A sabedoria da Índia

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A sabedoria da Índia
A sabedoria da Índia
por Patrick Ravignant
Capitulo I
A Índia e Nós
Pesadelo ou deslumbramento
Aos olhos dos ocidentais, a civilização hindu apresenta-se sob duas perspectivas violentamente
contrastantes.
A primeira, inteiramente negativa, mostra um quadro de desolação econômica e abominação
social - superpovoamento, fome, epidemias, miséria crônica, injustiças em massa, atrasos
técnicos, superstições etc. Sob esse ponto de vista, a Índia é um permanente escândalo, um tumor
purulento no flanco da humanidade "em marcha para o progresso". Fala-se dos ossuários vivos
que são Bombaim e Calcutá, dos milhões de leprosos, da sina abjeta dos intocáveis, das
desigualdades intoleráveis, do obscurantismo exacerbado que substitui a instrução para a
multidão de analfabetos, sem esquecer a condição das mulheres, sinônimo de servidão medieval.
Corno poderia a Índia ter alguma coisa de importante ou de útil para nos ensinar, visto ser tão
dramaticamente incapaz de resolver seus problemas mais prementes?
Outra perspectiva, outro olhar: a essa paisagem de pesadelo contrapõe-se um cenário feérico, um
conto das mil e urna noites, saturado de clichês. É a "Índia fabulosa", a "Índia misteriosa", com
suas legiões de swamis, de iogues, de gurus, de vacas sagradas, de elefantes reais, de marajás
turísticos, imenso bazar espiritual, fervilhante de deuses, de faquires, de grandes sábios
possuidores de um notável senso do show-business internacional.
Esta versão esplendorosa e um pouco teatral destila urna pesada mistura de exotismo tropical, de
exibicionismo folclórico, de cobiças de toda espécie, onde se encontram, ao mesmo tempo, uma
necessidade de liberação sexual disfarçada em tantrismo, um delírio de poder através do álibi da
ioga e uma infantilidade bastante patética, bizarramente vestida com ornamentos místicos e
devocionais.
A Índia do pesadelo econômico e social existe realmente, tanto quanto existe a Índia dos
traficantes de poderes sobrenaturais e dos escroques espirituais. Porém o essencial está bem
distante disso.
Uma falência geral
Há cerca de vinte anos se vê, no Ocidente, uma extraordinária abundância de revistas e
publicações, bem como uma proliferação de movimentos e de seitas ligados a um vasto e vago
domínio onde se acotovelam, misturados, magia, astrologia, ocultismo, parapsicologia,
esoterismo, simbolismo e espiritualidade orientais. É claro que esse amálgama, profundamente
abusivo, provoca confusões e irradia, para o grande público, uma imagem inteiramente
simplificada e estereotipada, onde os fundamentos do hinduísmo se apresentam pura e
simplesmente escamoteados.
A sociedade ocidental contemporânea está dominada por uma insatisfação bastante obsessiva que
se assemelha muito a uma confissão de derrota e impotência. O paradoxo histórico é que, a
despeito das flutuações e das crises, vivemos na primeira civilização conhecida onde a
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abundância e a prosperidade tornaram-se inegáveis realidades cotidianas. As mais carentes de
nossas grandes cidades beneficiam-se de um contexto material principesco, se comparadas aos
deserdados do Terceiro Mundo. E, entretanto, as tensões, as ansiedades, o mal-estar chegaram ao
auge: drogas, alcoolismo, barbitúricos, violência, ódio racial são sintomas flagrantes e provas de
que a verdadeira felicidade, a paz interior, não depende absolutamente de condições exteriores.
A falência clamorosa e geral das ideologias e dos sistemas religiosos, filosóficos e políticos e a
desconfiança, mais e mais alastrada e justificada face a todos os proselitismos teológicos e
morais, a todos os militantismos de direita e de esquerda, constituem outra fonte de frustração e
de angústia existencial profunda. O relativismo científico caminha lenta, mas seguramente no
inconsciente coletivo, tomando cada vez mais difícil a adesão incondicional a uma verdade
dogmática e cada vez menos críveis as antigas pretensões à objetividade intelectual.
Porém o mais chocante, sem dúvida, é a impossibilidade de as velhas doutrinas transformarem o
nosso modo de consciência, aclararem a nossa percepção do universo, mudarem esquemas inertes
em experiência viva, abstrações rígidas em realidade dinâmica.
O infinito atrelado
De fato, há duas espécies de motivação, radicalmente diferentes, que nos impelem para a cultura
e a espiritualidade hindu.
Muitos ocidentais têm um apetite de dominação universal, de controle integral do destino e do
universo, que não mais pode ser satisfeito com os sucessos tecnológicos e científicos, por mais
espetaculares que sejam. O sistema solar poderá ser visitado, o mistério dos buracos negros
elucidados, os êxitos médicos multiplicados, fontes de energia insuspeitas exploradas, sem que,
no entanto, sejam suprimidos os medos, o sofrimento, os conflitos, a solidão, o desespero da
separação e da morte, tão torturantes numa ultramoderna torre de aço e de vidro quanto numa
cabana de terra batida.
Revoltados contra a servidão e as limitações de nossa condição humana e aspirando a um estado
sobre-humano, muitos acreditaram encontrar, na Índia, as receitas de uma onipotência e as
fórmulas de uma onisciência que lhes permitiriam desenvolver faculdades extraordinárias, dons
paranormais que os elevariam ao posto de demiurgos.
Esses, em geral, erram de guru em guru, de ashram em ashram, de seita em seita, com uma avidez
pueril e vulnerável, sempre aguardando o aparecimento do mestre infalível, do grande instrutor,
da revelação divina e da iniciação suprema. Põem nisso, geralmente, um ardor inquieto,
esperando indefinidamente a recompensa miraculosa com a mesma fé incessantemente esgotada e
renovada - de um apostador da loto. As falaciosas promessas de absoluto em pílula, poção ou
figuras mágicas são típicas da mentalidade ocidental, que acredita poder atrelar o infinito, colocar
uma focinheira no nada, empacotar a verdade em embalagens congeladas.
Mais raro são aqueles que vão ao essencial da mensagem da Índia - além da superfície
gangrenada e mutável, além mesmo da brilhante explosão de uma cultura incrivelmente rica e
diversificada.
A dimensão da interioridade
Para um moderno ocidental, o que é verdadeiramente desconcertante no ensino tradicional da
Índia é menos a profusão ritualista e multicolorida que satisfaz ao seu gosto pelo exotismo e pelo
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bizarro do que a dimensão de interiorização, em completo contraste com o barulho, a violência, a
atividade a todo preço, a perseguição febril aos bens e prazeres, a necessidade desesperada de
afirmação pessoal, a impossibilidade de ser sem ter, fazer ou parecer, isto é, uma vida
incessantemente projetada, arrastada, precipitada para o exterior.
Se alguma coisa da Índia pode interessar-nos verdadeiramente, é esta interiorização, despojada de
seu folclore e restituída à sua vocação universal, num caminho onde poderiam ser reconhecidos,
ao mesmo tempo, um discípulo de Sócrates, um monge cristão ou um místico sufi.
Uma felicidade não-dependente
De que se trata?
Visto de fora, o hinduísmo aparece como uma massa de tal forma extravagante, confusa e
complicada de mitologias, doutrinas, asceses, práticas religiosas heteróclitas e contraditórias,
termos sânscritos quase intraduzíveis, que se afigura impossível discernir nesse magma alguma
coerência, alguma convergência, um fio condutor simples e único ligando os contornos tortuosos
dessa trama desordenada.
Entretanto esse elemento existe; ele está nos centros dos ensinamentos mais diferentes e constitui
o objetivo último de disciplinas espirituais completamente díspares. É a busca de uma felicidade
não dependente de circunstâncias favoráveis ou não, felicidade inimaginável, para além de toda
expressão, correspondendo a um modo de consciência libertado dos apegos e dos medos, livre da
ditadura dos contrários (belo-feio, bem-mal, gosto-não gosto etc), desembaraçado das angústias
do ego, das limitações do tempo e do vir-a-ser, dos imperativos da relatividade.
Esse estado, cujo conteúdo desafia qualquer definição ou descrição, foi batizado de Libertação
(moksha). Reúnem, na realidade vivida, aquilo que os budistas denominam Despertar ou
Natureza do Buda, e os cristãos, Reino dos Céus.
Essa felicidade libertadora não tem nada de profundamente estranho, longínquo ou inacessível.
Ao contrário, constitui o fundamento de nossa natureza: está para o nosso ser físico, emocional e
mental como a água, em geral, está para um determinado rio ou o ouro para uma jóia específica.
Simplesmente está encoberta, oculta pela incessante agitação de suas próprias formas - o
conjunto dos processos biológicos e psicológicos pelos quais estamos sujeitos à mudança e à
relatividade.
Esse estado é próprio de todo ser vivo, quaisquer que sejam suas origens, destino, nível cultural,
opções filosóficas ou crenças religiosas. Aparece espontaneamente, como conseqüência de uma
transformação interior que é mais ou menos rápida, mais ou menos difícil, às vezes heróica,
segundo os indivíduos, avanço progressivo cujas etapas e métodos variam consideravelmente de
uma pessoa para outra.
Esse trabalho sobre si mesmo não requer absolutamente um estágio de dez anos num ashram de
Bengala ou numa gruta do Himalaia. Um ponto capital do ensino hinduísta é, justamente, que
qualquer pessoa pode operar essa transformação, seguir esse itinerário (Sadhana), onde está e
como é, sem ter, necessariamente, que desorganizar o quadro de suas atividades e obrigações
familiares, profissionais etc.
Não são suficientes alguns sinais exteriores _ crânio raspado, túnica açafrão, votos de pobreza e
castidade - para ascender à Libertação e ao Despertar. É infinitamente mais sutil e mais simples.
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Ninguém se converte ao hinduísmo, e mesmo as profissões de fé são apenas acessórios bastante
vazios de sentido, uma vez que se limitam a exprimir opiniões e crenças, em vez de manifestar
uma experiência interior.
É claro, a existência que levamos em nossa civilização de hiperconsumo e de acumulação
neurótica não favorece um encaminhamento "espiritual", e é preciso constatar que a maior parte
dos cristãos ig nora completamente, hoje em dia, a dimensão interior da vida religiosa, reduzida
mais e -mais a uma espécie de catecismo socializante e moralizador.
Quem, afora alguns monges, dá um conteúdo realmente vivo, íntimo, cotidiano a expressões
como "presença em si mesmo e em Deus", "morte do Homem Velho" ou "o Reino de Deus que
existe dentro de vós"? Que cristão, de qualquer Igreja, aspira a poder dizer, como São Paulo:
"Não sou mais, é Cristo que vive em mim"?
Deus tornou-se, para nós, objeto de teorias e de hipóteses, de afirmações definitivas ou de
contestação radical, às vezes de emoções violentas, positivas ou negativas.
De fato, temos apenas idéias sobre Deus, ao passo que a Índia tradicional, como a Idade Média
cristã, procura viver em Deus, mergulhar em Deus, ser Deus.
Acima das incompatibilidades teológicas, das distorções semânticas e dos abismos culturais, há
um reencontro imenso no seio do inefável, no início de um silêncio que é também uma perfeita
experiência.
O único realismo autêntico
Para o ocidental interessado no hinduísmo, não apenas como curioso ou esteta, uma grande
questão vem à mente: como passar seriamente à prática sem ir à Índia para seguir com
assiduidade o ensino direto deste ou daquele mestre qualificado? Como conciliar, em seguida,
essa prática, a realização pessoal desse ensino, com as mil obrigações e lutas cotidianas, os
aborrecimentos, as tensões, os conflitos muitas vezes insolúveis, enfim, toda essa atividade
avassaladora que deixa tão pouco espaço para o recolhimento e a meditação? Como atingir essa
paz, essa serenidade, esse centro imutável de nós mesmos, se temos constantemente a cabeça, o
coração e o corpo trabalhados, atormentados, perturbados por barulhos lancinantes, vibrações
convulsivas, ecos de cataclismas - contínuo leilão do terrorismo, do sadismo, da megalomania, da
demência organizada, da iminência do apocalipse?
Quando nos lembram, de uma ou de outra forma, o ensino ligado ao hinduísmo, pensamos
geralmente: sem dúvida, isso é admirável à beira do Ganges, mas sejamos realistas; há dívidas a
pagar, impostos que aumentam, filhos para criar, perigo de desemprego, concorrência cada vez
mais dura - tantos desejos não-satisfeitos, medos não-apaziguados! Que significa isto de que me
falam, felicidade não-dependente, consciência transformada, Libertação?
Entretanto, é bem disso que se trata, não à beira do Ganges, mas no meio de todos os problemas e
condicionamentos próprios da sociedade ocidental contemporânea. Em última análise, não será a
busca da eternidade o único realismo autêntico, pois que a morte é nossa única certeza?
A necessidade do pluralismo
Neste domínio do trabalho sobre si mesmo, da transformação interior, dos processos do Despertar
ou da Libertação, a tradição hinduísta reuniu, no curso de milênios, uma soma de conhecimentos,
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de experiências e, digamos, de competência pedagógica sem equivalência no resto do mundo, o
que não minimiza, absolutamente, o espírito e a amplitude das outras tradições.
A Índia soube, ao mesmo tempo, especializar e diversificar ao extremo sua abordagem e seus
caminhos, não excluindo nenhum aspecto da vida, englobando todas as energias e todas as
aspirações tão bem que podem cohabitar, com mútua tolerância e profunda harmonia, ascetas
mendigos habituados às mais terríveis austeridades e discípulos tântricos que utilizam o desejo,
as emoções eróticas e os impulsos sensuais como catalizadores do Despertar ou como alavanca
para a mutação espiritual.
No Ocidente, o misticismo cristão relegou à sombra, ou mesmo à dissidência ou a
clandestinidade, qualquer iniciativa de transformação interior. Na Índia, a efusão emocional
representa apenas um caminho a mais, entre outros. Mas nenhuma abordagem seja ela religiosa
ou metafísica, ativa ou contemplativa, pretende possuir sozinha as chaves do Reino: a
necessidade do pluralismo e da diferença é aqui respeitada ao extremo. Não tem o Absoluto todos
os aspectos - mesmo os mais contraditórios?
Dito isso, será necessário morar na Índia para seguir certos ensinamentos?
A viagem
Fazemos parte, hoje em dia, de uma cultura planetária, onde as diversas tradições se
interpenetram e se sobrepõem cada vez mais estreitamente. Até os anos imediatos ao pós-guerra
conhecíamos o Oriente apenas através de alguns trabalhos de erudição ou de relatos de viajantes e
exploradores. Essas obras eram, às vezes, notáveis (por exemplo, as de Alexandra David-Neel),
mas tinham apenas um caráter de informação geral: podia suscitar um interesse apaixonado,
motivar expedições à China ou ao Tibete. Não eram, em absoluto, uns manuais completos de
ensino: era necessário viajar para o local, procurar tal swami, roshi ourimpotché, compreender e
assimilar seu ensinamento, o que poderia consumir anos de aventuras e esforços. Tal foi o papel
de pioneiros como John Blofeld, nos EUA, Douglas Harding, na Inglaterra, Jean Herbert, Arnaud
Desjardins e Jean Klein, na França, e Karlfried Graf Dürkheim, na Alemanha etc.
Esses, e alguns outros, são bem mais que simples amantes do exotismo. Tendo sabido integrar o
essencial das grandes perspectivas tradicionais do Oriente - vedanta, ioga, budismo, taoísmo,
sufismo - sem, contudo, renegar suas origens e raízes ocidentais, realizaram em si mesmos essa
transformação interior que, por sua vez, lhes permitiu ensinar ao mesmo tempo através de séries
de publicações e por uma transmissão direta, mais personalizada.
Por outro lado, a expansão das trocas internacionais ou as vicissitudes do exílio levaram mestres
zens, hindus, tibetanos ou sufis a se estabelecerem em diversos países do Ocidente, onde
organizaram grupos de trabalho e comunidades facilmente acessíveis. A viagem para um Oriente,
aliás, cada vez mais ocidentalizado, não é mais, para um discípulo do vedanta ou do tantrismo
tibetano, uma condição sine quanon.
O guru e o físico
A palavra guru, sem dúvida, está hoje em dia terrivelmente comprometida: exala um cheiro forte
de sectarismo e escândalo.
De fato, como reconhecer, entre a multidão de mistificadores, charlatães ou escroques, os guias
espirituais verdadeiramente qualificados? Este é um campo em que as armadilhas são inúmeras e
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as fachadas extraordinariamente pomposas. Todos os critérios conhecidos podem ser falsificados,
invertidos. O verdadeiro sábio prefere, muitas vezes, calar-se ou mesmo esconder-se sob
aparências simples e banais.
Mas o sucesso popular não é, necessariamente, sinônimo de mentira e desonestidade.
Desconfiemos de sistemas e apriorismos.
De um modo mais geral, devemos perguntar-nos se a função de guia ou guru é, antes de mais
nada, indispensável, a que corresponde realmente, e se não constitui muitas vezes, na perspectiva
mesma de uma consciência libertada, mais um paradoxo e um obstáculo que um auxílio
verdadeiramente eficaz.
Outro elemento contribuirá, certamente, para familiarizar mais e mais os pesquisadores
espirituais ocidentais com as abordagens tradicionais do Oriente. Trata-se das recentes
perspectivas abertas por certos trabalhos científicos pioneiros, sobretudo no domínio da
astrofísica e da física nuclear.
A visão de uma realidade global, única, de um todo indissolúvel onde o observador não pode
mais permanecer separado do objeto reservado nem o experimentador do experimento,
desemboca nas intuições fundamentais dos antigos rishis védicos e dos primeiros sábios taoístas.
Voltaremos a tratar desse assunto mais longamente.
Modelos ocidentais e orientais
A Índia espiritual continua, sob muitos aspectos, exemplar, desde que se desfaça um certo
número de mal-entendidos e contra-sensos difíceis de evitar para um ocidental desatento. Antes
de mais nada, é conveniente manejar as generalizações com prudência: não esqueçamos que se
trata de um continente mais povoado que a Europa, com uma prodigiosa disparidade geográfica,
étnica e lingüística.
Na Idade Média as nações européias tinham, de Brest a Moscou, de Edimburgo a Nápoles, de
Hamburgo a Bizâncio, um símbolo comum que era um vivo e grande traço de união: a cruz do
Cristo. Nela comungavam peregrinos e cavaleiros, e também camponeses, mercadores e até
malfeitores, da Inglaterra, de Flandres, da Provença ou da Hungria. À sombra dessa cruz
encontravam-se figuras de santos e santas que representavam, aos olhos de todos, o estado mais
invejável e o mais maravilhoso destino possível, a salvação eterna assegurada.
Na civilização hindu há algo bastante comparável, algo que a sociedade ocidental medieval
poderia talvez compartilhar, mas que foge completamente dos esquemas e critérios da sociedade
ocidental contemporânea: é a veneração e a devoção com que a Índia, unanimemente, cerca os
sábios, os homens e mulheres que em vida ascendem à suprema Libertação - consciência do
Despertar e da Eternidade.
No Ocidente, os modelos que elevamos ás nuvens e com os quais procuramos febrilmente
identificar-nos são imagens de poder, de gloríola, de avidez: estrelas de espetáculos, vedetes
políticas, milionários, play-boys internacionais, superespiões. Trata-se de valores puramente
exteriores, teatrais, quantitativos, mensuráveis em curvas de popularidade, em número de bens,
de títulos, de conquistas amorosas.
O sábio e o santo quase desapareceram de nossa cultura como modelos, ao passo que representam
infinitamente mais aos olhos da maioria das crianças hindus, que um ministro, um P.D.G. ou um
ator célebre. Aliás, vêem-se comumente dirigentes políticos e poderosos desse mundo
prosternarem-se aos pés de um desses "libertados-vivos" (Jivan-Mukta), considerados, às vezes,
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como verdadeiras encarnações divinas - como foi o caso da santa bengali Mâ Ananda Mayi,
falecida em 1982.
O mistério do sábio
As pessoas diante das quais se vem tocar o solo com a testa não têm nenhum título, nenhuma
função honorífica, nada que as distinga, à primeira vista, de milhões de outras. Não dirigem
nenhuma igreja oficial, nenhuma seita, não toma parte de nenhuma ação social, não detêm
nenhum recorde, não executaram nenhum feito excepcional - tangível, verificável. Não são guias
nem oradores, e, no entanto atraem massas consideráveis, milhões de homens e mulheres que
vêm, simplesmente, receber o darshan, isto é, simultaneamente, a visão, a graça e a bênção do
sábio ou do santo.
No Ocidente compreendemos facilmente o fervor inspirado por um João Paulo II, um Martin
Luther King ou um Gandhi, que se engajaram em lutas, que se empenharam pessoalmente,
encarnaram um ideal. Compreendemos também o efeito carismático deste ou daquele pregador.
O prestígio incontestado de um Ramana Maharshi nos parece bem mais misterioso. É um homem
que nada fez de especial (alguns anos de recolhimento e isolamento não têm nada de original na
Índia), que falou pouco e pouco escreveu, e cuja existência, vista de fora, parece insignificante e
monótona.
Ora, esse homem simples, inteiramente desprovido de qualquer ambição ou pretensão e que, de
resto, jamais fez coisa alguma para estimular ou desencorajar o ardor de seus discípulos, tomouse, por si só, objeto de culto e peregrinação consideráveis. Em seu caso não houve visão celeste,
revelação divina ou um rosário de milagres: somente uma presença inesquecível, um olhar, um
sorriso, uma evidência de ser que também pode ser chamada de plenitude, amor, eternidade.
Uma transformação radical
De fato, o Ocidente sempre esperou, de seus mestres do pensamento, receitas absolutas, respostas
definitivas, a equação última que permitiria tudo entender e tudo explicar - como a criança espera
de sua mãe a mamadeira salvadora.
Enquanto nossos filósofos nos abastecerem com sistemas apetitosos, nos saciarem com teorias
excitantes, brilhantes, nós nos deixaremos encantar e até mesmo hipnotizar. O que o filósofo é,
sua vida e seu modo de ser, pouco nos interessa. Que ele seja um homem psicológica e
nervosamente abatido, a arrastar uma existência em contradição com seus próprios princípios,
isso não nos atinge absolutamente. Para nós, os problemas pessoais de um Kant, um Hegel, um
Bergson ou um Sartre está fora de questão. O que desejamos é um truque, o truque que nos
permitirá agarrar, fixar, aprisionar a verdade, definitivamente. Pouco importa quem nos ensina o
truque, se Jeová, Lúcifer, o Grande Manitu, Freud, o K.G.B., Coluche ou a Samaritana.
O Oriente sabe, há milhares de anos, que não há resposta absoluta formulável, que a verdade não
pode ser aprisionada em conceitos ou apreendida intelectualmente, mas sim vivida, realizada,
percebida através de uma experiência interior direta, implicando uma transformação radical do
nosso modo de consciência habitual.
A verdade não é uma questão de idéia: ela pertence ao domínio do ser e da experiência vivida.
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Perder nossas limitações
Portanto, na Índia, é essa questão de transformação interior e de realização pessoal que se
sobrepõe a tudo. Um libertado-vivo (Jivan-Mukta) é alguém que realizou. Sua eloqüência, sua
habilidade intelectual, seu nível de conhecimento e de cultura são absolutamente secundários.
Sabe-se que as palavras e os conceitos são apenas sinalizações a indicar o caminho, mostrando
um mapa mais ou menos preciso e detalhado: cada um deve, em seguida, explorar o território e
descobrir o tesouro. "A palavra é um dedo que aponta para a lua", diz um provérbio zen; "só os
imbecis é que olham para o dedo”.
Como não pode ser traduzido em imagens e esquemas, nem reduzido a formas mentais, o
essencial brota de uma experiência íntima, só comunicável por aquela espécie de certeza ou
evidência que se impõe no contato com os seres transformados - os libertados ou despertos.
Mistura de simplicidade, de transparência, de não-dependência e de disponibilidade, de extrema
espontaneidade e extrema presença em si mesmo, de inefável serenidade mas, também de
contínuo deslumbramento, tal é a impressão global da maioria dos testemunhos, mais
inesquecíveis que discursos ou tratados geniais.
É preciso salientar que essa realização não é, em absoluto, uma busca de originalidade ou de
afirmação pessoal, não está a serviço de nenhum ideal, por mais sublime que seja. Como
veremos, não se trata de procurar uma vantagem qualquer, seja ela o paraíso, mas de perder
nossas limitações, nossa ignorância, e dissipar as projeções mentais que nos ocultam o esplendor
do Real, impedindo-nos de aderir ao instante eterno, aqui e agora, e que obscurecem a felicidade
da nossa imutável e verdadeira natureza.
Uma verificação experimental
De certa forma, o pesquisador espiritual da Índia está bastante próximo do pesquisador científico.
Ambos têm em comum a experimentação. A diferença é que o campo de experimentação do
pesquisador científico pertence ao mundo exterior, ao passo que o pesquisador espiritual é, ao
mesmo tempo, o pesquisador e seu próprio campo de experimento.
Em ambos os casos, porém, a verificação direta, a certeza vivida, demonstrada, excede
consideravelmente as proposições teóricas.
A confiança ilimitada que o discípulo deposita em seu guru (e que é uma condição para o
sucesso) não tem nada de fanatismo ou fé cega. É bastante comparável, efetivamente, ao tipo de
relação que se estabelece entre o estudante e seu professor de física ou de química: enquanto ele
próprio não realiza a experiência, o estudante não tem nenhuma prova real de sua validez. É
obrigado a acreditar em falas alheias e relatos de segunda mão.
De uma maneira mais geral, não pensamos em questionar as afirmações e as capacidades de
nossos técnicos e especialistas, pois não estamos absolutamente qualificados para avaliar a
autenticidade de sua competência. Desse ponto de vista, o domínio científico e técnico é
provavelmente aquele que apresenta no Ocidente, por exigências comuns de realizações
concretas, um maior número de pontos comuns com a filiação tradicional da espiritualidade
hindu.
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Saberíamos reconhecer o Buda?
Há milênios que os hindus têm sob os olhos, a cada geração, esses homens e mulheres libertados,
que constituem provas vivas muito mais convincentes que as fórmulas de catecismo ou as
histórias de santos desaparecidos há séculos.
Não temos, em nossas periferias e campos, Frâncicos de Assis, Teresas de Ávila ou Mestres
Eckart que possam trazer-nos o testemunho direto e a convicção imediata. Quando falamos de um
sábio, de um desperto, é quase sempre através de livros, de artigos, de relatos não-comprováveis
deste ou daquele viajante. Saberíamos reconhecer o Buda? Nosso inconsciente está carregado de
clichês pueris, veneráveis velhinhos com longa barba branca, seres imaculados banhados por uma
luz sobrenatural, dividido entre o jejum, a levitação e o êxtase.
O libertado-vivo pode ter, num primeiro contato, uma aparência absolutamente banal, corriqueira.
A consciência do despertar não produz nenhum sinal exterior que o diferencie - não tem auréola
ou terceiro olho dissimulado numa ruga da testa. Ela não impede a fome, a sede, o sono, o ranger
de dentes, as dores de estômago, se bem que esses diversos sintomas não sejam mais percebidos
como antes.
Uma felicidade absoluta
No decorrer do tempo, a Índia apresentou inúmeras técnicas de transformação interior, adaptáveis
a todas as formas de sensibilidade, a todos os tipos de desenvolvimento e compreensão: físico,
emocional, intelectual, ativo ou contemplativo.
No centro de uma disparidade às vezes desconcertante, essas práticas têm todas um fundo comum
que dividem, aliás, com todas as grandes tradições - staoísmo, budismo, sabedoria de Sócrates e
de Epicteto, místicos muçulmanos e cristãos: ser livre é libertar-se do que foi adquirido, de toda
posse, de todo apego, de todo haver, não somente no domínio material, mas também em planos
mais sutis, emocionais, culturais, intelectuais - preconceitos, paixões, opiniões. Essa entrega, esse
abandono à vontade divina é uma profunda adesão à espontaneidade, à indizível mobilidade do
real, uma vigilante presença na eterna transparência do instante atual. É acompanhada por uma
desaparição do sentimento do ego - angústia do isolamento e da separatividade -, aquilo que a
tradição cristã denomina "morte do Homem Velho" ou, às vezes, "segundo nascimento".
Para os que viveram essas transformações e realizaram esse despertar o novo estado aparece
como extremamente simples, natural, evidente, trazendo menos soluções e respostas definitivas
que um desaparecimento das perguntas. É, mais ou menos, como uma cura após longa doença
povoada de febres e pesadelos. O Buda mesmo, aliás, apresentava-se não como filósofo ou
profeta, mas como um médico capaz de curar o sofrimento: "Vim apenas para ensinar duas
coisas: as causas do sofrimento e os meios de suprimi-lo”.
No fundo, o que a tradição hinduísta propõe é a procura mais rigorosa, mais científica e, às vezes,
mais heróica da felicidade - uma felicidade sem contrários, uma felicidade sinônima de absoluto.
Capítulo II
9
Dados de Base
A visão progressista
Fundamentada num conjunto de projetos racionalistas e de sonhos científicos visando uma
denominação ilimitada do universo, a civilização ocidental é basicamente progressista. Suas
esperanças e seus valores supremos estão sempre situados num futuro mais ou menos hipotético.
