XV CISO – Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais Pré-ALAS
Transcrição
XV CISO – Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais Pré-ALAS
XV CISO – Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais Pré-ALAS 4 A 7 DE SETEMBRO DE 2012 UFPI – TERESINA, PI GT – Mídia, cultura e sociedade A CIBERCULTURA E A REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA DA MÚSICA Guilherme Carvalho (UERN)1 1 Coordenador do Mestrado em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Professor Permanente do Mestrado em Letras da UERN, Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB. Introdução No contexto da revolução informacional, os modos de produção e difusão da arte, da cultura e da música foram alterados. A difusão dos bens simbólicos se dá pela mediação das novas Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC’s. Com o aperfeiçoamento das tecnologias digitais, surge a World Wide Web, um espaço virtual que constitui o ciberespaço. Caracterizado como uma multimídia digital baseada nas TIC’s que converge textos, áudio e vídeo, o ciberespaço pode ser visto como um sistema de comunicação global e interativo. Com o ciberespaço, surge a cibercultura, entendida como um novo modo de reprodutibilidade tecnológica do mundo simbólico, ou dos bens culturais. Se considerarmos a cultura como o conjunto das manifestações do ser humano que envolve as tradições, a arte, a religião, os valores e os bens simbólicos, a música também faz parte desta dimensão. Apropriada pela indústria cultural, a música foi transformada em mercadoria para consumo, formando uma cadeia produtiva englobando as gravadoras e a mídia. Com a revolução informacional e o advento da cibercultura, podem ser observadas mudanças significativas nos processos de reprodução e difusão da música. A digitalização da música reduziu a venda de CDs, atingindo as grandes gravadoras e a cadeia produtiva da indústria fonográfica. Todavia, a reprodutibilidade tecnológica da música baseada nas mídias digitais possibilitou também a divulgação de trabalhos artísticos de músicos e grupos musicais com projeção local. Levando em consideração tais aspectos, o presente estudo discute as mudanças na indústria fonográfica com o advento da cibercultura. Trata-se de uma pesquisa que, primeiramente, aprofundou estudos sobre a cibercultura e, no presente momento, é redirecionada para a temática do uso de tecnologias digitais nos processos de produção e difusão da música. Portanto, apresentamos aqui apenas hipóteses provisórias que necessitam de estudos mais aprofundados. O trabalho está subdividido em três partes. Na primeira, evidenciamos as noções de “indústria cultural” e “reprodutibilidade técnica da obra de arte” para refletirmos sobre a indústria fonográfica e os modos de reprodução da música. Estes conceitos são discutidos a partir das teorias de Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin. Salientamos, na segunda parte, o desenvolvimento do ciberespaço e o aparecimento da cibercultura. A última parte é dedicada a uma discussão acerca das mudanças na indústria fonográfica com a digitalização da música e o uso das tecnologias de informação e comunicação nos processos de produção e difusão musical. Indústria cultural e reprodutibilidade técnica Na década de 1940, Adorno e Horkheimer desenvolveram estudos sobre a produção e a difusão da cultura no sistema capitalista. No livro Dialética do Esclarecimento, publicado em 1947, trataram, pela primeira vez, do conceito de indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Nesta época, os filósofos da Escola de Frankfurt viajaram para os Estados Unidos para fugir de perseguições em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Lá se depararam com uma indústria voltada para o entretenimento e a diversão. A indústria cultural, de acordo com Adorno e Horkheimer (1985), é uma forma de cultura direcionada para o consumo de massa, uma “forma sui generis pela qual a produção artística e cultural é organizada no contexto das relações capitalistas de produção, lançada no mercado e por este consumida” (FREITAG, 1994, p.72). Portanto, a produção artística, incluindo o cinema, as artes plásticas, a música e outras formas de expressão, é direcionada para a venda no mercado e o consumo. Na visão de Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural aliena o trabalhador na medida em que serve para ocupar o seu tempo livre. A cultura voltada para o consumo de massa é vista como uma “máquina destruidora da razão, empresa totalitária de erradicação da autonomia do pensamento” (LIPOVETSKY, 1989, p.15). Neste sentido, a arte é transformada em mercadoria para o consumo. A nova produção cultural tem a função de ocupar o espaço de lazer que resta ao operário e ao trabalhador assalariado