Datamosh - MediaLab

Transcrição

Datamosh - MediaLab
Datamosh- corupção do movimento
André Damião Bandeira
UNESP-Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”-Instituto de Artes
[email protected]
Resumo: Pretende-se neste artigo analisar o artifício de compressão datamosh,
descrevendo tecnicamente o processo e algumas obras realizadas pelos artistas
que o desenvolveram, entre os quais destacar-se-á Takeshi Murata, Sven König
e Paul B. Davis. Especular-se-á sobre a reação destes artistas após 2009,
momento em que houve um grande debate sobre a utilização desta técnica
devido a sua difusão no clipe do cantor Kanye West e sua publicação de
tutoriais na internet gerando uma banalização do efeito. Refletir-se-á sobre o
quanto a efemeridade destes processos pode influenciar os artistas que
trabalham com novas mídias.
Palavras-chave:Datamosh. Processos artísticos. Video digital. Glitch. Paul B
Davis
Abstract: This article aims to analyse the compression artifact named
datamosh by describing the technical process and some of the works by the
artists who developed it. We will emphase the ones by Takeshi Murata, Sven
König and Paul B. Davis. We aim to invetigate the reaction of these artists after
2009, when a big debate about the use of this technique happened, due to the
diffusion of this procedure in the video-clip of the singer Kanye West, as wll
through the edition of tutorials on the internet, in order to generate a
popularization of the effect. We will think on how the ephemerality of these
processes can influence artists, who are working with new media.
Key-words: Datamosh, artistic process, digital video, glitch, Paul B Davis
Introdução
O Datamosh é classificado entre os processos de arte glitch como um “artifício de compressão”.
No entanto, não pode ser considerado propriamente um “glitch” (como uma falha eletrônica
inesperada), pois é provocado intencionalmente. Começou a ser usado no início da primeira década de
2000, com maior notoriedade a partir de 2005, com referência aos trabalhos de artistas como Paper
Rad, Sven König, David O'Reilly, Takeshi Murata e Paul B. Davis. Após 2009, o efeito passou a ser
utilizado por veículos de comunicação de massa, através de videoclipes, provocando uma banalização
do processo, obrigando, desta forma, os artistas a rever a utilização desta técnica que acabou tomando
um novo significado após este incidente.
Exemplo do processo compressão de vídeo gerado pelo script de aPpRoPiRaTe!
O processo é realizado em aquivos .AVI (Audio Video Interleave) que possuem os codecs
.DviX ou .XviD1. Nestes tipos de compressão os frames são divididos entre I -frames e P/B -frames. Os
I-frames (ou key-frames) são os quadros que possuem o conteúdo das imagens, enquanto nos frames P
e B, as informações sobre a diferença entre o quadro atual e o seguinte ficam contidas. Ao retirar os
key-frames o vídeo se torna resultado das diferenças entre os quadros, gerando o resultado também
conhecido como “bleeding pixels”.
Este procedimento pode ser executado através de diversas ferramentas, como, por exemplo, os
artistas acima citados, Davis e Murata, que utilizam editores HEX 2, enquanto König utilizou para seu
projeto aPpRoPiRaTe! um código escrito em linguagem python (disponibilizado em seu site). A
maneira que se tornou mais popular foi a utilização de editores de vídeo muito simples (como o
1
2
Os dois codecs são bastante similares, com a diferença de que o .XviD possui o código aberto, enquanto o código
do .DviXé fechado.
Softwares usados para ver e editar dados binários
avidemux2_qt4) que permitem que estes “erros” possam acontecer, e desta forma não é necessário que
o usuário tenha conhecimento da arquitetura do codec, além do software possuir uma interface GUI
(Graphical User Interface). O procedimento através deste tipo de editor foi disseminado por um
tutorial feito por um video artista que assina como Data Mosher.
