Arquivo completo - Pindorama

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Arquivo completo - Pindorama
Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016
EUNÁPOLIS-BA, MAIO/2016
EXPEDIENTE
Reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA
Prof. Renato da Anunciação Filho
Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação – IFBA
Profª. Luiz Gustavo da Cruz Duarte
Diretor Geral do IFBA Campus Eunápolis
Profº. Fabíolo Moraes Amaral
Revista Digital Pindorama do IFBA
Profº. Aldemir Inácio de Azevedo – IFBA
Editor
Conselho Editorial
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Profª. Vitória de Souza de Oliveira – IFBA (Doutora)
Profº. Fabíolo Amaral – IFBA (Doutor)
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Prof. José Roberto de Oliveira – IFBA (Mestre)
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Profª. Lívia Angeli Silva – UFBA (Mestra)
Profº. Eliseu Miranda de Assis – IFBA (Mestre)
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Profª. Mariana Fernandes dos Santos – IFBA (Mestra)
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Profº. Cláudio do Carmo Gonçalves (Doutor)
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Profº. Rodrigo Gallotti Lima – IFS (Mestra)
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Profª. Maria Neusa de Lima Pereira – IFRR (Mestra)
Profº. Itamar Freitas de Oliveira – UFS (Doutor)
Equipe Técnica:
Técnico-administrativo: Arthur Vinicius Maciel Dantas
ISSN 2179-2984
ISSN 2179-2984______________________________________________ Ano 5, Nº 6, Abril/2014-Maio/2016
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Conselho Consultivo
SUMÁRIO
EDITORIAL
ARTIGOS
A ilusão do sujeito: uma fronteira entre ser/não ser ‘um escolhido’
05
Edite Luzia de Almeida Vasconcelos
Nell: uma análise sob a ótica educacional e sociocultural de inclusão
21
Rosária de Fátima Boldarine; Flavio Biasutti Valadares
A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da Bahia
38
Marcos de Souza Ferreira; Luiz César Marques Magalhães
Estratégias de leitura empregadas para compreensão da língua inglesa
por restauradores aeronáuticos brasileiros
54
Natalia Cristina de Mendonça Spera; Daniela Terenzi
Alice Walker e Zora Neale Hurston: resgate e circulação de escritos
invisibilizados
Raphaella Silva Pereira de Oliveira
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EDITORIAL
A Revista Eletrônica Pindorama, dando continuidade ao propósito de
divulgar produção científica de forma multidisciplinar, disponibiliza ao público a sua
sexta edição constituída por cinco textos.
No primeiro artigo a autora se ancora na análise do discurso tomando
como referencial de abordagem o discurso religioso e a atividade missionária batista.
Este é investigado sob a ótica da sua participação na constituição da identidade do
sujeito. Porém, como tal, o discurso religioso em questão se orienta pela construção
de um sentido unificado, tirando do sujeito a possibilidade de interpretação e
transformando-o num sujeito universal.
Os autores do segundo texto desenvolvem uma análise crítica da ideia de
educação inclusiva, mobilizando um referencial teórico que trata o tema a partir da
vivência cotidiana da escola. A perspectiva adotada é a de que a inclusão é a
convivência com as diferenças. A partir da visão apresentada no filme Nell em
relação ao tema central os autores travam uma discussão empírico-conceitual num
diálogo com a legislação brasileira e sua aplicação na atualidade. É um texto
instigante que leva o leitor a refletir sobre aspectos fundamentais na prática da
educação inclusiva.
Em “A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da
Bahia” realiza-se uma análise do panorama do ensino de música no IFBA,
explicitando como a educação musical se insere neste contexto contemporâneo de
educação. Avalia também a presença/ausência da linguagem musical no
componente curricular Arte. Os autores fazem a discussão sobre o componente
curricular Arte transitando pelo desafio que é aplicar o currículo dos cursos
integrados da Rede Federal de Ensino que se propõe oferecer uma formação
integral aos estudantes, conjugando a profissionalização (formação técnica) e a
formação geral (ensino médio). Concluem que a cultura é uma categoria
fundamental no percurso do estudante, uma espécie de síntese das relações dos
seres humanos com seu meio.
O penúltimo texto desta edição analisa a relevância do domínio da língua
inglesa com um propósito específico entre uma categoria profissional da
aeronáutica: os trabalhadores responsáveis pela manutenção das aeronaves.
Devido ao fato de a língua inglesa ter se tornado a língua para comunicação global e
a necessidade de manter os padrões máximos de segurança neste setor é
imperativo que esses profissionais conheçam este idioma. Assim, os autores
identificam as estratégias de leitura utilizadas pelos profissionais de manutenção de
aeronaves e destacam a importância do estudo da língua inglesa na formação do
profissional.
Por fim, Raphaella Oliveira apresenta um texto que versa sobre os modos
de circulação da escrita feminina negra estadunidense, em suas experiências
intelectuais e acadêmicas. O olhar da autora se desenrola articulando a análise do
objeto anunciado na perspectiva de refletir sobre a sistematização de uma produção
intelectual/ literária feminina negra no Brasil e de uma epistemologia feita por e para
mulheres negras. O artigo é entrelaçado por uma rica problematização a respeito
das estratégias de visibilidade, nas academias, dos estudos e produções que
cooperem para o empoderamento das mulheres negras, apontando para a
importância de se valorizar e promover o resgate de produções que foram
invisibilizadas pela cultura sexista centrada no homem.
Com este número, a Revista Eletrônica Pindorama oferece ao público um
rico material de pesquisa, por meio de textos instigantes que proporcionarão ao leitor
profundas reflexões sobre os temas tratados.
A ilusão do sujeito:
uma fronteira entre ser/não ser ‘um escolhido’ 1
Edite Luzia de Almeida Vasconcelos2
___________________________________________________________________________
RESUMO
Neste artigo, examina-se a separação imposta pelo sujeito para
demarcar os limites do que ele considera sagrado no tipo de
trabalho que exerce ou gostaria de exercer, a partir da análise
discursiva dos pronomes você e a gente. Esse forma de
funcionamento identificada ao discurso do sujeito opera a
separação, sob a fórmula ser/não ser e isso produz o
apagamento de outros sentidos.
Palavras-chave: Pronomes a gente/você. Identidade.
Representação. Sentido. Sujeito.
1
Este artigo compõe o Capítulo 3 – As Vozes de Deus: Quem Fala por Deus, Fala em Nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo - da minha tese intitulada “A Formação da Identidade Batista: Efeitos de
Sentidos do Trabalho de Missões”, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e
Lingüística, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Alagoas, sob a orientação da Profª
Drª Maria Virgínia Borges Amaral, em 2010.
2
Especialização em Letras e Linguística: Leitura e Produção de Textos. Mestrado em Letras e
Linguística (Análise do Discurso). Doutorado em Letras e Linguística (Análise do Discurso).Professora
do IFBA, Campus Salvador, Departamento I, Coordenação de Linguagens Salvador, Bahia, Brasil.
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/9441490089311139. Endereços eletrônicos:
[email protected][email protected]
INTRODUÇÃO
Nesta pesquisa, consideram-se os pronomes você e a gente como
categoria que trabalha na fronteira da materialidade lingüística e do discurso, como
mecanismos que estabelecem as relações de poder reinscritas nas práticas
discursivas. Práticas essas organizadas pela representação das posições da
subjetividade, para a constituição da identidade do sujeito. Tal modo de
funcionamento da discursividade faz circular o sentido de trabalho como missão para
assegurar a salvação do sujeito, através do poder conferido pela representação.
O representante tem o poder de incluir e excluir, o que significa o poder
de dizer quem pertence e quem não pertence à formação discursiva à qual estão
identificados os escolhidos, ou seja, ele tem o poder de dizer quem são os
escolhidos. O sujeito do discurso realiza tal poder movimentando os sentidos,
através de dois mecanismos principais, relativos aos pronomes a gente e você.
Os enunciados tomados para análise, neste artigo, foram retirados das
minhas pesquisas de mestrado e doutoradoi, resultado da transcrição grafemática
das entrevistas gravadas com missionárias batistas e têm a seguinte organização:
SD para sequência discursive, seguida de numeração crescente para cada nova
sequência a ser analisada.
A análise possibilitou demonstrar que os efeitos de sentido do trabalho
missionário batista explicitados pelos pronomes você e a gente funcionam como
mecanismo discursivo que opera a separação, que, no exame analítico do corpus,
dá-se sob a fórmula ser/não ser identificado ao discurso do sujeito, que se considera
o apagamento de outros sentidos.
A análise sustenta-se no referencial teórico-metodológico da Análise do
Discurso de orientação francesa.
DESENVOLVIMENTO
1. Você/A Gente e o Outro
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um escolhido, sob o modo de representação, por ser uma missionária e isso produz
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Em SD01, abaixo, o sujeito enuncia que ‘a gente’, - o missionário -, deve
ser exemplo para as pessoas de sua convivência, isto é, para outros missionários,
para outros evangélicos, enfim.
SD01 - Para que a gente possa ser exemplo para as pessoas que vivem
conosco porque se a gente prega, se a gente fala sobre Deus e
não vive o amor de Deus nas nossas vidas, não adianta nada.
Os
dispositivos
discursivos
pronominais
sinalizam
para
escolhas
diferenciadas dos lugares do sujeito, como indicam as sequências discursivas a
seguir:
SD02 - Eu tive um pouco lá no Seminário, mas a gente também aprende
mais um pouco sobre a cultura deles.
SD03 - Lá em Jequié quando a gente aceita Jesus Cristo nós temos a
escola de missões, né? Lá tem a escola de missões, então a
gente, às vezes a gente recebe a orientação pra trabalhar com
adolescentes com novos crentes e eu vim com esse preparo de
lá.
SD04 – Aulas de, aquela aula que a gente toma quando aceita Cristo, né?
casal eu fiz outro curso, “casados para sempre”, e nesse curso a
gente tem que saber lutar com os adolescentes porque às vezes
no próprio encontro de casais, no próprio departamento se
encontram barreiras vinculadas a você, a seus pais aí a gente
(inint) 3 separação.
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Trecho não recuperado da gravação. O corpus deste artigo é extraído da tese cujo corpus foi
composto por transcrições grafemáticas de gravações feitas com missionárias batistas.
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Discipulado, depois eu fiz um encontro de casal e no encontro de
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Essas sequências marcam um uso do pronome a gente como em “eu fiz
outro curso, ‘casados para sempre’, e nesse curso a gente tem que saber lutar com
os adolescentes” que refere apenas o grupo de religiosos que frequentava o
seminário junto com o enunciador. Na sequência SD04, já mencionada, o sujeito do
discurso faz uso do você, como enunciado em:
SD04 - porque às vezes no próprio encontro de casais, no próprio
departamento se encontra barreiras vinculadas a você, a seus
pais aí a gente (inint) separação,
referindo fiéis bem específicos da comunidade, que são todos os adolescentes, ou
mais especificamente, os adolescentes com problemas familiares os quais são
tratados na igreja, pelos missionários. E, ainda, quando o sujeito do discurso explica
o trabalho da misionária - que inclui palestras com os membros recém-convertidos e
com os adolescentes e seus pais - com o objetivo de demonstrar a importância que
tem a união da família para um evangélico, diante de Deus.
Na sequência discursiva 04, acima, o sujeito explica que a missionária
precisa tomar aulas de discipulado quando aceita Cristo, conforme retoma-se abaixo:
SD04 - aulas de, aquela aula que a gente toma quando aceita Cristo, né?
Discipulado,...
discipulado”, ele se identifica de diferentes formas:
SD05 - Um discipulado é quando a gente vai aceitar Jesus Cristo a gente
tem que saber é, o que é que a gente tá fazendo, né? E o que é
que a gente tá aceitando, então nós recebemos aulas, como na
Bíblia, como se comportar como evangélico, como também saber
evangelizar outras pessoas que ainda não receberam Cristo e
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Enquanto que na sequência 05, a seguir, o sujeito explica o que é “um
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disciplinar para o batismo, nós temos que ir para o batismo
sabendo o que estamos fazendo.
De acordo com o enunciado, a principal forma de discipular diz respeito à
aquisição do conhecimento sobre a Bíblia, o que implica em aprender a adequar-se à
vida de evangélico, isto é,
SD05 - como se comportar como evangélico
Assim, de acordo com a movimentação da representação dada em a
gente, o uso do termo discipular também diz respeito ao aprendizado que se adquire
para realizar o trabalho de evangelização para o não-convertido bem como a
disciplinarização para aqueles já convertidos receberem o batismo.
SD05 - saber evangelizar outras pessoas que ainda não receberam Cristo
SD05 - disciplinar para o batismo, nós temos que ir para o batismo
sabendo o que estamos fazendo
Ou seja, “aprender na aula de discipulado” significa aprender a ser
evangélico para depois redistribuir o ensinamento recebido, no intuito de converter
Isto é, discipular pode ser identificado como evangelizar. Então, “aulas de
discipulado” significam, também, aprender a reconhecer-se como crente porque “a
gente tem que saber”, “o que é que a gente tá aceitando”, “nós temos que ir para o
batismo sabendo o que estamos fazendo”, conforme a sequência discursiva 05,
acima. Finalmente, para o sujeito assujeitado aos sentidos do discurso religioso
discipular significa amadurecer e fortalecer a sua fé. No quadro a seguir, é possível
observar a movimentação do sujeito do discurso religioso, através do uso dos
pronomes a gente e você.
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um incrédulo ou treinar o fiel para a vida de crente batizado.
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Quadro 1 – Movimentação do Sujeito: A Gente
A)
a)I)
B)
J)
A–
C)
A gente refere a missionária
D)
E)
F)
G)
H) 1 b)
.
Outros missionários
“Lá tem a escola de missões, então a gente, às
vezes a gente recebe a orientação pra trabalhar
com adolescentes com novos crentes e eu vim com
esse preparo de lá”
Qualquer membro da denominação da missionária
“Aulas de, aquela aula que a gente toma quando
aceita Cristo, né? Discipulado”
c)
Outros crentes, em geral
“Porque na religião, a gente sabe, não é? Viver, estar
numa religião é fácil, mas mais importante é que a
gente ame seu próximo”
d)
2
.
Crentes (i) e não-crentes (d’)
“Pessoas que vivem conosco”
Assim, um primeiro modo de movimentação do sujeito em direção ao seu
centramento consiste em considerar a separação entre a gente (1) e eles (2,d’).
Neste modelo, a gente (A) refere a missionária e (1): a) Outros missionários; b)
Qualquer membro da denominação da missionária e c) Outros crentes, em geral;
além de (2): “Pessoas que vivem conosco” que refere (i – um crente). Tal
mecanismo separa eles [os outros], as pessoas que não convivem com o sujeito,
entendimento de que o pronome pode referir (d’ – um não-crente), o a gente inclui o
pronome eles. Esse entendimento caminha na contramão do centramento do sujeito.
Conforme SD06 a seguir, o sujeito diz que o pronome você – referindo a
si próprio, ou seja, referindo o missionário – deve continuar com a missão porque foi
Deus quem a deu.
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isto é, aquelas que não são da sua religião/denominação. Entretanto, no
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SD06 - Mas, é você continuar com essa missão que Deus lhe deu [Deus
deu a missão para a missionária] porque existem muitas
dificuldades, não é?
Esse segundo modo de movimentação do sujeito, dado no quadro a
seguir, consiste na separação entre você e eles, quando o uso do pronome
singulariza a missionária.
Quadro 2 – Movimentação do Sujeito: Você
B – Você refere apenas a missionária
Eles [os outros (por inferência), as pessoas
em geral]
Donde:
A gente (a missionária) é o escolhido (todos que se identificam com o discurso da
denominação à qual o sujeito pertence); considerando que o escolhido é um
convertido, é aquele que está salvo.
Eles, As pessoas são os não-escolhidos (todos que não se identificam com o
discurso desse sujeito), ou seja, os não-convertidos, os não-salvos, portanto.
E ainda, donde:
Você (a missionária) é o escolhido (todos que se identificam com o seu discurso);
Eles, As pessoas são os não-escolhidos (todos que não se identificam com o
discurso do sujeito), isto é, as pessoas não-convertidas e, portanto, que não estão
salvas.
Esses dois modos de movimentação de centramento do sujeito afirmam e
reafirmam os escolhidos e os não-escolhidos.
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considerando que o escolhido é aquele que foi salvo.
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Quadro 3 – Movimentação do Sujeito: A gente/Você
A gente /Você
Escolhido
Todos que se identificam com o discurso do sujeito
Eles, As
Não-
Todos que não se identificam com o discurso do sujeito
pessoas
escolhido
Os pronomes a gente/você em tais enunciados ajudam a demarcar
fronteiras porque funcionam não apenas como categorias gramaticais, mas também
como categorias discursivas. Elas, então, controlam a dispersão do sujeito do
discurso e favorecem a sua movimentação em direção ao centramento, dando-lhe
unidade.
Esse movimento, ao mesmo tempo, supõe afirmação e reafirmação das
relações de poder, estabelecidas socialmente e inscritas nas práticas discursivas do
fiel. Nesse mecanismo discursivo, o missionário é colocado constitutivamente pela
estabilização do sentido – sentido de missão para evangelizar – como autor e
responsável por seus atos, em cada prática discursiva em que se inscreve, sob o
efeito da ilusão dos efeitos de sentido do discurso religioso.
Nessa percepção, o sujeito realiza a ilusão de que tem o poder de dizer
quem pode e quem não pode receber as graças divinas, mediante o poder da
representação.
De acordo com o exame das sequências acima, através dos pronomes,
no âmbito da discursividade, o sujeito do discurso religioso inscrito em a gente/você
é o escolhido, enquanto que o não-escolhido é o outro. Desde que esse outro seja
qualquer um que não pertença à mesma denominação religiosa do sujeito que pode
ser ou não ser o seu interlocutor. Assim, a condição de filiação ao sentido atribuído
pelo discurso do sujeito será determinante da identidade discursiva, religiosa e
ideológica.
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2. Apagamento de sentidos
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De acordo com Pêcheux, o sentido “é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)” (PÊCHEUX, 1995,
p. 160). O sentido atribuído, portanto, é dado pelas posições de sujeitos marcadas
por relações de poder que se constroem no processo discursivo. O autor também
dirá que:
As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido
segundo as posições sustentadas por aquelas que as empregam, o
que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas
posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas
quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 1995, p. 160).