depois de um longo dia de trabalho, a fim de recompor suas forças para voltar a trabalhar no dia seguinte, sem lhe dar trégua para pensar sobre a realidade miserável em que vive. A indústria cultural, além disso, cria ilusão de que a felicidade não precisa ser adiada para o futuro, por já estar concretizada no presente — basta lembrar o caso da telenovela brasileira. E, finalmente, ela elimina a dimensão crítica ainda presente na cultura burguesa, fazendo as massas que consomem o novo produto da indústria cultural esquecerem sua realidade alienada (FREITAG, 1994, p.73). A técnica e a racionalidade instrumental, que substituíram a razão emancipatória do Iluminismo no contexto do sistema capitalista, direcionam a indústria cultural. Em tal contexto, a arte produzida para o consumo e o entretenimento não propiciam a autonomia e o esclarecimento dos indivíduos, na perspectiva de Adorno e Horkheimer (1985), na medida em que estão voltadas para interesses puramente econômicos. O que interessa no cinema, por exemplo, são as “cifras de bilheteria” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). O mesmo ocorre com relação à indústria fonográfica. Grandes empresas expandiram-se no mercado mundial, utilizando os meios de comunicação de massa e o monopólio dos sistemas de distribuição de álbuns fonográficos em lojas. Assim, os aparelhos de produção desenvolvidos no sistema capitalista transformaram a arte em mercadoria, criando uma cadeia produtiva no caso da música que envolve interesses econômicos, negócios, capital, consumo, lucro e mercado. As multinacionais da indústria fonográfica se adequam aos interesses locais para estender seus negócios a novos mercados. Apesar do aparecimento e da importância que adquiriram as pequenas gravadoras, 70 % do mercado da indústria fonográfica é dominado por quatro multinacionais, a Universal, a BMG/Sony, a EMI e a Warner (QUEIROZ, 2012). Adorno e Horkheimer (1985) consideram a arte produzida pela indústria cultural como uma forma de incultura ou “acultural” (FREITAG, 1994) já que está voltada exclusivamente para o entretenimento, alienando as pessoas. A incultura da indústria cultural afeta até mesmo os órgãos sensoriais dos indivíduos, reduzindo, no caso da música, a capacidade de audição deles. Todavia, a perspectiva de Adorno e Horkheimer não é a única abordagem sobre a indústria cultural. Analisando o uso das técnicas modernas do sistema capitalista para a reprodução da obra de arte, Walter Benjamin (1985) discute a perda da aura. Benjamin (1985) apresenta uma visão diferente de Adorno e Horkheimer em relação às técnicas de reprodução da obra de arte. Refletindo sobre a reprodução das produções artísticas, Benjamin (1985) não considera que as técnicas modernas sejam os primeiros modos de reprodutibilidade da obra de arte. Criada na Idade Média, a xilogravura é considerada por Benjamin (1985) como a primeira forma de reprodução do desenho. No entanto, a reprodutibilidade técnica que surge no sistema capitalista possui certas especificidades. No caso da fotografia, por exemplo, “a reprodução técnica tem mais autonomia” na medida em que acentua “certos aspectos do original, acessíveis à objetiva” (BENJAMIN, 1985, p.168). Por outro lado, a reprodução da obra de arte baseada nas técnicas modernas do sistema capitalista potencializa o acesso das pessoas aos bens culturais. Assim, as obras de Mozart e Beethoven, anteriormente inacessíveis para quem não fazia parte de uma pequena elite, ao serem reproduzidas pelas técnicas modernas desenvolvidas no contexto do sistema capitalista, tornam-se acessíveis a mais pessoas, mesmo levando em consideração que o acesso dependerá do nível cultural de cada indivíduo. Outro aspecto apontado por Benjamin (1985) é a perda da aura da obra de arte com o uso das técnicas modernas de reprodução. “Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”. Apesar da perda da aura, a obra de arte, para Benjamin (1985), apresenta um potencial politizador e, por conseguinte, emancipatório. Tal aspecto pode ser observado a partir das peças teatrais de Bertholt Brecht ou os filmes de Chaplin que questionam a situação da classe trabalhadora e a exploração do sistema capitalista. Se a cultura for entendida como o conjunto de manifestações e características espirituais, materiais, intelectuais e afetivas de uma determinada sociedade, incluindo aí as artes, a literatura, o folclore, os modos de vida, as tradições e a música, podemos concebê-la como o mundo simbólico do ser humano. Cassirer (2005) mostra que uma característica marcante do ser humano é que, além do sistema receptor e do sistema efetuador, ele possui um sistema simbólico. Este é definido como uma “nova dimensão da realidade” (CASSIRER, 2005, p.48). Seguindo as perspectivas de Benjamin