Baixar este arquivo PDF - Morus
Transcrição
Baixar este arquivo PDF - Morus
Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico e a Reforma (séculos XVI-XVIII) Frank Lestringant Universidade de Paris-Sorbonne Tradução de Ana C. R. Ribeiro Resumo Ao longo de sua história, os reformados franceses mantiveram com o gênero utópico uma relação privilegiada e particularmente fecunda. Recuando no tempo, antes da “primeira” utopia em língua francesa, Histoire du grand et admirable royaume d’Antangil, de 1616, que é também uma utopia protestante, a investigação remonta a Rabelais e às suas seqüelas calvinistas, a Palissy e ao seu jardim sonhado, ao engenheiro saboiano Jacques Perret e às suas cidades ideais fortificadas pelos salmos. Ela estende-se em seguida ao tempo da Revogação e às vésperas do Iluminismo, com as três grandes “utopias narrativas” de Gabriel de Foigny, de Denis Veiras d’Alès et de Tyssot de Patot. A investigação leva também em consideração as contra-utopias satíricas, quer se trate da Ilha sonante e de La Mappe-Monde nouvelle papistique dos anos 1560 ou, muito mais tarde, no termo do processo, da fantástica Description de l’Ile Formosa do suposto George Psalmanaazaar. Palavras-chave Utopia, Contra-Utopia, Reforma, Contra-Reforma, Huguenotes. Frank Lestringant é professor de literatura francesa do Renascimento na Universidade de Paris IV-Sorbonne. Publicou cerca de trinta obras, das quais: Le Huguenot e le sauvage, Klincksieck, 1990 ; L’Atelier du cosmographe ou l’image du monde à la Renaisssance, Albin Michel, 1991; Le Cannibale, grandeur et décadence, Perrin, 1994; L’Expérience huguenote au Nouveau Monde (XVIe siècle), Droz, 1996; Une sainte horreur, ou le voyage en Eucharistie (XVIe-XVIIIe siècles), PUF, 1996; Le Livre des îles : atlas et récits insulaires, de la Genèse à Jules Verne, Droz, 2002 ; Sous la leçon des vents, PUPS, 2003. FRANK LESTRINGANT 1. Utopia e Reforma1 1 Sob este título, uma versão reduzida do presente estudo foi publicada no catálogo da exposição Utopie. La quête de la société idéale (SCHAER, R., CLAEYS, G., SARGENT, L.T., 2000). 2 Sobre as relações entre Reforma, utopia e revolução social, a documentação é imensa. Ver em particular NIPPERDEY (1975), FRIESEN (1974 e 1990). Uma vasta gama dos textos de Thomas Müntzer foi vertida em francês por Joël LEFEBVRE (1982). Ver Frank LESTRINGANT (1991 e 2004). 3 4 Sobre essa distinção, ver Jean-Michel RACAULT (1991, p. 7-19). 140 A forte dimensão utópica da Reforma já foi muitas vezes ressaltada. Se a utopia, como quer Karl Mannheim (1956), deve ser considerada uma atitude mental permanente, uma força dinâmica de contestação, combatendo o estatismo da ideologia e dos aparelhos, então a Reforma em seus primórdios é autenticamente utópica. Ela abala da base ao ápice a Igreja instituída. Ela livra a consciência individual do dever de obediência. Em seu setor mais radical, a Reforma termina na revolução social com a guerra dos Camponeses fomentada por Thomas Müntzer em 1524-1525 e, dez anos mais tarde, com a instauração da Jerusalém anabatista em Münster, na Westfália2. A reivindicação do Evangelho, exigência ao mesmo tempo religiosa e social, é em si um slogan utópico. Em seu retorno à Palavra, a Reforma de Lutero proclama o acesso direto de todos à salvação, sem passar pelas obras, nem pela tutela de um clero considerado como uma classe parasita. Logo de início a reivindicação do Evangelho, essa palavra de ordem que esconde uma grande variedade de valores religiosos e uma gama ainda maior de interpretações e de conseqüências no plano prático, é um tema mobilizador, pois reconcilia o espiritual e o temporal, proclamando aqui e agora a libertação não dos mandamentos, mas do estado servil no qual nobreza e clero mantinham abusivamente o povo (WIRTH, 1981, p. 49 e LIENHARD, 1983). O potencial utópico da Reforma se manifesta em particular no calvinismo, que, em nome da liberdade de consciência, preconiza a resistência passiva ao invés da coerção, a fuga e o exílio, quando essa resistência não é mais possível, e mesmo o martírio quando, nos anos 1550, as fogueiras se acendem na França e, quase espontaneamente, homens, mulheres, velhos e crianças nelas se precipitam à porfia para testemunhar ao mundo uma verdade literalmente flamejante3. Utopia e Reforma: esses dois termos formam, hoje, um binômio indissociável, tanto é verdade que ao proclamar a liberdade de consciência e, em certos casos de opressão patente, o dever de revolta, a Reforma não apenas inovou, mas subverteu a relação tradicional com as autoridades, quaisquer fossem elas - políticas, eclesiásticas, intelectuais ou simplesmente livrescas. Propor-nosemos aqui, mais modestamente e de maneira mais limitada, a mostrar como, no decorrer de sua história movimentada, os reformados franceses mantiveram com o gênero utópico uma relação privilegiada e particularmente fecunda. Convém aqui distinguir entre a utopia-modo e a utopia-gênero4. A utopia-modo é um estado de espírito, um regime de pensamento, uma projeção da humanidade em direção ao futuro. A utopia-gênero, por sua vez, possui um sentido muito mais preciso. Ela pertence ao campo da história literária e aparece desde o início como um objeto rigorosamente codificado. HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Nessa segunda acepção, claramente mais restrita, a utopia tem origem grega, mas seu nome de batismo não é anterior à Utopia de Thomas More, publicada em 1516. Utopia é um substantivo próprio, o da ilha descoberta por Raphaël Hythloday, o “contador de lorotas”. Por antonomásia, Utopia tornar-se-á utopia, mas serão necessários quase dois séculos para que se opere o desdobramento do substantivo próprio em substantivo comum. Esse substantivo comum será atestado na França apenas na tardia data de 1710, em atraso em relação à Inglaterra (RACAULT, 1991, p. 13). Thomas More não é, nem de longe, um reformado. Ele terminará como mártir da Contra-Reforma e santo católico, vítima de seu devotamento ao poderio espiritual face ao golpe de força de Henrique VIII, auto-proclamado chefe da Igreja da Inglaterra. Mas, é um humanista, um amigo de Erasmo, imbuído, como ele, da filosofia de Platão e das lições de Plutarco. Sua Utopia lembra a República e as Leis, sem esquecer o Timeu e o Crítias, em que é narrado o mito da Atlântida. Thomas More encontra-se portanto entre dois sistemas de pensamento e na linha de ruptura que bruscamente separa duas ortodoxias rivais. A atitude de ironia e de distância crítica que caracteriza sua obra mais conhecida resolveu-se na sua existência da maneira mais trágica. Depois dele Rabelais, Barthélemy Aneau, que escreve um prefácio para a edição francesa da