Se o sentido é dado em acordo com a posição sustentada pelo sujeito, é
certo também que a processualidade histórica produz mudanças de sentido sobre o
qual o sujeito nem sempre tem o controle. Sob a primazia do interdiscurso, o
discurso produz uma heterogeneidade que não o afeta, porque esse sujeito está
tomado pelo efeito da evidência do sentido. Evidência que faz parecer ao sujeito que
o sentido é único, estável e homogêneo.
O sentido dado pelo funcionamento das sequências discursivas como em:
SD07 – Mas, é você continuar com essa missão que Deus lhe deu porque
expressa antagonismos originados pela posição ocupada pelo sujeito no discurso.
Esse antagonismo é efetivado entre o sujeito do discurso – você – que tem uma
missão dada por Deus e o outro – aquele que não a tem. Esse antagonismo apagase, para o sujeito do discurso, sob a forma de efeito de sentido, dado pela evidência
da identificação.
A evidência do sentido constituído no interior de uma formação discursiva
é um efeito do trabalho da ideologia que funciona como mecanismo de controle das
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existem muitas dificuldades, não é?
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ações dos homens, através do apagamento de outro sentido possível. Nesta
perspectiva, o sujeito não reconhece a contradição que lhe atravessa os sentidos.
Como uma pista, o sujeito a efetiva, dizendo que:
SD07 - porque existem muitas dificuldades, não é?
Tal apagamento serve para orientar as práticas sociais, pois o que é
apagado corresponde aos sentidos não acessados, porém possíveis. Nesta direção
de análise, se pode dizer que a realização do trabalho de evangelização, executado
pelo trabalho de missões, funciona como um efeito do apagamento da contradição.
O apagamento marca-se pelo antagonismo, imposto pela separação operada pelos
pronomes A gente e Você/ Eles, As pessoas, resultado da divisão escolhido/nãoescolhido.
Através da evidência do sentido dado pela linguagem e linguagem
compreendida fora do âmbito exclusivo da língua, fora do polo da dicotomia
saussureana, portanto como um modo de produção social, o sujeito é instituído em
uma dada formação ideológica pela qual ele é identificado como sujeito ideológico,
como é possível esclarecer no fragmento seguinte:
3. Você e A Gente: As posições-sujeito e os Modos de Representação
Os sujeitos, em constante relação, assumem, pela linguagem/discurso,
diferentes posições em uma ou várias formações discursivas e em uma dada
formação ideológica, pois “as relações de linguagem são relações de sujeito e efeitos
de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados” (ORLANDI, 2001, p. 21).
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Essa instância da linguagem é a do discurso. Ela é um modo de
produção social, não é neutra, inocente (na medida em que está
engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso é o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia (...) a linguagem é o lugar
de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora
da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são
histórico-sociais. (BRANDÃO, 1993, p. 12).
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Daí se pode ampliar a definição de discurso feita por Orlandi, a partir de
Pêcheux como “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2001, p. 21) para efeito
de sentido, relacionado à historicidade na qual ele é materializado.
Assim, o discurso religioso constitui-se como um discurso cujo sentido
dado pelo sujeito-universal é o mesmo com o qual o sujeito do discurso se identifica.
Tal identificação é realizada através da tomada de posição do sujeito do discurso em
relação ao sujeito-universal, isto é, a tomada de posição é um efeito do interdiscurso,
ou seja, é o sujeito-universal representado no sujeito do discurso.
Ao sujeito do discurso atribui-se o poder de determinar o significado dado
aos enunciados do discurso religioso, uma vez que a representação funciona como um
sistema de significação. O sujeito, então, adquire o poder de representar a voz de
Deus. Nesses termos, a identidade do sujeito do discurso, no discurso em análise,
constitui-se pelo modo como ele se faz representar nesse discurso para construir
sentidos de unidade e de homogeneidade.
Na instância interdiscursiva, considera-se que a relação de interlocução ou
a relação de lugares é dada pelo contexto sociohistórico, o que quer dizer que as
práticas sociais constituídas em sua historicidade determinarão as práticas discursivas.
Nessa perspectiva, os interesses diversos que estão presentes no próprio
funcionamento do discurso, com os conflitos que os perpassam, determinarão o lugar
do sujeito, bem como também determinarão como ele posiciona o outro. Assim, a
gente e você marcam os papéis pelos quais o sujeito pode se representar, no discurso.
Essa relação dinâmica da linguagem, provocada pelo sujeito do discurso, movimentará
e conseqüentemente afetará sua posição no discurso.
Sendo assim, os mecanismos discursivos, marcados no intradiscurso
vozes que permitem um deslize nos papéis da representação para a posição do
enunciador, em direção do centramento. Esse deslizamento constitui um sujeito
baseado “numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado” (HALL, 2005, p. 10), cuja identidade é inteira e fixa.
Desse modo, os pronomes você e a gente funcionam como um dispositivo
discursivo que diz respeito ao modo de representação do sujeito do discurso. Por esse
funcionamento discursivo, o sujeito do discurso representa o sujeito universal,
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através das formas pronominais você e a gente, mostram um conjunto de diferentes
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realizando um movimento em que o sujeito universal se representa através de um
processo de inclusão, de particularização ou de generalização4 de posições sujeito
pertencentes à mesma formação discursiva, mas sempre com o intuito de centrar-se na
posição do enunciador.
Assim, a representação do sujeito do discurso mostrada pelos pronomes
você e a gente, nas sequências discursivas em análise, indica um funcionamento
discursivo cujo sujeito sintetiza todas as posições de representação na posição do
enunciador.
Essa estratégia discursiva compreende a ilusão do movimento da
representação significando a fixidez do sujeito e o fechamento do sentido, no discurso
religioso em análise, cujo movimento, por sua vez, orienta para a unidade do sujeito e
do sentido. O modo de representação das posições de sujeitos, então, organiza o
discurso religioso como uma unidade originada no efeito da transparência dos sentidos.
Nessa compreensão, as formas gramaticais você e a gente funcionam
como mecanismo discursivo, que, sob o domínio de saber do discurso religioso,
constitui o sujeito e o sentido que identifica o fiel como aquele indivíduo capaz de
submeter-se às leis de Deus, em busca da salvação eterna e que para isso deve viver
sem pecados. O sentido circulante na formação discursiva religiosa alimenta a crença
de que o homem não terá direito ao paraíso nem à proteção divina, caso não haja a
submissão às leis de Deus. Esse sentido constitui o sujeito e a identidade do sujeito do
discurso religioso, ancorado no discurso da obediência; obediência às normas
impostas pelo sujeito-Deus.
O centramento do sujeito faz trabalhar a repetição, o mesmo efeito de
sentido porque isso significa a homogeneidade do discurso religioso. Dizendo de
outro modo, o sujeito estende o sentido historicamente constituído pelo discurso
a missionária -, para os membros da sua comunidade religiosa ou para qualquer
indivíduo que aceite a palavra divina como a única e a verdadeira e queira fazer parte
da mesma denominação religiosa. Então, o sujeito identificado à formação discursiva
religiosa assume a posição do sujeito universal, no estatuto da representação.
4
Orlandi e Guimarães (1989, p. 48) apresenta a organização das vozes, no texto, que é dado como
uma unidade, como uma representação de enunciadores que podem ser: individual, genérico,
universal, coletivo.
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religioso, partindo da posição do enunciador, aquele que diz você/a gente – referindo
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A necessidade de centramento do sujeito plenamente determinado pela
crença em Deus coloca-o, consequentemente, sob maior poder da determinação
ideológica. Isso ocorre porque o movimento do sujeito para a posição de centramento
é o efeito ideológico da negação da interpretação (ORLANDI, 1996) que o próprio
sujeito realiza já como mecanismo de produzir ideologia, pois, na concepção
discursiva, a ideologia faz com que o sentido apareça como único e verdadeiro.
A ideologia, então, produz o efeito de completude do sentido e do sujeito e,
como conseqüência, o efeito de evidência, pois os sentidos institucionalizados são
admitidos como naturais. Assim, a ideologia naturaliza o que é produzido pela história
(ORLANDI, 1996), fazendo parecer que não há historicidade, apagando-a.
Dessa maneira, o movimento dos sentidos e do sujeito em direção à unidade
e centramento, através da representação, indica o apagamento da evidência da
alteridade existente no discurso. Na formação discursiva religiosa, o movimento do
sujeito em direção ao centramento significa o esforço para apagar os outros efeitos de
sentido possíveis e contraditórios com o discurso da obediência que, inclusive, apregoa a
submissão do fiel como uma dádiva necessária para a realização da sua salvação. O
movimento de centramento objetiva à manutenção do sentido já-dado pelo sujeito
universal, neste caso, Deus.
Assim, o apagamento dos sentidos possíveis é realizado a partir de um efeito
do trabalho do interdiscurso, sendo um efeito dos esquecimentos, definidos por Pêcheux
(1995). Pelos esquecimentos o sujeito constrói a ilusão de que é origem do seu dizer,
pois diz o que quer. E cosntroi também a ilusão de que o que ele diz só poderia ser
aquilo e não outra coisa (ORLANDI, 1996, p. 89). Sendo assim, as ilusões do sujeito
fazem-no reproduzir os sentidos circulantes no discurso religioso, ideologicamente
CONCLUSÕES
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constituído.
Ao organizar os papéis da representação de modo a unificá-los na posição do
enunciador, como já afirmado, ao mesmo tempo o sujeito realiza o processo de
unificação do sentido, pois, para o sujeito do discurso religioso, não há possibilidade de
interpretação. O que há é manutenção do sentido que lhe é dado. Isso o constitui como
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representante autorizado a traduzir o dito de Deus, desde que permaneça como um bom
sujeito (PÊCHEUX, 1995), ou seja, desde que se submeta plenamente ao sentido dado
pelo sujeito universal-Deus. Então, como foi dito, dá-se a conjunção nas formas de
assujeitamento à religião e à ideologia.
Como conseqüência, o deslocamento produz uma superposição (PÊCHEUX,
1995) das posições do sujeito, criando a unidade necessária ao discurso religioso. Por
isso, ao assumir a posição do sujeito universal, o sujeito desloca-se da posição de
ouvinte (ORLANDI, 1996), isto é, de sujeito comum para a posição de enunciante
escolhido por Deus, como um efeito da representação.
Nesse aspecto, o sujeito do discurso coloca-se como aquele que tem um
dom, que foi escolhido divinamente, subvertendo sua condição de sujeito comum, pois
atua como um intercessor dos homens diante de Deus. Na sequência discursiva a seguir,
o enunciador coloca-se como um sujeito especial porque ele pode interceder “pelas
almas perdidas”. Assim, as pessoas que são drogadas, viciadas, ou seja, aquelas “que
vivem na ignorância da palavra”, que “estão sem Deus” são pessoas pelas quais ele, e
somente ele, pode fazer oração porque pertence a outro mundo, o mundo que não é o
mesmo onde estão as pessoas que têm almas perdidas. Essas são as outras, fora do
você e do a gente centralizadores, retratando o movimento ser/não ser escolhido.
SD08 - Intercedo pelas almas perdidas que vivem na ignorância da
Palavra e estão sem Deus, eu faço oração, como por exemplo, as
pessoas que estão num mundo assim que se drogam, né?
Pessoas viciadas, elas precisam da nossa compaixão, precisam
que nós arregacemos as nossas mangas e vá ao encontro dessas
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pessoas para tirá-la de lá.
A partir da análise dos enunciados, retirados do texto transcrito das
entrevistas gravadas das missionárias batistas, pode-se afirmar que, através da
representação submetida ao poder de Deus, concebe-se que o sujeito diferencia-se dos
demais, construindo uma hierarquia autorizada pelo próprio discurso divino e dela
participando como representante do sujeito de maior poder nessa hierarquia: o próprio
Deus.
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Assim, ao organizar um modo de representação em que se iguala ao poder
de Deus e considerando que o dito de Deus não se pode questionar, o sujeito do
discurso torna inquestionável o seu próprio dito, o que lhe garante uma posição de maior
prestígio social, inclusive perante o próprio grupo com o qual se identifica.
ABSTRACT
This article examines the separation imposed by the subject to demarcate the limits
of what he holds sacred in the type of work that has or would like to pursue. Thus
initially, explains that the pronouns you and we act as discursive mechanism that
operates such separation, that the screening of the corpus, is given under the
formula being / not being identified to address the subject, and this produces deletion
of other senses.
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Key-words: pronouns we / you. Identity. Representation. Sense. Subject.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos.
Campinas: Pontes, 2001.
__________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de
Janeiro: Vozes, 1996.
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ORLANDI, Eni Pulcinelli, GUIMARÃES, Eduardo, TARALLO, Fernando. Vozes e
contrastes: discurso na cidade e no campo. São Paulo: Cortez, 1989.
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Nell: uma análise sob a ótica educacional e sociocultural de
inclusão
Rosária de Fátima Boldarine5
Flavio Biasutti Valadares6
___________________________________________________________________________
RESUMO
O artigo trata da educação inclusiva no Brasil em paralelo à
perspectiva abordada no filme Nell. Apresenta considerações
sobre a legislação relativa à inclusão social, prevista na
educação, a visão dos tratados e das leis que amparam a
inclusão social e uma análise sobre o filme Nell, a partir da qual
traçamos o paralelo com a educação inclusiva. Objetiva
mostrar formas com as quais se pode pensar a inclusão
sociocultural e educacional, observando as peculiaridades das
pessoas com algum grau de deficiência. Baseia-se em
conceitos de educação inclusiva abordados por Báfica (2012),
Cardoso (2003), Mantoan (2006), entre outros. Segue como
metodologia uma visão a respeito da legislação vigente acerca
do tema e a relação com a personagem-título. Conclui que a
condução para uma educação inclusiva, no Brasil, ainda
precisa garantir o cumprimento da legislação e o acesso de
todos os deficientes ao desenvolvimento sociocultural e
educacional.
PALAVRAS-CHAVE: Educação. Escola. Inclusão. Cultura.
5
Doutora em Educação/UNESP. Docente Convidada Mackenzie-SP do curso de pós-graduação em
Língua Portuguesa e Literatura. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1143372064747834. Endereço eletrônico:
[email protected].
6
Doutor em Língua Portuguesa/PUC-SP. Docente do IFSP/Campus São Paulo. Pós-Doutorado em
Letras Mackenzie-SP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5302107511329665
Endereço eletrônico: [email protected].
1. Introdução
Mills (1999, p. 25) defende que o princípio que rege a educação inclusiva
é “o de que todos devem aprender juntos, sempre que possível, levando-se em
consideração suas dificuldades e diferenças”. Mantoan (2006) propõe que a inclusão
é o privilégio de conviver com as diferenças. Nessa perspectiva, como aponta
Facion (2008, p. 203), “incluir não é simplesmente levar uma criança com deficiência
a frequentar o ensino regular. A inclusão é uma conquista diária para a escola, para
a criança e para seus pais. Todo dia é um dia novo na inclusão”.
Nesse ponto, em se tratando de inclusão educacional, é possível
entendermos a legislação brasileira como uma das mais avançadas do mundo; no
entanto, o que verificamos em situações retratadas pela mídia ou mesmo por
presenciarmos in loco, ao visitarmos escolas e/ou ao orientarmos alunos de cursos
de pós-graduação, é que a realidade se distancia do preconizado na legislação, ou
seja, quando a ideia de inclusão se fundamenta numa filosofia que reconhece e
aceita a diversidade na vida em sociedade, está nos evidenciando que o Brasil não
alcançou este ideal ainda, que não há a prevista e desejada garantia de acesso de
todos a todas as oportunidades. (ARANHA, 2001)
A partir disso, é necessário entendermos que as políticas públicas devem
ser consideradas como diretrizes, regras e procedimentos que norteiam a ação do
poder público para com a sociedade. É nas mediações entre a sociedade e o
Estado, em que documentos sistematizados orientam as ações que envolvem
aplicações de recursos públicos, que devem ser elaboradas políticas públicas, a fim
(TEIXEIRA, 2002)
Isso posto e considerando os aspectos linguísticos e culturais,
produzimos este artigo com o objetivo de traçar um paralelo entre o filme Nell e a
educação inclusiva. Esclarecemos que a escolha do filme deu-se em razão de ele
apresentar uma situação bastante peculiar quanto a uma tentativa equivocada de
inserção cultural e educacional da personagem-título.
Como procedimentos metodológicos para a consecução de nossa análise,
utilizamos o filme e a pesquisa de cunho bibliográfico que nos auxilia a pensar a
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de se definir quem decide, o quê, quando, com que consequência e para quem.
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forma como a educação de pessoas com deficiência vem acontecendo em âmbito
nacional, além da base teórica relativa à educação inclusiva e a legislação vigente.
2. Legislação: localizando a questão
Báfica (2012, p. 96) explicita que, no Brasil, a educação especial “passou
a constar na política educacional nos anos 50-60 do século XX”. Ela afirma que
“embora algumas experiências educacionais inspiradas nos modelos europeus e
norte-americanos tenham iniciado no século XIX, durante muito tempo, predominou
o modelo médico na educação de pessoas com deficiência” e complementa dizendo
que, “ainda, hoje percebemos fortes indícios desse modelo”.
A partir de meados do século XX, as discussões a respeito da inclusão
educacional começam a se intensificar. Muitos autores (SANTOS, 2013; CARDOSO,
2003; MANTOAN, 2006) apontam que os ambientes até então destinados para a
educação de pessoas com deficiência (escolas específicas para cegos, por
exemplo) poderiam contribuir para a segregação. Começa-se, também, a questionar
o modelo homogeneizante da escola tradicional que acabava gerando exclusão.
Nessa perspectiva, novas propostas de educação começam a surgir. O processo de
ampla democratização do acesso à escola também passa a figurar nos sistemas
educacionais de grande parte do mundo ocidental.
Ainda que as discussões a respeito da inclusão já estivessem
acontecendo, em 1994, é que medidas mais palatáveis começam a ser
implementadas. Neste ano, acontece em Salamanca, Espanha, uma conferência
com a finalidade de discussão e apresentação de
propostas com vistas a garantir a inclusão, com a problematização dos aspectos
concernentes à escola não acessível para todos. Na Conferência de Salamanca, é
estabelecido o compromisso da Educação Para Todos.
