La vida es uma herida absurda: representações da melancolia no

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La vida es uma herida absurda: representações da melancolia no
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº 2 • 2014 • RidEM
La vida es uma herida absurda: representações da melancolia
no tango
Avelino Romero Pereira
1. “El tono de le gente triste es el re menor.”
Num tango composto em 1956, o compositor e poeta Cátulo Castillo, em
parceria com o bandoneonista Aníbal Troilo, retoma a já clássica associação entre
o mal-estar tanguero e o refúgio na bebida. Em La última curda, a embriaguez –
curda – é enunciada desde o título e sintetiza a fugacidade tanto da experiência
existencial quanto do próprio extravasamento propiciado pelo álcool:
Ya sé, ¡no me digás!
tenés razón,
la vida es una herida absurda,
y es todo todo tan fugaz
que es una curda, ¡nada más!,
mi confesión...
Em depoimento gravado em vídeo, a viúva do autor narra a dificuldade que
este e o compositor tiveram para chegar ao resultado: “La última curda no la
podían terminar, porque tiene una parte cromática muy difícil de hacer”.1 Em
relato pitoresco, ela conta que o marido, habituado a escrever as letras à máquina,
a compôs à mão, sentado na cama, e em seguida a foram levar a Troilo, que estava
em cartaz no teatro. Temendo que o músico os retivesse, convidando-os a beber, e
os levasse a perder um compromisso, Cátulo a fez descer do carro e levar a letra
diretamente ao compositor. Diz ela que a partir de então este só a chamaria de
Amanda de Castillo, depoimento em Roberto TELLO (dir.), Los Misterios del Tango, n. 7: Tango y
Poesía, Buenos Aires, Paralelo 35, © 2004 International DVD Group.
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Bombita, “porque dijo que yo le había dejado una bombita”.2 O caráter explosivo
daquele tango está seguramente em sua complexa expressividade, abordando uma
soma de aspectos que compõem o universo melancólico: a queixa obsessiva, a
autorrecriminação, a meditação sobre a passagem do tempo, a fixação no passado,
a vida experimentada como fracasso, a autodestruição. A parte cromática a que se
refere a viúva é sua seção “B”, que funciona como estribilho, cantado duas vezes:
Contame tu condena,
decime tu fracaso,
¿no ves la pena que me ha herido?
Y hablame simplemente
de aquel amor ausente
tras un retazo del olvido.
Melodicamente, o trecho corresponde a uma escala cromática descendente
e reiterada, que parece metaforizar musicalmente uma inclinação para baixo que
traduziria o modo peculiar de sentir do melancólico.
Ilustração 1: Aníbal TROILO e Cátulo CASTILLO, La última curda, partitura para canto e piano,
Buenos Aires, © 1956 Korn-Intersong.3
Idem.
As partituras e letras completas, além de gravações dos tangos aqui citados, podem ser
consultadas em <http://www.todotango.com>
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REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
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Na partitura impressa, o tango aparece em sua versão original, escrito em ré
menor, que, segundo o compositor, seria “el tono de la gente triste”.4 De fato,
muitos tangos estão escritos originalmente na tonalidade de ré menor. Ou porque
esta possa simbolizar de algum modo a tristeza, ou apenas porque seja uma
tonalidade cômoda, fácil de entoar e de tocar, especialmente no bandoneón, o
exótico instrumento de som rouco e tão querido por dez em cada dez tangueros. A
tonalidade de ré menor e o desenho cromático descendente poderiam soar então
como componentes de uma retórica musical alusiva à melancolia. O recurso não
chega a constituir uma regra generalizada e estatisticamente identificável nos
tangos, mas já havia sido utilizado por Troilo em uma composição de 1950, em
parceria com outro renomado poeta do tango, Homero Manzi. Em Che, bandoneón,
coincidentemente, os versos, como o título sugere, também foram concebidos
como uma confissão ao instrumento e também buscam a mesma associação com o
álcool: “copa a copa, pena a pena, tango a tango, embalado en la locura del alcohol y
la amargura”.
Decerto, por escrever um tango para ser musicado por “el bandoneón
mayor de Buenos Aires”, como Troilo era chamado, Castillo concebeu a letra de La
última curda como essa confissão do tanguero ao próprio instrumento típico e tão
identificado àquela espécie musical e literária. Já nos primeiros versos, é ao
bandoneón, portanto, que se dirige o sujeito lírico da composição:
Lastima bandoneón,
mi corazón,
tu ronca maldición maleva...
tu lágrima de ron me lleva
hasta el hondo bajo fondo
donde el barro se subleva.
Assim, desde a primeira estrofe, seguem as metáforas que avizinham o
timbre peculiar do bandoneón ao álcool, como se traduzissem a voz enrouquecida
pelos efeitos continuados da bebida, algo que se notaria com o tempo no próprio
Aníbal Troilo, depoimento a Julián CENTEYA, “El bandoneón mayor de Buenos Aires” in La historia
del tango, vol. 16: Aníbal Troilo, 2. ed, Buenos Aires, Corregidor, 1999, p. 3013.
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Troilo e que parecia associá-lo uma vez mais ao instrumento que trazia no colo e
tão perto do coração. Depois da “lágrima de Ron”, virão o “sermón de vino”, o “licor
que aturda”, e mais:
Un poco de recuerdo
y sinsabor,
gotea tu rezongo lerdo.
Marea tu licor y arrea
la tropilla de la zurda
al volcar la última curda.
É marca dos melhores tangos o emprego de metáforas inusitadas, como esse
convite a arriar os cavalos que trotam à esquerda do peito. Valendo-se dessa
imagem gauchesca, familiar a certa tradição identitária nacional argentina, Castillo
traduz as intenções suicidas do sujeito lírico, já reveladas sob o título,
reiteradamente confessadas ao longo da canção e derradeiramente nos versos do
estribilho que a finalizam. Uma nova metáfora, o espetáculo que se encerra, leva a
rimar exaustivamente bandoneón, función, telón e corazón, parecendo sugerir a
exaustão do próprio personagem:
Pero es el viejo amor
que tiembla, bandoneón,
y busca en un licor que aturda
la curda que al final
termine la función
corriéndole un telón al corazón.