Utopia (MORE, 1559) morre assassinado5, mais tarde ainda Campanella, que se submeterá à questão e passará a metade de seus dias na prisão, tantos outros utopistas, enfim, viverão a mesma situação desconfortável e arriscada de estar entre essas duas opções. A Reforma logo recorre à utopia-gênero como a um de seus meios de expressão privilegiados. A utopia lhe abre, com efeito, um espaço de pensamento e de especulação em que ela pode ao mesmo tempo denunciar sob uma forma alegórica a impostura do poderio espiritual e esboçar um programa. Sabe-se que a palavra “utopia” tem duas etimologias possíveis, de nenhum modo indiferentes, que modificam seu sentido final. Ou o u- de utopia é o prefixo privativo - a utopia então é exatamente um não-lugar - ou ainda é o prefixo melhorativo eu-. A utopia, nesse caso, é o “lugar-onde-tudo-está-bem”. Deliberadamente, More aproveitou-se dessa ambigüidade, privilegiando a primeira hipótese. Na descrição de sua ilha ideal, More proclama uma dupla recusa, que será constitutiva das utopias vindouras: a recusa da sociedade existente, da qual a sociedade dos utopianos constitui o inverso, um inverso tão viável e infinitamente mais razoável que o pretendido mundo real; a recusa da Natureza que as leis utópicas, precisas, minuciosíssimas e traindo obsessivamente seu espírito de geometria, retificam, controlam e corrigem. A adaptação reformada da utopia-gênero encontra essas duas recusas, que ela conjuga em proporções variáveis: recusa da ordem papista; recusa visceral de um corpo idolátrico que a religião católica exibe com uma indecência manifesta no centro de seus santuários e em seu ritual. Sobre as circunstâncias deste assassinato, ver HAAG, 1846, t. I e FONTAINE, 1996. 5 141 FRANK LESTRINGANT 2. Utopia e declamação 6 Ver DANDREY (1997), no qual um capítulo é dedicado a “Montaigne paradoxal”, p. 137-173. 7 Sobre o bom uso da declamação, ver QUIGNARD (1990), em que 53 causas fictícias conduzem a 53 romances tão rigorosamente lógicos quanto inverossímeis. Ver principalmente TOURNON (1983, p. 203228). Todas as referências a Montaigne remetem à edição P. Villey dos Essais (1965) [Usamos neste artigo a tradução em português de Sérgio Milliet, 1972 in: MONTAIGNE, 1972 (N. da T.)]. 8 9 Ver sobre esse ponto LAFOND (1984, p. 736). Sobre a relação da Servitude com “Des Cannibales”, ver LESTRINGANT (1994a, ch. VIII, p. 181-183). 10 Todas as citações foram traduzidas por mim, salvo indicação (N. da T.). 142 A utopia-gênero liga-se, desde a Utopia de Thomas More que lhe dá seu nome e a funda, ao gênero da declamação, ilustrado anteriormente por Erasmo em seu Elogio da loucura. A declamação, no sentido retórico do termo, é um exercício. Exercício de palavra e de pensamento. Termo ao mesmo tempo mais amplo e mais técnico do que “paradoxo”6, a “declamação” designa o exercício de desenvolvimento oratório sobre um tema dado que os mestres de retórica recomendavam para a formação ou o treinamento do orador. “O ‘real irreal’, tal era o objeto psicológico, judiciário e retórico” do declamador. Lei e causa fictícias levando a um procedimento fictício: recentemente, o escritor Pascal Quignard mostrou pelo exemplo parcialmente inventado por Albucius a que romances “estupefacientes” e surrealistas avant la lettre podia conduzir tal exercício7. De Erasmo a Montaigne8 e da afirmação do humanismo à sua crise, a declamação conhece uma voga indiscutível na literatura européia do Renascimento. O Elogio da Loucura, que Erasmo coloca dentre as suas “declamações”, fixa seu tom e suas regras. Em Rabelais, o elogio das dívidas por Panurge, no início do Terceiro Livro, e, ao final do mesmo volume, o elogio da erva chamada Pantagruelion, são declamações dotadas de todas as formalidades prescritas pela regra. Mais adiante no século, é nessa tradição que Montaigne situa o Discurso da servidão voluntária de seu amigo La Boétie: “Escreveu-o La Boétie em sua adolescência, a fim de se exercitar em favor da liberdade e contra a tirania” (MONTAIGNE, 1972, I, 28, p. 95)9. E Montaigne acrescenta esta precisão capital: “Não ponho em dúvida que La Boétie pensasse o que escrevia, pois era demasiado consciencioso para mentir, mesmo em se divertindo” (ibid., p. 101). O jogo da declamação merece ser levado a sério. Ficção nem sempre é mentira. Na utopia, igualmente, não se brinca, ou apenas aparentemente. Vários dos capítulos ou fragmentos de capítulos dos Ensaios de Montaigne constituem-se em declamação. O exemplo mais célebre é, sem dúvida, “Dos Canibais” (I, 31), apologia dos antropófagos livres do Brasil, que revivem a idade do ouro dos antigos e a república ideal sonhada por Platão e Plutarco. Em sua declamação, “as duas noções essenciais, que estão ligadas, são as de exercício e de ficção” (CHOMARAT, 1981, t. II, p. 935)10. A declamação se define, além disso, por sua total liberdade, que faz dela o instrumento privilegiado para uma reflexão moral sem preconceito. Desembaraçada das contingências históricas, isenta de qualquer dogmatismo, assim como de qualquer finalidade didática, ela afeta “certo desapego da realidade imediata para melhor considerá-la e avaliá-la” (ibid., p. 940). Uma terra afastada e pouco freqüentada é o local ideal para situar a declamação, e a Utopia se lembrará disso. No Elogio de Erasmo, a Loucura não confessa ter nascido nas Ilhas Fortunadas, onde tudo cresce em abundância sem semeadura nem trabalho (1991, p. 117), pois “a natureza não tem necessidade alguma da arte” (1979, p. 13) onde, HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... além disso, se ignora, como no Brasil de Montaigne, o trabalho, a velhice e a doença? Esse recuo e essa distância, eventualmente tingidos de ironia, encontram no capítulo I, 31 dos Ensaios o afastamento geográfico dos Canibais, apartados até as antípodas. O autor permanece presente sob a máscara, mesmo se é difícil medir seu grau de adesão a cada um dos argumentos enunciados (LAFOND, 1984, p. 740). Na declamação, o ponto de vista é móvel, a identidade do locutor, constantemente fugaz. Trata-se de um “ensaio” no sentido estrito do termo, exercício de pensamento sem fronteiras e sem rédeas, experimentação ao mesmo tempo lúdica e rigorosa de uma árdua liberdade. A utopia como declamação vincula-se, portanto, à definição que Raymond Ruyer propôs da utopia-gênero: “uma experiência mental sobre os possíveis laterais” (RUYER, 1950, p. 9). Em outros termos, uma experiência sem riscos físicos, mas não sem perigo, uma viagem aventurosa para o espírito, mas sem molhar os pés. É o argumento publicitário favorito dos autores de enciclopédias ou de relatos longínquos, que encontramos, por exemplo, sob a pluma de André Thevet, cosmógrafo