de alguns líderes
preponderantes que formataram um discurso em torno da “vontade de verdade” e o levaram
a cabo.
Não se pode descartar os procedimentos de vigilância, pois o panoptismo
esteve presente no “todo” da visibilidade pretendida. Por isso, não se podem observar ações
altamente desconexas; contudo, é bom que a disciplina seja abordada num contexto
antidisciplinar, porque houve muita vigilância nas diversas “mil práticas” propostas por
Certeau.
“Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas
pelas quais usuários se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural.
Elas colocam questões análogas e contrárias às
abordadas no livro de Foucault; análogas, porque se
trata de distinguir as operações quase microbianas que
proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram
o seu funcionamento por uma multiplicidade de “táticas”
articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano; contrárias,
por não se tratar mais de precisar como a violência da
ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas de
exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela
criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou
dos indivíduos presos agora nas redes da “vigilância”.
Esses modos de proceder e essas astúcias de
consumidores compõem, no limite, a rede de uma
antidisciplina”. 316
Com Certeau, em suma, pode-se admitir que operações microbianas, as
quais poucas podem ser identificadas com precisão, alteram o funcionamento pelas “táticas”
indefiníveis que se procedem no bojo do funcionamento e na articulação por entre e por
sobre detalhes aparentemente ínfimos, mas que fazem a diferença no conjunto estrutural de
uma política denominacional.
315
316
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 41.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 41 e 42.
146
Também com Certeau, clarifica-se a conc epção de que, embora haja uma
multiplicidade de redes de vigilância, também há criatividades dispersas, táticas e atividades
de grupos que se impregnam através do poder atravessando as mais diversas redes. Portanto,
o modo com o qual alguém procede, na conjuntura da política denominacional, é
determinado pela astúcia e pelo posicionamento enquanto instrumento do poder no âmbito de
uma rede específica.
Desse modo, todas as ações, desde a publicação dos livros de Tognini e de
Rego, até a intervenção de Rubens Lopes para que a Comissão continuasse trabalhando, não
são inocentes, pois se tratava de uma vigilância ousada que se dissemina e se torna em “mil
maneiras” de conceder aspecto lúdico ao poder e de fomentar um belicismo denominacional,
quer inocente, quer consciente.
Se Foucault utiliza-se de instituições e do modelo arquitetural do presídio,
Certeau lança mão da “cidade-panorama” como “simulacro teórico” de suas observações e
apontamentos. Verdadeiramente, fazendo uso de uma suposta visão do 110º andar do World
Trade Center, fica mais fácil explicitar a impossibilidade de totalização das práticas e da
absoluta ordenação das dinâmicas de uma visão geral. Isso se deve ao fato de que, no 110º
andar, lançando olhar sobre as massas, não se poderá visibilizar as práticas através de ações
específicas, porquanto a “massa se imobiliza sob o olhar”. Assim, Nova Iorque é diferente
de Roma, porque não sabe o que é “envelhecer curtindo todos os passados”, mas “seu
presente se reinventa, de hora em hora, no ato de lançar o que adquiriu e desafiar o
futuro”317 .
Sobre a metáfora da cidade, Certeau afirma:
“A cidade-panorama é um simulacro “teórico”
(ou seja, visual), em suma um quadro que tem
como
condição
de
possibilidade
um
esquecimento e um desconhecimento das
práticas (...) Mas “embaixo” (down), a partir
dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os
praticantes ordinários da cidade. Forma
elementar dessa experiência, eles são
caminhantes, pedestres, Wandersmänner, cujo
corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto”
urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses
praticantes jogam com espaços que não se vêem;
têm dele um conhecimento tão cego como no
corpo-a-corpo amoroso (...) Tudo se passa como
317
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 169.
147
se uma espécie de cegueira caracterizasse as
práticas organizadoras da cidade habitada”. 318
Ademais, o modelo panóptico parece ir além do presídio, como o próprio
Foucault faz constar através de seus textos. Nas relações humanas, através da operação
panóptica, o dispositivo da visão adentra a realidade de uma cegueira dos desconhecimentos
de práticas disseminadas. Em primeiro lugar, vê-se a formação da chamada Comissão dos 13
e, em segundo lugar, verifica-se que plenariamente existem mil formas de se fazer uma
realidade diversificada e multiforme nas suas práticas. Em parte se conhecessem os sujeitos
que se autenticaram através de suas experiências denominacionais, mas também existe um
grande desconhecimento em relação aos sujeitos que vivenciaram essas tramas, porque a
disciplina pode ser conhecida pelas redes; entretanto, a atuação das redes na antidisciplina é
bastante subversiva e diversificada.
O
referido
sistema
de
visibilidade
cego,
no
conhecimento
e
desconhecimento das práticas, das táticas e das operações, por entre fundamentos de Foucault
e Certeau, formam-se como em um sistema de exclusão bastante contundente. O poder se
mistura com o desejo e promovem “vigilância” e estranhamente a “exclusão”.
Segundo Foucault, a sociedade desenvolveu e aprimorou alguns sistemas de
exclusão, os quais receberam o aporte, ainda que controlado, das formulações de discursos e
suas conseqüe ntes multiplicações indefinidas. Conforme o autor, existem sistemas de
exclusão que operam na sociedade e nas instituições, alijando alguns sujeitos através de
mecanismos específicos que funcionam nos sistemas de exclusão.
Para Foucault, são três sistemas de exclusão que incidem sobre o discurso:
em primeiro lugar, a palavra proibida, num segundo lugar, a segregação da loucura e,
finalmente, em terceiro lugar, a vontade de verdade. A “vontade de verdade” foi o sistema de
exclusão mais estudado por Foucault, porque, segundo o autor, ela é reforçada e aprofundada,
tornando-se incontornável, atingindo e excluindo aqueles que se opõem a preceitos diversos, o
quais são formados e solidificados pelas sociedades e instituições
319
.
Dessa maneira, além do panoptismo que, em toda a sua visibilidade opera na
cegueira das práticas que não se pode constatar, também se verifica um forte desejo pela
“vontade de verdade”, o qual se dissemina e se multiplica através dos discursos dos sujeitos.
Levando-se em consideração que o panóptico é um dispositivo que opera no sistema
disciplinar, também se concebe que a disciplina é um princípio de controle:
318
319
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 169.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 19.
148
“A disciplina é um princípio de controle da produção do
discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma
identidade que tem a forma de uma reatualização
permanente das regras”. 320
Conforme Foucault, há uma formação de regras no âmbito de uma
instituição, contudo, sabe-se que elas se reatualizam e, através da “vontade de verdade”,
excluem aqueles que não atendem aos seus preceitos
321
. No caso em tela, vê-se que a
Comissão dos 13 definiu regras bastante específicas para fornecer uma classificação daqueles
que eram de fato batistas. Caso alguém não atendesse às regras de poder criadas através de
cânones, era convidado a uma “retirada” da Convenção Batista Brasileira.
No jogo panóptico todos poderão participar, porquanto “qualquer pessoa
pode vir a exercer na torre central as funções de vigilância”
322
. Entretanto, além de um
avanço na tecnologia do poder empregada pela Conve nção Batista Brasileira, na formação de
um dispositivo de vigilância, também houve um retrocesso por conta da punição das igrejas
que não se adequavam às regras do jogo institucional. A Comissão dos 13, como dispositivo
de vigilância, promoveu estudos sérios acerca da doutrina do Espírito Santo, entretanto,
quando houve a proposta de que se desligassem as igrejas, parece ter havido um processo
inquisitorial aos moldes daqueles ocorridos na Idade Média. Para Foucault, “o século XVIII
inventou as técnicas da disciplina e o exame” e, segundo o autor, a Idade Média havia criado
o inquérito judiciário e os sistemas de punição através do terror exercido pelas ações do
soberano governante.
Portanto, há uma natureza política bastante ultrapassada no que concerne ao
“poder de punir”, porque o “suplício do corpo” era um ritual público de dominação pelo
terror: o “objeto” da aplicação de uma pena era o corpo do indivíduo condenado. Contudo, o
propósito maior da pena criminal era, por certo, atingir a massa do povo. Sendo a massa
convocada para presenciar todo o ritual malévolo do suplício, enxergavam a vitória de um
soberano que havia descarregado sua ira naquele indivíduo massacrado por ter ousado um
desafio ao supremo poder.
“O inquérito como pesquisa autoritária de uma verdade
constatada ou atestada (...) O inquérito era o poder
soberano que se arrogava o direito de estabelecer a
320
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 36.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 36.
322
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 171.
321
149
verdade através de um certo número de técnicas
regulamentadas”. 323
Acha-se em foco a “vontade de verdade” e o sistema de visibilidade plena
em meio a “mil práticas” de cegueira que conferiram alguns pressupostos para se entender a
doutrina do Espírito Santo e a posição ética e comportamental dos sujeitos religiosos
pertencentes ao Movimento de Renovação Espiritual. A exclusão de igrejas da Convenção
Batista Brasileira marcou um retrocesso disciplinar que culminou no primeiro cisma na
Conve nção Batista Brasileira, caracterizando uma prática parecida com a punição exercida na
Idade Média através do terror dos condenados. Foucault ressalta que as técnicas inquisitoriais
eram características das ações do soberano na Idade Média. Assim, aquele que não atende à
“vontade de verdade” de uma determinada rede de poder e as regras estabelecidas no bojo da
instituição são excluídos através do funcionamento de um avanço tecnológico que se
operacionalizou num retrocesso tecnológico, a saber, o panóptico funcionou num lugar de
práticas disseminadas.
323
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 185.
150
4. O Fundamentalismo político-religioso por detrás das trincheiras
4.1. O fundamentalismo do Movimento de Renovação Espiritual
Na abordagem abaixo, quer-se aludir à formação do fundamentalismo do
Movimento de Renovação Espiritual a partir da constatação de algumas declarações e ações
realizadas por Enéas Tognini, representante significativo da ideologia político-teológica do
Movimento. Não se pretende a descrição factual da política do período que se verificará, mas
a abordagem de alguns aspectos do ambiente político no referido período.
Dessa maneira, aspectos político-religiosos que envolviam a mentalidade do
Movimento de Renovação Espiritual, bem como o belicismo ocasionado no seio da
Convenção Batista Brasileira devem ser levados em consideração, porquanto essa
remontagem faz suscitar elementos importantes para buscar uma compreensão mais acurada
da formação e atuação do mencionado Movimento.
Segundo Tognini, havia um trabalho evangelístico mantido pela Igreja
Batista de Perdizes na Praça da Sé, na cidade de São Paulo. O objetivo desse trabalho seria
pregar à população em geral. Entretanto, o maior intento das mensagens de Tognini teria sido
o alcance evangelístico de comunistas. Dessa maneira, Tognini alega que os comunistas
estavam ávidos por confusões com os que lhes eram ideologicamente contrários. Para o autor,
a Praça da Sé foi uma das grandes concentrações de líderes marxistas na cidade de São Paulo.
Por isso, conforme Tognini, a Praça da Sé era um excelente campo para se praticar os
evangelismos propostos pelo Movimento
324
.
Ademais, estabeleceu-se um discurso anticomunista que demonizou a ação
política de líderes ma rxistas. Conforme Tognini, “o diabo estava instalado naquela praça”.
Com isso, em tom bastante intervencionista e entendendo os comunistas como perniciosos,
Tognini alega que, em determinado dia, escolheram um lugar e oraram pedindo para que Deus
lhes protegesse do mal representado pelas ações dos militantes marxistas. Assim, vê-se com
bastante notoriedade uma oposição do Movimento liderado por Tognini aos comunistas que
circulavam na Praça da Sé. A orientação de Tognini aos fiéis que lhe ajudavam nas pregações
era a de que eles “não dialogassem” com quem quer que fosse, especialmente com
comunistas
324
325
325
.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 139 a 141.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 139.
151
Concomitante aos trabalhos evangelísticos de Tognini na Praça da Sé,
também se procediam às atividades do programa radiofônico chamado “Renovação
Espiritual”. Esse programa, que ia ao ar todos os domingos pela manhã, visava um alcance
mais amplo da mensagem acerca do batismo no Espírito Santo, bem como o combate ao
comunismo. Desse modo, o Movimento de Renovação Espiritual, através de seu veículo de
informação, proclamava uma mensagem político-religiosa bastante contundente em sua
militância, configurando-se de forma específica contra a ideologia comunista. Conforme
Xavier, um colega de Tognini o havia despertado para uma suposta nocividade do
comunismo, pois, segundo suas informações, o comunismo havia entrado em vários setores
da sociedade brasileira, em diversos lugares onde se prezava pela cultura e pelo
conhecimento, como na Universidade de São Paulo. Segundo Xavier, o colega de Tognini
estava alertando para a dinâmica do crescimento da ideologia comunista, pois, segundo ele, o
pensamento marxista estava se alastrando através das massas na efervescência do período em
pauta
326
.
Dessa forma, o ambiente ocasionado pelas suspeitas de que o Presidente da
República, João Goulart, estaria diretamente envolvido com o comunismo culminou em
diversas ações por parte de vários segmentos da sociedade brasileira. Inúmeros líderes
religiosos, católicos e protestantes, se posicionaram de forma contrária ao Presidente,
acusando-o, no sentido pejorativo, de comunista.
João Goulart, após incontáveis atos da aposição militar, governou durante
um período de bastante fragilidade política demonstrada também pelo regime parlamentar,
que se estendeu de setembro de 1961 a janeiro de 1963. O Presidente da República, João
Goulart, lançou em 1963 um Plano Trienal que deveria ser acompanhado pelas “reformas de
base”, que ocorreriam em quatro categorias: agrária, tributária, financeira e administrativa.
Entretanto, enfatizando a primeira categoria, sempre o Presidente foi tido como um
revolucionário. As reformas de bases eram discutidas em todos os lugares e havia
mobilizações bastante intensas, em prol das reformas e, da mesma forma, contrárias a ela.
Assim, em 13 de março de 1964, Goulart liderou o Comício da Central do
Brasil em favor das mencionadas reformas. Isso ocorrera junto à maior estação de trens do
Rio de Janeiro. O Presidente da República falou a 150 mil pessoas, ressaltando a reforma
agrária e fazendo promessas de taxar os mais ricos com a reforma urbana. Segundo O Estado
de São Paulo, jornal bastante lido em todos os períodos, a ilegalidade do comício foi, de certa
326
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 89.
152
forma, uma suposta afronta, considerando o local onde havia sido realizado, porquanto a
estação ferroviária localizava-se ao lado do Ministério do Exército, o que seria um insulto aos
militares.
“Assim, em 13 de março de 1964, Jango realizou no Rio
de Janeiro o “Comício das Reformas”, no qual anunciou
dois decretos: um, nacionalizando refinarias de petróleo,
e o outro, desapropriando terras para fins de reforma
agrária”. 327
Para O Estado de São Paulo, o país vivia um período de “apreensão e
preocupação pelo que” poderia “acontecer”, uma vez que, segundo o jornal, “as atitudes do
Presidente da República” feriam por diversas vezes a “Constituição”
328
. Já o título do
editorial do dia 13 é bastante sugestivo no tocante à compreensão acerca da imagem criada
pelo jornal O Estado de São Paulo a respeito de Goulart, pois, para o jornal, João Goulart era
“O Presidente fora da Lei”.
O jornal O Estado de São Paulo, assim como outros veículos de informação,
contribuíram para uma formação da imagem de João Goulart, que foi associado algumas
vezes a Vargas, tendo sido considerado “discípulo dileto do ditador morto” 329 .
“A imprensa desempenhou importante papel nesse
processo. De modo geral, além de não apoiar Jango, fez
duras críticas a seu governo. Os porta-vozes da oposição
eram O Estado de S. Paulo, O Globo, os Diários
Associados e a Tribuna da Imprensa. Entre os poucos
jornais a favor do governo, estava o diário carioca
Última Hora”. 330
Em outras ocasiões, o Presidente Goulart foi tido como alguém que
funcionava para os “instrumentos das forças a serviço da subversão”
331
. E ainda era tido
como alguém que “inspirava confiança para execução do vasto programa das esquerdas no
Brasil”
332
. Assim, configurou-se, no Brasil, um suposto ambiente de um iminente
comunismo e Goulart teria sido um Presidente que fomentava os ideais de esquerda.
327
328
329
FIGUEIRA. Divalte Garcia. História, p. 374.
O Estado de São Paulo. São Paulo, mar. 1964, p. 3.
O Estado de São Paulo. São Paulo, abr. 1964, p. 3.
FIGUEIRA. Divalte Garcia. História, p. 374.
331
O Estado de São Paulo. São Paulo, mar. 1964, p. 3.
332
O Estado de São Paulo. São Paulo, mar. 1964, p. 3.