A princípio, nada autorizaria a ver no eu lírico a identidade revelada, quer
do autor, quer do compositor, e de fato nem um nem outro, casados, e ao que tudo
indica satisfeitos nos casamentos, pareceriam ter tido razões para chorar algum
velho amor. A situação, ficcional então, seria apenas a retomada, como motivação
lírica, do usual e nada original tema romântico dos males de amor. Nem sempre,
porém, os exegetas se contentam com explicações tão simplificadoras, preferindo
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buscar algo prosaico – ou paranoico – por trás do poético. Se não há motivações
amorosas, que sejam então as políticas, colhidas naquele “donde el barro se
subleva”, com que Castillo finaliza a primeira estrofe. O barro metafórico indicaria
uma filiação política de corte popular. Peronista, para ser mais explícito. Castillo
era filho de um poeta e dramaturgo anarquista e convertera-se ao peronismo,
vindo a ocupar postos importantes no governo Perón, como a presidência da
Comissão Nacional de Cultura e a direção do Conservatório Manuel de Falla, além
de presidir a Sociedad Argentina de Autores y Compositores de Música, a SADAIC.
O tango é de 1956 e o líder havia sido deposto no ano anterior. O “viejo amor”
converte-se prontamente na Revolución derrotada em 1955. Ao menos, assim
entende Ricardo Horvath, em interpretação até plausível, mas seguramente muito
forçada.5 Se a melancolia de Castillo em 1956 tinha motivação tão pontualmente
política, como explicar a de Manzi em 1950, no auge do regime peronista?
Seguramente, há motivação política nos tangos, mas esta costuma ser mais sutil e
nunca se manifesta de forma tão prosaica ou oportunista. Sem falar que os tangos
já eram melancólicos há pelo menos três décadas.6 Como nota Jean Starobinski,
recuperando Aristóteles, não é o prosaico que se deve buscar por trás da
melancolia, pois „o melancólico é aquele que, melhor que os outros, pode-se elevar
aos mais altos pensamentos“.7 Em estudo recente sobre a melancolia na poesia de
Baudelaire, o crítico suíço afirma que “o olhar do melancólico fixa o insubstancial e
o perecível: sua própria imagem refletida. O olhar do espectador, por sua vez, deve
elevar-se na direção oposta”.8
Mas o tango é um objeto tão rico e imaginativo quanto as tentativas de
superinterpretação que o tentam afetar. E nisso as ideologias políticas podem ser
bem acompanhadas por certa psicanálise, como a que autoriza Carlos Mina a
Ver Ricardo HORVATH, Esos malditos tangos: apuntes para la otra historia, Buenos Aires, Biblos,
2005, p. 83.
6 Em trabalho anterior, tratei da melancolia no tango sob uma dimensão cultural e política mais
ampla que a sugerida pelo tempo curto dos acontecimentos. Ver Avelino Romero PEREIRA, Luto e
melancolia, memória e identidade: do tango ao nuevo tango de Astor Piazzolla, Escritos: revista da
Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, ano 6, n. 6, p. 159-183, 2012. Para um extenso
levantamento das temáticas melancólicas nas letras de tango, ver também Ana JARAMILLO, Fueye y
melancolía: los intelectuales y el suicidio, Buenos Aires, LC, 1995. E para uma análise mais extensiva
do tango como fenômeno cultural e social, Avelino Romero PEREIRA, Buenos Aires, história e tango:
crise, identidade e narrativas tangueras, Niterói, 2012. Tese (Doutorado em História) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense.
7 Jean STAROBINSKI, A melancolia diante do espelho: três leituras de Baudelaire, tradução de
Samuel Titan Jr., São Paulo, Editora 34, 2014, p. 45.
8 Idem, p. 47.
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afirmar com tão apressada certeza que o bandoneón a que Manzi se refere é na
verdade a morte, a sua própria, posto que o poeta escreveu os versos já bastante
enfermo, vítima de um câncer que o mataria em 1951, aos 43 anos.9 Segundo Mina,
haveria nos versos uma tentativa de driblar a morte, evitando-se nomeá-la:
“bandoneón, ¿para qué nombrarla tanto?”. Mas esta insistiria com sua presença
cotidiana e irrefreável. Se, como quer o psicanalista, o bandoneón é a morte, e o
poeta rejeita nomeá-la, por que nomeia tão insistentemente o instrumento desde o
título e neste verso em particular o distingue “dela”? Parece-me mais óbvio ler o
que está escrito e entender que “Ella” que “vuelve, noche a noche, como un canto” é
a mesma e sempre pena de amor, sua causa ou seu efeito, pouco importa. A doença
até seria razão bastante para o estado do sujeito lírico, mas em outros versos, o
poeta refere-se claramente a “esas ganas tremendas de llorar / que a veces nos
inundan sin razón”. Refere-se, portanto, àquela aparente falta de razão que
impulsiona o melancólico a um estado de desconexão com a realidade, mas que
colhe nessa mesma realidade todas as motivações possíveis para seu
desenraizamento. Um amor desfeito, um sonho de felicidade, a desgraça alheia,
tudo é pretexto para o melancólico afundar-se em seu aparente ensimesmamento.
Sintomaticamente, e valendo-se do recurso da enumeração, tão caro à sua poética,
Manzi agrega a todos esses possíveis motivos a simples falta de motivo e também,
mais uma vez e sempre, o efeito do álcool como propiciador do estado melancólico:
Tu canto es el amor que no se dio
y el cielo que soñamos una vez
y el fraternal amigo que se hundió,
cinchando en la tormenta de un querer.
Y esas ganas tremendas de llorar
que a veces nos inundan sin razón,
y el trago del licor que obliga a recordar
si el alma está en ‚orsai‘,
che, bandoneón.
Ver Carlos MINA, Tango: la mezcla milagrosa: 1917-1956, Buenos Aires, Sudamericana, 2007, p.
220-224.
