Benjamin Péret - Orfeu de corpo inteiro
Transcrição
Benjamin Péret - Orfeu de corpo inteiro
JE SUBLIME Allo (tradução de Regina Guimarães) Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno meu gueto de lírios negros minha orelha de cristal meu rochedo rolando pela falésia para esmagar o guarda florestal meu caracol de opala meu mosquito de ar meu edredão de aves-do-paraíso minha cabeleira de espuma preta meu túmulo estoirado minha chuva de gafanhotos vermelhos minha ilha voadora minha uva de turquesa minha colisão de carros loucos e prudentes meu canteiro selvagem meu pistilo de papoila projectado no meu olho meu bolbo de túlipa no cérebro minha gazela desgarrada num cinema da avenida minha caixinha de sol meu fruto de vulcão meu riso de charco escondido onde se afogam profetas distraídos minha cheia de groselha minha borboleta de míscaro minha cascata azul como um maremoto que espalha a primavera meu revólver de coral cuja boca me atrai como o olho dum poço cintilante gelado como o espelho onde contemplas a fuga dos colibris do teu olhar perdido numa exposição de roupa branca rodeada por múmias amo-te Benjamin Péret (Nota: na edição de onde retirámos esta tradução, o décimo verso do poema está omisso na parte traduzida, presumimos que por lapso. Por isso, introduzimos no seu lugar a nossa própria versão desse passo do texto.) 1. Não há qualquer comunicação entre o domínio da vida e o domínio da morte. Isto não é uma afirmação de (falta de) fé. Simplesmente, a ciência já deu provas suficientes da validade do conhecimento que produz para podermos supor que, caso os espiritismos tivessem o menor resquício de verdade, essa verdade não estivesse já devidamente estudada, sistematizada, talvez até dominada e utilizada de modo pragmático. Ainda que suspeitemos que a nossa vida decorre numa espécie de préhistória do conhecimento do Além (o agnosticismo é mais seguro que o ateísmo), o presente obriga-nos a reconhecer a competência das ciências da vida e a acusar a falta de seriedade dos negócios do oculto. No entanto, não é porque alguém sabe que uma miragem é uma ilusão de óptica que deixa de a ver (de a sentir). E por isso, a consciência de que não existe comunicação entre o domínio da vida e o domínio da morte não impede que essa falta funcione como uma espécie de trauma emocional profundo para a espécie humana. Independentemente do maior ou menor humor de cada indivíduo (e ele há místicos, sobreviventes, oportunistas, superficiais, convertidos, etc.), ninguém escapa a esse incómodo metafísico. O que faz com que a comunicação seja o tema mais obsessivo da cultura criada pelo Homem: a ligação do tema do Amor ao tema da Morte não deriva tanto de uma espécie de romantismo trans-histórico, mas precisamente dessa utopia/distopia de Comunicação. Não é por acaso que cada ser se assume invariavelmente como a transcendência do seu amante (e vice-versa): sempre que tu és a minha vida, eu sou a tua morte, sempre que és a minha morte, eu sou a tua vida. Nem é preciso recorrer ao estafado exemplo dos franceses terem baptizado o orgasmo com a preciosa expressão petite mort (cada amante funciona para o prazer do outro como uma mortezinha desse mesmo prazer). Tudo o que se espera do amor (seja qual for a sua declinação, da paixão destrutiva à amizade com débito sexual) tem a ver com essa vontade de outrar ainda mais aquele que nos chega como o Outro. O amante é sempre o Fim, o happy end, a ilusão de eternidade. O Amor é por isso uma metáfora. E como toda a metáfora que se preze, não tem uma função de mera retórica, mas um verdadeiro sentido filosófico. Se quisermos utilizar uma linguagem insuportável, podemos afirmar que o Amor pressupõe sempre a transição de uma síntese matemática entre os seres que o acolhem para uma síntese dinâmica. Uma síntese diz-se matemática quando, apesar de unificar elementos homogéneos, não é necessária. O exemplo mais simples é o da soma algébrica: 