O FILME “UMA MENTE BRILHANTE”

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O FILME “UMA MENTE BRILHANTE”
O FILME “UMA MENTE BRILHANTE” SOB A PERSPECTIVA DO
DIALOGISMO DE BAKHTIN
Célia Tamara COÊLHO (UEM)
Introdução
Mikhail Bakhtin foi um pensador russo que produziu suas obras em um dos
períodos mais efervescentes da história da humanidade: o início do século XX. A URSS
foi o cenário de desenvolvimento do grupo de pensadores liderado por Bakhtin. Reunidos
em torno de temas filosóficos e especialmente em torno da linguagem, Voloshinov,
Medvedev e Bakhtin lançaram um novo olhar sobre as ciências humanas.
Para o Círculo de Bakhtin, não interessa o caráter universal dos fenômenos e dos
fatos, mas seu caráter único e irrepetível. Para tanto, seus estudos afirmam que o ser
humano é um ser linguístico único, sendo a sua existência marcada pela tomada de
posições axiológicas. Assim, viver em sociedade é adotar pontos de vista, é avaliar a
realidade. Além disso, o pensador considera o homem em sua relação com seus
semelhantes: para o autor, o eu só existe em contraposição a um tu (FARACO, 2003, pg
19).
Nesse sentido, Bakhtin representou nas ciências humanas uma retomada de seus
aspectos realmente humanos, ou seja, a consideração do homem como ser situado
historicamente e socialmente constituído. Essa visão de mundo torna-se essencial para a
compreensão das ideias linguísticas que desenvolveu, das quais algumas serão tratadas
neste estudo.
Dessa maneira, tendo em vista a relevância dos meios audiovisuais em âmbito
mundial e especificamente na sociedade brasileira contemporânea, torna-se pertinente a
análise de textos dessa natureza. Extremamente ricos pela ampliação das possibilidades
expressivas, os filmes proporcionam ao indivíduo refletir sobre a sociedade, sobre o ser
humano de modo geral e sobre si mesmo.
Nesse sentido, o referencial teórico de Bakhtin, no que se refere à característica
Brilhante”, corpus escolhido para este trabalho, as complexas relações sociais e a própria
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fazer do texto multimodal o seu objeto de estudo. No caso específico do filme “Uma Mente
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dialógica do discurso, vai ao encontro das necessidades do pesquisador que se dispõe a
vivência intrapsicológica das personagens só podem ser apreendidas a partir de um ponto
de vista que privilegie a natureza social e única da vida humana e da linguagem.
1. Pressupostos Teóricos
1.1 Ideologia e Diálogo: conceitos fundamentais e polêmicos.
O uso de determinadas palavras tem causado inúmeros equívocos entre os leitores
de Bakhtin. Uma dessas palavras é ideologia, ou seu derivado, ideológico. Isso decorre do
fato de tais termos terem adquirido um sentido de mascaramento da realidade dentro dos
quadros teóricos marxistas. Entretanto, em Bakhtin, seu uso está associado a outros
significados.O termo ideologia é utilizado para designar qualquer tipo de produção
intelectual e, dessa forma, equivale ao que o marxismo denominou superestrutura: abrange
áreas tão diversas como a religião, o direito, a ética e a política (FARACO, 2003).
Por outro lado, ao afirmar que a linguagem é ideológica, o teórico enfatiza sua
característica avaliativa, seu poder de refletir e de refratar a realidade por meio dos
conceitos socialmente construídos. Dessa forma, todo discurso está necessariamente
comprometido com uma cosmovisão que, aliás, define-se em relação a outras cosmovisões.
Como se pode perceber, o pensamento bakhtiniano está perpassado pela ideia das
relações sociais. É nesse sentido que se deve interpretar a metáfora do diálogo, utilizada
para pensar sobre a natureza do discurso. Não se trata, portanto, de diálogo no sentido de
interação verbal face a face, mas constitui-se em uma relação de sentido estabelecido entre
discursos. Essa relação de sentidos é possível pelo fato de que nenhum tema é
absolutamente novo. O que existe são diferentes posicionamentos, opiniões e pontos de
vista por meio dos quais um mesmo tema pode ser tratado, isto é, diferentes discursos
sobre um tópico. Por isso, Bakhtin considera que todo enunciado constitui-se como uma
resposta a outros enunciados.