Seja no plano político, econômico, moral ou mesmo religioso, amanhã é o grande álibi, o
argumento irrefutável. Quaisquer que sejam as ideologias e as opções, de direita ou de esquerda,
crentes ou não-crentes, por todo lado afirma-se a esperança, se não a certeza, de que amanhã será
intrinsecamente melhor do que hoje e que é necessário sacrificar o presente ao futuro - o futuro
da democracia liberal avançada, do bem-estar tecnológico, do paraíso socialista, do governo
mundial unificado ou do além consolador.
Trata-se de uma concepção onde a História é valorizada sobremaneira - até mesma divinizada e
onde o Tempo é arvorado em absoluto, incluído numa finalidade teológico ou econômico à qual
tudo deve ser imperiosamente submetido. O esquema geral é "quanto mais você se reprime hoje,
mais você falará amanhã; quanto mais você é infeliz hoje, mais você será feliz amanhã", pois
amanhã é essencialmente melhor do que hoje. Assim, as angelicais promessas do futuro
justificam todos os infernos do presente.
Esse progressismo (já existente na noção bastante temporal de um Messias ou de um fim do
mundo exclusivamente histórico) inteiramente submetido ao culto do deus Tempo consagra tanto
o passado quanto o futuro. Basta observar o entusiasmo das comemorações, a exaltação das
memórias, a exumação de acontecimentos esquecidos.
Para nossa civilização progressista, o passado aparece como uma lição, o futuro como um ideal, o
presente como um problema. Em outras palavras, a realidade vivida aqui e agora é sentida
negativamente, enquanto as sombras fantasmagóricas do ontem e do amanhã são aceitas como as
únicas dignas de todos os esforços e dê todas as lutas. Despoja-se violentamente o presente em
nome de espectros passadistas ou de brumas utopistas e procura-se, nos dois casos, violentar o
real e negar a vida. Conhecem-se as monstruosidades legitimadas por uma tal acepção - campos
de concentração, torturas, gulags.
Essa glorificação do futuro projeta, evidentemente, soluções exteriores no tempo e no espaço:
amanhã estarão suprimidos os desconfortos, os conflitos, os sofrimentos, graças à magia da
modernidade triunfante, que tomará sobre os ombros, integralmente, todos os problemas físicos
ou psíquicos longevidade, segurança, bem-estar material, harmonia para todos, assegurados do
nascimento à morte.
A busca da eternidade
As civilizações tradicionais - como aquela em que está imerso o hinduísmo - têm outra
preocupação: atingir a eternidade, perceber a realidade temporal atrás da máscara do tempo, o
imutável no centro da incessante mudança, o sem-nome, o sem-forma além dos nomes e das
formas.
O Ocidente tem, muitas vezes, tendência de confundir posição tradicional com tradicionalismo.
O tradicionalismo reivindica, como principal virtude, uma escrupulosa e incondicional fidelidade
aos dogmas, ritos e catecismos ancestrais. É uma posição monolítica e rígida que geralmente se
transforma numa mística passadista e absoluta, que baseia a verdade em simples argumentos de
anterioridade.
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A posição tradicional prende-se ao que não pertence a nenhum tempo, passado ou futuro, a essa
realidade interior que não muda e que está, portanto, além de toda crença, de toda prática
particular, sem, contudo negá-las. Essa eternidade não depende de pontos de vista ou de opiniões
contestáveis, tributárias de condições culturais específicas e mutáveis; depende apenas de uma
experiência direta, indescritível, que cada um deve viver em si mesmo.
Eis por que, contrariamente ao tradicionalismo, a posição tradicional nada tem de estreitamente
formalista ou dogmático. Mesmo dentro de uma rigorosa observação de costumes e ritos, é
essencialmente branda, aberta e tolerante.
O poder libertador do mito
No Ocidente, apesar de já ter passado o tempo em que as Igrejas e as seitas guerreavam
furiosamente entre si, cada uma continua persuadida de que é a única depositária da verdade.
Essa atitude é inevitável no quadro da visão estritamente histórica e temporal que é, geralmente, a
do cristianismo. Se Deus se manifesta a alguns privilegiados, santos ou profetas, e encarna-se,
para sempre, em um ponto preciso do espaço e do tempo, através de um único indivíduo, a
minúcia dos relatos adquirem enorme importância.
A Índia preocupa-se menos com exatidão histórica ou com fatos objetivos do que com mitos.
Inscrevendo-se, por definição, à margem de toda realidade material exterior, o mito oferece uma
narrativa maravilhosa, um itinerário simbólico: seu poder libertador é proporcional à sua
faculdade de adaptação, à sua capacidade de despertar ressonâncias profundas em homens e
mulheres de épocas, culturas e sensibilidades completamente diferentes. Ao contrário da
"verdade" dogmática ou histórica, a verdade do mito nada exclui e nada rejeita. Não pretende
fornecer uma resposta completa ou definitiva, mas, antes, os segredos dinâmicos de um
entendimento mais sutil e de interrogações essenciais: "O que, em mim, assemelha-se a tal deus,
monstro ou herói, a tal espaço mágico, encantado ou infernal?"
Desse modo o mito se torna fator de comunhão e de identidade, enquanto o dogma, artigo de fé,
mais separa do que une.
A tolerância
Na Índia, o termo tradicional aplica-se sobretudo, a um modo de filiação e de transmissão que
não mudou desde a origem dos tempos védicos. A originalidade, a novidade, a virtuosidade
dialética, tão importante para os intelectuais ocidentais, são aqui secundárias. Ao contrário,
parece capital adaptar a cada época, a cada grupo, a cada personalidade as grandes intuições e
certezas eternas.
O resultado é uma diversidade prodigiosa e uma tolerância fundamental em face de outras
solicitações espirituais: budismo, islamismo, cristianismo.
O proselitismo e o espírito missionário são inteiramente estranhos à mentalidade hindu. Os
missionários católicos ou protestantes que proclamavam: "Jesus é o filho de Deus!" ouviam,
geralmente, a resposta: "O senhor tem razão, Krishna também!" Aliás, é freqüente encontraremse imagens de Cristo piedosamente expostas entre figuras dos grandes avatares e de divindades
milenares. Certos movimentos, como o dos Sikhs, representam uma verdadeira fusão entre o
islamismo e o hinduísmo.
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Acresce ainda que, a despeito de discussões filosóficas - às vezes muito veementes ou mesmo
virulentas, opondo os representantes de diversas correntes hinduístas e budistas em intermináveis
combates oratórios -, a Índia jamais conheceu o equivalente das cruzadas ou das guerras de
religião, sendo as perseguições apenas episódios raros e marginais, enquanto em diferentes
épocas grandes soberanos, como Ashoka ou Akbar, instituíram a tolerância, o diálogo, o respeito
mútuo como verdadeiro sistema de governo.
Os seis pontos de vista ortodoxos
A Índia admite seis grandes caminhos ou perspectivas (darsanas) que oferecem diferentes pontos
de vista, desenvolvimento e interpretação das escrituras santas. Essas darsanas são chamadas
ortodoxas na medida em que reconhecem a autoridade dos Vedas e do conjunto dos textos sacros
fundamentais. Os seguintes sistemas são tradicionalmente admitidos: niaia, vaisesica, sânquia,
ioga, mimansa e vedanta. O jainismo e o budismo não estão aí incluídos, apesar de seu papel e
influência terem sido consideráveis na história espiritual da Índia onde contam, ainda hoje, com
milhões de adeptos.
As darsanas constituem, em suma, modos de abordagem ou de esclarecimento mais
complementares que divergentes, mais ou menos como se, para um mesmo território, fossem
desenhados diferentes tipos de mapas': rodoviário, fluvial, ferroviário, geológico etc. Os desenhos
não se relacionam entre si, apesar de serem do mesmo local, visto de múltiplos ângulos. As seis
darsanas tratam da mesma realidade última e universal sob óticas diferentes, cujas aparentes
contradições ligam-se simplesmente à diversidade dos itinerários prospectivos: por exemplo,
ponto de vista cosmológico do sânquia, ponto de vista religioso da ioga, ponto de vista metafísico
do vedanta.
O religioso e o não-religioso
De maneira geral e paralelamente, os caminhos religiosos e não-religiosos não são, aqui,
absolutamente exclusivos e incompatíveis.
Na busca do absoluto, inefável e inatingível (Brama), a Índia sempre admitiu as boas razões de
duas atitudes complementares e opostas: a da efusão devocional e mística (Bhakti) e o puro
conhecimento metafísico (Jnana), perfeitamente ilustrado pelo Advaita Vedanta, ou vedanta nãodualista.
Simplificando: pode-se chamar a via metafísica de negativa; é o célebre "Neti, Neti". O absoluto
não é passível de redução a nenhuma forma; a nenhum esquema, a nenhum conceito: não é isto
nem aquilo, não é a soma dos dois nem algum dos dois, não é nada imaginável ou acessível, seja
pelos sentidos, seja pelo psiquismo.
Inversamente, pode-se denominar a via devocional de afirmativa, na medida em que proclama a
onipresença do absoluto e se extasia diante do espetáculo desse absoluto manifestado por toda
parte.
De resto, fórmulas como "o absoluto (Brama) não está em lugar algum" ou "o absoluto está em
toda parte" são ainda muito relativas. O vivido na experiência libertadora e na consciência do
Despertar ultrapassa e engloba, ao mesmo tempo, a negação e a afirmação.
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É claro que os libertados-vivos (Jivan Mukta), os despertos como Shankara, Ramakrishna,
Ramana Maharshi ou Má Ananda Mayi, transcendem, com sua realização interior, qualquer
espécie de classificação.
Este livro se consagra mais particularmente à pesquisa do puro conhecimento através da
experiência metafísica, especialmente o Advaita Vedanta. Outras duas obras desta mesma
coleção evocam, respectivamente, as diversas formas da ioga e os "loucos de Deus" da mística
devocional.
Um templo gigantesco
Quando se aborda o hinduísmo, é importante precisar, com clareza, o sentido e a extensão de
certos termos que se é obrigado a empregar freqüentemente e cujo significado é bastante
ambíguo.
É o caso, entre outros, da palavra espiritualidade, que se encontra a todo o momento.
Trata-se de um vocábulo que mesmo os hindus utilizam com circunspecção, na medida em que
ele habitualmente implica uma rigorosa e desprezível demarcação entre “mundo profano" e
"mundo sagrado", como se houvessem certos aspectos privilegiados da vida e do universo que
merecessem pertencer ao domínio espiritual, no meio de uma massa de elementos grosseiros,
relegados ao plano oneroso e miserável do mundo material.
É assim que o entendemos no Ocidente, onde o espiritual designa um meio um tanto ou quanto
fechado, misterioso, separado da vida, bastante triste no seu conjunto, terrivelmente sério e
destituído de humor.
Na concepção hindu, o espiritual abrange e engloba a totalidade da existência em suas
manifestações mais elementares, em suas funções mais naturais, em seus impulsos mais secretos.
Nesse sentido, o espiritual é aquilo que dissolve as antinomias e novas categorias, do gênero
sagrado/profano ou divino/não-divino.
A natureza inteira é sentida como um gigantesco templo: das menores partículas às mais
longínquas galáxias, a integralidade do cosmos é um lugar santo. Os edifícios religiosos são
apenas evocações, representações simbólicas, assim como as danças rituais são apenas o eco e a
mímica da eterna dança de Shiva, a prodigiosa e infinita sarabanda criadora do espaço-tempo,
com suas torrentes de energia, seus milhares de sóis engendrados e destruídos, sua miríade de
espécies e criaturas em incessante metamorfose.
De fato, não há uma sensação, uma emoção, um pensamento, uma ação, que não seja espiritual,
pois o Brama - o absoluto - está em tudo, em todo lugar, sempre, e os seres, as coisas, os
acontecimentos transitórios, perecíveis, fugazes - são as múltiplas manifestações, atividades,
disfarces e representações dessa realidade única.
O guru
Outra palavra-chave do hinduísmo, hoje em dia muito malcompreendida e desacreditada, é guru.
Personagem eminentemente tradicional, o guru representa em toda a civilização da Índia um
papel essencial e idêntico, através das diferentes correntes religiosas e metafísicas.
No Ocidente, a imagem que se tem do guru (inspirada na prática de certas seitas) não é,
absolutamente, lisonjeira: escroque ou iluminado, vivendo faustosamente às custas de vítimas
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crédulas, abusando de adolescentes desorientados, facilmente manipuláveis e reduzidos por ele à
condição de verdadeiros escravos, esse charlatão merece, aos olhos do grande público, um
tribunal correcional.
É verdade que a condição de guru pode ser usurpada, no Oriente como no Ocidente, por pessoas
pouco escrupulosas, ávidas de exercer um poder físico e psíquico sobre seus semelhantes. Sempre
existiram falsos médicos, sacerdotes indignos, tiranos domésticos.
Para compreender a verdadeira natureza do guru e sua vocação bastante específica, é necessário
lembrar que, ao contrário do que se passa conosco, a transmissão do ensino não tem, na Índia,
nenhum caráter livresco. O essencial não está nem na erudição, nem na soma de conhecimentos
acumulados, nem no brio intelectual, mas na realização pessoal, no trabalho de transformação
interior. A verdade não pode ser fixada em sistemas, aprisionada em textos ou proposições
dialéticas, mas deve ser realizada e percebida pela própria pessoa, no mais íntimo de seu ser. E o
saber livresco é, nesse sentido, uma ajuda de bem pouco valor. Quando muito pode suscitar uma
reflexão ou estimular certas interrogações. Mas o processo de mutação interior, que é a conduta
espiritual propriamente dita, implica uma tal revolução e uma tabula rasa das velhas maneiras de
sentir, de pensar, de julgar e de reagir, que se torna necessário, para bem levar a cabo um tal
empreendimento e liberar tais energia, uma fonte de ajuda e de inspiração intensa, direta, ao
mesmo tempo prática, viva, personalizada, inteiramente adaptada aos problemas e à sensibilidade
de cada um.
É aqui que intervém o guia qualificado, quer dizer, aquele (ou aquela) que, tendo realizado essa
transformação interior e resolvido suas próprias contradições, estando livre dos mecanismos
constrangedores do desejo e do medo, tendo atingido, no centro de seu ser e de todas as coisas,
uma paz sem limites, uma serenidade inabalável, para além de toda compreensão, pode ajudar os
que, prisioneiros de suas angústias, procuram tateando nas trevas.
É claro, a consciência do despertar - a imersão no absoluto - é incomunicável. Mas o guru pode
transmitir uma experiência, indicar as etapas de seu próprio caminho, ensinar os diversos modos
práticos que o prepararam para o derradeiro desfecho. Esses modos estão, evidentemente, ligados
à sua personalidade, intimamente ajustados às suas tendências, aptidões, limites e
condicionamentos. Cada pessoa deve, portanto, achar o guia, o mestre cujo modo de ensino
corresponde ao seu próprio temperamento, às suas opções, motivações e linhas de força mais
profundas.
A procura do guru pode ser longa e fastidiosa. Não basta reconhecer e venerar o brilho e a
autoridade de um desses despertos para tornar-se seu discípulo. Os laços que se formam entre um
buscador e seu guia é infinitamente mais sutis, mais íntimos, mais fundamentais. Trata-se, ao
mesmo tempo, de morrer e renascer, e aqui o guru aparece ora como cirurgião, ora como parteiro.
A imensidade do resultado final implica, às vezes, processos draconianos e necessita, por parte
dos discípulos, de um conjunto de disposições de espírito e de coração: ardor, perseverança,
coragem, sinceridade, lucidez. Não há lugar para o amadorismo ou meias-medidas, nem para
complacências ou equívocos. A sanção é imediata e a única vítima é a própria pessoa.
Os itinerários são, portanto, infinitamente diversos, e o guru adapta seu ensino não somente ao
acaso de cada discípulo, mas a cada fase, a cada etapa, a cada momento.
A uma mesma pergunta feita por dois interlocutores diferentes o sábio pode muito bem fornecer
respostas divergentes, mesmo violentamente contraditórias, pois nenhuma pergunta pode ser
isolada de quem a apresentou, de seu contexto e de suas motivações específicas.
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De fato, jamais o guru executa o trabalho no lugar de seu discípulo. Não lhe fornece nenhuma
receita infalível, nenhuma fórmula mágica: ajuda-o a percorrer um certo caminho, indicando-lhe
os perigos e os atalhos, os melhores desvios, as armadilhas e os becos sem saída a serem
evitados; ensina-o a utilizar-se das armas que lhe permitirão abater o dragão que guarda o templo.
Mas é o discípulo, e só ele, quem deve caminhar, combater, transpor o umbral supremo.
A confiança
As relações com o guru não estão subordinadas a nenhuma regra. Podem estender-se por anos ou
mesmo por toda uma vida, podem ser espaçadas ou regulares, tanto quanto podem reduzir-se a
um pequeno número de encontros, de excepcional intensidade: tudo depende da maturidade do
discípulo. Às vezes é suficiente uma única entrevista, ou mesmo uma simples troca de olhares,
para provocar um verdadeiro abalo interior de onde procede a uma evidência e que estabelecerá
uma certeza envolvendo e incluindo a totalidade do ser em níveis bem mais profundos e decisivos
que uma simples convicção intelectual. O encaminhamento espiritual de Arnaud Desjardins junto
a seu guru Swami Prajnanpad durou nove anos, ao passo que Shri Nisargadatta Maharaj conta
que se encontrou com seu guru um pequeno número de vezes.
É necessário, da parte do discípulo, uma confiança de um gênero bastante especial, aquela que
inspira as empresas mais audaciosas. Não se trata de acreditar cegamente nas asserções do mestre
e depois fixar-se tranqüilamente em posições teológicas ou filosóficas, mas de fazer a teoria
transformar-se em prática, converter as palavras do guru em atos, em novos modos de
consciência e comportamento. É como um tratamento médico: a mais essencial das receitas não
passa de um pedaço de papel. Não é ela que cura, mas a constância e a vontade do doente em
segui-Ia. Se este questiona seus termos ou negligencia algum detalhe, a eficácia do tratamento
estará comprometida.
Este problema da confiança é primordial. O Ocidente admite e até louva a fé que se tem em uma
crença ou numa opinião; mas desconfia profundamente da fé que é dedicada a um ser de carne e
osso, como se nisso existisse um culto malsão, perigoso ou mesmo indecente e escandaloso.
As imagens de multidões prosternadas aos pés de certos sábios, no Oriente, ofuscam o grande
público europeu e americano, que vê aí apenas idolatria e obscurantismo.
Entretanto, cotidianamente damos provas de confiança radical na competência de nossos
especialistas em inúmeros campos onde o menor erro técnico pode desencadear conseqüências
trágicas e irreparáveis - mutilações, doenças, morte. A vida seria possível se, constantemente,
tivéssemos que duvidar do concessionário que nos vende o carro, do químico que manipula os
medicamentos etc.?
À sua maneira, o guru é igualmente um especialista competente, mas sua especialidade é o
absoluto, a eternidade - o meio de passar de um estado de ignorância, de ilusão, de confusão, de
dispersão mental, de excitação emocional a esse estado de liberdade interior, de pura consciência
e de felicidade que é nossa verdadeira natureza original.
Um comprometimento total
Num célebre versículo do Upanishad, o discípulo, dirigindo-se ao guru, diz sob forma de oração:
"Do irreal conduza-nos ao real, das trevas conduza-nos à luz, da morte conduza-nos à
imortalidade". Em outros termos, faça com que vejamos o ser imutável e autêntico atrás das
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aparências enganosas, faça com que saiamos de nosso sono obscuro, desperte-nos para o puro
conhecimento, a realidade última e inalterável, nós que nos debatemos no transitório e no
perecível.
A saudação ao guru - que os hindus chamam pranam -, que tanto choca os ocidentais, não se
destina a um homem ou uma mulher enquanto indivíduos, mas a uma consciência transformada,
inteiramente estabelecida em Brama, definitivamente morta para todo impulso ou projeção
egoísta, para toda emoção de medo ou avidez, para todo conflito e separatividade.
De fato, é diante de seu próprio Eu realizado (Atman), manifestado, visível que o discípulo se
prosterna, ou diante de uma prefiguração viva de sua própria realização espiritual a ser atingida.
O ritual exprime e concretiza, de certo modo, o reconhecimento de uma realidade indestrutível e
presente que engloba e transcende, ao mesmo tempo, a pessoa do discípulo e a do guru. É um ato
que simboliza a dádiva completa do discípulo, seu comprometimento integral no caminho da
libertação. Pois, nessa aventura interior que na Índia é chamada Sadhana, não pode haver
comprometimento parcial e condicional – do contrário se tornaria uma paródia, uma caricatura,
alguns trejeitos a que se chamaria oração, algumas encenações que se denominariam ioga e
estados um tanto nebuloso que se tomariam por meditação.
A transparência do guru
Seguidamente se diz que, quando o guru e o discípulo estão juntos, não há duas pessoas, mas
apenas uma: o discípulo.
Se conseguir verdadeiramente libertar-se dos medos, das frustrações, dos arrebatamentos
emocionais, das projeções do inconsciente, o sábio não está mais dominado por critérios e
julgamentos subjetivos, escravizado aos poderosos mecanismos das simpatias e antipatias, do
"gosto-não gosto". Seu ego desapareceu, o que não significa, absolutamente, que ele se torna
invisível e se desfaz no éter (ele está, ao contrário, admiravelmente presente), mas sua
consciência não está mais identificada com os processos físicos e mentais, todos eles relativos e
fugazes - corpo, sensações, emoções, idéias -, pois seu ser é um com todas as coisas e todas as
criaturas através de suas flutuações, diferenças e contradições.
O guru compreende que, fundamentalmente, não é outro senão o discípulo, pois que o percebe
em sua última e infinita realidade, sem separação, sem dualidade, a não ser aquela que o próprio
discípulo projeta e da qual resultam todas as suas angústias.
O guru vê o discípulo tal como ele é: manifestação instável do ser total e único. O discípulo, cuja
percepção está deformada por seus julgamentos, emoções, simpatias e antipatias, pelas projeções
de seu inconsciente, têm do guru uma visão fragmentária, falseada pela intensidade de seus
receios, de suas obsessões, de suas perguntas múltiplas e contraditórias. É através desse espelho
deformante de sua mente que ele interpreta o comportamento do sábio: "Ele me aprecia, me
rejeita, me ignora, prefere um outro" etc. E segue os ensinamentos de um guru quase inteiramente
imaginário.
Tal é justamente, um dos objetivos essenciais de toda orientação espiritual: conseguir dissipar as
camadas de névoa fantasmagórica que envolve todos os nossos contatos e experiências a fim de
ver simplesmente o que é.
Cada um de nós vive num mundo particular, inteiramente fechado e subjetivo, herdado de
imagens residuais do passado, de medos recalcados, de sonhos desfeitos, de frustrações
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acumuladas. É como uma contínua miragem, um filme terrivelmente trepidante e barulhento cujo
turbilhão de seqüências recobre e escurece a transparente realidade do instante presente.
O que vemos não é tal ser, tal acontecimento, mas a opinião que deles temos, os desejos e medos
que nos inspiram, as lembranças felizes ou infelizes a eles associadas. Nenhuma circunstância é,
em si mesma, boa ou má, nenhum indivíduo é, em si mesmo, belo ou feio, admirável ou infame.
Enquanto o mundo revelar-se a nós através desse filtro de julgamentos e qualificações, desse
caleidoscópio emocional, não viveremos na realidade, mas nas projeções de nosso próprio ego,
ávido e ansioso.
Esse universo, aque chamamos orgulhosamente "nossa personalidade", que consideramos como
nosso mais precioso tesouro, cuja contestação por outra pessoa parece-nos insuportável, é, na
realidade, uma prisão que nos mantém implacavelmente fechados em nós mesmos, sem abertura
ou comunicação, pois dialogamos apenas com o eco deformado de nossas próprias solicitações e
lamúrias.
O guru conseguiu evadir-se das masmorras do ego e acordou para o mundo real, fazendo
malograr a ditadura do eu e do meu. Ex-prisioneiro, conhecendo bem a planta da prisão, seu
regulamento administrativo, as horas de ronda, os momentos e as zonas de menor vigilância, a
altura dos muros e a profundidade dos fossos, pode facilitar a evasão de outros cativos.
Psicoterapia e espiritualidade
Existe um certo parentesco entre um guru e um psicoterapeuta, na medida em que qualquer
trabalho de transformação interior necessita de uma verdadeira limpeza do inconsciente: nenhum
resultado espiritual durável pode ser obtido com a repressão e o recalque, que extravasam numa
compensação neurótica que beira a histeria.
Mas o papel do psicoterapeuta consiste apenas em ajudar seus semelhantes a se sentirem um
pouco melhor ou um pouco menos mal no interior da prisão; pode-se sempre melhorar as
condições do encarceramento, até mesmo criar um conforto macio e uma rotina tranqüilizadora.
O psicoterapeuta raramente toma conhecimento da função e da realidade alienante do ego, do
qual ele nem suspeita possa alguém libertar-se.
Para o guru, sentir-se um pouco melhor ou um pouco menos mal em sua cela é bastante ridículo.
Tanto o psicoterapeuta quanto o guru devem ter um conhecimento profundo e detalhado do
espaço mental. Mas o primeiro mostra esse conhecimento procurando tornar o local suportável,
enquanto o segundo convida-nos a sair do labirinto, a desertar definitivamente desse lugar de
tormentos.
Outra diferença capital está no fato de que, quaisquer que sejam sua escola e seu método, o
psicoterapeuta não é absolutamente obrigado a ter resolvido seus problemas e suas contradições
pessoais, o que, com certos pacientes, torna muitas vezes inevitáveis uma implicação pessoal,
impressões e reações negativas. Em resumo, o psicoterapeuta não está pessoalmente ao abrigo
das perturbações e delírios que trata nos outros. Ao passo que o guru - se é verdadeiramente
qualificado.- cortou definitivamente, no fundo de seu ser, o nó górdio das tensões, conflitos e
angústias. As emoções, desejos e medos do discípulo o atingem ou lhe dizem respeito tanto
quanto o relato de um pesadelo ou terrores noturnos feito por uma criança atinge a seus pais. Sua
imperturbável neutralidade, sua perfeita transparência interior permitem-lhe ouvir com uma
paciência e disponibilidade sem limites, porque nada esperando nem admiração, nem gratidão,
nem vantagens de qualquer espécie -, o dom que ele faz, totalmente livre e gratuito, merece
apenas o nome de amor.
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A ausência de ambição
Esse aspecto deve ser destacado porque constitui, se não um critério, pelo menos um indício sério
de autêntica realização interior. O verdadeiro guru nada faz para aumentar o número de seus
discípulos, nem mesmo, aliás, para ter discípulos. Absolutamente indiferente à censura e ao
elogio, ao ódio e à adulação, está livre de qualquer noção separadora, a começar precisamente
pela de guru e discípulo. O guru só existe aos olhos do discípulo. Aos olhos do sábio há apenas
uma realidade única, que se manifesta por uma infinidade de vibrações físicas e psíquicas.
No Ocidente, conhecemos alguns homens e mulheres que as circunstâncias tornaram célebres
sem que tivessem, eles mesmos, qualquer ambição a esse respeito. Mas centenas de sábios e de
santos, cujo comportamento e ensino foram igualmente notáveis, continuam para sempre no
anonimato. Qualquer comparação nesse domínio seria absurda. Shri Nisargadatta Maharaj, a
quem um visitante perguntou o que pensava de Shri Babaji, respondeu: “Mas que idéia,
perguntar-me isso. Pode-se perguntar ao espaço de Bombaim o que ele pensa do espaço de
Poona? Os nomes são diferentes, mas o espaço não. A palavra”.
Babaji é apenas um endereço. Quem vive nesse endereço?"
O paradoxo do guru
Existe algo que poderíamos denominar 'paradoxo do guru e que Krishnamurti denunciou com um
rigor impiedoso e uma acuidade notável.
Sua grande crítica é que todo mestre espiritual, qualquer que seja sua própria liberdade interior,
apenas acrescenta mais condicionamentos aos anteriores, substitui as antigas dependências por
novas. A Libertação é uma rejeição de toda imagem, de todo valor admitido, de todo esquema
preestabelecido. Como se pode atingir a adesão ao real - ou seja, ao puro desconhecido, ao
inatingível instante presente - com essa fixação em doutrinas, técnicas, rituais, disciplinas, e num
indivíduo sobre o qual seriam projetados fatalmente as obsessões e os sonhos? A característica da
ignorância é deixar-nos obnubilar por noções mortas e estereotipadas - psicológicas, religiosas,
morais -, de olhar sempre com os olhos do passado, que nos impede de ver a vida tal como ela é.
Não é apegando-nos desesperadamente aos conceitos de espiritualidade, de divindade, de
despertar que poderemos recuperar-nos e despertar efetivamente. É alguma coisa que devemos
conseguir sozinhos, sem intermediários, sob pena de errar de imagem em imagem, de alienação
em alienação. "Se encontrardes o Buda, matai-o!", diz um provérbio zen.
Digamos desde já que seria bastante tolo pretender, aqui, justificar ou condenar quem quer que
seja. A questão, aliás, não está colocada nesses termos. Querer explorar tal ou qual proposição de
Krishnamurti para estabelecer uma tese "antiguru" seria, de qualquer maneira, basicamente
contrária ao ensino mesmo de Krishnamurti.