330
153
Contudo, segundo alguns autores, como Bandeira, na verdade o Comício
Central do Brasil foi tão-somente uma tentativa de reunir bases governamentais para a
realização de “reformas de base”, que não teriam caráter socialista, mas seriam “reformas
democrático-burguesas e tendiam a viabilizar o capitalismo brasileiro, embora sobre outros
alicerces”
333
.
Entre as manifestações na sociedade brasileira ocorreu a “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”, que aconteceu na Capital São Paulo no mês de março de
1964. Nessa manifestação, 500 mil pessoas ofereceram uma espécie de resposta conservadora
objetivando conduzir a opinião publica a um forte posicionamento contra os atos do
Presidente Goulart, o que se fez em resposta ao comício ocorrido no dia 13, na Central do
Brasil. O Estado de São Paulo considerava que o povo estava agindo dentro da lei e que o
confronto contra do Presidente da República seria inevitável 334 .
Da mesma forma, o elitismo foi promulgado pelo jornal O Estado de São
Paulo e o País estava tomando rumos bastante decisivos, pois, para o jornal, havia uma
diferença cultural entre os militantes religiosos, católicos e evangélicos, dos que fizeram o
Comício Central do Brasil. Segundo O Estado de São Paulo, em tom depreciativo, o Comício
de Goulart foi composto por “gente dos morros”
335
.
Nesse ínterim, enquanto a efervescência política no Brasil intensificava-se
rapidamente, Enéas Tognini, em contato com uma mensagem de Abraham Lincoln,
despertou-se para algo que o conduziu a um posicionamento naquela conjuntura. Lincoln
recebeu do Senado americano uma solicitação para que se proclamasse um dia de “jejum e
oração e humilhação” diante de Deus, visando o alcance das misericórdias do Senhor para os
Estados Unidos, por causa das conseqüências desastrosas da Guerra de Secessão 336 . O
Presidente dos Estados Unidos teria acatado o pedido do Senado e, no dia 30 de abril de 1863,
programou o “Dia do Fogão Apagado”
337
.
Segundo Tognini, o povo norte-americano jejuou, orou e se humilhou diante
de Deus, pedindo que “afastasse a negra nuvem que escurecia a grande nação”. Para o autor,
“Deus ouviu o clamor do seu povo e abençoou a grande nação”
333
334
.
BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964), p. 164.
O Estado de São Paulo. São Paulo, mar. 1964, p. 3.
O Estado de São Paulo. São Paulo. Mar. 1964, p. 3.
336
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 149.
337
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação, p. 89 e 90.
338
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 152 e 153.
335
338
154
“Com essa mensagem no coração e na mão, troquei idéia
com alguns pastores, estabelecendo o paralelismo: 1863
e 1963. Estados Unidos e Brasil. Aqui o comunismo, lá a
divisão e a luta interna. Se lá deu resultado, aqui daria
também. Lá o povo americano atendeu ao presidente, e a
nação teve a vitória. Aqui Deus nos daria também a
vitória sobre o comunismo”. 339
Porém, em certa ocasião, o chefe do serviço secreto do segundo Exército
havia mandado chamar Enéas Tognini:
“Tive medo, pois o comunismo já se infiltrara nas Forças
Armadas, na Igreja Católica e contaminara alguns
pastores evangélicos e seminaristas nossos que militavam
na “esquerda”. Chegaram a ser chamados de
“melancia”, verde por fora e vermelho por dentro.
Atendi ao chamado. Na presença desse oficial, fui logo
dizendo: “Não sei sua ideologia, agora quero lhe dizer
que sou contra, contra, contra o comunismo!” “Também
eu sou”, foi a sua resposta. Há pouco fora apreendido
em Paris, o Plano Qüinqüenal dos chineses para
conquistar o Brasil. Nesse “plano” se declarava que dois
óbices encontravam para ganhar o Brasil para a China
de Mão-TseTung: a Igreja Católica e as Forças
Armadas. Estes, entretanto, já estavam minados pelos
“amarelos” e “vermelhos”. Esse ilustre militar me disse
que o “comunismo” é uma força espiritual do diabo, e
para combatê-lo só uma força espiritual de Deus. Nossa
esperança para salvar o Brasil das garras do comunismo
está em vocês, evangélicos. Apresentei-lhe o plano de
Lincoln. Depois de inteirar-se do plano, disse-me:
“Reverendo, se o senhor fizer isso, será a salvação do
Brasil”. 340
Dessa forma, Tognini escreveu uma mensagem que foi propagada em muitos
lugares. Tratava-se de um convite para um dia de “jejum, oração e humilhação”, tal qual
havia realizado o Presidente Lincoln. Muitas igrejas teriam orado e participado dessa
campanha. Segundo Tognini, alguns começaram a campanha no dia 14 e terminaram na noite
do dia 15 de novembro. Conforme o autor, nessas reuniões houve lágrimas, profecias,
revelações, bem como fortes contrições por causa do Brasil e do comunismo, que
supostamente se instauraria no País.
“De norte a sul, de leste a oeste e centro, todos os
evangélicos do Brasil jejuaram e oraram e se
humilharam diante do Senhor Todo-poderoso. O Espírito
de Deus foi derramado sobre todo o Brasil. Coisa nunca
vista. Na propaganda do “jejum”, canais de TV, rádios e
339
340
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 153.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 153 e 154.
155
jornais abriram suas portas para a promoção desse dia
singular. E nesse dia travou-se com o diabo a grande
batalha. E Jesus foi vitorioso. Aleluia... E a resposta a
essa batalha do céu foi 31 de março de 1964”. 341 Grifo
nosso.
Assim, no dia 31 de março de 1964, Tognini entende que Jesus foi vitorioso,
pois havia se iniciado o movimento militar que depôs o Presidente da República, João
Goulart. O discurso religioso acentuou-se através da propaganda de Tognini e,
conseqüentemente, do Movimento de Renovação Espiritual, que vinculou a mensagem
religiosa ao discurso político.
“Na madrugada de 31 de março, o general Mourão
Filho, comandante da IV Região Militar, em Minas
Gerais, conduziu suas tropas em direção ao Rio de
Janeiro, com o objetivo de depor o presidente. Outros
comandos militantes o seguiram. Jango não esboçou
reação. Do Rio de Jandeiro, onde se encontrava, voou
para Brasília e, de lá, para o Rio Grande do Sul. Mais
tarde, exilou-se no Uruguai”. 342
Enéas Tognini, com todas as suas intervenções, revela-se anticomunista e,
além disso, demoniza o comunismo de forma bastante contundente. Dessa maneira, para
Tognini, o comunismo era obra proveniente do diabo e deveria ser combatido pelo
Movimento de Renovação Espiritual.
“E Deus respondeu ao clamor do seu povo com 31 de
março de 1964. Um grupo de brasileiro acha que a
revolução de 1964 foi política, cometeu muita injustiça.
Não importa, o importante é que Deus fechou a porta
para o comunismo. Para nós, evangélicos, o maravilhoso
resultado foi LIBERDADE PARA ANUNCIARMOS A
PALAVRA DE DEUS. Em 1963, os evangélicos, segundo
as estatísticas, não passavam de dez milhões. Trinta e
quarto anos depois, somos trinta e cinco milhões.
Crescimento milagroso. Com o comunismo, não teríamos
liberdade para pregarmos o Evangelho, nossos templos
seriam fechados, pastores mortos, Bíblias queimadas e
muito crente ficaria na cadeia. O milagre do dia nacional
de jejum e oração foi no campo espiritual. Com nosso
jejum e nossas orações, travou-se “nas religiões
celestes”, onde o inimigo opera, grande batalha. Foi um
entardecer melancólico e uma noite triste que Deus
respondeu com esplendente manhã de vitória”. 343
341
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 162.
FIGUEIRA. Divalte Garcia. História, p. 374.
343
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 164.
342
156
Fica evidente que o discurso de Tognini, composto por uma amálgama de
religião e política, Deus e o diabo, esclarece que, além de um anticomunismo, havia um
anseio por proselitismo religioso e político. Na verdade, a dimensão política imbricava-se
com a dimensão religiosa num discurso político-religioso altamente ostensivo. Acentuou-se,
dessa forma, o dualismo das representações religiosas de Tognini, e a intolerância em relação
à política secular cresceu.
Do mesmo jeito que é possível notar uma insinuação proselitista de Tognini,
também se verifica que, como se constatou, num dos pareceres da Comissão dos 13, acha-se
que o Movimento de Renovação Espiritual estava cultivando “uma atitude de orgulho
espiritual que não” queria admitir “opiniões opostas e que classifica os que não
experimentam as mesmas emoções e experiências de carnais e mundanos”. Além disso, a
Comissão denuncia que o Movimento de Renovação Espiritual por estar promovendo
“tentativas ostensivas ou veladas de proselitismo entre outras igrejas”.
Assim, a Comissão dos 13, com certa sensibilidade ecumênica, afirma que as
atitudes desses pastores envolvidos com o Movimento de Renovação Espiritual poderiam
afetar negativamente o relacionamento entre as igrejas. Ainda no ambiente da Conferência do
Nordeste, constata-se, através de Ebenézer Gomes Cavalcante que inclusive os batistas foram
influenciados nas concepções ecumênicas, o que teria impactado muito significativamente o
pensamento batista da década de 1960 e contribuído para a identificação de atos proselitistas
no Movimento liderado por Tognini
344
.
Desse modo, Cavalcante, influente pastor e articulista de O Jornal Batista,
em seu artigo acerca do “Diálogo Ecumênico”, publicado em 26 de janeiro de 1963, alega
que alguns batistas estavam tão “familiarizados com” a “experiência ecumênica que não
medem a que ponto muitos de seus irmãos ainda não o fizeram”. Abordando as questões de
“intransigência doutrinária”, Cavalcante declara que seria necessária a convivência pacífica
das igrejas, bem como o “diálogo salutar” 345 .
O que parece estar em foco é um fundamentalismo do Movimento de
Renovação Espiritual que, fazendo amálgamas entre religião e política, promoveu uma busca
por fundamentos absolutos no interior dos discursos, onde Deus e o diabo marcam um
dualismo para além de mera compreensão espiritual. Utilizou-se das experiências religiosas
dos integrantes do Movimento para uma fundamentação dos pressupostos que seriam
axiomáticos, denotando um drástico absolutismo, contrário a um suposto comunismo.
344
345
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti, p. 214 e 215.
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti, p. 215.
157
Para Scott R. Appleby, o sistema de pensamento do fundamentalismo é
absolutista, pois pretende a propagação de “uma verdade plena, perfeita e imutável”, bem
como de uma verdade que esteja “isenta de qualquer dúvida”. Segundo o autor, a verdade
dos fundamentalistas tem sempre um caráter dualista: “nós somos os filhos da luz e todos os
outros são filhos do mal”. Os fundamentalistas tendem a combater aqueles a quem
denominam “inimigos de Deus”
346
.
Assim, os que não criam da maneira como o Movimento de Renovação
Espiritual cria, deveria m se arrepender e experimentar o batismo no Espírito Santo. Da mesma
maneira, os que não se tornaram anticomunistas, como os mencionados “militares” e alguns
“seminaristas”, bem como alguns “pastores evangélicos” seriam inusitadamente vinculados
ao diabo por contas de suas posições supostamente errôneas do ponto de vista de Tognini.
Dessa maneira, tanto doutrinariamente como na política denominacional e secular, a
intolerância instaura-se numa eclosão específica por entre as mixórdias do cotidiano
denominacional e político. O fundamentalismo ganha seu formato renovado devido ao seu
posicionamento extremado e às novas experiências religiosas em torno da legitimação do
batismo com o Espírito Santo e suas conseqüê ncias.
O fundamentalismo político de Enéas Tognini o levou a se declarar contrário
ao comunismo, sob a alegação de uma pregação conversionista nas categorias bíblicas.
Contudo, na presença do oficial que teria lhe chamado, tendo afirmado sua posição de
contrariedade, também denota certo contato com o mundo militar. Estaria Enéas Tognini e o
Movimento de Renovação Espiritual envolvidos de alguma forma mais direta com o golpe de
1964 ou realmente teriam entendido a questão como um embate espiritual entre Deus e o
diabo? A que extremo teria chegado o fundamentalismo ora exposto? Seria apenas um desejo
por proselitismo ou Tognini estaria vinculado a alguma ação do militarismo de então?
Segundo Tognini, houve, durante a campanha de jejum, oração e
humilhação, inúmeras experiências de “lágrimas, profecias e revelações”. Assim, podem-se
constatar experiências de êxtase até mesmo no ensejo de uma divergência político-religiosa,
mesma estratégia utilizada na política denominacional. Para Tognini, o Presidente da
República, que seria vinculado ao comunismo chinês 347 , foi deposto e os militares assumiram
o poder como expressão da vontade absoluta de Deus
346
348
.
APPLEBY, R. Scott. Ingenieure des göttlichen Bauplans: Was haben die Fundamentalisten aller Religionen
gemein? In: Der Überblick: Zeitschrift für ökumenische Begegnung und Zusammenarbeit, p. 5.
347
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 149.
348
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 162.
158
Conforme Scott R. Appleby, os fundamentalistas tendem a aproveitar a
capacidade das religiões de produzir êxtases e abstrair pessoas de suas realidades. Tais
experiências extáticas teriam como objetivo a preparação dos ativistas para “assumir
sacrifícios radicais” contra algum tipo de movimento 349 . Levando-se em consideração a
história do Movimento de Renovação Espiritual, não são raras as vezes em que se podem
verificar as ações dos líderes do Movimento no intento de conduzir pessoas a diversas
tomadas de decisões.
Deve-se levar na mais absoluta conta o período de crise que o Brasil estava
atravessando, pois, tendo se agravado no segundo semestre de 1963 com a greve dos bancos,
a crise também foi intensa quando Carlos Lacerda concedeu uma entrevista ao jornal Los
Angeles Times criticando Goulart veementemente. Skidmore chegou a afirmar em seu livro
Brasil: de Getúlio a Castelo. 1930-1964 que o Presidente João Goulart “era tido geralmente
pela esquerda e pela direita como incapaz de governar”350 . Portanto, a crise era notória e a
fragilidade do Estado confirmava-se a cada dia, pois tudo estava culminando para um caos
político.
Dessa maneira, Scott R. Appleby atrela o sucesso do fundamentalismo aos
Estados autoritários ou aos Estados mais frágeis 351 . Ora, a fragilidade do governo Goulart
propiciou as ações fundamentalistas não somente de protestantes, mas também de católicos.
Enéas Tognini, compondo o fundamentalismo militante do Movimento de Renovação
Espiritual, parece ter sido influenciado por correntes totalitárias mais presentes na política
secular. Qual seria a relação do fundamentalismo do Movimento de Renovação Espiritual
com o fundamentalismo político dos militares que tomaram o poder e depuseram Goulart?
Por que justamente Tognini foi chamado pelo oficial do segundo Exército?
Para Michel de Certeau, quando trata “Do poder “espiritual” à oposição de
esquerda”, verifica-se que existe, em face de uma ordem já estabelecida, a relação entre a
igreja que incita um pensamento acerca do “outro mundo” e os partidos de esquerda, os
quais, desde o século XIX, transmitem a idéia de “um futuro diferente”. Essa relação pode
evidenciar traços bastante parecidos, tanto numa parte como na outra, pois, segundo o autor,
há características funcionais semelhantes:
349
APPLEBY, R. Scott. Ingenieure des göttlichen Bauplans: Was haben die Fundamentalisten aller Religionen
gemein? In: Der Überblick: Zeitschrift für ökumenische Begegnung und Zusammenarbeit, p. 5.
350
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo.1930-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 311.
351
APPLEBY, R. Scott. Ingenieure des göttlichen Bauplans: Was haben die Fundamentalisten aller Religionen
gemein? In: Der Überblick: Zeitschrift für ökumenische Begegnung und Zusammenarbeit, p. 7.
159
“A ideologia e a doutrina desempenham aí um papel
importante que não lhes é dado pelos detentores do
poder; o projeto de uma outra sociedade tem aí como
efeito o papel prioritário do discurso (reformista,
revolucionário, socialista etc.) contra a fatalidade ou a
normalidade dos fatos; a legitimação por valores éticos,
por uma verdade teórica ou por um martirológio deve
compensar aí a legitimidade com a qual pode se fazer
acreditar todo poder pelo mero fato de sua existência; as
técnicas do “fazer crer” desempenham um papel mais
decisivo onde se trata daquilo que ainda não é”. 352
Portanto, qualquer que seja o objeto de uma propagação, se religiosa ou
política, se comunista ou do Movimento de Renovação Espiritual, haverá sempre traços
parecidos entre os movimentos. Contudo, o ideal de uma sociedade melhor, às vezes, é regido
pelo fundamentalismo político-religioso nos discursos e, como no caso em tela, até mesmo
com o extremismo de vínculos com o militarismo anticomunista. Foram empregadas técnicas
específicas para “fazer crer”, o que no fundamentalismo é bastante notório, principalmente
nas ações que envolvem experiências extáticas.