e Cassirer, podemos dizer que as técnicas modernas de reprodução da música e de outras expressões artísticas consistem em modos de reprodutibilidade de bens culturais ou simbólicos. Na modernidade, o mundo simbólico é reproduzido por técnicas desenvolvidas no contexto do sistema capitalista, seguindo, por um lado, a lógica e os interesses mercadológicos, mas mantendo, em alguns casos, um teor de crítica política, além de proporcionar, em outros, a manutenção e o registro de manifestações da cultura popular. Apesar de mostrar uma visão demasiadamente otimista em relação à mídia, Lipovetsky (1989, p.17) mostra “o papel da sedução e do efêmero no impulso das subjetividades autônomas”, além do “papel do frívolo no desenvolvimento das consciências críticas [...]”. Talvez seja exagero afirmar que os meios de comunicação que servem para difundir a música tenham um caráter democratizante e prossigam a trajetória iluminista, como sugere Lipovetsky (1989). Por envolver os interesses econômicos e as negociações de empresas multinacionais, a indústria fonográfica se insere na lógica da indústria cultural constituída no sistema capitalista. Há o aspecto do entretenimento e da diversão, além de produções no campo da música que servem mais para alienar o indivíduo. Contudo, não é possível generalizar a produção musical difundida pela indústria fonográfica. A reprodutibilidade técnica da música — entendida como uma forma de reprodução de bens simbólicos — propicia mais acesso à cultura e pode apresentar um potencial emancipatório. Cibercultura e reprodutibilidade técnica do mundo simbólico Um dos serviços que tornou possível a transmissão de informações através da Internet é a World Wide Web. O termo web significa “rede”. Assim, usuários, empresas, governos e bancos podem estar conectados na grande rede mundial de computadores, isto é, a World Wide Web, transmitindo e recebendo informações, compartilhando conhecimentos, mesmo estando situadas em regiões diferentes. Diversas informações podem ser digitalizadas e disponibilizadas em uma página, como textos, imagens, vídeos e sons. As páginas interconectadas formam os sites da Internet. Os sites também se interconectam por intermédio de links. Quando um usuário acessa a Web navega no ciberespaço. O termo “navegar” é uma metáfora utilizada na Internet para fazer referência à prática de se interconectar ao ciberespaço. Na dimensão do ciberespaço, aparece uma nova forma de leitura, tendo em vista que as páginas compõem hipertextos e o navegador escolhe o caminho que mais lhe interessa percorrer na Internet. “O navegador pode se fazer autor de maneira mais profunda do que percorrendo uma rede preestabelecida: participando da estruturação do hipertexto, criando novas ligações” (LÉVY, 1996, p. 45), ou novas páginas e links. O hipertexto não tem uma forma linear. Além de hipertextos, a World Wide Web é composta pela hipermídia, já que há na Web a união de diversos modos de comunicação de informações. Existem na Web diversos modos de transmitir e receber as informações. É preciso ressaltar ainda que a World Wide Web permite a interação entre usuários que podem ser respectivamente receptores da mensagem ou emissores dela. A World Wide Web tem um aspecto global na medida em que se constitui um grande hipertexto construído pelos usuários da rede. Informações diversas e conhecimentos específicos podem ser encontrados na World Wide Web com acesso público para os usuários da rede. “Todos os textos públicos acessíveis pela rede Internet doravante fazem virtualmente parte de um imenso hipertexto em crescimento ininterrupto” (LÉVY, 1996, p. 46). Com o advento da World Wide Web, o processo de transmissão de conhecimentos adquire novas configurações, já que em outras formas de mídia e troca de informações — como o correio, o rádio ou a televisão — os meios de comunicação restringiam-se a textos impressos, ao som da voz ou a imagens na tela. A hipermídia proporcionou a integração de diversos meios de comunicação. Por unir textos, sons e imagens, a hipermídia renovou os modos de transmissão do conhecimento. Multimídia e hipertexto são mecanismos de transmissão de informações utilizados na World Wide Web, remodelando as práticas sociais. Se tomarmos a palavra ‘texto’ em seu sentido mais amplo (que não exclui nem sons nem imagens), os hiperdocumentos também podem ser chamados de hipertextos. A abordagem mais simples do hipertexto é descrevê-lo, em oposição a um texto linear, como um texto estruturado em rede. O hipertexto é constituído por nós (os elementos de informação, parágrafos, páginas, imagens, seqüências musicais etc.) e por links entre esses nós, referências, notas, ponteiros, ‘botões’ indicando a passagem de um nó a outro (LÉVY, 1999, p.56). Castells (2003) não acredita que a