O importante é a atitude interior: todo método pode conduzir a uma rotina e a um
entorpecimento. Mas a ausência de método pode igualmente ser considerada um método.
Krishnamurti é considerado por muitos como uma autoridade venerável, apesar de ter sempre
rejeitado toda espécie de autoridade, a começar pela sua. E entre seus seguidores ouve-se
constantemente: “Krishnaji diz... Krishnaji pensa..."
No fundo, o problema não é decidir se é necessário ou se não é necessário um guru, pois isso
significa permanecer na periferia mais superficial das coisas e contentar-se em julgá-las pelo lado
de fora. O problema é eminentemente pessoal, particular, irredutível a generalizações.
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Para desembaraçá-los de falsos conceitos “, diz Nisargadatta Maharaj”, eu vos fornecerei outros
conceitos, que são como uma agulha, com a qual podeis extrair um espinho do pé. Mas, se
deixardes a agulha no pé no lugar do espinho, o que ganhastes?
Uma vez que meus conceitos cumpriram seu papel, é necessário rejeitá-los. Jogai fora o espinho e
a agulha." (Nisargadatta Maharaj, Sois, Les Deux Océans)
O aprendizado da não-dependência
A Libertação (Moksha) caracteriza-se por um estado de não-dependência absoluta, difícil de ser
compreendida - ou mesmo admitida - pela imensa maioria de indivíduos cuja existência é, do
primeiro ao último momento, uma trama de dependências físicas, materiais, afetivos e culturais.
Dependência de uma família, de um meio, de bens emocionais, de uma situação adquirida, de
bens acumulados, de uma imagem a sustentar, de preconceitos e hábitos inextirpável, de secretas
angústias e terrores ocultos; dependência de certos princípios, do que se deve e do que não se
deve fazer, de ter ou não ter, de parecer ou não parecer; dependência do que se quer
obstinadamente conquistar ou conservar.
O sábio é aquele que compreendeu que, ao despojar-se de tudo, até mesmo de seu próprio ego,
desembaraçou-se ao mesmo tempo de todos os fardos que o oprimiam, consentindo em uma total
não-dependência relativamente a tudo o que antes governava sua vida, reduzindo-a a um cego
encadeamento de ações e reações - como se conseguisse desintoxicar-se de hábitos perversos e
inúteis, que os outros homens consideram vitais e indispensáveis.
Em seu novo estado, seu principal papel como guru consiste em guiar seus semelhantes – aqueles
que o solicitam com ardor e seriedade - da dependência para a não-dependência. É uma missão
pedagógica comparável à dos pais que ensinam seus filhos a usar progressivamente suas próprias
asas.
Aqui, o guru ajuda o discípulo a conduzir uma transformação interior no fim da qual ele não terá
mais necessidade de qualquer espécie de ajuda, portanto, antes de mais nada, não terá mais
necessidade de seu guia. Resumindo, pode-se dizer que o guru ensina o discípulo a
desembaraçar-se dele para melhor juntar-se a ele, pois é necessário que o guru e o discípulo
desapareçam como tais para serem um na realidade última de todas as coisas.
O guru interior
Na Índia a devoção ao guru tem fundamentos e prolongamentos que ultrapassam de muito a
própria pessoa do instrutor, mesmo se ele for um libertado vivo, um autêntico Jivan Mukta. O
guru de carne e osso, cujo ensinamento se segue, é considerado como a simples manifestação
física, a expressão concreta, exterior, de um Guru interior (ou Sad Guru) que é, no discípulo,
como uma fonte intuitiva de suprema sabedoria e de quem o guru de carne e osso é apenas um
poderoso reflexo projetado no mundo dos fenômenos. As palavras que alargam e fecundam a
consciência do discípulo repercutem numa consciência latente, adormecida, porém presente. Para
que tenham um poder transformador e libertador, é necessário que provenham, não de uma boca
exterior, mas do âmago mais profundo daquele que escuta - do coração mesmo de seu ser.
Esse guru interior, cada um de nós o traz consigo, e é ele que se exprime cada vez que uma
palavra de sabedoria nos toca ou esclarece, mesmo por uma fração de segundo.
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Mas temos em nós tantas outras vozes teimosas, febris, clamorosas, que procuram fazer ouvir
seus gemidos, seus pedidos de socorro, suas exigências, que acabam abafando, com sua constante
dissonância, esse canto calmo e doce que em nós murmura nos confins do silêncio.
Muitas vezes o papel do guru exterior é simplesmente o de fazer cessar o ruído e dizer: "Agora
escutai! Escutem, dentro de vosso ser, cantar a eternidade...”
A graça do guru
Há um outro aspecto determinante, sem o qual todo caminho espiritual- toda Sadhana - toma-se
uma distração intelectual ou uma efervescência emocional. É o que os hindus chamam de "a
graça do gum".
"No verdadeiro ensino, que já não requer o recolhimento fora do mundo", escreve Arnaud
Desjardins, "é o mundo inteiro que se torna mosteiro ou ashram é o mundo inteiro, a cada 24
horas, que é considerado a graça do guru operando (00')' O mais hábil, o mais eficaz, o mais
genial dos gurus não poderia criar para mim, em seu eremitério ou mosteiro, condições mais
frutíferas, mais proveitosas, mais habilmente difíceis que aquelas que a vida me proporciona (...).
Se minha determinação é suficientemente grande, não tenho necessidade do sino ou do gongo do
mosteiro, não tenho necessidade de roupas, não tenho necessidade de perceber o guru a 5 ou 25
metros para pôr em prática seu ensino, e a vida no século torna-se ainda mais útil que no
eremitério. Desperto pela manhã num mosteiro amplificado à escala do planeta, e a partir daí tudo
o que me acontece é a graça do guru. Todo esse universo não é senão a graça do guru operando
para ajudar-me a progredir. Posso dizer de tudo: foi meu guru que o quis para mim, para o meu
bem. Essa fadiga vai me permitir progredir, esse mal-estar vai me permitir progredir, essa má
notícia vai me permitir progredir. Esse contratempo, essa inquietação, tudo o que acontece eu
recebo como a graça do guru operando. “(Amaud Desjardins, A ia Recherche du Sai, La Table
Ronde)”.
Essa situação que assimila cada circunstância da vida a uma prova libertadora, a uma
possibilidade de Despertar, desejada e proposta pelo guru, confundese com os grandes
arrebatamentos do misticismo cristão: "Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus",
“Seja feita a Tua vontade, e não a minha"
Numa tal abertura, não resta o menor lugar para qualquer medo ou qualquer recusa: tudo é
bênção, tudo é amor divino, tudo é Brama.
Capítulo III
Perspectivas Metafísicas
Somente o absoluto é real
O tema filosófico central da cultura ocidental gira em torno de um certo número de questões que
podem ser formuladas da seguinte maneira: De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos
aqui? Quais são o sentido e a finalidade da existência?
No Oriente, particularmente na Índia, a interrogação de base é bastante diferente: O que 'é real? O
que é a realidade? O mundo é real? Sou real?
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No Ocidente, a minha realidade enquanto indivíduo e a do universo que me cerca não são
seriamente tratadas - a não ser em alguns exercícios de acrobacia puramente intelectual. Nesse
ponto o desenvolvimento do hinduísmo é de uma exigência e de um rigor extremo.
A primeira observação é que as teorias mais grandiosas e os sistemas mais hábeis são bastante
irrelevantes, pois o pensamento que os concebe é um instrumento relativo e limitado. Ora, o
intelecto não pode ser dissociado do indivíduo, ele próprio tributário de uma certa posição no
espaço e no tempo, de critérios subjetivos e de múltiplos condicionamentos, psicológicos, sociais
etc.
A questão inicial não é, portanto, o que é necessário pensar, mas quem pensa, quem está atrás de
todo pensamento.
A dificuldade está em que a resposta seja ela qual for, será ainda forçosamente Um pensamento,
portanto subjetiva e não-confiável. Assim, não se pode conceber e formular a verdade objetiva.
Mas essa constatação pertence ao formulável e ao concebível.
Pode-se sair desse círculo vicioso?
É necessário abordar o problema de outro modo.
Que é que não pode ser desmentido ou contradito por nada? Que é que é inalterável e imutável,
cuja validade não pode ser posta em dúvida em qualquer lugar, época ou circunstância? Que é
que é dotado de uma realidade estável, permanente, invariável?
De fato, somente o Absoluto responde a tais exigências. O que confirma que somente o Absoluto
é verdadeira e totalmente real. De modo recíproco, o real só pode ser o Absoluto.
Eis aí uma proposição bem surpreendente e até mesmo, à primeira vista, extravagante, na medida
em que parece escarnecer do senso comum mais elementar e das bases da experiência corrente.
Somente o Absoluto seria real? Todos os fenômenos relativos que compõem ao mesmo tempo
minha própria vida, a de milhões de seres que me rodeiam e o conjunto do cosmos seria sem
consistência, ilusórios? Mas se me machuco sinto dor se caio do alto da torre Eiffel morro. Isso
não é bem real?
À medida que formos aprofundando o ponto de vista da Índia vedântica faremos tábula rasa de
todas as idéias preconcebidas, de todos nossos hábitos de pensamento, de nossas certezas mais
enraizadas. A perspectiva em que se situa o vedanta não-dualista varre o que sempre aceitamos
como evidente e irrefutável.
Dito isso, nunca será demais lembrar que seu objetivo liga-se não a um saber, a uma doutrina, a
uma construção mental, mas a uma experiência vivida, a uma percepção direta, a uma
consciência transformada, completamente diferentes de nossa maneira usual de consciência.
Como voltar à fonte?
Em sua pesquisa sobre a natureza da realidade (ou sobre o Eu, em sânscrito Atma Vichara), os
sábios da Índia julgam necessário partir do ponto preciso em que estamos, neste mesmo
momento, para tentar atingir progressivamente a fonte - a origem de nosso ser e de todas as
coisas.
Uma simples observação mostra que, ao nível do mundo manifestado, todos os fenômenos
inscrevem-se e desenvolvem-se dentro de uma tripla dimensão, espaço, tempo e causalidade. É
um quadro universal, do qual não escapa nenhum processo físico ou psíquico. Todo
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acontecimento implica necessariamente uma localização no espaço, uma sucessão temporal, e
resulta fatalmente de um encadeamento de causas e efeitos.
Essas três categorias - espaço, tempo, causalidade - parecem, à primeira vista, ter uma realidade
própria, perfeitamente exterior a mim, que me condiciona estreitamente e me submete a
angustiantes limitações materiais, biológicas e mentais: separação, isolamento, sofrimento,
degradação e morte. Tal é, ao menos, o veredicto das aparências.
Levando mais longe suas investigações, bem depressa conseguiram os sábios da Índia desfazer
essas aparências enganadoras.
O espaço
O espaço, por exemplo, enquanto distância, volume ou direção referenciava, outra coisa não é
senão um produto de minha própria avaliação, de minha própria escala de medidas, de relações,
de comparações.
Um objeto não é em si mesmo nem grande nem pequeno. Só tem tamanho quando relacionado a
alguma coisa, a algo determinado. Poderá ser imenso na ótica de um micróbio e ínfimo na de uma
montanha. Qual é seu verdadeiro tamanho, sua dimensão intrínseca? Não os tem, ou os tem
todos.
Em outras palavras, ele só se manifesta no espaço relativo, mensurável, através do meu olhar.
Isso não significa, absolutamente, que esse objeto não tenha existência fora de mim, mas sim que
não possui forma definida exterior à minha consciência, dissociável de minhas estruturas mentais
e sensoriais. Posso pretender que minha percepção é mais "justa", no absoluto, que a de um
daltônico? A norma, nesse domínio, é apenas uma questão de estatística.
Essa relatividade aplica-se também ao tamanho e à forma do meu próprio corpo.
Avançando um pouco mais, se o espaço, enquanto conjunto de relações localizáveis e
mensuráveis é tributário de minha consciência, então onde estou?
Quando digo estou em tal lugar, vou a tal outro, eu me projeto, de uma forma ou de outra, para
fora de mim mesmo, como se fizesse parte do espetáculo.
Mas onde está aquele que observa, o espectador escondido tanto da paisagem quanto de meu
corpo, de minhas sensações, de meus pensamentos?
De fato, posso situar apenas o que é abarcado pela minha visão, tal elemento relacionado com tal
outro, mesmo quando se trata de uma galáxia longínqua, da mercearia da esquina, da caneta que
escreve estas linhas ou do coração que sinto bater em meu peito. Mas a visão mesma, em relação
a que posso situá-la? Ela está em todo lugar e não está em lugar algum. Onde estou eu, o
espectador de onde procede a essa visão? Estou em todo lugar e não estou em lugar algum.
Uma objeção acode sempre ao espírito: o espaço existe fora de mim, portanto ocupo nele uma
posição precisa, pois 'que ele existia antes do meu nascimento e continuará a existir após a minha
morte.
Esta afirmação, que parece cheia de bom senso, é, na realidade, um enorme contra-senso.
Implica, com efeito, a possibilidade, para mim, de ver o que se passa fora da minha presença, de
estar quando não estou.
Sob qualquer ângulo que se examine o problema, acaba-se sendo forçado a admitir que o mundo
fenomenal percebido como realidade exterior - o universo observável - é inteiramente dependente
22
do observador. Os trabalhos da física quântica desembocaram numa perspectiva
consideravelmente semelhante.
Onde estou? Voltemos à terra: estou em tal casa, em tal região, em tal continente, em tal planeta,
tal sistema solar, ele mesmo em tal galáxia, ela mesma onde, com certeza? Qualquer que seja a
natureza dos envoltórios sucessivos e a imensidade das escalas concebíveis finaliza-se sempre no
infinito, quer dizer, na nossa própria consciência, o infinito não sendo nem visível nem
mensurável.
O tempo
A segunda questão é: quando eu sou?
Ainda aqui o bom senso intervém para soprar-me respostas do gênero estou em tal ano, tal dia, tal
hora. O inconveniente é que, quanto mais exato quero ser, mais certo estou de enganar-me. Pois,
no momento mesmo em que enuncio o instante - a hora, o minuto, o segundo - ele já passou e
parece divertir-se comigo. Quando se pretende agarrá-la, o instante vivido torna-se
essencialmente fugitivo, sempre ainda por vir e sempre já passado.
Posso então tentar situar-me relativamente a uma idade, numa progressão evolutiva ao mesmo
tempo pessoal e histórica: vivo em tal seqüência de acontecimentos mundiais, em tal
encruzilhada de minha vida, entre 'esta e aquela série de experiências.
Esse raciocínio é feito em termos de itinerário e de trajetória, como se o tempo fosse, de fato,
espaço. Meu passado, o do cosmos, está tão para trás de mim quanto o futuro está para frente.
Um não é mais, o outro não é ainda, e ambos existem apenas agora, na consciência que tenho
deles neste mesmo instante.
O incidente de há cinco minutos não e tão nem mais perto nem mais longe, é tão passado quanto
a Guerra dos Cem Anos, o fim dos brontosáurios ou a formação dos anéis de Saturno.
Á esta pergunta quando eu sou? há apenas uma resposta: eu sou agora, imediatamente, nem antes
nem depois, apenas agora.
Mas e a memória, e as lembranças? Não serão elas uma prova da persistente realidade do
passado? Perguntemos, de preferência, quando funciona a memória, quando surgem as
lembranças: só há memória e lembranças no presente. As imagens do passado são apenas formas
atuais de minha consciência.
Ao mesmo tempo inatingível e único real, este agora é imutável, idêntico, eterno: sempre houve,
sempre haverá o agora, e nada além do agora. Pode se mesmo dizer que a criação inteira é apenas
o jogo polimorfo, variegado, genialmente inventivo deste eterno agora, suas formas, seus corpos,
seus semblantes infinitamente variados.
A causalidade
Depois do espaço e do tempo, a causalidade.
Todo processo - químico, fisiológico, psicológico - desenvolve-se segundo um estrito
encadeamento de causa e efeito que, do nascimento à morte, parece submeter à existência à férula
de urna lei implacável. Tal é, pelo menos, a impressão que se tem quando se estudam os
fenômenos fragmentariamente: derrubo um copo, ele cai e quebra-se; machuco um dedo, ele
sangra; insulto um passante, ele replica; etc.
23
Quando procuramos a causa exata de um fenômeno, esbarramos com sérias dificuldades. Por
exemplo, no caso do copo que se quebra, qual é a verdadeira causa? Seria o peso do objeto? A
fragilidade de seu material? As leis de atração terrestre? Ou, ainda, meu próprio desajeitamento?
Mesmo quando se isola e se favorece, um pouco arbitrariamente, tal ou qual fator, deve-se
determinar de que processo ele é conseqüência e assim sucessivamente. Chega-se logo à origem
das espécies e à formação do mundo.
De fato, nenhum fenômeno pode ser isolado de urna trama de interconexões, de um tecido de
causas mútuas e interdependentes que se repetem ao infinito. O que quer dizer que um
acontecimento não resulta de urna causa, mas de urna infinidade de causas, onde cada seqüência
particular exprime e contém, de urna maneira específica e única, a totalidade da criação.
Nessa realidade global, onde tudo está inextricavelmente ligado, nós é que despedaçamos,
fragmentamos, partimos essa imensidade movente e fluida em coisas, em categorias, em peças de
construção mecânica. O que são, efetivamente, os encadeamentos de causas e efeitos fora da
consciência que os descreve e os regulamenta?
"Não ternos necessidade da causalidade", escreve Alan Watts, "para explicar corno um
acontecimento é influenciado por outro que o precedeu. Imaginemos que olho através da fresta de
urna paliçada no momento em que urna serpente passa do outro lado. Jamais havia visto essa
serpente antes, ignoro tudo a seu respeito. Através da fresta vejo primeiramente a cabeça, depois
um corpo muito alongado e enfim a cauda. Depois disso a serpente faz meia volta e retoma no
outro sentido. Vejo novamente a cabeça e, após um momento, a cauda. Se chamar a cabeça e a
cauda acontecimentos, pensarei que o acontecimento "cabeça" é a causa do acontecimento
"cauda", a cauda sendo o efeito. Mas, se eu olhar a serpente em seu conjunto, vejo urna unidade
cabeça-cauda e seria completamente absurdo dizer que a cabeça da serpente é a causa da cauda,
corno se a serpente começasse sua existência pela cabeça, a cauda aparecendo em seguida. É já
sob a forma de um conjunto cabeça-cauda que a serpente sai de seu ovo; é exatamente da mesma
maneira que todos os acontecimentos são um só e mesmo acontecimento. O que percebemos,
quando nos referimos a acontecimentos diferentes, são as diferentes seqüências de um fenômeno
contínuo.” (Alan Watts, L'Envers du Néant, Denoel)
Quem sou eu?
Assim o espaço, o tempo e a causalidade aparecem como construções artificiais, corno a
fragmentação arbitrária de urna realidade global, de um todo indissolúvel, onde a consciência do
observador e o espetáculo observado são apenas um.
Corno o mundo não é separável da consciência que dele tenho, perguntar "Que é o mundo?" é
urna maneira terrivelmente complicada e torcida de perguntar: "Quem sou eu?"
Eis a questão, ao mesmo tempo primordial e última, da qual todas as outras são apenas
prolongamentos, casos particulares. Esse "Quem sou eu?" é uma das bases do ensino vedântico.
Uma observação mais atenta nos mostra que, no plano dos fenômenos fisiológicos e dos
processos psíquicos, tudo se modifica incessantemente e nada é jamais perfeitamente idêntico.
Ora, se não existisse em mim uma realidade idêntica e imutável, como poderia eu reconhecer a
mudança e a diferença? São necessárias balizas fixas - ao menos relativamente - para detectar o
movimento.
Quando penso''eu", tenho a impressão de saber perfeitamente de quem se trata; não é minha
experiência a mais evidente e a mais imediata, minha certeza a mais íntima e a mais invariável?
24
Um espírito bastante hábil pode conseguir fazer-me duvidar de mil coisas - da existência de
Hitler ou mesmo do globo terrestre; de minha própria existência, jamais.
O problema é: Quem existe? Quem é esse eu cuja permanência e continuidade me parecem tão
evidentes?
Por outro lado, meu corpo não é uma coisa isolada, separável do mundo físico que o rodeia. Ele é
o ar que respira, o alimento que absorve, o calor que o banha, o solo que o sustenta, a terra sobre
a qual ele anda e repousa, a luz do sol, a alternância dos dias e das noites, o ritmo das estações, o
conjunto das energias e vibrações que ele recebe e assimila. Nesse sentido posso dizer que, de
fato, é o cosmos inteiro que é o meu corpo, e não somente um pacote de vísceras e órgãos
envolvido em um "saco de pele", para usar a bela expressão de Alan Watts, como se houvesse
uma demarcação radical, uma verdadeira película de nada a isolar a superfície de minha epiderme
do resto do universo.
Dizer" eu sou o corpo" é, portanto, uma enorme ilusão de ótica, uma perspectiva grosseiramente
errada.
Os níveis sutis
Consideremos agora níveis mais sutis – por exemplo, o do domínio emocional e afetivo: atrações,
repulsões, simpatias, antipatias, toda a multidão fervilhante e contraditória de impulsos, pendores
e paixões de toda espécie.
Ainda aqui todo processo passional está em contínua mutação. A emoção é, antes de tudo, um
fenômeno movente e instável, condenado a desaparecer cedo ou tarde para ceder o lugar a
emoções completamente diferentes ou mesmo oposto. O que outrora nos exaltava ou indignava
pode muito bem deixar-nos hoje profundamente indiferentes, e inversamente. Aquele ou aquela a
quem declaro hoje meu amor eterno pode inspirar-me amanhã uma aversão incoercível.
Onde está, em tudo isso, o eu inalterável?
Pertencerá ele ao plano mais abstrato das faculdades intelectuais e das idéias? Mas que pode
haver de mais inconstante, disparatado e mesmo versátil que essa turbilhonante atividade mental,
essa sucessão de opiniões e conceitos que se perseguem mutuamente?
Às vezes somos tentados a associar o eu e a memória (particularmente o gigantesco e obscuro
território do inconsciente) como elemento fundamental de permanência e continuidade.
Mas as próprias lembranças estão em incessante flutuação, oscilando, baralhando-se,
deformando-se com o tempo, ao arbítrio das circunstâncias. Jamais temos duas vezes a mesma
lembrança. Pois, mesmo quando um acontecimento se grava em nós e de maneira definitivamente
indelével, jamais pensamos nele dentro do mesmo contexto nem sob a mesma luz.
A evidência de ser
Na sua essência intrínseca e imutável, que os hindus denominam Eu (Atman) para distingui-lo do
simples eu dos psicólogos, o eu real não pode ser reduzido nem ao corpo, nem às emoções, nem
aos pensamentos, nem à memória.
Como perceber, então, sua verdadeira natureza? Voltemos ao ponto de partida: a certeza de
existir.
25
Essa evidência de ser é independente de toda sensação, imagem ou pensamento particular, é
anterior às palavras, aos conceitos, às formas, aos acontecimentos.
Acontece a qualquer um, quando está levemente adormecido, esquecer bruscamente quem é ou
onde está sem que, entretanto, desapareça a certeza de existir - para além de um nome ou de uma
posição determinada.
Essa consciência pura de ser insistimos, jamais variou. Hoje, ela é idêntica ao que era na primeira
infância. É exatamente a mesma em todos os lugares e em qualquer circunstância. O que muda
são as definições em que se procura encerrá-la. De uma certa maneira, esse simples "eu sou" não
pode nem deslocar-se, nem envelhecer, nem alterar-se, nem ser afetado por nada. Está sempre
aqui e agora, qualquer que sejam as aparências exteriores, os dados conjunturais desse aqui e
desse agora.
Esse "eu sou", a raiz do meu ser, está além do tempo e do espaço, além da forma e do
movimento. De resto, se eu não fosse, em minha realidade essencial, sem nome e sem forma,
como poderia perceber os nomes e as formas?
Esse "eu sou", para além de qualquer qualificação e mutação perfeitamente neutra e estável,
costuma ser associado à noção depuro espectador (Drg) ou depura testemunha (Sakshin).
Esse ser imutável, que está no fundo de todos os processos físicos, emocionais, intelectuais, de
todos os fenômenos relativos, é freqüentemente comparado, pelos sábios da Índia
contemporânea, à tela de um filme.
Claro, trata-se apenas de uma alegoria, mas bastante evocadora. Durante a projeção de um filme,
as seqüências desfilam pela tela sem que esta seja vista. Ora, sem a tela não haveria imagem.
Essa tela invisível é o suporte imutável, imaculado, indiferençável, o elemento de permanência e
de continuidade que sustém a sucessão dos planos e das cenas. É o filme que dissimula a tela, que
a subtrai aos nossos olhares, mas não pode nem afetá-la nem modificá-la. "Ela não é nem
arranhada pelas balas das metralhadoras de um filme de guerra nem molhada no fim de um filme
de naufrágio" (Arnaud Desjardins). Neutra, vazia, indeterminada, não pode ser assimilada a uma
imagem particular; mas, ao mesmo tempo, inclui todas as imagens, agrega-se a todas as
seqüências.
Outra analogia tradicional é a do espelho. Todos objetos são por ele refletidos, indistintamente.
Essas imagens são apenas a superfície espelhada, e esta não é absolutamente alterada pelas cenas
que nela se desenvolvem.
Como a tela ou o espelho, o Eu (Atman) sustém e engloba todas as formas particulares sem ser
limitado ou subjugado por nenhuma delas.
Ele é o Eu que habita o mais profundo de cada individualidade.
Permanece sempre idêntico a Si mesmo e, entretanto, transparece através das múltiplas
transformações do material.
Não nasce nem morre; não crê nem descrê.
Quando o corpo se transforma em pó ele não cessa de existir, tal como o ar contido no bojo de
um cântaro incondicionável."
(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 131, 134, Adrien Maisonneuve).
Este texto pode ser comparado com uma soberba passagem do Brihadaranyaka Upanishad (111,
IV, 2):
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"Não podeis ver Aquilo que é o Vidente da visão; não podeis ouvir Aquilo que é o Ouvinte da
audição; não podeis pensar Aquilo que é o Pensador do pensamento; não podeis conhecer Aquilo
que é o Conhecedor do conhecimento. É o vosso próprio Eu que habita dentro de tudo o que
existe, e tudo o que existe deve perecer - salvo ele".
O Brama
O Eu (Atman) é, portanto, minha mais íntima realidade, o único que escapa à mudança e à morte.
Absoluto, inefável, indescritível, é irredutível a palavras e a textos, ultrapassa toda faculdade de
percepção e entendimento. Ao mesmo tempo menor que o mais minúsculo entre os mais ínfimos
e maior que o mais imenso entre os mais vastos, ele é propriamente incomensurável, e nenhuma
escala de medida lhe pode ser aplicada.
Infinito, universal, ele é a última e única realidade, gerando e englobando ao mesmo tempo
minha pessoa e a totalidade da criação. Enquanto tal, os hindus o chamam Brama Atman e Brama
são idênticos, são a mesma realidade superior, considerada como centro e fundamento de minha
existência individual (Atman) ou como centro e fundamento da totalidade dos mundos existentes
e possíveis, manifestados ou não-manifestados (Brama).
Não-dualidade
É a propósito de Brama que se costuma falar de não-dualidade. Diz-se ainda que ele é Um-SemUm-Segundo.
Todo esse universo que a Ignorância nos apresenta sob o aspecto da multiplicidade
.
Não é outra coisa senão Brama, para sempre liberto de todas essas limitações que condicionam o
pensamento humano.
Ainda que a jarra seja uma modificação da argila, ela não se diferencia da argila.
Em todas as suas partes a jarra tem a mesma natureza da argila.
Por que lhe dar o nome de jarra?
Esse nome é imaginário; não corresponde a nada de real.
Na única existência de Brama a idéia do universo é pura fantasmagoria.
Naquele que é o Absoluto - sem mudanças e sem formas - onde acharíamos traços de
diversidade?
Na única existência, livre de noções tais como o que vê, o visto e a visão.
Na única existência que é o Absoluto - sem mudanças e sem forma - onde acharíamos traços de
diversidade? (Shankara, op. cito 227, 228, 399, 400)
No plano do mundo fenomenal e relativo estamos profundamente imersos na multiplicidade,
subjugados pelas duplas de contrários (Dvandas), preto-branco, grande-pequeno, ativo-passivo,
positivo-negativo, união-separação, nascimento-morte, e igualmente finito-infinito, particularuniversal, ou mesmo absoluto-relativo, unidade-multiplicidade.
O Brama não pode ter contrário, seja ele qual for, pois isso seria ainda limitá-lo. Ora, todo
conceito, por vasto e indeterminado que seja, comporta forçosamente o seu contrário. Eis por que
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os hindus preferem o termo não-dualidade (Advaita) a unidade, que pode ser oposta à
multiplicidade.
Tu és isso
A expressão um-sem-um-segundo aponta igualmente para essa realidade suprema e indizível;
impossível de ser dividida, circunscrita e percebida. Mas as próprias palavras "não-dualidade",
"um-sem-um-segundo" pertencem ao domínio da linguagem e do relativo. "Quanto àquele que
confunde as palavras com Brama, ele é todo poderoso, mas 'somente no domínio das palavras!"
(Chandogya Upanishad, VII, I, 5).
O caráter inconcebível, onipresente e incomensurável de Atman-Brama é evocado em outra
célebre passagem desse mesmo Upanishad. Trata-se de um diálogo durante o qual um pai instrúi
seu filho:
“- Traz-me um fruto deste nyagrodha”.