“Esta analogia tem razões estruturais: elas não remetem
diretamente a uma psicologia da militância ou a uma
sociologia crítica das ideologias, mas antes de tudo à
lógica de um “lugar” que produz e reproduz, como seus
efeitos, as mobilizações militantes, as táticas do “fazer
crer” e das instituições eclesiais em uma relação de
distância, de competição e de transformação futura em
relação aos poderes estabelecidos”. 353
Portanto, Tognini teve seu lugar de diálogo, assim também o Movimento de
Renovação Espiritual. A lógica do lugar que produziu discursos e ações bélicas, também
reproduziu proselitismos e fundamentalismos. Tudo isso se tornou possível pelas
mobilizações militantes e através das táticas do “fazer crer”. Assim, o fundamentalismo
renovado de Tognini, de seus companheiros e do Movimento se enunciou em prol de um
fundamentalismo político-militar que, tendo demonizado o comunismo, cristalizou-se na
perspectiva de um proselitismo ousado e ostensivo, como quis dizer a Comissão dos 13.
Desde o nascedouro, o Movimento de Renovação Espiritual, através de seus
proponentes, apresenta-se como propiciador de experiências extáticas. Como se verificou, as
experiências fundantes e as demais experiências foram regidas pelo sentimento de possessão
352
353
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 284 e 285.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, p. 285.
160
da divindade, o que lhes conferia legitimidade por meio do batismo no Espírito Santo. Dessa
forma, ocorria a adesão ao grupo militante. Outrossim, Tognini propôs, à semelhança do
Senado do Presidente Abraham Lincoln, um dia de “jejum, oração e humilhação” para obter
vitória contra o comunismo e contra o diabo que regia os marxistas.
O Movimento de Renovação Espiritual, desde quando a mensagem de
Rosalee Mills Appleby influenciou alguns dos que se tornaram os principais propagandistas
do Movimento, buscou instaurar-se como uma forma verdadeira de se praticar religião,
estabelecendo pressupostos absolutos no que tange à doutrina do Espírito Santo e à vivência
da fé. Destarte, Tognini e Rego fizeram-se bastante firmes no intento de divulgar e
fundamentar as concepções pentecostais acerca do Espírito Santo e, com isso, também
encontraram oposição institucional, pois as experiências religiosas divulgadas por eles não
eram praticadas entre os batistas brasileiros. O próprio Tognini reconhece sua oposição:
“Quando experimentei o poderoso batismo no Espírito
Santo, todo o mundo me aplaudia. Quando, porém, os
líderes denominacionais tomaram posição contra a obra
do Espírito, um grande número de pastores se levantou
para me combater Muita coisa para me denegrir, nunca
lhes respondi. Entreguei tudo a Deus. Um após outro,
quase todos foram recolhidos pelo Senhor”. 354
No ensejo da experiência religiosa de Tognini com o batismo no Espírito
Santo, houve uma mudança drástica na maneira com que foi visto pelo conservadorismo
batista, pois, antes dessa experiência, ele também pertencia à ala dos pensadores batistas,
sendo um pastor de renome, dirigente do Colégio Batista Brasileiro de São Paulo e o
fundador da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Entretanto, o que marca a vida de
Tognini foi a experiência de batismo no Espírito Santo e a militância no Movimento de
Renovação Espiritual. Com isso, Tognini reconhece que perdeu muitos amigos e fez novas
amizades, o que indica uma migração e uma transferência de redes de relacionamentos.
O que cristalizou o pensamento de Tognini foi o sentimento de que estava
militando conforme a vontade de Deus, pois, através das ações transcritas por ele nas paginas
de seus livros, verifica-se um grande anseio pela verdade religiosa que impactou sua vida,
como segue :
“Eu era pastor da Igreja Batista de Perdizes.
Terminamos a reunião que ocorria na quarta-feira. À
porta de saída, uma ilustre ovelha do meu pastoreio,
homem de grande cultura e conhecedor profundo da
354
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 99.
161
Bíblia, apertando minha mão me disse: “Vou escrever
um livro para acabar com o seu livro Batismo no Espírito
Santo”. Respondi-lhe com humildade: Doutor, se o meu
livro Batismo no Espírito Santo é tão frágil que o senhor
possa destruir, deve ser destruído, mas se as suas
páginas foram inspiradas pelos céus para uma época
como esta, nem o senhor nem o inferno poderão destruílo”. 355
Percebe-se, portanto, que Tognini concebia seu livro como algo inspirado
por Deus. Assim, a partir de Tognini, sendo autorizado pelo próprio Deus, seu texto não
poderia ser destruído, porque não era frágil e nem mesmo o “inferno” poderia aniquilá- lo. A
autocompreensão de Tognini, e a compreensão de sua literatura, denota o estabelecimento de
supostos axiomas no interior do Movimento de Renovação Espiritual. O belicismo da
abordagem do douto fiel, “ovelha” do pastoreio de Tognini, indica uma oposição em face dos
axiomas por ele pretendidos, pois as proporções dos embates estenderam-se da igreja local
para boa parte da denominação batista.
Com essas formações axiomáticas, formavam-se também percepções
específicas sobre a realidade das coisas. Entretanto, um livro escrito para destruir o
pensamento encontrado em Batismo no Espírito Santo, de Tognini, conforme o autor, não
teria nem mesmo sido publicado e seu autor havia falecido durante as tramas:
“E o livro foi escrito, mas não datilografado. Morava ele
num apartamento no segundo andar. Andava bastante
enfermo. Colocou volumoso manuscrito sobre a mesa e
foi ao banheiro. Sentiu-se mal e foi levado ao hospital
onde uma semana mais tarde veio a falecer. A janela do
apartamento estava aberta e não havia um peso sobre as
páginas. Deu um pé-de-vento e espalhou tudo. A família
lutou para recompor o livro, mas não conseguiu. Pediu a
quatro ilustres pastores para ajudá-la na reconstituição
do livro e não conseguiram. Realmente, E O VENTO
LEVOU...”. 356
Desse modo, sua literatura foi concebida como a verdade e os fatos, à luz da
análise de Tognini, indicam que seu livro e seus pressupostos não eram frágeis e o “inferno”
não poderia detê- los. A insistência do Movimento de Renovação Espiritual, mesmo diante da
vigilância da Comissão dos 13, solidificou-se através da fundamentação da literatura, e as
verdades axiomáticas parecem ter se tornado intolerantes e funestas na Convenção Batista
Brasileira.
355
356
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 135.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 135.
162
O sentimento fundamentalista de que o Movimento de Renovação Espiritual
estava acima de qualquer questionamento e de qualquer ação daqueles a quem os líderes
renovados demonizavam, impregnou-se no discurso e foi considerado por alguns como
arrogância:
“A auto-suficiência demonstrada pelos irmãos da
“Renovação” não passa de forte dose de orgulho
espiritual, o pior e mais condenável de todos os orgulhos.
Tal orgulho conduz o elemento humano a atitudes
imprevisíveis. Isto, sim, é carne em sua expressão total.
Completo domínio do ego, da velha natureza, já agora
exaltada por uma falsa espiritualidade”. 357
O exclusivismo e o fundamentalismo do Movimento de Renovação Espiritual,
de certa forma, foram identificados por Fernandes que alegava que o mencionado Movimento
estava agindo com uma “subestima de todos os demais crentes”. Segundo Fernandes, o
Movimento classificava como carnais:
“Todos aqueles que não passaram pela experiência da
segunda bênção, ou seja, pelo batismo no Espírito Santo,
segundo o dogmatismo infundado de sua doutrina, ou
não os seguem em seu modo de pensar”. 358
Porém, o Movimento de Renovação Espiritual, em sua militância no Brasil,
não esvaecia, antes, fortalecia-se em detrimento dos cânones e dos conclaves batistas, nas
Convenções Batistas Brasileiras e nos seus desdobramentos por meio das campanhas de
evangelização promovidas pelos batistas brasileiros. De forma que, mesmo tendo oposições
bastante formadas, o Movimento não aceitava ser encarquilhado, mas se mostrava
encolerizado ao mesmo tempo em que ocasionava disputas e pensamentos bélicos,
fundamentalistas e axiomáticos. No ímpeto das lutas e das batalhas, o Movimento de
Renovação Espiritual não se enregelou, porque soube criar e, inclusive, soube compor um hino
que expressa o fundamentalismo descrito com bastante propriedade, pois encoraja os
militantes do Movimento a que tenham “reverência” e “muito amor”, bem como a que
entendam que aquela hora histórica era “decisiva” e, portanto, havia a necessidade de
“vigilância e destemor”
357
359
.
Cf. FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 85.
Cf. FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 83.
359
O referido hino é de Rosivaldo de Araújo. Esse pastor vivenciou verdadeiras lutas e disputas na igreja local e
tamb ém na denominação batista. Assim, depois de uma história de muito belicismo, Araújo escreveu essa letra
358
163
“Ninguém detém, é obra santa!
Ninguém detém, é obra santa!
Nem Satã ou o mundo todo,
Hão de apagar este ardor!
Ninguém detém, é obra santa!
Esta causa é do Senhor!” . 360
4.2. Rubens Lopes e Enéas Tognini: Campanhas de Evangelização e Encontros de
Renovação
Rubens Lopes nasceu a 1o de outubro de 1914 361 , na cidade de Caieiras,
Estado de São Paulo. Filho de Antônio Lopes e Maira F. Lopes, teve três irmãos: Miguel,
Antônio e Luiz. Sua família foi bastante envolvida com o trabalho batista no Brasil, pois
Antônio dedicou-se ao pastorado e Luiz, ao diaconato.
Tendo sido batizado a 5 de dezembro de 1923, na Igreja Batista de Santos,
Rubens Lopes cultivou uma vida assídua exercendo sempre funções de liderança. Lopes
bacharelou-se em Ciências e Letras no ano de 1933 pelo Colé gio Batista “Shepard”, no Rio de
Janeiro. Graduou-se em Ciências Teológicas em 1936, pela Faculdade de Teologia da Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil. Também bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais
em 1959, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Lopes foi ordenado ao ministério pastoral a 24 de janeiro de 1938, na Igreja
Batista de Vila Mariana, na cidade de São Paulo. Exerceu as funções de evangelista, de pastor
auxiliar e de pastor titular na referida Igreja, onde permaneceu durante todo o seu ministério.
Após ter atingido grande prestígio denominacional, Lopes foi Presidente da
Convenção Batista do Estado de São Paulo por 28 anos seguidos. Também foi Presidente da
Junta Executiva da Convenção Batista do Estado de São Paulo durante 13 anos seguidos.
Fundou a Ordem dos Pastores Batistas do Estado de São Paulo e a presidiu por 31 anos
que fundamentou uma “verdade” do Movimento de Renovação Espiritual. In: XAVIER, João Leão dos Santos.
Colunas da Renovação, p. 41 a 70.
360
O hino está transcrito no anexo 10.
361
Rubens Lopes faleceu a 3 de novembro de 1979, enquanto trabalhava em seu gabinete pastoral. Informações
obtidas no site da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, Secção São Paulo : http://www.opbbsp.org.br/web/index.php?option=com_content&task=view&id=25&Itemid=41 – Acesso no dia 13 de janeiro de
2008.
164
seguidos. Lopes foi Presidente da Convenção Batista Brasileira por 14 vezes. Finalmente,
exerceu a vice-presidência da Aliança Batista Mundial 362 .
Rubens Lopes foi considerado pela Ordem dos Pastores Batistas do Brasil,
Secção São Paulo, como um dos pregadores mais notáveis de seu período, pois, segundo a
Ordem, o pastor Lopes poderia ser considerado o maior pregador batista brasileiro do século
363
em que viveu e um dos mais destacados do mundo
. Contudo, além do intenso
envolvimento denominacional, Lopes foi conhecido por sua capacidade intelectual, por sua
boa oratória e pelas campanhas que lançou e dirigiu, entre as quais destaca-se: Campanha de
Evangelização de São Paulo e Cidades Adjacentes, em 1962; Campanha Nacional de
Evangelização, em 1965; Campanha das Américas, em 1969; Campanha Mundial de
Evangelização, em Baden, Viena, a 4 de agosto de 1969
364
.
Rubens Lopes teria se dedicado de forma bastante intensa aos preparativos
da Campanha Nacional de Evangelização. O tema da Campanha era: Cristo é a Única
Esperança. Desse modo, Lopes teria percorrido todo o Brasil anunciando a referida campanha
e pregando com base no mencionado tema. Tendo percorrido 103.036 quilômetros de avião e
7. 828 quilômetros em rodovias brasileiras, propagou a mensagem a que se propôs a dois
Presidentes da República, a saber, Castelo Branco e Costa Silva. Também pregou a todos os
Governadores da tribuna de todas as Assembléias Legislativas. Da mesma forma anunciou sua
mensagem nas tribunas de todas as Câmaras Municipais das Capitais. Também falou em
Tribunais de Justiça e a alguns componentes do Supremo Tribunal Federal. Finalmente,
pregou aos Ministros da Guerra, tanto da Marinha, quanto da Aeronáutica e dos comandantes
dos Quatro Exércitos, bem como aos comandantes de todas as Regiões Militares
365
.
Dessa forma, vê-se com clareza que o intento de Lopes também era o de
pregar para as autoridades, entre as quais destacam-se os militares. Ora, está-se falando de um
período pós-golpe militar e, desse modo, também de um período de consolidação da ditadura
que se fez presente no Brasil. Portanto, suscita-se uma indagação: estaria Rubens Lopes
pregando contra o Governo Militar por não concordar com ele ou estava prestigiando o
362
Dados obtidos na internet: http://www.luz.eti.br/rubenslopes.html - Acesso no dia 14 de janeiro de 2008.
http://www.opbb-sp.org.br/web/index.php?option=com_content&task=view&id=25&Itemid=41 – Acesso no
dia 13 de janeiro de 2008.
364
Informações obtidas no site da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, Secção São Paulo: http://www.opbbsp.org.br/web/index.php?option=com_content&task=view&id=25&Itemid=41 – Acesso no dia 13 de janeiro de
2008.
365
http://www.luz.eti.br/rubenslopes.html – Acesso no dia 14 de janeiro de 2008.
363
165
referido Governo por pregar a ele? E ainda: teria Lopes o mesmo objetivo político-religioso
de Tognini ou entendia que todos deveriam ouvir sua mensagem?
As campanhas lideradas por Lopes não foram as únicas que aconteceram,
pois também o Movimento de Renovação Espiritual propôs e realizou campanhas
denominadas Encontros de Renovação Espiritual, que pareciam fortemente vinculadas aos
desejos de seus líderes, os quais, por sua vez, se contendiam nas disputas no seio da
Convenção Batista Brasileira.
Existem indícios de que a Campanha Nacional de Evangelização tenha sido
uma resposta ao golpe militar de 1964:
“Em 1965, foi realizada a Campanha Nacional de
Evangelização, como uma espécie de resposta ao golpe
de 1964. Seu tema foi “Cristo, a Única Esperança”,
implicando que as soluções meramente políticas eram
insuficientes. O coordenador da campanha foi o Pr.
Rubens Lopes”. 366
Dessa forma, concomitante à ação política de Tognini em favor dos militares
no Brasil, estava Lopes e seus liderados pregando a insuficiência das ações políticas. Utilizouse, portanto, do momento político do Brasil para lançar uma Campanha que visava à
evangelização e ao aumento denominacional.
Contudo, segundo Tognini, a “grande campanha dos batistas brasileiros em
1965, presidida por Rubens Lopes, foi um fracasso”. Para o autor, o objetivo da Campanha
Nacional de Evangelização, dirigida por Lopes, era o de alcançar 500 mil pessoas para os
batistas brasileiros. Entretanto, apenas 10 mil pessoas, que teriam participado da Campanha
haviam se batizado em igrejas batistas, integrando-se a elas 367 .
“Mas a grande campanha foi lançada com o propósito de
acabar com a renovação espiritual. Alguém poderá deter
o poder do Espírito Santo? Ninguém detém... é obra
santa... nem satã, nem o mundo todo podem apagar esse
ardor”. 368
Assim, Tognini parece demonizar a Campanha Nacional de Evangelização,
porquanto se coloca como alguém que privilegia as expressões do Espírito Santo e afirma que
satã não poderia deter o ardor do Movimento de Renovação Espiritual. Dessa forma,
366
http://www4.mackenzie.com.br/7071.html - Acesso no dia 13 de janeiro de 2008.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 95.
368
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 96.
367
166
entendendo a Campanha como o objetivo de “acabar com a renovação espiritual”, Tognini
associa sua ação como a oposição satânica ao mencionado Movimento.