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REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
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A alma “en orsai” – no lunfardo, uma corruptela de offside, fora de jogo –
indica o descolamento da realidade. Todos os motivos e nenhum motivo, só por
estar. E o bandoneón é o conector, o dispositivo ou ente mágico que aciona o
estado melancólico. A riqueza poética desse tango de Manzi está justamente em
nomear os poderes do instrumento e da música que dele emana, ora como o
instaurador da melancolia, ora como um possível alento – uma possível cura, se de
enfermidade se trata – resultante de um processo de identificação:
El duende de tu son, che, bandoneón,
se apiada del dolor de los demás,
y al estrujar tu fueye dormilón,
se arrima al corazón que sufre y más.
A imagem do bandoneón arrimado ao coração de quem o toca – mas
também de quem o ouve – não é estranha aos versos de Castillo. Ambos são tangos
compostos em parceria com o bandoneón de Aníbal Troilo. Escritos, claro, em ré
menor, como um terceiro tango do mesmo compositor, sobre versos de Enrique
Cadícamo, no qual o sujeito lírico dialoga igualmente com o instrumento e que se
inicia com uma frase, não cromática, mas algo titubeante, como que descrevendo
um movimento de ir e vir, que termina confirmando a descendente.
Ilustração 2: Aníbal TROILO e Enrique CADÍCAMO, Pa‘ que bailen los muchachos, partitura para
canto e piano, Buenos Aires, © 1942 Korn-Intersong.
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Pa’que bailen los muchachos
via’tocarte, bandoneón.
¡La vida es una milonga!
O boêmio e dançarino poeta revela-se na letra que descreve mais o baile do
que o instrumento. E se a vida é mesmo uma milonga, ou seja, um baile, os abraços
se fazem, se desfazem e se refazem em outros braços, levando o sujeito lírico a
lamentar as penas de amor, se retirar do baile e se refugiar no instrumento,
tocando-o para que outros bailem. Esse terceiro tango, de 1942, é na verdade o
primeiro em ordem cronológica dessa trilogia de tangos confessionais escritos
para Troilo e que têm no bandoneón o interlocutor privilegiado. Ainda que possa
estar incorrendo no já criticado erro da superinterpretação, não posso deixar de os
considerar como retratos poético-musicais do próprio bandoneonista, cujo
centenário de nascimento se está comemorando neste ano de 2014. Pichuco, el
Gordo, el Buda, el Japonés, ou finalmente, El Gordo Triste, título de um tangohomenagem composto por Astor Piazzolla e Horacio Ferrer, pouco depois de sua
morte em 1975. Neste último, o autor busca reproduzir a expressão fugidia de
Troilo ao bandoneón: „los enigmas del vino le acarician los ojos / y un dolor le
perfuma la solapa y los astros“.
Ilustração 3: Aníbal Troilo por Sara Facio.
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Os olhos de Troilo deram margem a uma vasta iconografia, das lentes de
Sara Facio (ilustração 3) aos traços caricaturais nos periódicos ilustrados
(ilustração 4), reproduzidos à exaustão em páginas de livros, encartes de discos e
sítios virtuais. Tão valorizados quanto suas mãos ao bandoneón, seus olhos
fechados alimentam toda sorte de especulação sobre o insondável que ali repousa:
“Y se detiene. Entrecierra los ojos, se aísla en su mundo interior y ya nada existe
para él como no sea la melodía que baña dulcemente su alma. – Esta es la jaula del
japonés Pichuco – monologa para sus adentros”.10
Ilustração 4: Aníbal Troilo por Meliante Érmete, em caricatura de 1954
Fonte: La historia del tango, vol. 16: Aníbal Troilo, 2. ed., Buenos Aires, Corregidor, 1999, capa.
Se abertos, projetados para o alto, perdendo-se no vazio, seriam “ojos de
encontrarse con Dios” (ilustração 5).11 Essa alternância parece apontar aquilo que
Starobinski vê na tradição literária e iconológica desenvolvida a partir dos séculos
XVI e XVII: “de um lado, o espírito melancólico que sobe aos céus num êxtase de
intuição unificadora, de outro, o melancólico que busca a solidão, que se entrega à
imobilidade, que se deixa invadir pelo torpor e pelo estupor do desespero”.12 O
José Barcia citado em Héctor LOPEZ, “Aníbal Troilo, apuntes para una biografía” in La historia del
tango, vol. 16: Aníbal Troilo, 2. ed., Buenos Aires, Corregidor, 1999, p. 2894.
11 Horacio FERRER, El libro del tango, t. I. [3. ed.], Buenos Aires, Antonio Tersol, 1980, p. 903. Sobre
Troilo, ver também Oscar DEL PRIORE, Toda mi vida: Aníbal Troilo, Buenos Aires, JVE, 2003.
12 Jean STAROBINSKI, A melancolia diante do espelho, op. cit., p. 45.
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olhar de Troilo constituiria portanto a síntese perfeita dessa duplicidade que
acompanha a melancolia.
Ilustração 5: Aníbal Troilo por Sara Facio.
Nesta sondagem dos mistérios que alimentam a melancolia do tango, por
meio da seleção de algumas de suas poéticas, elevemos também o olhar, em busca
de outros elementos. Voltando-nos do músico ao poeta, acerquemo-nos um pouco
mais daquele que foi um dos íntimos colaboradores de Troilo: Homero Manzi.
2. “Homero estaba en el misterio.”
Estar no mistério era uma expressão a que o próprio poeta recorria, quando
queria apontar a autenticidade de uma aspiração ou de um mérito, como quem
fosse capaz de penetrar o sentido primordial ou a razão legítima das coisas. Troilo
se vale da ideia, para se referir ao amigo, “porque para Homero, explica, se estaba o
no se estaba en el mistério”.13 Uma consciência aguda que brotava de uma
sensibilidade melancólica nutrida talvez de sua condição de poeta, talvez de sua
militância política e social. De seu compromisso com a vida, enfim.