dos reis da França, no início de seu Grand Insulaire et Pilotage, composto por volta de 1588: “a realidade vos é aqui exibida com tamanha fidelidade que sem molhar vossos pés, em vosso gabinete, podereis conhecer os mais belos e notáveis segredos da marinha, da arte de navegar e da pilotagem” (1588, f. 6 rº). More, Erasmo, Rabelais, Montaigne: nenhum desses autores de “declamações” - aos quais podemos acrescentar o nome de Barthélemy Aneau, autor do prefácio da Utopia e autor de Alector, “história fabulosa” e quase-utopia (1996) - deu o passo que separa a religião tradicional da Reforma; nenhum deles converteu a crítica social e filosófica em ruptura e em revolta. Tal atitude é reveladora da “esquizofrenia intelectual” da qual falou Claude Lévi-Strauss a propósito de Montaigne (1991, p. 290). Conservadorismo por fora e audácia intelectual por dentro; conformismo exterior e liberdade no foro íntimo. Esse estado de espírito instável, desconfortável sob muitos aspectos, é característico da utopiagênero, pelo menos durante a época clássica. Não se trata somente de uma forma de resistência à censura e à intolerância, ou de uma maneira de preservar um espaço de livre pensamento protegido dos aparelhos da Igreja e do Estado, cuja força de opressão é cada vez mais sensível durante o período. Mais profundamente, a utopia, como a declamação que a engloba no início, permite superar o divórcio que reina entre conhecimento e ação, entre ideal e realidade. Ela é um pensamento, não do limiar, o que deixaria aberto um futuro metafísico, que de todas as maneiras está trancado, mas da borda. Não é de se espantar que esse pensamento da borda surja, não do coração da Reforma a partir do momento em que ela se institucionaliza, mas de suas margens. Margens interiores e radicais, no caso da guerra dos Camponeses e da Münster anabatista de 1535; margens exteriores, onde se tecem, de More a Montaigne e no recuo aparente da consciência humanista sobre si, os motivos infinitamente variados da declamação. 143 FRANK LESTRINGANT 3. A utopia no insulário do Renascimento Com a utopia, a declamação encontra a topografia, ou seja, o mapa em grande escala, e mais exatamente a topografia insular, que constitui um tipo de gênero à parte na disciplina geográfica. Publicam-se, do século XVI ao XVIII, sobretudo em Veneza, atlas exclusivamente compostos de mapas de ilhas, chamados de Isolarii ou Insulários. A Utopia de Thomas More, segundo certos historiadores, deveria ser colocada em relação com as descobertas portuguesas. Thomas More leu não somente as Quatuor navigationes de Amerigo Vespucci, mas também o Itinerarium Portugallensium, compilação impressa em Milão em 1508 e que continha, entre outros, os relatos das viagens de Ca’ da Mosto, Vasco de Gama e Cabral. A Utopia seria indiana, tomando emprestado da Índia o culto dos astros, a proibição do regime carnívoro, os funerais alegres com incineração do cadáver, a coexistência pacífica de várias religiões, o sistema de castas (MATOS, 1991, cap. VIII “L’Utopie de Thomas More et l’expansion portugaise”, p. 383-422). Pouco importa, para dizer a verdade. O essencial é que a Utopia é parte integrante do arquipélago universal, tal como as grandes navegações acabam de revelá-lo à Europa. Ora esse mundo recentemente ampliado é um mundo fragmentado, reduzido a migalhas, um mundo em arquipélago. Não por acaso a Utopia é uma ilha. A ilha aparece como o elemento privilegiado de uma geografia maleável, cuja forma e desenho são indefinidamente reconstruíveis em função de projetos políticos particulares. A inconstância da ilha, sua inaptidão congênita a ancorar-se de maneira durável em um ponto determinado do mapa-múndi servem aos interesses divergentes de potências coloniais rivais. O exemplo das Molucas, simultaneamente reivindicadas pela Espanha e por Portugal, em virtude do tratado de Tordesilhas, é particularmente esclarecedor. Em uma época em que o cálculo das longitudes, por falta de instrumentos, é incerto, os cartógrafos que servem esses dois monarcas vão deslocar, segundo a vontade de seus respectivos mestres, o arquipélago inteiro de um lado ou de outro do famoso meridiano de divisão das duas metades do mundo. Definitivamente essas manipulações insulares só fazem desenvolver as possibilidades latentes do sistema de representação cartográfica herdado dos portulanos. Graças ao rosário de ilhas que a obstrui, a extensão oceânica se presta a uma cabotagem imaginária, onde o conhecimento ganha terreno pouco a pouco, sem que nunca se perca de vista a referência familiar de um cabo ou de um recife. A ilha é instantaneamente visível e passível de ser tomada ao ser avistada do navio que por ela passa. A multiplicação das ilhas permite ampliar à totalidade do globo o benefício dessa tomada parcial, progressiva e logo total. Assim, segundo o chanceler Francis Bacon, avançou o progresso do conhecimento (1991). A era dos Grandes Descobrimentos viu primeiramente multiplicarem-se as ilhas: ilhas do Cabo Verde, São Tomé, Quiloa, 144 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Mombasa, Zanzibar, Goa, na rota oriental das especiarias; arquipélago das Antilhas e das Bahamas onde abordou Colombo, Terra Nova de Cabot e Cartier, e também o Peru, o Brasil e a Califórnia, reputados insulares por muito tempo, e a América que figura em vários Isolarii como a maior ilha do mundo. As primeiras viagens transoceânicas tiveram por resultado reduzir a migalhas a imagem da terra, outrora reduzida a um ecúmeno monolítico. Serão necessárias décadas para que, de norte a sul, seja reconstituída a unidade do continente americano. Anteriormente, os sucessivos navegadores - Colombo, Vespucci, Verrazano, Cartier - haviam procurado em vão, desde o estuário do Saint-Laurent até o estreito de Magalhães, a solução da continuidade que permitiria, além do acesso direto aos reinos do Oriente, uma ruptura na cadeia de ilhas da barreira litorânea que se opunha aos seus esforços. A unidade do Ocidente cristão rompe-se, cedendo lugar a um arquipélago confessional particularmente emaranhado na Alemanha e na Suíça dos inícios da Reforma, ou no sul da França. Esse desmembramento do corpo da Igreja universal se produz em um momento em que o mundo geográfico também perdera sua unidade e seus limites tradicionais. Desde então, observa-se um tipo de convergência formal entre esses dois fenômenos de desmantelamento. Os novos espaços poderão servir de suporte alegórico à nova fragmentação das crenças e das Igrejas. Em vários lugares se desenvolverá, por vias diversas, mas concomitantes, uma experiência inaudita da alteridade. Uma das questões que coloca o arquipélago utópico, seja ele exótico ou