1+1=2. Os dois algarismos 1 pertencem ao mesmo território de imanência, mas a sua composição numa síntese nova (o 2) é um acto de liberdade, contingente. Por outro lado, de um ponto de vista dinâmico, a síntese é uma conexão necessária (não pode deixar de ser feita) de dois elementos heterogéneos. Um exemplo: a causa e o efeito. A causa pertence ao domínio da Razão, enquanto o efeito existe no mundo dos Fenómenos. Mas para que um determinado efeito se dê, ele só pode ser produzido pela única causa que racionalmente o esclarece. Ora, no Amor, os indivíduos pretendem construir uma micro-sociedade em que deixam de se ver a si mesmos como indistintos exemplares da mesma espécie que podem ou não prescindir da companhia mútua para, ao se aprofundarem mutuamente, se reconhecerem como indivíduos plenamente diferenciados que, contudo, não podem deixar de manter a sua relação. Continuamos no domínio da metáfora: o que aqui continua a ser aludido é a morte como síntese dinâmica entre vida e transcendência. O Amor gostaria de ser tão forte, tão decisivo, tão absoluto quanto a Morte. Mas não é. O reino da morte é aquele onde cessam todas as aporias, aquele onde as Ideias da Razão aludidas por Kant deixam de ser meros objectos de pensamento e adquirem a alforria de únicos fenómenos. Por exemplo, aqui do lado da vida, não podemos conceber (muito menos apreender pelos sentidos) a noção de limite. Pois tudo aquilo que conhecemos como limite tem sempre um lado de fora, ou seja, não é na verdade limitado, porque pode sempre ser limitado por algo maior do que si próprio. Se na verdade há algum espiritismo válido é este espiritismo do númeno, este paradoxo fundador do conhecimento que nos leva a intuir que as Ideias de Liberdade, Infinito, Justiça, etc., só poderão ter realidade num mundo posterior à Morte, mundo esse que, sinceramente, não podemos conceber, mas que nos vai dando provas mí(s)ticas da sua possibilidade. Pois se não sabemos de ninguém que tenha vivido para sempre, conhecemos contudo muitos cadáveres que morreram para sempre. O Apocalipse é aliás um mito que tem apenas a ver com o lado de cá da vida: precisamente porque não conseguimos conceber o para sempre, temos de nos consolar com a ilusão de que os mortos hão-de um dia ressuscitar. Mas a morte permite a eternidade: ela desfaz a diferença entre 1 (a tautologia da vida) e 0 (a contradição da morte) numa matemática sublime. Ou seja, ao contrário do Amor, a Morte desfaz-se a si mesma enquanto síntese dinâmica para criar a esperança de uma homogeneização absoluta que não precisa mais de composição, de síntese. Resumindo, o Amor é uma metáfora fundada no ponto de vista da vida sobre a Morte, mas não passa de metáfora porque, se pensarmos sem ilusões, verificamos que a Morte é o oposto do Amor. No fundo, o Amor e a Morte (a ilusão e a crítica) são o Casal por excelência: não é por acaso que os místicos afirmam que Deus (o espaçotempo após a morte) é… Amor. E como o mais provável é que a Morte seja afinal um grande vazio (o agnosticismo é mais seguro que a fé), podemos também afirmar que o cheio de que ela aparentemente se reclama é nada mais que uma metáfora fundada no seu ponto de vista sobre o Amor. 2. Não é porque alguém sabe que uma miragem é uma ilusão de óptica que deixa de a ver. Este é o fundamento da criação artística: a tensão entre o trabalho dos cinco sentidos (das formas captadas pela visão, audição, tacto, olfacto, gosto) e o trabalho do sentido (da racionalidade semântica). Kant teorizou o sublime a partir desta tensão. Segundo ele, o sentimento do sublime (um sentimento sem conceito, que apenas informa o pensamento da justeza do estado deste) aparece quando um sujeito, perante a dimensão mais rude da Natureza (quando ela se impõe pela sua desmesura ou pela sua força), é submetido a uma apresentação negativa das Ideias da Razão. Negativa porque, não podendo uma Ideia da Razão ser apresentada no mundo dos