Homero Nicolás Manzione nasceu em 1907 na província de Santiago del
Estero e sua chegada a Buenos Aires, em 1916, coincidiu com o triunfo eleitoral de
Hipólito Yrigoyen, com quem se identificaria fortemente. Outra referência foi o
poeta anarquista, dramaturgo e tanguero José González Castillo, o pai de Cátulo
Castillo, a quem conheceu no bairro de Boedo, que era à época um espaço de
Aníbal Troilo, depoimento a Julián CENTEYA, “El bandoneón mayor de Buenos Aires”, op. cit., p.
3044. O depoimento foi tomado em 1965.
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atividade intelectual e artística marcada pelo engajamento político à esquerda. Em
1926, ingressou na Faculdade de Direito e no movimento estudantil, atuando
paralelamente como professor de castelhano e literatura no ensino secundário. A
resistência ao golpe militar que derrubou Yrigoyen em 1930 lhe renderia a
expulsão da universidade, a cassação de suas funções docentes e a prisão. Ao
reaver a liberdade, e valendo-se de que Gardel já gravara dois trabalhos seus,
optou por uma carreira vinculada à indústria cultural, então em franca expansão:
dedicou-se ao tango, às revistas de rádio e ao cinema.
Segundo Arturo Jauretche, ideólogo e militante radical como Manzi, este lhe
teria dito: “tengo por delante dos caminos: o hacerme hombre de letras o hacer
letras para los hombres”.14 Considerado um dos renovadores da poética do tango,
trouxe para a canção popular referências da poesia de língua espanhola, de Darío,
Borges, Lorca e Neruda. Seu mergulho no mundo tanguero é correlato à jamais
abandonada atuação política: nos anos 30 seria um dos principais fundadores da
FORJA, a Fuerza de Orientación Radical de la Joven Argentina. Antiperonista em
1946, aproximou-se de Perón em 1947, por entender que seu programa cumpria
as aspirações de 1916, sendo por isso expulso da Unión Cívica Radical. Em 1948,
chegaria à presidência da SADAIC, já antevendo a morte no diagnóstico do câncer
que o mataria em 1951. A consciência solitária da finitude viria somar-se assim à
solidária, expressando a angústia de uma trajetória atravessada tanto pela questão
social quanto pela existencial, como anunciaria em um de seus últimos poemas:
Soy un obrero de tristeza.
La esconderé detrás de todas las carcajadas
y, cuando nadie me vea, seré con ella.15
A difícil experiência política argentina surgida no pós-1930, a década
infame, marcada pelo golpe militar, pelo autoritarismo, pela volta das oligarquias
conservadoras ao poder, pela crise econômico-financeira, pela corrupção e pela
dependência ao capital britânico, deixariam uma forte marca no imaginário
Citado por Aníbal FORD, “Homero Manzi en el umbral de FORJA“ in Aníbal FORD, Jorge B.
RIVERA, Eduardo ROMANO, Medios de comunicación y cultura popular, Buenos Aires, Legasa, 1985,
p. 141-162. A citação corresponde à página 145.
15 Homero MANZI, “Poema” in Homero Luis MANZIONE (org.), Homero Manzi: poemas, prosa y
cuentos cortos, 2. ed., Buenos Aires, Corregidor, 2007, p. 188.
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daquela sociedade, impondo-se às representações construídas em torno do
próprio tango. Para a maioria dos intérpretes, presos à aporia ideológica
nacionalista, a tristeza, a nostalgia, a melancolia do tango seriam apenas a
expressão de uma retórica anti-imperialista – “el porteño que vive en los tangos es
triste porque el país no controla su destino”16 –, ou um fator de identidade social e
nacional referido ao fenômeno da imigração – “los porteños somos tristes porque
añoramos a la patria lontana, somos gringos transplantados a América”.17 Já
outros, em lugar de tomarem a expressão metafísica como importada e alheia à
realidade argentina ou latinoamericana, reivindicam uma universalidade para o
tango e vêem sua poética como fruto da consciência da finitude da condição
humana. É como dirá o escritor Ernesto Sábato: “el hombre del tango es un ser
profundo que medita en el paso del tiempo y en lo que finalmente ese paso nos
trae: la inexorable muerte”.18
Como ocorre com o tango em geral, também as análises da poética de Manzi,
construídas sob diferentes tendências ideológicas, são impressionadas por sua
trajetória tão marcada pelas vicissitudes políticas. 19 Sem pretender resenhá-las,
recorro à avaliação de Troilo. Em suas falas públicas, este se esquiva de revelar
qualquer inclinação política, e ao avaliar o amigo e seu lugar na história do tangocanción, prefere querer, como ele, acessar o mistério que reside entre as coisas do
alto e as da terra: “su creacionismo no es puramente tarea de invención. Parejo con
el poeta que vagaba regiones de nubes, estaba el hombre que conversaba de vida
vivida. Fue un creador. Determinó la etapa manziana del verso en tango”.20
“Éramos como hermanos, con una sensibilidad parecida”, diria Troilo em
1967, entrevistado pela jornalista uruguaia María Esther Gilio. “Nos entendíamos
sin palabras. Nos mirábamos y uno ya sabía qué quería decir el otro. En la amistad
y el amor ése es el único idioma”, prossegue Troilo, até que as lembranças o
Juan José HERNÁNDEZ ARREGUI, Imperialismo y cultura, Buenos Aires, Continente, 1957, p. 124.
José GOBELLO, Conversando tangos, op. cit., p. 93.
18 Ernesto SÁBATO, Tango, discusión y clave, Buenos Aires, Losada, 1963, p. 31.
19 Além do já citado trabalho de Aníbal Ford, ver Idea VILARIÑO, Las letras de tango: la forma, temas
y motivos, Buenos Aires, Schapiro, 1965; Noemí ULLA, Tango, rebelión y nostalgia, Buenos Aires,
Jorge Alvarez, 1967, p. 122-129; Aníbal FORD, “Manzi en el sótano de FORJA”, Crisis, Buenos Aires,
ano 1, n. 7, p. 14-19, nov. 1973; José GOBELLO, Conversando tangos, Buenos Aires, Peña Lillo, 1976;
Blas MATAMORO, La ciudad del tango: tango histórico y sociedad, 2. ed., Buenos Aires, Galerna,
1982, p. 196-198; Horacio SALAS, El tango, 4. ed., Buenos Aires, Planeta, 1999, p. 249-262; Gustavo
VARELA, Mal de tango, Buenos Aires, Paidós, 2005, p. 158-169.