- Ei-lo aqui, Senhor.
- Divide-o.
- Está dividido.
- Que vês?
- Algumas sementinhas, Senhor.
- Pois bem! Divide uma destas sementes. - Pronto, Senhor.
- Que vês?
- Nada, Senhor.
O pai continua.
- Meu amigo, esta essência sutil que escapa à nossa percepção, é em virtude dela que esta árvore,
grande como é, se ergue. Crê em mim, meu amigo, esta essência sutil anima tudo; ela é a única
realidade; ela é o Atman. Tu mesmo, Cvetaketu, tu és Aquilo. (VI, XII, C 2, 3).
"Todo este universo é Brama", "o Atman é Brama", "Tu és Aquilo”. - estas fórmulas fazem parte
do que é denominado "as grandes palavras" (Mahavakya) dos Upanishads. Resumem e contêm
em si todo o ensino do vedanta. Aquele que lhes percebe o verdadeiro sentido para além de uma
estreita compreensão intelectual, quer dizer, que vive diretamente sua realidade imediata, dentro e
na totalidade de seu ser, não tem mais necessidade de ler nenhum outro texto, nem, aliás, de se
fazer nenhuma pergunta...
As vagas e o oceano
Devemos sublinhar um ponto importante, sob pena de dar margem a confusões e contra-sensos
que poderiam desfigurar completamente o próprio espírito mesmo desta trajetória.
Se Brama é sem dualidade, sem contrário, então não pode ser isolado, separado do mundo
relativo e fenomenal, contraposto ao universo das aparências e da multiplicidade. Se há apenas
uma realidade, perfeitamente indivisível, sem o menor lugar para dois, então Brama não pode ser
outro senão os inúmeros processos - tomados, ao mesmo tempo, global e isoladamente - que
aparecem, evoluem, misturam-se, transformam-se e depois desaparecem.
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Em outras palavras, nada do que fazemos, sentimos, pensamos, tememos, desejamos, tornamonos, nada disso é outra coisa senão Brama.
Uma das imagens tradicionais mais correntemente evocadas a esse respeito é a das vagas e do
oceano.
Enquanto vaga - fenômeno individual, particular, limitado, relativo - surjo do seio da massa
líquida para rolar durante algum tempo na superfície das águas e depois dispersar-me em espuma
na beira da praia. Entretanto, essa vaga não é outra coisa senão o oceano.
Enquanto vaga estou fadado à mudança e ao desaparecimento.
Enquanto oceano - consciência da realidade total e indivisível - sou também a totalidade das
vagas existentes ou tendo existido, nascendo e morrendo em todo lugar, a cada instante. .
Assim o sábio, cuja consciência está firmemente estabelecida em Brama, sente-se
simultaneamente como vaga e como oceano. Enquanto vaga tem sempre uma existência
individual: bebe, come, dorme, pensa, age, sente dor ou prazer. Enquanto oceano é imutável,
eterno, onipresente, onisciente, conhecendo " aquilo pelo qual a totalidade do universo é
conhecido" .
Esse aspecto do vedanta não-dualista é fundamental, pois somos sempre tentados a reintroduzir
uma dualidade, distinguindo e opondo absoluto e relativo, Brama e o mundo fenomenal
manifestado, Atman e o processo individual perecível, ou, numa linguagem religiosa, sagrado e
profano, divino e não-divino.
A esse respeito, embora vise a uma realização interior, a uma experiência metafísica, o vedanta
não é absolutamente uma doutrina metafísica ou espiritual, na medida em que recusa toda idéia
sobre a natureza de Brama. Eis por que não se poderia aplicar ao Advaita Vedanta nenhuma
etiqueta filosófica monismo, idealismo, panteísmo etc.
O espírito e a matéria
Outro ponto importante é que o Eu não tem relação com as noções de alma ou de espírito, que,
submetidas ao tempo e ao dever individual, são consideradas, na maioria das correntes religiosas
ou filosóficas do Ocidente, como distintas da transcendência e do absoluto.
"O Eu, enquanto tal, jamais é individualizado, e nem pode sê-lo, pois devendo ser sempre
encarado sob o aspecto de eternidade e de imutabilidade que são os atributos necessários do Ser
puro, ele não é, evidentemente, suscetível de nenhuma particularização que o faria ser outra coisa
que não ele mesmo... Em face do Eu, todos estados de manifestação são rigorosamente
equivalentes, podendo ser encarados de forma semelhante”. (René Guénon,L'Homme et Son
Devenir Selon le Vêdanta, Editions Traditionnelles)
Nesse sentido, o que chamamos de espírito e matéria são apenas escalas de relação e modalidades
de permuta que marcam diversas freqüências vibratórias, sem diferenças nem oposição, como na
maioria de nossos sistemas espiritualistas. Os processos químicos, fisiológicos e psíquicos são,
em suma, uma espécie de comprimento de ondas, manifestações mais ou menos sutis de um
mesmo dinamismo inicial, de uma mesma energia primordial, da qual o Atman-Brama é,
definitivamente, a única realidade indestrutível.
Do mesmo modo, o centro de uma roda, ponto matemático bem real apesar de imperceptível, é,
ao mesmo tempo, o suporte, a origem e o fim único de todos os raios. Quaisquer que sejam a
direção e a velocidade da roda, esse eixo continua perfeitamente fixo, idêntico a si mesmo.
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Por que a limitação?
U ma pergunta nos ocorre espontaneamente: se minha verdadeira realidade é o Brama, absoluta
não-dualidade, um-sem-um-segundo, como acontece que eu me sinta cativo da dualidade,
acorrentado à multiplicidade em minhas menores percepções, emoções, pensamentos, a começar
por esta sensação tão opressiva e limitativa do eu e do outro?
Voltemos à pura consciência de ser - eu existo, eu sou - sem nenhuma determinação ou definição
de qualquer espécie.
Temos uma percepção desse estado nos momentos, geralmente muito breves e fugidios, em que,
não tendo nenhuma ansiedade, nenhuma preocupação, nenhuma esperança particular, nenhum
esforço a realizar, nada de especial para fazer, sentimos um profundo relaxamento, um abandono
de todas tensões físicas, emocionais e mentais - por exemplo, quando estamos deitados numa
praia, em férias, num belo dia de verão, o corpo em perfeita paz, repousado, os sentidos e o
psiquismo abertos, pacificados, disponíveis, unificados na doçura do céu, no murmúrio da brisa e
no marulhar das ondas, atentos mas sem nenhum constrangimento, no simples aqui-e-agora.
Nesses breves instantes as noções dualistas, separativas, tais como o eu e o outro ou o sujeito e o
objeto, dissipam-se: há somente o presente, uma presença naquilo que é, uma plenitude sem
nome nem forma.
Esse estado não dura muito, pois é quase imediatamente perturbado por uma massa de
pensamentos redemoinhantes e turbulências emocionais.
Que processo estranho e perverso nos arranca a essa felicidade para nos precipitar novamente na
inquietação, nos conflitos, na angústia do isolamento e da separação?
A identificação
N o simples “eu sou", a pura consciência de ser, não há identificação com um nome, uma forma
física,
Um sexo, uma idade, uma nacionalidade, uma profissão, uma posição familiar e social,
tendências psicológicas. "Eu sou" não tem cartão de visitas, estado civil, mapa astral, domicílio,
antecedentes, carreira ou projetos.
Nesse estado não há lugar para dois: Efetivamente, mesmo a expressão "eu sou" pode prestar-se a
mal-entendidos, pois que ainda tem dois termos: "eu" e "sou". O verbo ser no infinitivo, sem
sujeito nem artigo, seria, sem dúvida, mais apropriado. A dualidade aparece quando ser torna-se
"eu sou um tal, eu sou tais sensações, tais emoções, tais imagens mentais". Quer dizer, quando ser
é identificado a uma forma física limitada, a sensações agradáveis e desagradáveis, a seqüências
psicológicas particulares, a coordenadas espaciais, a uma sucessão temporal, a um encadeamento
de causas e efeitos.
Todos esses objetos de identificação, essencialmente mutáveis e relativos, são chamados eu e,
quando opostos ao mundo exterior, o não-eu, o puro "eu sou" não-diferenciado, torna-se "eu sou
eu", pessoa específica, perfeitamente diferenciada. O mecanismo da dualidade se pôs em marcha,
inexoravelmente. O ser vai obstinar-se procurando tornar-se alguém, o que impele de
identificação em identificação, de definição em definição, de projeto em projeto, de insatisfação
em insatisfação. É uma tensão crescente, que se exacerba sozinha, pois quanto maior o esforço
para ser alguém definido, quanto mais se é tomado por outro, menos se é realmente a própria
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pessoa. Com efeito, como tentar ser alguém sem comportar-se, inevitavelmente, por referência,
comparação e mimetismo, identificando-se com um certo número de clichês, de dados exteriores
preestabelecidos? Qualificando de estranho tudo o que não corresponde a esses clichês, constróise uma prisão de identificações na qual a própria pessoa se encerra viva.
Em outras palavras, querendo ser tal pessoa física, e nada, além disso, renuncia-se a todo o resto,
ao infinito da realidade global, indissociável.
Aliás, o problema é que nunca se pode ser uma pessoa perfeitamente definida, primeiro porque as
definições ou identificações são, elas mesmas, inúmeras, mutáveis, contraditórias, dependendo
dos impulsos, humores, circunstâncias, em seguida porque não se pode ser isolado, afastado
verdadeiramente de seu ambiente, o qual é, bem entendido, ilimitado.
Essa impossibilidade de definir-me e identificar-me completamente com o que quer que seja,
definitivamente, precipita-me em uma espécie de corrida cansativa e delirante, muito semelhante
à proeza tragicômica do cachorrinho que corre atrás de sua própria cauda.
Querendo ser eu, restrinjo-me a um eu qualificável, determinável, encontrável, a um eu exíguo,
estreito, imobilizado e, finalmente, inclino-me para ser um outro, enquanto de fato já estou na
origem do que tão desesperadamente procuro vir a ser. E todo esforço visando a tornar-me o que
de fato já sou conduz-me implacavelmente a outra coisa - daí a frustração e o círculo vicioso.
Mas eu original, meu verdadeiro ser - o Eu – é a totalidade dos processos universais dos quais
meu organismo e meu psiquismo são apenas um episódio vibratório, uma modulação passageira.
Nesse sentido, não é tanto o Eu - meu eu real - que está dentro do meu corpo, mas antes o meu
corpo é que está dentro do Eu receptáculo infinito de interconexões e mudanças, sem o qual esse
corpo não seria sequer concebível.
Afirmar que sou a totalidade é afirmar que não sou nada de qualificável ou de identificável, pois
que, a partir do momento em que me qualifico, por pouco que seja, deixo exatamente de ser tudo
para tornar-me isto em particular.
Esse todo e esse nada encontram-se além das palavras, na experiência libertadora do Despertar.
Se refletirmos mais atentamente, toda a nossa existência aparece como uma série abundante de
identificações. Eu (enquanto simples consciência de ser, sem nome e sem forma) identifica-se
com desejos, temores, prazeres, dores, gostos, lembranças, julgamentos de valor, aparências e
funções sociais, com imagens mais ou menos flutuantes e contraditórias refletidas por outros,
submissões, revoltas, com uma certa idéia do que deve ser feito, sentido, pensado. Identifica-se
com o carro que deve ser comprado, com o telefonema esperado, com a conquista amorosa
projetada, com a melhoria dos negócios, com a viagem preparada há meses, com o saber
acumulado, com as convicções políticas e religiosas. Tudo isso identifica-se com as pessoas, quer
dizer, cada vez elas se assumem para comprar um carro, ter sucesso num namoro ou numa
operação financeira, preparar uma viagem, afirmar suas crenças, mas também no cansaço, na
raiva, na apreciação de um bom ensopado.
A fraude
A cada um desses acontecimentos, persistentes ou fugazes, mas sempre transitórios, atribui-se
uma realidade intrínseca, permanente e quase absoluta, mesmo quando se sabe, no íntimo, que se
trata de peripécias evanescentes, jogos de sombra e reflexos na superfície do real.
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Quem nunca sentiu de repente, ao menos uma vez, intensamente, o caráter factício, enganador,
quase ridiculamente cômico de toda essa agitação à qual se dá tanta importância, um valor tão
definitivo e tão dramático? Quem não pensou, num brusco clarão ao mesmo tempo
desconcertante e curiosamente libertador: "Nada disto tem 'valor'! A vida, a morte, eu, o mundo,
os outros, tudo é fraude, embuste, mal-entendido. Todos fingem, brincam de esconde-esconde.
Daqui a pouco alguém vai gritar 'Tempo', e aí veremos com que as coisas se parecem quando são
verdadeiramente elas mesmas!”
De um certo ponto de vista, a abordagem vedântica nada mais é que essa reflexão levada às suas
últimas implicações.
Há somente um
O engano inicial está na ilusão de ótica - espécie de truque ou de miragem - que nos faz ver,
sentir e pensar dois onde existe apenas Um.
Se houvesse realmente dualidade, se, por exemplo, o sujeito consciente e o objeto concebido
fossem realmente distintos, se o espectador e o espetáculo estivessem realmente separados, a
consciência mesma, tal como se manifesta, seria apenas uma vertiginosa regressão ao infinito, um
absurdo "eu sei que eu sei que eu sei que eu sei..." Essa dualidade do sujeito e do objeto é como
se eu me visse refletido infinitamente em dois espelhos colocados face a face, e considerasse
essas imagens desdobradas como a única realidade que ela reflete.
Vejamos o que se passa em nossa experiência direta. Quando olho um objeto qualquer, se
considero aquele que olha e a coisa olhada, então, certamente, há dualidade: eu e o mundo. Mas,
se considero a visão, aquele que vê e a coisa vista não podem mais ser dissociados, salvo por uma
operação mental estritamente arbitrária.
Paralelamente, cada visão é absolutamente única, assim como cada impressão, cada pensamento.
Unificada, única, uma, é assim que a realidade se revela em sua manifestação mais direta e mais
próxima - muito próxima mesmo, e realmente muito evidente para ser percebida. É a história do
homem que procura desesperadamente seu macaco, por toda parte, enquanto o animal não saiu de
seu ombro.
Na realidade imediata, anterior aos cortes e às classificações do mental, não pode haver senão
Um.
É uma ficção curiosa, uma perspectiva completamente deformante, que nos incita a considerar a
multiplicidade de sensações, emoções e pensamentos como se pudéssemos ficar fora do momento
atual uma só sensação, uma só emoção, um só pensamento de cada vez - e a multiplicidade dos
seres como se pudéssemos ficar fora de nós mesmos, como se pudéssemos ser, ao mesmo tempo,
uma multidão de consciências dispersas, fragmentadas, separadas. A realidade só se quebra
quando se imagina poder ficar no lugar de muitos. Posso, por projeção, identificar-me com uma
quantidade de objetos ou de seres diferentes; mas haverá sempre uma só consciência adotando e
envolvendo essas inúmeras formas. E essa observação é válida para cada um de nós, pois os
outros aparecem e desaparecem dentro da minha consciência, como eu mesmo apareço e
desapareço na consciência deles; mas, na realidade imediata de cada um, o que há é apenas uma
só e única consciência.
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Maya
Essa falsa aparência - fraude ou mal-entendido - que produz o efeito de dualidade, que nos
divide, nos projeta nas identificações ou nos conflitos, é chamada, na Índia, Maya. Este termo
costuma ser impropriamente traduzido por “ilusão". A noção de Maya é mais sutil: não é nem
completamente real, nem completamente irreal.
É Maya quem cria a aparente fragmentação do mundo fenomenal e relativo, bem como a prisão
individual, o sentimento de limitação, de isolamento e de separatividade. Seu estranho e imenso
poder, comparável a uma espécie de hipnose cósmica, consiste ao mesmo tempo em velar, ocultar
a unicidade do real,
e em projetar sobre ele um universo de imagens semelhantes às miragens e aos sonhos.
A analogia tradicional mais freqüentemente lembrada a propósito de Maya é a da corda e da
serpente.
Na volta de um caminho, na penumbra de um bosque, um viajante avista uma corda que ele toma,
de longe, por uma serpente. O medo petrifica-o, suscitando toda espécie de impressões, emoções
e pensamentos febris: como ultrapassar o animal sem ser picado? Como matá-lo de surpresa, para
vender sua pele e transformar esse mau encontro em um bom negócio?
Todos os processos fisiológicos e psíquicos são assim solicitados, sobreexcitados por alguma
coisa que não tem existência própria e que pode tomar formas monstruosas, proporções
terrificantes. Essa serpente é apenas a corda vista sob uma luz falaciosa. Mas, do ponto de vista
do viajante enganado, tudo se passa como se a serpente fosse bem real. Logo que ele se aproxima
e põe a mão na corda - se tiver coragem para tanto -, verifica seu equívoco, reconhece que se trata
apenas de uma corda inofensiva e ri de seu próprio medo.
Assim que Brama, um-sem-um-segundo, se desvenda, torna-se evidente que jamais houve outra
coisa e rimos de Maya, que dissimula a única realidade sob a máscara da multiplicidade, que não
é senão a unicidade dissimulada por uma perspectiva enganadora.
Mas, enquanto o erro subsiste, enquanto não estamos inteiramente estabilizados em Brama, podese afirmar que Maya não existe, pois que ela mesma não é senão Brama - tal como a serpente não
é outra coisa senão acorda?
"É ela, Maya, quem projetou todo universo. “ Maya, a grande maravilha, escapa a qualquer
descrição.
"Pois é percebendo o puro Brama, o um-sem-um-segundo, que se consegue destruir Maya”.
(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 108, 109, 110)
Essa serpente imaginária, cuja visão oculta a realidade da corda mais ou menos como um reflexo
impresso, exprime bem o poderio mágico de Maya, apelidada de a grande feiticeira. O termo
sânscrito Ãdhyasa, que designa esse efeito específico, é dificil de traduzir; a palavra geralmente
utilizada é "sobrepor": uma representação mentirosa substitui abusivamente, o objeto verdadeiro"
sobrepõe-se" a ele.
Seria vão e inepto procurar a causa de Maya, pois que os processos de procura e de causa fazem,
eles mesmos, parte de Maya: seria tentar morder sua própria mandíbula.
Os cinco envoltórios do Eu
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Com seu poder de obnubilação Maya persuade cada um de nós de que é uma entidade isolada,
separada, ligada às limitações e aos condicionamentos do tempo, do espaço e da causalidade.
Esse véu opaco e mentiroso, que dissimula e deforma aos nossos próprios olhos o nosso ser
verdadeiro, a única realidade - o Eu -, aparece na abordagem vedântica como uma sucessão de
invólucros ou revestimentos que os hindus denominam Koshas.
Esses envoltórios, em número de cinco, são como camadas cada vez mais sutis, estreitamente
imbricadas, agregadas umas às outras como os graus de manifestação ou as freqüências
vibratórias de um mesmo processo global.
O primeiro envoltório, mais grosseiro e pesado, diz respeito ao conjunto dos processos
fisiológicos e bioquímicos. É chamado envoltório de alimentação (Annamayakosha), pois é o
resultado das trocas da absorção, da assimilação e da eliminação entre nosso organismo e suas
imediações. Sob esse aspecto tudo é alimento, pois o corpo desenvolve-se, mantém-se e renovase consumindo alimentos sólidos, líquidos e gasosos, dos quais o ar que se respira é o primeiro de
todos.
O segundo envoltório é o da energia vital (Pranamayakosha). É dele que se trata quando sentimos
"estou em plena forma, estou fatigado, estou vazio etc." Ele governa as faculdades da sensação e
da ação, tão intimamente ligadas à nossa vitalidade.
O terceiro envoltório aplica-se ao que os hindus chamaram mental (Manomayakosha) e agrupa
nossas simpatias e antipatias, nossos impulsos emocionais, nossas tendências afetivas, bem como
nossas opiniões, julgamentos subjetivos, reações pessoais e parciais frente aos seres e aos
acontecimentos. É o domínio dos gostos, das paixões, dos preconceitos.
O quarto envoltório (Vijnanamayakosha) é o do intelecto superior, da visão justa e perspicaz, da
faculdade de apreciação neutra e clara, do conhecimento purificado, luminoso, que os hindus
chamam Buddhi. É ele que nos permite estabelecer as verdadeiras questões, desmascarar o poder
hipnótico de Maya. É ele, por exemplo, que nos permite enunciar certas leis matemáticas: 2 + 2 =
4. É dele que procedem, sobretudo, as poucas certezas fundamentais universais não-dependentes
de condições geográficas, históricas, econômicas, sociais, culturais: tudo muda, tudo é diferente,
tudo é relativo.
Os julgamentos psicológicos ou estéticos, as opiniões políticas, as crenças religiosas, os sistemas
filosóficos podem ser contestados, contraditos: é uma questão de habilidade dialética, de
vivacidade intelectual, de determinação pessoal, de ponto de vista subjetivo dependente de um
meio, de uma educação, de um pendor específico. É o envoltório mental, o Manomayakosha.
Afirmações como tudo muda, tudo é diferente, tudo é relativo resultam de uma visão neutra e
imparcial, idêntica em todas as épocas, sob todas as latitudes e em todas as línguas. É o/Buddhi
Vijnanamayakosha.
O quinto envoltório é chamado envoltório de beatitude (Anandamayakosha). É também o
envoltório mais fino, que constitui ao mesmo tempo a origem e o fim dos outros quatro, o germe
inicial e o ponto de reabsorção última dos fenômenos físicos e psíquicos.
Numa classificação paralela e complementar os hindus associam o envoltório carnal ou de
alimentação (Annamayakosha) com a noção de corpo grosseiro (Sthula Sharir), o envoltório de
energia vital (Pranamayakosha), o mental (Manomayakosha) e o do intelecto superior
(Vijnanamayakosha) com a noção de corpo sutil (Sukshma Sharir), e o da beatitude
(Anandamayakosha) com a noção de corpo causal (Karana Sharir).
Anandamayakosha é esse incrível espaço interior de paz, de silêncio, de felicidade que se atinge
quando se dissipa a rumorosa agitação de pensamentos, emoções, sensações, tensões e conflitos
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de toda espécie, algo como a esplendorosa serenidade do azul após a dispersão das nuvens
ameaçadoras ou como o puro silêncio existente atrás e entre as vibrações musicais. Assim como
as notas surgem do silêncio e nele se fundem, também a horda turbilhonante das sensações, das
emoções e dos pensamentos irrompe sem cessar do seio dessa felicidade íntima para aí se
dissolver - contínua perturbação, lancinante parasitagem que abafa, sob uma confusão de sombras
febris, essa paz sem forma e sem medida.
Por mais fino e depurado que seja esse quinto envoltório, Anandamayakosha não está menos sub
metido que os quatros outros ao vir-a-ser e à relatividade, uma vez que o denominamos e de certa
maneira o situamos enquanto o Atman, o Eu, o absoluto, não pode ser nem denominado nem,
aliás, diferenciado dos cinco Koshas e dos três corpos.
Digamos que no mundo fenomenal e relativo Anandamayakosha marca o derradeiro limiar do
nosso entendimento, a suprema intuição daquilo que só pode ser vivido e realizado, e não
conceituado ou formulado.
Notemos que o envoltório de energia vital (Pranamayakosha) liga o corpo grosseiro ao corpo
sutil, enquanto o envoltório do intelecto superior (Vijnanamayakosha) liga o corpo sutil ao corpo
causal.
Insistimos no fato de, aos olhos dos hindus, não existir nenhuma oposição fundamental entre
espírito e matéria. Os cinco envoltórios e os três corpos são as manifestações, as modulações
vibratórias de uma mesma energia universal.
Ainda uma vez, os processos físicos e psíquicos do mundo fenomenal não são coisas isoladas,
articulando-se como rodas mecânicas, mas acontecimentos indissociáveis, dinamismos em
perpétua interdependência e interação.
Os cinto Koshas
ou cinco envoltórios do Eu
Envoltório da alimentação
Annamayakosha
Corpo grosseiro
(Sthula Sharir)
Envoltório da vitalidade
Pranamayakosha
Envoltório do mental
Manomayakosha
Corpo sutil
(Sukshma Sharir)
Envoltório do intelecto
Vijnanamayakosha
superior
Envoltório da beatitude
Anandamayakosha
Corpo causal
(Karana Sharir)
Os três estados: vigília, sonho, sono profundo.
Os três corpos estão ligados aos três grandes estados que compõem a nossa experiência corrente:
o estado de vigília, o estado de sonho, o estado de sono profundo. .
No Ocidente, tendemos a considerar o estado de vigília como o estado mais real, do qual os
outros não passariam de projeções, deformações ou regressões. O vedanta não atribui ao estado
de vigília uma validade, uma credibilidade superior.
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O estado de vigília está diretamente ligado à percepção do mundo material e à dimensão
orgânica. Desde os primeiros momentos do despertar identifico-me com este corpo particular,
com esta forma tangível, encerrada no concreto e distante do universo exterior. Esse estado está
estreitamente ligado às sensações físicas, agradáveis ou desagradáveis. Se tenho a menor dúvida
belisco-me, dizendo: "Não estou sonhando... estou bem acordado..."
A vigília é o estado em que o sentido da individualidade se afirma com mais vigor e se manifesta
mais completamente, pois está incessantemente e rudemente confrontado com a oposição do eu e
do não-eu. É o terreno da penosa e angustiante rivalidade entre os imperativos da sobrevivência
biológica e da natureza envolvente, hostil e perigosa. No estado de vigília temos, de início, a
impressão de estar completamente escravizados à multiplicidade das aparências e à limitação das
formas, tanto quanto às rigorosas regras do espaço, do tempo e da causalidade.
"No estado de sonho todo contato com o mundo exterior está momentaneamente cortado"
(Shankara). Quem sonha é, ao mesmo tempo, aquele que imagina e a multidão de criaturas ou de
objetos com que povoa seu mundo imaginário.
"Então, onde não há carros, atrelagem ou caminho, ele cria carro, atrelagem e caminho. Onde não
há prazer, alegria ou deleite, ele cria prazeres, alegrias e deleites. Onde não há, realmente, lago,
tanque ou rio, ele cria lagos, tanques e rios. É ele quem cria”.
“No sonho, perambulando de lá para cá,
Deus atribui-se formas diversas;
Às vezes, rindo, entretém-se com mulheres,
Às vezes tem visões terríveis."
(Brihadaranyaka Upanishad IV, 3,10-13)
É nossa mente que suscita e projeta uma série de seqüências onde são reproduzidos nossos
desejos e nossos medos, nossas obsessões e frustrações secretas. Lembremos sobre esse assunto
que, bem antes da psicanálise, a Índia destacou amplamente o papel capital do inconsciente no
sonho.
Mas o vedanta não considera o sonho apenas uma mensagem codificada, um revelador dos
impulsos e dos comportamentos dos homens. Enquanto estados, a vigília e o sonho são duas
condições particulares, duas manifestações específicas do ser, e essa diferença não implica
nenhuma superioridade: "De qualquer modo, o que é absolutamente real é o Eu, exclusivamente;
é o que não pode perceber, de nenhuma maneira, toda concepção que, sob qualquer forma, se
fecha na consideração de objetos externos e internos, cujo conhecimento constitui,
respectivamente, os estados de vigília e de sonho, e que, assim, não indo mais além do conjunto
desses dois estados, nos retém inteiramente nos limites da manifestação formal e da
individualidade humana". (René Guénon,L'Homme et Son Devenir Selon le Vêdanta)
Se o estado de vigília está associado ao corpo grosseiro (Sthula Sharir), o estado de sonho está
ligado ao corpo sutil (Sukshma Sharir), enquanto o estado de sono profundo depende do corpo
causal (Karana Sharir).
Pode-se tentar urna análise científica do sono profundo, mas essa abordagem fica forçosamente
no exterior: ela não pode atingir o conteúdo vivido do sono profundo, pois sua descrição efetuase sempre no estado de vigília, em função de procedimentos e critérios inerentes à consciência de
vigília. Pode-se descrever a noite em termos de dia?
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Em relação aos estados de vigília e de sonho, o sono profundo aparece primeiramente corno urna
espécie de extinção, de vacuidade.
“O sono profundo é a suspensão de todo gênero de percepção”.
Aqui, o mental reveste urna forma extremamente sutil; continua em estado seminal.
O veredicto universal que se exprime assim: naquele momento não senti mais nada, confirma es
ta maneira de ver. ',
(Sankhara, Le Plus Beau Fleuron de ia Discrimination, 121).
Essa reabsorção de toda atividade mental, essa desaparição do nome e da forma que caracterizam
o sono profundo, não significa, entretanto, urna ausência de consciência, pois, ao acordar,
conservamos desse estado urna espécie de lembrança negativa e feliz: "Corno dormi bem! Nada
atrapalhou meu sono! Não vi nada, não ouvi nada, não senti nada, não pensei em nada..." Sem
desejos e sem sonhos, quem dorme não está mais sujeito às determinações e às limitações: está
em paz, unido na felicidade do indiferenciado. "Tudo é Um", escreve também Tchuangtsé.
"Durante o sono, a alma não-distraída absorvese nessa unidade; durante a vigília, distraída, ela
distingue seres di versos”.
Além do sono profundo
É difícil para a cultura ocidental conceber e admitir a noção de urna consciência pura, desligada
de todo pensamento, com certeza por causa do famoso "Penso, logo existo", completamente
distanciado da conduta oriental, que poderia afirmar: "Eu existo, embora pense”.