religioso, é a seguinte: como apreender o outro e, se for o caso, viver com ele? É possível que haja povos nus vivendo sem fé, sem lei, sem rei? Como é possível ser papista? Ou supostamente reformado? Essas interrogações terminarão por se juntar e logo se constituirão em apenas uma interrogação. O antigo mapa-múndi já oferecia vastas possibilidades de alegorização desses problemas. Tramado com símbolos, ele servia de enquadramento de exposição a uma história teológica, com o Paraíso terrestre no oriente, a entrada do Purgatório na Irlanda, as montanhas de Gog e Magog no setentrião. Lembremo-nos das viagens de São Brandão no mar ocidental e das ilhas fabulosas do imaginário medieval. Mas com a imagem do mundo que surge no limiar do século XVI, descobre-se um suporte mais rico e mais complexo, seguramente menos legível. Nesse novo espaço, a utopia como eutopia ou lugar ideal, poderá avizinhar contra-utopias, ilhas ou regiões repulsivas, que agravarão, ao invés de corrigir, os defeitos e os vícios da sociedade de referência. Esse arquipélago dos novos mares promoverá desenvolvimentos inéditos da sátira, permitindo reificar ou mesmo petrificar os povos, os grupos, as seitas ou as confissões que se quer desacreditar. Na odisséia que descrevem os Quarto e Quinto Livros de Rabelais, quase não provoca espanto encontrar a ilha dos Papafigas e frente a ela, após um dia de navegação serena, a dos Papimanos. 145 FRANK LESTRINGANT 4. Utopias de Rabelais: de Thélème à Ilha Sonante 11 O comentário mais completo é o de AUERBACH, 1968, ch. XI, p. 267-286. 12 Sobre este capítulo ver CAVE, 1988. 146 O mundo de Rabelais é móvel e pleno de surpresas, à semelhança da geografia de sua época. A ilustração mais conhecida do mundo instável da nova cosmografia se encontra no capítulo XXXII do Pantagruel, intitulado “De Como Pantagruel Com a Sua Língua Cobriu Todo um Exército, e o Que o Autor Viu Dentro da Sua Boca”. O episódio lembra a História verdadeira de Luciano de Samos. Em Luciano, o herói descobre na boca de um monstro marinho um novo mundo com montanhas, florestas, um templo, uma fonte, vinhedos. Mas pela descoberta inesperada do “novo mundo” na boca do gigante e pela lição de relativismo que ele sugere, Rabelais liga a atualidade imediata das Grandes Descobertas a um tema folclórico já explorado nas anônimas Chroniques gargantuines11. O macrocosmo alargado por Colombo e Magalhães se inverte no microcosmo de um corpo desmedidamente ampliado. O “outro mundo” que está na boca de Pantagruel não é exatamente um mundo inverso, mesmo que nele se ganhe a vida dormindo. É também, e ao mesmo tempo, a repetição ou o prolongamento, como se queira, do mundo “deste lado”. “Ele tem grande semelhança com este” (AUERBACH, 1968, p. 273): nele se plantam repolhos para viver, nele se morre de peste. No entanto, afligida por uma maleabilidade constitutiva, essa estrutura elástica que varia e se metamorfoseia ao longo das réplicas e da progressão do viajante - no caso “o autor” Alcofribas Nasier, anagrama de François Rabelais - representa o não-lugar ideal onde colocar o tema da relatividade dos conhecimentos. A obra de Rabelais mantém inúmeras relações com a Utopia de Thomas More. Badebec, mulher de Gargântua e mãe de Pantagruel, é “filha do Rei dos Amaurotas em Utopia” (1991, segundo livro, cap. II, p. 278). Pantagruel é chefe dos utopianos. O próprio Rabelais concebeu sua utopia: a abadia de Thélème é uma Utopia de interior situada na Touraine, “até o rio Loire, a duas léguas da grande floresta de Port Huault” (1991, primeiro livro, cap. LII, p. 244). Mas Thélème evoca menos uma república do que um convento. É, em verdade, um monastério de um novo tipo cuja única regra é “Faze o que quiseres”, como deixava prever o sentido da palavra grega télémé, “vontade”. Mais convincente e mais rica é a comparação com o arquipélago alegórico dos últimos livros de Pantagruel. O mundo instável do primeiro Pantagruel e do Gargântua tende então a imobilizar-se, como as palavras geladas do mar Glacial. Ao contrário do mundo em expansão inicial, as ilhas são fechadas sobre si mesmas, sem boca e sem orifícios. A mais evocativa nesse sentido é a ilha “admirável” de mestre Gaster, “primeiro mestre das artes do mundo”, que se assemelha ao rochedo de Virtude descrito por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias. Suas entradas são quase inacessíveis, seus declives rochosos e abruptos como os do monte Aiguille no Dauphiné, mas em seu topo e no interior, é um lugar “tão agradável, tão fértil, tão salubre e delicioso, que pensei estar no verdadeiro jardim do paraíso terrestre” (1991, quarto livro, cap. LVII, p. 209)12. HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... O estranho mundo da ilha Sonante, primeira escala da navegação de Quinto Livro, é um mundo de sinos, que são também caldeirões, frigideiras e panelas onde está cozinhando a sopa gordurosa do Papa, em uma equivalência que manifesta no mesmo ano de 1562 uma gravura satírica de inspiração protestante, Le Renversement de la grand marmite: um sino revirado, rachado e transbordante de sopa, onde nadam mitras e crossas, ferve sobre um fogo alimentado pelo corpo de três mártires reformados. Surgida do céu, a Verdade armada com o gládio dos Santos Evangelhos entorna tudo13. O antimundo da ilha Sonante, povoada de pássaros chamados Clerigôs, Bispogôs, Cardinagôs e Papagôs denuncia de uma só vez a hierarquia eclesiástica, as ordens novas, as ordens de cavalaria - suas comendadorias ou “gulodices” (RABELAIS, 1991, quinto livro, cap. V) -, a avidez, a glutonaria, a preguiça e a luxúria que reinam na corte do papa. É o receptáculo de todos os resíduos de nosso mundo, o desaguadouro onde a pobreza e a indigência rejeitam seu excesso de crianças, a saber, os mais vis e desgraçados dentre eles, os “corcundas, caolhos, coxos, manetas, gotosos, disformes, e desajeitados”, ou, como o resume a fórmula homérica, “peso inútil da terra”. Uma alusão é introduzida à Reforma conquistadora, presságio da derrota: “Depois de certos eclipses revoou um grande número, por virtude das constelações celestes” (ibid., cap. IV, p. 260-263). A ilha Sonante figura também como mundo dos mortos, um mundo estéril e sem geração, sem cultura e sem renovação, um mundo que somente cresce com a destruição do outro. É aí que reina a tirania do Papa, que queima, golpeia, fulmina, extermina. “Se uma vez ele vos ouvir assim blasfemando estareis perdidos, boa gente; vedes lá dentro da gaiola uma bacia? De lá sairão raios, trovoadas, relâmpagos, diabos e tempestades, pelos quais em um momento estareis a cem pés sob a terra abismados” (ibid., cap. VIII, p. 273). Esse mundo invertido, que é também um