Convém lembrar que diálogo não pressupõe necessariamente consenso, como
ressalta Faraco (2003). O diálogo pressupõe uma relação de sentido que pode ser ou não de
concordância. Convém ressaltar que o filósofo russo entende a linguagem justamente como
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“Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratificada da
linguagem (heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglossia
dialogizada), aponta também, portanto, para a existência de jogos de
poder entre as vozes que circulam socialmente “ (FARACO, 2003, pg.67)
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um espaço onde ocorrem jogos de poder:
É perceptível a influência materialista presente nesta concepção linguística.
Entretanto, diferentemente das ideias marxistas sobre a sociedade, para Bakhtin, não
existiria uma síntese definitiva entre os discursos: esse diálogo, enquanto elemento
constitutivo da linguagem seria permanente.Ao tratar do tema dialogismo, Barros enfatiza
o fato de que a relação dialógica estabelecida entre discursos pode ser ou não intencional
por parte do enunciador:
“Quando alguém estabelece um contraste entre dois teóricos
que jamais se leram, mas que construíram teorias que podem
ser confrontadas, o resultado necessariamente será um discurso
dialógico [...]. A intencionalidade dialógica da parte de quem
estabeleceu o contraste não implica o dialogismo nato entre os
dois teóricos.” (BARROS APUD IN: BARROS E FIORN,
1999, pg 24).
Além disso, na concepção bakhtiniana de consciência, nem sempre a alteridade do
discurso é percebida enquanto tal devido à sua incorporação pelo sujeito. Nesse sentido,
um determinado discurso social pode ser percebido pelo enunciador como discurso próprio
e não como citação de outrem.
Por outro lado, em certos casos, o enunciador tem consciência de que está tomando
o discurso alheio. Nesse caso, diz-se que se trata de uma palavra bivocalizada, ou seja,
uma palavra por meio da qual falam o “eu” e o “outro”. (FARACO, 2003)
Dessa forma, Bakhtin considera que um discurso está necessariamente marcado
por diferentes vozes sociais. Cada uma das vozes que compõem um enunciado corresponde
a determinada visão de mundo, ou seja , tem natureza avaliativa, axiológica. Nesse sentido,
um discurso é sempre formado por meio do diálogo entre vários discursos. Em outras
palavras, todo discurso responde e simultaneamente espera resposta de outros discursos, o
que permite caracterizar a linguagem humana como essencialmente responsiva, dialógica.
Bakhtin atuou também como crítico literário, produzindo um dos mais importantes estudos
sobre os romances de Dostoiévski. O teórico considera tais obras como um marco na
literatura devido à maneira peculiar como o romancista organiza os discursos das
personagens: “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a
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dos romances de Dostoiévski.” (BAKHTIN, 2005, pg 4).
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autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental
O termo polifonia é muitas vezes interpretado como sinônimo de dialogismo,
entretanto não é esse o sentido com que é utilizado por Bakhtin. Para o autor de Problemas
da Poética de Dostoievski, a polifonia ocorre de fato quando todas as vozes (sociais e
avaliativas por natureza) presentes no enunciado são plenivalentes, ou equipolentes, isto é,
quando não se estabelece no enunciado um valor hierárquico entre elas (FARACO, 2003).
É com essa concepção que Bakhtin qualifica as obras dostoievskianas como
polifônicas: as vozes das personagens aparecem como consciências independentes da
consciência do autor. Enquanto nos romances tradicionais monofônicos, a personagem
torna-se porta voz do discurso ideológico do autor, no romance polifônico a personagem
ganha autonomia e torna-se sujeito do seu próprio discurso. Em outras palavras, os heróis
criados por Dostoievski possuem um universo de valores distinto da concepção de mundo
de seu autor. Bakhtin afirma que: “O herói dostoievskiano não é apenas um discurso sobre
si mesmo e sobre o seu ambiente imediato, mas também um discurso sobre o mundo: ele
não é apenas um ser consciente, é um ideólogo” (BAKHTIN, 2005, pg 77). Ao ser dotada
de tal profundidade psicológica, a personagem equipara o valor de seu discurso, enquanto
visão de mundo, ao do autor e parece adquirir uma consciência independente.