“E, com a Grande Campanha de 1965, os Batistas
Brasileiros pensaram em liquidar Renovação Espiritual.
A movimentação dessa campanha foi gigantesca.
Gastaram rios de dinheiro. O resultado desse colossal, e
até louvável, esforço não compensou a canseira e os
gastos exagerados. O alvo supremo dessa “Campanha”
– sufocar Renovação Espiritual, não foi alcançado”. 369
Julgando Tognini que o Movimento de Renovação Espiritual se tratava de
“obra santa”, também parece dizer que ninguém pertencente à Convenção Batista Brasileira,
poderia deter tal Movimento. Da mesma forma, tendo dito que a Campanha Nacional de
Evangelização fora realizada no propósito de “acabar com a renovação espiritual”, entendese que Lopes era opositor ao Movimento e, por isso, havia usado o pretexto da evangelização
para ofuscar o referido Movimento de Renovação Espiritual.
No entanto, para Ferreira, houve uma influência positiva de um determinado
“Período de expansão evangelística e missionária” ocorrido a partir da década de 1960 no
seio da Convenção Batista Brasileira.
“Houve clarinadas, reuniões de despertamento,
conferências aqui e ali, com pregadores até de outros
estados. O âmbito nacional foi também atingido pela
Primeira Campanha Nacional de Evangelização. Foi
uma grande bênção esse movimento entre os batistas do
Brasil, resultado de esforço conjunto de pastores e
igrejas, incentivadas pelo Pastor Rubens Lopes, que
muito fez para que se alcançasse o alvo desejado”. 370
Em seus textos, Enéas Tognini deixa evidente uma oposição de Lopes e da
Convenção Batista Brasileira em relação ao seu ministério e ao Movimento de Renovação
Espiritual. Todavia, tendo em vista uma suposta aversão de Lopes em relação à sua pessoa,
Tognini também parece deixar claro um sentimento de oposição em relação a Lopes, o que
faz por meio da explicitação de sua memória acerca de diversos supostos fatos ocorridos no
relacionamento entre os referidos líderes. Portanto, parece haver uma rixa entre Tognini e
Lopes:
369
370
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 161 e 162.
FERREI RA, Ebenézer Soares. História dos Batistas Fluminenses, p. 173.
167
“Era o ano de 1964. Os pastores batistas do Estado de
São Paulo se reuniram no acampamento de Sumaré.
Compareci, pois continuava ligado à Igreja Batista de
Perdizes, portanto, estava ligado à Ordem de Pastores.
Após o almoço, Pr. Rubens Lopes, Presidente da Ordem
de Pastores, na presença do Pastor Alberto Blanco de
Oliveira, que ficou à frente da Igreja de Perdizes, e
portanto, era o meu pastor, convidou-me a deixar o
retiro, o que fiz na mesma hora”. 371
Desse modo, averigua-se que havia determinada contenda entre Lopes e
Tognini, até mesmo por causa das memórias cultivadas por Tognini. Sabe-se que Lopes foi o
presidente da Convenção Batista Brasileira, a qual, no período de sua atuação, experimentou o
primeiro cisma na história dos batistas no Brasil. Contudo, também se verifica a atuação de
Tognini, que parece ter levado a cabo todas as experiências político-religiosas até mesmo com
as possibilidades de divisão denominacional, o que ocorreu em 1965 como se descreveu no
capítulo anterior.
Entrementes, além das campanhas dirigidas por Lopes, havia campanhas
dirigidas por Tognini, os já mencionados “Encontros de Renovação Espiritual”. Ocorreram
dois Encontros de Renovação Espiritual bastante decisivos no embate denominacional, um
realizado em julho de 1964, no templo da Igreja Batista da Floresta, em Belo Horizonte, e
outro, no auditório da Secretaria da Educação, no centro de Belo Horizonte, em julho de 1965
372
.
“A finalidade desse primeiro encontro, dizia-se, era uma
espécie de conferência teológica sobre Reavivamento
Espiritual, aliás, expressão muito em voga naquela
década, no Brasil”. 373
Para Fernandes, havia um interesse de fundamentar teologicamente o
Movimento de Renovação Espiritual, porém, segundo o autor, o encontro se tornou um lugar
de culto interdenominacional, onde todos os grupos tiveram livre acesso à palavra. Segundo
Fernandes, o conclave gerou esperanças, mas frustrou grande parte delas, porquanto se tornou
um lugar de protestos e embates denominacionais, ocasionando cultos fortemente
carismáticos e um “inequívoco saldo de decepções, constrangimento e tristeza” 374 .
Conforme Fernandes, o Movimento de Renovação Espiritual preparou um
segundo “Encontro de Renovação Espiritual”, pois queria reparar os danos causados no
371
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 93.
Cf. FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 18 e 19.
373
Cf. FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 18.
374
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 19.
372
168
primeiro. Segundo Ferna ndes, “ouvia-se, na ocasião, que sua finalidade era corrigir os
equívocos do primeiro encontro”
375
. Porém, esse não foi o motivo maior do segundo
encontro:
“Um motivo maior, entretanto, sobressaía aos demais: as
igrejas batistas que a esta altura já haviam sido
desligadas do rol de igrejas cooperantes com a
Convenção Batista Brasileira não queriam permanecer
isoladas. Era iminente a disposição de se organizarem
em Convenção de âmbito nacional, medida, a nosso ver,
justa e conveniente, uma vez que o número das tais era
bem elevado em todo o território brasileiro. Por não
quererem ficar marginalizadas é que se organizaram,
posteriormente, em Convenção Batista Nacional”. 376
Portanto, além da Campanha Nacional de Evangelização, também
aconteceram os “Encontros de Renovação Espiritual”, estando Rubens Lopes e Enéas
Tognini integrados em redes diferentes. Para Fernandes, os encontros promovidos pelo
Movimento de Renovação Espiritual marcaram uma rivalidade bastante contundente entre as
redes de poder, pois se nota que havia líderes entrincheirados e prontos para as batalhas.
Conforme Fernandes, os anos de 1964 e 65 foram bastante “movimentados” devido aos
preparativos para a Campanha Nacional de Evangelização, contudo, segundo o autor, as
“chamadas Igrejas da Renovação não queriam participar da Grande Campanha”. Por sua
vez, os líderes da Convenção Batista Brasileira também não queriam que os integrantes do
Movimento de Renovação Espiritual participassem, porquanto haviam tomado conhecimento
do primeiro “Encontro de Renovação Espiritual”, que fora classificado como pentecostal 377 .
Desse modo, Fernandes faz uma declaração que evidencia o belicismo do
período, a saber: “uma coisa é participar de uma batalha à distância, outra é participar de
dentro das trincheiras”
378
. Os encontros promovidos pelo Movimento de Renovação
Espiritual e por Tognini parecem indicar trincheiras e nas campanhas lideradas por Lopes
ocorre de igual forma, pois também este não permitiu participação dos integrantes do
mencionado Movimento em suas frentes evangelísticas.
A história, sendo considerada como bélica, concede uma amostragem das
relações de força que posicionou sujeitos religiosos por detrás de trincheiras muito bem
definidas e le gitimadas por ações experienciais. Assim, o embate se travou no seio da
375
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 19.
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 20.
377
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 17.
378
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação Espiritual no Brasil, Erros e Verdades, p. 16.
376
169
Convenção Batista Brasileira, porque as trincheiras foram bem definidas: conservadores, com
Rubens Lopes, seus mecanismos e táticas de ações; renovados, com Enéas Tognini, suas
táticas e mecanismos de ações.
170
Considerações Finais
O pentecostalismo brasileiro, mesmo diante de influências estrangeiras, é
bastante específico. Porém, no final das décadas de 1950 e 1960, verifica-se uma
operacionalização carismática no seio de denominações históricas, entre as quais se averiguou
a atuação do Movimento de Renovação Espiritual na Convenção Batista Brasileira.
Num processo altamente dinâmico de implantação do pentecostalismo no
Brasil, Freston e Mariano, bem como outros, advogaram periodizações através de um
tratamento dos movimentos com base na idéia de ondas. Entretanto, como se verificou, para o
objeto da pesquisa, não se pode aplicar com segurança as noções cunhadas pelos referidos
autores, conquanto haja um certo vazio na idéia de ondas, pois falta um lugar para o
Movimento de Renovação Espiritual, o qual atuou em meio aos batistas no Brasil.
Contudo, pode-se preencher o vazio que a idéia de ondas deixa em relação à
atuação do referido Movimento, se for considerado que seu lugar de atuação é altamente
bélico. Assim, o pentecostalismo da década de 1960, em especial na Convenção Batista
Brasileira, promoveu conflitos de poder no seio de uma denominação histórica. Portanto, para
os batistas da época mencionada, houve uma dinamização no lugar histórico de existir,
porquanto se passou a praticar nele. Dessa maneira, o Movimento de Renovação Espiritual
ocupa um lugar político-religioso altamente bélico, porquanto, através das militâncias,
promove m-se guerra e grande mobilidade na Convenção Batista Brasileira.
Toda a credibilidade e influência da missionária Rosalee Mills Appleby
foram fundamentais para proporcionar algumas concepções essenciais que embasaram o
Movimento de Renovação Espiritual. A missionária introduziu, através de sua literatura e
vivência, determinado anseio por experiências pentecostais, o que ocasionou um desequilíbrio
doutrinário, pois inúmeras pessoas começaram a buscar o batismo no Espírito Santo como
sendo subseqüente ao momento em que se entendia ser o da salvação do espírito humano.
Ressalta-se, no entanto, que a missionária sempre foi bem quista entre os
batistas brasileiros, até mesmo entre os que não concordavam com suas concepções
doutrinárias e experienciais. Em muito, atribui-se sua aceitação ao fato de que era missionária
norte-americana, algo bastante valorizado entre os batistas brasileiros à época. A princípio,
estranha-se a aceitação de uma liderança feminina entre as igrejas batistas no final da década
de 1950, porém, antes da morte de seu marido, a missionária começou a conquistar a
confiança e a simpatia nas igrejas do Estado de Minas Gerais e de outras partes do Brasil. É
171
bastante interessante observar que, além de Rosalee Mills Appleby, não houve nenhuma
liderança feminina forte no Movimento de Renovação Espiritual. Entretanto, a própria
missionária parece ter influenciado uma liderança masculina que parece ser bastante seleta,
uma vez que incluía importantes líderes no seio da Convenção Batista Brasileira.
No entanto, após o início do Movimento de Renovação Espiritual, o que
parece ter sido no ano de 1956, Rosalee Mills Appleby retornou aos Estados Unidos. Seu
retorno se deu no ano de 1960. Assim, a missionária não vivenciou os conflitos que
conduziram a denominação batista no Brasil ao primeiro cisma de sua história. Não se pode
constatar precisamente o motivo que impulsionou o retorno da missionária, mas questiona-se
se ela realmente teria voltado por conta de problemas de saúde, se o Movimento de
Renovação Espiritual deixou de agradá- la ou se havia atingido o senso de missão cumprida,
dado o início da militância do Movimento de Renovação Espiritual.
Dois proeminentes pastores batistas foram motivados à militância no referido
Movimento com a pregação de Rosalee Mills Appleby, são eles: José Rego do Nascimento e
Enéas Tognini.
Tendo José Rego do Nascimento alegado uma experiência de batismo no
Espírito Santo, iniciou sua principal tarefa, a saber, a disseminação das idéias pentecostais, as
quais adquiriu por meio de leituras acerca de avivamentos, de leituras dos pensamentos da
missionária americana e pela formulação de uma experiência que se alastrou por entre
diversos grupos no interior da Convenção Batista Brasileira. Rego, por ser um bom orador, foi
o pastor que vivenciou experiências prévias e as reproduziu na denominação batista,
porquanto se verificaram experiências extáticas promovidas por suas reuniões, entre as quais
destacam-se as experiências religiosas vivenciadas no interior da biblioteca do Seminário
Teológico Batista do Sul do Brasil.
Portanto, Rego se tornou o propagandista do Movimento de Renovação
Espiritual, contribuindo significativamente para sua constituição e desenvolvimento, pois se
sentia habilitado e inscrito na experiência pentecostal através da sensação de sua possessão
por parte da divindade chamada Espírito Santo. Rego, quando, através da socialização de
experiências carismáticas, se constituiu em rede de poder, também teve de enfrentar a
oposição das redes de poder oficiais no interior da Convenção Batista Brasileira. Assim que,
durante a madrugada, ecoou o barulho da experiência religiosa de Rego e dos seminaristas,
para além das paredes da biblioteca e dos corredores do Seminário Teológico Batista do Sul
do Brasil, a repressão oficial fez-se ouvir por meio das vozes oficiais que foram mencionadas
no segundo capítulo.
172
Assim, Rego, além de sofrer pressões denominacionais e de ter
pressentimentos sobre o próprio futuro, bem como sobre o futuro da denominação batista no
Brasil, também sofreu oposição na Igreja Batista da Lagoinha, a qual pastoreava. Tal conflito,
inclusive por uma questão inusitada sobre o patrimônio da Igreja, também desencadeou uma
abrangência nas redes de poder do Movimento de Renovação Espiritual, pois algumas igrejas
ajudaram a Igreja Batista da Lagoinha e a ela prestaram solidariedade; no entanto, outros se
fizeram opostos ao Movimento em curso no Brasil e, portanto, a Igreja Batista da Lagoinha,
pastoreada por Rego. Por isso, muitas congregações batistas sentiram-se presentes no
aprofundamento dos conflitos e na ampliação das redes de poder neles envolvidas.
Quando Enéas Tognini teve contato com a mensagem do Movimento de
Renovação Espiritual, através, principalmente, de Rosalee Mills Appleby, também alegou um
batismo no Espírito Santo. Tognini narra a experiência de uma suposta voz de Deus pedindo
para que ele entregasse algumas coisas, quais sejam: sua biblioteca, a direção do Colégio
Batista Brasileiro, o pastorado na Igreja Batista de Perdizes e até mesmo sua família. Para
Tognini, esses eram ídolos que tiveram de ser deixados no momento em que se procedeu a seu
batismo no Espírito Santo.
Desse modo, com adesão bastante marcante ao Movimento de Renovação
Espiritual, Enéas Tognini assume uma frente bélica no seio da denominação batista, tanto que
Almeida o chama de novo e destemido comandante, alegando que sua vinda ao exército do
Movimento de Renovação Espiritual não foi como soldado, mas como comandante forte
379
.
De fato, o Movimento de Renovação Espiritual adquiriu o caráter belicista e também
impulsionou confrontos na Convenção Batista Brasileira. Entretanto, evidentemente, as redes
de poder conservadoras também se constituíram e se posicionaram para a batalha. Enéas
Tognini alegrava-se crente e “até um pouco mais”, porquanto era batista e havia sido batizado
no Espírito em 1958, se tornando um combatente fiel em prol das causas do avivamento de
então e contrário aos conservadores da denominação batista.
380
Assim, a experiência extática ocorrida no interior do Seminário Teológico
Batista do Sul do Brasil despertou os conservadores para o que estava ocorrendo entre os
batistas no Brasil, servindo também como episódio e experiência religiosa fundante do
Movimento de Renovação Espiritual, com o início da solidificação e propagação do referido
Movimento. É deveras importante a percepção acerca da mobilidade da experiência religiosa
vivenciada nesse ensejo, pois tratou-se de inscrições numa rede de poder que subverteu o
379
380
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 109.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia, p. 77.
173
significado acadêmico do lugar chamado biblioteca, porque os seminaristas que antes
praticavam naquele lugar tornando-o espaço de crescimento intelectual e teológico, agora
transformam- no em um lugar não oficial de experiências religiosas em meio a uma
madrugada de autenticações religiosas, o que promoveu uma dinâmica marcante no
pensamento do Movimento de Renovação Espiritual, porque os militantes, como Enéas
Tognini, pregavam uma certa superação dos preceitos acadêmicos pelas experiências
pentecostais.
Dessa forma, depois da experiência religiosa vivenciada na biblioteca do
referido Seminário, houve uma intensificação das propagandas realizadas por Rego, as quais
foram corroboradas no reforço de uma formulação doutrinária por Enéas Tognini, que
ofereceu embasamento e apoio na militância entre os batistas brasileiros. Contudo, Rego
desenvolveu certo pressentimento de que a Igreja Batista da Lagoinha seria desligada da
Convenção Batista Mineira. O cisma ocorrido entre as igrejas batistas do Estado de Minas
Gerais suscita a indagação: estaria o Movimento de Renovação Espiritual fo rçando um cisma
denominacional ou Rego pressentiu com facilidade e ao acaso?