Nós, os delegados da Conferência Mundial de Educação Especial,
representando 88 governos e 25 organizações internacionais em
assembleia aqui em Salamanca, Espanha, entre 7 e 10 de junho de
1994, reafirmamos o nosso compromisso para com a Educação para
Todos,
reconhecendo
a
necessidade
e
urgência
do
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organizada pela UNESCO
23
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providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos
com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular
de ensino e re-endossamos a Estrutura de Ação em Educação
Especial, em que, pelo espírito de cujas provisões e recomendações
governo e organizações sejam guiados. (DECLARAÇÃO DE
SALAMANCA, 1994).
E ainda:
Escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem
os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias
criando-se comunidades mais acolhedoras, construindo uma
sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso,
tais escolas proveem uma educação efetiva à maioria das crianças
aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de
todo o sistema educacional. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA,
1994).
Ao observarmos a Declaração de Salamanca, fica claro o compromisso,
do qual o Brasil foi signatário, de que as escolas devem receber e prover a
educação das pessoas com deficiência, com a devida organização dos sistemas
regulares de ensino. A escola é que deve adaptar-se ao aluno e não o inverso.
Contrariamente ao movimento mundial que postula a inclusão irrestrita, o
Brasil – mesmo tendo assinado a Declaração de Salamanca – publica, em 1994, o
documento Política Nacional de Educação Especial. Este documento busca
fundamentação no modelo integracionista, com foco no modelo clínico de
deficiência. Ao invés de propor a integração com respeito à diferença, o documento
segue o paradigma da normalização, em que a pessoa com deficiência deve ser
integrada como aluno e seguir o ritmo “normal” dos colegas, regulamenta ainda a
Ambiente dito regular de ensino/ aprendizagem, no qual também, são
matriculados, em processo de integração instrucional, os portadores
de necessidades especiais que possuem condições de acompanhar
e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino
comum, no mesmo ritmo que os alunos ditos normais. (BRASIL,
1994, p. 19)
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criação de classes especiais .
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Ao manter a forma de organização e classificação dos estudantes, o
documento acaba por não incentivar o olhar para a diferença. Assim, alunos com
necessidades especiais que não conseguem acompanhar o “mesmo ritmo que os
alunos ditos normais” acabam por ficar ainda mais excluídos. A imposição de uma
só forma de educar/ensinar não possibilita o pleno desenvolvimento dos alunos.
Nesse aspecto, afirmamos que se concretiza o conflito entre o discurso de inclusão
e o conservadorismo das práticas escolares que passam a apenas acolher os
estudantes com deficiências sem que realmente se criem novas possibilidades de
inserção e aprendizagem.
É importante, também, explicitarmos que é publicada, em 1996, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como LEI 9394/96. Nesta lei, o
capítulo V é dedicado à questão da inclusão. O Art. 58 apresenta que a educação
especial pode ser entendida: “para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação
escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educando
portador de necessidades especiais”.
O artigo 58 da LDB 9394/96, em seu §1º, indica que sempre que houver
necessidade haverá um professor especialista para auxiliar o aluno: por exemplo,
em uma classe com aluno surdo, ter-se-á um Tradutor e Intérprete de Língua
Brasileira de Sinais (Libras ). Realidade que, mesmo após quase vinte anos de
promulgação da lei, é praticamente inexistente na rede pública de ensino. Silva e
[...] de um lado, os professores do ensino regular não possuem
preparo mínimo para trabalhar com crianças que apresentem
deficiências evidentes e, por outro, grande parte dos professores do
ensino especial tem muito pouco a contribuir com o trabalho
pedagógico desenvolvido no ensino regular, na medida em que têm
calcado e construído sua competência nas dificuldades específicas
do alunado que atendem. (SILVA e RETONDO, 2008, p. 28)
Ainda de acordo com as autoras, o resultado de uma política inclusiva que
fica apenas na forma da lei é que muitos alunos com deficiências, mesmo estando
em sala de aula, acabam sendo segregados e excluídos, muitas vezes não
conseguindo dar continuidade aos estudos. Corroborando tal aspecto, Carneiro
(2012) relata que
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Retondo apontam que,
25
o entendimento da proposta de educação inclusiva requer uma
análise do modelo anterior com vistas a delimitar o papel da escola
no processo de desenvolvimento e aprendizagem do aluno com
deficiência. A escola e a classe especial destinadas à educação do
deficiente tinham como meta a normalização do sujeito de forma que
pudesse se assemelhar o máximo possível com os sujeitos normais,
para então, e só então, poderem ser integrados ao convívio comum,
nesse caso a escola comum. Essa meta, além de negar a condição
de diferença e estabelecer parâmetros homogêneos de
desenvolvimento, como se isso fosse possível, descaracterizou o
papel da escola. De instituição responsável pela formação das novas
gerações, difundindo o conhecimento elaborado pela humanidade ao
longo do tempo, passou a ter como foco principal, e na maioria das
vezes, único, a modificação do aluno com deficiência através da
reabilitação de funções ou da habilitação para o desempenho de
funções inexistentes em virtude da deficiência. (CARNEIRO, 2012, p.
82-83)
Nesse ponto, é relevante explicitarmos que tanto a LDB 9394/96 quanto a
Constituição Federal de 1988 afirmam que a educação é direito de todos e a escola,
seguindo a democratização, deve estar aberta para um número cada vez maior de
educandos de todas as classes sociais e todas as diferenças, porém o que vemos
na realidade é o despreparo das instituições que não estão se adaptando à nova
realidade, isto é, enquanto um olhar mais atento não for dedicado ao portador de
necessidades especiais e a prática não for repensada, teremos a inclusão que gera
exclusão. Nesse sentido, é importante reiterarmos que não basta a escola receber o
aluno que apresenta diferenças e tratá-lo como outro aluno qualquer. É preciso que
se atente para as diferenças, para que a aprendizagem e o acesso aos bens
culturais sejam plenamente realizados.
com deficiência, apresentamos, ainda que didaticamente, um breve histórico: Lei nº
10.436/02, que reconhece a Língua de Sinais como meio legal de comunicação e
expressão; e a Portaria nº 2.678/02, que aprova a diretriz e normas para o uso,
ensino, a produção e a difusão do Sistema Braille em todas as modalidades de
ensino. Quanto a políticas públicas, em 2003, o Ministério da Educação cria o
Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, visando a transformar os
sistemas de ensino em sistemas educacionais inclusivos. Em 2004, o Ministério
Público Federal divulga o documento O Acesso de Alunos com deficiência às
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Ainda com relação à legislação que versa sobre a questão das pessoas
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Escolas e Classes da Rede Regular, com o objetivo de disseminar os conceitos e
diretrizes mundiais para a inclusão.
Impulsionando a inclusão educacional e social, o Decreto nº 5.296/04
regulamentou as leis nº 10.048/00 e nº 10.098/00, estabelecendo normas e critérios
para a promoção da acessibilidade às pessoas com deficiência ou com mobilidade
reduzida. Nesse contexto, o Programa Brasil Acessível é implementado com o
objetivo de promover e apoiar o desenvolvimento de ações que garantam a
acessibilidade. No Decreto nº 5.626/05, que regulamenta a Lei nº 10.436/2002,
visando à inclusão dos alunos surdos, é disposto sobre a inclusão da Libras como
disciplina curricular, a formação e a certificação de professor, instrutor e
tradutor/intérprete de Libras, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua
para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular.
Em 2005, com a implantação dos Núcleos de Atividade das Altas
Habilidades/Superdotação – NAAH/S em todos os estados e no Distrito Federal, são
formados centros de referência para o atendimento educacional especializado aos
alunos com altas habilidades/superdotação, a orientação às famílias e a formação
continuada aos professores. Nacionalmente, são disseminados referenciais e
orientações para organização da política de educação inclusiva nesta área, de forma
a garantir esse atendimento aos alunos da rede pública de ensino.
Outro ponto de destaque é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006, da qual o Brasil é signatário, que
estabelece: os Estados Parte devem assegurar um sistema de educação inclusiva
em todos os níveis de ensino, em ambientes que maximizem o desenvolvimento
acadêmico e social compatível com a meta de inclusão plena, adotando medidas
educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não
sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório, sob alegação de
deficiência e que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino
fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as
demais pessoas na comunidade em que vivem (Art. 24).
Em 2006, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Ministério da
Educação, o Ministério da Justiça e a UNESCO lançam o Plano Nacional de
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para garantir que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema
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Educação em Direitos Humanos que objetiva, dentre as suas ações, fomentar, no
currículo da educação básica, as temáticas relativas às pessoas com deficiência e
desenvolver ações afirmativas que possibilitem inclusão, acesso e permanência na
educação superior. Em 2007, no contexto com o Plano de Aceleração do
Crescimento – PAC, é lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE,
reafirmado pela Agenda Social de Inclusão das Pessoas com Deficiência, tendo
como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, a implantação de
salas de recursos e a formação docente para o atendimento educacional
especializado.
No documento Plano de Desenvolvimento da Educação: razões,
princípios e programas, publicado pelo Ministério da Educação, é reafirmada a visão
sistêmica da educação que busca superar a oposição entre educação regular e
educação especial. Contrariando a concepção sistêmica da transversalidade da
educação especial nos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino, a
educação não se estruturou na perspectiva da inclusão e do atendimento às
necessidades educacionais especiais, limitando o cumprimento do princípio
constitucional que prevê a igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola e a continuidade nos níveis mais elevados de ensino.
O Decreto nº 6.094/2007 estabelece, dentre as diretrizes do Compromisso
Todos pela Educação, a garantia do acesso e permanência no ensino regular e o
atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos, fortalecendo a
inclusão educacional nas escolas públicas. Em 2007, no contexto com o Plano de
Aceleração do Crescimento – PAC, é lançado o Plano de Desenvolvimento da
Educação – PDE, reafirmado pela Agenda Social de Inclusão das Pessoas com
a implantação de salas de recursos e a formação docente para o atendimento
educacional especializado. Em 18 de setembro de 2008, foi publicado o Decreto n.
6.571/08, que dispõe sobre o atendimento educacional especializado, regulamenta o
parágrafo único do Art. 60 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e
acrescenta dispositivo ao Decreto n. 6.253, de 13 de novembro de 2007.
Para finalizar esta seção, é importante citarmos que, segundo a Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva: “O
atendimento educacional especializado identifica, elabora e organiza recursos
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Deficiência, tendo como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares,
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pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação
dos alunos, considerando as suas necessidades específicas” (BRASIL, 2007, p. 16),
ou seja, temos nesta política de inclusão uma grande possibilidade de promover, de
fato, ações que deem conta de um atendimento educacional mais especializado,
diferenciando-se, segundo o próprio documento, das ações realizadas em sala de
aula
comum,
não
se
configurando
evidentemente
como
substitutivas
à
escolarização, mas sim, como modo de complementar e/ou suplementar a formação
dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela.
3. Uma análise de Nell e seu paralelo com a inclusão
O filme Nell, lançado em 1995, com direção de Michael Apted e produção
de Renee Missel e Jodie Foster, tem como protagonistas Jodie Foster (vencedora do
Oscar), Liam Neeson e Natasha Richardson. É um filme distribuído pela Fox Video e
tem 115 minutos de duração. Seu enredo trata da história de uma pessoa que viveu
isolada junto com sua mãe em uma floresta, distante da cidade e do contato com a
zona urbana e mostra a tentativa de civilizar Nell, nas ações do médico e da
psicóloga. Após a morte de sua mãe, a personagem Nell passa a viver sozinha.
Na sinopse do filme, encontra-se a seguinte questão: Mas será certo
civilizar uma pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso? Conforme a
perspectiva adotada para conceituar cultura, pode-se afirmar que Nell não tinha
cultura. Isso seria possível, desde que a base fosse etnocêntrica. Em paralelo,
observando-se o conceito de cultura sob o viés relativista, pode-se confirmar a
A partir dessas noções, traça-se um curioso embate entre o que é cultura
e o que não é cultura. Todos os personagens do filme, em princípio, consideram Nell
uma selvagem. Nesse sentido, atribuem a ela a não civilização, um comportamento
distinto do deles, uma falta de sociabilidade; enfim, os vários requisitos para se viver
em sociedade, sob o prisma deles, a personagem não apresentava.
Ao se considerar, por exemplo, os rituais que Nell praticava como a
maneira como sepultou sua mãe ou a sua ida ao rio à noite para banhar-se ou
mesmo o retorno ao local onde sua irmã tinha sido enterrada, não se pode, numa
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cultura de Nell.
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perspectiva relativista, considerar que ela não possui cultura. Ao contrário, ela,
mesmo isolada, mantinha a tradição cultural de seu grupo, qual seja, sua mãe e sua
irmã.
Quando os personagens Lovell e Paula pensam numa classificação para
Nell como deficiente mental, fica patente sua visão de que alguém com
comportamento diferente do que se considera normal, pelo seu grupo social,
necessita ser classificado como anormal. Entretanto, após uma certa convivência
com Nell, tanto o médico quanto à psicóloga percebem que Nell não apresenta
qualquer tipo de deficiência, apenas ela teve um locus diferente. Isso produz nos
dois personagens um início de percepção deslocada da visão etnocêntrica, o que se
traduz, inclusive, num olhar diferente para a própria vida.
Considerando-se a convivência entre Nell, Lovell e Paula, compreendemse melhor questões concernentes aos equívocos que muitas sociedades cometem
na tentativa de imposição de sua cultura frente à cultura do outro, ou mesmo, de não
consideração da cultura diferente. O inicial exotismo verificado pelos personagens
deu lugar a um encantamento associado a um desejo de entender melhor aquele
universo bastante peculiar que Nell apresentava.
Também, provocou no médico e na psicóloga uma imersão para si
mesmos, quando eles passaram a vislumbrar as possibilidades diferentes que eles
próprios poderiam ter em relação a sua própria vida. Isso foi bastante revelador no
filme, já que demonstrou uma possibilidade de, em contato com uma cultura
diferente, as pessoas passarem a ter uma noção mais relativa de sua própria
cultura.
A cena do julgamento, ao final do filme, chama à reflexão desses
audiência na qual Nell é julgada) o quanto ela é um ser humano, ainda que tenha
vivido em condições diferentes das de todos os presentes à audiência. Ela
demonstra todo seu carinho, seu medo, sua angústia, sua vontade, enfim, sem nem
mesmo falar a língua que os outros queriam que ela falasse, nesse caso, o inglês.
Nesse aspecto, a personagem prova que a linguagem humana é
universal, que os sentimentos e tudo o que está em torno deles são universalmente
produzidos pelo homem. Isto é, não é pelo fato de Nell ter vivido isolada da pretensa
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aspectos, posto que Nell mostra a todos naquela audiência (no filme, acontece uma
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civilização que ela não teria os mesmos sentimentos que todos os considerados
civilizados. Ao contrário, percebe-se nela uma pureza que normalmente não se
verifica em pessoas ditas civilizadas.
Retornando, mais precisamente, à questão: Mas será certo civilizar uma
pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso?, lançamos, a título de
reflexão, alguns aspectos relacionados a isso: Qual seria o conceito de selvagem?
Civilizar é, necessariamente, tornar uma pessoa melhor? Com que direito
alguém pode mensurar o desejo do outro? Assim como as culturas são distintas, as
línguas também o são, então Nell teria de fato uma língua?
Dessa forma, não se pode pensar Nell como uma selvagem, mas sim,
como uma pessoa que vive uma outra cultura, bastante distinta da nossa, nem por
isso melhor ou pior. Além disso, seria bastante hipotético, a priori , tecer qualquer
tipo de consideração acerca dos desejos dela, tanto que a convivência dos três os
fez adaptar seus comportamentos no sentido de entender melhor uns aos outros.
Portanto, pelo menos no filme, constatamos uma convivência pacífica
entre Nell e os outros, mostrada na cena final, em que as culturas são respeitadas e
não há a imposição de uma das culturas. No entanto, podemos inferir que Nell
sofreu mais adaptações à cultura da cidade que o contrário.
Nessa perspectiva, em paralelo à educação inclusiva, amparamo-nos no
exemplo do filme para mostrar como nossa sociedade pode valer-se de pontos
incomuns para “decidir” o que é normal e o que não o é. No caso da inclusão
educacional e, por consequência, da inclusão sociocultural, entendemos que a
sociedade brasileira ainda apresenta problemas na condução desse processo.
inclusiva é a valorização da diversidade e da comunidade humana. Quando a
educação inclusiva é totalmente abraçada, nós abandonamos a ideia de que as
crianças devem se tornar normais para contribuir para o mundo”.
Contudo, utilizar o filme e as reflexões por ele provocadas para pensar a
realidade da inclusão de pessoas com deficiência na escola pode parecer um pouco
radical, já que, conforme observado, a personagem é alguém que viveu longe da
civilização
e
apresenta
comportamento
“selvagem”
como
colocado
pelos
especialistas que a tratam inicialmente. Porém, se considerarmos que, muitas vezes,
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Como nos esclarece Kunc (1992, p.10), “o principio fundamental da educação
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a inadequação sentida pelas pessoas com deficiência é a mesma sentida por Nell
podemos então traçar um paralelo para refletirmos sobre as condições concretas
vividas nas escolas.
Posto isso, é importante exemplificarmos que, algumas vezes, entrar na
escola já é um problema, como mostra reportagem do Diário Catarinense, de
16/04/2013, intitulada “Alunos com deficiências enfrentam dificuldades para estudar
em escolas comuns”, em que a dificuldade dos pais de um garoto com Síndrome de
Down é observada, ou seja, eles percorreram várias escolas até conseguir uma que
aceitasse a matrícula do filho. Ao pensarmos os dados oficiais e olharmos para as
situações reais, podemos constatar que há, ainda, um longo caminho para que a
educação de todos, incluindo as pessoas com deficiência, seja realmente uma
educação para todos.
Nesse aspecto, o que deveria ocorrer, como preconizado, por meio da
Resolução n.2/2001, que instituiu as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial
na Educação Básica – “Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos,
cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com
necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para
a educação de qualidade para todos”, o exemplo mostra que a realidade desse
processo inclusivo é bem distinto.