Outro aspecto dos romances de Dostoiévski ressaltado na análise feita por Bakhtin
é a presença de diferentes vozes na constituição da consciência das personagens. Nas
obras analisadas, o diálogo das diferentes vozes sociais está presente não somente nos
enunciados proferidos pelo herói, mas também no discurso interior marcado pelas palavras
e visões de mundo de outras personagens:
“A autoconsciência do herói em Dostoiévsi é totalmente
dialogada: em todos os momentos está voltada para fora,
dirige-se intensamente a si, a um outro, a um terceiro. Fora
desse apelo vivo para si mesma e para os outros ela não existe
nem para si mesma.” ( BAKHTIN, 2005, pg 256).
Nessa perspectiva, a autoconsciência do herói é constituída por meio da interação
com a consciência do “outro”, isto é, por meio da luta ideológica travada no interior do
sujeito. É na disputa entre diversas vozes sociais que a personagem deve descobrir ou tecer
relacionam, mas também desfrutam de igualdade, não estando submetidas a nenhuma outra
voz.
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dialógica de mundo em que as diferentes vozes sociais não só existem e se inter-
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a sua própria voz. Bakhtin destaca que em Dostoiésvski há uma visão radicalmente
Como já foi mencionado anteriormente, Bakhtin considerava a linguagem como
reflexo da realidade na medida em que nomeia tudo o que existe, mas também a percebe
como capaz de refratar a realidade.
Isso significa que o uso das palavras nas relações sociais acaba por impregná-las de
sentido valorativo. Dessa forma, mais do que transmitir informações, as sequências
linguísticas são capazes de definir posições ideológicas:
“Para o autor soviético, no sistema da língua se imprimem
historicamente as marcas ideológicas do discurso. Sabe-se que
uma língua produz discursos ideologicamente opostos, pois
classes sociais diferentes utilizam o mesmo sistema
linguístico. Neste caso, deve-se reconhecer que os traços
impressos na língua a partir do uso discursivo criam em seu
interior choques e contradições que fazem Bakhtin afirmar
que em todo signo se confrontam índices de valor
contraditório” (BARROS APUD IN: BARROS E FIORIN,
1999, pg 8)
Por essa propriedade refratora, a linguagem pode ser considerada não somente uma
forma de descrever o mundo, mas também uma forma de construir uma concepção de
mundo, capaz de interpretá-lo de acordo com os interesses de cada grupo social.
Thougounnikov apud in Zandwais (2005), considera que o signo linguístico ao
incorporar-se ao discurso é dotado de valor tornando-se um ideologema e compara-o ao
conceito de avaliação social de Medvedev. Para este autor, a avaliação social não existe
na língua enquanto sistema abstrato e sim na palavra viva, ou seja, na palavra empregada
em um enunciado concreto e irrepetível.
O valor do signo é consequência da evolução sócio-histórica, cultural e tecnológica
do homem a qual impregna a linguagem de significação valorativa e afetiva, sendo capaz
de veicular inclusive os preconceitos de diversas naturezas surgidos no seio da sociedade.
Nesse sentido, o autor considera que a entoação é o elo que vincula fortemente o discurso
verbal e o contexto extraverbal, pois é na interação e de acordo com princípios valorativos
que se realizam a seleção lexical do enunciado e a sua compreensão pelo interlocutor
(BRAIT APUD IN BARROS E FIORIN, 1999).
Bakthin considera três aspectos do contexto extraverbal: 1) o espaço comum dos
Souza afirma que para Bakhtin: “A situação extraverbal do enunciado não age sobre o
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qual falam; 3) avaliação que os interlocutores fazem sobre o conteúdo de seus enunciados.
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interlocutores; 2) o conhecimento partilhado pelos interlocutores sobre o tópico sobre o
enunciado de fora, como uma força mecânica, mas se integra ao enunciado como parte
constitutiva essencial da estrutura de sua significação” (SOUZA, 2000, pg 106). Nessa
concepção evidencia-se que, para Bakhtin, a linguagem e a vida são elementos
inseparáveis. Por esse motivo, o autor considera que, ao fazer abstração da linguagem para
fins de análise, o pesquisador destitui-a de seu caráter ideológico, essencial à compreensão
integral de um enunciado.
Essa concepção de linguagem influencia a visão bakhtiniana sobre a obra literária.