20 Aníbal Troilo, depoimento a Julián CENTEYA. “El bandoneón mayor de Buenos Aires”, op. cit., p.
3043.
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silenciam. E a jornalista observa: “y se quedó callado. Con los mismos ojos ausentes
que ya le conocía y acariciando un vaso que no sé cómo había llegado a sus manos”.
Alguém se aproxima então e a adverte, quase murmurando: „cuidado, va a llorar“.21
A pergunta era a propósito do método de composição de Troilo. Este explica
que não escreve música por escrever, mas que precisa da letra primeiro, gostar
dela, mastigá-la, memorizá-la: “es como si la fuera envolviendo en la música. Es
muy importante para mí lo que dice la letra de una canción. Por eso me gustaban
las letras de Manzi”.22 Assim se teria passado com Sur, o tango composto pelos dois
amigos em 1948 e que Troilo considerava seu favorito, de cujos versos diz que “el
músico no puede menos que sentirse transportado al clima ideal, y las notas y los
acordes fluyen con la belleza del mensaje poético”.23 Sur converteu-se facilmente
em um clássico, tendo recebido três gravações pelo próprio Troilo e muitas outras
por vários intérpretes, acompanhados por outras tantas orquestras. Igualmente
revelador da profunda sintonia entre músico e poeta, o outro tango favorito
nomeado por Troilo é o instrumental Responso, sua homenagem fúnebre a Manzi.
Dos diversos trabalhos feitos em parceria, Sur figura ao lado de outras duas
composições da dupla: o tango Barrio de Tango, de 1942, e o tango-vals Romance
de Barrio, de 1947. Nas três letras, Manzi evoca nostalgicamente os amores de
juventude vividos nos bairros suburbanos, populares, da região sul de Buenos
Aires, tomando-a como referência pessoal e coletiva. É por meio desses dois
recursos temáticos, os amores da juventude e o bairro, costurados na mesma
nostalgia – amores perdidos e paisagens urbanas transformadas pela passagem
irremediável do tempo – que Manzi conecta a percepção individual a um
sentimento coletivo de estar no mundo. A nostalgia é sem dúvida um traço
relevante do tango em geral e da poética de Homero Manzi em particular. Idea
Vilariño, professora e crítica literária, autora do primeiro estudo sistemático das
letras de tango, publicado em 1965, aponta “el paso del tiempo”, a ideia de
fugacidade, como um dos núcleos temáticos mais relevantes dos tangos.24 Segundo
a autora, é o que se pode ler em Barrio de Tango:
María Esther GILIO, Aníbal Troilo Pichuco: conversaciones, Buenos Aires, Perfil, 1998, p. 20.
Idem.
23 Aníbal Troilo, entrevista a Ricardo YRURTIA, “Aníbal Troilo” in La historia del tango, vol. 16:
Aníbal Troilo, op. cit., p. 3063-3065.
24 Ver Idea VILARIÑO, Las letras de tango, op. cit., p. 12. Ver também Rosalba CAMPRA, Como con
bronca y junando... la retórica del tango, Buenos Aires, Edicial, 1996.
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Barrio de tango, luna y misterio,
calles lejanas, ¡cómo estarán!
Viejos amigos que hoy ni recuerdo,
¡qué se habrán hecho, dónde estarán!
Barrio de tango, qué fue de aquella,
Juana, la rubia, que tanto amé.
¡Sabrá que sufro, pensando en ella,
desde la tarde que la dejé!
¡Barrio de tango, luna y misterio,
desde el recuerdo te vuelvo a ver!
Observo no terceiro e quarto versos dessa estrofe, a intenção do poeta de
forçar a lembrança de algo de que sequer se recorda, os amigos de juventude, como
se a escritura poética fosse a garantia para evitar essa segunda perda – o
esquecimento – que se soma à perda do objeto concreto pela distância temporal.
Por isso, o poeta frisa que “desde el recuerdo te vuelvo a ver”, cumprindo a
evocação nostálgica o papel de elo com o que já não está.
Em Sur, Manzi retoma o tema do bairro perdido. O bairro é Pompeya, um
bairro proletário onde o poeta viveu parte da juventude. Essa geografia
sentimental é reencenada a partir de referências visuais e espaciais concretas, que
Troilo descreve em seu depoimento como “una acuarela de gamas cálidas y
profundas”.25 A mesma imagem será empregada por outro compositor, o pianista
Osvaldo Pugliese, que descreve Manzi como “un acuarelista, un pintor”.26 De forma
diferente, mas análoga, José Gobello diz que “para Manzi, Buenos Aires era como
una película documental”.27 De fato, Manzi, que também foi roteirista, diretor e
produtor de cinema, traz em seus tangos um registro imagético extraído de cenas e
personagens do cotidiano – um cotidiano vivido entre o final da década de 1910 e
princípios da de 1920 e evocado dez ou vinte anos depois. Em Sur, vale-se da
enumeração, marcada pelo conectivo “y”, como artifício para recriar o real:
Aníbal Troilo, entrevista a Ricardo YRURTIA, “Aníbal Troilo“ in La historia del tango, vol. 16:
Aníbal Troilo, op. cit., p. 3063. A entrevista foi publicada originalmente em 1959.
26 Osvaldo Pugliese, depoimento a Noemí ULLA, Tango, rebelión y nostalgia, op. cit., p. 173.
27 José GOBELLO, Conversando tangos, op. cit., p. 91.
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REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº 2 • 2014 • RidEM
San Juan y Boedo antiguo y todo el cielo,
Pompeya y más allá la inundación,
tu melena de novia en el recuerdo
y tu nombre flotando en el adiós...
La esquina del herrero, barro y pampa,
tu casa, tu vereda y el zanjón
y un perfume de yuyos y de alfalfa
que me llena de nuevo el corazón.