Quando pensamos em Nell e em sua trajetória, percebemos que seu
desenvolvimento só ocorreu quando do contato mais intenso e próximo com as
outras pessoas, a linguagem enquanto produtora de humanidade se fez presente a
partir das relações sociais estabelecidas e do reconhecimento de sua diferença. Da
mesma maneira, a escola também deve ter um olhar diferenciado para a pessoa
procurando, a partir delas, estabelecer novas possibilidades de desenvolvimento.
Nesse sentido, as relações entre professor-aluno devem ser um ponto privilegiado:
A importância da atuação de outras pessoas no desenvolvimento
individual é particularmente evidente em situações em que o
aprendizado é um resultado claramente desejável das interações
sociais. Na escola, portanto, onde o aprendizado é o próprio objetivo
de um processo que pretende conduzir a um determinado tipo de
desenvolvimento, a intervenção deliberada é um processo
pedagógico privilegiado. Os procedimentos regulares que ocorrem
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com deficiência, não buscando mascarar as diferenças e sim aceitando-as e
32
na escola – demonstração, assistência, fornecimento de pistas,
instruções – são fundamentais para a promoção de um ensino capaz
de promover o desenvolvimento. A intervenção do professor tem,
pois, um papel central na trajetória dos indivíduos que passam pela
escola. (OLIVEIRA, 2000, p. 15)
Nesse ponto, é imprescindível que mais do que acolher as pessoas com deficiência,
a escola deve estar preparada para considerar as deficiências como ponto de
partida para uma educação verdadeiramente inclusiva. A escola deve adaptar-se a
esses alunos e não o contrário, procurando a concretização da aprendizagem. Nas
palavras de Mittler (2003, p. 16),
a inclusão não diz respeito a colocar as crianças nas escolas
regulares, mas a mudar as escolas para torná-las mais responsivas
às necessidades de todas as crianças, diz respeito a ajudar todos os
professores a aceitarem a responsabilidade quanto à aprendizagem
de todas as crianças que estão atual e correntemente excluídas das
escolas por qualquer razão. Isto se refere a todas as crianças que
não estão beneficiando-se com a escolarização, e não apenas
aquelas que são rotuladas com o termo “necessidades educacionais
especiais. (MITTLER, 2003, p. 16)
Também, é importante que a escola localize, como indiciam Coll et al
Generalizadas: quando estas afetam todas as aprendizagens, seja
escolar e não escolar.
Graves: são aquelas que acabam por afetar vários e importantes
afetos no desenvolvimento da pessoa, os motores, os linguísticos e
os conectivos, por exemplo, estes podem ter sido ocasionados por
algum dano ou lesão cerebral, adquiridos durante a vida ou durante o
desenvolvimento embrionário, ou ainda fruto de algum tipo de
alteração genética, estas podem ser classificadas como
permanentes, pois o prognóstico a este tipo de dificuldade é muito
pouco favorável já que não se pode fazer muita coisa para reverter o
dano inicial causado pelo trauma ou má formação na área cerebral.
Inespecíficas: quando não afetam o desenvolvimento de modo a
impedirem alguma aprendizagem em particular, são as pessoas que
se dizem não servir para esta ou aquela aprendizagem em particular,
o raciocínio lógico matemático, por exemplo, neste caso não há
nenhuma razão intelectual que as justifique, ao contrário a causa
pode ser instrucional e/ou ambiental com uma influência especial
sobre variáveis pessoais, tais como a motivação.
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(2004), por que tipo de dificuldade se caracteriza o aluno que a ela chega:
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Intermediárias: as caracterizadas como específicas, por afetarem de
modo especifico determinadas aprendizagens escolares, como a
leitura, a escrita ou a matemática, estas ainda são consideradas
leves por não implicar em deterioração intelectual, os aspectos
psicológicos afetados são poucos, por exemplo, o desenvolvimento
fonológico, ou a atenção sustentada, ou a memória de trabalho, e
suas consequências podem ser solucionadas mediante intervenção
psicopedagógica oportuna e eficaz. (COLL et al, 2004, p. 42)
Como pudemos observar, em Nell, há uma tentativa de civilizar. Cabe, então, uma
reflexão: será que a escola, na contemporaneidade, acha que uma pessoa com
alguma deficiência precisa ser civilizada?
4. Conclusão
Neste artigo, fizemos um paralelo importante entre a inclusão de Nell,
personagem-título do filme exibido em 1995, em um grupo sociocultural, e a situação
da educação inclusiva, a partir da legislação vigente, no Brasil contemporâneo, sem,
evidentemente, traçar um histórico ou mesmo considerar que este espaço dê conta
de uma discussão bem atual e ininterrupta como a inclusão escolar.
Nesse sentido, entendemos que o espaço para a inclusão reside
principalmente no respeito às diferenças em equidade de condução das ações
necessárias para o exercício daquilo que se quer e se pode exercer, isto é, a
verdadeira inclusão apenas acontecerá quando deixar de ser uma obrigatoriedade
legal e passar a ser uma prática da e na sociedade, fazendo parte disso,
efetivamente, a escola enquanto instituição formadora.
prazo que precisa ocupar seu espaço nas escolas, para impulsioná-la como
instituição em uma direção de se reorganizar como local possibilitar de aquisição de
conhecimentos para todos. Ao mesmo tempo, esta escola não poderá prescindir de
se diversificar para que possa ampliar as oportunidades de aprendizagem dos
alunos.
Para finalizar, citamos Morin:
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Rosseto (2005) ressalta que a inclusão consiste em um programa a longo
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Cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia de unidade da
espécie humana não apague a ideia de diversidade, e que a da sua
diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há
uma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços
biológicos da espécie homo sapiens. A diversidade não está apenas
nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe
também diversidade propriamente biológica no seio da unidade
humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica,
afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e
sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a
unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas
diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade
na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a
unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. (MORIN, 2011, p. 4950)
Nell: an analysis based on an educational and sociocultural view of inclusion
ABSTRACT
This article is about inclusive education in Brazil according to the perspective of the
movie Nell. It shows some considerations on the legislation regarding social
inclusion, as stated in education, the view of treats and laws which protect social
inclusion and an analysis of the movie Nell, based on which we establish a parallel
with inclusive education. This study aims to show possible ways to think sociocultural
and educational inclusion by observing peculiarities of people with some degree of
disorder. It is grounded on concepts of inclusive education discussed by Báfica
(2012), Cardoso (2003), Mantoan (2006) among others. Its methodology follows a
character mentioned in the title. It is concluded that, order to conduct inclusive
education in Brasil, we still need to ensure that the law is obeyed and that every
person with any physical or mental disorder have access to sociocultural and
educational development.
KEYWORDS: Education. School. Inclusion. Culture.
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view about the effective legislation regarding the theme and its relationship with the
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Enviado em 13 de maio de 2015.
Reenviado em 13 de novembro de 2015.
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A educação musical e o ensino integrado no Instituto Federal da
Bahia
Marcos de Souza Ferreira7
Luiz César Marques Magalhães8
___________________________________________________________________________
RESUMO
O presente artigo apresenta uma perspectiva da trajetória do
IFBA desde a sua criação, em 1910, até a promulgação da lei
11.892/2008, que cria a Rede Federal de Educação
Profissional. Em paralelo com a história da educação no Brasil,
busca-se (a) contrapor o ensino propedêutico com a educação
para o trabalho, e (b) analisar a criação do Ensino Integrado,
sendo este um modelo que propõe a execução do Ensino
Médio e Ensino Técnico integrados num único currículo.
Apresenta ainda um panorama do ensino do componente
curricular Arte no IFBA, com objetivo de entender a
presença/ausência do ensino de música na Instituição.
Palavras-chave: Ensino Integrado. Educação Musical. Instituto
Federal da Bahia.
.
7
Mestre em Educação Musical. Professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA campus Vitória da
Conquista). Doutorando em Educação Musical na UFBA. E-mail: [email protected]
8
Doutor em Etnomusicologia. Professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
A Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, presente em
todos os estados da Federação, tem entre seus objetivos ministrar educação
profissional técnica de nível médio para os egressos do Ensino Fundamental, nas
modalidades Integrada e PROEJA. Considerando que os Institutos Federais devem
garantir 50% de suas vagas para a Educação Básica, tornam-se os principais
executores da proposta contemporânea, criada em 2004, para que a formação
profissional técnica de nível médio e as disciplinas propedêuticas do Ensino Médio
passem a ser ofertadas de forma integradas. O § 1o do Decreto 5.154 da criação
deste curso salienta que o mesmo deve “conduzir o aluno à habilitação profissional
técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com matrícula
única para cada aluno” (BRASIL, 2004).
O presente artigo analisa a criação dos cursos integrados no Brasil
partindo da dualidade entre ensino profissionalizante, que visava a formação
exclusiva para o trabalho, e o ensino médio, que objetivava a preparação para
continuidade dos estudos no nível superior. Tomaremos como objeto de estudo o
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), examinando
sua trajetória em paralelo com fatos marcantes da história da educação profissional
no Brasil. A análise do panorama do ensino de música no IFBA visa entender como
a educação musical se insere neste contexto contemporâneo de educação, bem
como avaliar a presença/ausência da linguagem musical no componente curricular
1. A TRAJETÓRIA DO IFBA E A DUALIDADE ESTRUTURAL ENTRE ENSINO
MÉDIO E ENSINO TÉCNICO PROFISSIONAL
Trabalho manual para índios e escravos, trabalho livre e intelectual para
as elites; escola acadêmica para poucos e educação profissional para os
trabalhadores. Com base nessa realidade, Grabowski conceitua a dualidade
estrutural que legitima a desigualdade educacional do Brasil e define nossa própria
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Arte.
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história de desenvolvimento social, econômico e cultural. “Se persistirmos na
dualidade histórica, ensino profissional para quem vive do trabalho e ensino
propedêutico (acadêmico, clássico) para dirigentes, além de antiético e injusto, não
desenvolveremos uma nação soberana e autodeterminada” (GRABOWSKI, 2006, p.
6).
Segundo Nascimento (2007) a educação profissional no Brasil, que se
consolida no início do século XX, deu seus primeiros passos, fora do ambiente
militar, entre 1840 a 1865, com a criação das casas de educandos artífices. Para
Grabowski (2006, p.7) “desde a primeira iniciativa estatal, em 1909, com a criação
das 19 escolas técnicas, sempre existiram duas redes, uma profissional e outra de
educação geral, visando reproduzir e atender a divisão social e técnica do trabalho”.
A trajetória do IFBA remete a diferentes nomenclaturas. Inicia-se como
Escola de Aprendizes Artífices, em 1910, na capital baiana. Segundo Lessa (2002,
p. 13) “sua missão estava centrada na preparação profissional dos excluídos da
sociedade, dos desvalidos e operários artífices”.
A partir de 1926 a escola passa a funcionar em prédio próprio, localizado
no bairro Barbalho, hoje, campus Salvador. Dentre as conquistas daquele ano,
destaca-se o aparelhamento das oficinas com máquinas e ferramentas novas,
“criando ao mesmo tempo uma banda de música”. (LESSA, 2002, p.17).
De 1937 a 1942 a escola recebeu a denominação de Liceu Industrial de
Salvador e em 1942, passa a chamar-se Escola Técnica de Salvador. Sua relação
com as demandas das indústrias é percebida no documento enviado, em 1946, pelo
As escolas técnicas existem para as indústrias; para atender às suas
necessidades de mão de obra especializada. (...) A escola técnica e
a indústria não devem viver divorciadas. (...) Faço um apelo aos Srs.
Industriais para que orientem a Escola Técnica de Salvador, em seu
plano de trabalho, a fim de que os cursos noturnos a serem
instalados sejam uma expressão dessas necessidades. (LESSA,
2002, p. 32).
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então diretor da escola para os industriais baianos:
40
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O ano de 1942 foi marcado pela implementação de Leis Orgânicas de
ensino, pela Reforma Capanema e pela criação dos cursos médios de 2º ciclo
(científico ou clássico), com duração de três anos. Para os trabalhadores
instrumentais era destinada a formação de nível médio de 2º ciclo profissionalizante:
agrotécnico, comercial técnico, industrial técnico e o curso normal de formação de
professores para o magistério. Kuenzer sintetiza a dualidade estrutural que se
solidifica com a reforma Capanema:
O desenvolvimento histórico dessas redes vai mostrar que a iniciativa
estatal, primeiro, criou escolas profissionais, no início do século XX,
para só nos anos 40 criar o Ensino Médio. A partir de então, essas
redes sempre estiveram de alguma forma (des)articuladas, uma vez
que a dualidade estrutural sempre responde às demandas de
inclusão/exclusão (apud GRABOWSKI, 2006, p. 7).
Esse modelo educacional baseava-se nas formas tayloristas/fordistas de
organização capitalista do trabalho no século XX. Em contra partida, a proposta
pedagógica das escolas destinadas ao ensino propedêutico priorizava a formação
de hábitos de estudo, disciplina, modos padronizados de comportamento social e
enfoque na formação de futuros dirigentes.
Pode-se presumir que as discussões e debates que levaram a criação da
Lei Orgânica do Ensino Industrial, bem como a reforma Capanema de 1942, foram
iniciadas nos anos 30, marcados pelo manifesto dos pioneiros da educação
liderados por personalidades do porte de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e
educação profissional ao sistema regular de ensino. Embora a incorporação tenha
ocorrido a partir de 1942, a equivalência entre os diversos ramos de ensino foi
oficializada em 1961 com a LDB 4.024, assegurando a todos os estudantes a
continuidade dos estudos e o acesso ao vestibular (KUENZER, 2012).
A formação de nível médio profissionalizante passou a disponibilizar
conhecimento propedêutico à classe trabalhadora, contudo o conhecimento
tecnológico de ponta, mesmo vinculado ao mercado de trabalho, somente seria
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Lourenço Filho, que pregavam a criação de uma escola única, que incorporasse a
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adquirido na formação de nível superior. Nesse sentido a escola continuaria a
determinar o lugar que o aluno ocuparia na divisão de trabalho.
A LDB 4.024 de 1961, não faz referência ao ensino de música. Só uma
década depois ela será alterada pela Lei 5.692 que cria a disciplina Educação
Artística, propondo que todas as linguagens artísticas fossem trabalhadas em
conjunto. Com a implementação dessa disciplina, surge a figura do professor
polivalente, consequentemente o ensino de música torna-se cada vez menos
presente na Educação Básica.
As escolas profissionalizantes tornaram-se federais em 1965 e passaram
a ser identificadas com o nome de seus respectivos estados. A Escola Técnica
Federal da Bahia gradativamente passa a ser referência para a inserção no mundo
do trabalho.
A Lei 5.692 de 1971 foi concebida em decorrência das reformas políticas
de 1964, adequando o sistema educativo ao modelo desenvolvimentista vigente.
Para implantar as reformas o governo passou a receber ajuda dos EUA por meio
dos acordos MEC (Ministério da Educação e Cultura) e AID (Agency for International
Development), que visava “contrato, por dois anos, dos assessores norteamericanos para o aperfeiçoamento do ensino primário, para o ensino médio e,
ainda, para o ensino superior” (PINA, 2011, p. 80-81).
No bojo de uma ditadura militar e da proclamação do milagre brasileiro, a
proposta da Lei 5.692/71, de profissionalização compulsória, tornando toda a escola
média em ensino profissionalizante, coaduna-se com as propostas políticas
instauradas, de preparação de mão de obra para o trabalho. Na prática, o que se viu
foi a confirmação da dualidade estrutural, pois as escolas particulares continuavam a
Somente em 1982, a Lei 7.044 passou a permitir a oferta do Ensino Médio
exclusivamente propedêutico.
Por meio da Lei 8.711, de 1993, a escola técnica torna-se Centro Federal
de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA), quando a instituição se expande
para outras áreas do estado, com a criação das unidades de Barreiras, Valença,
Vitória da Conquista e Eunápolis.
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manter o Ensino Médio preparando para o vestibular, burlando a proposta da Lei.
42
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Em consonância com a LDB 9.394/96 o CEFET-BA passa a ofertar o
Ensino Médio, em três anos, com foco na formação propedêutica, e o Ensino
Profissional Técnico, em dois anos, na modalidade subsequente ao Ensino Médio.
Os estudantes que procuravam esses cursos subsequentes eram em sua maioria
oriundos de outras instituições de ensino e já inseridos no mercado de trabalho.
Considerando o nível de dificuldade do exame de seleção, a maioria dos estudantes
admitidos no Ensino Médio do então CEFET-BA era egressa da rede privada de
ensino. Estes posteriormente tornavam-se candidatos em potencial às universidades
públicas, incluindo os cursos superiores ofertados na própria instituição. Delineavase o perfil de uma escola pública que oferecia Ensino Médio propedêutico de
qualidade e gratuito, destinado a uma elite. Assim sendo, a Lei 9.394/96 reafirmou a
existente dualidade estrutural.
A disciplina Arte, como componente obrigatório nos currículos e não mais
Educação Artística, é proposta na LDB 9.394/96. Os PCNs, que seguem a
promulgação da Lei, regulamentam que o ensino de Arte pode ser entendido como
ensino específico de uma das linguagens artísticas: Artes Visuais, Dança, Música ou
Teatro. Assim, em termos legais, a polivalência está extinta, mas, na prática, ela
ainda não deixou de existir.
2.
A
INTEGRAÇÃO
ENTRE
O
ENSINO
MÉDIO
E
ENSINO
TÉCNICO
PROFISSIONAL
Com o processo de globalização da economia e mudanças no mundo do
perder o domínio. Surgem novos paradigmas, dentre eles o toyotismo, um sistema
de organização e gestão do trabalho, criado pelo japonês Taiichi Ohno e aplicado
inicialmente na fábrica da Toyota. Torna-se conhecido e adotado em várias partes
do mundo a partir da década de 1960. Nesse modelo, a linha de montagem foi
substituída por células de produção, com a qualidade controlada pela própria equipe
de trabalho. Qualidade e competitividade passam a ser as novas palavras de ordem,
exigindo-se um novo perfil do trabalhador (GRABOWSKI, 2006).