mundo dos mortos, esse mundo pervertido, que é ao mesmo tempo um mundo infernal, que assusta ao invés de fazer rir, se encontra alguns anos mais tarde exatamente um lustre - em uma grande ficção cartográfica protestante publicada em Genebra e intitulada La Mappe-Monde nouvelle papistique. Essa ficção, que tem por autores o italiano Jean-Baptiste Trento14 e o francês Pierre Eskrich (1567), comporta um texto ou Histoire e um mapa de vastas dimensões ou Mappe-Monde15. A Histoire se distribui em capítulos e rubricas, efetuando o cadastro de um novo mundo análogo em todos os pontos àquele que os reis da Espanha e de Portugal descobriram e conquistaram além-mar. Ora, nesse mapa, este “outro mundo” é em realidade a cidade de Roma, cuja “muralha” - o muro de Aureliano, incluindo a pirâmide de Caius Cestius - é perfeitamente reconhecível. Este Novo Mapa-Múndi constitui uma alegoria cosmográfica da Igreja católica, assim como a ilha Sonante. E como a ilha Sonante, esse mundo novo e “monstr[u]oso”- termos praticamente equivalentes (RABELAIS, 1991, quinto livro, cap. III)16 - é colocado no Inferno, no caso, na boca 13 Paris, BnF, Estampes, Qb 1 (1585). Xilogravura colorida, 370 x 475 mm. Sobre este documento ver BENEDICT (1994-1995) e LESTRINGANT (1996a). Sobre este personagem ver PREDA (1999). 14 15 Enquanto existem dezenas de exemplares da Histoire, o Mappe-Monde propriamente dito subsiste hoje em apenas três exemplares. Eu consultei o da British Library, catalogado como c.160.c.7. Mme Krystyna Szykula teve a gentileza de me conceder uma reprodução do exemplar, montado e colorido, conservado na Biblioteca da Universidade de Wroclaw, na Polonha. Um terceiro exemplar foi localizado no castelomuseu de Sondershausen, na Alemanha, por WAHRMAN (1991, p. 188, nota 4). Este exemplar também é colorido. Os dois exemplares presentes em Berlim antes da guerra parecem ter sido perdidos. Cf. LESTRINGANT (1990a e 1998). 16 O jogo de palavras se perde na tradução, pois em “monstr[u] eux” há, além de “monstro”, o pronome “eles”: “monstr[u]eles” (N. da T.). 147 FRANK LESTRINGANT do diabo desmesuradamente ampliada. O filho da perdição, identificado pelos protestantes com o papa, não será, nos últimos tempos, vomitado pela boca do Inferno, segundo a advertência do apóstolo Paulo (II Tessalonicenses 2, 1-12), que ilustra de maneira impressionante uma xilogravura de Lucas Cranach, de inspiração luterana17? Por isso Roma, sede do Anticristo, é aqui logicamente situada, entre vômito e ingestão, na boca de Satanás. A cidade de Roma se inscreve no oval voraz dos lábios do diabo, que formam os contornos do Mapa-Múndi. É, portanto, como a ilha Sonante, o outro mundo nas duas acepções do termo, cosmográfica e escatológica, um novo mundo e o mundo do além que convergem aqui em um fim do mundo iminente. Armados de bíblias e de fundas, os reformadores se mobilizam para saquear a Cidade Eterna menos de quarenta anos depois do saque histórico de 1527. Eles são em número de vinte e quatro, como os anciãos do Apocalipse, e reconhecemos dentre eles Lutero, Zwingli, Bullinger, Ecolampádio, Calvino e Théodore de Bèze. Os canhões da “Palavra de Deus” apontados nas trincheiras e os exércitos vindos do norte da Europa reforçam de maneira eficaz seus esforços. Este novo mundo que o papa, assim como o espanhol, conquistou pela violência e pela astúcia queimando, destruindo, subjugando tudo, está condenado a desaparecer nas entranhas do Inferno - de onde ele saiu. Vemos que cores escuras ornam essa criação satírica excepcional que lembra Rabelais. A ficção de um mapa romano - Mappe Romaine - será retomada no século seguinte pelo inglês Thomas Taylor (1623), para servir de frontispício a cinco tratados polêmicos descrevendo respectivamente a fornalha romana, segundo Daniel 3, 22, o Edom romano, segundo Amos 1, 11, o passarinheiro romano, segundo o salmo 124, 7, a concepção romana, segundo o salmo 7, 15-17, e por fim o regozijo, no céu, da Igreja verdadeira. O mapa, porém, a partir de agora, quase não existe mais. Reduz-se a um espaço compartimentado destinado a reunir diversas alegorias satíricas visando o papado, e não mais a imagem de horror de uma geografia demoníaca. 5. As utopias da Reforma combatente: Bernard Palissy, Jacques Perret, Le Royaume d’Antangil A utopia no jardim: a Recette véritable de Bernard Palissy 17 Sobre essa imagem do Papa-Anticristo, ver meu livro 1991, p. 18. 148 A aparentemente mil léguas desse arquipélago infernal, Bernard Palissy, oleiro e “inventor dos rústicos figulinos do rei”, desenha um jardim de sonho, que é também uma construção utópica de forte conotação religiosa. Palissy encontrou seus modelos junto aos italianos Alberti e Serlio, sem esquecer Francesco Colonna, o autor do Songe de Poliphile. Ele soube tirar proveito da mediação de seus êmulos e adaptadores franceses, Androuet du Cerceau e Philibert de l’Orme. HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Palissy não é antes de tudo um escritor; é um artesão, um mécanique, como se dizia então, que trabalha com suas mãos e ganha seu alimento com o suor de seu rosto. O conhecimento que tem da terra não é tirado dos livros - ele diz e repete isso em todos os modos - provém de sua arte, “a arte da terra”, que é a arte do oleiro e a do fabricante de faiança. A jardinagem é o prolongamento natural e quase inevitável de seu ofício. Buscar as argilas e os barros mais convenientes para produzir suas cerâmicas esmaltadas não é uma atividade em si muito diferente das do jardineiro e do agrônomo, que se aplicam para encontrar os melhores solos e as exposições mais favoráveis para tal ou tal cultivo. Para Palissy, o Édem será o ponto de referência obrigatório de sua atividade, o ponto de partida e o início de uma meditação em forma de passeio em um jardim de sonho, o “modelo”, como ele mesmo diz, desse jardim imaginário. Com efeito, os arquitetos humanos não podem fazer melhor do que calcar seus projetos nos do Arquiteto divino, o primeiro e o mais perfeito de todos. Esse modelo, evidentemente, é um pouco teórico. Mas, é fácil tirar da fonte central e dos quatro rios do Paraíso um plano em “quadratura” ou em quadrado centrado numa ilha circular onde se eleva um gabinete de verdor. Além disso, é possível completar os dados sucintos do livro da Gênese com outras passagens da Bíblia, especialmente os Salmos. O Salmo 104, “dos esplendores da Criação”, teria assim fornecido a Palissy a primeira idéia de seu jardim. Este Salmo, na tradução de Clément Marot, é o acontecimento que dá início a tudo, se acreditarmos no início da Recette véritable. A primeira guerra de Religião acaba de se concluir, em Saintes e em outras localidades, com a