Na condição de sono profundo, a pura consciência - simples evidência de ser, sem identificação
nem qualificação - não está mais velada, parasitada por alguma imagem particular. "Esse estado
de indiferenciação, no qual todo conhecimento, incluindo também o de outros estados, está
centralizado sinteticamente na unidade essencial e fundamental do ser, é o estado nãomanifestado ou desenvolvido, princípio e causa de toda manifestação e a partir do qual esta é
desenvolvida na multiplicidade de seus diversos estados, mais particularmente no tocante ao ser
humano em seus estados sutis e grosseiros. Nesse estado, os diferentes objetos da manifestação,
mesmo os da manifestação individual, tanto externos quanto internos, não são absolutamente
destruídos, mas subsistem em princípio, estando unificados; por isso mesmo não são mais
concebidos sob o aspecto secundário e contingente da distinção." (RenéGuénon, op.cit.)
Quando dormimos, portanto, a pura consciência já está identificada com o corpo e a mente. Mas
essa identificação não está anulada; ela se recolhe ao estado de germe, de existência potencial. É
uma plenitude sem dualidade manifesta, sem relação sujeito objeto, mas onde os pares de
contrário estão sempre latentes, com suas tensões, seus conflitos, seus sofrimentos, que
reaparecem nos sonhos e são ativados no momento do despertar.
Esse estado de sono profundo - que experimentamos todas as noites - prefigura, de certo modo, a
consciência libertada do sábio, cujo ser, estabelecido e imerso em Brama, aderindo
completamente ao eterno aqui-e-agora, é Um com a totalidade do real.
A não-dualidade, vivida e realizada pelo libertado-vivo através de todas as sensações, todas as
atividades, todas as peripécias cotidianas da existência fenomenal, está aparentada a um quarto
estado, que ao mesmo tempo sustém, impregna e transcende os três outros.Os quatros estados
são:
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Estado de vigília (Jagrat Vaishvanara): sensações corporais e mundo físico; corpo grosseiro
(Sthula Sharir);
Estado de sonho (Svapna Taijasa): universo imaginário, projeções mentais; corpo sutil
(Sukshama Sharir);
Estado de sono profundo (Susupti Prajna): plenitude indiferenciada, reabsorção do ego; corpo
causal (Karana Sharir);
Quarto estado (Turiya): consciência desperta, libertada (Moksha).
Esse "quarto estado" não é, propriamente falando, um estado, pois não se reduz a nenhuma
palavra, a nenhum conceito e não pode ser concebido como um produto dos três outros, o que
seria ainda defini-lo e limitá-lo. Não podendo ser submetido a nenhuma escala de medida ou de
valores, também não se pode dizer que seja superior aos outros três. É a presença indizível e
inalterável, da qual os três estados são apenas as manifestações, as formas relativas e mutáveis,
como os 'três corpos e as cinco Koshas são as manifestações, as formas relativas e mutáveis do
Eu.
A vida é um sonho
Da chave dos sonhos às interpretações psicanalíticas, o Ocidente, já o dissemos, só está
interessado nos sonhos para deles extrair ensinamentos e revelações concernentes ao estado de
vigília.
Para o Oriente o que é importante, antes de tudo, é um estudo comparado sistemático dos estados
de sonho e de vigília, que permita aprofundar e apurar a pesquisa fundamental sobre a natureza
do real, dissipando um certo número de convicções erradas - a começar pela poderosa impressão
de que o estado de vigília é "mais real" que o estado de sonho.
U ma tal afirmação não nos parece evidente senão na medida em que procede precisamente do
estado de vigília. Mas no momento em que sonhamos sabemos perfeitamente que as seqüências
do sonho têm o mesmo perfume da realidade.
Dizemos de bom grado: o mundo dos sonhos é subjetivo, ao passo que o universo que
descobrimos ao despertar tem uma existência objetiva. Mas os acontecimentos percebidos através
do filtro de nossa mente - gostos, lembranças, preconceitos, hábitos -e as estruturas de nossos
órgãos sensoriais não têm forma própria fora daquela que lhes atribuímos. Enquanto forem um
processo fragmentário de um todo indissociável, sua existência objetiva não passa de um
embuste: traduz somente a nossa tendência a fracionar o real.
Uma outra observação mostra-nos que o sonho se dissipa com o despertar, quando são
reencontrados, idênticos, o leito, o quarto, todo o contexto no qual adormecemos. Há no estado
de vigília uma permanência e uma continuidade que faltam ao sonho.
Ora, examinadas um pouco mais atentamente, essa permanência e essa continuidade mostram ser
apenas um engodo. Sabemos que as moléculas que sonhos és tu mesmo que és projetado sobre a
tela de tua própria consciência, tu mesmo ainda que, na vida desperta, te projetas sobre a tela
dessa mesma consciência. Compreende que é pura consciência e encontra, o mais depressa
possível, o plano da suprema felicidade" .
(La Doctrine Secrete de Ia Déesse Tripura, traduzido por Michel Hulin, Fayard).
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O sonhador absoluto
Sob esse aspecto nós mesmos somos o nosso sonho, uma seqüência fantasmagórica imaginada
pela realidade sem nome e sem forma, do mesmo modo que o universo fenomenal, com seus
inúmeros acontecimentos e criaturas, não é outro senão o único Brama-sem-um-segundo
sonhando ser infinitamente múltiplo, diversificado, dividido.
Consideremos a questão sob outro ângulo. Se o meu ser essencial, o único autenticamente real, é
absoluto, deve necessariamente revestir e produzir, por sua natureza infinita, todas as formas
concebíveis e todos os mundos possíveis. Esquecer sua verdadeira natureza perder-se no Dédalo
terrível do eu e do outro, da vida e da morte, da mudança e da diferenciação, em outras palavras,
parecer ser outra coisa que não o um-sem-um-segundo, tudo isso intervém forçosamente num
momento qualquer do desenvolvimento cósmico, assim como devem obrigatoriamente sobrevir o
destino, as circunstâncias, o instante preciso que estou vivendo neste mesmo segundo. Isso quer
dizer que sou o absoluto, não posso ser outra coisa senão o que sou exatamente - com a opressiva
sensação de isolamento, de separação, de limitação e de angústia do meu fim inelutável. Como o
absoluto seria o absoluto se não incluísse também, integralmente, essas experiências, incluindo a
convicção de ser outra coisa além do absoluto?
Uma passagem de Alan Watts ilustra soberbamente essa afirmação: "Que aconteceria se eu
tivesse o poder de sonhar cada noite o que desejasse? Começaria por satisfazer meus desejos mais
evidentes: inventaria palácios, daria banquetes escutando música e apreciando bailarinas, faria
amor como nunca e teria jardins luminosos perto de lagos ocultos por montanhas. Viriam depois
longas conversas com os sábios e a contemplação de obras de arte admiráveis; ouviria e tocaria
música, viajaria por todo o mundo, voaria pelo espaço e contemplaria as galáxias. Mergulharia no
coração do átomo para ver redemoinhar os eléctrons. Mas gostaria de estimular um pouco a
aventura sonhando, por exemplo, com uma perigosa escalada de montanhas ou ainda que salvo
uma princesa das garras de um dragão, ou, ainda melhor, atirar-me-ia num sonho imprevisível
onde não saberia nada do que me iria acontecer. Daí por diante minha audácia só faria aumentar.
Poderia, então, sonhar com vidas completas, comprimindo setenta anos no espaço de uma noite,
ou sonhar que não sonho absolutamente, que não despertarei jamais, que me perdi completamente
nos labirintos do espírito. Por fim, seria acometido de tal angústia que o alívio do despertar seria
mais maravilhoso que o mais maravilhoso dos sonhos.
Compreende-se então, perfeitamente, que meu eu profundo poderia imaginar minha situação
particular atual e minha própria personalidade: o mesmo sucederia com todo o mundo, pois, em
nossa hipótese, o eu profundo de cada um está no coração de todas as pessoas. Toda alteração,
toda dualidade, toda multiplicidade fazem parte do jogo. A lição a extrair disso é que uma
reflexão, partindo de meus sonhos mais ingênuos para explicar o universo e passando por uma
tentativa de imaginar tão claramente quanto possível a natureza da beatitude eterna, vai
encontrar-me desejando estar precisamente onde estou! Sem contar que todas as queixas contra
os sofrimentos passados ou presentes podem ser varridas e transformadas em felicidade: basta
acordar para achar que o eu profundo deliberadamente sonhou tudo isso e que é parte integrante
do prazer que o eu experimenta eternamente”. (Alan Watts, Etre Dieu, Denoel)
39
Ser - Consciência - Beatitude
No limite extremo de toda conceituação e de toda formulação, a indizível realidade do Eu é
tradicionalmente apresentada como puro ser (Sat), pura consciência (Chit) e pura beatitude
(Ananda).
Essa trindade Sat-Chit-Ananda marca o último limite, além do qual as palavras e os pensamentos
devem apagar-se para ceder o lugar à indescritível e imediata experiência do Despertar.
Quando essa espécie de terminologia é utilizada, temos geralmente a impressão de que se trata de
dimensões estranhas e sobrenaturais, de esferas superiores e celestes, completamente acima do
comum dos mortais e reservadas a umas poucas personagens extraordinárias. Não devemos
esquecer que procuramos, ao contrário, uma realidade infinitamente próxima e íntima, e é a nossa
experiência corrente que devemos explorar para procurar compreender a que correspondem
expressões como Sat – Chit - Ananda - ser-consciência-beatitude.
Isso é
Quando digo, “isso é um cachorro, isso é uma árvore, isso é uma casa, isso é um carro”, ou ainda,
“isso é grande, isso é maravilhoso, isso é perigoso, isso é terrível", ou mesmo "sou jovem, sou
velho, sou alegre, sou triste, estou em forma, estou doente, estou na França, estou na Índia", os
verbos ser/estar dizem respeito a uma realidade idêntica e comum a todos os processos
designados.
Pode-se afirmar que tudo é diferente, que tudo muda, que tudo é relativo, salvo esses verbos, com
a condição de não lhes adicionarmos nenhum complemento, nenhuma qualificação: isso é,
simplesmente. Quando aplicado a qualquer coisa definida - objeto, acontecimento, estado
psicológico -, o verbo ser é arrastado no turbilhão das metamorfoses e da multiplicidade.
Para perceber essa retaguarda onipresente de todos os fenômenos, basta sublinhar o verbo ser:
isso é a lâmpada, é a chuva, é a tarde etc. Quaisquer que sejam sua natureza ou dimensão, as
coisas e as circunstâncias surgem rapidamente como as formas acidentais, ou melhor, como a
desordenada agitação vibratória desse ser único e imutável - as vagas do oceano.
Este ser do vedanta (Sat) não tem relação com o conceito filosófico de ser, ao qual se opõe o
conceito contrário e simétrico de não-ser. Nessa perspectiva o nada não tem sentido, pois,
atribuindo-se a ele alguma realidade, dizendo que o nada "é", ainda se faz com que ele participe
do ser. Não se pode excluir nada do ser, nem mesmo o nada.
Em termos de dualidade, o mais correto é falar em manifestado e não-manifestado. Nossa
experiência é uma contínua passagem de um a outro, uma incessante aparição-desaparição de
acontecimentos, emoções e pensamentos. O não-manifestado (por exemplo, o desconhecido, o
inacessível, o indeterminável) não deve ser assimilado ao nada. Escapa, simplesmente, às nossas
faculdades de percepção e entendimento. Mas ele é, como o manifestado.
O último sujeito
Esse puro ser (Sat) não é dissociável da pura consciência (Chit). Na verdade, os dois termos são
apenas um.
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Todos os fenômenos fisiológicos e psicológicos percebidos, sentidos, concebidos, imaginados são
formas ou seqüências ao mesmo tempo do ser e da consciência.
Na Índia, essa consciência, que nada tem a ver com uma simples faculdade mental, costuma ser
chamada de o Último Sujeito.
Partamos da observação mais imediata: todo processo consciente implica uma relação sujeito
objeto: aquele que percebe, concebe, registra - o sujeito; e aquele que é percebido, concebido,
registrado - o objeto. Quaisquer que sejam os meus pensamentos há sempre alguém que os pensa,
uma espécie de eu - mesmo invisível, misteriosamente escondido, enrolado em espiral atrás de
todos os outros eus. Assim que procuro agarrá-lo, já o vimos, sou arrastado numa fuga interior
vertiginosa: eu penso que eu penso que eu penso, eu sei que eu sei que eu sei etc. Se não
houvesse um eu fundamental, um eu mais eu que os outros, o eu de todos os eus, se não existisse
o Último Sujeito, que não pode ser o objeto de nenhum sujeito, o desdobramento do sujeito não
teria fim - eu penso que eu penso que eu penso... - e a experiência consciente, tal como a
vivemos, seria impossível.
Toda tentativa de definir essa pura consciência, de identificá-la com o que quer que seja, é uma
maneira de converter' o Último Sujeito em objeto mesmo quando o identificamos com o absoluto
ou a transcendência.
"Como é possível que essa Consciência se revele? (...) Até o presente sempre houve uma
distinção entre o sujeito e o objeto. Há o 'eu' e eu tomo consciência de alguma coisa. Mas quem
toma consciência do sujeito? E, entretanto, esse sujeito é vossa realidade essencial. Se esse
sujeito não existisse, não existiria nada. Mas como atingi-lo, esse sujeito em estado puro? Pois
haveria ainda dois: eu, que procuro ter consciência de Deus em mim, ou do Reino dos Céus em
mim, ou do Atma em mim. Seria ainda dualidade. Não será a experiência fundamental, na qual
não há mais dualidade, não há mais um que conhece e um conhecido, mas unicamente a pura
Consciência ou o puro Sujeito. Portanto, a tentativa de tomar consciência de alguma coisa outra
que não eu, em um momento, deve cessar. Já não há consciência de outra coisa que não eu. Há o
que os hindus chamam o Eu, eis tudo; e isso é a grande revelação, a realidade fundamental, o
substrato, o fundamento de tudo aquilo que podeis perceber fora de vós e em vós." (Arnaud
Desjardins, Le Vêdanta et I'Inconscient, La Table Ronde)
Esse Último Sujeito não pode ser submetido à dualidade, comportar o contrário, sem que
imediatamente se torne objeto. Está, pois, além de todas as duplas de opostos a começar pelo eu e
o mundo, o interior e o exterior etc.
Por outro lado, e este ponto é importante, o Último Sujeito não pode ser senão o objeto, senão a
infinita diversidade dos objetos, pois isolá-lo ou diferenciá-lo seria ainda qualificá-lo, portanto
reduzi-lo à condição de objeto.
"É no interior do Eu que se desenrola a imagem do universo. Onde mais poderia ela fazê-lo, dado
que nada existe fora Dele? Na ausência da consciência pura nada pode existir, em lugar algum. A
idéia mesma de um 'lugar' do qual a consciência estivesse ausente é contraditória”. (La Doctrine
Secrete de Ia Dé esse Tripura, op. cit.).
A felicidade permanente
O puro ser (Sat) e a pura consciência (Chit) são uma realidade única, inconcebível, perfeita: não
se pode acrescentar nada a ela, não se pode nada retirar dela. É o Isso (Tat) da célebre fórmula:
Tu és Isso.
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Diz-se também, dessa realidade, que ela é pura beatitude (Ananda).
Essa felicidade não tem comparação equivalente com os habituais prazeres e satisfações, pois
trata-se de uma plenitude sem causa e sem objeto, de uma felicidade para além das contradições e
da dualidade. Todos os nossos sucessos são forçosamente passageiros, frágeis; quanto mais
intensos, mais o nosso medo de perdê-los suscita angústia e conflito. Não há um momento de
prazer ou de exaltação ao qual não suceda um período de tensão, de frustração ou de
aborrecimento. "Olhemos de mais perto. Enganados pela satisfação que os objetos nos
proporcionam, constatamos que eles provocam saciedade e mesmo indiferença, satisfazem-nos
em um momento, levam-nos à não-carência, devolvem-nos a nós mesmos, mas depois nos
enfastiam: perderam sua magia evocadora. A plenitude que sentimos não se encontra neles; é em
nós que ela habita; durante um instante o objeto tem a faculdade de suscitá-la, e concluímos
falsamente que foi ele o artesão dessa paz. O erro consiste em considerá-lo uma condição sine
qua non dessa plenitude.
Nesses períodos de felicidade ela existe por si mesma, nada mais que disso. Em seguida,
referindo-nos a essa felicidade, nós lhe sobrepomos um objeto que, segundo nós, foi a sua causa.
Portanto objetivamos a felicidade. Se verificarmos que essa perspectiva na qual nos engajamos
não nos pode trazer senão uma felicidade efêmera, que é incapaz de assegurar-nos essa paz
durável que se situa em nós mesmos, compreenderemos enfim que, no momento em que
alcançarmos esse equilíbrio, nenhum objeto o terá provocado. O último contentamento, felicidade
inefável, inalterável, sem motivo, encontra-se sempre presente em nós, estando apenas
encoberto.”(Jean Klein, La Joie sans Objet, Mercure de France)
Essa pura beatitude, Ananda, não é outra senão o puro ser, Sat, e a pura consciência (Chit).
Revela-se espontaneamente quando a dualidade se dissipa (amo-não amo, é necessário-não é
necessário, é agradável-desagradável) especialmente no bem-estar integral do sono profundo.
É uma felicidade absoluta, que não tem começo nem fim e não depende de nenhuma
circunstância exterior. É o estado próprio da realidade quando desapareceu a ilusão da
separatividade, a angústia do eu e do outro.
"Um cosmos que não exprime fundamentalmente a alegria e a beatitude não poderia fazer outra
coisa senão se auto destruir desde o início, pois não teria a menor razão para persistir em seu ser.
Para conservar esse estado de beatitude, a consciência infinita deve empregar os meios criadores
mais engenhosos a fim de suplantar a monotonia, combinando a ordem e o acaso de tal maneira
que a ordem não se tome esclerose e o acaso caos.
Nesse sentido, nossa deidade hipotética manteria seu prazer criando a experiência da altenância.
Essa sensação, entretanto, não deve tomar-se muito grande. Quando isso acontece, a surpresa
transforma-se em frustração, o medo em pânico. No decorrer de tal crise, meu eu profundo deve
ter o poder de lembrar que esse jogo é o seu, que a alternância é Maya. É então de outra maneira
que ele acordaria, espantado com suas próprias dimensões cósmicas e eternas.”(Alan Watts, Etre
Dieu)”.
A realidade ser-consciência-beatitude (SatChit-Ananda) é que eu sou, verdadeira e
absolutamente, o que sou no mais íntimo de mim mesmo, aqui e agora e durante toda a
eternidade; sou no sentido em que Cristo dizia: "Antes que Abraão fosse, eu sou!"
O incognoscível
42
A grande questão, que não cessou de importunar ou mesmo torturar gerações de pesquisadores
espirituais, na Índia e noutros lugares, é a de como obter o conhecimento desse incognoscível,
como perceber o que está além de toda palavra, de todo conceito, de toda ação, além mesmo de
mim e do outro, como executar o que está além de toda execução. Há aí um pungente paradoxo,
quase um desafio absurdo, impossível de elucidar.
Como eu, ocidental deste fim do século XX, com meus problemas, meus condicionamentos,
minhas emoções, com um sentimento geralmente exacerbado de minha própria pessoa, seus
desejos e limites, como posso esperar atingir essa realidade que me dizem ser a minha, essa
fabulosa promessa da qual estou tão desesperadamente distanciado em minha prisão de impulsos,
medos e cobiças?
Os antigos textos são, a esse respeito, absolutamente claros e pouco encorajadores:
“O olho não chega até aí”,
O ouvido não chega até aí, nem a mente.
Não sabemos, não percebemos como se pode ensinar aqui.
Certamente, isso difere do conhecido.
Isso provém do desconhecido.
Imagina-o bem aquele que não tem idéia sobre ele;
Não o conhece, aquele que tem uma idéia dele.
Aqueles que compreendem não o conhecem;
Aqueles que não raciocinam conhecem - no.”
(Kena Upanishad, 1-3; 2-3, Courrier du Livre)
Em seus comentários, Shankara destaca, por sua vez, o paradoxo: - “Sendo Brama o Conhecedor
absoluto, conhece todas as coisas, mas não pode tornar-se, ele mesmo, objeto de seu próprio
conhecimento, do mesmo modo que o fogo pode' queimar todas as coisas, mas não a si mesmo.
Por outro lado, não se pode dizer que Brama seja um objeto de conhecimento para outro que não
ele mesmo, pois fora dele não há nenhum conhecimento (00') Aquele que pensa que Brama é
compreendido não o conhece absolutamente. Brama é desconhecido para os que o conhecem e
conhecido para os que o desconhecem" .
Tudo isso parece, à primeira vista, discussões intelectuais bastante estéreis e sofisticadas. O que
se visa, no fundo, é demonstrar precisamente a impotência do intelecto na etapa decisiva da busca
espiritual e metafísica.
A questão permanece, pois, inteira, mas de qualquer modo não receberá resposta formulável. Na
verdade não receberá resposta alguma, na medida em que a própria questão desaparecerá como
fumaça na absoluta transparência de Brama.
Capítulo IV
Ser Deus
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Porquê
Os pensadores ocidentais procuram sempre uma chave oculta, um significado e uma motivação
suprema que expliquem a natureza das coisas, do universo e da humanidade. Mesmo
proclamando que o mundo é absurdo, um simples produto do acaso, um acidente químico, ainda
lhe atribuímos um sentido: negativo.
Aos olhos dos orientais, uma tal conduta é extravagante, pois não pode ter significado fora
daquele que a concebe. Nenhuma idéia pode ser exterior e anterior ao espírito que a anuncia. A
realidade original, de onde procede o conjunto dos fenômenos observáveis e das concepções
possíveis, está, portanto, além do senso e do contra-senso, além de uma finalidade ou de uma
ausência de finalidade.
Sobre isso os sábios da Índia estão muito longe dos filósofos e teólogos ocidentais, que durante
séculos se obstinaram em elucidar o porquê da criação, como se a interrogação pudesse ser
extraída e isolada da consciência que interroga. Chega-se assim a uma deprimente sucessão de
perguntas e respostas, do gênero: "Por que o mundo existe? Porque Deus quis. Por que Deus
quis? Porque Ele é Amor. Por que Ele é
Amor? Porque é Deus. Por que Ele é Deus?... Porque... "
As crianças têm uma grande predileção por essa espécie de diálogo ao qual os pais costumam pôr
fim, irritados: "Vá brincar! Você compreenderá mais tarde!.. " Eles mesmos, claro, estão longe de
compreender.
Para o vedanta, o porquê das coisas está necessariamente ligado à relatividade, quer dizer, às
aparências e a Maya. No plano do absoluto não há mais por quê, pois não há mais um eu
separado que possa fazer a pergunta.
Como o Um se torna múltiplo?
O campo de investigações do pesquisador hindu refere-se mais à maneira como a inefável
realidade do um-sem-um-segundo produz a dualidade, a multiplicidade, as diferenciações e as
limitações do mundo fenomenal.
Na concepção judaico-cristã corrente, Deus constrói o universo, definitivamente, tal como um
artesão amassa a argila para confeccionar um vaso ou como um supertécnico fabrica uma
máquina hipercomplexa. Para o Oriente, a criação não tem nem começo nem termo definitivo, ou
melhor, ela começa e termina indefinidamente, a cada segundo.
Certamente há ritmos e ciclos. Assim, nosso cosmos, que apareceu há alguns milhares de anos,
deverá desaparecer um dia em conseqüência de uma dissolução geral, mas um outro processo
cósmico virá substituí-lo e assim sucessivamente, até o infinito; esses períodos de manifestação e
não-manifestação são comparáveis à alternância dos dias e das noites ou da vida e da morte.
Dito isso, o fundo do problema - como o Um se toma múltiplo? - diz respeito a uma realidade
atual, absolutamente imediata e constante. Não se trata de um processo excepcional, que se teria
produzido num passado hipotético, fabulosamente recuado (como o Gênese do Antigo
Testamento), mas de alguma coisa que acontece sem cessar, imediatamente, no âmago de nosso
ser e da manifestação inteira.
No seio mesmo da unidade primordial, da perfeita não-dualidade, ao mesmo tempo plenitude e
vacuidade indescritíveis, surge um impulso criador, uma vontade de vir-a-ser, de tomar nome e
forma. Esse impulso criador é o formidável poder, a prodigiosa energia que movimenta o espaço44
tempo, acende a fornalha dos sóis, anima a efervescência vibratória da matéria, os turbilhões de
átomos e galáxias e depois secreta a vida e difunde a inteligência.
O Senhor dos Mundos
Esse insondável poder é chamado Ishvara. Simboliza o aspecto dinâmico e personalizado de
Brama quando este é considerado o criador universal.
Ishvara é o senhor dos mundos, a origem e o fim, o alfa e o ômega, o germe inicial e o último
ponto de reabsorção. Representa assim o ato - sonho ou jogo - pelo qual o um-sem-um-segundo
suscita a dualidade.
Os poderes de Ishvara e de Maya são apenas um. É o limiar onde a absoluta perfeição, cessando
de ser auto-suficiente, inventa, projeta, exprime. É o momento em que começa o diálogo do vazio
e do pleno, do interior e do exterior, do centro e da periferia, em que os corpos celestes se atiram
no abismo, perseguindo-se a si mesmos em círculos gravitacionais desenfreados, em que as
células, dividindo-se infinitamente, tornam-se uma multidão de outras para serem ainda elas
mesmas, em que a consciência, fugindo da paz de seu próprio silêncio imutável, identifica-se com
miríades de eus ruidosos e contraditórios.
Ishvara é o "eu" do "eu sou", que se afirma em cada existência fragmentária, em cada criança que
nasce, em cada criatura viva encadeada aos seus desejos e medos de entidade isolada.
Ascender a Ishvara é reencontrar a fonte, o denominador comum, a origem de toda vida e de
toda manifestação. Ascender a Ishvara, o supremo Senhor, é ascender ao "eu" criador primordial
e universal, além do qual somente há não-dualidade, Brama, sem eu nem outro.
Ishvara, o divino Eu cósmico, engendra neste instante e ao mesmo tempo milhares de sistemas
planetários, de nebulosas, de campos eletromagnéticos e inúmeras combinações orgânicas e
psíquicas que formam minha própria pessoa.
De certa forma, posso afirmar tranqüilamente que eu sou /shvara, com a condição de não reduzir
o Senhor à fina película de lembranças e motivações a que chamo normalmente "eu".
A propósito, a maneira como me empenho para produzir, segundo após segundo, meu corpo,
meus pensamentos, minhas emoções é tão misteriosa quanto à existência continuamente renovada
do universo "exterior". Quando percebo a que ponto minha pessoa está indissoluvelmente ligada
ao seu ambiente, devo começar a suspeitar que uma mesma energia compõe e engendra tudo.
Criador, preservador, destruidor Ishvara é, tradicionalmente, representado sob um triplo aspecto
que exprime o ritmo temário de todo fenômeno relativo, de todo processo manifestado.
Com efeito, todo ser, objeto ou acontecimento submetido ao vir-a-ser deve ter um começo, um
meio e um fim, um nascimento, um desenvolvimento e uma morte, uma aurora, um zênite e um
crepúsculo. Essas três fases, universalmente observáveis, são simbolicamente representadas pelas
seguintes divindades: Brama, o criador, Vishnu, o preservador, Shiva, o destruidor.
Trata-se de uma trindade, quer dizer, de um mesmo dinamismo global visto sob três ângulos
complementares: o término de um ciclo é igualmente o início de um outro, toda criação
implicando uma destruição, a substituição do antigo pelo novo; toda preservação pressupõe
criação e destruição, produção e uso de energia. Esse ritmo ternário é perceptível no plano mais
cotidiano e mais íntimo: por exemplo, inspiro, retenho o ar, expiro. Ele está no coração da sílaba
sagrada AUM.
45
A vogal A, que é o som mais espontâneo, mais aberto, traduz bem a fase inicial: é a primeira
exclamação, o apelo primordial, o grito da criança que acaba de nascer.
A vogal U constitui um som intermediário, mais fechado, mais defensivo, feito à imagem de um
mundo que se estabiliza e se preserva.
O M final exprime o declínio, o último suspiro do moribundo.
A sílaba AUM simboliza, globalmente, o conjunto da manifestação - como, aliás, os três estados
vigília, sonho e sono profundo, e, mais' além, até mesmo o silêncio que sustém a sílaba, a
realização do Eu.
Observe-se que, invertendo a sílaba AUM, obtém-se o MA, que em todas as línguas designa a
mãe. Foneticamente, "Ma" está próximo de moi (me, mim) ou do inglês mine (meu, minha). Há
também um parentesco fonético entre AUM, amém, alma, homem e am, do inglês I am, eu sou.
O Dançarino Divino
Aos olhos dos hindus, a criação divina assemelha-se menos à obra um pouco estática de um
ceramista ou de um escultor do que ao gesto de um dançarino.
As miríades de estrelas, de criaturas, de acontecimentos que formam a trama cambiante do
mundo fenomenal são os incontáveis gestos maravilhosamente sincronizados, a extraordinária
sarabanda eletromagnética do fabuloso dançarino com milhares de braços, de pernas e de rostos.
Trata-se de uma criação contínua, a infinita coreografia executada pelo Senhor mesmo.