Para o teórico, a linguagem poética também adquire sentidos no contexto histórico em que
ocorre e graças à finalidade comunicativa com que é produzida. De acordo com esse
princípio, as ideias de Bakhtin diferenciam-se significativamente em relação à corrente
formalista a qual considerava que:
“a palavra torna-se poética ao desviar-se da linguagem da
comunicação, com sua transparência e suas determinações
sócio-históricas. A palavra poética é para os formalistas uma
palavra opaca ou ‘coisificada’, essencialmente a-histórica”
(TCHOUGOUNNIKOV APUD IN ZANDWAIS, 2005, pg 16)
Para Bakhtin, o trabalho do poeta consiste na seleção dos sentidos que pretende
veicular, os seja, a escolha das avaliações sociais pertinentes a seus objetivos. Não se trata
de escolher as palavras no sistema linguístico abstrato, mas no uso social, de onde as
palavras emergem cheias de significações avaliativas.
1.2 Análise do Filme: “Uma mente Brilhante”
A análise do filme “Uma Mente Brilhante” fundamenta-se nos estudos de Bakthin
sobre o dialogismo como mecanismo imprescindível à compreensão e interpretação do
discurso, já que torna possível o enquadramento da língua como fonte de interação social e
histórica que permite a edificação do sentido no enunciado. Para tanto, foram escolhidas
algumas cenas que permitem verificar como as relações dialógicas, além de refletirem a
realidade por meio do signo linguístico, também a refratam, ou seja, filtram, questionam,
intervém no mundo, e por analogia na existência humana. Dessa maneira, o homem é o que
o outro lhe mostra.
esquizofrênico e ganhador do premio Nobel de física constituem-se na possibilidade de
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verificação do funcionamento da língua em seu estado de uso, pois a indústria
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Para os estudos propostos, à história biográfica de John Nash, matemático,
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cinematográfica tenta expressar o verossímil do cotidiano por meio da utilização dos
recursos áudios-visuais que permitem a identificação por parte do telespectador daquilo
que lhe é apresentado como verdade possível e reconhecível pela articulação do imaginário
a sua memória individual e coletiva. Dessa forma, cada cena encontra-se impregnada pelo
discurso de diversas “vozes sociais” que exprimem os valores culturais, econômicos e
políticos que circundam a época da concepção do enunciado.
1.3 Análise da Cena 1 – Ingresso na Universidade de Princeton
O discurso do professor da Universidade de Princeton aos futuros matemáticos
encontra-se permeado pelo idealogema da valorização do positivismo de Comte1, expresso
por meio da escolha lexical (resultados, publicáveis e aplicáveis). Essa interdiscursividade
vincula-se também, a situação de incerteza política e econômica ocasionada pela
disseminação da guerra fria, implícita a frase: (Os soviéticos querem implantar o
comunismo no mundo).
Dessa forma, o pós-segunda guerra mundial é evidenciado pela
fala da personagem como um momento de reencontro do homem multifacetado pelas
repercussões dos horrores da explosão da bomba atômica. Há a busca pelo racional, pelo
lógico, pelo equilíbrio e pela justificativa do discurso pelo próprio discurso, no que se
refere à conduta norte-americana diante do ataque dos Japoneses a Pearl Harbor, expresso
pelo subentendido da frase (Os matemáticos decifraram os códigos japoneses e
construíram a bomba atômica). A intertextualidade da fala do professor, ao citar Morse e
Einstein, revela a necessidade de heróis (pessoas que revolucionaram o seu tempo) para a
continuidade e evolução da espécie humana.
Convém ressaltar que a personagem em seu discurso permeia e evidencia o
momento extralinguístico do enunciado, uma vez que este organiza o ato comunicativo por
meio da avaliação social que reúne o dado material das palavras com seu sentido. Dessa
maneira, a grande eloquência do discurso aliado à interdiscursividade e a intertextualidade
marcam o caráter profético da narrativa que demonstra uma fala dialógica com tonalidade
monológica, na qual as várias “vozes sociais” servem para reforçar e propiciar
credibilidade à mensagem abordada. A força expressiva da incertiva possui a
intencionalidade de fazer-se crer na ideologia da sociedade Americana como forma de
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August Comte, filósofo e sociólogo francês e fundador do positivismo. Doutrina que considera válidos os
conhecimentos a partir da experiência sensorial prática.