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trabalho, as formas de produção e organização tayloristas-fordistas começam a
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Segundo Kuenzer, este novo perfil de trabalhador desencadeia uma
reforma da educação básica e profissional, com base na premissa de que deste
novo trabalhador se requer:
capacidade de comunicar-se corretamente, com domínio dos códigos
e linguagens, incorporando, além do domínio da língua nacional, a
língua estrangeira e as novas formas trazidas pela semiótica;
autonomia intelectual, capaz de resolver problemas práticos gerados
pelas novas tecnologias e ciências; autonomia moral, enfrentando
novas situações eticamente e, principalmente, capacidade de
comprometer-se com o trabalho, entendido em sua forma mais
complexa e honrosa de construção do próprio trabalhador, do
homem e da sociedade (apud GRABOWSKI, 2006, p. 8).
Evidentemente a dualidade estrutural apresentada é característica das
sociedades capitalistas. Todavia, a participação dos trabalhadores na política de
democratização de acesso à educação, articulada com setores progressistas da
sociedade que acreditavam na transformação da dualidade, passam a exigir do
estado novas políticas públicas. Assim, torna-se possível uma concepção de
educação que articule formação científica e sócio histórica à formação tecnológica,
criando o Ensino Médio e Ensino Técnico Integrados em um único currículo
(Kuenzer apud GRABOWSKI, 2006).
Constante do Decreto 5.154/04 e da Lei 11.741/08, o ensino integrado
não se propõe ao ajuntamento de disciplinas propedêuticas e técnicas; também não
Grabowski (2006), um conjunto de categorias e práticas educativas no espaço
escolar que desenvolvam a formação integral do sujeito trabalhador, promovendo
articulação e integração orgânica entre trabalho, como princípio educativo; ciência,
como criação e recriação pela humanidade de sua natureza; e cultura, como síntese
de toda produção e relação dos seres humanos com seu meio.
Conhecimentos que eram apropriados pelos estudantes interessados no
acesso ao ensino superior, passam a compor o conjunto de características
importantes, e por vezes principais, do novo perfil do trabalhador. “Por razões
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seria prática pedagógica interdisciplinar ou transdisciplinar. Implica, segundo
44
didáticas, se divide e se separa o que está unido. Por razões didáticas, também se
pode buscar a recomposição do todo” (MACHADO, 2006, p. 53).
A elaboração do currículo dos cursos integrados deve conter propostas
pedagógicas que, segundo Machado (2006, p. 52), “tenham como eixo, a
abordagem relacional de conteúdos tipificados estruturalmente como diferentes,
considerando que esta diferenciação não pode, a rigor, ser tomada como absoluta
ainda que haja especificidades que devam ser reconhecidas”. Uma resposta
adequada ao se questionar o que integrar seria: integrar finalidades e objetivos.
A
dualidade
estrutural
da
antiga
escola,
que
hierarquizava
o
conhecimento, não deve existir num currículo integrado. Uma nova postura é exigida
tanto dos professores como dos estudantes. Quando os objetivos pretendidos, tanto
para a formação propedêutica como para a do trabalhador, estiverem amalgamados,
as estratégias bem sucedidas de ensino-aprendizagem poderão ocorrer.
3. A EDUCAÇÃO MUSICAL NO ENSINO INTEGRADO DO IFBA
A Lei 11.892/2008 criou a Rede Federal de Educação Profissional, e
transformou o antigo CEFET-BA em Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Bahia, o IFBA, com seus dezesseis campi e cinco núcleos
avançados. Na grade curricular em vigor, o ensino de música está presente somente
como uma das linguagens do componente curricular Arte, oferecida para os
estudantes do 1º ano dos cursos Integrado e PROEJA.
Para levantamento de dados desta pesquisa foram entrevistados
entrevista porque os dados necessários já estavam de posse dos autores.
Observa-se na tabela 1 que dos dezesseis campi, onze ministram
exclusivamente aulas de Artes Visuais; dois ministram exclusivamente aulas de
Música; em um campus ministram-se aulas de Artes Visuais e Teatro; somente em
um campus são ministradas aulas das quatro linguagens (Artes Visuais, Dança,
Música e Teatro) e um dos campi não tem professor de Arte.
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Diretores de Ensino de 15 campi. O campus Vitória da Conquista foi excluído da
45
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O ensino de Arte está presente também no PROEJA, que é Ensino Médio
Integrado ao Ensino Técnico na modalidade de Educação para Jovens e Adultos,
curso noturno com duração de três anos, destinado a maiores de 18 anos. Somando
o número de estudantes do Integrado e do PROEJA, em 2013, 2.290 novos
estudantes ingressaram na Educação Básica do IFBA. Destes, somente 795
estudantes tiveram aulas de música, conforme mostra a tabela 1.
Nome do
Campus
Linguagem ministrada no
componente curricular Arte
Estudantes
Estudant
do
es do
Integrado
PROEJA
ingressos
ingressos
em 2013
em 2013
80
Barreiras
Artes Visuais
240
Camaçari
Artes Visuais
80
Eunápolis
Artes Visuais
150
Feira de
Artes Visuais
140
Ilhéus
Nenhuma
120
Irecê
Artes Visuais
50
Jacobina
Artes Visuais
120
Jequié
Artes Visuais
70
Paulo Afonso
Artes Visuais
90
Porto Seguro
Artes Visuais
90
Salvador
Artes Visuais, Dança,
405
60
50
Santana
Santo Amaro
Música
100
Seabra
Artes Visuais
70
Simões Filho
Artes Visuais e Teatro
90
Valença
Artes Visuais
105
Vit. Conquista
Música
140
40
2.060
230
Total
Total com
795
aulas de
música
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Música, Teatro
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Nome do
Campus
Linguagem ministrada no
componente curricular Arte
Estudantes
Estudant
do
es do
Integrado
PROEJA
ingressos
ingressos
em 2013
em 2013
Total Geral
2.290
Tabela 1. Número de estudantes ingressos na Educação Básica do IFBA em
2013 e a distribuição das linguagens da Arte por eles estudadas.
Casualmente o PROEJA é oferecido em três campi que ministram aulas de
música. Logo, o quantitativo de estudantes com acesso a linguagem musical poderia
ser ainda mais reduzido, se a oferta do PROEJA ocorresse em outros campi.
Observe-se ainda que os 120 novos estudantes que ingressaram no campus Ilhéus
não tiveram contato com nenhuma linguagem artística.
Em suma, o ensino de música aparece como uma das linguagens artísticas
do componente curricular Arte somente em 18,75% do IFBA, conforme pode ser
observado na figura 1.
18,75
Música
Outras linguagens da Arte
Figura 1. Percentual do ensino de música no âmbito do IFBA
Indagamos aos Diretores de Ensino qual teria sido a razão para escolha
da linguagem artística que é trabalhada no campus. A figura 2 apresenta as
respostas.
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81,25
47
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Figura 2. Razão para escolha da linguagem artística praticada nos campi.
Como as respostas apontavam à necessidade de uma investigação sobre
as decisões tomadas no âmbito da Reitoria, analisou-se primeiramente os dois
últimos editais dos Concursos para Professor do Magistério do Ensino Básico,
Técnico e Tecnológico com vagas para Arte. O último deles, Nº 06, de 11 de
novembro de 2011, ofereceu vagas para quatro campi, com carga horária de 40
horas.
Considerando que o referido concurso ocorreu três anos após a
promulgação da Lei 11.769, que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de
música na Educação Básica, chamou à atenção a formação acadêmica exigida no
edital para o exercício do cargo: Licenciatura Plena em Educação Artística,
Bacharelado em Educação Artística, Bacharelado em Artes Plásticas ou Licenciatura
em Desenho e Plástica. Se o exposto não define a entrada exclusiva de professores
de Arte Visuais, certamente dificulta a entrada de professores de Música. Logo, a
professores de Arte com formação em Artes Visuais. Ressalta-se ainda que dos dez
pontos estipulados para sorteio da prova escrita e didática somente um faz
referência direta à linguagem musical. Quinze anos após a promulgação da LDB
9.394, que extingue a Educação Artística dos currículos escolares, ainda se vê tão
latente os efeitos da Lei 5.692 de 1971.
Indagada sobre os critérios utilizados pela Reitoria para seleção dos
professores de Arte, a resposta da pró-reitora de ensino confirma uma visão ainda
com reflexos da Lei de 5.692/71, que criou a figura do professor polivalente:
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análise deste documento facilitou a compreensão de termos no IFBA 81,25% dos
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Abre-se concurso de generalista para área de Arte. Se o campus é
novo o professor vem como generalista e a linguagem que ele
trouxer será dominante, embora haja uma solicitação de que o
professor aborde várias linguagens com os estudantes dentro do
possível, mas é obvio que irá especializar-se naquela linguagem que
se domina mais.9
No campus Salvador os estudantes têm aulas das quatro linguagens
artísticas, sendo cada uma delas trabalhada durante uma unidade de estudos, em
torno de dois meses para cada linguagem. A banda de música criada em 1926
naquele campus, esteve em destaque durante muitos anos, entretanto não está
mais em atividade.
É importante relatar que desde 2005, na primeira aula de cada ano letivo,
no campus Vitória da Conquista, indagamos aos estudantes sobre a existência de
alguma experiência com o fazer musical na escola durante o Ensino Fundamental.
As primeiras respostas afirmativas à pergunta começaram a surgir somente no início
do ano letivo de 2013. Acreditamos que essa mudança pode ser reflexo da
aplicabilidade da Lei 11.769 de 2008. Fica evidente que para a maioria dos
estudantes que ingressam no IFBA, a expectativa de contato com a linguagem
musical estaria reservada à passagem por uma instituição federal. Assim sendo,
torna-se desanimador constatar que tão poucos estudantes no âmbito geral do IFBA
tenham atualmente acesso à linguagem musical.
A análise do perfil do ensino de música no IFBA traz à tona uma questão
Sergio Figueiredo, presidente da Associação Brasileira de Educação
Musical (ABEM), de 2007 a 2009, período em que a Lei 11.769/08 tramitou no
congresso, sintetiza as proposições que geraram todo movimento construído por
músicos, educadores musicais, pedagogos e parlamentares e que culminaram na
aprovação da referida Lei:
9
Entrevista com a Pró-Reitora de Ensino do IFBA, Profa. Lívia Santos Simões, em 28 de janeiro de
2014.
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reflexiva: qual a razão da aprendizagem de música na escola?
49
O acesso à educação musical é parte integrante da formação do
indivíduo. A música pertence ao tecido social e praticamente todos
são envolvidos de uma forma ou de outra com esta manifestação.
Sendo assim, compreender e vivenciar experiências musicais na
escola amplia a formação do cidadão na medida em que se
oferecem,
neste
processo
escolar,
oportunidades
múltiplas,
democraticamente, para todos (apud SANTOS, 2012, p. 208).
Qual seria então a relevância que o ensino de música oportuniza à
formação do indivíduo? Questionado sobre que conhecimento vale mais a pena que
os estudantes de música aprendam, David Elliott é categórico: “Musicalidade. Que é
a chave para alcançar os valores, objetivos e metas da educação musical” (1995, p.
259). O mesmo autor defende ainda que a musicalidade se desenvolve
progressivamente na busca de soluções de problemas musicais, que não são
encontrados na prática musical pela prática e sim em ambientes de ensinoaprendizagem.
É consenso que duas aulas de música semanais durante um ano escolar,
como ocorre no campus Vitória da Conquista; ou durante uma unidade escolar,
prática vigente no campus Salvador, não são suficientes para proporcionar ao
estudante oportunidades de desenvolver uma musicalidade adequada. Talvez por
essa razão em ambos campi são oferecidas atividades musicais extra curriculares
que podem ser frequentadas pelos estudantes durante os quatro anos do Ensino
Integrado. A ampliação das práticas musicais está em consonância com a
dão conta de levar o estudante para o aprofundamento que ele deseja. Ela ainda
lamentou que para fugir do grande peso que recai sobre as disciplinas técnicas, em
algum momento foi dada ênfase às disciplinas de humanas, em detrimento das
linguagens da Arte. Para ela “há a necessidade de uma revisão nas matrizes
curriculares do Instituto”10.
10
Entrevista com a Pró-Reitora de Ensino do IFBA, Profa. Lívia Santos Simões, em 28 de janeiro de
2014.
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percepção da pró-reitora de que duas aulas semanais durante um ano escolar não
50
CONCLUSÃO
O presente trabalho constata que a dualidade estrutural existente ao
contrapor educação para o trabalho e o ensino propedêutico, foi percebida como
uma das características marcantes na trajetória do IFBA ao longo de um século.
Entretanto, a mesma instituição torna-se palco principal da execução de um projeto
de educação que tem entre seus objetivos a formação integral do sujeito
trabalhador. Não permitir a continuidade da antiga dualidade estrutural torna-se
então a característica mais importante a ser destacada no projeto do Ensino
Integrado.
Este estudo mostrou também que a cultura, categoria fundamental na
formação do estudante, precisa estar presente na elaboração dos currículos dos
cursos integrados, como síntese das relações dos seres humanos com seu meio;
sendo esta uma categoria a ser adquirida em práticas educativas no espaço escolar.
Os saberes musicais desenvolvidos nas práticas de ensino-aprendizagem
dos cursos integrados do IFBA apresentam resultados na formação cultural dos
jovens e apontam para uma outra característica: a profissionalização em música. Os
três estudantes egressos do campus Vitória da Conquista encaminhados para
cursos superiores de música, adquiriram no espaço da escola a formação musical
suficiente para aprovação nos exames vestibulares.
Na continuidade desta pesquisa investigaremos mais detalhadamente a
prática musical nos campi Salvador e Santo Amaro e esperamos que os resultados
a ampliação desse espaço de saber artístico no âmbito da instituição.
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desencadeiem um novo olhar sobre o ensino de música, desta forma possibilitando
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ABSTRAT
In parallel with the history of education in Brazil, this article presents a perspective of
the trajectory of IFBA’s history since its beginning, in 1910, until the enactment of the
law 11.892/2008, which established the Federal Network of Vocational Education.
The study focuses on two main points: (a) a contrast between the traditional more
general preparatory school educations with the education specifically designed to
prepare students for the work place; (b) an analysis of the creation of the Integrated
Education, a model which advocates the idea that both Secondary and Technical
Education should be combined into a single curriculum. It also presents an overview
of the Creative Arts in IFBA’s curriculum, in order to understand the
presence/absence of the teaching of Music in this institution.
Key-words: Music education. Integrated education. Federal Institute of Bahia.
REFERÊNCIAS
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artigos 39 a 42 da Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional e dá outras providências. Disponível em
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BRASIL. Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei 9.394, de 20 de
dezembro de 1996. Dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da música na
educação básica.
BRASIL. Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de
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ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
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artigos 39 a 41 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional e dá outras providências. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5154.htm. Acesso
em 17 de janeiro de 2014.
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Integrado: uma história de contradições. IX ANPED SUL – Seminário de pesquisa
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complexo integrado de educação tecnológica. Salvador: CCS/CEFET-BA, 2002.
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espaços de educação musical. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2012.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. Campinas:
Autores Associados, 2011.
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Recebido em 30 de junho de 2014
53
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Estratégias de leitura empregadas para compreensão da língua
inglesa por restauradores aeronáuticos brasileiros
Natalia Cristina de Mendonça Spera11
Daniela Terenzi12
___________________________________________________________________________
RESUMO
O presente artigo apresenta uma perspectiva da trajetória do O
conhecimento do inglês, na aeronáutica, é fundamental, pois a
comunicação global entre suas áreas é feita por meio dessa
língua. Na tentativa de correção de falhas na interlocução, a
Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, em inglês)
definiu, em 2008, obrigatória a proficiência para controladores
de tráfego aéreo e tripulações em forma de testes globais
visando uma harmonização da língua (ICAO, 2010, p. vii).
Porém, ainda hoje, não é exigida proficiência para mecânicos
aeronáuticos, apesar da frequência do uso de manuais de
instruções em inglês por esses profissionais durante suas
tarefas diárias e da probabilidade de erros devido à
interpretação equivocada. Em razão disso, é de extrema
relevância investigar questões relacionadas à compreensão
desses textos por tais profissionais. Este artigo apresenta os
11
Mestranda em Ciência e Engenharia de Materiais pela EESC-USP, São Carlos - SP,
Brasil.
Graduada em Tecnologia em Manutenção de Aeronaves pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), Campus São Carlos - SP, Brasil.
12
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP),
Campus São Carlos - SP, Brasil. Doutora em Linguística pela UFSCar, São Carlos - SP,
Brasil.
resultados de um Trabalho de Conclusão de Curso, o qual
analisou como restauradores de aeronaves, com diferentes
perfis, utilizam as estratégias de leitura para compreensão de
manuais e publicações em inglês. Para isso, os participantes
foram solicitados a ler dois tipos de textos usados na
manutenção de aeronaves, um cujo tema lhes era familiar e
outro com tema diferente considerando sua área de atuação, e
foram questionados em relação às estratégias utilizadas para
compreensão de tais textos. Com o resultado, pudemos
observar que o tempo de experiência na aviação e as
oportunidades de estudo da língua inglesa influenciam no
momento da leitura.
Palavras-chave: Inglês para Aviação. Manutenção de
Aeronaves. Manuais de Manutenção de Aeronaves.
Restauradores Aeronáuticos. Estratégias de Leitura.
Introdução
Sempre existiu a necessidade de uma "língua franca13" para que fosse
estabelecida a comunicação entre povos de diferentes culturas. Há registros de que
no Império Romano e no milênio seguinte essa língua era a grega no oriente e o
latim no ocidente, posteriormente o português na África e Ásia, o francês na Europa,
e o árabe se estabeleceu na África, Ásia e partes da Oceania e da Europa, no
século VII (BORTOLETTO, 2014). No período de guerras, o conhecimento do
vocabulário naval, de aviação e dos campos de batalha da língua do adversário era
considerado uma questão de vida ou morte (QUEIROZ, 2010). Hoje, essa língua
global no mundo dos negócios e na diplomacia é o inglês, sendo uma das línguas
No contexto da aviação civil, isto não é uma exceção. A relação entre
língua e aeronáutica começa com as primeiras tentativas do homem de voar e se
estreita ao longo de guerras e viagens ao espaço (BOCORNY, 2011, p.964).