fenómenos, o sublime obriga o sujeito a desvalorizar as formas que o objecto lhe oferece. É, portanto, um paradoxo lógico. Mas é precisamente por ser um paradoxo (releia-se o ponto 1 deste ensaio) que o sublime permite que o sujeito quase intua (por sentimento) o Infinito que constitui a verdadeira vocação do pensamento. Se o belo pressupõe uma harmonia fundada na comoção das formas, o sublime funciona como uma violência informe que descamba no mais-queprazer da quase-fruição da Razão. Quase nada temos a apontar à reflexão kantiana. No entanto, somos confrontados com um dilema. Enquanto fruidor do mundo, nunca sentimos grande comoção perante os objectos em torno dos quais foi fundada a teoria do sublime. Ou seja, o vulcão em erupção, o mar em procela, as ondas hiperbólicas com que o tsunami destrói as zonas costeiras, a montanha com uma magnitude que a visão não consegue apreender de um só golpe de vista, o tremor do fogo – nada disso provoca em nós o sentimento que o filósofo garante. Não poderíamos sentir maior desprezo pelo morticínio injustificável que um maremoto acarreta, olhamos o céu com os olhos do poeta lírico (sem epopeia), detestamos pepluns hollywoodianos, recordes do Guiness, paradas militares, cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos e temos de confessar que sempre fingimos gostar do espaço catedral (o que lá vamos ver são os vitrais). Se por vezes sentimos uma espécie de comoção dolorosa semelhante à de Kant, é quando pensamos na imensidão inconcebível do universo ou na possibilidade conceptual de uma eternidade sem tempo. Mas, note-se: é quando pensamos sobre isso. Não se trata de um sentimento estético. Quer-nos parecer que o filósofo alemão, sem que disso pudesse ter tido culpa (afinal, ele pensou antes de Marx, Freud e Darwin…), tomou uma predisposição cultural (bastante comum, é certo) como sendo um indicador da natureza (ou da condição) do humano. Vivesse ele na era da Globalização, da liberdade do gosto e das estratégias condicionantes da publicidade, da tolerância da excentricidade e da diversidade sexual, etc., e, sem deixar de ter razão no que toca à ambição sublime do pensamento, teria tomado outra orientação na sua Crítica da Faculdade de Julgar. Kant parece não ter percebido que a grandeza e a força dos objectos comoventes (condições sem as quais, na sua opinião, o sentimento do sublime não poderia surgir) não passavam de metáforas. É certo: a montanha pode ser magnânima e comover. É certo: o vulcão pode ser ameaçador e comover. Mas um tecido, observado ao microscópio, é desmesurado na sua pequenez. E a resistência pacífica pode mover montanhas. O caracol que percorre lentamente o muro, a tigela que diariamente recebe o leite, a magnólia de Daniel Faria, a taberna de Manuel de Freitas, a garota anónima que se passeia em Ipanema, uma fotografia antiga, tudo isso pode eventualmente provocar uma emoção que se defina pela grandeza e pela força (pelo impacto). Dir-nos-ão que essa emoção não é sublime. Ora, isso depende da visão do mundo de cada um. Pois nós não aceitamos, como se pretende na nossa época, que se proceda a um banimento dessa palavra. Afinal, todos os que alguma vez se pronunciaram sobre ela, de modos diversos (e até contraditórios) acabaram por concordar que o sentimento do sublime é sempre aquele que põe em causa a coerência acabada do pensamento. No nosso caso, diríamos que o sublime é experimentado por um sujeito que, perante um objecto imprevisível, sente uma comoção tal que, mesmo ciente da perfeição para que o Pensamento aponta, se apercebe (sem conceito) da maior falha dessa perfeição, a saber: a sua incomunicabilidade. Pois se o Além Transcendente é o fim de todas as aporias, é o Paraíso dos infinitos, das liberdades e das justiças, a verdade é que não temos nenhum acesso a Ele. Já o Amor, apesar de todo o seu historial de falhanços, desilusões e ignorâncias, é precisamente a nossa única possibilidade de