A mescla de elementos urbanos e rurais figura um bairro suburbano nos
limites da cidade, que se prolonga e se confunde com o pampa e com o céu, em
evidente diálogo com a poesia do Borges dos anos 1920. O poeta opera assim um
duplo deslocamento: do barrio Norte, enobrecido, cantado por Borges, ao Sur
tanguero; da poesia culta, erudita, escrita para ser lida em livros, a uma poesia
popular, para ser ouvida em forma de canção. O laconismo do título, que já servira
a Borges para nomear um famoso conto que articula o tema do duelo gauchesco ao
ambiente suburbano, terminará se convertendo em palavra de ordem para uma
identidade popular evocada em tom reivindicativo. Retorna em outros tangos,
como El Corazón al Sur, de Eladia Blásquez, e Vuelvo al Sur, de Piazzolla e Fernando
Solanas, ambos de 1988, este último como tema do filme Sur, de Solanas. No tango
de Manzi, a palavra soa em longas enunciações dadas pela música do estribilho:
Ilustração 6: Aníbal TROILO e Homero MANZI, Sur, partitura para canto e piano,
Buenos Aires, © 1948 Korn-Intersong.
Sur... paredón y después...
Sur... una luz de almacén...
Nos versos que se seguem, o poeta enumera tudo “que ha muerto”: seus
próprios gestos, as noites, as ruas, as luas, o amor, os encontros à janela. E desde aí
o compositor recorre a um desenho melódico descendente e reiterado, que sugere
a sensação da queda, da perda, do distanciamento temporal, da própria morte.
45
Ilustração 7: Aníbal TROILO e Homero MANZI, Sur, partitura para canto e piano,
Buenos Aires, © 1948 Korn-Intersong.
Ya nunca me verás como me vieras,
recostado en la vidriera
esperándote.
Ya nunca alumbraré con las estrellas
nuestra marcha sin querellas
por las noches de Pompeya.
Las calles y las lunas suburbanas
y mi amor y tu ventana
todo ha muerto, ya lo sé...
A rítmica dos versos de Manzi reforça a perda: “esperándote”, “Pompeya”,
“sé”. A cada terminação, o acento se desloca. Uma espécie de contagem regressiva,
que conduz ao fim. O arranjo de Argentino Galván gravado por Troilo em 1948 com
a voz de Edmundo Rivero – e regravado em 1956 e 1971 – realça a imagem, na
segunda e conclusiva exposição do estribilho: em lugar de uma terminação enfática
e do usual “tchan-tchan” dos tangos, o discurso musical parece dissolver-se.
REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
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Mas ao evocar também, como usual, as penas de amor, Manzi inscreve mais
uma vez sua trajetória pessoal na da própria cidade, e explicita que a perda que
lamenta se deve à transformação operada pelo tempo sobre a paisagem urbana:
San Juan y Boedo antiguo, cielo perdido,
Pompeya y al llegar al terraplén,
tus veinte años temblando de cariño
bajo el beso que entonces te robé.
Nostalgia de las cosas que han pasado,
arena que la vida se llevó,
pesadumbre de barrios que han cambiado
y amargura del sueño que murió.
Essa nostalgia por um mundo que já não existe mais alimenta o
desenraizamento do melancólico e seu desconforto diante da passagem do tempo e
da mudança. Mas o apelo visual que os tangos de Manzi detêm inscreve a mudança
não só na sensibilidade que sofre essas perdas, mas também no ambiente descrito.
A angústia da perda se manifesta assim na percepção da própria cidade de Buenos
Aires, que se modernizava em ritmo acelerado desde o final do século XIX. 28
Impossível deixar de pensar nos “Quadros Parisienses” que integram as Flores do
Mal de Baudelaire:
Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville
change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel).
[...]
Paris change! mais rien dans ma mélancolie
n’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.29
Ver José Luis ROMERO, Luis Alberto ROMERO, Buenos Aires: historia de cuatro siglos, Buenos
Aires, Altamira, 2000; Mirta Zaida LOBATO (org.), El progreso, la modernización y sus límites: 18801916, Buenos Aires, Sudamericana, 2000.
29 Charles BAUDELAIRE, “Le cygne” in As flores do mal, tradução de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 2012, p. 312-316: “A velha Paris não existe mais (a forma de uma cidade/ muda
mais rápido, ai de mim!, que o coração de um mortal). [...] Paris muda! mas nada em minha
28
47
Se Manzi é o pintor dessa Buenos Aires moderna, não seria forçado entrever
uma associação entre sua poética e a de Baudelaire, enunciada particularmente em
O pintor da vida moderna, o ensaio crítico que o poeta francês escreveu sobre o
aquarelista Constantin Guys, entre 1859 e 1860. Ali, Baudelaire introduz o flâneur,
cuja “paixão e profissão é desposar a multidão”.30 Esse tipo urbano é descrito e
valorizado como “o observador apaixonado”, para quem “estar fora de casa, e
contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre” constitui o prazer que
alimenta sua criação artística, quando, após contemplar as paisagens da cidade, “à
hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando
sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas”.31 Manzi
seria então uma espécie de flâneur bonaerense, cujo frequentar as paisagens
urbanas lhe renderia a matéria viva com que molda seus tangos.32
É essa conexão com Baudelaire, dentre outros modelos, que me sugere
entrever nos tangos de Homero Manzi algo além do mero reflexo das crises
vivenciadas a partir de 1930. O olhar melancólico que dirige à cidade já aparece
aliás no primeiro de seus tangos, Viejo Ciego, versos escritos em 1925 para um
concurso promovido pela revista El Alma que Canta e musicados no ano seguinte
por Cátulo Castillo e Sebastián Piana. Manzi descreve um velho violinista que todas
as noites vem alimentar a nostalgia dos habitantes de um bairro suburbano:
„ponés en las almas / recuerdos añejos / y un poco de pena mezclás al alcohol“.