vitória provisória dos protestantes que levará a um breve período de coexistência pacífica entre as duas confissões. Palissy, que teme por sua vida, acaba de ser libertado da prisão. Em um belo domingo da primavera de 1563, ele passeia meditando ao longo do rio Charente. De repente, as palavras familiares do rei profeta lhe vêm à mente. Um “coro de virgens” está sentado sob as árvores e canta o Salmo 104. “E porque suas vozes eram doces e harmônicas”, escreve Palissy, “fizeram com que eu me esquecesse dos meus primeiros pensamentos” (1996, p. 68). Pensamentos de melancolia e de luto pela lembrança da guerra civil. Subitamente, o céu se eleva em sua alma. Ao invés de um espetáculo de horror, é o verde paraíso das origens que se revela, com suas “fontes e riachos”, seus “montes pedregosos” e suas abundantes pradarias, seus “passarinhos” voltejando, seus animais correndo em liberdade e até suas baleias que se agitam no vasto mar. Como perenizar o milagre de uma tal visão, saída como por magia dos versos do salmista? Palissy pensa primeiramente em um quadro, mas visto que “as pinturas duram pouco”, ele opta pelo jardim, um jardim que será a miniatura do mundo, mas um mundo ainda a salvo da malícia dos homens e gozando para sempre da paz das origens. Pois o “propósito admirável” de um jardim destinado a acolher os reformados em tempos de perseguição é o ponto de convergência 149 FRANK LESTRINGANT 18 Sobre a dimensão mística do jardim de Palissy, ver meu prefácio em PALISSY (1996, p. 5-47: “L’Éden et les ténèbres extérieures”; cf. AMICO (1996, ch. V: «Hors-mis le jardin de Paradis terrestre», p. 157-185. 19 Sobre esta grande metáfora do «livro da natureza», ver CURTIUS (1986, ch. XVI, t. II, p. 34). 150 de todos os temas sucessivamente abordados na Recette véritable, o receptáculo de um saber variado e de conselhos técnicos que Palissy destina desordenadamente ao agrimensor e ao agrônomo, ao esmaltador e ao especialista em fontes. A cultura do jardim é o meio de perenizar a paz precária que reina entre os homens, restabelecendo a comunicação perdida com a natureza e com Deus. Neste jardim, o homem viverá sem medo de seu próximo; os animais, coelhos selvagens, raposas, pássaros, correrão em liberdade; as próprias árvores não mais serão feridas e torturadas, como acontece, demasiado freqüentemente, por florestais embrutecidos e ávidos de lucro, mas cortadas e enxertadas segundo as regras da arte. O jardim da Recette restabelece uma pura transparência entre o homem e o Criador, em direção ao qual se eleva, sem obstáculo de agora em diante, um hino contínuo de ações de graça. Neste jardim que é o modelo reduzido da Criação, as grutas artificiais integram inscrições recobertas de esmalte e que parecem engendradas pela matéria; os pavilhões são formados por árvores vivas, cujos galhos artisticamente curvados e enxertados em si mesmos escrevem versículos da Bíblia. Sentenças tiradas dos livros sapienciais, em particular dos Provérbios, da Sabedoria de Salomão e do Eclesiastes, se encontram desse modo inscritos na natureza viva. A aderência primordial entre o Verbo divino e a Criação, que era efetiva nos tempos do Éden, se encontra restituída nessa escrita de pedra e nesses entrelaçamentos de galhos que anunciam a Palavra e reverdecem a cada primavera. Em Palissy, o jardim fala, sem tropos nem figuras. Ele deve ser lido literalmente. Tipicamente protestante, ou mais exatamente calvinista, é a recusa das imagens, conforme testemunha a aplicação direta e sem intermediário da escrita sobre o vegetal ou o mineral. Nenhum desvio pela figura humana ou pela alegoria. Nem estátuas, nem hieróglifos, como se encontra tanto no Songe de Poliphile e nos jardins toscanos ou latinos do século XVI. Da mesma forma, Palissy recusa a madeira esquadriada e a pedra talhada, preferindo a árvore viva e a pedra bruta. Esse jardim é um jardim de sinais imediatamente legíveis pela comunidade dos crentes chamados a nela trabalhar a cada dia da semana segundo o ofício do primeiro homem, o jardineiro Adão, e a se reunir todos os domingos para celebrar Deus. Essa leitura inspirada supõe definitivamente o exercício cotidiano da meditação cristã. É “um passeio místico pelos escritos sapienciais da Bíblia” ARMOGATHE, 1990, p. 26); um passeio, de corpo e alma, no jardim do sentido espiritual18. Ou, para retomar uma imagem de Paracelso, com quem Palissy não deixa de ter certo parentesco, o jardim, como o mundo que ele resume, é um livro que se folheia com os pés19. O Livro Santo e o Livro da Natureza, essas vias paralelas de acesso à divindade, reúnem-se e se confundem no mito de um jardim situado fora da história e de seus desastres recentes. Ora, esse sonho logo extravasa o jardim em uma dupla orientação em direção ao futuro e ao passado: por um lado, em uma “cidade de fortaleza” verdadeiramente HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... inexpugnável que Palissy descreve no apêndice de seu tratado e que tem a forma helicoidal de uma concha de múrex; por outro lado, na evocação de Saintes e de Saintonge no tempo da Reforma, durante a curta primavera de 1562, quando um porvir radioso parecia abrir-se à comunidade reformada. Repentinamente, é o espaço de Saintes, a bemnomeada, com seus coros de jovens moças sentadas à beira da água e cantando Salmos, suas companhias de trabalhadores passeando na mata e comentando a Bíblia em voz alta, que se alarga na dimensão de uma visão ou de um sonho, transposição ideal da harmonia divina descida, nesse domingo da vida, entre os homens. Essa utopia real, tipo de versão protestante do sonho milenarista, durou apenas uma breve temporada, irremediavelmente destruída pelo irrompimento das guerras de Religião. Ela se isola a partir de então no recinto protegido do jardim místico e nos limites mais bem defendidos ainda da “cidade de fortaleza” helicoidal, cujo exterior e interior se confundem, e que é inexpugnável no sentido de que ela é “a expressão topográfica de uma vontade unânime, o símbolo de um corpo social unido” e estruturalmente solidário (LESTRINGANT, 1996, p. 42). O tabu da imagem, que observamos em Palissy na sua desconfiança em relação às pinturas que “duram pouco”, é observável também em um tipo de precaução tática. Para não desvelar o segredo de seu jardim, e sobretudo para subtrai-lo à maledicência dos caluniadores e outros iconoclastas, Palissy se abstém de qualquer representação figurada. Na Recette véritable, em que ele é tão longamente descrito, não encontramos nem mapa do jardim, nem “retratos” de suas figuras e canteiros. Mas a ausência de ilustração e a ambição espiritual do projeto não implicam abstração. No detalhe, nada de mais concreto que