alguma comunicação. Note-se: estamos igualmente no domínio do paradoxo. Pois o trauma da espécie humana é a falta de comunicação com o mundo após a Morte. No entanto, não há outra forma de viver esse trauma a não ser através da tentativa de comunicação (ao mesmo tempo figurada e literal) possibilitada pelo Amor. Como já dissemos, o Amor (a multiplicação do número) desfaz-se a si mesmo enquanto síntese matemática (a única permitida pela imanência), para criar a esperança de uma heterogeneização relacional que ao mesmo tempo integra e supera as questões da mortalidade. O Amor torna, portanto, espontâneo, todo o pensamento que se sistematizou. Mas para que isso aconteça, é preciso que o Amor se confunda com o sublime. Ou seja, na medida em que o nosso quotidiano de sobreviventes nos distrai da esperança trazida pelo Amor, é preciso que nesse quotidiano irrompa um sentimento grande e forte que nos reensine a verdadeira vocação das formas. Pois a vocação das formas não é desaparecer (o que nos parece um resquício de platonismo e de religiosidade), nem tãopouco distrair (mas não nos atrevemos a insultar essa inutilidade com a tão bela palavra beleza), mas possibilitar a esperança da comunicação. Claro que, a cada momento, todos os indivíduos estão em comunicação-pelas-formas: aqueles olhos comunicam com os meus, aquele discurso comunica com o meu ouvido, aquele sabor a tangerina comunica com a minha boca, etc. O sublime surge quando o homem toma consciência (emotiva, não conceptual) da perfeição maior que tem à sua disposição, e que é a imperfeita capacidade de comunicar. Diríamos que a Beleza é o Amor inconsciente, quase funcional (e por isso, da Beleza não se fala), enquanto o Sublime é o Amor que grita, que (se) conhece, que dá sentido ao seu próprio funcionamento. Na cacofonia entre Imaginação e Razão analisada por Kant, a nossa sensibilidade pende para a Imaginação. 3. Quando falamos de Amor, entendemo-lo em sentido amplo. Quando falamos de objecto sublime, não nos restringimos aos objectos doados pela Natureza, mas também nos referimos àqueles que o Homem fabrica. Ora, os fabricantes (os poetas) que surgiram logo após a teorização kantiana, entenderam o sublime como um sentimento nobre que deveria ser activamente procurado. Cada poema concreto seria ao mesmo tempo o registo dessa busca consciente, vocacional, e a sua revelação polémica oferecida a um leitor igualmente dedicado à gesta do sublime. É claro que, se alguns desses textos são profundamente comoventes, isso deve-se ao facto de, em contradição com o rigor da enunciação de Kant, eles se apresentarem como sublimes… formas. De qualquer modo, os românticos nunca foram bons na auto-análise. O pensamento surrealista, com a sua defesa de uma escrita não-consciente (de que o automatismo seria apenas o grau mais literal), veio modificar os dados do problema. É certo que o sublime passou a ser obsessivamente procurado pelos poetas (o grupo de Breton pretendia libertar-se da intermitência caprichosa da inspiração). No entanto, o único sublime que os surrealistas consideravam válido era aquele que tivesse sido… encontrado (ou seja, achado sem qualquer interferência do operariado da consciência; entenda-se, aliás, o ready made duchampiano como um apogeu quase paródico desta atitude). Belo paradoxo, cuja eficácia estritamente técnica é discutível (de Dylan Thomas a Herberto Helder, todos os descendentes do surrealismo se revelaram trabalhadores árduos), mas que, à maneira de um Prometeu da Intensidade, roubou o sublime ao Olimpo da Razão e o entregou à desassossegada espécie dos Homens falantes. Não adianta, pois, procurar o sublime como estratégia de enobrecimento: a racionalidade extra-matemática caracteriza-se pela humildade, pela quase pobreza. Mas também não ficamos mais sossegados se o tentarmos exilar para os erros do passado ou para a comédia dos lunáticos. Pelo contrário, quase poderíamos dizer que, no início