Conhecendo o processo pode-se observar que o datamosh expõe com sucesso a lógica deste tipo
de codec, frequentemente utilizado, o qual , devido a sua grande complexidade, é uma caixa preta para
a maioria dos artistas e técnicos que trabalham com vídeo digital. Ao demonstrar que a compressão
divide o video entre frames que possuem a imagem e outros que possuem a diferença entre as imagens,
nota-se de forma concreta que o vídeo digital pós-compressão segue uma lógica completamente
diferente, não linear, do quadro-a-quadro da película.
Do MoMA à MTV
Como já
mencionamos, algumas pessoas iniciaram experimentos com “datamoshing” no
começo da primeira década de 2000, mas os trabalhos mais significativos vieram depois de 2005. Ao
selecionarmos os artistas Murata, König e Davis, é possível observar um panorama bastante
diversificado entre relações com o processo e com o produto. Todos estes artistas trabalham com
técnicas de pós-produção, por meio das quais se apropriam de vídeos de baixa resolução encontrados
na internet.
Takeshi Murata produziu o vídeo Monster Movie em 2005, depois de ter desenvolvido trabalhos
com animação. O artista encontrou pontos em comum entre suas técnicas de desenho e o resultado do
datamosh. Ao retirar muitos key-frames e sobrepor alguns quadros de interpolação, obteve um efeito
que se assemelha ao de um líquido que escorre pela tela, remetendo ao nome de bleeding pixels. No
vídeo Monster Movie, com a duração de quatro minutos, foram retiradas pequenas sequências do filme
Caveman (1981), estrelado por Ringo Star, em que um monstro sai de uma lagoa e passa por diferentes
cenários. Murata coloca estes pequenos samples em loop mostrando a degradação e saturação do
material que se torna mais abstrato a cada repetição, o resultado é uma imagem psicodélica e abstrata
devido ao fluxo irregular de key-frames e o acúmulo de repetições. A passagem entre os excertos do
vídeo determinam os pontos em que o monstro e o cenário se tornam reconhecíveis. Este tipo de
apropriação de imagem que joga entre o reconhecível e o abstrato torna o processo mais próximo de
um filtro do que a materialização do codec digital, como observamos anteriormente, porém os pontos
de passagem entre a abstração e a reconstituição do monstro na tela junto à saturação da imagem
durante as repetições, geram uma sensação de dúvida para o espectador sobre se aqueles efeitos
realmente deveriam estar acontecendo ou não.
A abordagem de Sven König é bastante diferente sob o ponto de vista conceitual.
aPpRoPiRaTe! é feita para ser uma obra colaborativa, em que o datamosh serviria para a distorção das
imagens e apropriação dos materiais audiovisuais colocados na internet. König descreve que qualquer
vídeo passa pelas seguintes etapas para estar em rede:
•
1- filme original
•
2- o trabalho de muitos matemáticos, criadores do embasamento técnico para os programadores
•
3- os programadores que criaram o software de compressão e os codecs
•
4- o responsável pela compressão do filme através de um software
•
5- o produto final disponível na internet
A partir destes itens o artista argumenta que as etapas 2 e 4 seriam praticamente invisíveis, o
público enxergaria apenas as etapas 1 e 5 e justamente nestes dois pilares estariam apoiados os direitos
autorais do criador do filme. Por isso, König propõe para o público que se aproprie do filme em rede,
tornando, desta forma, o seu próprio trabalho artístico e transformando o material através do datamosh,
o que naturalmente torna o resultado final deste processo diferente do filme original. Dentro da lógica
do artista, sem os direitos autorais previamente impostos.
Entre outros elementos, neste trabalho, o datamosh é, portanto, usado como suporte de
visualização do mecanismo escondido na “caixa-preta” da compressão de vídeos. O fato de usar outras
formas, não funcionais, de compressão transformaria tanto o vídeo original que este perderia ligação
com a matéria-prima detentora de direitos autorais, tornando-a livre. O trabalho peca apenas em relação
ao código em si, que é de difícil manipulação, apesar da proposta de König de que os scripts seriam
acessíveis a todos. Diferentemente dos tutoriais criados por Data Mosher, nos quais se ensina como
executar o datamosh, com base na utilização de conversores e editores de vídeo. Este vídeo-artista
desenvolveu estes métodos depois de visitar uma exposição no MoMA (Museum of Modern Art), na
qual alguns dos “compression studies” de Paul B. Davis estavam expostos.