No início, o francês era o idioma principal considerando a linguagem da
aviação. Porém, essa "hegemonia se dilui à medida que outros países, como a
13
Segundo Bortoletto (2010), "língua franca" é uma expressão latina para expressar uma
língua comum utilizada para o comércio internacional e outras interações mais extensas.
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mais faladas no mundo.
55
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Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos, assumem seu papel como grandes
potências no cenário mundial" (BOCORNY, 2011, p.965).
Aos poucos, a língua inglesa assume como o idioma da área, não só no
treinamento de pilotos, comunicação entre esses e as torres de comando, mas
também na realização e documentação da manutenção de aeronaves.
A execução errada de uma atividade ou de um procedimento devido a
problemas de comunicação ou à compreensão equivocada de instruções é um
problema gravíssimo e ainda recorrente na manutenção. Visão essa que corrobora
com as palavras de Azevedo (2009).
A necessidade de uso da língua inglesa dentro do contexto de
aviação civil mostrou-se clara e incisiva. Problemas gerados por
falhas na comunicação podem comprometer a segurança aérea, e
muitos acidentes no passado tiveram como agravantes o uso
ineficiente, ou o não uso, do inglês. (AZEVEDO, 2009, p.34)
A Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, em inglês) desde
1998 aplica tentativas para correção dessas falhas na comunicação. Nesse ano,
impôs aos Estados a capacitação de seus controladores de tráfego aéreo e
tripulações envolvidas nas operações de voo em que seria necessária a utilização
do idioma inglês, para que conduzissem e compreendessem as comunicações de
radiotelefonia no idioma. Dez anos mais tarde (em 2008), definiu como obrigatória a
proficiência para esses profissionais em forma de testes globais para harmonização
da língua (ICAO, 2010, p. vii). Porém, na área da manutenção de aeronaves, seu
requisito para ocupação de cargos fica à opção da empresa que está contratando.
Os candidatos que possuem níveis avançados de inglês ou o curso de inglês
Zuppardo (2013) descreve, em seu estudo sobre manuais aeronáuticos, a
deficiência do sistema sobre a exigência da língua inglesa para os mecânicos e
apresenta dados da Federal Aviation Administration (FAA), entidade governamental
responsável pelos regulamentos e todos os aspectos da aviação civil nos Estados
Unidos, que afirmam que os técnicos de manutenção de aeronaves passam de 25 a
40% do tempo de serviço buscando, usando ou documentando informações escritas,
o que nos leva refletir sobre a importância da compreensão do inglês nessa área. A
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instrumental têm vantagem nos processos seletivos (TERENZI, 2014).
56
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partir disso, concluímos que um conhecimento mais aprimorado da língua inglesa
poderia acelerar as tarefas de manutenção e, até mesmo, influenciaria em seu
cumprimento adequado.
De acordo com Chaparro et al. (2002), a causa dos maiores erros na
manutenção é a interpretação errônea de manuais. Foi constado que 64% dos
técnicos relatam utilizar seus próprios meios para executar os procedimentos de
manutenção (CARO et al., 2001; CHAPARRO et al., 2002). Tais técnicos enxergam
a necessidade do conhecimento da língua, porém se adaptam com o pouco que
sabem e com a experiência que possuem para a realização das atividades.
Levando em consideração a frequência do uso e a probabilidade de erros
devido à interpretação equivocada dos manuais de instruções, é de extrema
relevância investigar questões relacionadas à compreensão de textos escritos na
área aeronáutica.
Considerando que a utilização da língua inglesa no contexto apresentado
possui um propósito específico, ou seja, a utilização pelos mecânicos aeronáuticos
para compreensão das instruções a fim de se realizar a manutenção/restauração,
podemos afirmar que esse uso da língua está relacionado ao inglês instrumental ou
inglês técnico. O inglês instrumental deve ser visto como uma metodologia de ensino
cujo foco é definido para suprir exatamente as necessidades do aprendiz.
Hutchinson e Waters (1987, p.19) propõem, como base de todo o ensino
instrumental, a simples pergunta: "Por que esse aprendiz precisa aprender uma
língua estrangeira?".
Neste artigo, que apresenta alguns aspectos do estudo desenvolvido
como trabalho de conclusão de curso (TCC), o contexto de pesquisa é o ambiente
encontramos mecânicos aeronáuticos que necessitam ler e compreender manuais
durante suas tarefas diárias sendo que estes, em sua maioria, estão escritos em
inglês.
Portanto, também em razão do contato da pesquisadora (aluna de
graduação) com profissionais atuantes nessa área, esse ambiente se mostrou
bastante propício para desenvolvimento de uma pesquisa cujo foco eram as
estratégias de leitura utilizadas pelos restauradores de aeronaves ao ler manuais.
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em que se realiza restauração de aeronaves, um dos ramos da aviação no qual
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Esse tema foi abordado considerando as oportunidades de estudo da língua inglesa
e as experiências profissionais de cada um.
DESENVOLVIMENTO
O inglês instrumental é o estudo da língua inglesa para fins específicos
(em inglês, ESP: English for Specific Purposes), o qual, como o próprio nome indica,
se aplica ao ensino de línguas direcionado para lidar em determinada situação-alvo.
O que diferencia um curso para fins específicos de um curso para
fins gerais são os seus objetivos. Em um curso ELFE, os objetivos
(necessidades e interesses) são bem específicos e localizados, já em
um curso para fins gerais os objetivos costumam ser mais difusos
(GUIMARÃES, 2014, p.1).
Com base na teoria sobre essa metodologia de ensino-aprendizagem,
Terenzi (2014) afirma que qualquer uma das habilidades, ou mesmo uma
combinação de mais de uma delas, pode ser enfatizada, isso porque, o curso é
direcionado para que interesses e necessidades dos aprendizes, em relação à
língua estudada, sejam contemplados.
Devido ao início do uso dessa metodologia no Brasil, introduzida nos anos
70 nas universidades federais, foi possível aprimorar a habilidade de leitura de
textos específicos. Geralmente no ensino de inglês instrumental são trabalhadas
estratégias de leitura que proporcionam uma compreensão guiada de textos
E assim, o Inglês Instrumental possui o objetivo de desenvolver a
habilidade de leitura, isto é, de compreensão de textos de diversas
áreas do conhecimento escritos em língua inglesa, utilizando para
isso, estratégias de leitura, a fim de tornar o aluno capaz de
compreender um texto da sua área de estudo. (QUEIROZ, 2010,
p.01)
Essas estratégias de leitura englobam diversas áreas de compreensão.
Segundo Souza et al. (2010), deve haver uma interação entre diversos níveis de
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(TERENZI, 2014).
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conhecimento, entre eles: linguístico, textual, prévio e estratégico para que, assim, o
leitor consiga construir o sentido do texto.
Todos esses níveis de conhecimento são estratégias de leitura
disponíveis ao leitor. O conhecimento dessas estratégias possui grande relevância
para a compreensão do estudo realizado. Uma breve explicação das principais delas
utilizadas pelos colaboradores da pesquisa durante as entrevistas realizadas será
apresentada a seguir, adotando-se Souza et al. (2010) como material base:

Cognatos (nível de conhecimento linguístico)
São palavras que possuem a escrita semelhante na língua inglesa e na língua
portuguesa. Isso acontece pelo fato de ambas as línguas terem derivações do
latim. Assim, muitas vezes, o leitor é capaz de compreender as informações
se apoiando nesses termos.
Exemplos: system, energy, battery, equipment, temperature, operation,
emergency, parameters, etc (retirados dos textos utilizados para realização
das entrevistas).

Grupos nominais (nível de conhecimento linguístico)
O conhecimento dos substantivos e seus complementos ajuda o leitor a
identificar a principal palavra do trecho e suas características. No português, o
núcleo do grupo nominal geralmente aparece primeiro, seguido pelo seu
complemento e no inglês acontece o inverso.
Exemplo: no português - bomba de combustível, "bomba" é o núcleo e "de
combustível" é seu modificador. E no inglês - fuel pump, "pump" (bomba) é o

Palavras-chave (nível de conhecimento textual)
São palavras relacionadas ao assunto, que aparecem com mais frequência.
São imprescindíveis para a compreensão do texto e, geralmente, são
substantivos.
Exemplos retirados dos textos utilizados nas entrevistas: aircraft, fuel, flight,
engine, speed, on board, left, right, etc.

Conhecimento Prévio (nível de conhecimento prévio)
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núcleo e "fuel" (de combustível) é o modificador.
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As experiências do leitor adquiridas e a repetição de palavras já conhecidas
também são ferramentas que o ajudam no momento da leitura.

Skimming (nível de conhecimento estratégico)
Essa técnica busca a ideia geral do texto, realizando uma leitura rápida,
passando os olhos no texto, dando maior atenção ao título, primeiras e
últimas linhas, cognatos e figuras. Com essa estratégia, o leitor procura
entender o assunto do texto, sem se atentar aos detalhes.

Scanning (nível de conhecimento estratégico)
O leitor utiliza o scanning quando possui uma leitura focada para encontrar
uma informação específica sem dar muita importância aos demais dados, ou
seja, quando um objetivo influencia no modo com que ele realiza a leitura.

Informação não-verbal (nível de conhecimento estratégico)
Toda a informação presente em figuras, gráficos, tabelas e mapas, por
exemplo, são informações não-verbais. Esse é um método fundamental para
o leitor que não possui um conhecimento vasto da língua compreender alguns
pontos da informação.

Uso do dicionário (nível de conhecimento estratégico)
Ao se deparar com um vocabulário desconhecido, o qual está impedindo a
compreensão do texto, o leitor pode consultar um dicionário, caso julgue
necessário e caso a estratégia de inferência não seja a melhor opção.

Inferência Contextual (nível de conhecimento estratégico)
Essa estratégia consiste na dedução do significado de palavras ou sentenças
estratégias já citadas, o leitor infere a palavra ou a informação desconhecida.
Dessa forma, para que fosse possível obter-se dados, foram feitas
entrevistas com três profissionais de uma oficina de restauração de aeronaves no
interior do estado de São Paulo, selecionados com base em um estudo prévio dos
perfis e classificados como colaboradores A, B e C.
O participante A se declarava inabilitado para compreender o inglês por
nunca ter estudado a língua e B dizia ser capaz de interpretar, pois, apesar de nunca
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desconhecidas. Utilizando recursos como a análise de frases próximas e das
60
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ter passado por um processo formal de aprendizagem em sala de aula, estudou
sozinho e aprendeu também com a experiência que adquiriu com o tempo na área.
Já o colaborador C declarou que teve oportunidades de estudo do inglês
instrumental com a ajuda de professores.
Durante a entrevista, foram-lhes apresentados textos de manuais de duas
aeronaves, uma aeronave de grande porte (Airbus A320) e outra de pequeno porte
(Cessna 180 Skywagon). Esse último modelo de aeronave era familiar a eles, pois
trabalhavam com a mesma no desenvolvimento de suas tarefas diárias.
Cada um dos colaboradores realizou a leitura de quatro textos, dois de
cada aeronave, sendo um texto relacionado à área em que executa suas tarefas
(destacado em negrito na Tabela 1) e outro de uma área com a qual o colaborador
declarou não ter contato. Ou seja, os participantes realizaram a entrevista com
textos cujos temas eram diferentes, os quais tinham o mesmo gênero, as mesmas
características linguísticas e eram sobre o mesmo tipo de aeronave, isto porque a
escolha dos textos foi feita considerando a área com a qual o colaborador
trabalhava, no qual o assunto lhe era familiar, e os textos também foram escolhidos
considerando uma área com a qual o colaborador não trabalhasse.
O colaborador C era novo no ramo da aviação, assim, declarou não ser
especialista em nenhum assunto da área. Ele realizou atividades com textos
relacionados às áreas dos outros colaboradores.
Assim, no total, foram selecionados seis textos e foram distribuídos de
acordo com a Tabela 1. Essa divisão foi elaborada a fim de obter dados para análise
entre cada colaborador (avaliando a influência do conhecimento prévio) e também
entre eles (diferenciando as interpretações em razão do nível de conhecimento da
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língua).
61
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Textos Manual
Textos Manual
Cessna 180
Família Airbus
Skywagon
A320
Colaborador
1
A
X
B
2
X
C
X
X
3
4
X
X
5
X
X
X
X
6
X
X
Tabela 1 - Divisão dos textos por colaborador
Antes da apresentação dos resultados, é importante ressaltar que todas
as entrevistas tiveram como roteiro um mesmo questionário, formulado com o
objetivo de diagnosticar as estratégias utilizadas pelos colaboradores e de forma
com que as perguntas não influenciassem em suas respostas.
São apresentadas, a seguir, as perguntas que nortearam as entrevistas,
juntamente com seus objetivos:
1. Você se considera um bom leitor de textos que estão em inglês? Por quê?
Objetivo: Investigar um pouco mais o perfil de proficiência do entrevistado.
2. Por que e com que frequência você utiliza textos que estão em inglês no seu
trabalho? Explique sua resposta.
Objetivo: Investigar um pouco mais o perfil do entrevistado.
te ajudou?
Objetivo: identificar a capacidade do colaborador em captar o assunto geral
do texto, sendo influenciado ou não por seus conhecimentos no assunto.
4. Quais são as principais informações deste texto? O que você fez para
encontrá-las?
Objetivo: Perceber quais são as estratégias utilizadas para responder à
pergunta, ou seja, para buscar essas informações principais; identificar a
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3. Qual é o tema / assunto do trecho? Como você identificou esse tema? O que
62
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habilidade do leitor em procurar palavras chaves no texto e seguir sua
interpretação tendo o apoio dessas palavras.
5. Você percebeu que há palavras no texto que são iguais / muito parecidas com
palavras do português? Você acha que elas ajudam a entender o texto? Por
que (sim/não)?
Objetivo: analisar se o leitor utilizou cognatos para compreender o texto.
Sobre falsos cognatos, se o leitor não mencionar nada:
Você acha que alguma palavra pode parecer com o português, mas ter um
significado diferente? Explique sua resposta.
6. Você olhou a figura para buscar alguma informação? Por quê (sim/não)?
Por que e para que existe essa figura? A figura é importante para a
compreensão do texto?
Objetivo: reconhecer o quão relevante a presença da gravura é para o leitor.
Se sua interpretação depende ou não da mesma.
7. Você conhecia o assunto do texto? Já estudou ou trabalhou com esse
assunto?
Objetivo: Descobrir se o entrevistado já conhecia o assunto.
8. Em uma escala de um a três (sendo 1= nada, 2= pouco e 3= muito), o quanto
o conhecimento prévio, o conhecimento que você já tinha, sobre o assunto
influenciou no entendimento do texto?
Objetivo: Identificar o quanto a experiência foi um fator determinante para a
9. O que você faz ao encontrar uma palavra no texto que você não conhece?
Objetivo: Investigar se o entrevistado utiliza a estratégia do contexto ou uso
do dicionário nesse tipo de situação.
10. O que você faz quando tem muita dificuldade em entender um texto em
inglês?
Objetivo: Investigar o que o entrevistado faz ao se deparar com uma
dificuldade.
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interpretação.
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11. Qual você considera ser sua maior dificuldade ao ler textos em inglês em seu
trabalho?
Objetivo: Investigar se o entrevistado tem alguma dificuldade relacionada a
alguma estratégia em específico.
12. O que você faz para melhorar sua habilidade de leitura?
Objetivo: Investigar como o entrevistado procura se qualificar para o trabalho,
já que é preciso ler textos e inglês.
A Tabela 2, a seguir, apresenta as estratégias utilizadas por cada
colaborador em cada texto. Esses dados foram obtidos a partir da análise das
entrevistas e foram resumidos na tabela a fim de apresentar os resultados de
maneira mais clara e objetiva.
Esclarece-se que outras estratégias também foram empregadas. Porém,
serão apresentadas apenas aquelas que foram base de suas interpretações,
aquelas que mais se destacaram após a análise.
Texto 1
Texto 2
Palavra
Skimming
chave
Colaborador A
Texto 3
Informação
Cognatos
não-verbal
Texto 4
Texto 5
Informação
Texto 6
Skimming
não-verbal
Palavras-
Cognatos
chave
Informação
Palavras-
Palavra
chave
chave
Scanning
Informação
Conhecimento
Informação
não-verbal
prévio
não-verbal
Inferência
Inferência
contextual
contextual
Cognatos
Skimming
Palavraschave
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Colaborador B
não-verbal
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Texto 1
Colaborador C
Palavraschave
Texto 2
Texto 3
Skimming
Texto 4
Texto 5
Texto 6
Palavras-
Palavras-
chave
chave
Inferência
Palavras-
Inferência
Inferência
contextual
chave
contextual
contextual
Scanning
Tabela 2 - Principais estratégias utilizadas pelos colaboradores para compreender cada
texto
Observando a tabela, é possível notar que o colaborador A, o qual disse
não possuir conhecimento da língua inglesa, utilizou constantemente das palavraschave, seu conhecimento prévio, cognatos presentes nos textos, e, principalmente,
as imagens contidas nos manuais. Ele afirmou, durante a entrevista, que sua
interpretação era baseada "90% na figura e 80% nos cognatos na própria figura".
Fazendo uma comparação com os outros participantes, o colaborador B disse que
"em 40% das vezes, com a figura fica mais fácil"
14
. Já C, em um dos textos,
declarou que a imagem era "meio superficial", utilizando-a apenas para confirmação
de sua interpretação. A declaração dos participantes nos mostra que essa
dependência da informação não-verbal está diretamente relacionada com o grau de
conhecimento da língua, ou seja, foi possível observar que quanto mais estudo,
menos importância é dada às figuras.
O colaborador B, apesar declarar que não conhecia as estratégias de
participante que utilizou uma quantidade maior de técnicas para compreender os
textos.
Além disso, observou-se que ele foi capaz de entender corretamente as
informações, utilizando sempre seu conhecimento prévio na área. Porém, ao se
14
Esclarece-se que essas porcentagens foram ditas pelos colaboradores e não retratam
fielmente os dados de maneira quantitativa, foi apenas um jeito de falar para expressar em
qual parte do texto cada um focalizou para melhor tentar compreender as informações.