do século XXI, atingimos por fim a maturidade para lidar com esse estranho conceito: o sublime (a consciencialização especificamente emocional da superioridade da comunicação perante todas as perfeições concebíveis) é aquilo que, mais tarde ou mais cedo, se pode oferecer a cada indivíduo, independentemente da sua postura ideológica sobre o próprio assunto. Assim sendo, o trabalho do poeta acaba por ser a criação de uma distância formal a partir de si mesmo. Seja para que o seu poema se refira ao Homem enquanto conceito partilhável por outros homens (o nosso ensaio: “Se o homem escreve o Homem”). Seja para inventar, reinventar, descobrir e redescobrir todas as possibilidades, impossibilidades, grandezas e misérias da comunicação. O poeta trabalha quando viaja nas formas (quando procura um leitor em qualquer ponto do espaço) e quando nas formas se aventura (quando procura um leitor em qualquer ponto do tempo). O poeta trabalha o Amor. Mesmo que propositadamente se reduza a um espectro insular (Bernardo Soares), celebre a violência (Sade), ou sucumba ao desespero da incomunicabilidade (Paul Celan). 4. O texto que abre o presente ensaio, integra um pequeno livro de poemas a que o seu autor, o surrealista Benjamin Péret, deu o título “Je sublime”. E para nos mantermos despertos em torno da difícil arte do baptismo, concentremo-nos na fertilidade do título que esse mesmo texto enverga: “Allo”. Podemos supor que, se esta não fosse uma estética do sublime, o poema se chamaria “Elle”. Teríamos assim dois seres iguais, as vogais, cuja relação não seria necessária (pois, em francês, basta pronunciar a consoante “l” para se obter um efeito sonoro semelhante ao daquele pronome). Com “Allo”, surgem diversos benefícios: a palavra torna-se uma síntese vocálica dinâmica (de acordo com o que expusemos no ponto 1); a pobreza especular do pronome (um “e” olhando-se ao espelho) dá origem a uma deformação comunicante (“a” já é diferente de “o”); o sujeito lírico deixa de estar a falar sobre o objecto do seu desejo, para se dirigir directamente a ele; e por fim, a estagnação do pronome sucumbe a uma temporalidade exemplar: enquanto a boca abre e fecha para narrar a história das vogais (“o” é a última “Voyelle” de Rimbaud), a sonoridade evoca o percurso que vai de uma (petite) naissance a uma (petite) mort. Repare-se, mesmo a distância que a variação sonora introduz é contrabalançada pelo sentido da interjeição (“está lá?”). O poeta cria distância de si mesmo para encurtar a distância que o separa do outro. O poema-telefone começa com o convencional “Allo” e finaliza com aquela que deveria ser a mais profunda mensagem que podemos comunicar a outrem: “je t’aime” (mensagem que foi completamente banalizada pela cultura de massas). Mas no mesmo livro há textos intitulados “Fala-me” e “Escuta”, e o poema inaugural termina com um pássaro turquesa gritando: “Aqui estou olá”. Aliás, as múltiplas personificações que abundam em “Je sublime” servem sobretudo para dotar os seres não humanos do poder da fala. “Allo” tem uma estrutura muito simples. Basicamente, é uma litania amorosa em que cada imagem evoca o ser amado de forma sublimada (advertimos que este sublimar não nos parece poder ser aproximado do conceito freudiano de sublimação: apesar da, ou precisamente por causa da influência decisiva do pai da psicanálise no pensamento surrealista, o grupo de Breton pretendia que a escrita fosse não um desvio socialmente aceitável do impulso libidinoso, mas a sua escancarada revelação). Enquanto autor charneira na história do sublime, Péret prolonga ainda algum do imaginário romântico. Um outro poema da mesma recolha, intitulado “Fonte”, começa com o verso “É Rosa menos Rosa”, onde se nega qualquer realidade à mulher abstracta a que o livro é dedicado (como se ela fosse tão numenal quanto a Liberdade). A nós, contudo (e porque em português a palavra “tempo” é polissémica), a formulação parece- nos evocativa