multimídia e a Internet teriam constituído um hipertexto eletrônico em escala global. Falar em hipertexto é referir-se a algo que “não é produzido pelo sistema multimídia usando a Internet como” meio de comunicação (CASTELLS, 2003, p. 166). O hipertexto seria um composto de textos, sons e imagens produzidos pelo ser humano que utiliza a Internet como forma de assimilação da cultura. A partir da criação da Internet surge a noção de ciberespaço. Pierre Lévy (1999) entende o ciberespaço como um sistema de comunicação surgido a partir da interligação dos computadores em rede. Relacionando o ciberespaço com a difusão da Internet como um sistema mundial de comunicação que interconecta computadores numa rede de redes, Lévy (1999) salienta que o ciberespaço acolhe uma infinidade de informações, expandindo suas fronteiras na medida em que é alimentado e realimentado pelos usuários. O usuário percorre o caminho que preferir no ciberespaço. Diferentemente de um livro, o hipertexto não tem início, meio e fim, mas diversos links para páginas interpostas no ciberespaço. Ao concebê-lo como “um não-lugar”, Lemos (2004, p. 128) compreende o ciberespaço “como um espaço transnacional onde o corpo é suspenso pela abolição do espaço [...]”. O ciberespaço seria, então, “um espaço imaginário, um enorme hipertexto planetário” que representaria, por fim, “a encarnação tecnológica do velho sonho de criação de um mundo paralelo, de uma memória coletiva, do imaginário, dos mitos e símbolos [...]”, por conseguinte, da dimensão simbólica do ser humano que transpõe para o espaço virtual imagens, sons, signos e símbolos do imaginário coletivo. Lévy (1999, p. 146) acrescenta que no ciberespaço os navegadores da rede têm “acesso a um gigantesco metamundo virtual heterogêneo que acolherá o fervilhamento dos mundos virtuais particulares com seus links dinâmicos [...]”, podendo constituir uma experiência da “beleza que repousa na memória das antigas culturas, assim como aquela que nascerá das formas próprias da cibercultura”. A cibercultura seria um “conjunto de técnicas, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 1999, p. 17). Lemos (2004, p. 131) sugere que “com o advento da cibercultura, a cultura contemporânea” estaria diante de “um rito de passagem em direção à desmaterialização da sociedade pósindustrial”. O paradigma da digitalização abrangeria a cibercultura que parece buscar “a circulação de informações, o híbrido, a comunicação e interação” (LEMOS, 2004, p. 183), de forma síncrona e assíncrona, traduzindo o “mundo em bits [...], manipuláveis e postos em circulação” no ciberespaço. Ao concebermos a cibercultura como o conjunto de práticas, modos de pensamento e valores que crescem com o ciberespaço, corremos o risco de predizer algo diverso da cultura das sociedades industriais quando o que temos, por enquanto, é a transfiguração dos bens simbólicos e de maneiras de agir e pensar num paradigma baseado na digitalização de informações. Ações do cotidiano, como estudar numa universidade ou pagar uma conta no banco, são realizadas por intermédio de artefatos tecnológicos. As formas de transposição de signos e símbolos modificam-se e o ciberespaço é mais um modo de difusão da cultura que se diferencia de outros meios de comunicação por permitir a convergência dos suportes de transmissão de informações e formar uma rede mundial de telecomunicação. Castells (1999) concebe a cultura que emergiu com a formação da sociedade em rede através do advento de um sistema de comunicação mundial como a “cultura da virtualidade real”. O universo digital seria mais um ambiente simbólico que nos conduziria não a uma realidade virtual, mas à experiência humana captada de maneira abrangente e diversificada. No caso da Internet, a realidade é figurada pela mediação de dígitos binários. Isto não quer dizer que a realidade material foi suplantada por formas de interação mediadas pelo paradigma da digitalização, tendo em vista que: [...] a realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é percebida por intermédio de símbolos formadores da prática com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição semântica. É exatamente esta capacidade que todas as formas de linguagem têm de codificar a ambigüidade e dar abertura a uma diversidade de interpretações que torna as expressões culturais distintas do raciocínio formal/lógico/matemático (CASTELLS, 1999, p.395). O sistema de comunicação que aparece na sociedade da informação corresponde à construção de uma virtualidade real. A cultura da virtualidade real constitui-se mediante a comunicação virtual, tendo como suporte a microeletrônica. Na perspectiva de Castells (2003, p. 167), é uma cultura real, já que corresponde às bases materiais da existência humana, ou seja, às formas de