"Da mesma forma que o homem torna-se dançarino no momento em que começa a dançar, o
Brama não-qualificado, não-manifestado, manifesta-se primeiro sob uma forma infinitamente
sutil, depois um pouco mais grosseira, depois ainda mais grosseira, e todos os planos da criação
começam a ser, ou melhor, a vir-a-ser, pois que tudo está em constante movimento. Se o
dançarino se imobiliza em cena, não é mais um dançarino, torna-se uma estátua. Deus não cessa
de dançar, caso contrário à criação pararia. O que é 'real' num espetáculo de dança? Não é a dança
e nem mesmo o dançarino, mas sim o homem. Se a dança for suprimida, o dançarino será ao
mesmo tempo suprimido, mas o homem que temos sob os olhos continuará. A idéia de que Deus
possa desaparecer afigura-se incompreensível à mentalidade ocidental comum. Deus criador
desaparece ao mesmo tempo em que sua criação. Se Deus cessa de criar, o Deus criador
desaparece. Mas a realidade suprema, o não-manifestado, continua e não pode
desaparecer”.(Arnaud Desjardins, Pour une Mort sans Peur, La Table Ronde)
Enquanto for uma sucessão de acontecimentos orgânicos e psíquicos, eu sou uma pirueta, um
piscar de olhos, uma furtiva e minúscula figura executada pelo divino dançarino. A mão abre-se:
eu nasço; ela traça alguns movimentos de acordo com uma cadência bem específica: cumpro meu
destino; o punho fecha-se: eu morro. Esse gesto particular termina, mas a dança e o dançarino
continuam. Enquanto gesto - minhas sensações, minhas emoções, meus pensamentos, minha
história individual - sou apenas uma pulsação efêmera, imperceptível estremecimento. Enquanto
dançarino, sou eterno, imutável, onipresente.
A dança não tem nenhum sentido, nenhuma finalidade - apenas o prazer gratuito de dançar, a
satisfação maravilhada do dançarino.
Deus não é sério
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No Ocidente Deus é levado terrivelmente a sério, chegando mesmo ao trágico. Quando falamos
dele, usamos um tom grave, enfático, às vezes ameaçador, com mímicas consternadas ou um ar
de mártires. Entretanto, existem no misticismo cristão fórmulas como "um santo triste é um triste
santo" ou "que meu júbilo permaneça". Mas nossa impressão geral no tocante ao domínio
espiritual é compassiva, tensa, sinistra: quanto mais nos aproximamos de Deus, menos somos
naturais, descontraídos, espontâneos. É preciso reprimir os impulsos, bater no peito e cobrir a
cabeça com cinzas a fim de expiar o pecado original e fazer-nos perdoar pela paixão do
crucificado.
Nossa primeira imagem do divino, aquela que assombra a nossa infância e incomoda o nosso
inconsciente coletivo há gerações, é a visão de um Deus que sofre, que é torturado para a
redenção dos nossos pecados. Face a esse Deus - Pai ou Filho -, estamos numa posição de
criminosa culpabilidade.
Por outro lado, como criaturas, estamos vertiginosa e desesperadamente separados do criador.
Tudo isso não induz, absolutamente, a explosões de riso.
Se esse Deus onipotente e absolutamente sério constrói um universo bem distinto dele mesmo,
sua obra é, então, uma catástrofe mortal e delirante, um encadeamento de fracassos, frustrações e
horrores.
Na Índia as noções de alegria e humor divino são capitais. A própria criação é sempre comparada
à brincadeira sem fim de uma criança enlevada. É o que os hindus chamam o Jogo (Li/a) do
Senhor. "Se, como Dante sugere”, escreve Alan Watts, "os hinos que glorificam a Santa Trindade
se assemelham ao riso do universo, qual teria sido a graça que o provocou?" (Etre Dieu)
O jogo divino
Essa idéia de um jogo cósmico e metafísico é uma das chaves do hinduísmo. Do ponto de vista
do Jogador, nada é definitivamente trágico. Mas, para que o deslumbramento nunca seja
desmentido, para que o interesse pelo jogo se mantenha continuadamente, é necessário que haja
risco, incerteza, renovamento, efeito de surpresa, possibilidade de ganho e perda, aparência de
tensão e de conflito. Para que o jogo seja verdadeiramente apaixonante e convincente, é
necessário que o jogador esqueça que está jogando, que se deixe levar pelo encanto e
contradições da partida.
Essa Lila do Senhor é, portanto, igualmente Maya.
No fundo, porém, o jogador sabe perfeitamente que se trata de um jogo - o jogo do eu e do outro,
o jogo da vida e da morte, do prazer e da dor, do bem e do mal, do conhecido e do desconhecido,
do acaso e da necessidade. A qualquer momento o Jogador pode dizer: "Não há nada a temer,
tudo isto é um jogo". Então seu semblante se ilumina e ele tem o sorriso do Buda, de
Ramakrishna ou de Ramana Maharshi.
Mas, quando se absorve em seu jogo, o Jogador identifica-se com a partida - com as inúmeras
partidas jogadas simultaneamente -, confunde-se com os milhares de acontecimentos, de objetos,
de criaturas fugazes que formam a trama do mundo fenomenal.
"Minha majestade, ó sábio, é sem limites. Sem depender do que quer que seja, Eu, a pura
consciência indivisa, fulguro sob a forma dos mundos infinitos. E, manifestando-Me sob essa
forma, não infrinjo a Minha natureza de consciência estranha a toda dualidade. Minha majestade
reside, antes de tudo, no cumprimento deste prodígio: suporte de todas as coisas, presente em
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todo lugar, continua retirada do mundo. Enganada por minha própria Maya, desconhecendo-Me a
mim mesma, Eu transmigro desde os tempos imemoriais; depois, tornando-Me discípula de um
mestre, reconheço-Me novamente. Embora eternamente livre, devo libertar-Me novamente sem
cessar. E de novo Eu recrio, semelhante a ela mesma, a infinita diversidade do universo, sem
recorrer a nenhum material. Tais são os múltiplos aspectos de Minha soberana majestade. A
marcha do mundo inteiro, esse imenso desenrolar de acontecimentos, revela apenas uma ínfima
parte dela." (La Doctrine Secrete de ia Déesse Tripura)
Um poder mágico ilimitado
Essa perspectiva é um pouco difícil de compreender para um ocidental, na medida em que
imaginamos sempre um Deus onisciente, onipotente, exercendo sobre o universo um controle
total, um domínio absoluto, quer dizer, a imagem de um ego hipertrofiado ao infinito, de uma
vontade inteiramente rígida e tensa, aferrolhada em seus próprios esquemas e princípios,
encadeada no seu próprio imperativo de tudo regulamentar - o contrário de uma espontaneidade
criadora, inebriada com suas próprias descobertas.
Considerando a questão sob outro ângulo, se tivéssemos um poder mágico limitado, a
possibilidade de satisfazer instantaneamente aos nossos desejos mais sublimes, mais terríveis,
incomensuráveis, com total certeza de cada resultado, não tardaríamos a defrontar-nos com a
monotonia e o tédio. O que seria, em suma, bastante deprimente.
E, naturalmente, seríamos conduzidos sempre graças ao nosso poder mágico - a inventar
obstáculos, armadilhas, engodos, ou seja, a suscitar o inesperado, o imprevisível, o incontrolável.
Uma criança que brinca, por exemplo, de amarelinha ficaria mortalmente aborrecida se chegasse
da primeira vez e sem errar à última casa. A ignorância da etapa seguinte, a incerteza do amanhã,
os riscos de contratempos e de fracassos são as condições indispensáveis para manter o
entusiasmo do Jogador e a atração pela partida.
É exatamente assim que se desenvolve a nossa existência. Noutras palavras, tudo se passa como
se tivéssemos efetivamente esse poder mágico ilimitado de satisfazer aos nossos desejos e como
se, para tornar mais interessante todo o processo, nos entretêssemos forjando uma rede
incrivelmente sutil e ramificada de regras espaciais e temporais, de limitações orgânicas e
psíquicas, um campo vibratório admiravelmente complexo de dados incontroláveis e parâmetros
imprevisível, incluindo a hipótese de nossa própria destruição final.
Através da prodigiosa diversidade de partidas iniciadas, ganhas e perdidas, o Jogador permanece
como tal, eternamente idêntico a si mesmo, guardando eternamente intacto seu potencial de
surpresa.
O jogo do eu e do outro
No plano do fenômeno humano e do processo individual, o Jogador joga para ser Eu, uma
incalculável miríade de Eus que aparecem, desaparecem e reaparecem sob formas e situações
incessantemente diferentes. Joga assim para ver-se a si mesmo através de inúmeras bocas, fazerse amor através de inúmeros corpos, recordar-se de si mesmo, comover-se, pensar-se, imaginarse através de inúmeros psiquismos, esquecer-se e apagar-se através de inúmeras mortes, para
poder recomeçar-se através de inúmeros nascimentos.
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E todos esses eus que aparecem, tremulam e definham na superfície de seu ser, todos esses
reflexos que se iluminam, piscam e se extinguem na luz de seu olhar não são outras coisas senão
o seu ser, o seu olhar.
"Os brancos devem ganhar!”
Essa perspectiva metafísica esclarece particularmente o lancinante problema do Bem e do Mal.
Na maior parte das teologias ocidentais, Deus é identificado (e por isso mesmo limitado) com o
Bem absoluto, inocentado de todo mal, cuja responsabilidade recai apenas sobre a criatura, que
escolhe livremente o caminho da mentira e do crime.
Esse ponto de vista acarreta paradoxos opressivos e intransponíveis: se Deus não "desejou" o
mal, como pôde modelar um mundo imperfeito e criaturas corruptíveis? Ou então é preciso
admitir que Deus não é esse soberano todo-poderoso, este mestre incontestável; é preciso supor
que divide seu poder' com um dúplice maléfico, o Diabo - e ele deixa, é claro, de ser o Criador
único de todas as coisas.
Encarada dessa maneira, a questão é insolúvel: a despeito das mais belas acrobacias escolásticas,
os filósofos e os teólogos perderam o seu latim. E jamais alguém pôde responder ao terrível por
quê de uma mãe prostrada diante do cadáver de seu filho. Se Deus é infinitamente bom, então sua
obra é um miserável fracasso - malgrado os piedosos discursos sobre "as vias impenetráveis da
Providência".
Tendo lançado a culpa exclusivamente sobre o homem (pecado original), a mentalidade religiosa
egressa da Bíblia precipitou-nos, individual e coletivamente, numa espécie de cruzada
encarniçada visando extirpar, a qualquer preço, o mal do universo. Um tal militantismo inspira
comportamentos cada vez mais constrangedores, empreitadas cada vez mais totalitárias e
neuróticas, que visam eliminar um dos aspectos do real a fim de conservar apenas o outro, como
se pudesse existir o alto sem o baixo, a esquerda sem a direita, o branco sem o negro. "Somos os
filhos, os aliados, os soldados do Senhor. O Senhor é inteiramente branco: exterminemos o
negro!" É evidente que se pode dizer exatamente o contrário, e é o que fazem os satanistas: "O
Senhor é inteiramente negro, o branco é uma ofensa, suprimamos o branco!"
"Em outras palavras, não joguemos o jogo do negro-e-branco, o jogo universal do alto-baixo, do
anda-pára, do sólido-espaço e do cada um-todos, mas o jogo do negro contra o branco ou, mais
habitualmente, do branco contra o negro. Então, não compreendendo que os pólos negativos e
positivos do ritmo são inseparáveis, tememos que o negro ganhe a partida. Mas o jogo do
'.branco-deve-ganhar' não é mais um jogo. É um combate - um combate perseguido por um
sentimento de frustração crônica, pois agir assim é tão tolo quanto procurar conservar as
montanhas livrando-se dos vales. Eis por que há milênios a história da humanidade se reduz a um
conflito tremendamente fútil, a uma parada esplêndida de triunfos e de tragédias fundada sobre
um tabu: o que se opõe resolutamente ao reconhecimento do fato de que o negro e o branco
formam um par. Sem dúvida, não há outro exemplo de um nada que não vai a parte alguma com
uma majestade tão fascinante." (Alan Watts, Le Livre de Ia Sagesse, Denoêl)
Para o vedanta, o antagonismo do Bem e do Mal é apenas um jogo de contrastes, uni efeito claroescuro inerente à natureza essencialmente rítmica da manifestação. Por trás das lutas e das
diferenças há a unidade fundamental do Jogador, o um-sem-um-segundo, o isso dos Upanishads.
O Bem sem o Mal é tão inconcebível quanto, no decorrer de um jogo qualquer, encarar a
possibilidade de ganhar sem aceitar a possibilidade de perder. O único problema é a tendência
49
que tem o Jogador de identificar-se com os ganhos e as perdas assim que, esquecendo que é o
Jogador, se assume como tal ganhador ou tal perde dor. Notemos, entretanto, que mesmo esse
esquecimento faz parte do Jogo.
O ator cósmico
Que são, entretanto, o sofrimento inocente, a doença, a fome, a tortura, as violações, os
massacres,
esse imenso grito ininterrupto de angústia que se eleva, desde a noite dos tempos, do coração da
humanidade enlutada, dilacerada?
A resposta da Índia pode desconcertar-nos ou chocar-nos, mas a visão que ela nos propõe é a um
tempo grandiosa e soberbamente coerente.
Nessa gigantesca fantasmagoria teatral que é o seu Jogo cósmico e metafísico, o Jogador divino
compõe e interpreta ao mesmo tempo todos os papéis concebíveis, do rei, do mendigo, do
mercador, da prostituta, do sábio, do louco, do amante, da amásia, do carrasco, da vítima, do
ditador triunfante e da criança morrendo no incêndio, da vedete famosa e do canceroso incurável,
do oficial alemão agonizando sob os escombros de Estalingrado e do resistente capturado pela
Gestapo, do soldado israelense e do terrorista palestino, do chefe de Estado que é assassinado e
de seu matador, do adolescente que espera seu primeiro encontro amoroso e do velho que não
espera mais nada.
O Jogador interpreta todos esses papéis e o faz com perfeição, quer dizer, de uma maneira
inteiramente crível, sem negligenciar o menor detalhe de encenação: guarda-roupa, acessórios,
cenários, desde as mais longínquas galáxias até os menores átomos. Nesse drama com dimensões
de infinito e de eternidade ele é ao mesmo tempo o autor, o realizador, o ator e o espectador, com
milhares de corpos, semblantes, situações e réplicas. Mas através de todos esses papéis ele não
cessa de ser ele mesmo. Assim como um ator na plena maturidade de sua arte sente um intenso
prazer ao encarnar toda espécie de personagens, os mais odiosos e os mais desesperados, da
mesma forma, é uma felicidade sem igual, uma satisfação extasiada para o divino Jogador
revestir tamanha diversidade de formas e de disfarces mesmo atrozes, monstruosos ou débeis.
Sentidos como realidades absolutas, definitivas, nossos sofrimentos aparecem como a prova da
iniqüidade do Criador ou do despropósito do mundo. Se os situarmos na mobilidade e
interdependência rítmica de um jogo universal, poderemos despertar para outra consciência da
vida e considerar com um olhar novo o que julgamos inaceitável.
Como fica a moral?
Pode-se perguntar, então, como fica a moral: porque as leis, uma ética, sanções e recompensas?
Se Deus é ao mesmo tempo o Bem e o Mal, por que fazer o Bem, e não o Mal? É um fato que
muitas vezes foi censurado no vedanta não-dualista, essa ausência de conteúdo moral: nenhum
critério, nenhuma motivação, nenhuma proteção.
Graves confusões podem nascer de uma compreensão incompleta ou deformada do ponto de vista
hinduísta sobre essa matéria.
O que nós chamamos o Mal está essencialmente ligado ao sofrimento - aquele que sentimos e
aquele que infligimos. Na raiz de todo sofrimento há conflito, contradição entre eu e o mundo,
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entre o que eu desejo e o que acontece. Volta-se a essa estranha ilusão de existir como "eu",
distinto, como entidade isolada, separado.
Em outras palavras, a origem do mal é a Ignorância (Avidya) enquanto expressão psicológica de
Maya.
Enquanto eu me identificar com processos físicos, emocionais ou mentais fragmentários e
transitórios, estarei forçosamente lançado, perdido num universo ameaçador, obrigado a lutar
ferozmente para manter e impor minha" integridade" individual. Donde a necessidade de
conquistar um território, de acumular bens, de interpretar um papel, de afirmarme como um ego
face a um ambiente suscetível de me machucar e me esmagar.
O Mal (ou seja, o sofrimento e os conflitos) é, portanto, uma conseqüência direta e inelutável do
mal-entendido fundamental, do grande embuste que oculta a nossa verdadeira natureza: realidade
única, totalidade indissociável.
A ignorância
Abordando a questão um pouco diferentemente, deve-se observar que ninguém jamais fez o mal
em plena lucidez, com perfeito conhecimento de causa. No momento todos estão sempre
persuadidos de que sua ação constitui a única resposta, a única solução possível o que não exclui,
evidentemente, nem as aflições, nem os remorsos e nem as crises de consciência.
Toda ação moralmente contestável apresenta-se ao seu autor não como uma vontade deliberada
de prejudicar, mas como a escolha de um mal julgado relativo para evitar um mal julgado
insuportável. Mesmo o ato mais bárbaro e mais monstruoso reveste, aos olhos do carrasco, no
instante em que ele o comete, um caráter de legítima defesa ou de imperiosa necessidade. "Ou eu
ou ele... não posso agir de outra forma..." O sentimento de culpa aparece geralmente mais tarde.
Mas pode também surgir durante o ato, pois a pessoa está interiormente dividida, solicitada por
motivações incompatíveis, por eus antinômicos.
Porém a Ignorância (Avidya) não causa somente o Mal - mentira, violência etc. Ela é também a
origem do que é comumente chamado o Bem.
Todo altruísmo implica a busca de um prazer, ao mesmo tempo sutil e intenso, a identificação
com um eu ideal, generoso e sublime que causa, acima de tudo, um considerável reforço do ego.
Na infinita rede de relações interdependentes onde se inscrevem nossos destinos, como saber
objetivamente o que se deve ou não considerar como um bem para os nossos semelhantes? Um
acontecimento considerado a curto prazo como desastroso pode revelar-se, com o passar do
tempo, excepcionalmente benéfico - e vice-versa. Quem pode estar certo de que, ao aliviar uma
miséria, não irá provocar indiretamente uma vicissitude mais feroz?
Se desejamos levantar uma ponta do véu da Ignorância, devemos, antes de mais nada, reconhecer
essa impotência e esse mistério.
Livre do Bem e do Mal
Diz-se do libertado-vivo (Jivan-Mukta) que ele está livre do Bem e do Mal. Pode-se deduzir daí
que tudo lhe é permitido, sem freio nem lei de espécie alguma?
Desde que percebe seu eu real, seu ser profundo como idêntico ao ser de todas as coisas, ele cessa
completamente de identificar-se com um ego separado, em rivalidade mortal com o universo. O
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que ele sentia antes como agressão, ferimento, ofensa, começa a parecer-lhe a modulação de uma
sinfonia universal de que ele é, fundamentalmente, o compositor, o maestro e o intérprete. Ódios,
invejas, intolerâncias, cóleras tomam-se, aos seus olhos, incongruências, absurdos; pois, se eu e
os outros somos apenas Um, todo impulso destruidor equivale a querer mutilar-me a mim
mesmo. Nestas condições, como desejar o "mal" a quem quer que seja? Meu pior inimigo
acredita-se meu pior inimigo apenas porque ignora essa idêntica realidade que sustém e anima
nossos respectivos vir-a-ser. Vou, portanto, tomar-me cúmplice dessa Ignorância que, aliás, é
para ele, antes de tudo causa de sofrimento?
Estamos, assim, muito perto das palavras do Evangelho. Notemos a este respeito que a árvore
fatídica do Gênese, aquela de que não se podia provar o fruto, é a Árvore do Conhecimento do
Bem e do Mal.
O ser anterior à falta, vivendo no eterno aqui e agora da presença divina, é também anterior a
toda dualidade, a toda separação, a toda oposição. Essa unicidade pode chamar-se Amor - o amor
que só faz reconciliar e unificar todos os contrários.
Curado da estranha doença dualista, o sábio está em total adesão com aquilo que é. A paz e a
felicidade que ele irradia são como um voto de ventura ilimitada para tudo o que vive e sofre.
Mas os critérios do homem desperto nada têm a ver com os da mente comum. Ele sabe que a
verdadeira alegria - aquela que permanece - não é, em nenhum caso, tributária de circunstâncias
exteriores favoráveis ou desfavoráveis, que não poderia depender de uma satisfação parcial, de
uma exaltação passageira, de um contentamento provisório; sabe que ela está além da fortuna e
da miséria, da saúde e da doença, do êxito e do fracasso. Sabe também que somente essa alegria é
inalterável e real, todo o resto estando condenado à mudança, à destruição e à morte. O único
bem que ele pode desejar a seus semelhantes é o Bem Supremo, um bem que nada pode ofuscar
ou interromper, nem a dor física, nem os golpes do destino, nem a decrepitude, nem mesmo a
morte, pois que ele não está subordinado nem ao vir-a-ser nem às metamorfoses, um Bem sem
contrário, quer dizer, além do Bem e do Mal. .
Consciente do caráter fantasmagórico dos sucessos e das tristezas, o libertado está em perfeita
comunhão com todas as vibrações do cosmos, com todas as ondas de prazer e de sofrimento que
rolam e marulham na superfície do Oceano. Mas sabe que as ondas são o próprio Oceano e que
esse oceano é um infinito de beatitude.
Na ótica do vedanta, somente aquele que desperta alcança a felicidade, pois renunciou a possuir a
felicidade.
Da mesma forma, somente ele alcança o bem, pois está livre de qualquer pretensão afazer o bem
como ego isolado afirmando-se benfeitor do mundo.
O Bem não é alguma coisa que se possa fazer e impor, pois nesse caso pode-se cair no
constrangimento e no mal. Somente a Ignorância - a grande ilusão do eu e do outro - é que deve
ser dissipada. Então, o Bem-Além-do-Bem, Brama-Sem-Um-Segundo, revela-se
espontaneamente em seu esplendor indivisível.
Mas cada um deve realizar esse despertar sozinho: transforma-te, e a realidade inteira se
iluminará.
O Dharma
A libertação (Moksha) não implica absolutamente um retiro, uma rejeição do mundo e da
sociedade. O libertado não deixa de viver na trama dos fenômenos relativos e dos acontecimentos
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cotidianos. Não se retira obrigatoriamente para uma gruta ou um mosteiro. Ele bebe, come,
dorme; trabalha, têm uma família, amigos, ócios, um conjunto de atividades que requerem
escolha, decisões, linhas de conduta.
Uma das noções mais essenciais da cultura e da civilização hindus é a do Dharma.
"O sentido mais geral que os hindus dão à palavra Dharma parece ser 'ordem cósmica', com todas
as suas conseqüências. A esse sentido se prende aquele em que Dharma representa a vida, sem a
qual a ordem cósmica não pode existir, sendo que ela mesma não pode existir sem a ordem
cósmica. Quando dessa significação universal se passa a aplicação individual, chega-se
naturalmente a ver no Dharma aquilo que faz com que cada coisa esteja em seu lugar e represente
seu papel na ordem cósmica, ou seja, a propriedade característica essencial de cada entidade”.
(Jean Herbert, Spiritualité Hindoue, Albin Miche1)
Esse termo diz respeito, portanto, ao conjunto das leis que devem ser respeitadas, dos deveres,
das obrigações, ao papel de cada um ao longo de sua existência.
Observar o Dharma é responder às situações com um comportamento adequado em função dos
diversos dados históricos, sociais, profissionais, familiares, atávicos, psicológicos que compõem
o ambiente de cada um, o encadeamento particular de causas e efeitos no qual se insere cada
destino particular.
No seio do imenso concerto sinfônico universal, cada um de nós representa, enquanto fenômeno
físico e mental relativo, uma variação sobre um mesmo tema. Esse tema deve ser executado
fielmente, com os acompanhamentos harmônicos, o desenvolvimento rítmico e o tempo
correspondente, sob pena de se cair na cacofonia.
Ainda uma vez, nossa existência é um papel, ou melhor, uma sucessão de papéis sobre a cena do
grande drama cósmico escrito, realizado e interpretado pelo ator divino - nosso eu profundo. A
justa resposta, a atitude adequada, o respeito ao papel e ao cenário consistem, antes de mais nada,
em sentir-se em completa adesão com a situação vivida, quer dizer, não sabotar a peça mudando
o diálogo e descaracterizando o personagem. Ora, é precisamente isso que fazemos sempre que
não aceitamos a realidade, sempre que projetamos nossos desejos e temores sobre o simples
desenrolar da vida, sempre que contestamos e negamos o que é. "Eu quero... eu não quero... É
necessário... Não é necessário..."
A única liberdade
A grande impostura, a armadilha infernal, é nos acreditarmos os autores de nossas ações como
egos mutáveis e distintos.
A multidão de eus transitórios, físicos, emocionais e mentais que ocupa as diferentes seqüências
do meu destino são uma sucessão de réplicas inseparáveis do conjunto do drama. Os papéis não
podem decidir ser ou não ser o que são. Resultam de um encadeamento inelutável. No decorrer
de um dia posso ser sucessivamente motorista, pedestre, apreciador de uma boa refeição, freguês
de uma loja, leitor, amante etc. Nenhum desses desempenhos é deliberadamente escolhido como
tal. Minha existência inteira é um mosaico temporal de papéis, de onde se destacam certas linhas
gerais, certas figuras de conjunto. Há papéis menores, fugitivos, e papéis dominantes. Há papéis
secretos, camuflados, que se escondem sob uma máscara ou disfarçam sua voz todas as
personagens reprimidas e censuradas pelo inconsciente.
Enquanto mantiver a ficção de que sou eu quem decide, de que sou o autor de minhas ações e o
dono do jogo, estarei mantendo a ficção de um ego distinto, de uma entidade isolada, separada,
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dotada de consistência e realidade próprias - daí as tensões, os conflitos, o implacável mecanismo
dos desejos e dos medos.
Em suma, quanto mais eu me acredito livre, tanto mais sou subjugado pelos efeitos perversos de
minha própria ilusão.
O despertado sabe que é absurdo e insensato pretender ter livre arbítrio enquanto fenômeno
individual. Compreendendo e aceitando totalmente essa escravidão, ele atinge uma perfeita
liberdade interior porque, em vez de desejar constantemente outra coisa, além, de outra maneira,
deseja apenas o que é, tudo o que é.
Do seu ponto de vista, a noção de liberdade não tem um sentido fragmentário: um dedo não pode
apontar para o céu se a mão pende para o chão. E devo seguir o movimento da grande mão
histórica, econômica, biológica etc. de quem sou um dos inúmeros dedos. Se endureço, se resisto,
tenho todas as possibilidades de entortar ou quebrar.
Ao contrário, desde que se revela a minha natureza essencial, desde que aparece claramente a
minha identidade fundamental como o divino Jogador, todo esse universo - a começar por minha
própria pessoa - torna-se o Meu Jogo, um jogo maravilhosamente livre e espontâneo. Fico
inteiramente livre, como dançarino cósmico, nas figuras que invento a cada instante e na dança
global, mas onde está minha liberdade, como gesto particular do dançarino?
"Quem, a não ser o sábio, é mais livre que o ator de teatro, inteiramente submetido ao texto
escrito pelo autor e à encenação? O ego do ator fica provisoriamente nos bastidores. O ator não se
identifica com a personagem que representa, está interiormente consciente dessa personagem,
mas livre de seu próprio ego, com o qual se identifica inteiramente fora do palco. Por efeito dessa
submissão completa ao texto e à encenação, por causa mesmo dessa submissão, ele vive durante
duas ou três horas (por menor que seja o seu papel) numa extraordinária e maravilhosa liberdade.
O ator não tem escolha, portanto não tem problemas. É levado pelo texto e pela encenação, e,
como não tem preocupação de espécie alguma com o vir-a-ser - com a condição de ter decorado
seu texto, sem falhas de memória! -, vive rigorosamente de instante a instante, na certeza de que
o momento seguinte será fácil e harmonioso, pois que, parafraseando uma célebre fórmula do
Islã, 'tudo está escrito '.
"O mesmo acontece com aquele que ultrapassou o plano do ego e da mente: para ele a vida
desenrolase como uma peça de teatro, sua adesão à situação é total, de segundo a segundo, e é a
própria situação que, de segundo a segundo, lhe assopra as réplicas e o desempenho, à maneira de
um ponto de teatro. Todo receio, hesitação, dúvida, medo, apreensão desapareceram. O
sentimento calmo e sereno do ator continua, apesar das vicissitudes do papel. No mesmo instante
em que um ator está representando em cena sua traição, sua morte próxima, sua ruína, ele próprio
continua perfeitamente sereno, ainda que seu desempenho emocione os espectadores. Do mesmo
modo, o homem que ultrapassou o plano da motivação individual vive numa paz perpétua, em
decorrência dessa adesão perfeita ao movimento geral do universo. E essa adesão é possível' Eu
faço o que quero' torna-se 'eu quero o que faço'. Não há mais nenhuma apreensão quanto ao
futuro, nenhum temor. Quaisquer que sejam as conseqüências dos atos elas são antecipadamente
aceitas, porque não há nenhum medo, nenhum conflito." (Arnaud Desjardins, A ia Recherche du
Soi)
Nem transe nem êxtase
Qualquer que seja o seu Dharma - comerciante, vagabundo, príncipe, professor, prisioneiro,
doente ou milionário -, o sábio o assume com alegria. Sabe que se trata de um papel concebido
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por seu eu profundo, que compõe e interpreta, ao mesmo tempo, todos os outros papéis, todas as
outras formas do mundo manifestado.
