Tarahumaras

Transcrição

Tarahumaras
 Tarahumaras
(Raymonde Carasco)
Por
Gabriela Justine
No final da década de 70, influenciada por México Viaje al país de los
Tarahumaras, do poeta e dramaturgo Antonin Artaud, Raymonde Carasco, francesa,
doutora em filosofia e cineasta, inicia uma viagem ao norte deste país. Durante esta
viagem, Carasco realizou uma série de documentários que retratavam o povo
Tarahumara, grupo que habitam a região da sierra Madre, noroeste do estado de
Chiuahua, uma região montanhosa, com escassez de água e clima árido.
Em Tarahumaras 79- Tutuguri, os poucos movimentos da câmera não tentam
esclarecer analiticamente a existência deste povo, mas faz o espectador ingressar nessa
realidade com todos seus mistérios e sutilezas que perfazem sua cultura. De acordo com
o significado etimológico, a palavra Tarahumaras traz a ideia de pessoas que caminham.
Esse é o retrato que Raymonde procura mostrar por meio de longas tomadas. Com a
câmera fixa, registra as paisagens por onde os Tarahumaras vivem e fazem suas
caminhadas.
No ritual do Tutuguri, com poucos minutos de duração, um membro da tribo
entoa e dança uma canção repetidas vezes. Os movimentos se repetem ao redor de uma
cruz, que para os Tarahumaras representa a natureza e os quatro cantos da terra
(diferentemente do significado cristão), e geralmente são realizados na época da
colheita. Porém, as imagens se descolam da passagem ritualística e vão se inserindo
sobre a paisagem árida, com muitos pedregulhos e pouca vegetação. Logo ela será
ocupada por corpos masculinos e femininos, que vão e voltam, cruzando
constantemente a tela. Outras vezes, os homens aparecem jogando uma pequena bola
um para o outro, é o jogo de Rarajipa; ou ainda, as mulheres disputam um arco, que é
transferido entre elas através de uma pedaço de madeira, é o Ariweta. Planos próximos
de pés empoeirados enfatizam ainda mais o dinamismo do caminhar sem fim. Uma voz
off, falando frases de Artaud e a música do ritual são repetidas inúmeras vezes. Elas
marcam ritmos diferentes, hora mais rápidos, hora lentos, trazendo uma narrativa
poética e impondo de novo a atmosfera ritualística. De modo que dança e caminhar se
confundem num mesmo transe xamânico.
Em Los Pintos 83, Raymonde acompanha todo o ritual de celebração da semana
santa, que tem duração de três dias. Diferentemente do filme analisado anteriormente
que destaca o mesmo ritual, este apresenta depoimentos dos próprios Tarahumaras,
contextualizando a festa e sua importância. Há grande participação popular nesta
celebração que conta com procissões ao redor da igreja, músicas e danças. O ritual se
estende por toda a noite, quando os homens fazem encenações utilizando fogo. A
presença feminina neste ritual é mais escassa, percebe-se que estão sempre presentes no
apoio organizacional e nas procissões. O filme acompanha toda a movimentação das
pessoas que estão participando desta celebração, o que também difere esta produção da
analisada anteriormente, que poeticamente representava o movimento de passagem das
pessoas posicionando a câmera de forma estática. Los Pintos, por sua vez, possui um
ritmo mais acelerado acompanhando assim o rimo da celebração.
Embora os elementos da cultura cristã estejam bem marcados pela voz off (se
narra a queima de Judas, um episódio muito frequente em vários países de América
Latina), a câmera segue, em grande parte dos planos, os dançarinos, principalmente o
grupo chamado os “pintos”, que dá nome ao episódio. Estes homens quase nus, com o
peito e os braços cheios de pintas brancas, fazem uma coreografia mais animada que as
das outras folias, muito mais atreladas à tradição cristã. Além disso, a festa continua
fora do povoado por vários outros dias, agora por conta e risco dos Tarahumaras.
Algumas danças são acompanhadas por uma espécie de rabeca. As cordas produzem
uma melodia mais cadenciada e familiar ao ouvido ocidental. Entretanto, são os amplos
tambores que marcam o ritmo da maior parte das danças da Festa. O timbre destes
instrumentos é inesperadamente agudo, produz um som estranho. Assim, o filme parece
privilegiar os elementos que relativamente se distanciam da tradição religiosa ocidental
que, no entanto, determina quase toda festa. Com a chegada dos europeus no século
XVII, os povos que viviam em Sierra Madre, como os Tarahumara e outros tantos,
foram duramente dizimados, escravizados e catequizados pelos colonizadores. Porém, o
que diferenciava os Tarahumaras de outros grupos é que eles possuíam uma organização
política que incluía todas as comunidades que falavam uma mesma língua, que não
estavam incorporadas há um sistema político maior como é o caso dos grandes impérios
formados na região central do México. Eram unidades politicamente autônomas sem
aparente interferência.
Em Los Pacoleros 85, Raymonde acompanha novamente o processo que
compõem o ritual da semana santa realizado pelos Tahuamaras, E a tradicional
hierarquia entre cristianismo e cultura indígena é revertida também aqui. Há inúmeras
sequências em que os homens pintam seus corpos e a câmera se compraz em mostrar os
diferentes desenhos que ornam suas pernas e suas costas. O grafismo, mais variado,
ocupa, às vezes, o quadro todo. Assim, a pintura corporal, mais uma vez privilegiada, é
visualizada agora no processo da ornamentação de corpos nus, jovens e vigorosos.
Suportes de uma grafia simbólica e sagrada, estes corpos ritualizados expressam uma
sacralidade completamente imanente, oposta a transcendência cristã. O fascínio que
Raymonde faz transparecer nessas imagens, parece reafirmar aquele de Artaud que
parece ter visto, nos Tarahumaras: uma possibilidade outra de se pôr no mundo.
Bibliografia
ARPEE,L.H
L.
Los
índios
Tarahumaras
de
Chihuahua,
http://www.mna.inah.gob.mx/documentos/anales_mna/609.pdf
México.
CORTINA, Ana Paula Pintado. Tarahumaras- Pueblos indígenas del Mexico
contemporâneo: D.R. 2004

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