Nesses versos, o jovem poeta com pretensões eruditas se afastava dos personagens
e do ambiente habitualmente descritos nos tangos desde Mi noche triste, de 1917,
considerado o primeiro tango-canción: a prostituição das milonguitas nos cabarés
melancolia / se mexeu! palácios novos, andaimes, blocos,/ velhos faubourgs, tudo para mim tornase alegoria,/ e minhas caras lembranças são mais pesadas que rochas.”
30 Charles BAUDELAIRE, “O pintor da vida moderna” in Teixeira COELHO (org.), A modernidade de
Charles Baudelaire, tradução de Suely Cassal, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 159-212.
31 Idem, p. 173. Sobre o olhar que Baudelaire dirige à modernidade, ver os estudos clássicos de
Walter BENJAMIN, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, 3. ed.,Obras escolhidas, vol.
III, tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, São Paulo, Brasiliense,
1994, e Marshall BERMAN, “Baudelaire: o modernismo nas ruas” in Tudo que é sólido desmancha no
ar: a aventura da modernidade, tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti, São Paulo,
Companhia das Letras, 1987, p. 127-165.
32 Para uma aproximação entre alguns temas tangueros e a lírica de Baudelaire, ver Avelino Romero
PEREIRA, “Cafetín de Buenos Aires”: sociabilidade e crise no tango dos anos 1930 e 40, Actas del I
Congreso Internacional Nuevos Horizontes de Iberoamérica, Mendoza, Argentina, 6 a 8 nov. 2013.
Disponível em http://nuevoshorizontes2013.wordpress.com/
REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº 2 • 2014 • RidEM
e o lamento dos compadritos traídos.33 Toma por modelo a poesia que inspirara
também a Borges, a de Evaristo Carriego, o cantor da vida simples e cotidiana dos
bairros mais distantes do centro de Buenos Aires:
Parecés un verso del loco Carriego,
parecés el alma del mismo violín.
Puntual parroquiano tan viejo y tan ciego,
tan lleno de penas, tan lleno de spleen.
Cuando oigo tus notas me invade el recuerdo
de aquela muchacha de tiempos atrás,
a ver, viejo ciego, tocá un tango lerdo,
tan lerdo y muy triste que quiero llorar.
No poema de Carriego, era o cego quem chorava, à noite, após ouvir o
realejo que vinha às tardes tocar no bairro.34 Ao reescrever o tema, Manzi
incorpora a si a melancolia do personagem, introduzindo a onipresente pena de
amor. Quando escreveu esses versos, era ainda muito jovem para ter tantas
lembranças. “J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans”, dizia Baudelaire, no
primeiro verso do segundo “Spleen”, um dos poemas com esse título que integram
a seção “Spleen e ideal” das Flores do Mal.35
As referências textuais a Carriego e ao spleen baudelairiano dão conta dessa
tentativa de situar os tangos num espectro poético muito além do imediato político
e também da pura experiência pessoal. Escrevendo a respeito da poesia de
Baudelaire, Starobinski indaga se as destruições e reconstruções do urbanismo de
meados do século XIX são a causa do spleen e do sentimento de exílio vivenciados
pelo poeta ou se ali estão apenas “porque o sentimento melancólico não descansa
enquanto não encontra um objeto sobre o qual exercer seu trabalho, afixando o
sentido da perda sobre toda imagem que consinta em oferecer-lhe, em troca, uma
A respeito dessa transformação operada por Manzi e outros poetas, ver José GOBELLO, La
deslupanarización del tango, Buenos Aires, Academia Porteña del Lunfardo, 1995.
34 “A noche, después que te fuiste, / cuando todo el barrio volvía al sosiego / qué triste – / lloraban
los ojos del ciego”. Evaristo CARRIEGO, “Has vuelto” in Poesías completas, Buenos Aires, Losada,
1996, p. 203-204.
35 Charles BAUDELAIRE, “Spleen” in As flores do mal, op. cit., p. 282: “Eu tenho mais recordações do
que se tivesse mil anos.”
33
49
justificativa de seu próprio luto”.36 O crítico não descarta, conforme as análises de
Benjamin, o sentido sociopolítico do poema que comenta, mas conclui que “seria
um engano reduzi-lo a isso”.37 Assim, em outro “Spleen” de Baudelaire, nem a
abundância abranda a melancolia: “Je suis comme le roi d’un pays pluvieux; / riche,
mais impuissant, jeune et pourtant très-vieux”.38 Analogamente, o sociopolítico em
Manzi nasce do mesmo desconforto diante da modernidade experimentado por
Baudelaire e, como já apontei, dessa conexão entre uma subjetividade solitária por
um lado e solidária por outro, na medida em que a experiência pessoal se comunica
com a coletiva. Mas é também fruto de uma escolha ou de uma resposta à
imposição psíquica da angústia, igualmente vivenciada de forma coletiva.
O vocábulo spleen, de que se vale Baudelaire e retomado por Manzi, nomeia
o baço, o órgão onde seria produzida a bile negra, segundo a teoria grega dos
humores. Mas aqui aparece nomeando, sem a mencionar diretamente, a própria
melancolia. O simples recurso ao termo já instaura a aporia clássica em torno do
tema, o impasse lógico que há por detrás ou por diante: o humor negro, a bile
negra, a melan-cholia, está aí para dizer da causa ou a fonte, mas, ao invés, termina
nomeando o efeito. Ao tentarmos explicar ou compreender o ser melancólico, a
ignorância da causa termina por fazer-nos presas dos efeitos. E a melancolia segue
sendo um enigma, o mistério a que se referiam Manzi e Troilo, se desconsideramos
essa capacidade aguda de percepção e simbolização da condição humana de estar
no mundo. Esta seria talvez até uma razão para o sucesso, o alcance e a
longevidade do próprio tango como expressão musical, poética e coreográfica.
No passado, a melancolia era dotada de uma positividade, uma valoração
centrada nessa capacidade extraordinária do melancólico de refletir sobre as
coisas de baixo e aspirar às do alto.39 Desde Freud, apenas uma patologia, que o
inquiridor da psyché compara ao afeto normal e facilmente justificável do luto. 40
Hoje, um estorvo, um mal, sintoma ou a própria enfermidade, a ser combatida com
Jean STAROBINSKI, A melancolia diante do espelho, op. cit., p. 59.