Portanto, após o cisma na Convenção Batista Mineira, a Convenção Batista
Brasileira, através de sua assembléia anual, ocorrida em janeiro de 1962, constituiu a
Comissão dos 13 para o estudo da doutrina do Espírito Santo. A mencionada Comissão fora
classificada no terceiro capítulo como um dispositivo panóptico muito bem armado, como
preconizou Rubens Lopes
381
. A partir de Foucault pode-se interpretar a constituição da
Comissão dos 13 como uma tentativa institucional de disciplinar e controlar o movimento
dissidente que, por sua vez, reorganizou-se no exercício da “microfísica” do poder e da
fragmentariedade do poder, pelo qual se intentou um sistema de vigilância plena, que, no
presente texto, se verificou em sua operação no bojo de uma antidisciplina nas categorias de
Certeau. Desse modo, com Foucault, pode-se conceber uma reorganização do poder de forma
eficaz e capilar, sendo que se considerou melhor vigiar do que punir. Ressaltando a mecânica
do poder, o teórico demonstrou a maneira como o poder pode afetar o comportamento
humano tornando-o bélico.
A Comissão dos 13 promoveu a fiscalização no seio da Convenção Batista
Brasileira, conquanto três de seus integrantes eram contrários e três, favoráveis ao Movimento
de Renovação Espiritual. Todavia, sete dos integrantes eram tidos por neutros, mas se
posicionaram de forma contrária ao Movimento, o que ocasiona dúvidas acerca da veracidade
381
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 9.
174
da posição inicial de neutralidade dos sete integrantes mencionados. Por que, então, todos
aqueles que se diziam neutros apoiaram os que eram contrários ao Movimento de Renovação
Espiritual?
Além de fiscalização, a formação da Comissão dos 13 indica que a
Convenção Batista Brasileira tinha um vazio doutrinário bastante sério, pois não teve como
lidar com as concepções pentecostais do batismo no Espírito Santo utilizando-se de um
cânone, até mesmo porque não havia nenhuma declaração doutrinária elaborada
plausivelmente, que atendesse ao anseio daqueles que buscavam respostas sobre o batis mo no
Espírito Santo. Inicialmente, a Comissão dos treze não definiu o que realmente era a doutrina
do batismo no Espírito Santo. No entanto, chegaram ao consenso de que, ao longo dos anos, a
expressão “batismo no Espírito Santo” não foi definida nas declarações doutrinárias dos
batistas brasileiros.
Porém, a Comissão dos 13 admitiu que não era prática dos batistas no Brasil
a crença no batismo com o Espírito Santo como “segunda bênção”, ou seja, como
subseqüente ao ato de salvação pessoal do crente, nas categorias batistas. Da mesma maneira,
a “glossolalia” e o dom de curas foram rejeitados pela Comissão. Contudo, a Comissão dos
13 oferece uma denúncia bastante importante naquela conjuntura, porquanto há a afirmação
de que os integrantes do Movimento de Renovação Espiritual estavam fazendo
“proselitismo” e que isso seria prejudicial no relacionamento com outras igrejas e no interior
da Convenção Batista Brasileira. Parece confirmar-se, com base no que fora exposto, uma
sensibilidade ecumênica por parte dos batistas no Brasil e, da mesma maneira, começa-se a
verificar uma formação fundamentalista no Movimento de Renovação Espiritual, porquanto
cristalizaram alguns preceitos como sendo axiomáticos.
No entanto, mesmo com o avanço na tecnologia do poder, através da arte de
vigiar, houve um retrocesso na política denominacional, pois, depois do esforço e do trabalho
da Comissão dos 13, realizando os devidos apontamentos, a Convenção Batista Brasileira
tornou-se palco de batalhas congregacionais, um poder soberano em que se propôs punir. A
Comissão dos 13, na primeira vez em que apresentou um relatório, poderia cessar seu
trabalho ; no entanto, Rubens Lopes os encorajou a prosseguir, o que indica um esforço para
estabelecer cânones e regras institucionais a fim de chegar a um parecer sobre como um
batista realmente cria no que tange à doutrina do Espírito Santo.
Entretanto, os pressentimentos de Rego do Nascimento e sua saída da
Comissão dos 13, bem como a de Enéas Tognini, demonstrou que havia uma forte vontade de
evidenciar a incompatibilidade do Movimento de Renovação Espiritual com os fundamentos
175
teológicos e políticos da Convenção Batista Brasileira. Houve um anseio muito grande de se
exercer o poder da verdade. No entanto, como se verificou, esse também é um dos
mecanismos de exclusão em âmbito institucional, o qual, em conflito nas redes de poder, fez a
denominação culminar no cisma pentecostal abordado no terceiro capítulo.
Demonstrou-se que o Movimento de Renovação Espiritual, através das
posturas assumidas por Enéas Tognini, solidificou-se em suas bases político-religiosas
fundamentalistas, tanto no que diz respeito à política denominacional, em que Tognini parece
disputar um espaço com Rubens Lopes, travando uma rivalidade e assumindo posturas
fundamentalistas, quanto na política secular, em que Tognini se mostrou contrário ao
Presidente da República, João Goulart, o que caracterizou uma militância anticomunista, a
qual buscou bases nas experiências religiosas e, principalmente, no dia nacional de “jejum,
oração e humilhação”, quando diversas igrejas no Brasil expressaram religiosamente sua
contrariedade ao comunismo com base no medo de Tognini, porquanto este temia que um
regime comunista não permitisse o proselitismo promovido pelo Movimento de Renovação
Espiritual.
Assim, houve uma demonização dos líderes marxistas e do Presidente João
Goulart, bem como dos líderes conservadores que queriam deter o Movimento de Renovação
Espiritual, que privilegiava a militância e alegava deter a verdade por meio do batismo no
Espírito Santo. Ademais, sabe-se que, no caráter bélico do referido Movimento, na
formulação de um fundamentalismo pentecostal, verifica-se um esforço dos líderes José Rego
do Nascimento e Enéas Tognini por deter uma parcela do poder contra os movimentos
supostamente comunistas, que estavam em curso no País. Assim, há grandes possibilidades de
que o cisma tenha sido provocado para que se exercesse liderança, não somente em termos
religiosos, mas também, com a religião, no âmbito da política secular, em que Tognini revela
seu apoio ao golpe militar de 1964.
Suspeita-se, portanto, uma comprovação da primeira “suspeita”, “de que as
experiências religiosas são legitimadoras das atitudes do poder político na história da
Convenção Batista Brasileira”, no período de 1956 e 1965, quando o Movimento de
Renovação Espiritual atuou buscando embasamentos experienciais e doutrinários para a sua
ação. O desequilíbrio político-religioso afetou significativamente a estrutura denominacional
e ocasionou uma verdadeira guerra institucional, onde aqueles que se alegavam batizados pelo
Espírito Santo ingressavam no “exército” do Movimento de Renovação Espírito e, da mesma
maneira, aqueles que negavam a referida experiência juntavam-se ao “exército” institucional
da Convenção Batista Brasileira. No decorrer do texto, foi possível identificar as estratégias,
as táticas e a dominação bélica de redes de poder, umas contra as outras e em nome, ora da
176
experiência com o Espírito Santo, ora com a experiência do “deus” de uma sã doutrina
batista. Nesse sentido, também se verifica uma apropriação de textos bíblicos, principalmente
por parte do Movimento de Renovação Espiritual, que buscava sua legitimação religiosa para
agir sob a política da vigilância denominacional.
Suspeita-se, da mesma forma, que a segunda “suspeita”, “de que cada
sujeito religioso agiu, com base na legitimação do poder a partir das experiências religiosas,
inscrevendo-se por uma opção de favorecimento numa rede de poder”, também se comprova
à medida que se verifica a adesão de sujeitos como José Rego do Nascimento, que abdicou do
pastorado de algumas igrejas querendo uma posição de maior destaque e alcançar o pastorado
na capital mineira, pois procurava uma cidade axial, de onde pudesse partir os ecos do
Movimento de Renovação Espiritual. Da mesma forma, querendo um avivamento nacional,
inscreveu-se no Movimento de Renovação Espiritual para exercer militância, tornando-se o
pastor propagandista do Movimento. Observa-se, de igual forma, Enéas Tognini, que, tendo
uma comprovada ligação com os militares do período em tela, utilizou-se das experiências
religiosas para aderir a redes de poder vinculadas ao Movimento de Renovação Espiritual.
Ficou bastante notório que Tognini almejava a liderança de um grupo pentecostal de
militância para se posicionar contra os conservadores da Convenção Batista Brasileira. Além
disso, algumas redes opositoras de favorecimento surgem e consolidam-se no interior da
denominação batista, tome-se como amostragem a chamada “minoria fiel” da Igreja Batista
da Lagoinha, que teve influência externa para a militância denominacional e no interior da
igreja local.
Entretanto, suspeita-se que a terceira “suspeita”, a qual indica um “avanço
na tecnologia do poder” exercido na Convenção Batista Brasileira, em parte se constata, pois
instaurou-se um dispositivo de vigilância e, num primeiro momento, não houve punição pelo
terror, pois na 44ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira, criou-se uma vigilância que
classifica-se, no presente texto, com os fundamentos panópticos, propostos por Michel
Foucault. Contudo, após os pareceres da Comissão dos 13, houve um retrocesso e a
“microfísica” do poder aparentemente regrediu-se a uma existência “macrofísica”, na qual a
soberania promulga a condenação. Todavia, propôs-se que a vigilância só pode se
operacionalizar nos lugares praticados. Portanto, a disciplina caracterizada por Foucault no
dispositivo panóptico atuou na antidisciplina do desconhecimento das práticas e operações e,
através do desejo da verdade, a 47ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira excluiu 32
igrejas, em janeiro de 1965.
177
Dessa forma, houve um retrocesso muito grande na tecnologia da vigilância,
pois se regrediu a processos inquisitoriais conceitualmente semelhantes aos da Idade Média,
que valorizavam o poder soberano, ocasionando terror e ódio. O panóptico, exercido através
do olhar da Comissão dos 13, deu lugar às operações de uma antidisciplina, onde não se
poderia localizar com exatidão o olhar no palco do congregacionalismo batista. Assim, nesse
constante panóptico do desconhecimento das práticas através de um olhar pouco fixo e
bastante abrangente, uma voz ecoou e a 47ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira
anunciou o retrocesso de um poder que há pouco havia experimentado um avanço
tecnológico.
Em suma, achava-se em foco inúmeras disputas denominacionais, entre as
quais destaca-se a luta pelo espaço e pelos lugares praticados, a saber, por exemplo, entre
Enéas Tognini e Rubens Lopes, entre o Movimento de Renovação Espiritual e o
conservadorismo
da
Convenção
Batista
Brasileira.
Preferiu-se
excluir
e,
muito
provavelmente, preferiu-se buscar a exclusão, pois parece ser verdade que a Convenção
Batista Brasileira criou um dispositivo de vigilância, instigado por alguns para a exclusão, no
entanto; também parece ser verdade que o Movimento de Renovação Espiritual forçou uma
exclusão por não acatar os cânones da denominação e por almejar a liderança de um grupo
político-religioso para a atuação no cenário da política secular no País.
Assim, os batistas no Brasil dividiram- se em dois grandes grupos, pois as
igrejas excluídas da Convenção Batista Brasileira organizaram-se em Convenção Batista
Nacional no ano de 1967, onde se intensificou a luta na política secular, bem como na
preservação dos preceitos pentecostais defendidos vorazmente pelo Movimento de Renovação
Espiritual
382
. Em 19 de julho de 2001, Enéas Tognini, representando a Convenção Batista
Nacional, grupo dissidente da Convenção Batista Brasileira, escreveu uma carta ao Presidente
da Convenção Batista Brasileira, Fausto A. Vasconcelos, na qual consta que “há quarenta
anos atrás Batistas das duas convenções entraram numa guerra fratricida”. Portanto,
reconheceu-se num período recente o belicismo do pentecostalismo do Movimento de
Renovação Espiritual, concedendo bases para afirmar um lugar bélico para as experiências
religiosas do referido Movimento. Ademais, Tognini admite: “ofendemos e fomos ofendidos.
Era guerra e houve muitos feridos”.
Dessa forma, além de reconhecer o caráter bélico do Movimento de
Renovação Espiritual, Tognini, representando a Convenção Batista Nacional, pediu perdão:
382
TOGNINI, Enéas e ALMEIDA, Silas Leite de. História dos Batistas Nacionais, p. 193.
178
“pelo que, na guerra deflagrada pelos ferimentos que causamos aos irmãos, estamos diante
da Cruz do Salvador, pedindo que nos perdoem e orando para que o sangue de Jesus, o
Senhor, nos purifique de todo pecado”
383
.
Em resposta à carta que Enéas Tognini escreveu a 8 de novembro de 2001,
em nome da Convenção Batista Nacional, Fausto A. Vasconcelos, representando a Convenção
Batista Brasileira respondeu-lhe: “No amor de Cristo, aceitamos o arrependimento dos
irmãos conforme os termos de sua carta e estendemos aos amados irmãos a mão do perdão e
da fraternidade em Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador”. E, da mesma maneira, houve um
pedido de perdão: “De igual modo, pedimos aos queridos irmãos que perdoem as ofensas que
certamente cometemos, enquanto reafirmamos nossos princípios e identidades bíblicos”
384
.
Assim, houve uma tentativa de fazer paz depois da guerra. No entanto,
aceitando o pedido de perdão e, de igual forma, pedindo perdão, a Convenção Batista
Brasileira afirma que as ofensas foram cometidas durante o período em que os batistas
reafirmavam os princípios e identidades bíblicos. Portanto, houve o reconhecimento do
belicismo daquele momento e do Movimento de Renovação Espiritual, porém permanece a
diferença, pois Vasconcelos alega que as ofensas cometidas foram no período em que
afirmavam os “princípios e identidade bíblicos” dos batistas no Brasil. Dessa forma, mesmo
depois de algumas décadas, permanece a distância político-religiosa da Convenção Batista
Nacional em relação à Convenção Batista Brasileira.
Em toda a trama ousou-se um desafio ao poder político-religioso, pois no
final da década de 1950 e durante as manifestações do pentecostalismo bélico da década de
1960, embora se tenha noção de alguns caminhos por onde as táticas e estratégias podem
conduzir o transpassar do poder, na verdade, pouco se sabia dos seus custos e conseqüências,
principalmente onde a tecnologia de sua operação modificou-se no avanço e no retrocesso de
seu próprio exercício, como no caso do primeiro cisma na Convenção Batista Brasileira.
Contudo, todo desafio de poder e, qualquer desafio ao poder, culminará no exercício de suas
ações desgovernadas:
383
384
No anexo 12 encontra-se a “carta” na íntegra.
No anexo 13 encontra-se a “carta” na íntegra.
179
“Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente
falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce
numa determinada direção, com uns de um lado e outros
do outro; não se sabe ao certo que o detém; mas se sabe
que não o possui”. 385
Ademais, sabe-se que o Movimento de Renovação Espiritual não atuou
somente na denominação batista, mas também, com propostas parecidas, em outras
denominações históricas, o que provocou cismas pentecostais na década de 1960. Seria assaz
interessante, em uma pesquisa posterior, realizar abordagens acerca da história das
denominações “renovadas” que surgiram a partir dos referidos cismas, pois elaborar-se- ia um
trabalho de pesquisa inédito que, se realizado, contribuirá significativamente para a
compreensão do pentecostalismo bélico daquele período, bem como das suas manifestações
religiosas, por meio das experiências de seus líderes.
385
75.
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In. MACHADO, Roberto (Org). Microfísica do Poder, p.
180
Bibliografia
Fontes Primárias:
1. Jornais
O Jornal Batista. Rio de Janeiro, nov. 1958.
O Jornal Batista. Rio de Janeiro, fev. 1965.
O Estado de S. Paulo. São Paulo. 10 de março de 1964.
O Estado de S. Paulo. São Paulo. 13 de março de1964.
O Estado de S. Paulo. São Paulo. 17 de março de1964.
O Estado de S. Paulo. São Paulo. 21 de março de 1964.
O Estado de S. Paulo. São Paulo. 2 de abril de1964.
2. Atas
CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Ata da Assembléia realizada em janeiro de 1965.
In: Atas, Relatórios e Pareceres da 47ª Assembléia Anual. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1965.
CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Ata da Convenção Batista Brasileira. In: Atas,
Relatórios e Pareceres da 46ª Assembléia Anual. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista,
1964.
CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Atas da Comissão dos 13 constituída pela 44ª
Assembléia da Convenção Batista Brasileira. In: Atas, Relatórios e Pareceres da 45ª
Assembléia Anual. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1963.
3. Folhetos
APPLEBY, Rosalee M. A vida abrasada pelo Espírito. Belo Horizonte: Folhetos de Poder.
APPLEBY, Rosalee M. O Espírito Santo – vida e poder. Belo Horizonte: Folhetos de Poder.
APPLEBY, Rosalee M. Trinta e três razões. Belo Horizonte: Folhetos de Poder.