“Compression Study” é uma série de quatro vídeos, nos quais Davis se apropria de programas
de televisão, videoclipes e vídeoarte retirados do youtube. O artista americano está mais próximo de
uma linguagem de mash-up do que os artistas citados anteriormente, ao em que misturar vídeos
interpolando-os através do datamosh. Por exemplo o vídeo “compression study #1”, feito em parceria
com Paper Rad, é um mash-up entre o clipe “Umbrella” da cantora Rihanna e o “Zombie” do grupo
The Cranberries, utiliza uma estética bastante pop, comum aos artistas de glitch. Nos outros estudos de
compressão, Davis é um pouco mais abstrato, ao sugerir apenas algumas citações ao invés de realmente
mostrá-las, como no “Compression Study #4”. Este possui o subtítulo “Barney”, no qual é nítida a
apropriação de um vídeo do Matthew Barney, interpolado com algumas imagens manchadas de verde e
roxo, que lembram a imagem do dinossauro do programa infantil “Barney”, mas é uma imagem que
nunca chega a se concretizar. Desta série, o vídeo que se relaciona mais com o trabalho “ Monster
Movie” de Murata é o estudo número dois, no qual Davis apresenta apenas um sample de uma luta de
vale-tudo, o que torna extremamente poético e chocante com a relação criada entre tempo e
movimento.
still retirado do "Compression Study#2", de Paul B. Davis
Após a exposição destes vídeos no MoMA, o datamosh tomou proporções muito maiores,
devido à apresentação ao artista Data Mosher, quem depois de ver a exposição e fazer o seu tutorial,
aplicou-o na produção do videoclipe da banda Chairlift. Quase simultaneamente, os produtores do
cantor Kanye West lançaram o clipe “Welcome to Heartbreak”, o que colocou rapidamente o datamosh
em todas as televisões do mundo. Esta mudança de contexto do processo, no entanto, como escreve
Rosa Menkman, transforma o procedimento artístico em apenas um filtro de imagem, perdendo toda a
potencialidade da corrupção do codec.
Nos meses seguintes ao acontecimento houve uma grande discussão sobre o que se tornaria o
datamosh, pois este ganhava adeptos dia-pós-dia, corrompendo qualquer tipo de vídeo com fins
artísticos ou não. Os diretores do “Glitch Festival” de Chicago relataram que, dos duzentos vídeos
recebidos em sua última edição, cerca de 80% eram resultado de datamoshing. O artista David O'Reilly
declarou a morte do datamosh; Davis nomeou sua exposição solo no mesmo ano como “DEFINE
YOUR TERMS (or KANYE WEST FUCKED UP MY SHOW)” , explicando-se desta maneira:
'I woke up one morning in March to a flood of emails telling me to look at some
video on YouTube. Seconds later saw I Kanye West strutting around in a field of
digital glitches that looked exactly like my work. It fucked my show up...the
very language I was using to critique pop content from the outside was now
itself a mainstream cultural reference.'3
(DAVIS, 2009)
Nesta exposição, a única obra que se remete ao datamosh é a obra “Codec”, um pseudo-tutorial
no qual Davis supostamente mostra como manipulava seus vídeos. A forma de apresentação é idêntica
a de tutoriais de software que são encontrados abundantemente na internet, nos quais o interlocutor
mostra a tela do seu desktop e fala o que deve ser feito para se completar a ação que o tutorial propõe
ensinar. Nesta obra o artista mostra como funcionaria um algoritmo de compressão chamado PBD, que
na verdade é uma sigla falsa com suas próprias iniciais. O sample usado para o input é o videoclipe de
West. Após a conclusão do processo o output é o seu “Compression study #4”, e Davis termina o seu
tutorial dizendo que através deste processo todos os outputs seriam a sua própria obra.