Aliás, somente aderindo inteiramente ao seu Dharma - que é sua própria vida, de segundo em
segundo - é que o pesquisador espiritual atinge a libertação final (Moksha).
A consciência do despertar costuma ser representada como um estado superior, extático. Imerso
numa espécie de beatitude vegetativa, insondável, o sábio estaria afastado das sensações
ordinárias, incapazes de falar ou de agir.
Diversas disciplinas de ascese, notadamente algumas formas de ioga, podem efetivamente
comportar experiências desse tipo, que os hindus denominam Samadhi. "O Samadhi não é, como
às vezes se acredita, a Libertação. É simplesmente um estado de consciência excepcional, no qual
o homem está mais ou menos desligado da influência do mundo exterior e da obsessão do seu ego
e onde pode, por conseqüência, dispor de meios de investigação superiores àqueles que
normalmente utilizamos”. (Jean Herbert,
Spiritualité Hindoue)
Mas o verdadeiro objetivo do caminho vedântico nada tem a ver com transes ou visões celestes
ou com a procura de poderes sobrenaturais. Esses fenômenos, que tanto fascinam os ocidentais,
são consideradas armadilhas e situações difíceis, pois os estados extáticos e os talentos
miraculosos arriscam exaltar o ego e reforçá-lo perigosamente.
Um estado particular, por sublime que seja, ainda está limitado no tempo, tributário de
condicionamentos e fatores determinados. Como ilustração, os hindus contam a seguinte história:
um dia um grande iogue pediu ao seu discípulo que lhe trouxesse água. Enquanto este se
distanciava o mestre imergiu em profundo Samadhi. Assim que saiu do êxtase, vários séculos
haviam decorrido. E ele pediu imediatamente: "Tenho sede. Onde está minha água?" Essas
experiências grandiosas não seriam, de fato, um pouco irrisórias, já que depois se recai nos
mesmos problemas, nas mesmas contradições?
Uma ficção lingüística e social
A Libertação não é nem um estado especial nem uma experiência passageira. Não pode ser o
objetivo de um plano ou de uma técnica, não é algo que se possa adquirir ou ganhar. É isso que
torna terrivelmente paradoxal e quase desesperadora a posição do aspirante: como se pode desejar
não desejar mais? É a quadratura do círculo.
Entretanto, algumas alegorias apontam um modo mais perfeito para a compreensão dessa finali
dade. Por exemplo, a da nudez: todos estamos constantemente nus sob as nossas roupas. Não há
necessidade de fabricar, de inventar a nudez, mas apenas de revelá-la. Não há nada a acrescentar
ao que já é basta tirar a roupa; mas é necessário saber tirá-la. A criancinha firmemente enrolada
por sua mãe durante o inverno é impotente diante de um fecho ecler, botões, colchetes,
suspensórios etc. Na sua falta de jeito, impaciente, consegue apenas abafar-se ou apertar-se ainda
mais.
Outra imagem: se eu sonho que sou um gato e se me perguntam, quando acordo, em que
momento me tornei um homem, eu responderia, evidentemente, que jamais cessei de ser um
homem, que simplesmente sonhei ser um gato. Mesmo se tive em meu sonho a intensa convicção
de ser um gato, reconheço agora a minha verdadeira natureza e sei que jamais fui outra coisa. Eis
por que os libertados-vivos não respondem a perguntas como: Qual é sua idade? Quando nasceu?
De onde vem? etc. Despertados para o ser eterno e imutável que é a única realidade de todas as
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coisas, como poderiam ter nascido, ter uma idade, um domicílio, uma proveniência? Estão em
todo lugar, em nenhum lugar e sempre - aqui-e-agora. Sua posição é análoga à do sonhador que
sabe que está sonhando: quaisquer que sejam as peripécias do sonho, terríveis ou feéricas, ele as
saboreia com deleite, e as seqüências não são para ele nada mais que o filme de sua própria
mente.
Do mesmo modo, como o "eu" se tornou aos seus próprios olhos uma pura ficção lingüística e
social, muitos indivíduos, na Índia, falam de si próprios na terceira pessoa. Notemos que é assim
que se exprimem às crianças muito novas, num período da existência em que a identificação com
o ego não é ainda soberana, em que o "eu" ainda não parasitou completamente a consciência de
ser.
Na perspectiva do Jivan-Mukta, o desenrolar da existência normal não é percebido como "estou
em forma, estou cansado, sinto, penso, faço", mas de preferência "ele tem tal sensação que
aparece e desaparece, tal pensamento que se delineia e se desfaz, tal ação que terminou". Se
continuar a usar o "eu" é por ser apenas uma convenção verbal despida de todo conteúdo
intrínseco, o que denomina tradicionalmente" o estado sem ego" .
O libertado-vivo
Definitivamente desperto para sua verdadeira natureza que é a fonte de toda manifestação, o
sábio engloba ao mesmo tempo e ultrapassa as noções de ordem e caos, de senso e contra-senso.
A realidade não tem necessidade nem de explicação, nem de justificação, nem de qualquer
finalidade. Ela É, simplesmente; e esse ser inefável, perfeito, é auto-suficiente, sem perguntas,
sem comentários nem teorias de qualquer espécie. Há na Libertação uma espécie de evidência
imediata, indestrutível e absoluta, intraduzível em palavras. "É ISSO, é assim, Aum, Amém,
Assim seja”. De fato, nenhuma fórmula pode exprimir o indescritível vivido no despertar.
A liberdade interior é, desde então, absoluta: estabelecida na eternidade do meu eu real, já não
sou dependente das impressões agradáveis e desagradáveis. O medo da morte desaparece por
inteiro, porquanto se torna claro que não posso, essencialmente, nem nascer nem morrer.
Renunciando ao "eu" e ao "meu", renuncio a qualquer espécie de limitação e uno-me ao infinito,
ao passo que a mente normal renuncia continuamente ao essencial para apegar-se a quimeras
decepcionantes.
"Aquele que apaziguou em si toda inquietude relativa ao estado manifestado - que, apesar de
dono de um corpo composto de partes, é ele mesmo sem partes.
Cuja mente está livre de todo temor - aquele é considerado um libertado-vivo.
A ausência de idéias como' eu' ou 'o meu', mesmo nesse corpo vivo
Que o segue como uma sombra - eis a característica do libertado-vivo.
Não se com prazer com a lembrança dos dias felizes do passado - não se atormentar com o futuro
Observar o presente com igualdade - eis as características do libertado-vivo. Seja o espetáculo
agradável ou desagradável, guardar, em todas ocasiões,
A mesma atitude e a mesma tranqüilidade de espírito: eis a característica do libertado-vivo.
Honrado pelo justo ou perseguido pelo injusto, aquele que se mantém sempre
Na mesma equanimidade - aquele é considerado um libertado-vivo."
(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination)
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Vista de fora, a Realização, que marca o desaparecimento das emoções, das paixões, pode
parecer o cúmulo da monotonia, do tédio e da indiferença. Na verdade não é nada disso. Em
íntima adesão com o instante presente, aqui e agora, o sábio percebe a vida como uma prodigiosa
metamorfose, um jorrar de cada segundo. Já não vê o mundo através das projeções da mente e do
inconsciente. Está perpetuamente aberto ao desconhecido, à espontaneidade do real. Portanto, é
uma satisfação e um deslumbramento infinitamente renovados, e cada seqüência da manifestação
relativa tem um sabor único e perfeito.
Livre de todo conceito e de toda referência o Jivan-Mukta não opõe mais o finito e o infinito, o
relativo e o absoluto, a Ignorância e o Conhecimento, não opõe nem mesmo Maya e Brama, ou
servidão e libertação. Ele mesmo não se vê nem como um grande sábio nem como um desperto,
pois não há mais sujeito nem objeto - ninguém para identificar-se com o que quer que seja.
"Nunca nasci, não morro jamais; não há nenhuma atividade em mim, nem boa nem má, nem
sagrada nem profana. Sou o puro Brama, vazio de todas as qualidades diferenciadoras limitantes,
antagônicas. Como pode haver em mim alguma coisa que se assemelhe ao encadeamento ou à
libertação?"
(Avadhuta Gîta, I, 59).
CAPÍTULO V
A PRÁTICA
Somos interessados?
Após estes resumos gerais sobre o caminho do vedanta não-dualista, pode-se perguntar como a
perspectiva libertadora que ele nos propõe pode ser realizada, efetivamente, pelos homens e.
mulheres deste fim de século XX, no contexto da nossa civilização industrial - toda esta
abordagem perdeu o sentido se não for posta em prática ou experimentada diretamente.
O problema é saber se as palavras dos Upanishads e de Shankara interessam apenas a alguns
ascetas dos contrafortes do Himalaia ou se podem igualmente aplicar-se a nós, e como.
O modo de vida e de pensar de um ocidental moderno afigura-se como' o oposto da antiga
sabedoria: obsessão dominadora, agitação patológica, hipertrofia do ego, necessidade exacerbada
de poder e de prestígio, terror exagerado diante da doença, da velhice, da morte e, sobretudo,
infantilidade geral que nos leva a procurar as soluções essenciais fora de nós mesmos, esperando
fórmulas, receitas, sistemas políticos, econômicos, sociais, como a criancinha reclama a sua
mamadeira.
Aliás, entre os imperativos do trabalho cotidiano, as longas horas de transporte, o
embrutecimento audiovisual, um ambiente muitas vezes deprimente e um contexto social
nervosamente arrasador, que disponibilidade verdadeira nos resta para uma busca espiritual, um
roteiro de transformação interior?
Devemos ser bem claros aqui. Quaisquer que sejam a época e a civilização um tal caminho
requer, de início, um desejo pessoal intenso e um empenho profundo que nada têm a ver com
amadorismo ou simples curiosidade superficial. É um trabalho para toda uma vida e uma
preocupação para cada momento. É inteiramente ridículo dizer: "Se eu fizer um pouco de ioga,
ou de zen ou de vedanta, a vida será mais fácil etc. " Se esta busca não se tornar a própria
existência, de segundo em segundo, transformar-se-á num devaneio estéril, fadado ao fracasso.
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É necessário que num momento se imponha à imperiosa necessidade de uma transformação
interior radical.
Semelhante aspiração só pode resultar de uma convicção íntima, estritamente individual e
específica, totalmente independente de idade, meio, situação ou nível cultural. "Um em mil Me
procura, e um em um milhão Me encontra", diz o Bhagavad Gîta.
Um diagnóstico indispensável
Uma constatação simples e quase banal, que age como estimulante para esse caminhar e que em
todos os tempos mobilizou os pesquisadores espirituais, é que, por mais longe que cheguem
nossas recordações, estamos sempre empenhados numa busca desvairada e decepcionante da
felicidade. Nossas satisfações e alegrias não passam de minúsculos oásis de luz num sombrio
deserto de tensões, conflitos e ansiedades. Quando nos sentimos em paz, o medo de perder as
vantagens adquiridas e o desejo de novos ganhos vêm despertar outros temores, outras angústias.
Mesmo quando não temos problemas urgentes, quando nossa existência se mostra
particularmente favorecida, estamos ainda à mercê do "mal de viver", do tédio, das carências
afetivas, tendo como pano de fundo a obsessão da solidão, da decrepitude, da morte.
Esse diagnóstico não é nada encorajador, mas é indispensável. Nada é possível enquanto não se
está inteiramente persuadido do caráter falacioso e enganador das felicidades comuns, aquelas
que se esperam dos acontecimentos exteriores, como se fosse possível apreender o curso da
realidade mutável, deter e fixar definitivamente um momento agradável, uma experiência de
exaltação.
O encontro frustrado
É aqui que podem intervir esses grandes médicos da alma humana que são os sábios tradicionais
e os mestres da Índia. Sua mensagem pode ser resumida brevemente: a felicidade é possível, mas
não aquela em que se costuma acreditar.
Essa felicidade é inaudita, incomensurável, como jamais se ousou imaginar mesmo nos sonhos
mais delirantes; é uma felicidade suprema, que nós trazemos dentro de nós mesmos, no âmago do
nosso ser, que é nós mesmos, que é o fundo do nosso ser. E é justamente porque nos apegamos
sem cessar às felicidades factícias, às satisfações ilusórias, que estamos perpetuamente afastados
dela, subjugados por mecanismos dolorosos, arrastados numa ronda sem fim de frustração e
avidez.
Cada instante de nossa vida é um encontro frustrado com esse deslumbramento sem limites,
comparado ao qual os mais sublimes encontros amorosos não passam de mornas entrevistas. É
necessário tomar consciência de si mesmo, ser conscientemente aquilo que se é realmente, agora
e por toda a eternidade, para além dos nomes e formas transitórias, quaisquer que sejam o
contexto social, as dificuldades ambientais, as provas e os acidentes do destino.
As condições exteriores coercitivas, como as de nossa civilização ocidental, podem ser
extraordinariamente estimulantes se as encararmos como oportunidades imediatas para aplicar
completamente o ensino. Desse modo, os habitantes de uma grande cidade industrial não são
menos interessados nessa prática de sabedoria que os visitantes de um ashram em Benares.
O trabalho interior pode efetuar-se em qualquer momento, não importa onde, em todas as
circunstâncias. Pode ser iniciado imediatamente, no lugar em que estamos e como estamos - no
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escritório, em férias, em casa, nos congestionamentos, cansados ou em forma, sob o impacto de
uma notícia boa ou má. Para o pesquisador assíduo, as leituras, as conversas e os encontros
decisivos se apresentarão sempre em tempo oportuno. Pode-se passar anos junto aos maiores
sábios sem avançar um milímetro, do mesmo modo que basta uma pequena frase, um incidente
aparentemente insignificante para provocar um estalo e subverter toda a nossa existência.
A vigilância
Contrariamente a disciplinas como a Hatha Ioga ou às práticas devocionais, o vedanta não exige
nenhum exercício físico experimental, nenhum rito mais ou menos fastidioso, nenhum período de
isolamento prolongado, nenhum quadro especial. É a própria vida, a vida corrente, que é o
objetivo da grande obra.
Nosso primeiro trabalho consiste em nos tornarmos vigilantes, quer dizer, conscientes, realmente
conscientes tanto daquilo que nos cerca como daquilo que se passa em nós.
"O Eu não tem forma, e aquilo que chamamos a consciência de si é uma forma. Mas o que
devemos compreender também, de um outro ponto de vista, é que a consciência de si é o caminho
para a consciência do Eu. Essa consciência de si praticamente nunca está presente, e é por isso
que a consciência do Eu não tem nenhuma oportunidade de revelar-se”. (Arnaud Desjardins, AuDelà du Moi, La Table Ronde)
Basta um pouco de atenção para percebermos a que ponto estamos constantemente identificados
com os objetos e acontecimentos exteriores, absorvidos por nossos pensamentos e devaneios ou
distraídos, arrastados por uma seqüência implacável de reações emocionais que nos agitam e nos
manipulam como cegas marionetes.
Essa vigilância, que os monges cristãos chamam "presença em si mesmo e em Deus" é esse olhar
perfeitamente neutro, calmo, aberto, esse olhar de pura testemunha ou de puro espectador que me
vai permitir discernir claramente e ao mesmo tempo o que se passa ao meu redor e a maneira
como eu reajo. É o que, em mim, vê a vida em lugar de sempre "pensá-la" em função de meus
critérios, meus preconceitos, minhas repulsas, minhas esperas, em suma, de meu ego.
Transparente e disponível, esse puro testemunho limita-se a constatar sem julgamento de valores,
sem negativas nem complacências de qualquer espécie: eis tal ruído, tal notícia, tal encontro, eis
tal emoção que se agita em meu peito, tal idéia que surge em minha consciência.
Não sendo mais continuamente devorado nem pelas coisas nem por minhas reações às coisas,
adquiro um centro de gravidade. Ao mesmo tempo, testemunha global dos diferentes processos
que compõem o meu ser físico, emocional e mental, eu me situo dentro de uma consciência
unificada da realidade, em vez de me ver sacudido, dividido em uma multidão de impulsos
anárquicos e contraditórios.
O grande problema é a extrema dificuldade em conservar essa vigilância, em manter-se
duramente nessa posição de pura testemunha, que é um com tudo o que acontece, completamente
aberta, desperta, presente no real, aqui e agora. É quase impossível lutar para implantar e
conservar artificialmente esse estado de consciência, pois o esforço e a coerção provocam
contrações que acarretam quase invariavelmente distrações ou cóleras.
À força de concentrar-me na necessidade da vigilância, acabo descurando tudo o mais, e eis-me
de novo dividido, projetado, absorvido pela obsessão da vigilância.
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Efetivamente, é a corrente da vida que pode fornecer o melhor ponto de apoio. Trata-se de
receber, com consciência simples e atenta, tudo o que a vida nos oferece - tanto o melhor como o
pior. "Chega-se a ver como se reage aos acontecimentos e é a visão de nossas reações que fará
crescer a consciência de nós. Pode-se ver a cada instante como se reage aos acontecimentos
exteriores, que não se é neutro, que não se é um com a realidade, que não se está de acordo com
tudo o que é. Isso pode ser visto, e de maneira quase contínua”. (Arnaud Desjardins, Au-Delà du
Moi).
O deslumbramento
Essa vigilância nos é bastante natural e torna-se espontaneamente muito aguda no momento em
que nos defrontamos com um acontecimento excepcional - por exemplo, um acidente de carro,
um encontro amoroso muito intenso, uma aventura incomum e apaixonante. São momentos dos
quais conservamos uma lembrança indelével, porque então estávamos inteiramente despertos
para o instante presente.
Nós sabemos muito bem que no meio de uma ação, se estamos verdadeiramente dentro dela, não
temos tempo para experimentar dúvidas ou apreensões. Estamos unificados numa pura atenção
consciente, em perfeita adesão e adequação com o desenvolver das operações em curso. É
somente antes e depois que a mente projeta suas angústias, jamais durante.
Se cada momento da vida nos parecesse extraordinário, excepcional- incluindo tudo o que
julgamos aborrecido ou sórdido -, exerceríamos naturalmente, espontaneamente, sem o menor
esforço, uma constante vigilância, teríamos uma consciência desperta, unificada, que já não seria
somente consciência de si, mas consciência do Eu, realização de Brama e libertação.
Ora, como não ficar confuso e deslumbrado com a simples comprovação de que há alguma coisa
no lugar de nada! E que esta alguma coisa não é senão eu mesmo?
O trabalho sobre si mesmo
Que é que, praticamente, nos impede de chegar a essa beatitude? Um certo número de
mecanismos extremamente sutis e enganadores que nos mantêm numa ilusão todo-poderosa.
Esses mecanismos devem ser compreendidos, reconhecidos e depois eliminados. É um trabalho
ao mesmo tempo de exploração e de transmutação que dura, geralmente, vários anos (e não há
nenhuma regra sobre o assunto) e que requer habitualmente a intervenção de um guia ou de um
guru qualificado.
O ensino tradicional do vedanta comporta várias grandes linhas de trabalho sobre si mesmo, ao
qual o discípulo deve consagrar um máximo de energia e de perspicácia. Trata-se de um
empreendimento global, cujos diversos aspectos não podem jamais ser dissociados. A destruição
do mental (Manonasha), a limpeza do inconsciente (Chitta Shuddhi) e a erosão dos desejos
(Vasanakshaya) são as condições para o desaparecimento do ego e o aparecimento desse estado
sem ego que caracteriza o libertado-vivo.
O ladrão de realidade
O mental (Manas) é essa tendência incrivelmente poderosa que me faz ver o mundo unicamente
em relação a mim, aos meus gostos, valores e apriorismos. O que eu vejo não é jamais o mundo,
é apenas o meu mundo, porque sou incapaz de ter uma visão neutra das coisas. Percebo a
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realidade apenas através do filtro deformante do "gosto-não gosto, é preciso não é preciso" etc.
Jamais o meu mundo coincide perfeitamente com o mundo, portanto jamais poderei me sentir
plenamente feliz.
Libertar-se do mundo não tem sentido: não posso inverter o curso das estações ou ressuscitar os
mortos. Mas posso livrar-me da idéia que tenho deles, da interpretação parcial, subjetiva, do
comentário passional, incessante, aos quais estou preso, acorrentado como um forçado. Posso
observar, em mim mesmo, a maneira pela qual meus desejos e temores projetam sem cessar suas
sombras fantasmagóricas sobre o curso do real.
É claro que as simpatias e antipatias persistirão, mas compreenderei, pouco a pouco, o modo
como funcionam, como colorem e desfiguram as coisas. Seu domínio diminuirá
progressivamente até o dia em que a necessidade frenética de apropriação tenha desaparecido
completamente, quando o meu mundo e o mundo tiverem cessado de opor-se, pois não haverá
mais meus, eus, os meus, não haverá mais possessivos sobrepostos aos filmes dos fenômenos.
A mente é um ladrão de realidade, porque desvia e, de um ou outro modo, rapta ou escamoteia o
momento presente. O passado não é mais, o futuro não é ainda, só existe o agora, este instante
mesmo, que é absolutamente novo, diferente, de um frescor e paladar únicos. Ora, a mente nos
faz perceber o instante presente apenas em relação ao passado, em relação ao conhecido, ao já
visto, ao já vivido, do qual nos apropriamos, quer dizer, através de formas fantasmagóricas,
espectros, resíduos de experiências desaparecidas.
Sem cessar esperamos, ou mesmo exigimos, do instante presente que corresponda a esquemas
preestabelecidos, e essa expectativa absurda nos arranca à realidade específica do agora.
O mundo está sempre aqui e agora. Meu mundo é sempre passado. Os dois coincidirão somente
se meu mundo tornar-se o mundo por meio de uma adesão incondicional ao instante presente, que
é absolutamente neutro e absolutamente perfeito.
A mente só sabe julgar: isso é bom, isso é mau, isso deve ser feito assim, aquilo deve ser feito de
modo contrário. Julgando eu divido, excluo, encolho-me e encerro-me nos limites exíguos de
meus critérios e preconceitos: sou eu quem tem razão, todos os outros se enganam.
Destruir o mental é pôr fim a essa contínua divisão, a todas essas exclusões e limitações. É abrirse para uma verdadeira compreensão, que tudo engloba, sem julgamentos, com uma visão
inteiramente impessoal e disponível, purificada de todo impulso possessivo, de toda reação
emocional; nada mais negando, essa visão é, desse modo, infinito.
A limpeza do inconsciente
Esse empreendimento supõe, por parte do pesquisador, uma revisão radical e sincera de todos os
condicionamentos, todas as opiniões, todas as influências, todos os automatismos herdados da
educação, do ambiente e da experiência.
À primeira vista, esta parece ser tarefa titânica e quase impossível, que exige um trabalho em
profundidade que os hindus denominam Chitta Shuddhi, limpeza do inconsciente.
Cada um de nós arrasta um imenso fardo de impressões residuais, de lembranças latentes,
acumuladas desde o nascimento e, talvez, mesmo no decorrer de inúmeras vidas precedentes (ver
La Réincarnation, nesta mesma coleção). Esses traços vivos e lancinantes do passado governam
nossas atrações e repulsas. Seu papel é determinante no nível do funcionamento dos processos
psicológicos. É o que a tradição hindu designa sob o termo de Samskara.
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O Samskara é a impressão antiga, dissimulada e persistente que faz com que eu goste de uma
coisa e não goste de outra, que eu seja atraído por tal espécie de alimento, tal mulher, tal lazer, tal
paisagem, tal literatura, tal opção política ou filosófica; é também o que me encaminha para tal
estilo de vida ou profissão. É a parte a mais subjetiva, a mais profunda, a mais obscura do meu
psiquismo.
Esses Samskaras são um permanente fator de dualidade. "Pois, assim como não estão em contato
imediato com a realidade que lhes é exterior, não estão em contato imediato com sua realidade
interior. São dois todo o tempo: eu, que amo ou que não amo, e essa emoção que me parece
dolorosa, eu e esse desejo que me envergonha, eu e esse medo que me estraga a vida. Dois. O ser
humano, normalmente, jamais assimila seus próprios fenômenos de modo neutro, impessoal e
objetivo. Está todo o tempo envolvido, leva tudo para seu ego: meu medo, meu desejo e eu, que
julgo meu medo ou meu desejo." (Amaud Desjardins,Le Vêdanta et l' Inconscient, La Table
Ronde)
Estamos divididos contra nós mesmos, porque julgamos e recusamos o que está em nós, assim
como julgamos e recusamos o que está fora de nós.
A grande reconciliação
É preciso, primeiramente, ver o que é, quer dizer, romper os mecanismos de censura e repressão
que relegaram para as profundezas do inconsciente os nossos inúmeros medos, desejos e
frustrações de onde procedem a maior parte de nossos atos. Trata-se de ficar à escuta de nós
mesmos, sem nada ocultar, sem nada abafar, acolhendo livremente mesmo as mensagens mais
tenebrosas e as revelações mais inquietantes.
Em nós pulula uma multidão de pessoas sórdidas, violentas, torturadas, que se debatem numa
vida larval e subterrânea, cativas de nossa própria censura. O vaidoso, o maníaco, a criança
aterrorizada, o tarado sexual, o carrasco sádico, o covarde, todos esses e muitos outros formam
um imenso clamor obstinado, um zumbido terrível, contínuo e vago de vozes interiores que
pedem para falar, para se manifestar, a fim de poderem, enfim, voltar à paz do silêncio.
Habitualmente, ou abafamos essas vozes atrás de um muro de censura ou, quando a pressão se
torna muito forte, nos deixamos levar, submergir por elas, em reações emocionais paroxísticas. A
escuta calma, vigilante e amigável é uma atitude inteiramente diferente, é a grande reconciliação.
Não se está mais identificado com tal ou qual personagem, mas situado no nível de testemunha
central que os inclui a todos, os compreende e os reúne sem se submeter a nenhum. Ao mesmo
tempo, e de uma certa maneira, é a humanidade inteira que englobo e que compreendo, pois
reencontrei em mim e assumi todos os papéis concebíveis, os melhores como os piores.
Sei que minha realidade central - o olhar neutro, a pura testemunha - não é nenhum desses papéis,
assim como o realidade central dos outros homens e mulheres não é nenhum dos papéis com que
se disfarçam. Sei que essa realidade central -a deles e a minha - é idêntica, e é ela que percebo
através de todas as máscaras e metamorfoses.
Ver nossas emoções, nossos sofrimentos, nossas angústias é, antes de mais nada, aceitá-las tal
como são no momento, sem ficarmos enervados pelo medo, irritados pela ansiedade, exasperados
pela cólera.
Se a tensão for completamente aceita, perfeitamente vivida aqui e agora, ela desaparece e tornase plenitude. Se sou um com o conflito, um com a angústia - em outras palavras, se desisto de
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toda resistência e me abandono com todo o meu ser ao que é -, a dualidade desaparece e resta
apenas a felicidade.
Na experiência corrente, passo meu tempo a opor a felicidade à infelicidade, o positivo ao
negativo. Recusando o sofrimento, pretendo suprimir a "má" metade da existência, e com isso é
toda a vida que me escapa, pois o real é indivisível. Aderir ao sofrimento no momento em que ele
se me oferece, não por masoquismo, mas porque ele é a realidade deste momento, é viver a vida
na sua totalidade. É necessário ver e compreender as recusas acumuladas para que seu tumulto e
sua vociferação se dissipem. Então, o' eterno silêncio interior que estava recoberto por essa
lancinante cacofonia será, enfim, audível.
A erosão dos desejos
O desejo é o sintoma mais flagrante e mais agudo de nossa condição dualista. Há eu e o que eu
desejo, aquilo de que eu quero me apropriar, anexar ao meu ser. Pretendo que o outro - objeto,
situação ou pessoa - se torne eu.
Eis o erro fatal: o outro, enquanto outro, não pode ser eu, jamais será eu. A grande reconciliação
da não-dualidade não consiste em recusar, negar a dualidade do mundo fenomenal, mas em vê-Ia,
compreendê-la e aceitá-la. É reconhecendo no outro o direito de ser absolutamente diferente de
mim, de existir totalmente fora de mim, que posso ser um com ele. Somente pela adesão à
dualidade enquanto dualidade é que poderei chegar à não-dualidade.
Ora, o desejo visa sempre suprimir essa diferença, substituindo uma unidade mentirosa - eu, meu,
o meu - pela dualidade dos fenômenos. O desejo coloca, sempre e abusivamente, o um no nível
do dois e pretende fazer o mesmo com o absoluto e o relativo, o imutável e o mutável. Desejar
apropriar medo que quer que seja já é negar a diferença, a mudança e a relatividade, pois recuso
desde então ao objeto cobiçado uma existência e uma evolução próprias. Com essa recusa, que é
uma recusa do real, eu me condeno a uma frustração sem fim e a uma insatisfação abrasadora,
inextinguível.
Mas não basta estar intelectualmente convencido da inutilidade do desejo para vê-lo desaparecer
como por encanto. É necessário uma evidência mais profunda e mais concreta, de preferência a
do coração à da cabeça. Pois, a despeito dos raciocínios mais coerentes, os desejos estão sempre
presentes, tão pressionantes e constrangedores quanto antes. Negar sua presença e ascendência é
ainda mentir, dividir-se, simular a unidade quando há dualidade.