Idem, p. 60.
38 Charles BAUDELAIRE, “Spleen” in As flores do mal, op. cit., p. 284: “Eu sou como o rei de um país
chuvoso; / rico, mas impotente, jovem e no entanto idoso.”
39 Ver Raymond KLIBANSKY, Erwin PANOFSKY, Fritz SAXL, Saturne et mélancolie, Paris, Gallimard,
1989 e Paul RICOEUR, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, SP, Unicamp, 2007.
40 Ver Sigmund FREUD, “Luto e melancolia” in Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia
e outros textos: 1914-1916, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras,
2010, p. 170-194.
36
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REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº 2 • 2014 • RidEM
a medicalização excessiva, as drogas, o consumismo anestesiante, a euforia que
oculta as questões de fundo. O ativismo, o produtivismo, o pragmatismo e a
contabilidade frenética dos resultados que caracterizam a vida contemporânea
recusam a atitude que paralisa, o gesto reflexivo que se volta sobre si mesmo e
questiona o sentido das coisas.41
Numa entrevista de 1983, Astor Piazzolla reconhecia em seu nuevo tango
uma espécie de “autotortura” e dizia sentir-se bem na companhia da música de
compositores melancólicos ou românticos. No passado, porém, ao defender seu
empenho em modernizar o tango, havia se queixado do tango tradicional, cujos
intérpretes lhe pareciam “um desfile de amargados”, e cujas letras insistiam na
nostalgia dos tempos idos. Chama a atenção, de fato, a reiteração dos antigos temas
nas letras de tango-canción desde 1915: a passagem do tempo, as transformações
da paisagem, a perda da juventude, as desilusões amorosas, os desencontros, a
experiência de desenraizamento, a decadência física, a fuga no álcool e no suicídio.
Os defensores enxergam aí temas universais, que explicariam sua longa vigência e
alcance internacional. Para os opositores dessa tradição, uma fixação mórbida que
necessitava ser superada.
No debate em torno da morte do tango, isto é, seu refluxo comercial e social
que se seguiu à queda de Perón em 1955 e à chamada revolución piazzolleana, um
dos tópicos recorrentes era o de que as novas gerações não se identificavam com o
fatalismo melancólico do velho tango e estavam mais abertas às experiências de
descontração associadas ao jazz, ao rock e ao folclore, ou ao engajamento político
da canção de protesto. Desde então, os testemunhos de músicos, poetas e
dançarinos e uma profusão de estudos musicológicos, históricos, literários,
sociológicos, antropológicos, psicanalíticos e filosóficos têm procurado explicar a
melancolia do tango, ora como um fator que identificaria um caráter nacional
argentino, ora como o resultado dos influxos históricos vividos pela sociedade
argentina: a experiência da imigração, o rápido crescimento urbano, a exploração
imperialista, as sucessivas crises institucionais e econômicas, a violência política.
Curiosamente, porém, o tango parece haver sobrevivido às muitas mortes que lhe
foram atribuídas e igualmente aos tantos epitáfios que sobre ele foram escritos. E a
melancolia segue sendo, embora não exclusivamente, uma marca de identidade
41
Ver Maria Rita KEHL, O tempo e o cão: a atualidade das depressões, São Paulo, Boitempo, 2009.
51
estilística, a desafiar a compreensão, com sua insistência frente a uma
contemporaneidade tão avessa à nostalgia, à solidão, à quietude e à introspecção.
Investigando-se esse enraizamento do tango e de seus temas na cultura argentina e
sua difusão mundial, ainda se poderia indagar: diante dos males que denuncia,
seria o tango sintoma ou cura?
REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº 2 • 2014 • RidEM
Resumo
Abstract
O ensaio investiga a presença da
The essay investigates the theme of
temática melancólica em letras de
melancholy on tango lyrics composed
tango escritas na Argentina entre as
in Argentina between the 1920’s and
décadas de 1920 e 1950 e aspectos
the 1950’s, as well as some musical
de
aspects,
sua
representação
mediante
a
análise
musical,
de
tangos
by
composed
analysing
by
Aníbal
tangos
Troilo
in
compostos por Aníbal Troilo em
partnership with poets Cátulo Castillo
parceria com os poetas Cátulo
and
Castillo
considered the impact on Manzi’s
e
Homero
Manzi.
São
Homero
is
sobre a poesia deste último dos
processes that affected Argentine
processos políticos e sociais que
society
afetaram a sociedade argentina
modernization, and also some poetic
durante
modernização
models extracted from Argentine and
acelerada e de modelos poéticos
French literary tradition: Evaristo
colhidos
Carrieto, Jorge Luis Borges, and
tradição
literária
during
its
and
also
poetry
na
political
It
também considerados o impacto
sua
of
Manzi.
social
accelerated
argentina – Evaristo Carriego e
Charles Baudelaire. Finally, it is
Jorge Luis Borges – e francesa –
intented to connect such analysis to
Charles
traditional
Baudelaire.
Por
fim,
representations
of
procura-se conectar essas análises à
melancholy in Occident that consider
tradição
its positive aspects.
ocidental
representações
que
de
atribuem
positividade à melancolia.
Palavras-chave: Melancolia; Aníbal
Keywords: Melancholy; Aníbal Troilo;
Troilo;
Homero Manzi; Tango, culture and
Homero
Manzi;
Tango,
cultura e sociedade argentina.
argentine society.
53
Sobre o autor
Avelino Romero Pereira é professor adjunto de História da Música da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Historiador formado
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Há anos dedica-se a
problematizar as conexões entre História e Música. Em 2012, concluiu doutorado
em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, com uma tese sobre
tango e sociedade argentina. Atualmente desenvolve projeto de pós-doutorado
junto à Fundação Casa de Rui Barbosa, sobre o mecenato imperial e as
sensibilidades artísticas no oitocentos brasileiro. É também pianista e
bandoneonista.
Submetido em 14/09/2014
Aceito em 13/10/2014
REPRESENTAÇÕES DA MELANCOLIA NO TANGO

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