Os artistas Murata e König continuaram na mesma linha de trabalho, porém sem utilizar o
datamosh, tendo em vista a exploração de outros aspectos de seus trabalhos como animação,
apropriação e questionamento de direitos autorais.
Conclusão
Essa forma de apropriação e resignificação de processos artísticos pelas mídias de massa pode
ser vista em alguns momentos da arte do século XX, como por exemplo, a apropriação da indústria de
moda, produtos cosméticos e decoração dos processos de Piet Mondrian, e a apropriação da indústria
3
Entrevista concedida à Seventeen Gallery, em 2009.
cinematográfica e televisiva dos primeiros experimentos da música eletrônica de Hebert Eimert e
Karlheinz Stockhausen. Em outros casos, nos quais realmente existem este diálogo entre a mídia e os
artistas, chega-se a fazer parte de suas poéticas, tal é o caso de Takeshi Murakami e Damien Hirst.
Porém, como o datamosh, foi um processo feito por artistas justamente como crítica à forma
comunicação kitsch dos meios de massa, é alarmante ver como foi facilmente “domesticado” pela
mídia na condição de um novo fenômeno visual, este foi reduzido a um mero efeito. Portanto é
importante fazer um questionamento, especialmente no campo da arte e tecnologia, o qual é criticado
por muitas vezes ser baseado em efeitos, sobre se o fato da inutilização de uma ferramenta, de certa
forma limitada, seria algo bom ou ruim, ou se apenas com os poucos anos de uso deste artifício de
compressão, já não seriam o suficiente para ter passado seu conteúdo e cumprido sua função. Em
entrevista dada em 2011, Davis diz: “ Datamosh era apenas uma “coisa”, em breve teremos outra
“coisa””.
Podemos concluir que independentemente do fato destes artistas continuarem a usar o
datamosh, este artifício contribuiu para o desenvolvimento poético e técnico dos artistas envolvidos,
especialmente ao observar seus trabalhos posteriores aos de 2009, o que de certa forma valida o
processo, e sua banalização e desgaste demonstram apenas que existe uma eterna demanda de
inovações técnicas nas artes eletrônicas de baixa e alta tecnologia.
Referências bibliográficas
BOURRIAUD,N. Postproduction Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World, Lukas
& Sternberg, New York, 2002.
DAVIS,P. DEFINE YOUR TERMS (or KANYE WEST FUCKED UP MY SHOW), Disponível
em:http://www.seventeengallery.com/index.php?p=3&id=42 . Acessado em: 04/09/12.
KOENIG,S. aPpRoPiRaTe! Disponível em:
http://www.popmodernism.org/appropirate/index.html . Acessado em: 05/09/12.
MENKMAN, R. The Glitch Moment(um) , Network Notebook Series, Amsterdam, 2011.
MENKMAN, R.How to create compression artifacts [datamoshing], Disponível em:
http://rosa-menkman.blogspot.com.br/search/label/datamoshing. Acessado em: 05/09/12
FLUSSER, V. Filosofia da Caixa Preta , Huitec, São Paulo 1985.
FULLER, M. Software Studies- A Lexicon. The MIT Press, Massachusetts, 2006.
FITZPATRICK,K. Takeshi Murata’s Monster Movie, Disponível em:
http://www.laimyours.com/15495/takeshi-muratas-monster-movie/. Acessado em:04/09/12
SARTROM,J. Welcome to Datamosh, Disponível em:
https://jonsatrom.wordpress.com/2009/02/25/welcome-to-datamosh/ . Acessado em: 02/09/12.
Links de vídeos citados:
MURATA,T. Monster Movie, Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=t1f3St51S9I . Acessado em: 04/09/12
DAVIS,P. Compression Studys #1, #2, #4, Disponíveis em:
http://www.youtube.com/watch?v=CWG5jqzYsEI
http://www.youtube.com/watch?v=NHZFDXDQXaE
http://www.youtube.com/watch?v=4iRKxK6suF0 Acessados em:04/09/12