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governo democrático e libertário o qual valoriza a constante descoberta do conhecimento, a
fim de tornar as relações humanas mais justas e igualitárias - (Qual de vocês será a
vanguarda da democracia, da liberdade e da descoberta?).
Dessa forma, “dar as boas vindas aos alunos” na narrativa significa
assegurar-lhes o ingresso a uma cadeia de valores éticos, morais, comportamentais,
culturais, político e econômicos que se constituem como norteadores da realidade histórica
apresentada. Para tanto, o autor por meio da ilusão referencial persuade o leitor, uma vez
que o direciona a acreditar na falsa ideologia de “igualdade a todos” do seu pensamento.
1.4 Análise da Cena 2 – Ideologia e visão de mundo com Charles
A cena dois retrata a visão de mundo de John Nash, durante o ingresso na
Universidade de Princeton. Dessa forma, seus anseios, suas expectativas e metas para o
futuro, bem como, seus valores familiares, morais e sociais são construídos por meio do
diálogo com a personagem Charles que se constitui no “outro”, segundo as relações
dialógicas bakhtinianas, responsável por tornar válida a fala do protagonista. Essa
interação entre as personagens permite que haja a construção do sentido, uma vez que a
elaboração do discurso de John subordina-se ao discurso de Charles, para redefini-lo,
refutá-lo, ou ainda, amalgamá-lo a sua fala.
Charles ao perguntar a John sobre a sua história permite que este tenha a
oportunidade de relatar sobre sua criação familiar, e consequentemente, expor ao leitor
suas crenças e sua personalidade. Também devemos perceber que a fala de Charles
possibilita ao narrador evidenciar ironicamente as relações de uma sociedade marcada pela
aparência, já que a pergunta (A de alguém que não pegou uma bolsa para Europa, ou de
uma faculdade de elite?), mostra a valorização da questão do “status” como mecanismo de
ascensão social.
Ao responder John garante a continuidade da situação de comunicação que se firma
a partir do crivo do “olhar do outro”, nesse caso Charles, que emite um juízo de valor a
respeito do protagonista (Talvez entenda mais de integrais, do que de pessoas...),
reforçando o seu aspecto solitário, e de certo modo a sua inteligência matemática. Os
posteriores discursos de John encontram-se em consonância com o aspecto apresentado
anteriormente (John: Minha professora primaria dizia que eu entrei duas vezes na fila do
cérebro e nenhuma na do coração / O fato é de que eu não gosto das pessoas. E elas não
afirmação pessoal e de questionamento a padronização que permeiam o mundo acadêmico
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Ao final da cena percebe-se as relações de competitividade, de necessidade de auto-
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gostam de mim).
de John (A metade deles já tem trabalhos publicados. Eu não posso perder tempo nessas
aulas, nesses livros. Decorando as suposições de reles mortais). Particularmente a frase
(È, eu tenho que olhar além da dinâmica dos governos) estabelece uma interdiscursividade
opositiva em relação ao pensamento de Locke2, já que nega a ideia de subordinação dos
“governados/graduandos” a uma hierarquia e a uma forma de enquadramento intelectual
presente na realidade universitária. John busca a sua identidade em um mundo, onde cópias
e paráfrases são aceitáveis. Entretanto, para o protagonista sua vida só terá sentido no
momento que tiver uma ideia original que promova o seu valor dentro da sociedade
(Encontrar uma ideia original. É o meu único jeito de me sobressair) E não se pode deixar
de salientar de que a contribuição de Charles encontra-se no fato de complementar a fala
de John, permitindo uma consonância entre o “eu” e o “outro” (John: Vai ser o único jeito
de ser... / Charles: Útil).
1.5 Análise da Cena 3 – Citação de Adam Smith
Nesta cena John está em um bar, sozinho em um canto, e concentrado em suas
anotações. Quando de repente é surpreendido pelos colegas que chamam a sua atenção
para a chegada de uma moça loira. Dessa maneira, o mecanismo da conquista amorosa é
retratado pela intertextualidade (utilização dos vocabulários: espadas, pistolas) que se alia
a interdiscursividade para expressar a ideia de duelo(Que tal espadas?! Pistolas ao
amanhecer?!). Tal menção constitui-se em uma forma humorística, já que não há
realmente a intenção dos amigos de duelarem pela moça, reforçada pelo discurso (E quem
sobrar fica com as amigas). Há também, a alusão ao casamento como entidade burguesa
que se encontra evidenciada no discurso (Acham que ela vai querer festa de casamento?).