o jardim maneirista imaginado pelo oleiro do rei. As terras esmaltadas pululantes de rãs e de lagartos moldados a partir de seres vivos, os fundos de pratos onde ondulam, entre as folhas de saladas, vermes e cobras “ao natural”, são feitos para desencorajar os mais robustos apetites. Esses detalhes, que encontramos nas grutas “rústicas” do jardim imaginário, não deixam de cantar, assim como os céus ou o Oceano, a glória do Altíssimo. Artista cuja estética se caracteriza por ser “Anti-Renascentista” (BATTISTI, 1989), Palissy é um visionário igual aos maiores, mesmo se, para alcançar seus fins, sua visão se apropria das humildes ferramentas do jardineiro, do agrimensor e do ceramista. A utopia arquitetural de Jacques Perret Em Palissy, o texto santo está fechado no jardim que lhe serve de escrínio. É o inverso na obra do saboiano Jacques Perret, arquiteto e engenheiro do rei Henrique IV, que publica em fins do século XVII o tratado Des Fortifications et artifices, architecture et perspective (1601), compreendendo vinte e duas pranchas gravadas por Thomas de Leu, das quais cinco são mapas de cidades fortificadas, acompanhadas de vistas em perspectiva cavaleira20. A Sagrada Escritura circula pelos bastiões em 20 Além do exemplar da Bibliothèque Nationale de France conservado sob a catalogação Rés.V.410, desordenadamente reunido e com várias pranchas faltando, como a da cidade de 23 lados, consultei o exemplar da Bibliothèque de l’Institut de France (Rés. Folio N.160), corretamente reunida e que permite seguir a progressão das pranchas, da cidadela “em quadratura” ao plano de uma “grande e excelente construção com dois currais”. Outros exemplares apontados por Bruna CONCONI (1992) na Bibliothèque de l’inspection du Génie (Génie B-b fol. 13) e, incompleto, na Bibliothèque de la Société de l’histoire du protestantisme français (in-fol. 396). Não pude consultar este último exemplar, atualmente sob restauro. 151 FRANK LESTRINGANT 21 “Fazenda dada a cultivar pelo proprietário com a condição de receber metade das colheitas que produzir” (Domingos de Azevedo. Grande Dicionário Francês-Português. Lisboa: Bertrand, 1952), segundo um contrato chamado de métayage (N. da T.). 22 Quanto a esta série de observações, eu me inspiro em CONCONI (1992, p. 421-422). 152 triângulo, em quadrado, em estrela de cinco ou seis pontas. O versículo bíblico se fraciona em dez, doze, dezesseis segmentos de direita, aproximando-se ao máximo da épura arquitetural, e acrescentando à cintura de pedra, de água e de terra uma muralha de palavras escritas em letras maiúsculas. O que quer dizer que a verdadeira defesa é a palavra de Deus, mais firme que as mais sólidas muralhas, cortinas ou contra-escarpas, mas também que a boa arquitetura é aquela capaz de reproduzir diretamente o mandamento divino. Também não há nenhum intermediário entre a Palavra e o espaço habitado pela comunidade dos crentes. Mas, diferente do jardim de Palissy, a arquitetura militar e civil de Jacques Perret não busca produzir um simulacro da natureza. Mais rigorosamente utópica que o Éden da Recette véritable, ela desenha uma cidade ideal, na linha de todas as que o Renascimento imaginou, na Itália particularmente, desde Luciano Laurana, Piero della Francesca e Leonardo da Vinci. Na compilação de Jacques Perret encontramos sucessivamente mapas e vistas perspectivas de cidadelas, de cidades inteiras, de templos, de palácios, de casas particulares e de métairies21. Nela, o espaço é regido pelo esquadro, a disposição das ruas e das praças é feita “em quadratura”. Tal dispositivo mostra o triunfo da razão sobre a desordem das coisas, e permite, além disso, um perfeito domínio do ponto de vista militar. Pois se a geometria contenta a vista e satisfaz ao princípio de harmonia, ela também responde a uma necessidade tática. “Da praça central o canhão pode percorrer todo o comprimento de todas as ruas”, observa o comentário relativo à cidadela ou fortaleza pentagonal. Mesma observação em relação à cidade em hexágono: “Do meio da grande praça, o canhão pode atirar no sentido de todas as ruas”. Perret, como Palissy antes dele, ressalta a novidade de sua empreitada e evita qualquer referência aos Antigos e aos Modernos, salvo a Végèce, cujo De re militaria foi muito lido no Renascimento. Esse esquecimento das autoridades em benefício apenas da palavra de Deus é um traço específico da literatura protestante, desejosa de fazer tábula rasa de qualquer tradição estrangeira à Bíblia. O que não impede que Perret conheça os clássicos, começando por Vitrúvio e sua Architettura. Ele colocou em prática assiduamente os italianos, Alberti e seus sucessores, e se inspirou diretamente em Pietro Cataneo, cuja Architettura havia sido publicada em Veneza de 1554 a 1567. Ele lhe deve em particular a reunião, em sua compilação, dos dois componentes da arquitetura, militar e civil, que estarão dissociados nos tratados ulteriores22. Tanto tópico quanto típico da literatura protestante, é o acento posto na Prática em detrimento da Teoria. Apesar do tratado Des fortifications et artifices desenvolver os elementos de uma arquitetura ideal, como era ideal o jardim da Recette véritable, Perret não cessa, como Palissy, de ressaltar o valor de uso de seus planos e perspectivas, perfeitamente realizáveis, se acreditarmos nele. Desses modelos, é fácil tirar aplicações concretas. Alguns dos planos vêm acompanhados de um HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... perfil, e todos possuem uma escala de medida em toesas. Basta, portanto, adaptar o modelo arquitetural ao terreno escolhido: “Calculando as medidas que se quiser conhecer com o compasso sobre a escala, que é aqui de 80 toesas, em relação ao perfil, encontraremos o que procuramos tanto em relação ao plano quanto à perspectiva” (PERRET, 1601, f.A). Perret acrescenta conselhos de ordem prática para a boa gestão do projeto: “Esta figura representa diversos planos de fortificações e diversos perfis para contentar diversas opiniões. Mas, em casos de grande importância e despesa deve-se optar por consultar pessoas capazes e atribuir o comando da empresa a apenas uma” (ibid., f.F). Para dizer a verdade, essa compilação de pranchas de arquitetura não teria nada de original e não mereceria ser qualificada de utopia se não houvesse as inscrições bíblicas integradas ao desenho. Essas inscrições são tiradas em sua maioria dos Salmos. Lembremo-nos que o jardim de Palissy saíra já traçado do Salmo 104, cantado por um coro de virgens à beira do Charente. Na compilação Des fortifications, a cidade em quadrilátero é fortificada pelo salmo 91: “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo...”23. A cidade em pentágono é protegida pelo salmo 127: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam...”