representação da realidade e construção de significados. Informações, imagens, sons e textos podem ser digitalizados e armazenados em memórias virtuais, permanecendo acessíveis através de multimídias e da Internet. O uso do computador pessoal (microcomputador), a criação do modem, da World Wide Web e da Internet modificam, sobretudo, a memória coletiva da humanidade, além de influenciar mudanças nas atividades cotidianas, nas formas culturais e no modo de construção do conhecimento, perpassando, assim, o conjunto multidimensional dos campos de análise do saber humano. Digitalização da música e indústria fonográfica O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação alterou os processos de produção e difusão da música. As tecnologias digitais chegaram ao Brasil ainda no início da década de 1990. Mudanças significativas ocorreram com o uso das tecnologias digitais nos processos de produção musical. Ao mencionar estas mudanças, Dias (2008, p.15) levanta um questionamento: “será o fim da grande indústria fonográfica?” As tecnologias digitais foram incorporadas aos sistemas de gravação, conciliando o digital com o analógico. Contudo, os processos de edição e mixagem são realizados em sistemas digitais. Assim, as tecnologias digitais se integram “à indústria cultural” (DIAS, 2008, p.15) e modificam a indústria fonográfica. No âmbito da indústria fonográfica, o que deveria ter sido apenas mais um melhoramento técnico para o conjunto gravação/reprodução, como tantos outros vistos, transformouse primeiramente em fonte de lucro fácil para as companhias, com as reedições em CD dos discos registrados em vinil. Mas a popularização da tecnologia digital trouxe consigo também a capacidade de alterar as regras do jogo: a partir de então, a indústria fonográfica mundial não mais poderia manter o domínio fechado sobre os meios de produção de discos, o que sempre sustentou sua primazia na proposição de conteúdos musicais. O dilema foi aos poucos instaurando uma crise sem precedentes na história desse ramo da indústria cultural, com a queda nos lucros, contenção de investimentos e reestruturação das formas de atuação (DIAS, 2008, p.15). Com a incorporação das tecnologias digitais há uma redução nos custos de produção. O sistema de gravação analógico tinha um custo muito alto. Somente as grandes gravadoras tinham condições de financiar a produção de um álbum. Além da produção do álbum, as multinacionais da indústria fonográfica financiam a publicidade nas rádios e na televisão. Mesmo com a incorporação das tecnologias digitais ainda são as multinacionais que dominam os sistemas de produção e difusão musical. No entanto, as tecnologias digitais propiciaram uma redução nos custos de produção tão significativa que é possível criar um estúdio em casa. As tecnologias digitais atingem não somente o sistema produção da música, mas também as formas de difusão musical. “Há uma vasta produção musical circulando via difusão digital, estimulando inclusive o circuito de apresentações ao vivo, apesar do forte gargalo operado pela grande mídia” (DIAS, 2008, p.16). Não é nossa intenção aqui discutir as questões técnicas que envolvem a mudança na gravação da música do sistema analógico para o digital, problemática que merece uma reflexão mais aprofundada e não tem tanta relevância quando tratamos do consumidor leigo que não possui um conhecimento técnico e nem a capacidade auditiva desenvolvida por músicos, engenheiros de som e produtores. O questionamento que tem sido levantado diz respeito ao fim do álbum com o advento do formato digital da música, o qual circula no ciberespaço e faz parte da cibercultura. Formatos da música “como o MP3, iPod, celular, CDs, transmissão de dados via bluetooth, laptop, myspace, pendrives, p2p” (QUEIROZ, 2012, p.22), potencializam a circulação e a difusão musical. Aí temos uma das razões da queda nos lucros com a redução da venda de álbuns. São formas e plataformas que aumentam consideravelmente os meios de transmissão. Consequentemente, tem-se maiores probabilidades de se aumentar o mercado consumidor, o qual, por sua vez, fomenta os meios de produção (e vice-versa), permitindo, no contexto atual, um espaço para todos os atores e um aumento de forma sistemática de produtos como bens simbólicos de consumo (QUEIROZ, 2012, p.22). As novas formas de produção e difusão da música movimentam o mercado das gravadoras e dos artistas independentes. Apesar de um público reduzido em comparação com aquele atingido pelas multinacionais da indústria fonográfica, os independentes apropriam-se do ciberespaço para difundirem suas produções musicais em sites, blogs, em comunidades virtuais, e-mails, etc. Dias (2008, p.21) ressalta que “os avanços, sobretudo no âmbito das tecnologias de gravação” proporcionam “uma