APPLEBY, Rosalee M. Um avivamento no Brasil. Belo Horizonte: Folhetos de Poder.
181
APPLEBY, Rosalee Mills. O Espírito Santo: vida e poder. Belo Horizonte: Folhetos de
Poder.
APPLEBY, Rosalee Mills. Provisão divina para cada crente. Belo Horizonte: Folhetos de
Poder.
APPLEBY, Rosalee Mills. Um avivamento no Brasil. Belo Horizonte: Folhetos de Poder.
Fontes secundárias:
APPLEBY, R. Scott. Ingenieure des göttlichen Bauplans: Was haben die Fundamentalisten
aller Religionen gemein? In: Der Überblick: Zeitschrift für ökumenische Begegnung und
Zusammenarbeit, 4/96, Hamburg, 1996. (Tradução de Lauri Emilio Wirth).
ARAÚJO, Stepheson S. A manipulação no processo da evangelização. Belo Horizonte:
Lerban, 1997.
AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do indivíduo. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2004.
______________________. A palavra marcada: um estudo sobre a teologia política dos
batistas brasileiros, de 1901 a 1964, segundo O JORNAL BATISTA. Rio de Janeiro:
Dissertação de mestrado, Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
BARBOSA, Celso Aloisio S. O pensamento vivo de Ebenézer Gomes Cavalcanti. Rio de
Janeiro: Souza Marques, 1982.
BASTIAN, Jean-Pierre. Os pentecostalismos: afirmação de uma singularidade religiosa
latino-americana. In: Estudos de Religião 27. Ano XVIII, nº 27, dezembro de 2004, São
Bernardo do Campo, SP: UMESP.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas, vl. 1: Magia e
Técnica, Arte e política. 4.ed., São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 222-232.
BITTENCOURT, José. “As seitas no contexto do protestantismo histórico”. Rio de Janeiro:
Sinais dos Tempos: Igrejas e Seitas no Brasil, Cadernos do ISER, 21, 1989: p. 27-32.
_____________________. “Do messianismo possível: pntecostalismo e mdernização”. In:
SOUZA, Beatriz Muniz. Sociologia da Religião no Brasil. São Paulo: PUC, 1999.
_____________________. “Remédio Amargo”. In: Antoniazzi. Nem anjos nem demônios –
Interpretações sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis, Vozes, 1994.
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre história. São Paulo: Perspectiva, 1996.
182
BURKE, Peter. (org). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da
UNESP, 1992.
_____________________. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR editor,
2005.
_____________________. Variedades de História Cultural. Reio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. Bauru:
EDUSC, 2005.
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2003.
CAMPOS, Leonildo Silveira. “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil:
Aproximações e Conflitos”. In: GUTIÉRREZ, Benjamin E, e CAMPOS, Leonildo Silveira,
Na Força do Espírito – Os Pentecostais na América-Latina: Um desafio ás igrejas históricas,
São Paulo: AIPRAL, 1996.
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
_____________________. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.
_____________________. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996.
_____________________. La debilidad de creer. Buenos Aires: Katz, 2006.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre:
Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
_____________________. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro, Editora Bertrand Brasil , 1990.
_____________________. Escrebir las prácticas: Foucault, Certeau, Marin. Buenos Aires:
Ediciones Manantial, 2006.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1995.
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1963.
COSTA, Icléia Thiesen Magalhães; GONDAR, Jô (org.) Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7
letras, 2000. DUSSEL, Enrique. Aclaraciones metodológicas. In: História general de la iglesia
en América Latina. Tomo I/1, Salamanca, Síguime, 1983, p 17-102. ELIADE, Mircea;
KITAGAWA, Joseph M (Eds.). Metodologia de la história de las religiones.
Barcelona/Buenos Aires/México, Ediciones Paidos, 1986.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002.
183
CRABTREE, Asa Routh. História dos batistas do Brasil. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1937.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosas. São Paulo: Paulinas,
2002.
DERRIDA, J. & VATTIMO, G. (dir.) A religião. São Paulo, Estação Liberdade, 1998.
DUBOIS, Stela C. Rosalee Mills Appleby. São Paulo: Louvores do Coração, 1991.
ELIADE, M. Mito e realidade, São Paulo: Perspectiva, 1972.
_____________________. História das crenças e das idéias religiosas. De Gautama Buda ao
triunfo do cristianismo. 4 vols., Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
_____________________. O sagrado e o profano: a essência das religiões, Lisboa: Livros
do Brasil, s/d.
_____________________. Observaciones metodológicas sobre el estudio del simbolismo
religioso. In: ELIADE, M.. & KITAGAWA, J.M. (compiladores) Metodologia de la historia
de las religiones. Buenos Aires, Paidós, s/d.
_____________________. Tratado de história das religiões, Lisboa: Cosmos, 1977.
ERICKSON, Millard. J. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2002.
FERNANDES, Humberto Viegas. Renovação espiritual no Brasil, erros e verdades. Rio de
Janeiro: JUERP, 1979.
FERREIRA, Ebenézer Soares. História dos batistas fluminenses. Rio de Janeiro: JUERP,
2001.
FIGUEIRA. Divalte Garcia. História. São Paulo: Editora Ática, 2005.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal, 1994.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
FRESTON, Paul. “Breve história do Pentecostalismo Brasileiro”, In. Nem Anjos Nem
Demônios – Interpretações Sociológicas do Pentecostalismo, Petrópolis: Vo zes, 1994.
_____________________, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao
impeachment. Campinas: Tese de Doutorado, IFCH-Unicamp.
GALINDO, Florencio. O fenômeno das seitas fundamentalistas. Petrópolis: Vozes, 1995.
GONZALES, Justo L. A era dos novos horizontes: São Paulo, Ed. Vida Nova, 2005.
184
HAHN, Carl J. História do culto Protestante no Brasil. São Paulo: ASTE, 1989.
HELER, Agnes. O cotidiano e a historia. 4.ed., São Paulo. Paz e Terra, 1992.
IGREJA BATISTA EM PERDIZES – Há 60 anos transformando vidas. São Paulo: Ed. Igreja
sem fronteiras, 2000.
JOSGRILBERG, Fábio B. Cotidiano e invenção: os espaços de Michel de Certeau. São
Paulo:Escritura Editora, 2005.
LE GOFF, Jaques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
_____________________ & NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves Editoras S.A, 1976.
LÉONARD, Émile G. O Iluminismo num protestantismo de Constituição recente. São
Bernardo do Campo: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1988.
_____________________, Émile G. O protestantismo brasileiro. São Paulo: Aste, 1950.
MADURO, Otto. Mapas para a festa. Reflexões latino-americanas sobre a crise e o
conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1994.
MANUAL BÁSICO DOS BATISTAS NACIONAIS. Brasília: CBN, 1986.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando, FFLCH, USP,
1995.
MARIZ, Cecília L. e MACHADO, Maria das Dores C. Sincretismo e trânsito religioso:
Comparando carismáticos e pentecostais. Rio de Janeiro: Comunicações do ISER, 45, 1994:
p. 24.
MARTIN, David. Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin América. Oxford:
Blackwell, 1990.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. “Pentecostalismo e as Concepções Históricas de sua
Classificação”, In: SOUZA, Beatriz Muniz, Sociologia da Religião no Brasil. São Paulo:
PUC.
_____________________. “Um Panorama do Protestantismo Brasileiro Atual”. In: Sinais
dos Tempos: Tradições Religiosas no Brasil. Cadernos do ISER, 22, 1989: p. 34-44.
_____________________. O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. São
Paulo: Edims, 2ª ed. 1995.
_____________________. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos. São Bernardo do
Campo: UMESP, 1997.
_____________________. Sindicato de Mágicos: Pentecostalismo e Cura Divina. São
Bernardo do Campo: Edims. Estudos da Religião, 8, 1992: p. 49-59.
185
MENSCHING, G. Die Religion. Stuttgart, 1959.
MESQUISA, Antônio Neves de. História dos Batistas no Brasil: 1907 até 1935. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1940.
NASCIMENTO. José Rego do. Calvário e Pentecoste. Belo Horizonte: Edições Renovação
Espiritual, 1960.
OLIVEIRA, Betty Antunes. Centelha em Restolho Seco. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2005.
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In:
TEIXEIRA, Faustino (org) Sociologia da Religião no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2003.
PADILLA, René. El evangelio hoy. Buenos Aires: Certeza, 1975.
PEREIRA, J. Reis. História dos batistas no Brasil. Rio de Janeiro: JUERP, 2001.
PEREIRA, Josias. A fé como fenômeno psicológico. São Paulo: Editora Escrituras, 2003.
REILY, Ducan A. Fermento Religioso nas Massas do Brasil. São Paulo: ASTE, 1993.
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo e Cultura Brasileira. São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 1981.
BASTIDE, Roge r. Le Sacre Sauvage et autres essais, Paris: Payot, 1975.
ROLIM, Francisco Carataxo. (org), A Religião numa Sociedade em Transformação.
Petrópolis: Vozes, 1997.
_____________________, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: Uma Interpretação
Sócio-Religiosa. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
SANTOS, Marcelo. O Marco Inicial Batista, São Paulo: Igreja sem fronteiras, 2003.
SCHIMIDT. Benito Bisso. A pós-modernidade e o conhecimento histórico: considerações
sobre a volta da biografia. In: Cadernos de Estudo. Porto Alegre: UFRGS, n.10, p. 31-56,
dezembro de 1994. (revista) SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias ...
Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. In: Indivíduo, biografia, história.
Estudos históricos. Rio de Janeiro: FGV, v.10, n.19, 1997.
SOUZA, João Valdir Alves de. Fontes para uma reflexão sobre a história do Vale do
Jequitinhonha. Belo Horizonte: Unimontes Científica V.5 n.2, 2003.
SUDBRACHK, Josef. Experiência Religiosa e Psique Humana. São Paulo: Edições Loyola,
2001.
TOGNINI, Enéas. A autobiografia. São Paulo: HAGNOS, 2006.
_____________________. Avivamento Real. São Paulo: Enéas Tognini, 1969.
186
_____________________. Batismo no Espírito Santo. São Paulo: Edições “Enéas Tognini”,
1975.
_____________________. Renovação Espiritual no Brasil. São Paulo: Ed. Renovação
Espiritual, 1984.
TRIBBLE, Harold W. Nossas doutrinas. Rio de Janeiro: JUERP, 2001.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa,. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
VELASQUES FILHO, Prócoro. “Declínio do Protestantismo Tradicional”, In: Velasques
Filho, P. e Mendonça Antonio G. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
1990.
VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Ed. Scipione, 1997.
WHITE. H. A. Rejoinder. A response to professor Chartier’s four questions. Storia della
Storigrafia, (27), 1995.
WIRTH, Lauri Emilio. A memória religiosa como fonte de investigação historiográfica. In:
Estudos de Religião nº 25. São Bernardo do Campo: UMESP, 2003, p. 171-183.
_____________________.
Novas metodologias para a História do Cristianismo: em busca da
experiência religiosa dos sujeitos religiosos. In. COUTINHO, Sérgio Ricardo (Org).
Religiosidades, Misticismo e História no Brasil Central. São Paulo: Editora Universa – UCB,
2001.
XAVIER, João Leão dos Santos. Colunas da Renovação. Belo Horizonte: Lerban, 1997.
Sites consultados:
http://www.luz.eti.br/rubenslopes.html
http://www4.mackenzie.com.br/7071.html
http://www.opbb-sp.org.br/web/index.php?option=com_content&task=view&id=25&Itemid
http://200.195.77.153/engine.php?pag=art&secpai=12&sec=54&cat=356&art=4312
187
ANEXO 1
Carta de José Rego do Nascimento
Belo Horizonte, 22 de outubro de 1958.
Amado irmão Enéas
Saudações no Senhor Jesus
Isaías 43:19
“Escrevo-lhe, meu irmão, para informá- lo que alguma coisa gloriosa está acontecendo
em nossa Pátria. Estou voltando do Seminário do Sul, no Rio, depois de uma semana
de trabalhos especiais com os seminaristas, a convite do grêmio, onde estudamos a
doutrina do Espírito Santo.
Na sexta-feira pela manhã, o Senhor nos visitou com grande poder, levando ao altar
quase todos os seminaristas. Na noite do dia seguinte, cerca de 50 seminaristas se
reuniram na biblioteca para uma reunião de oração. Depois do cântico de alguns hinos,
foi lido um trecho da Bíblia e começamos a orar. Todos se mostravam submissos e
desejosos de Deus. Por volta da quarta oração, aconteceu pentecostes.
O Espírito caiu sobre a casa, possuindo a muitos. Alguns seminaristas se deixaram cair
no chão, outros por sobre as mesas, outros se levantaram e muitos confessavam
pecados em voz alta, ouvindo-se gemidos e sons de choro incontido.
Atordoado pela surpresa do acontecido, levantei- me dos meus joelhos e pensei fechar
os basculantes da sala – tomar qualquer medida que evitasse que o barulho chegasse até
as casas vizinhas.
Mas, logo senti- me repreendido pelo Espírito e deixei- me ficar no meu lugar; e
entrando, eu mesmo, a participar da reunião.
Que experiência, Enéas!... Quando pedi que todos se levantassem, encerrando o
período de oração, os seminaristas se abraçam, possuídos de grande emoção, os rostos
molhados de lágrimas. Era cerca de 1:30 da manhã, e fora tudo como se apenas cinco
minutos se tivessem passados.
Voltamos a louvar o Senhor, iniciando com o cântico do hino “Chuvas de bênçãos”.
Todos cantavam num clima de muita alegria e vibração. Findo o período de cânticos,
começaram a pedir a palavra – ora um, ora outro; e as confissões mais inesperadas e
confissões mais tocantes tiveram lugar.
Em seguida, voltamos a orar. Recomeçou a visitação do Espírito. Muitos sentiam-se
cheios de poder do Espírito, e com tal intensidade que alguns pediam ao Senhor que
188
parasse a visitação – o Batismo do Espírito. Alguns podiam conter a emoção e
andavam pelo salão rindo livremente.
Que espetáculo, Enéas!... Assim como um banquete do céu na terra – o mosto do céu!
O Apóstolo tem razão: “Enchei- vos do Espírito!”. Um dos seminaristas teve uma visão
de Jesus, na glória. Agarrava-se a mim, enquanto dizia: “Estou vendo o amado
Salvador, não quero abrir os olhos, Pastor!”
Quando terminaram as orações, era cerca de quatro horas da manhã. Passou o tempo
como um sopro. Fomos para a capela do seminário, onde encerramos os trabalhos da
semana.
Meu amado irmão, maravilhas ainda estão por vir. Já estávamos no domingo. Naquela
manhã fui pregar na Igreja de Tauá, na Ilha do Governador, que o Pastor João
Figueiredo pastoreava.
O Pastor Figueiredo assistira a reunião do Seminário e fizera a entrega de sua vida a
Deus. Depois da mensagem, onde senti a poderosa unção do Senhor, pedi que todos se
levantassem para orar. Por volta da quarta oração, o Espírito de deus desceu sobre a
casa, igual como no Seminário, e logo almas foram atiradas diante do altar, aos gritos e
soluços, confessando os pecados. Homens, mulheres, velhos e crianças, quebrantados
ante a presença terrível do Senhor.
O Pastor correu até ao púlpito ao meu lado, trêmulo de emoção e poder. Eu disse- lhe:
“Toma conta da tua Igreja, irmão, pois acaba de receberes o teu pentecostes e eu ainda
preciso pregar em Zumbi”.
O carro já me esperava na porta. Quando saí pela porta dos fundos, um homem veio ao
meu encontro de braços abertos, e agarrou-me aos soluções, marcado pela angústia.
Era, creio, um diácono da igreja.
Cheguei ao carro, e uma senhora, de boa presença, tendo uma criança na mão, veio ao
meu encontro dizendo: “Senhor, nunca vi coisa igual. É a primeira vez que entro numa
igreja protestante. Sinto- me transformada.” Chamei um moço que passou assisti- la.
O Pastor Figueiredo, cheio de poder, naquele mesmo dia foi à sua igreja, em Mesquita,
uma igreja de pobres operários. Quando lá chegou, contou das maravilhas que o Senhor
operara, e o Espírito desceu sobre todos, idênticos às vezes anteriores, e quebrantou a
igreja.
Enéas, para mim foi tudo muito inesperado. Podemos proclamar: começou o
avivamento em nossa Pátria. A reação já se faz sentir. Um professor do Seminário já
culpou o reitor por ter aberto as portas do Seminário a um “herético”. As discussões já
189
começam a surgir. O sentimentalismo, a emoção barata, tem sido chamado para
justificar o ocorrido. Aqueles seminaristas eram antes racionais que simplórios; e o
mesmo que aconteceu com eles, aconteceu com os humildes irmãos de Tauá e ainda
melhor, de Mesquita.