Portanto, é necessário partir do próprio desejo.
Um desejo plenamente satisfeito desaparece, porque é da natureza mesma do desejo, que é
tensão, procurar o apaziguamento e a distensão.
Notemos que essa distensão em si mesma, por fugitiva que seja, nada tem a ver com o objeto da
cobiça satisfeita. É uma maneira de ser que de modo algum depende, intrinsecamente, do
exterior, e que reflete ou prefigura a grande felicidade essencial, livre de todo apego e de toda
projeção.
Uma observação mais atenta nos mostra que nossos desejos nunca são, de fato, realmente
satisfeitos de modo completo. É por isso que nunca conhecem o repouso, o silêncio definitivo ao
qual aspiram.
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Não são satisfeitos porque não são vividos no momento. Minha mente sempre se interpõe entre
meu desejo e sua realização, projetando suas imagens, suas expectativas, seus apriorismos, a idéia
que ela tem do que deveria e do que não deveria ser a realização desse desejo.
O doce que saboreio não é um doce particular, específico, único, é antes a idéia que faço dele, um
doce irreal, abstrato, onde a lembrança de doces passados, desaparecidos, combina-se para formar
a imagem de um doce ideal e fantástico, cujo sabor impossível nunca coincide perfeitamente com
o doce real. Meu doce não é jamais o doce.
Uma experiência vivida no presente é forçosamente nova, aberta ao desconhecido. Recusando
esse caráter essencialmente novo e imprevisível da realidade, jamais poderei satisfazer
verdadeiramente qualquer desejo. O ato completa-se sempre na divisão. Se eu aderir
conscientemente, com todo o meu ser, ao próprio instante da satisfação, o desejo será satisfeito e
desaparecerá. Não há mais eu que desejo e a coisa desejada, que nunca é perfeitamente o que eu
esperava; há uma experiência total, unificante, e o ser é apaziguado.
E daí?
É claro que nem todos os desejos podem ser satisfeitos. Não podendo realizar-se, certos desejos
tornam-se fonte de frustrações dolorosamente persistentes. Nesse caso, é do próprio desejo que
pode vir a solução.
Geralmente, temos em face do desejo impossível um comportamento de fuga: ou nos torturamos
em devaneios estéreis sobre o objeto inacessível de nossa cobiça, ou nos atiramos insensatamente
em atos de compensação. Mas o desejo propriamente dito, porque ele nos machuca, raramente
ousamos olhá-lo de frente, assumi-lo, aceitá-lo como uma forma à parte, total, do nosso futuro.
Em primeiro lugar cumpre distinguir claramente o objeto de desejo do desejo propriamente dito.
O objeto de nosso desejo é diferente de nós, absolutamente e para sempre, e como tal deve ser
reconhecido. Mas, se aderimos ao nosso desejo, que não é outro senão nós mesmos, aqui e agora,
ficamos reconciliados, reunificados. Plenamente aceito como tal, o desejo harmoniza-se e
desaparece. Reaparecerá, sem dúvida, mas de forma cada vez menos imperiosa, cada vez menos
perturbada. Sua satisfação ou não-satisfação tornar-se-ão mais e mais secundárias, até um
momento em que meu ser ficará intimamente, inteiramente possuído pela evidência de que
nenhum desejo pode, fundamentalmente, adicionar ou retirar o que quer que seja.
Então poderei dizer-me sem mentir: o desejo? E daí? O poder, o renome, o saber, o luxo mais
refinado, as mais lindas mulheres - e daí? Os maiores talentos, a mais louca adulação - e daí? Se
tudo isso acontecer ou não, o que tem a ver comigo, com o fundo do meu ser, que não tem forma
e que jamais muda?
Então compreenderei que o único desejo a ser sentido realmente é um desejo de absoluto - tudo,
imediatamente, inteiramente - e que ele não tem objeto, uma vez que eu já sou esse absoluto.
O desaparecimento do medo
O avesso do desejo, sua expressão negativa, é o medo: medo de perder o que possuímos, medo de
ser negado, ferido, suprimido.
Bem sabemos que a vida é uma contínua insegurança, que podemos, a qualquer momento, ser
agredidos, mutilados, aniquilados - física e moralmente. Essa perspectiva desencadeia em nós
uma recusa radical que nos deprime e nos tortura. Sabemos que a dor e a morte são inelutáveis,
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inseparáveis do prazer e da vida, mas alguma coisa em nós se revolta e grita: "Não! Eu não! Eu
não!"
A ironia, bastante patética, é que quanto mais nos inquietamos com a obsessão da segurança,
mais vivemos interiormente numa insegurança que não tarda a tornar-se patológica. Nossa
civilização é uma ilustração notável disso. Podem-se multiplicar os regulamentos, as precauções,
os seguros contra qualquer espécie de calamidade, mas haverá regulamentos, precauções, seguros
de vida contra a mudança, o imprevisível, o incontrolável?
Somente aquele que com todo o seu ser aceita a insegurança conhece uma perfeita segurança
interior.
O medo é um exemplo incontestável da maneira como funciona o mental, porque consiste
essencialmente em projetar imagens fantásticas sobre o real e em escamotear o momento
presente, imaginando horrores futuros que só existem na nossa cabeça.
Evidentemente, quando o medo aparece e me domina, repetir "isso é irreal, isso não existe, é uma
projeção mental!" não me será de grande valia. O medo é, por definição, tolo, insensível a
qualquer raciocínio. Ouve apenas o seu próprio clamor. Nem a evidência mais clara o
convencerá.
O medo recusa a realidade do instante presente: é esta a sua natureza. Revoltando-me contra ele,
acrescento a essa recusa inicial uma recusa ainda mais angustiante. Ao contrário, se eu aderir ao
meu medo - como no desejo, pois ele é a minha realidade do momento, se aderir inteiramente,
sem segunda intenção de libertar-me dele, isto é, se me tornar verdadeiramente um com o meu
medo, sem dizer: "Eis um bom truque para me livrar dele!", ele se volatilizará imediatamente.
Estarei plenamente no instante presente e o medo perderá, portanto, todo ponto de apoio e só
poderá deixar de existir. Não haverá mais eu e meu medo, mas apenas aquilo que é, de segundo
em segundo.
Livre do ego
Essas diferentes práticas requerem muita perseverança, honestidade para consigo mesmo e
perspicácia, pois a mente é prodigiosamente astuciosa. É especialmente muito hábil em recuperar
as aspirações espirituais, pois, acima de tudo, é muito lisonjeiro para o ego imaginar-se livre,
desperto, santo, sábio ou guru.
O ego não pode ser libertado, pois a libertação consiste justamente em ficar livre do ego. O ego
se enraíza e se mantém apropriando-se da existência "meu, o meu, para mim". Esse possessivo é
uma prisão onde encerramos os acontecimentos, os seres, as coisas. Podem-se libertar os
prisioneiros, mas não se pode libertar a prisão. O carcereiro é o único detento verdadeiramente
condenado à prisão perpétua. Em compensação, podem-se abrir as portas, e a prisão deixa
simplesmente de existir como prisão. As portas estão abertas e a prisão desapareceu, pois já não
há meu nem o meu. Enquanto eu disser: "A vida me pertence", eu a encerro nos estreitos limites
do possessivo, meu corpo, minhas emoções, meus pensamentos, e encerro-me junto com eles. Ao
dizer: "Eu pertenço à vida", abro-me para uma realidade sem limites e me vejo ampliado (o que
significa também libertado) ao infinito.
O ego é a recusa do real, e uma das principais ferramentas dessa recusa é a comparação. Estamos
sempre comparando, em qualquer ocasião, continuamente: tenho mais que ele, menos que aquele
outro, isso é melhor, é pior, é grande demais, é peque no demais, dei mais do que recebi etc.
Esquecemos sem cessar que cada coisa é única, irredutível a comparações, e que não há dois
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momentos idênticos. É porque negamos essa diferença que nos escravizamos à dualidade: o que é
e o que deveria ser. Passamos ao largo do instante e de sua verdadeira natureza.
A revolução da aceitação
De fato, a palavra-chave de todo trabalho interior é aceitação, a grande revolução do "sim àquilo
que é" .
Isso é muito difícil porque afora alguns instantes excepcionais, vividos, aliás, como momentos de
graça, toda a nossa experiência enquanto ego é uma gigantesca e infatigável recusa. Todos os
nossos desejos e medos são engendrados pela recusa: quero que as coisas sejam de um modo que
elas não são. E, quando tomamos conhecimento desse mecanismo infernal, nossa tendência é
recusar a própria recusa, e continuamos no terreno do não.
A alternância que se opera nesse trabalho de transformação interior é a conversão do não em sim.
Sim para o que é, sim, é assim, sim, eu aceito. Essa aceitação é a condição de uma consciência de
si, dessa consciência desperta, unificada, central, que permite não mais nos identificarmos com
formas passageiras e momentâneas de nós mesmos, não mais oscilarmos entre uma e outra
impressão, não mais sermos engolidos, absorvidos por personagens contraditórias.
A aceitação não é sinônimo de tolerância ou de resignação. É só a partir de um reconhecimento
claro, não egoísta, não comprometido, daquilo que é, que uma ação justa - a resposta adequada se torna possível, porque então se podem apreciar, sem opinião preconcebida, os diferentes dados
de uma situação.
Do mesmo modo, a aceitação é o desaparecimento das emoções.
A emoção diz sempre "não!" ao real, porque nela estamos inteiramente possuídos, incapazes de
uma visão neutra, de uma posição de testemunha imparcial, que só faz unificar e reconciliar:
tornamo-nos uma reação cega e violenta, opressora e oprimida, obstinada em quebrar coisas ou
devorá-las. A emoção é o paroxismo do possessivo, do meu, do eu, o meu. É o mais negro
cubículo da prisão chamada ego. "Não se vive mais num mundo real, mas num mundo
inteiramente subjetivo. Estamos à mercê da emoção, incapazes de ver os fatos como eles são,
levados por ela e suscetíveis de não se sabe que reação impulsiva e desastrosa para nós e para os
outros. A emoção nos manipula como fantoches cujos cordéis são puxados por ela. É um estatuto
de escravo." (Arnaud Desjardins, Un Grain de Sagesse, La Table Ronde)
Essas observações aplicam-se tanto às emoções agradáveis quanto às dolorosas. Mas o
desaparecimento das emoções não significa absolutamente repressão ou endurecimento. Pois a
emoção é ao mesmo tempo a matéria-prima do sentimento, e o caminho do coração é a estrada
real que conduz à aceitação.
Não se trata de recusar a emoção, mas de transformá-la. Há emoções positivas e libertadoras, que
possibilitam a participação no sofrimento alheio, o perdão das injúrias ou o choro sobre seu
próprio egoísmo, sem falso pudor. Essas emoções também desaparecerão um dia, mas, enquanto
esperam a libertação final, apontam para a aceitação; e é essencial não mentir, dizendo: "Não
tenho mais emoções!" quando simplesmente o ego se fechou numa cidadela de orgulho e
insensibilidade.
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O amor absoluto
A aceitação é a alvorada do verdadeiro amor, do único sentimento que merece o nome de amor e
que é o amor absoluto.
Este termo, amor, é excessivamente ambíguo. No sentido corriqueiro da vida corrente, designa
antes de tudo um desejo. Amar significa, sobretudo, querer ser amado. Eu amo tal coisa ou tal
ser, quer dizer, tenho necessidade dele, ele me faz falta.
Estamos no domínio das atrações e das repulsas. O que eu chamo amor pode mudar-se em
rejeição e ódio se me sinto traído, escarnecido, isto é, se meu desejo é rejeitado ou negado, se o
outro não é ou não é mais o que o meu ego espera. É necessário que eu seja retribuído, do
contrário o "eu amo" torna-se "eu odeio". Todas as nossas paixões implicam, aliás, uma
alternância amor-ódio, vem-vai, os dois sendo, às vezes, simultâneos.
Podemos imaginar um amor sem contrário, sem condição, um "eu amo" sem "eu não amo", um
"eu te amo" que não signifique" ama-me", um dom total, um sentimento inalterável que já não
distingue entre amigos e inimigos?
O que as mães sentem, nas horas seguintes ao parto, corresponde bastante razoavelmente a essa
espécie de amor. Dessa bola de carne completamente vulnerável e dependente a mãe nada espera,
nada exige, tudo aceita, tudo compreende, oferece-se inteiramente, incondicionalmente. Face ao
recém-nascido ela não tem ego. É, aliás, especialmente por esta razão que os hindus divinizaram
a condição materna (a um ponto que os ocidentais sequer imaginam), na medida em que ela
representa o puro amor do libertado que se entrega sem nada esperar em troca.
Claro, esse caráter absoluto do amor materno é geralmente pouco durável, pois a mãe torna-se
rapidamente irritada, cansada com o choro da criancinha que a reclama sem cessar. Bem depressa
o ego retoma o controle: o recém-nascido torna-se meu filho, que deve se submeter de boa ou má
vontade aos meus desejos, às minhas necessidades, aos meus hábitos. O sentimento materno
oferece uma visão empolgante do que pode ser o amor do sábio, que nada espera, nada almeja,
situando-se muito além de toda gratificação e frustração.
A essência da felicidade
O Jivan-Mukta não é mais arrastado pelo turbilhão das reações. Não é mais identificado,
submetido às formas passageiras e particulares de sua pessoa física e mental. Estabelecido numa
consciência neutra, aberta, central, unificada, sabe que os outros não são, fundamentalmente,
nenhuma das aparências mutáveis pelas quais se deixam momentaneamente absorver: alegria,
tristeza, crueldade, generosidade etc. Percebe a identidade absoluta que está por trás de todas as
diferenças, porque compreende, aceita e ama essas diferenças, essas aparências que mudam, essas
formas particulares; ama-as pelo que elas são, intrinsecamente, sem nada desejar em troca.
O ego não pode amar, só pode reclamar: "Estou só, tenho medo, tranqüilizem-me! Dêem-me!
Amem-me!" Somente aquele que está livre do ego pode dizer: "Amo com um amor sem motivos,
sem objeto, com um amor sem medida e sem limites, porque purificado de todo laço e de toda
possessividade".
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Anexos
Alguns esclarecimentos complementares
Neste livro esforçamo-nos por expor os temas essenciais da sabedoria hindu não-dualista, na
perspectiva de uma aprendizagem pessoal, acessível tanto aos ocidentais quanto aos orientais.
Devemos ressaltar o imenso trabalho feito, nesse sentido, por Arnaud Desjardins, que soube
transmitir, adaptando ao Ocidente moderno, um ensino tradicional que amplamente inspirou e
guiou nossas pesquisas.
Negligenciamos voluntariamente certos aspectos históricos e mitológicos, bem como certos
ângulos técnicos do hinduísmo, que não nos parecem interessar diretamente à grande obra de
transformação interior, essa realização completa sem a qual a estrita erudição é bastante
derrisória. Os libertados-vivos estão longe de serem eminentes sanscritistas e não têm sequer um
conhecimento profundo dos textos antigos. Aqui, a prática é infinitamente mais importante que a
teoria.
Eis, portanto, um anexo em que agrupamos algumas informações que completam este volume.
Os textos
O hinduísmo está assentado sobre um conjunto considerável de textos cuja composição se
estende por cerca de dois milênios.
Os mais antigos, chamados Vedas, contêm quatro partes: Rig, Yajur, Sama, Atharva. Formamo
Shruti, quer dizer, Revelação, resultante das instituições fundamentais dos sábios que viveram há
mais de dez séculos antes de nossa era.
A origem histórica desses textos é tão incerta quanto controvertida. Os próprios hindus não se
preocupam excessivamente com isso. Aos seus olhos os Vedas exprimem as verdades essenciais;
tudo o mais é acessório. Em todo caso, concordem em reconhecer um papel de terminante à fusão
da civilização dravídica (os primeiros ocupantes do subcontinente indiano, de pele negra) com a
cultura dos conquistadores arianos, que invadiram o país em vagas sucessivas.
Dos Vedas procedem os Brahamanas e os Upanishads, que constituem um comentário sutil e
despojado e procuram esclarecer o essencial da mensagem védica.
Contam-se mais de quatrocentros Upanishads chamados maiores: Chandogya, Brihadaranyaka,
Mundaka, Mandukya, Kena, Katha, Isha, Prashna, Aitareya, Taittiriya, Shvetashvatara, Maha
Narayana, Parama Namsa etc.
À Revelação (Shruti) junta-se a Tradição (Smriti), que reúne:
- diversos códigos, como as Leis de Manu;
- os Purunas, contos mitológicos e lendários, de uma licenciosidade maravilhosa;
- as grandes epopéias Ramayana e Mahabharata, incluindo o célebre Bhagavad Gita, que é objeto
de uma devoção unânime;
- os Agamas, que regem os aspectos mais especificamente religiosos do hinduísmo - shaktismo,
vishnuísmo e shivaísmo, ao qual se une o tantrismo do Cachemir;
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- vêm em seguida os textos mais recentes, de onde procedem as seis Darshanas ou pontos de vista
ortodoxos (ver capítulo 2): Niaia, Vaisesica, Sânquia (Karika de Kapila), Ioga (Ioga sútras de
Patanjali), Mimansa e Vedanta.
Vedanta significa' 'fim do Veda", no sentido de acabamento e chegada. "Os Upanishads mais
importantes foram analisados e depois sintetizados numa coletânea de aforismos, os BrahmaSutras ou Vêdanta-Sutras. Esse livro deu origem a cinco escolas que, conseqüentemente, expõem
cinco nuances possíveis do Vedanta:
- Vedanta "dualista" de Madhwa;
- Vedanta da "diferença e não-diferença" de
Nimbarka;
- Vedanta do "caminho da não-dualidade pura" de Vallabha;
- Vedanta do "não-dualismo temperado" de
Ramanuja;
- Vedanta do "não-dualismo categórico" ou Advaita de Shankara. (Patrick Lebail, Sept
Upanishads Majeures, Le Courrier du Livre)
O Advaita Vedanta de Gaudapada e de Shankara difundiu-se largamente na Índia, ao ponto de
suplantar as outras interpretações dos Brama Sutras.
Outro texto importante, cujo autor é provavelmente contemporâneo de Shankara (VIII século), é
o Yoga- Vasishta. Esse relato épico e mitológico, de uma riqueza romanesca fantástica,
representa uma síntese das grandes correntes não-dualistas do vadanta e do tantrismo.
Na Índia, a tradição espiritual não é um domínio passadista e fechado. É, ao contrário, uma
realidade móvel e emergente, que se perpetua e se renova de geração em geração. E textos
recentes, como os de Ramakrishna, de Ramana Maharshi, de Ma Ananda Mayi ou de
Nisargadatta Maharaj, pertencem hoje em dia à tradição advaítica tanto quanto as obras de
Gaudapada ou de Shankara.
Algumas noções essenciais
Contrariamente à cultura ocidental, a Índia nunca foi teatro de rivalidades, de divórcio entre a
religião, a filosofia, a ciência, o direito, a psicologia etc. Existe, entre as noções mais abstratas, as
instituições sociais e os aspectos mais práticos da existência, uma coerência e uma
complementaridade fundamentais.
Eis alguns elementos indispensáveis para uma compreensão global do hinduísmo:
O karma
Esta noção capital do hinduísmo está longamente desenvolvida na obra desta mesma coleção
consagrada à reencarnação. Nosso destino é o fruto de nossos atos, ou seja, a projeção de nossos
pedidos, o resultado direto de nossos desejos e temores mais obscuros. Essa ótica envolve uma
responsabilidade individual ilimitada, pois somos ao mesmo tempo nossa própria vítima e nosso
próprio benfeitor, segundo os mecanismos de autopunição, de autogratificação ou de
bloqueamento ocultos em nosso inconsciente.
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As samskaras (impressões persistentes do passado) e as vasa nas (desejos latentes oriundos desse
passado) trabalham continuadamente para ditar-nos e impor-nos uma seqüência sem fim de
reações e impulsos que criam, sem cessar, outras samskaras e outras vasa nas. Prendem-nos, de
uma maneira obsessiva, ao interminável cortejo fantástico de nossos predecessores, os de nossa
existência atual (o adolescente, o menino, as crianças que viveram e desapareceram em nós) e
àqueles de nossas inúmeras existências anteriores, dos quais revivem em nós os desejos nãosatisfeitos, os temores não-apaziguados, as frustrações dolorosamente acumuladas.
O motor do karma é o apego ao fruto da ação, quer dizer, à possessividade. A liberação aceitação do que é, adesão ao instante presente, realização da não-dualidade - é o fim do karma,
pois ele é dualidade: eu e minha insatisfação, eu e minha avidez, eu e meu desejo de tornar-me
outra coisa. É o final da ronda dolorosa dos renascimentos, pois, estabelecido em Brama, única e
imutável realidade, sei que jamais houve realmente nascimento ou morte apenas um eterno aquie-agora.
Distinguem-se três espécies de karma:
o Samchitta Karma, que é o das impressões herdadas de um passado imemorial;
o Agami Karma, que é o das ações latentes que não chegaram à maturidade;
o Prarabda Karma, que modelou o corpo e as atuais condições da existência.
Para realizar-se o sábio destrói os dois primeiros e não é mais afetado pelo terceiro, mas deve
assumir todas as conseqüências, que só terminarão com o desaparecimento do corpo físico.
Shankara compara o Prarabda Karma à flecha lançada pelo caçador e de quem ele não pode mais
deter o curso.
Purusha e prakriti
Estes dois termos - verdadeiros pilares da filosofia Samkhya - foram impropriamente traduzidos
por espírito e matéria. A visão hinduísta, que percebe o universo em termos de energia, de
dinamismo, de campos vibratórios, está bem distanciada de uma tal interpretação. Prakriti diz
respeito mais ao aspecto relativo e mensurável do conjunto do mundo fenomenal manifestado, ao
passo que purusha é o princí pio eterno, imutável e inatingível que sustém a totalidade dos
processos físicos e mentais, ao mesmo tempo cósmicos e individuais, físicos e mentais. Guénon
liga purusha e prakriti a essência e substância, respectivamente: "É o Ser Universal que,
relativamente à manifestação da qual ele é o princípio, polariza-se em 'essência' e em 'substância'
sem que sua unidade íntima seja de modo algum afetada. Prakriti, portanto, não pode ser causa
fora da ação, ou melhor, da influência do princípio essencial que é Purusha, que, pode-se dizer, é
o 'determinante' da manifestação: todas as coisas manifestadas são produzidas por prakriti, de
quem são as modificações ou determinações, mas sem a presença de purusha essas produções
seriam desprovidas de qualquer realidade". (René Guénon, L'Homme et Son Devenir Selon le
Vêdanta)
Os três gunas
Trata-se de três condições ou modalidades fundamentais de manifestação, às quais estão
submetidas todas as criaturas. Essas três qualidades primordiais estão em perfeito equilíbrio na
não-diferenciação original de prakriti: "Desses três gunas, um, tamas, corresponde à escuridão, à
inércia; à ignorância, à estupefação; outro, rajas, à ação, à força, à violência, à paixão, à dor; o
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terceiro, sattva, à bondade, à pureza, à luz, à harmonia, à inteligência, à alegria" (Jean Herbert,
"Spiritualité Hindoue"). Quando o equilíbrio inicial entre os três gunas se rompe, há luta,
rivalidade sem fim, o mundo se põe em movimento. "Então começa toda confusão inextricável e
incessante de criação, conservação, dissolução, o desenrolar dos fenômenos do cosmos”. (Shri
Aurobindo, La Bhagavad Gîta)
Artha, kama, dharma, moksha
Em ordem de importância crescente, são os quatro objetivos possíveis do esforço humano. "Artha
é a busca da perfeição no domínio material, kama no domínio sensorial, sensual e sentimental,
dharma no domínio moral e mental. O quarto, moksha, que é o mais alto, é a libertação
espiritual."
(Jean Herbert, Spiritualité Hindoue)
Os quatro ashramas
Os hindus dividem a existência em quatro grandes etapas, que cada indivíduo deve percorrer
sucessivamente desde que sai da infância:
- brahmacharya, que é o período durante o qual o adolescente se consagra ao estudo, sob a
direção de um instrutor, o acharya ou guru;
- garhasthya, que é a fase durante a qual o indivíduo se desenvolve, aumenta o campo de sua
experiência, ganha e distribui as riquezas, funda uma família; o ego deve desabrochar antes de
desaparecer;
- vanaprastha, período em que, tendo abandonado todos seus bens materiais, o marido e a mulher
vivem juntos como eremitas, meditando sobre as verdades eternas da tradição;
- sannyasa, que é a etapa suprema, a condição final do grande renunciante, errando e mendigando
sua subsistência, livre de todo laço físico e mental.
Pode acontecer que certas pessoas, particularmente dotadas espiritualmente, saltem as duas etapas
intermediárias e passem diretamente do brahmacharya para o sannyasa. Trata-se de caso
excepcional. Em geral o homem deve primeiramente realizar-se, como individuo, sob pena de
incorrer na censura, na frustração e numa caricatura de espiritualidade.
Vairagya
É a renúncia. É o que permite atingir o estado de não-dependência absoluta em relação ao desejo,
ao medo, às posses de qualquer espécie. As armadilhas são numerosas e temíveis. A renúncia
pode tornar-se, ela própria, um fator de dependência aguda, seja pela obsessão dos bens
abandonados, seja pelo orgulho espiritual: "Sou um grande asceta". A verdadeira renúncia
implica um perfeito desprendimento em relação às situações: pode-se viver tão bem na fortuna e
na glória quanto na indigência. Ela pressupõe igualmente que se renuncie a toda espécie de
ambição espiritual e mesmo a todo desejo de libertação.
Kaivalya
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É a liberdade interior, a não-dependência do sábio realizado. É o único estado verdadeiramente
adulto, no qual o indivíduo não depende mais de nada nem de ninguém. É a única condição nãoegoísta, na qual não é mais necessário ser aprovado para compreender, nem ser amado para amar.
O sentido de kaivalya aproxima-se igualmente do Um, do Único, do Solitário. Reconhecendo em
toda manifestação as formas diversificadas de seu próprio Eu, o libertado-vivo está só, como se
pode dizer do Absoluto que ele está só na indizível união de todas as coisas: não sente jamais a
angústia do isolamento e da separação.
Sanatana Marga
É a estrada para a eternidade. Designa-se, freqüentemente, com este termo o conjunto dos
caminhos que compõem a espiritualidade hindu.
Os autores
A Índia, que empresta uma importância decisiva ao contato direto e pessoal com o guru,
preocupa-se bem pouco com a paternidade dos grandes textos tradicionais. O que interessa não é
o que se pode ler sob a assinatura deste ou daquele autor, mas aquilo que se pode compreender e
realizar. Essa tendência é, sem dúvida, ainda mais pronunciada no Advaita Vedanta do que nas
manifestações devocionais, onde a adoração de um aspecto particular da divindade (Ishta) e a
própria pessoa do guru representam um papel bastante preponderante.
Dentro dessa perspectiva, a história pessoal dos grandes representantes do não-dualismo
vedântico parece anedótica e relativamente marginal. Contentamo-nos, pois, com a enumeração,
de memória, de alguns nomes essenciais do período contemporâneo: Bhagavan Shri Ramana
Maharshi, o sábio de Tiruvannamalai, Shri Krishna Menon, Shri Nisargadatta Maharaj, falecido
em Bombaim em 1981, Shri Ma Ananda Mayi, falecida em 1982. Igualmente citaremos Shri
Swami Prajnanpad, desaparecido em 1974. Foi o guia de Arnaud Desjardins, que hoje transmite o
seu ensinamento. A Sadhana (caminho) que ele propõe está esplendidamente adaptada à
mentalidade ocidental e à vida moderna pelo lugar, bastante considerável, que reconhece aos
mecanismos do inconsciente e pelo intenso trabalho de esclarecimento das impressões residuais
(samskaras) e das demandas latentes (vasanas), que constituem um dos pilares do seu ensino.
Krishnamurti sempre negou pertencer a qualquer corrente ou tradição. Sua obra salienta a
necessidade de eliminar todos os esquemas, todos os condicionamentos. Para ele, o despertar
consiste antes de mais nada em libertar-se do fardo da memória, dos traços do passado, do
conhecido - portanto, de qualquer referência cultural -, a fim de podermos viver plenamente a
realidade do momento presente. Krishnamurti sempre rejeitou qualquer espécie de filiação,
mesmo com o Advaita Vedanta. Mas a essência mesma de seu ensino confunde-se com o
profundo caminho de um Gaudapada ou de um Shankara.
Como o vedanta tem um caráter de universalidade, pode-se acrescentar a esses nomes os de
mestres ocidentais contemporâneos, como Arnaud Desjardins e Jean Klein.
Conclusão
Uma outra solução: Se o progresso é medido em termos de abundância e melhoria técnica, então
a civilização ocidental moderna representa um notável êxito. Ao contrário, se ele se exprime em
termos de felicidade, é necessário reconhecer que o estado de depressão latente e de tensão
crônica em que vivem as sociedades hiperindustrializadas aparece mais como um formidável
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fracasso, ao qual não sabemos responder senão com uma agitação neurótica que aumenta
incessantemente ou com um uso maciço de tranqüilizantes e neurolépticos.
O vedanta nos deixa entrever uma outra solução: ela depende apenas de nós.
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