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leitura, como consequência de ter aprendido o inglês por conta própria, foi o
65
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deparar com palavras não conhecidas, afirmou que iria demorar um pouco mais para
conseguir se situar, demonstrando uma insegurança ao aplicar a inferência
contextual. Em uma das atividades, embora tenha seguido com a leitura,
interpretando corretamente o texto, declarou, "mas é igual o que eu falei, esta
palavra aqui já está me quebrando", referindo-se a uma palavra desconhecida.
O colaborador que teve a oportunidade de estudar por meio da
metodologia do inglês instrumental, mesmo sendo novo na aviação, foi o que
demonstrou maior confiança durante as leituras. Esse resultado pode ser explicado
por meio das palavras de Ibiapino (2010), que em sua pesquisa afirma que, quando
expostos aos métodos de estratégias de leitura, os alunos se sentem mais seguros
para compreender e assimilar o que está escrito em inglês. Devido a essa
segurança, percebeu-se o colaborador não se prendeu às palavras desconhecidas,
inferindo rapidamente seus significados. Ao ser questionado sobre sua atitude ao se
deparar com essas situações, ele citou um exemplo do texto sobre as linhas de
combustível da aeronave de pequeno porte:
Eu deduzo, invento, crio uma outra palavra que possa se encaixar. É,
tem aqui, o negócio que parece dente, o ‘tee'! Na minha cabeça eu
coloquei como se fosse uma linha, e só depois que ele [o texto] falou
das linhas. Eu não sei o que é o tee. Ah, deve ser um caminho, uma
passagem. E é isso mesmo!
Esse colaborador utilizou todos os contextos linguísticos para realização
da leitura, distinguindo e compreendendo verbos, adjetivos e substantivos. Ele
também soube identificar os cognatos, sendo o único a denominá-los dessa maneira
(como cognatos) e afirmou que dificilmente é enganado pelos falsos cognatos, pois
instrumental.
Conclusão
Os profissionais de manutenção e restauração de aeronaves estão
constantemente em contato com manuais escritos na língua inglesa, seja para dar
base para a tarefa de manutenção, seja através um documento legal ou para dar
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o contexto "guia" sua interpretação, fruto do que aprendeu nas aulas de inglês
66
base para o treinamento e a capacitação de profissionais (ZAFIHARIMALALA;
TRICOT, 2010).
Como apresentado nesse artigo, o conhecimento da língua é de grande
importância para a realização das atividades profissionais, "é fundamental para
garantir a segurança desses profissionais e a segurança de voo" (ZUPPARDO,
2013, p.23), e pode também diminuir o tempo da manutenção.
Foram analisados três perfis diferentes com relação ao conhecimento do
inglês. A partir dessas análises, tão relevante quanto observar como se deu o
processo de leitura e compreensão dos textos por esses colaboradores, foi poder
observar quais estratégias de leitura foram mais utilizadas por cada perfil.
No estudo realizado, o processo de leitura do primeiro profissional, o qual
declarou que não teve oportunidades de estudos da língua inglesa, confirmam os
dados apresentados na introdução do artigo, os quais apontam que a maior causa
de erros na manutenção é a interpretação dos manuais e que mais da metade da
porcentagem dos técnicos utilizam seus próprios meios para realizar as tarefas de
manutenção.
O segundo colaborador, que aprendeu a língua por conta própria, possui
inseguranças no momento da interpretação. Por esse fato, seu processo de leitura
levou mais tempo em relação ao colaborador que possuía o conhecimento da língua.
Aplicando isso ao dia-a-dia desses profissionais, ao utilizarem manuais e boletins de
serviço para realizar suas tarefas, pode-se concluir que o colaborador C executaria a
tarefa de maneira mais rápida (considerando apenas a leitura do texto).
Esse último participante (colaborador C), o qual estudou por meio da
causa da interpretação errônea dos manuais. Apesar de minimiza-los, mesmo com o
conhecimento da língua e a confiança em sua leitura, interpretou incorretamente ou
de forma incompleta algumas informações.
É importante deixar claro que as dados e opiniões apresentadas referemse aos três perfis analisados nesta pesquisa. Os resultados não podem ser
generalizados sem ser realizado um estudo mais aprofundado sobre o assunto. No
entanto, como foi constatado na pesquisa e exposto neste artigo, a experiência com
aeronaves não descarta a necessidade do conhecimento da língua inglesa, já que
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metodologia do inglês instrumental, não está excluído da margem de erros por
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os resultados mostraram que aquele colaborador que possuía o conhecimento de
inglês instrumental e pouca experiência na área realizou a interpretação mais
completa dos manuais utilizados. Por essa razão, dentre outras, justificam-se as
disciplinas de Inglês Instrumental ministradas no curso de Tecnologia em
Manutenção de Aeronaves, bem como em outros cursos.
Conclui-se assim que, ao terem a oportunidade de estudar a língua
inglesa para um propósito específico, relacionando suas futuras atuações
profissionais, os aprendizes (profissionais em formação) terão a chance de, ao
finalizarem a graduação e entrarem no mercado de trabalho, possuírem
conhecimento que os auxiliarão a realizar as atividades do cotidiano. Além disso, é
evidente a necessidade dos profissionais que já atuam nessa indústria de se
aperfeiçoarem em relação aos conhecimentos dessa língua.
Knowing English is essential in aviation field mainly because the communication
among people who work in this area is done through this language. In attempt to
reduce miscommunication, the International Civil Aviation Organization (ICAO)
determined as mandatory the proficiency for these professionals tested through
global tests for language harmonization in 2008 (ICAO, 2010, p. vii). However, even
today, language proficiency is not required for aeronautical mechanics so they can
perform their job, despite of the frequent use of manuals by these professionals in
their daily tasks and the probability of mistakes due to misinterpretation. Considering
that, it is extremely important to investigate the text reading process of these
professionals. This article is an adaptation of a Course Final Paper in which it is
analyzed how restorers of aircrafts with different profiles use reading strategies to
understand manuals and texts in English. Participants were asked to read two types
of texts used in aircraft maintenance, one about a subject they were familiar to and
another about a theme different from their area of operation/work, and they were
questioned about the strategies used to understand these texts. As a result, we could
observe that their experience in aviation and opportunities to study English influence
reading comprehension.
Key-words: English for Aviation. Aircraft Maintenance.
Manuals. Aircraft Restorers. Reading Strategies.
Aircraft Maintenance
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ABSTRACT
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Recebido em 30/11/2015
70
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ALICE WALKER E ZORA NEALE HURSTON: RESGATE E
CIRCULAÇÃO DE ESCRITOS INVISIBILIZADOS
Raphaella Silva Pereira de Oliveira15
___________________________________________________________________________
RESUMO
O presente artigo busca refletir como Alice Walker, escritora
afro-americana, em uma pesquisa que envolveu solidariedade
feminina e racial, reflexos da sua teoria womanista, resgatou as
obras de Zora Neale Hurston, escritora do período conhecido
como Harlem Ranassaince, mas que teve sua produção
invisibilizada pelas estruturas sexistas. Busca pensar sobre os
modos de circulação da escrita feminina negra, bem como a
forma que o resgate das obras de Hurston colaborou para a
sistematização dos estudos sobre mulheres negras nos
Estados Unidos. Desse modo, promove pensares sobre
caminhos para a sistematização da literatura feminina negra no
Brasil e de uma epistemologia feita por e para mulheres
negras.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Mulheres Negras. Resgate.
Invisibilidade.
15
Mestra em Crítica Cultural/UNEB, professora do curso de Letras habilitação em Língua
Inglesa na Universidade do Estado da Bahia – Campus XXIII – Seabra. E-mail:
[email protected]. Lattes:http://lattes.cnpq.br/1592753260946214
INTRODUÇÃO
O presente artigo trás algumas das reflexões que iniciei no mestrado do
programa de pós- graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da
Bahia16 com a pesquisa intitulada “Representações da sexualidade de mulheres
negras em narrativas de Alice Walker”. Contudo, é um recorte. Um recorte que é
revisitado tempos depois, me permitindo refletir sobre assertivas ditas no passado.
Olhar o passado... Esse é o real objetivo desse trabalho. Mais especificamente,
olhar o passado da emergência de uma escrita feminina negra estadunidense.
Reaprender. Redescobrir o texto, si redescobrir, enquanto sujeito histórico
atravessado pelas identidades: ser negra, ser mulher, ter uma classe social, ter uma
sexualidade. É objetivo também, pensar como a experiência das intelectuais
acadêmicas negras estadunidenses pode contribuir para a sistematização de uma
produção intelectual/ literária feminina negra no Brasil e de uma epistemologia feita
por e para mulheres negras.
A emergência de uma produção literária realizada por pessoas negras
nos Estados Unidos foi um exercício que pode ser traduzido como uma tarefa que
mesclou beleza, resistência e sensibilidade. O presente texto tem seus “olhos”
direcionados para as escritoras estadunidenses Zora Neale Hurston e Alice Walker.
Duas mulheres que se encontram na escrita, cujas palavras são expressões de
signos da experiência de ser negra. Escritoras de períodos distintos, mas que usam
sua arte como espaço de representação e empoderamento de mulheres negras.
Tentou se, ainda que forma tímida, revisitar o período escravocrata dos
pessoas negras (Hattnher, 1990). Contudo, o emergir dessa escrita não significou o
aparecimento das produções de mulheres negras. Essas permaneceram
invisibilizadas pelas estruturas racistas e sexistas estadunidenses.
Rompemdo paradigmas de um fazer científico branco e masculino, a
década de 1980 é marcada pelo processo de institucionalização dos estudos sobre
as mulheres negras nos Estados Unidos. Tal processo contou com uma intensa
16
Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas.
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Estados Unidos, que muito influenciou as primeiras manifestações literárias das
72
produção de intelectuais negras engajadas nas mais diversas áreas do
conhecimento. Sistematizar os escritos das mulheres negras estadunidenses
também compôs esse projeto (Caldwell, 2010). O compromisso com esse ideal é
abraçado por Alice Walker, mulher negra que nasceu no sul rural dos Estados
Unidos da América (EUA), uma autora que alcançou reconhecimento mundial
produzindo uma literatura que reflete seu compromisso com a emancipação das
mulheres negras. O uso da palavra é a ferramenta de Walker para alcançar esse
compromisso, que versa sobre a existência de uma solidariedade que tem a raça
como ponto de encontro.
Hurston também é do sul, sul que ela apresentou a comunidade negra
americana na década de 1920, em um período marcado por explosões artísticoliterárias de pessoas negras do bairro do Harlem. Entretanto, as produções da
autora ganharam visibilidade anos após sua morte, a partir das ações de mulheres
negras acadêmicas comprometidas com a visibilidade das produções intelectuais
do grupo, dentre as quais, Walker, que empreendeu uma ampla pesquisa de
resgate a vida e obra de Zora Neale Hurston. A ação de Alice Walker é intencional.
Ela reflete uma das premissas de sua teoria womanista, que doravante será
apresentado nesse texto.
Finalizando a discussão, busca-se debater como a experiência de Walker
no resgate as obras de Hurston, e em um olhar mais amplo, como a experiência da
produção e sistematização dos estudos sobre as mulheres negras nos Estados
Unidos, podem contribuir para o fomento dos modos de produção e circulação da
produção intelectual/literária das mulheres negras no Brasil.
de natureza qualitativa. Os diálogos teóricos foram traçados com as contribuições
de historiadores/as pesquisadores/as da negritude nos EUA. Os pressupostos
teóricos fornecidos pelo feminismo negro e o womanism também forneceram
subsídios para os argumentos apresentados nesse trabalho.
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A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, sendo este um trabalho
73
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1. RAÍZES DAS PRODUÇÕES ARTÍSTICO-LITERÁRIAS AFROAMERICANAS
Conhecer a história da escravatura nos Estados Unidos é de total
relevância para compreensão da emergência dos escritos da população negra desse
país.
Como os demais países da América, os Estados Unidos tem em sua
história a mancha sangrenta da escravidão, cujo início antecede sua independência,
começando quando ainda colônia inglesa: “O primeiro navio holandês com escravos
negros chegou à Virgínia em 1619”, conforme Leandro Karnal e outros (2010, p. 63)
que pontuam, ainda, que, em duas décadas, em toda a colônia, havia trabalho
escravo sob as mais terríveis condições, posto que, para os senhores, as/os
escravas(os) eram vistos como bens materiais e tratados da mesma forma que os
animais. Aquelas(es) que conseguiam sobreviver à travessia nos navios negreiros
(onde havia um alto índice de mortalidade), eram obrigadas(os) a trabalhar
arduamente nas lavouras rurais, sofrendo duros castigos.
O número de escravizados(as) era considerável ao Sul da colônia,
principalmente na Virgínia e Carolina do Sul onde também existia o medo da
rebelião, pois a maioria dos(as) negros(as) não aceitava passivamente a condição
de escravos(as).
Em 1776, período da independência, quando as treze colônias se
tornaram um só país, os Estados Unidos, não houve alteração na condição dos(as)
escravizados(as). Contudo, em 1808, o tráfico é abolido e, em 1830, organiza-se
uma luta antiescravista; assim, idéias abolicionistas passam a circular no cenário
mão de obra escrava era fortemente explorada nas lavouras de algodão e tabaco
(MINTZ E PRICE, 2003).
Logo, o processo de abolição e as questões raciais dividiam o recémformado Estados Unidos: para os donos de lavouras do Sul, era de total interesse a
manutenção da escravidão, enquanto a região Norte, onde avançava a indústria,
desejava a abolição, pois precisava de protecionismo e de trabalhadores(as)
assalariados(as) para movimentar sua economia.
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estadunidense, o que contrariava os interesses dos senhores sul do país, onde a
74
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Sem dúvida, a Guerra da Secessão17, entre o Norte e o Sul dos EUA foi
um marco na questão da escravocrata deste país. Muitas(os) negras e negros
migravam para o norte para conseguir liberdade, pois, nesta região, eram
declarados(as) livres, ganhando assim, o título de cidadãs e cidadãos. De acordo
com Karnal e outros:
Durante a Secessão, os escravos utilizaram a Guerra Civil do melhor
jeito que podiam para se tornar livres: cada vez que uma tropa do
Norte invadia uma região confederada, um enorme contingente de
negros fugia das fazendas e, dessa maneira, colaborava para o
desmoronamento do sistema escravista. (2010, p. 134).
O final da guerra, em 1865, com a vitória do Norte, demarcou também, o
fim da escravidão. Aqui vale dizer, que o deslocamento para o norte torna-se um fato
notório, visto que marca o momento da emergência das manifestações artísticas
negras estadunidenses, o que Álvaro Hattnher (1990, p. 70) identificou como “busca
de expressão própria, de identidade, de auto-afirmação”.
Sob a emergência dessa escrita negra, os jornais abolicionistas que
circularam no período da escravidão já sinalizavam para o aparecimento dessa
literatura. De acordo com Hattnher (1990), o emergir de uma literatura afroamericana se relaciona diretamente com a experiência do plantation18, no sul rural
estadunidense, até sua migração para os guetos urbanos. A experiência da
escravidão determinou, portanto, as primeiras manifestações de uma criação
artístico-literária nos EUA e marcaria para sempre a escrita das pessoas afroamericanas, cujos escritos traziam suas crenças e a marca do desejo de libertação,
And it won’t be long. And it won’t be long,
And it won’t be long, Poor sinner suffer here.
We’ll soon be free.
17
18
Também chamada de Guerra Civil.
Sistema agrícola baseado na monocultura, no cultivo em latifúndios e na utilização de
mão de obra escravizada.
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como se pode ver no poema a seguir:
75
The Lord will call us home.19(FOERSTER, 1970, p. 65 apud
SALGUEIRO, 2004, p. 49).
Tal quais outros países que experienciaram a escravidão, a abolição da
escravatura nos Estados Unidos não significou uma mudança nas condições de
humanidade da população negra, mas as/os remeteu à marginalidade, agora nos
guetos urbanos para onde migraram e onde continuaram a enfrentar os problemas
da miséria, do racismo e da violência
à segregação, fundamentada na doutrina de
pureza racial.
Contudo, não é nosso objetivo, aqui, esgotar a história do período da
escravocrata nos EUA, mas observar como esta história foi determinante para a
emergência dos escritos negros, em um processo de tradução cultural, – “o
processo de negociação entre novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por
pessoas que migraram de sua terra natal” Elas tem diante de si, uma cultura que
não as assimila e, ao mesmo tempo, não perdem completamente suas identidades
originárias. Mas precisam dialogar constantemente com as duas realidades. (HALL
2000, p. 88-89). Assim, os escritos negros emergem da dialética entre a língua do
opressor e língua trazida da terra natal no continente africano, do trabalho nas
lavouras que fazia nascer o espiríto de comunidade e o desejo de liberdade,
inspirando a escrita futura, como Walker, em sua prosa womanista 20:
Assim, a literatura afroamericana já apresenta um de seus princípios: o
senso de comunidade, a escrita como espaço de liberdade e de discussões sociais
complexas.
19
20
21
“E não será distante. E não será distante,/E não será distante, o pobre pecador que sofre
aqui./Nós seremos livres./O Senhor nos chamará para casa”. (Tradução nossa).
Em seu livro In search of ours mother’s gardens, Alice Walker aconselha jovens que
desejam trilhar o caminho da escrita.
“Black writers seem always involved in a moral and/or physical struggle, [...] expected to
be some kind of larger freedom. Perhaps this is because our literary tradition is based on
the slaves narratives, where escape for the body and freedom for the soul went together”.
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escritores/as negros/as parecem sempre envolvidos em uma moral
e/ou força psicológica [...] mas por um sentimento de liberdade.
Talvez porque nossa tradição literária é baseada em narrativas da
escravidão, onde o escape para o corpo e a liberdade para a alma
caminhavam juntas.21(WALKER, 1983, p. 5, tradução nossa).