Convém ressaltar que a construção do diálogo na cena apoia-se nos valores sociais
edificados ao longo da história da humanidade, mas que sofrem transformações
ocasionadas pela resignificação da realidade por um sujeito discursivo e interativo, que
leva em conta a opinião do “outro” ao edificar o seu discurso.
Antigamente, os homens para saírem-se vitoriosos no amor tinham que provar a sua
masculinidade e a sua bravura através do duelo. Mas na sociedade moderna, segundo o
John Locke (1632/1704) foi um filósofo do predecessor Iluminismo tinha como noção de governo o
consentimento dos governados diante da autoridade constituída, e, o respeito ao direito natural do homem, de
vida, liberdade e propriedade.
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dialogismo expresso na narrativa, basta seguir a teoria de Adam Smith e deixar que o
melhor triunfe (Vocês não sabem de nada! Lembrem-se da lição de Adam Smith3, o pai da
economia moderna / Nenhuma competição. A ambição por igual serve ao bem comum! /
Exato. É cada um por si, senhores!). Dessa maneira, a fala das personagens mostra a
evolução da linguagem pela incorporação dos elementos histórico-sociais que permitem ao
homem tomar consciência de si mesmo, do mundo e do outro.
Considerações Finais
A análise das cenas do filme: “Uma Mente Brilhante” sob a perspectiva do
dialogismo de Bakhtin permitem evidenciar que John Nash assim como os outros
personagens servem de ideólogos para o narrador, uma vez que por meio dos seus
discursos há a expressão das diversas “vozes sociais” presentes no texto que convergem
para um discurso monológico, já que representam as várias faces de um processo de
criação que se direciona para retratar as instabilidades psicológica, econômica e política do
pós-guerra. Dessa forma, toda a ideologia da sociedade americana pós-segunda guerra
mundial transparece na fala dos personagens e na intertextualidade e interdiscursividade
expostas na narrativa, o que permite ao leitor verificar as angústias, os medos e as
incertezas de um homem multifacetado. Também, pode-se perceber que a linguagem
constitui-se em um mecanismo valorativo que por meio da entoação o “eu” posiciona-se
em relação ao “outro”.
A personagem John Nash representa a figurativização de uma determinada classe
social (pesquisador matemático), mas ao mesmo tempo, torna-se um arquétipo para ao
longo da narrativa o autor expor o problema da esquizofrenia e entrelaçá-lo ao enredo, a
fim de sensibilizar o telespectador entre o paradoxo da realidade X fantasia que atormenta
os portadores dessa patologia. O drama da história é evidenciado através do discurso do
“outro” (doutor Roussem) que mostra a realidade como um conjunto de valores éticos,
morais, de edificação de hábitos e comportamentos construídos socialmente pela utilização
de um discurso hierárquico. Não se verifica na narrativa a carnavalização de Bakhtin, uma
vez que a temática da loucura envolve um aspecto humanístico e filosófico, responsável
por situá-la como um mundo imaginário que só existe para um “eu”, mas é ilusão irreal
Adam Smith Adam Smith, economista britânico. Conhecido, sobretudo como fundador da economia liberal
clássica.
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para o “outro”, portanto, não é válida para existir como verdade.
A plurivocalidade do texto sincrético reflete a tensão entre autoria, visto que a voz
do narrador traspassa-se para a fala das personagens, permitindo que estas se manifestem
como sujeito de uma telerrealidade que reflete e refrata a vida cotidiana por meio da
interação do discurso do “eu” com “outro”.
Referências
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005.
BARROS, D. L. P. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN
J. L (orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
BLIKSTEIN, I. Intertextualidade e Polifonia. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN J. L (orgs.)
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
BRAIT, B. As vozes bakhtinianas e o Diálogo Inconcluso. In: BARROS, D. L. P.;
FIORIN J. L (orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
FARACO, C. A. Linguagem e Dialogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003.
FAVERO, L. L. Paródia e Dialogismo. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN J. L (orgs.)
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
FIORIN, J.L. Polifonia Textual e Discursiva. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN J. L (orgs.)
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à lingüística da
Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
SOUZA, S.J e. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas:
Papirus Editora, 2000.