relativa autonomização de algumas etapas da produção de discos, possibilitando que artistas e empresas independentes produzam e busquem seu lugar no mercado”. Podemos dizer que com a gravação digital já é possível, com um equipamento de baixo custo, realizar as etapas da produção musical. Na perspectiva de Dias (2008), as questões que envolvem a produção independente são apresentam uma complexidade e extensão que merece estudos e pesquisas. As gravadoras independentes compõem a indústria fonográfica e se apoiam cada vez mais dos processos de digitalização da música para se afirmarem no mercado. Com o domínio das multinacionais, “o panorama sempre evidenciou a contradição existente entre a farta produtividade e efervescência musicais e as restritas possibilidades de acesso” (DIAS, 2008, p.129) aos meios “de produção e difusão” da música, principalmente quando nos referimos ao contexto da gravação analógica. Alcançando os nichos, as independentes testam produtos, preparam artistas que não são inicialmente acolhidos pelas multinacionais, “permitindo à major realizar escolhas mais seguras no momento em que decide investir em novos nomes” (DIAS, 2008, p.129). Tal aspecto pode ser observado na pesquisa que iniciamos sobre a música independente em Brasília. É o caso de bandas como o Natiruts e o Maskavo Ruts que iniciaram suas produções de forma independente e em gravadoras independentes. Contratadas por multinacionais, essas bandas passaram a circular na grande mídia. Por outro lado, o trabalho artístico de bandas e artistas independentes de Brasília, como os grupos Amanita, Ha-ono-beko, Feijão de Bandido, ou músicos como Hamilton de Holanda e Gabriel Grossi, produzido por meio de gravações digitais é difundido no ciberespaço, sendo expressão da cibercultura entendida aqui como bem simbólico. São artistas que não estão na grande mídia, mas possuem um público local. Considerações finais Com o aperfeiçoamento das tecnologias de comunicação, impulsionado, sobretudo, pela convergência entre microeletrônica e computação, ocorreram mudanças significativas na mídia. As tecnologias digitais constituem um sistema de comunicação mundial, propiciando a integração de áudio, vídeo e texto. Surge o ciberespaço e uma forma de reprodutibilidade tecnológica dos bens simbólicos que podemos chamar de cibercultura. O acesso aos bens simbólicos, restritos a um público, torna-se possível com os processos de digitalização da música. Com o formato binário da digitalização há uma potencialização das formas de difusão da música. Além disso, a gravação digital permite que artistas e bandas tenham seus trabalhos produzidos, registrados e difundidos por meio do ciberespaço. Apesar do domínio das multinacionais no mercado da indústria fonográfica, mudanças significativas nos processos de produção e difusão da música com o uso das tecnologias de informação e comunicação alteram o cenário musical. A digitalização da música quebra o monopólio da produção musical. Gravadoras independentes ganham mais destaque e passam a ocupar um percentual no mercado da música. Ainda são as multinacionais que dominam o mercado, no entanto, as gravadoras independentes adquiriram importância na medida em que testam e descobrem novos talentos. O uso de tecnologias digitais nos processos de produção da música reduziram os custos de gravação. Além disso, as tecnologias digitais potencializam a difusão da música em novos formatos que, apesar de perderem qualidade no tocante a questões técnicas para as gravações realizadas no sistema analógico, podem circular e ser armazenados com mais facilidade. Referências Bibliográficas: ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras Escolhidas, 1). CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. v.1. Tradução de Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ________. A galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: a indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008. FREITAG, Barbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1994. LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e contemporânea. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2004. vida social na cultura LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. ________. O que é o virtual? Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. MARTINS, Guilherme. Uma reflexão sobre a rede mundial de computadores. In: Sociedade e Estado, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Brasília, v.21, n.2, 2006, p.549-554. LEVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1999. QUEIROZ, Tobias Arruda. Mídia e produção de sentido: a reconfiguração da indústria da música e as estratégias discursivas da associação cultural DoSol. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia, Natal, 2012.