do modo de dizer as horas. É como se o sujeito poético dissesse que “são duas (horas) menos dois (minutos)”. Ou seja, é como se a eclosão de Rosa estivesse por um triz, e esse triz tivesse o nome e a duração da própria Rosa. Como se fosse preciso seduzir Rosa para que ela aceitasse acontecer. Rosa não pertence, portanto, ao mundo da Morte, mas à contingência do Amor. No mesmo texto, após uma intensificação da violência (um aguaceiro torna-se catarata), o poeta pergunta “como está o tempo” (referindo-se agora ao clima). E a resposta é a transformação do mundo inteiro em Rosa: “Está um tempo Rosa com um verdadeiro sol de Rosa / e eu vou beber Rosa comendo Rosa”, etc. Note-se que só podemos dizer que Rosa se tornou o mundo inteiro por esforço metonímico. Péret podia ter simplesmente respondido: “Il est Rosa”. Mas não: o autor tem prazer em nomear, ser a ser, tudo aquilo que se transformou em Rosa, e nessa concretização está afastada qualquer possibilidade de Rosa ocupar o espaço inteiro e absoluto da realidade. Rosa, mulher abstracta, não é um conceito racional, mas a erupção de uma sensualidade idiossincrática. Afastadas as possibilidades de contradição (que só traria solidão) e de tautologia (onde tudo se diluiria numa idealização), o poeta precisa de escolher todas as palavras com as quais vai fazer uma forma verbal que permita a comunicação com a mulher desejada. A escolha é essencial, em Péret. Por vezes os textos parecem indecifráveis porque o autor se submete a uma espécie de existencialismo sensual, ou seja, coloca o problema da escolha não ao nível da verdade e da falsidade (ou do bem e do mal), mas ao nível do prazer e do desprazer. Por exemplo, o poema “Hoje” finda da seguinte maneira: “(…) um pau ensebado ao qual hei-de trepar / para que me olhes não como um quilo de açúcar / mas como uma noite que tu descoseste.” Ora, neste passo, parece-nos que o potencial metafórico é menos relevante do que a simples parcialidade sensual que Péret partilha com o seu leitor. O crítico Saguenail, numa das análises que fez ao poema “Allo” (revista “A grande ilusão”, número 13), defendeu que a estrutura binária do título (al / lo) já prevê em si o facto de cada verso apresentar duas imagens evocativas da mulher desejada. Concordamos. Por exemplo, logo no primeiro verso se diz: “Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno”. As imagens são duas, como dois são os membros do par amoroso. No entanto, não há entre as duas imagens uma ligação racional plausível. Ou seja, a sua conexão parece não ser necessária (apenas uma justaposição relativamente gratuita). Péret, poeta amante, precisa do amor do seu leitor. Se o leitor aceitar a sensualidade parcial que do texto se derrama, ele encontrará os fios que levarão à síntese dinâmica (erótica) de cada par de imagens. Assim sendo, no verso acima transcrito, podemos afirmar que a segunda imagem ao mesmo tempo arrefece a primeira (apesar da manutenção do traço semântico da catástrofe, a verdade é que o calor do fogo se torna vinho fresco), deslaça o seu realismo (uma inundação de vinho pertence ao domínio do fantástico) e tolhe-a de ambiguidade (a violência prejudicial que um avião em chamas sempre provoca parece adquirir um sinal algébrico diverso quando a imagem seguinte fala de uma inundação da bebida mais doce e exaltante que existe). Não partilharemos a nossa leitura de todas as imagens, o que seria fastidioso e castrador para o futuro leitor de “Allo”. Faremos apenas alguns comentários. Depois de igual jogo de tensões no segundo verso, o terceiro contém uma imagem única que parece vir fazer a síntese decisiva do que tinha sido proposto até aí: “meu rochedo rolando pela falésia para esmagar o guarda-florestal”. A violência do primeiro verso e a preciosidade selvagem do segundo são justificadas pelo desejo revoltado que o poeta tem de que não lhe coloquem entraves à imersão no sublime florestal (no corpo da amada). As