Página
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: opacidade e transferência. São Paulo.
Linguagens, 2005.
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TCHOUGOUNNIKOV, S. Por uma arqueologia dos conceitos do círculo de Bakhtin:
ideologema, signo idológico, dialogismo. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN J. L (orgs.)
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
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Anexos
Anexo 1 – Dados sobre o Filme
Uma Mente Brilhante (A Beautiful Mind)
Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Ed Harris, Paul Bettany, Scott Fernstrom, Josh
Lucas, Ned Stuart.
Direção: Ron Howard
Gênero: Drama
Distribuidora: UIP (135 minutos)
Estréia: 2002
Sinopse: Uma Mente Brilhante é baseado no livro A Beautiful Mind: A Biography of John
Forbes Nash Jr., de Sylvia Nasar. O filme conta a história real de John Nash que, aos 21 anos,
formulou um teorema que provou sua genialidade. Brilhante, Nash chegou a ganhar o Prêmio
Nobel. Diagnosticado como esquizofrênico pelos médicos, Nash enfrentou batalhas em sua vida
pessoal, lutando até o fim de sua vida.
Anexo 2 - Cena 1: Ingresso na Universidade
Professor Reitor: Os matemáticos venceram a guerra. Os matemáticos decifraram os
códigos japoneses e construíram a bomba atômica. Matemáticos como vocês. Os
soviéticos querem implantar o comunismo no mundo. Seja na medicina, na economia, na
tecnologia, ou no espaço, traçam-se linhas de combate. Para triunfar são precisos
resultados publicáveis, aplicáveis. Resultados! Qual de vocês será o próximo Morse4?
Próximo Einstein5? Qual de vocês será a vanguarda da democracia, da liberdade e da
descoberta? Hoje, entregamos o futuro da América em suas hábeis mãos. Bem vindos a
Princeton, cavalheiros!
Anexo 3 – Cena 2: Ideología e visão de mundo com Charles
Charles: Qual a sua história? A de alguém que não pegou uma bolsa para Europa, ou de
4
Samuel Morse idealizador do código Morse que consiste na transmissão da comunicação a distancia por
meio da utilização de pontos, pausas e traços.
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Albert Einstein, físico alemão e criador da teoria da relatividade.
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uma faculdade de elite?
John: Graças aos privilégios de minha criação, eu sou bem estável. Tive várias
oportunidades.
Charles: Hum! Talvez entenda mais de integrais, do que de pessoas...
John: Minha professora primaria dizia que eu entrei duas vezes na fila do cérebro e
nenhuma na do coração.
Charles/John: Risos...
John: É.
Charles: Hum, ela é simpática!
John: O fato é de que eu não gosto das pessoas. E elas não gostam de mim.
Charles: O quê?! Com todo esse saber e o seu charme! Falando sério....Matemática!
Matemática nunca levara você a verdade! Quer saber por quê? Porque é chata, muito
chata.
John: A metade deles já tem trabalhos publicados. Eu não posso perder tempo nessas
aulas, nesses livros. Decorando as suposições de reles mortais. È, eu tenho que olhar além
da dinâmica dos governos. Encontrar uma idéia original. É o meu único jeito de me
sobressair. Vai ser o único jeito de ser...
Charles: Útil.
John: É isso mesmo.
Anexo 4 – Cena 3: Citação de Adan Smith
John: Ainda não tô pagando cerveja.
Amigo 1: A gente não está aqui pela cerveja. Hum, Hum...
John: Ah! Concordam que ela deveria se mover em câmera lenta.
Amigo 2: Acham que ela vai querer festa de casamento?
Amigo 1: Que tal espadas?! Pistolas ao amanhecer?!
Amigo 3: Vocês não sabem de nada! Lembrem-se da lição de Adam Smith6, o pai da
economia moderna.
Todos (menos John): Nenhuma competição. A ambição por igual serve ao bem comum!
Amigo 4: Exato. É cada um por si, senhores!
6
Adam Smith Adam Smith, economista britânico. Conhecido, sobretudo como fundador da economia liberal
clássica.
UEM - Universidade Estadual de Maringá / PLE – Programa de Pós-graduação em Letras
Disponível em:<anais.jiedimagem.com.br>.
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Amigo 5: E quem sobrar fica com as amigas