Enás, Deus continua quebrantando pastores. Três estão nas mãos do Espírito. Em
Maceió. Em São Paulo também. Meu amado irmão, espero tanto na sua influência e
decisão nesta hora. Um seminarista, ovelha sua, falou-me do irmão com tanto amor e
gratidão. Disse- me que o seu Pastor é outro homem. Falou- me de um seu sermão sobre
2 Crônicas 7:14.
Enás, estamos prontos para o martírio nesta hora desafiante? Será que teremos forças
para sermos dignos? O irmão pode usar esta carta como desejar. Escrevo livremente –
de coração para coração. Espero em novembro estar com o irmão e conversaremos
sobre o trabalho.
Com o abraço do conservo em Cristo,
José Rego do Nascimento
190
ANEXO 2
Declaração da Administração e do Corpo Docente do Seminário Teológico Batista do Sul do
Brasil
“Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil”
Declaração
Com o objetivo de esclarecer os Pastores e as Igrejas sobre a posição da
Administração e do Corpo Docente, com respeito aos acontecimentos recém verificados no
Seminário, decidiu o Corpo Docente, em reunião de 13 de novembro de 1958, fazer publicar a
seguinte declaração:
“Por iniciativa do Corpo Docente, com a aquiescência da Direção do Seminário,
foi convidado determinado Pastor para dirigir reuniões de oração e fazer preleções aos alunos.
No dia 17 de outubro, alguns alunos promoveram uma reunião adicional com o
Pastor visitante. Essa reunião, que durou a noite inteira, se verificou sem o consentimento prévio e
autorizado da Administração do Seminário.
Desenrolaram-se, nessa ocasião, algumas ocorrências caracterizadas por
extremado emocionalismo e excessos perturbadores, sobre os quais a Administração e professores
vêm sendo argüidos por terceiros.
Considerando também que o Seminário tem sido citado algures em reuniões onde
ocorrências semelhantes se têm reproduzido, a Administração e o Corpo Docente vêm a público
declarar que desaprovam os aspectos supra-referidos da citada reunião, e encarecem a necessidade
de se distinguir entre a verdadeira espiritualidade e os excessos de emocionalismo, que são
desvirtuamentos contra os quais devemos nos acautelar”
191
ANEXO 3
Declaração da Junta Administrativa do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
Junta Administrativa
Do Seminário Teológico Batista
Do Sul do Brasil
Declaração
“A junta do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, em reunião plenária,
realizada em 19 de dezembro passado, estando presentes 12 dos seus 15 membros, tomou
conhecimento da declaração publicada pela Administração e o Corpo Docente dessa instituição, na
página 7 de “O Jornal Batista” de 27 de novembro, e resolveu, por unanimidade:
1)
provar a referida declaração, necessária e oportuna em face dos desagradáveis fatos
ocorridos no próprio Seminário e em Igrejas vizinhas, naqueles mesmos dias.
2)
2) Dirigir um apelo urgente às Igrejas Batistas do Brasil, no sentido de se acautelarem e
estar em alerta contra qualquer desvirtuamento da gloriosa doutrina do Espírito Santo;
desvirtuamento que pode degenar-se, como já vem acontecendo, em excessos de
emocionalismo, de conseqüências imprevisíveis, ocasionando dúvidas e confusão no seio
das igrejas, podendo até provocar cisão em nossa querida Denominação, de que rogamos ao
Senhor que nos livre e guarde.
3)
A Junta lamenta a atitude tomada pelo Pastor José Rego do Nascimento, levando a efeito
tais reuniões; principalmente, a que se realizou na Biblioteca do Seminário, sem prévio
acordo com o irmão Reitor, que foi surpreendido em altas horas da noite pelos estranhos
acontecimentos que se passavam naquele recinto. Lamenta e desaprova essa atitude do
referido irmão, admitindo, embora, sua sinceridade e boas intenções.
A Junta do Seminário roga ao Senhor que oriente os irmãos envolvidos nesses
acontecimentos, a fim de que reflitam a tempo e evitem desvirtuamentos e exageros, pois os
exageros e desvirtuamento de uma boa doutrina são sempre perigosos e funestos.
A
192
Pela Junta, Almir S. Gonçalves, Presidente
Moysés Silveira, 1º. Secretário
A Tempo: Estavam presentes à reunião, e concordaram que se publicasse a presente
Declaração, os seguintes membros da Junta: John L. Riffey, Samuel de Souza, Moysés Silveira,
Nathan Lopes da Silva, Ernani de Souza Freitas, Joaquim José da Silva, M. Tertuliano
Cerqueira, Jayme Lunsford, Almir S. Gonçalves, João Emílio Henck, Pedro Gomes de Melo e
J. J. Cowsert..
193
ANEXO 4
Manifesto da Minoria da Igreja Batista da Lagoinha
Henrique Blanco de Oliveira, Tasso Brasileiro do Vale e Rui Brasileiro do
Vale, em nome da minoria fiel da Igreja Batista da Lagoinha, declaram que:
Negam-se a dar validade a quaisquer atos praticados ou que venham a ser
praticados pela dissidência da Igreja Batista da Lagoinha;
Não reconhecem procedente o movimento pró “Igreja Batista Pentecostes”,
que está sendo articulado nesta cidade pelo pastor José Rego do Nascimento;
Repudiam as idéias pentecostais (segunda experiência, línguas estranhas e
confusão nas reuniões) ultimamente praticadas e justificadas pelo “profeta” da nova seita (I
Co 14:33 e 40);
Condenam a atitude leviana do pastor José Rego do Nascimento que tenta
envolver as Igrejas Batistas da Capital, procurando reunir-se com o seu grupo em seus
templos, sem necessidade, visto que a dissidência da Igreja da Lagoinha vai pouco além de 30
pessoas; lembram que essas igrejas, foram por ele chamadas de igrejas secas e seus pastores
violentamente atacados;
Consideram atrevida a pública declaração do Pastor Rego do Nascimento, na
sessão de 19/11/1958, de que a “Primeira Igreja Batista da Capital está em suas mãos”;
Rechaçam afirmativas tendenciosas do deputado Guimarães Maia e de
outros, de que a minoria fiel da Igreja Batista da Lagoinha esteja sendo influenciada pelos
irmãos missionários americanos;
Advertem aos irmãos menos avisados de que os atos impensados, praticados
pelo Pastor José Rego do Nascimento, estão trazendo desarmonia no seio da Família Batista
do Brasil que constituiu prova sobeja de que seu movimento não tem procedência do Alto (Gl
5:22);
Estranham terem sido “excluídos” do rol de membros da “Igreja Batista
Pentecoste” em sua reunião de 23/11/1958, realizada no templo da Igreja Batista em Santa
Efigênia; os dissidentes, embora em minoria, renegaram a fé batista, não lhe cabendo por isso,
exercerem atos em nome da Igreja Batista da Lagoinha;
Reconhecem como Igreja Batista aquela que é fiel ao corpo de doutrinas que
caracterizam as verdadeiras igrejas batistas, doutrinas essas lidas e solenemente aceitas por
ocasião da organização da Igreja, em 20/12/1958; não é batista aquela que pensa sê- lo só por
194
registrar, a toque de caixa, para fins inconfessáveis, ridículos e esdrúxulos “Estatutos da Igreja
Batista da Lagoinha” (sic). “Minas Gerais” de 22/11/1958; Responsabilizam o pastor
Nascimento como provocador, incoerente, arbitrário, herético, pentecostal e espírita capaz de
tudo menos de tornar-se na hora a que é chamado a fazer;
Não atenderão à diabólica provocação para uma solução do caso em litígio
judicial, levando aos juízes infiéis, nossas causas, desprezando o que a Bíblia recomenda em 1
Coríntios 6;
Preferem aguardar o pronunciamento de alguém com mais responsabilidade
e autoridade e cuja mente, no terreno doutrinário, “não tenha duvidado” como a daquele que
tem a pretensão de encabeçar o avivamento no Brasil;
Comprometem-se a entregar as chaves da sede da Igreja ao grupo dissidente,
se a opinião da denominação, pela palavra de seus responsáveis for favorável à maioria
dissidente;
Continuarão a luta pela preservação da “fé uma vez dada aos santos” e
conclamam a todos os membros da Igreja Batista da Lagoinha a pensarem duas vezes antes de
se precipitarem em lutas fratricidas, servindo ao interesse do pastor Nascimento;
Reafirmam sua fé nos princípios batistas no Novo Testamento e, sem
sensacionalismos, estardalhaços ou exotismos, prosseguirão na luta contra os que consideram
doutrina coisa secundária;
Pedem aos crentes que orem pela Igreja nesta hora difícil.
Belo Horizonte, Novembro de 1958.
195
ANEXO 5
Carta de José Rego do Nascimento
Aqui, em Belo Horizonte, sinto que mãos poderosas empurram um grupo contra mim, para
liquidar- me. Um grupo que guardava reservas contra a minha pessoa, por os haver exortado
em particular, e por razões outras que não merecem atenção agora. O caso do Seminário foi a
oportunidade desejada. Levantaram bandeira da ortodoxia, numa campanha soez e impiedosa,
deturpando fatos ocorridos no Seminário e apontando- me como herético e pentecostal.
Diante do ataque, e notando que mãos poderosas moviam-se nos bastidores, para a todo custo
me por fora de Belo Horizonte, submeti- me a sofrer o julgamento da Igreja, em sessão
regular, de modo democrático e limpo.
Mandei por no quadro negro dois nomes: Herético e Batista, e pedi que a Igreja se
pronunciasse por voto secreto. Cada membro presente escreveria a palavra, em papel entregue
a todos, e devolveria dobrado à mesa, sem assinatura. Disse que se houvesse maioria, mesmo
de um voto, eu entregaria o pastorado naquele momento. A Igreja tem 52 membros e estavam
presentes 41, contando com o Pastor, que não votou. Apurada a votação, apenas 9 votaram
contra o pastor, 2 neutros, e 29 o prestigiaram. Os 9 votos, menos um, pertencem a uma só
família, cujo chefe encabeçava o movimento contra mim.
Diante do inesperado da derrota, aqueles irmãos, digo: os três homens que movimentavam o
grupo, ousaram o inacreditável. O salão de culto estava alugado com o contrato em nome de
um deles; pois, na ocasião da assinatura do contrato, ainda não havia a Igreja, era
Congregação. Que fizeram? Abusaram da confiança da Igreja e fraudaram- na na sua casa de
cultos. Vieram na mesma noite, depois que todos haviam se retirado, trocaram os cadeados
das portas, colocaram outros novos e tomaram o salão.
Diante do inominável, senti o alcance da trama. Soube que o elemento missionário (digo-o
com reservas), mas assistido por boas razões, lhes havia prometido apoio. Eles seriam
reconhecidos como Igreja, enquanto eu e a maioria absoluta, apontados como heréticos. Mas,
o próprio elemento missionário não pensou que chegasse a tanto. Esperavam, certamente, que
eles me combatessem dentro da Igreja, forçando a minha saída. O irmão pode prever o que
significou para Belo Horizonte Evangélico, tal atitude de impiedade.
Tomaram o santuário com bancada, piano, púlpito, alto falante, tudo enfim. Ficamos na rua. A
revolta foi geral. Senti que lutava com homens inconseqüentes e logo vi que seriam capazes
de nos fraudar até no nome. Reuni os irmãos na cada do deputado Dr. Elmir Guimarães Maia,
196
que nos fez solidário (ele é membro da nossa Igreja) e aprovamos para registro os Estatutos da
Igreja.
No outro dia, já tínhamos os estatutos registrados em mãos. Não tomamos tal atitude,
pensando em lavá- los ao judiciário, a juízo. Longe de nós tal pensamento. Tínhamos
aprendido em tempo a lição de Paulo de que “quem sofreu a injustiça, deve sofrer também o
dano” (1Co 6:7). Nosso intuito único era salvaguardar o nome da Igreja. Pois Podiam se
reunir e organizar, naquele momento, a “Igreja Batista da Lagoinha”, registrarem estatutos e
nos roubarem o nome. No domingo seguinte, em sessão regular, os três irmãos foram
excluídos.
Repudiados pela opinião pública, e sentindo que os seus aliados de ontem, já agora, se
mostravam reservados, os três descambam ainda mais nas suas atitudes temerárias, fazendo
imprimir uma circular, cuja cópia, mando anexa; e fazendo-a correr livremente, creio que até
para fora de Belo Horizonte. A circular em questão é uma mensagem de impiedade, ódio e
calúnia. Não vou dar- lhe resposta.
Sinto, pastor Soren, que uma parcela dominante de nossa Denominação está envidando
esforços no sentido de me alijar do meio do meu povo “a priori”, como herético. Isso será
indigno. Ao final das contas, nossa Denominação não representa mero feudo nas mãos de
alguns que simples circunstânc ias favorecem.
Que me fechem as portas de seminários e similares (não são realmente donos?) mas não dêem
um passo adiante senão na reta justiça. Eu preciso ser ouvido, eu preciso ser julgado (a isso
até me submeterei) por homens como o irmão e como outros, onde a isenção de ânimo não
pode ser posta em dúvida. Se as doutrinas que defendo não são batistas, estou pronto a abdicar
do meu povo e sofrer o exílio da minha fé.
Pelas experiências gloriosas com meu Senhor, pelo que tenho recebido desse maravilhoso
Espírito. Pelos meus cuidadosos estudos na Bíblia, na teologia, nos Pais da Igreja, nos
teólogos e Pastores batistas, principalmente nos de antes do movimento pentecostal, me
capacitam a definir esses princípios como batistas, no sentido de nossa fidelidade à Palavra de
Deus. Mas posso estar errado. Se me provarem, conscientemente, renunciarei. Estou pronto
também, a considerar de maneira mais justa e viável, atitude a tomar, quando das
manifestações maravilhosas do Espírito.
Tenho confessado que eu mesmo fui surpreendido com a manifestação gloriosa do Senhor. O
que não pode haver, em sã consciência, nessa altura de nossa vida denominacional, é
esmagarem- me inquisitoriamente, sem respeito a Deus e consideração ao próximo.
197
Tenho mais de 60 convites para 1959, e só aceitei 10. Mas são dez trabalhos chaves,
dedicados mais ao Sul do Brasil. Gostaria de fazer trabalho e edificante e nunca dissolvente.
Não quero dividir meu povo. Deus sabe que o temo realmente. Mas, se tomarem atitudes de
exceção, se me fecharem as portas do Jornal Batista, enquanto abrigam “patrícios” sem
autoridade de sem lastro, para me atacarem, terei que dizer ao povo do Brasil que me
perguntar, quem me está fechando as portas do Jornal e por que. Tudo isso me repugna. Quero
antes morrer que ser instrumento nas mãos do inimigo para perturbar a evangelização de
minha Pátria.
Senti que deveria dizer- lhe estas coisas. Quero merecer a sua oração e a sua ajuda. Tenho
ouvido que forças poderosas levarão a Convenção Mineira, a realizar em julho numa cidade
do interior, a nos expulsar sumariamente da Convenção, reconhecendo o grupo fraudador
como genuínos batistas.
Tudo isso representa prenúncios de que alguma coisa grave pode acontecer na nossa história
denominacional. Não que a expulsão de um pobre obreiro tenha maiores ou menores
conseqüências no seu corpo. Mas, pelo lado moral que tudo isso pode representar. Pela
divisão que pode provocar, quando falta toque messiânico ou inclinação para a luta inglória.
Creio que ficarei aqui por Belo Horizonte. A Rádio Guarani, dentro de dias, passará a operar
em potência triplicada, e em ondas curtas. Será uma emissora de alcance Nacional. Minha
Igreja está unida e em grande entusiasmo. Hoje mesmo, acertamos contrato para um novo
local, superior ao antigo. Muitos irmãos desejam, agora, cooperar conosco. Creio que um
grande trabalho vai começar em nossa igreja. Há um quebrantamento em nossos corações,
uma fome e sede do poder do Espírito.
Do conservo e admirador, em Cristo
José Rego do Nascimento
198
ANEXO 6
Carta de Reis Pereira 386
Não importam razões; não entraram pelo caminho do amor, não se lembraram da justiça; não
se deu vez ao “réu”. Não houve apelo ao “errado”, não houve oportunidade para o “herege”.
Deve ser excluída. E excluída foi. Sacrificaram o servo do Senhor sem amor e sem
misericórdia.
Um pastor de renome na denominação, que assistiu a todos os trabalhos dessa “histórica”
Convenção, escreveu, no último desse terrível julho de 1961.
“Foi a pior Convenção a que já assisti. O relógio batista em Minas atrasou-se vinte anos. Tudo
estava preparado contra o Rego. Parece que o objetivo único da Convenção era excluir a
Igreja da Lagoinha. Posso admitir para argumentar, que se excluísse a Igreja, mas os métodos
usados, foram deploráveis. Algumas coisas eu vi e doutras tive confirmação depois. Nunca
pensei que o ódio, o rancor, o despeito, pudessem dominar de tal modo um grupo de obreiros.