mais diversas viagens e aventuras ocorrem durante a leitura do texto. O quarto verso enuncia uma sublimação química, o túmulo do sexto verso é claramente uma metáfora de nuvem ao mesmo tempo que a chuva de gafanhotos vermelhos que dela sai evoca um pulsar vital a despeito da morte, os profetas perdidos no seu além mental afogam-se no “riso de charco escondido” de Rosa. E o poema termina com uma petite mort (“revólver” e “múmia” assim o indiciam). Trata-se de um trecho semelhante ao estilo que mais tarde encontraremos em Dylan Thomas. É um conjunto de metáforas, claro, mas que pode orientar a significação em diversos sentidos. O “revólver de coral” é o olho frio (talvez indiferente) da destinatária do texto (olho que é também um “poço / cintilante”, e uma “exposição de roupa branca rodeada por” essas múmias que são as pestanas, e de onde fogem os colibris do olhar). Mas também pode funcionar como evocação do orgasmo (o poço é a vagina, e “a exposição de branco” é a inundação do sémen onde fogem esses colibris que são os espermatozóides). Aliás o próprio arrefecimento que decorre desde o avião em chamas até ao espelho gelado do fim sugere uma satisfação dos calores do desejo. Fim esse que funciona ainda como conexão necessária ao universo comparável (mas não idêntico) da morte; mas mesmo aqui, em vez de ser a roupa branca que enquadra as múmias, são estas que rodeiam o branco, como se o amor efectuasse a mais radical inversão possível do destino de todos os seres vivos. Esta imagem final é a síntese de todo o poema (apesar de defendermos que qualquer uma das imagens tem em si um coeficiente de sublime suficiente para poder chamar a si a inteireza da ambição de Péret). Note-se, porém, que nenhuma destas sínteses é matemática (no poema “Hoje” diz-se que 4+4=69) mas verdadeiramente dinâmica (em “O quadrado da hipotenusa” o autor confessa que ama Rosa “como o feto de outrora ama a pedra que o fez equação”, ou seja, a pedra que criou uma necessidade por via do amor). Ou se quisermos abandonar esta linguagem insuportável, podemos dizer, a partir da leitura que Lyotard fez da “Analítica do Sublime” de Kant, que o poeta, no paradoxo estético que a vida propõe, dá conta da componente de prazer. E nós, que defendemos que as coisas justas do mundo estão sempre nos seus lugares, que o mundo só dever ser o que deve ser, somos solidários com essa escolha. Enquanto operário do sublime, o poeta tem a oportunidade de realizar imensos labores (como tão bem sabia Rimbaud, a morte é una, mas a vida pode multiplicar-se em plural). Ele é demiurgo, pintor, escultor, botânico, zoólogo, político, terrorista, blasfemador, alquimista, explicador, repórter, analista meteorológico, etc. E como não está preso pelo bom comportamento quase cristão a que a Razão verbal se tem de submeter, o poeta constrói o seu universo a partir das pulsões da violência (colisão, maremoto), da velocidade (gazela desgarrada, fuga de colibris) e do luxo (castelo, opala). Defendemos que este universo traz em si o germe da mutação do sublime, desde a apetência kantiana para a majestade opressora (o avião em chamas) até à sua libertação contemporânea enquanto figura da intensidade dialogante (a roupa branca no estendal, sublimada até se tornar material de exposição, de partilha). Os surrealistas não eram ingénuos do amor. Compreenderam profundamente, isso sim, a relevância deste na contínua reprodução do mundo, e radicalizaram a relação com a poesia até nela não podermos distinguir pensamento, forma e vida (obviamente, o sublime pode surgir em todos os contextos, mesmo nos mais inesperados, e naqueles que são o oposto do imaginário e da vivência surrealistas, como acontece no caso Etty Hillesum). O poema “Para quando” contém um dos versos mais brutais de todo o livro “Je sublime”. É quando Péret diz que a sua Rosa chama por amanhã como por um fantasma “que descasca ovos cozidos como quem folheia a lista telefónica”.