76
2. DE PRETA PARA PRETA: ESCRITOS DE MULHER, DE HURSTON PARA
WALKER
Nesse
momento,
debateremos
sobre
como
a
escritora
negra
estadunidense Alice Walker, em um trabalho que envolveu solidariedade feminina
racial e uma pesquisa engajada, empreendeu esforços para resgatar as obras de
Hurston. Essa jornada é descrita no livro In search of ours mother’s gardens (1983),
no qual Walker narra a primeira vez que ouviu falar de uma das grandes artistas do
movimento conhecido como Harlem Renassence. Para conhecer Zora Neale
Hurston, é também necessário conhecer o movimento do Harlem, e a partir de
então, se emocionar com os caminhos da escrita dessa autora. Nessa perspectiva,
discutiremos também o lugar da escrita da mulher negra nos Estados Unidos e as
estratégias de difusão e circulação de um saber de mulheres negras utilizadas por
essas mulheres.
Na década de 1920, um movimento surgiu no bairro do Harlem, em Nova
Iorque, com o objetivo de valorizar e resgatar a cultura negra além de romper com
os padrões artísticos eurocêntricos. Esse movimento ficou conhecido como Harlem
Renassence22. A escravidão, o racismo e a miséria eram os temas que inspiravam o
grupo composto por pintores(as), musicistas e escritores(as) dentre os quais
Langston Hughes23, Claude Mckay24 e Jean Toomer 25, foram os escritores que mais
se destacaram nesse período. Para Álvaro Hattnher (1990, p. 72), “a Renascença do
Harlem cataliza a busca e a descoberta de formas de expressão não vinculada aos
modelos estéticos existentes, brancos e ocidentais”. Apesar de, na década de 1920,
foi uma das mulheres que participou do movimento do Harlem.
Zora Hurston nasceu em Eatonville, na Flórida, uma cidade fundada por
pessoas negras, dentre as quais, seu pai e sua mãe 26. Formou-se em Antropologia e
realizou pesquisa sobre o folclore negro em Louisiana, publicada em Mules and
22
23
24
25
26
Em alguns textos, esse movimento aparece como Renascença do Harlem.
O primeiro poeta a ser reconhecido na Renascença do Harlem.
Poeta, nascido na Jamaica, muda-se para os Estados Unidos e passa a viver no Harlem.
Publicou poemas e prosa no período do Harlem.
Fonte: <http://www.pbs.org/wnet/americannovel/timeline/hurston.html>.
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não gozar do mesmo status de visibilidade dos escritores supracitados, Zora Hurston
77
man, que colaborou para que a memória das tradições do sul negro dos EUA
permanecesse viva.
Se a visibilidade dos escritores negros no cenário norte-americano era
pouca, o aparecimento da produção de autoria feminina foi ínfimo. Ao se observar o
período do Harlem Renassence, nota-se uma maior projeção dos homens que
compunham o movimento, por exemplo, Langston Hughes, um escritor que
conseguiu sobreviver apenas com os ganhos de sua produção. Contudo, nem
todos(as) os(as) artistas envolvidos(as) no projeto tiveram esta visibilidade. Pouco
se ouviu sobre as mulheres artistas do Harlem. Zora Neale Hurston foi totalmente
apagada, o que demonstra o sexismo27 que existia dentro do grupo. Hurston morreu
solitariamente em 28 de janeiro de 1960, com 69 anos de idade, sendo enterrada
como indigente. Treze anos após a sua morte, Alice Walker (1983, p. 107) descobre
o local onde Hurston foi sepultada e lá finca uma lápide com os escritos: “A genius of
the South, 1901---1960 /Novelist, folklorist, anthropologist28
Em uma aula de literatura negra, em Jackson State College foi à primeira
vez que Alice Walker teve contato com os escritos de Zora Hurston.
Segundo
Walker, quando precisou ler materiais sobre práticas de vodoo no sul rural dos EUA,
encontrou apenas o livro da autora do Harlem, Mules and men, pois os demais livros
tinham sido escritos por pessoas brancas e racistas. Buscou então resgatar e dar
visibilidade à sua vida e obra: “comecei a lutar por Zora e seu trabalho, pois o que eu
sabia era bom e não deveria ser perdido por nós 29 (1983, p. 87, tradução nossa).
É importante dizer que, a decisão de resgatar os escritos de Zora Neale
Hurston e colocá-los em circulação, reflete uma das bases do pensamento womanist
27
Crença na superioridade inerente de um sexo e, portanto em seu direito de dominar.
(LORDE, 2003). Na cultura ocidental, a crença é na superioridade do macho, assim
sustentando a relação de dominação e controle das mulheres.
28
“Zora Neale Hurston/Um gênio do Sul./Escritora, Folclorista, Antropóloga.” (Tradução
nossa).
29
“I began to fight for Zora and her work; for what I knew was good and must not be lost to
us”.
30
Womanism is to feminist as purple to lavander (WALKER, 1983, xii). Como o termo
comporta diversas idéias, não existindo uma tradução exata no português brasileiro, optouse por utilizá-lo na língua fonte. Contudo, na tradução da obra You can’t keep a good woman
down, as tradutoras Betúlia Machado e Maria José Silveira optaram por traduzi-lo como
“mulherismo”. (WALKER, 1987, p. 56).
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de Alice Walker. Womanism30 é um termo cunhado e desenvolvido teoricamente por
78
Walker, que reflete a emancipação política, racial e sexual das mulheres negras sob
uma perspectiva de busca de empoderamento31, por reconhecê-las como o grupo
que mais sofre a opressão destas categorias. (WALKER, 1983, COLLINS, 1996).
Um dos pontos da teoria pensada por Walker implica no resgate da cultura e das
vivências da comunidade negra e, mais especificamente, das mulheres. Para ela, as
mulheres devem ser autoras e protagonistas de suas histórias. Desse modo, a
escrita de Walker é marcada pela libertação e liberação feminina de amarras
constituídas por papéis sociais que reprimem e silenciam mulheres e prega a
resistência como o segredo da alegria.
No resgate aos escritos de Hurston, um dos livros que é posto em
circulação é o romance Their eyes were watching God32. Considerada a primeira
obra afroamericana a abordar a violência de gênero, tem uma heroína negra cujas
experiências fazem com que ela descubra sua identidade e alcance a sua
independência. Outros três romances são publicados, além de outras produções, um
trabalho sobre o qual Walker (1983) assinala que demonstra saúde racial - o
sentimento das pessoas negras em sua completude e suas complexidades.
Entretanto, Hurston sofreu severos julgamentos advindos dos homens
que faziam parte do movimento do Harlem. No prefácio de Their eyes were watching
God, Mary Helen Washington assinala que o romance foi ridicularizado pelos
homens negros do Harlem Renassence cujas críticas foram ainda mais duras que as
dos homens brancos, posto que os negros acusavam os escritos da autora de serem
despreocupados e cômicos, uma obra para divertir brancos.
Tais críticas impactaram na produção literária de Hurston. De acordo com
entanto, no fim da carreira, sua escrita se tornara estática e tímida, consequência
dos ataques que sua obra sofrera.
31
32
De acordo com Ana Alice Costa (2004), empoderamento “é o mecanismo pelo qual as
pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos,
de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência de sua habilidade e competência
para produzir e criar e gerir”.
Traduzido para o português do Brasil com o título Seus olhos viam Deus, por Marcos
Santarrita e publicado pela Editora Record, em 2002.
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Walker, até o meio da carreira, Zora Hurston fora uma revolucionária cultural e, no
79
Zora Neale Hurston, o “gênio do sul”, doente e sem dinheiro, morre e,
durante anos, é remetida ao esquecimento e à invisibilidade. Seus escritos só
passaram a fazer parte dos círculos acadêmico-literários a partir de 1970, quando
outras autoras também vieram a ganhar visibilidade, após uma árdua militância que
teve a experiência como principal fonte de reflexão, num contexto em que as
mulheres negras passam a denunciar e questionar o racismo e o sexismo que as
remetiam à marginalidade e à invisibilidade, tornando suas vozes audíveis e
produzindo conhecimentos sobre si, movendo-se pelas fronteiras do dizível,
denunciando o que Bernd chama de mecanismos de exclusão (ocultação ou
invenção do outro) e mecanismos de transgressão literária (resgate dos discursos
excluídos ao longe desse processo) (BERND, 1992, p.9)
3. SISTAH33! RESGATE AOS ESCRITOS DE SUA IRMÃ: O QUE A EXPERIÊNCIA
DO OUTRO NOS ENSINA
A emergência de uma produção artístico-literária feita por pessoas de
cor34 nos Estados Unidos da América não foi uma tarefa simples. Mitos construídos
durante o processo escravocrata, agora compunha o imaginário social, fortalecendo
os discursos racistas. Dentre esses discursos, existiu aquele que marcava a mulher
negra como corpo supersexualizado e reprodutoras, ao passo que, o homem negro
foi construído sob o estereótipo de viril e pela apreciação de sua força bruta, aptos
para o trabalho. Sob essa ótica, negros e negras tinham o exercício de seu trabalho
intelectual limitados, ou como é colocado pela feminista negra bell hooks 35 para
espinhoso (hooks, 1995).
Barbara Christian (2000) pontua que, tais quais as mulheres negras do
movimento
33
34
35
pelos
direitos
da
mulher
do
século
XIX,
as
afroamericanas
Black English.
É o mesmo que pessoas negras. Walker usa esse termo em seu conto “Coming apart”.
bell hooks, é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins. Ela “assina suas obras em minúsculo
e requer suas referências tal e qual, com o argumento de que ela mesma não se reduz a
um nome e seus textos não devem ser lidos em função deste nome”. (PINTO, 2008, p. 3,
NR 1).
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negros e negras exercerem o trabalho intelectual precisavam trilhar um caminho
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contemporâneas produziram largamente em muitas áreas na década de 1970.
Contudo, esses estudos não eram reconhecidos pela comunidade acadêmica. Por
muitas décadas, os estudos sobre raça eram associados aos homens, ao passo
que, os estudos sobre gênero, às mulheres brancas. Isso começa a mudar, ainda
que de forma tímida, no início da década de 1980, com o estabelecimento dos
estudos das mulheres negras – um resultado da intensa e qualificada produção
dessas mulheres. Christian (2000) denuncia ainda, a predileção das instituições
sociais contemporâneas pelos homens afroamericanos como verdadeiros experts e
porta voz quando se trata de criticar a relação entre raça e gênero, o que reflete
novamente a estrutura hierárquica, onde homens são colocados como superiores as
mulheres.
Buscando a emancipação e a visibilidade intelectual, o aparecimento da
produção de mulheres negras se deu, principalmente, nos campos da História e da
Literatura (CALDWELL, 2010), enunciando
novos parâmetros nos fazeres
acadêmicos, ao tempo em que resgatava a história das mulheres negras e de suas
experiências do passado, pois a forma encontrada para questionar a condição social
destas mulheres foi, exatamente, o uso da memória: o não esquecimento como meio
de resgate de suas vivências e de transformação da realidade social.
Caldwell (2010, p. 20) assinala que, ainda no século XIX, “houve uma
emergência da militância social e política por mulheres negras e um aumento do
número de publicações, tais como literatura, ensaios políticos e textos jornalísticos
escritos por mulheres negras norte-americanas” que refletiam sobre o processo de
escravidão e a pós-abolição. No século XX, quando os escritos das mulheres negras
dessas obras bem como o emergir de novos escritos. Dando enfoque ao campo
literário, Caldwell destaca que as obras produzidas por mulheres negras na década
de 1980, que passaram a ser incluídas na graduação e pós-graduação, além de
conquistarem espaços nas editoras, “causaram um impacto muito grande nas
universidades norte-americanas e iniciaram o processo de quebra da hegemonia
branca e masculina na área de Literatura” (2010, p. 22).
Para Maria Aparecida Salgueiro (1999, p. 141) “escrevendo da
perspectiva ‘mulher e negra’, as escritoras de origem africana nos Estados Unidos
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estadunidenses passaram a ser mais sistematizados, ocorre uma republicação
81
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examinam a individualidade e as relações como uma forma de caminho para a
compreensão de questões sociais complexas”. Escritoras como Maya Angelou, Toni
Morisson e Alice Walker são mulheres que abraçaram a missão de continuar a
abordar em suas obras os efeitos do racismo e sexismo. Na perspectiva de politizar
o literário, o discurso dessas mulheres interpreta a questão da dependência, dos
ditos colonizados e denuncia as matrizes do discurso pós-colonizador cuja prática
transcultural, entre saber e poética, faz da escrita literária um processo de diálogo
que tangencia o peso do contradiscurso, do mal-estar do passado e o peso do
presente, um processo vivenciado pela mulher negra do sul estadunidense.
Segundo uma análise de Caldwell (2010), a institucionalização dos
estudos sobre o pensamento das mulheres negras, ainda está ocorrendo no Brasil.
Certamente, do período da publicação da autora, até o ano de escrita desse artigo
(2015), se avançou no Brasil, acerca de uma produção intelectual negra e sobre
mulheres negras. Teses como a da professora doutora Cláudia Pons Cardoso 36,
Lícia Maria de Lima Barbosa37 denotam que um maior espaço foi conquistado nas
universidades quanto aos debates que interseccionam o gênero e a raça. Observase também, o aumento do número das publicações das produções literárias de
autoria feminina negra, bem como a criação de disciplinas nas universidades que
versam sobre afrobrasilidade. Nessa perspectiva, as críticas realizadas pelo
feminismo negro têm ajudado a repensar e reestruturar as construções tradicionais
na academia.
Sob esse aspecto, autoras negras brasileiras vêm produzindo e fazendo
circular seus escritos literários, cujas textualidades evocam uma (re)construção
brasileira, as desidentificações com o discurso hegemônico que até então as
representavam em nossa literatura. Neste sentido, publicam textos cujos temas
perpassam suas experiências  como o belíssimo Quarto de despejo: diário de uma
favelada, de Carolina Maria de Jesus, de 1960 , e questões sobre raça e racismo 
a exemplo de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, de 2006 , sobretudo
36
Defendeu a tese intitulada Outras falas: Feminismos na perspectiva das mulheres negras
brasileiras. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/7297/1/Outrasfalas.pdf
37
Defendeu a tese “Eu me alimento, eu me alimento, força e fé das iabás buscando
empoderamento!: expressões de mulheres negras jovens no hip-hop baiano”.
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identitária, os questionamentos sobre o status quo da mulher negra na sociedade
82
pensando sua escrita como lugar de afirmação do ser mulher negra. Destacam-se,
ainda, escritoras como Cidinha da Silva, Miriam Alves, Gení Barbosa e Conceição
Evaristo.
Vale ressaltar que a produção dessas mulheres tem sido crucial para o
aparecimento da cor na literatura brasileira. Tal como ocorreu nos Estados Unidos, o
movimento feminista, que explodiu no Brasil nos anos de 1980, era feito por
mulheres brancas e de classe média alta e/ou rica, de forma que a perspectiva da
mulher negra raramente aparecia. Contudo, segundo Caldwell (2010), neste mesmo
período, mulheres como Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, entre outras,
passaram a publicar textos que foram/são estruturadores para o nascimento do
pensamento feminista negro brasileiro.
CONSIDERAÇÕES
Apreender a experiência histórica e literária de uma nacionalidade distinta
da brasileira apresenta muitas dificuldades, por se tratar de outro contexto, de outra
cultura. É a tentativa de imergir no mundo do outro, tocar o que é possível dessa
experiência para refletir a sua própria. Contudo, Walker impõe à análise cultural a
idéia de descentramento das instituições culturais como forma de exercício do
poder, ao passo que aponta a literatura como caminho de resistência. Para Luciane
Silva (2010), a literatura produzida pelas mulheres afroamericanas e afro-brasileiras
reflete este fazer, através da tradição oral e do uso da memória.
negras nos anos de 1970 e 1980 fizeram parte dos primeiros trabalhos de um campo
de estudo que estava se formando: o campo de estudos sobre a mulher negra norteamericana ou Black Women’s Studies”. A produção intelectual das mulheres negras
estadunidenses abraça o propósito de emancipação de um grupo que, durante
séculos, foi remetido à condição de invisível. Essa escrita é também militância, visto
que representa a tentativa de um grupo considerado como minoria romper as
fronteiras das margens e fazer ecoar a sua voz. Aqui, a idéia de “menor” é
compreendida sob a ótica de Deleuze e Guatarri (1977), onde menor, não é aquela
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De acordo com Caldwell (2010, p. 20), “as obras escritas por mulheres
83
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que diz de uma língua menor, mas o que uma minoria faz dentro de um sistema
maior, ou de uma língua maior.
O comprometimento com a recuperação da memória das mulheres
negras por parte das acadêmicas negras estadunidense, e o projeto de difusão
desses saberes foram cruciais para o reaparecimento dos escritos de Zora Neale
Hurston. Pensando sobre o contexto brasileiro, o resgate dos escritos das nossas
antecessoras constitui-se em um elemento importante para o embasamento de um
projeto de construção de consciência identitária negra. Redescobrir Maria Firmina
dos Reis e Carolina Maria de Jesus faz parte desse processo.
É importante, também, refletir sobre as estratégias de visibilidade, nas
academias, dos estudos e produções que cooperem para o empoderamento das
mulheres negras bem como para a construção de uma episteme feita por e para
este grupo e, para isto, deve-se considerar a importância e as contribuições que o
movimento feminista negro tem trazido para os modos de produção e circulação de
uma escrita negra.
Ressignificar e reelaborar o discurso do opressor, portanto, é abraçar o
compromisso de um fazer acadêmico que tem o compromisso com a emancipação
das minorias sociais; assim, (des)escrever uma obra feminista/womanista ou
pesquisar tais obras significa denunciar com o objetivo de transformar. Preencher de
novos significados os corpos das mulheres negras, criar espaços para a circulação
de seu saber. Ouvir suas vozes que ecoam através dos séculos não significa apenas
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deixar a subalterna falar, mas, também, subverter o discurso do dominante.
84
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ABSTRACT
This article intends to reflect as Alice Walker, an afroamerican writer, in a research
that involved female and racial solidarity, reflect of her womanist theory, she rescued
the works of Zora Neale Hurston, an writer of the Harlem Renassaince, but her
productions was invisibly by sexists structures. It intends to think about ways of
movement of black women's writing, as well as how the rescue works of Hurston
contributed to the systematization of studies on black women in the United States.
Thereby promotes ways to think about on the systematization of black women's
literature in Brazil and an epistemology made by and for black women.
KEYWORDS: Literature. Black Women.Rescue.Invisibility.
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