Imagino que agora, depois de excluída a Igreja da Convenção Mineira, vão querer excluí- la
também da Convenção Nacional. Por via das dúvidas, pretendo fazer um relato histórico, por
escrito, de tudo quanto tive a infelicidade de testemunhar...
“Soube anteontem que já há uma nova Convenção em Minas Gerais, formada por sete igrejas
de belo Horizonte mais as do Vale do Rio Doce. Sei que Rego não favorecia a divisão, mas
quem poderia conter a indignação dos outros? O negócio, meu caro, é de envergonhar
qualquer batista sério. Não me conformo que aquilo tenha acontecido numa Convenção
Batista, numa Igreja Batista”.
386
82.
Esta carta encontra-se no arquivo de Enéas Tognini e em seu livro: História dos Batistas Nacionais, p. 81 e
199
ANEXO 7
Parecer sôbre a doutrina do Espírito Santo 387
A Comissão nomeada pela 44ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira para
estudar a doutrina do Espírito Santo à luz do que entendemos por doutrina batista, realizou 14
reuniões em ocasiões distintas em São Paulo, Rio e Vitória. Os componentes da Comissão se
deslocaram várias vezes de seus lares, pagando suas próprias despesas no intuito de dar
cumprimento fiel à incumbência honrosa que lhes foi conferida.
As reuniões foram todas demoradas e os assuntos foram discutidos com todo
vagar, com oração e elevação espiritual. Delas resultou, finalmente, parecer que a Comissão
encaminha ao plenário da Convenção, na esperança de que contribua para a solução dos
problemas que têm surgido em relação ao assunto em pauta.
Este é o nosso parecer:
I)
Dada a natureza da matéria, a Comissão não apresenta um
parecer final e, por isso, não define, nesta conjuntura, a doutrina bíblica do
“batismo no Espírito Santo”.
II)
Verificamos que a expressão “batismo no Espírito Santo” nunca
foi definida em declarações de fé publicadas pelos batistas através dos séculos e
sôbre seu significado as opiniões de teólogos e pastores batistas são divergentes;
mas, também, reconhecemos:
1. Que a crença no batismo no Espírito Santo como uma “segunda
bênção” ou seja como segunda etapa na vida cristão ou seja ainda como uma nova
experiência posterior à conversão não tem sido crença que caracterize os batistas
brasileiros.
2. Que a prática do que ainda hoje chama de “dom de línguas” e “dom de
curas milagrosas” é igualmente estranha às crenças e práticas características dos
batistas brasileiros.
3. Que o consenso geral dos batistas sôbre a atuação do Espírito Santo na
vida do crente é que ela se faz como um processo em tôda a sua vida, processo êsse
que chamamos de “santificação progressiva”, a qual depende da cooperação do
próprio crente.
387
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 11 a 14.
200
4. Que qualquer experiência emotiva ou sensível de cunho pessoal que
algum crente ou grupo de crentes tenha tido a que atribuem ao Espírito Santo, por
mais genuína que seja para o indivíduo ou para o grupo, de modo nenhum pode
constituir um exemplo ou um padrão a ser imitado por outros crentes, nem tampouco
pouco pode constituir base para doutrinamento dos outros ou para campanhas de
avivamento.
III)
Apraz-nos assinalar não haver divergê ncia entre os batistas da
Convenção Batista Brasileira nos pontos fundamentais da doutrina do Espírito
Santo e que são os que constam da “Declaração de Fé das Igrejas Batistas do
Brasil”.
IV)
Achamos que se deve reafirmar direito inerente a cada batista de
se pronunciar livremente sôbre a matéria, mas em linguagem cristã em que perceba
preeminência do amor e o sincero desejo de um fortalecimento espiritual que se
torna cada vez mais necessário em nossas igrejas e em nosso povo.
V)
Mas achamos também que a ênfase dada à determinada
interpretação da doutrina do batismo no Espírito Santo tem originado os seguintes
abusos que, sinceramente deploramos:
a. A realização de reuniões em que notam os mesmos vícios
próprios de reuniões pentecostais; isto é, a confusão no ambiente, a gritaria, os
descontroles físicos, o falar de línguas e outros excessos de emocionalismo.
b. Uma atitude de orgulho espiritual que não quer admitir opiniões
opostas e que classifica os que não experimentam as mesmas emoções e
experiências de carnais e mundanos.
c. Tentativas ostensivas ou veladas de proselitismo entre outras
igrejas.
VI)
Achamos conveniente que esta Convenção advirta aos que
porventura assim procedam que estão saindo fora da linha apostólica da ordem e
da decência e que prejudicam, com tal comportamento as relações entre as igrejas.
VII)
Sugerimos finalmente:
1. Que haja, por parte dos pastôres e dos crentes em geral, um estudo mais objetivo da
obra e, principalmente, do método de atuação do Espírito Santo, conforme se encontra
interpretado no ensino de Jesus Cristo e exemplificado no ministério dos seus apóstolos.
201
2. Que os crentes e igrejas se abstenham de atitudes precipitadas e hostis mesmo quando
estejam separados uns dos outros por divergências doutrinárias no tocante à obra do
Espírito Santo.
3.
Que, aprovado êste parecer, a Comissão continue suas reuniões e observações,
examinando, inclusive, experiências espirituais de diversos irmãos e obreiros e
apresentando no próximo ano parecer final sôbre a matéria de que também constam os
resultados práticos da decisão ora tomada.
Vitória, 25 de janeiro de 1963.
Assinado:
Rubens Lopes – Presidente
Werner Kaschel – Secretário
J. Reis Pereira – Relator
Achilles Barbosa
Harald Schaly
David Gomes
J. Rego do Nascimento
David Mein
João F. Soren
Delcyr S. Lima
Reunaldo Purim
Enéas Tognini
Thurmon Bryant
202
ANEXO 8
Declaração final da Comissão dos Treze 388
A comissão nomeada pela 44ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira
para “estudar a doutrina do Espírito Santo à luz do que entendemos por doutrina batista”,
dando prosseguimento aos seus trabalhos, conforme determinação da 45ª assembléia,
realizada em Vitória, resolveu reiterar algumas conclusões do seu primeiro parecer e
acrescentar outras, nos seguintes termos:
1. A crença no batismo no Espírito Santo como uma segunda bênção, ou
seja, como uma segunda etapa na vida cristã, ou seja, ainda, como uma nova experiência
posterior à conversão, não encontra bases nas Escrituras.
2. “Plenitude do Espírito Santo” não é o mesmo que “Batismo no Espírito
Santo”. É, antes, um estado espiritual ao qual deve e pode chegar o crente, estado êste que se
caracteriza por inteira dependência e obediência à vontade do Espírito Santo de Deus e pela
capacitação para a realização de Sua obra.
3. Segundo o ensino das Escrituras, a atuação do Espírito Santo no crente se
faz como um processo em toda a sua vida, processo êsse que chamamos de santificação
progressiva, a qual depende da cooperação do próprio crente. Essa cooperação inclui os
seguintes elementos: perseverança, no estudo da Palavra de Deus, na oração, no testemunho,
na comunhão com os irmãos, no serviço cristão e na dependência do Espírito de Deus para
fazer- lhe a vontade, etc.
4. Qualquer experiência emotiva ou sensível de cunho pessoal que algum
crente ou grupo de crentes tenha sido e atribua ao Espírito Santo, por mais genuína que seja
para o indivíduo ou para o grupo, de modo nenhum pode constituir exemplo ou padrão a ser
imitado por outros crentes, nem tampouco pode constituir base para doutrinamento dos outros
ou para campanhas de avivamento.
5. “Dons do Espírito” são capacitações comunicadas a crentes pelo Espírito
Santo, segundo a Sua vontade, e segunda sua utilidade para a realização dos propósitos
divinos. À luz das Escrituras e da história do Cristianismo, essas capacitações não se
restringem a determinado número de dons os quais ocorrem de maneiras diversas, de acôrdo
com o plano de Deus para o Seu Reino aqui na terra. Não encontramos base bíblica para crer
que sejam manifestações do Espírito as ocorrências que alguns grupos têm apresentado como
388
COMISSÃO DOS TREZE. Doutrina do Espírito Santo, p. 11 a 14.
203
se fôssem dons do Espírito Santo. Entendemos que erros de interpretação têm levado tais
grupos a valorizar estas manifestações que, errôneamente atribuem ao Espírito, as quais,
todavia, se constituem contrafações dos genuínos dons ocorridos na era apostólica.
6. A ênfase dada à doutrina do batismo no Espírito Santo como sendo uma
segunda bênção tem originado os seguintes abusos, que, sinceramente, deploramos: 1) A
realização de reunições em que se notam os mesmos erros próprios de reuniões pentecostais,
isto é, a confusão no ambiente, a gritaria, os descontrôles físicos, o falar línguas e outros
excessos de emocionalismo. 2) Uma atitude de orgulho espiritual que não quer admitir
opiniões opostas e que classifica de carnais e mundanos os que não participam das mesmas
emoções e experiências. 3) Tentativas ostensivas ou veladas de proselitismo entre outras
igrejas.
7. Embora devamos tratar com caridade cristã os pentecostais, não podemos
esquecer as diferenças que dêles nos separa, conseqüentes da ênfase excessiva dada por êsses
irmãos em Cristo a manifestações emocionais discrepantes da boa ordem cristã.
8. Estas conclusões estão alicerçadas em monografias firmadas por membros
da comissão e que são dadas à publicidade a fim de prover as igrejas de material subsidiário
para estudo da doutrina do Espírito Santo.
Recomendação Suplementar
Ao encerrar seus trabalhos a comissão recomenda o seguinte:
1. Que as igrejas, orientadas por seus pastôres, sejam intransigentes no
repúdio ao mundanismo e se esforcem no cultivo de uma vida espiritual intensa, cujos frutos
se manifestem na conversão de almas, no gôzo cristão e na edificação dos fiéis.
2. Que os pastôres realizem estudos a respeito da doutrina do Espírito Santo,
ministrando o ensino correto das Escrituras sôbre o assunto, prevenindo assim igrejas e
crentes contra os desvios de doutrina e de prática acima referidos.
3. Que as igrejas e pastôres que se tenham afastado das doutrinas batistas e se
aproximado das doutrinas pentecostais seja convidados com todo amor a um reestudo de sua
posição à luz do parecer ora apresentado. Caso persistam em manter pontos de vista contrários
à posição doutrinária sustentada pela Convenção Batista Brasileira, sintam-se à vontade para
uma retirada pacífica e honrosa, em benefício da paz na causa de Deus. Tal recomendação se
204
limita àqueles que fazem de suas convicções divergentes motivo de atividade ostensiva,
provocando inquietação, confusão e divisão.
São Paulo, 10 de outubro de 1963
Ass) Rubens Lopes – Presidente
Werner Kaschel – Secretário
Achilles Barbosa, com restrições
David Gomes
David Mein
Delcyr de Souza Lima
Harald Schaly
José dos Reis Pereira
Reynaldo Purim
João F. Soren
205
ANEXO 9
Proposta especial
Os abaixo assinados, mensageiros a esta Convenção, não comprometidos,
ostensivamente pelo menos, com nenhuma das duas correntes mais em evidência a respeito
que deu origem à ‘Comissão dos Treze’, movidos unicamente pelo interesse na causa de
Deus, vêm perante este plenário apresentar uma proposta, precedida, das seguintes
considerações:
1. A matéria em questão se constitui em definição doutrinária de tal
relevância e complexidade de que, nos vários séculos de história batista, nenhum grupo veio a
público assumindo uma posição definida em terno dela. Os batistas brasileiros serão os
primeiros a fazê- lo na História, com poderosos reflexos sobre Portugal e toda América Latina.
2. Esta própria Convenção há um ano, ao aprovar por maioria esmagadora o
parecer inicial da Comissão dos Treze, reconheceu que “sobre a expressão “batismo no
Espírito Santo”... e seu significado, as opiniões de teólogos e pensadores batistas são
divergentes” (“A Doutrina do Espírito Santo”, p. 12).
3. Esta mesma Convenção declarou aprovando o referido parecer, “não haver
divergência entre os batistas da Convenção Batista Brasileira nos pontos fundamentais da
doutrina do Espírito Santo” (ibidem p. 12), o que define, ipso facto, como secundários, os
pontos ora objeto de divergência.
4. A definição sobre a matéria apresentada pela Comissão toma posição
ostensiva ao lado de uma determinada corrente de “teólogos e pensadores batistas”, enquanto
esta Convenção já reconheceu que também são batistas os defensores de opiniões divergentes,
donde concluímos seres também batistas os nossos irmãos que perfilham tais pontos de vista
dentro da nossa Convenção.
5. O parecer ora em discussão, em seu ponto 8 da primeira parte, invoca o
testemunho das monografias que lhe são apenas como probatório das conclusões, enquanto
sugere o seu estudo pelas igrejas, o que demandaria tempo e calma.
6. O parecer da Comissão só se tornou público nos dias desta Assembléia
Convencional, não havendo, conseqüentemente, tempo suficiente para cada mensageiro, nem
o povo batista fazer o exame dos fundamentos de suas conclusões e tomar posição à luz das
206
mesmas, o que vale dizer não estar o plenário esclarecido quanto à matéria nem poder sê- lo
antes do término desta Assembléia.
7. Ainda no ponto 3 da “Recomendação Suplementar” o parecer sugere “que
as igrejas e pastores que se tenham afastado das doutrinas batistas e se aproximado das
doutrinas pentecostais sejam convidados com todo amor a um reestudo de sua posição à luz
do parecer ora apresentado”. E que só no caso de persistirem em manter pontos de vista
divergentes sejam deixados á vontade para uma retirada pacífica, como já está ocorrendo com
igrejas e pastores. Este reestudo também demanda tempo, só depois do qual é que seria feita a
verificação da persistência ou não em tais pontos divergentes.
8. Não obstante o indiscutível valor intelectual dos signatários do parecer e o
pleno reconhecimento da inestimável contribuição trazida ao esclarecimento em questão, é de
supor-se ser ele passível de retificações, contestações e refutações que jorrem mais luz sobre o
assunto, contribuindo assim a um maior esclarecimento do nosso povo. Isto não pode ser feito
durante esta Assembléia senão através da imprensa.
9. Aprovar este parecer sem dar ampla e suficiente oportunidade de defesa e
réplica a todos quanto se julgam atingidos por ele, seria um intolerável violência inadmissível
numa assembléia verdadeiramente batista, embora reconheçamos que em igrejas lideradas por
irmãos chamados “renovação espiritual” tenha havido práticas nitidamente pentecostais e
destoantes dos costumes batistas.
10. A matéria ainda não está plenamente amadurecida, mormente se
considerarmos que só agora temos, nas monografias dadas a publicidade, o que se poderia
chamar de “roteiro oficial” para o estudo da questão, à vista do exposto, propomos:
a) Que o parecer da Comissão dos Treze fique sobre a Mesa até a próxima
Assembléia Convencional, a fim de dar tempo a que se ponham em prática diversas
recomendações do próprio documento.
b) Que o parecer, as atas e seus anexos, as monografias e outros documentos
relacionados com a matéria, sejam publicados no Jornal Batista, sob a supervisão do seu
207
redator, para que haja ampla oportunidade de esclarecimentos do nosso povo até a próxima
Assembléia Convencional.
Recife, 24 de janeiro de 1964.
Tiago Nunes de Lima
Silas de Brito Lopes
Valvídio de Oliveira Coelho
João Duduch
Isaías Batista dos Santos
James E. Musgrave Jr.
A. Antunes de Oliveira
Elias Brito Sobrinho
Tito Assis Ribeiro
208
ANEXO 10
Hino Obra Santa
OBRA SANTA
Obra santa do Espírito,
Esta causa é do Senhor,
Como vento impetuoso,
Como fogo abrasador;
Estamos sobre a terra santa,
Reverência e muito amor,
Esta hora é decisiva!
Vigilância e destemor.
Ninguém detém, é obra santa!
Ninguém detém, é obra santa!
Nem Satã ou o mundo todo,
Hão de apagar este ardor!
Ninguém detém, é obra santa!
Esta causa é do Senhor!
Em meu peito renov ão,
Arde o fogo do Senhor;
É uma bênção do Espírito
Nos enchemos de fervor;
E Jesus está salvando,
Apagando toda dor,
No Espírito batizando,
Pois da vida Ele é Senhor!
Eis o Noivo vem chegando,
Trescalando suave odor!
Já se sente o perfume
Da unção do Salvador!
E a noiva ataviada
De pureza e de esplendor
Aguardando entrar nas bodas
Pra reinar com seu Senhor.
Rosivaldo de Araújo

Documentos relacionados