. A cidade hexagonal é defendida pelo salmo 33: “Regozijaivos no Senhor, vós justos, pois aos retos fica bem o louvor.”. A cidade de vinte e três lados tem por paládio o salmo 117: “Louvai ao Senhor todas as nações, exaltai-o todos os povos...” Quanto à cidade de dezesseis lados, ela tem por defesa os dois mandamentos tirados de Êxodo 20 e Mateus 22: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda [sic] a lei e os profetas.” (ibid., f. G2). A escolha dos Salmos não é indiferente. Traduzidos em versos franceses por Clément Marot e Théodore de Bèze, os Salmos tiveram um papel chave na difusão da Reforma na França, depois na resistência da Igreja minoritária às perseguições. Para os protestantes, era o canto de reconhecimento e de reunião, o símbolo da identidade confessional. Os Salmos eram cantados no decorrer das atividades cotidianas, mas também pelos soldados no campo de batalha. Eles tinham um lugar preponderante na liturgia, antes e depois do sermão. Além disso, o adversário católico reconhecia no canto dos Salmos a principal força de coesão dos huguenotes. Florimond de Raemond, conselheiro no Parlamento de Bordeaux e autor de L’Histoire de la naissance, progrez, et decadence de l’heresie de ce siecle, poderá escrever: “Ele foi a corrente e a corda, do qual, como um outro Anfião Tebano [Anfião, o fundador mítico de Tebas], Lutero e Calvino se serviram para atrair junto a si as pedras com as quais eles construíram e fundaram os muros de sua nova Babilônia” (CONCONI, 1992, p. 433). Nova Babilônia, ou nova Jerusalém? Aí está toda a questão, ou quase. Com efeito, a cidade ideal, edificada segundo as regras 23 Todas as citações bíblicas são tiradas de A Bíblia sagrada. Velho Testamento e Novo Testamento. Versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1989 (N. da T.). 153 FRANK LESTRINGANT 24 Santo AGOSTINHO. De Civitate Dei, XV, 5: “Primus itaque fuit terrenae civitatis conditor fratricida: nam suum fratrem civem civitatis aeternae in hac terra peregrinantem invidentia victus occidit”. 154 conjugadas da razão e da balística, seria realmente compatível com os mandamentos? Na Bíblia, e em particular no Antigo Testamento que alimentou os protestantes, as cidades têm quase sempre má fama. Basta pensar na torre de Babel, símbolo do orgulho humano revoltado contra Deus, ou nas cidades da planície, Sodoma e Gomorra, destruídas pelo fogo do céu. Cain fugitivo após o assassinato de seu irmão Abel, Cain errando pelo mundo e perseguido pela maldição divina só interrompe sua marcha desvairada para fundar uma cidade. O jardim é abençoado, pois procede diretamente dos desígnios do Criador, tanto quanto a cidade dos homens é suspeita, pois se afasta por demais manifestamente. O arquiteto e engenheiro Jacques Perret se encontra, portanto, confrontado a uma dificuldade que o jardineiro Palissy não encontrara. Inscrevendo o texto dos Salmos em volta de suas projeções ideais, Jacques Perret teria, portanto, a intenção de conjurar a maldição das origens. Os Salmos, percorrendo de ponta a ponta os bastiões e formando uma última muralha face ao exterior teriam, de algum modo, um papel de talismã. Eles colocam as cinco cidades ideais sob a proteção do Verbo e, além disso, chamam sobre elas a bênção divina. Mas nenhuma magia há nessa salvaguarda, nem automatismo algum nessa proteção caída do céu. Pelo modo como são escolhidos, os Salmos lembram os termos de um contrato. A aliança é concedida gratuitamente por Deus ao seu povo, à condição, todavia, que este se mostre digno e que respeite os mandamentos. A graça, para Calvino, não dispensa a lei. Daí a referência ao decálogo e à lei evangélica em complemento à mensagem dos Salmos. A citação de Êxodo 20 e de Mateus 22 em torno dos dezesseis lados da cidade constitui uma advertência decisiva a esse respeito. Mas nem toda cidade procede necessariamente de Cain e de sua descendência. Com efeito, Santo Agostinho distinguia entre a cidade dos homens e a cidade de Deus, a cidade do mundo e a do Céu. A primeira é formada pelos herdeiros de Cain, que colocam sua esperança nas possessões da terra; a segunda é a dos imitadores de Abel, a primeira vítima e o primeiro mártir, cujo reino é totalmente espiritual24. Inscrever a Palavra de Deus nos contornos de uma construção humana traçada com o compasso e o esquadro equivale precisamente a preparar aqui e neste mundo a cidade de Deus, a instaurá-la por antecipação, fornecendo dela a imagem e o modelo. Tal é o alcance autenticamente visionário do empreendimento de Jacques Perret, tal é a ambição utópica de seu projeto, que faz comunicar a terra com o céu e coincidir a obra dos homens e os desígnios de Deus. Acrescentemos que os protestantes, no século XVI, imaginam-se como o novo povo eleito. A Igreja reformada constitui a herança de Abel. Por isso a cidade dos Justos estará exposta à hostilidade dos idólatras. Daí a necessidade de isolá-la e subtrai-la ao resto da humanidade. A cidade fechada, cingida pela Palavra de Deus à maneira de uma muralha, é um emblema por demais significativo do dogma calvinista da eleição minoritária (BALMAS, 1969, p. 33). HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Pedra e Palavra estão estreitamente justapostas, de modo que nenhuma silhueta humana aparece nas vistas em perspectiva cavaleira de Jacques Perret. Tampouco no jardim de Palissy havia presença humana. No entanto, essa presença era sugerida por metáfora: o jardim de refúgio estava plantado com olmos - “hommeaux”, escreve Palissy25. Essas árvores que falam por meio do conjunto de letras de seus galhos entrelaçados levam o mesmo nome que os homens. São a figuração dos membros da comunidade viva chamada a recolher-se no jardim em tempos de desordem. Do mesmo modo, nas cidades ideais de Perret, as pedras que falam diretamente e sem intermediário são parecidas com as “pedras vivas” presentes no Evangelho: “São homens”, comentava Panurge, em um sentido desviado e um tanto libertino (RABELAIS, 1991, terceiro livro, cap. VI, p. 459). Definitivamente, que se trate do jardim fechado de Palissy ou das cidades fortificadas de Perret, das quais procede a cidade de Henrichemont, em Sologne, as utopias da Reforma combatente respondem à situação de compromisso que fixa o édito de Nantes. Abertas em direção ao Céu, elas estão fechadas do lado dos homens, ou prontas para serem fechadas ao primeiro alarme. O arquipélago, ou melhor, a nebulosa, representa bastante bem a extraordinária dispersão - e também a incerta perenidade - do protestantismo, em particular nas províncias da Aquitaine ou da Normandie. A comunidade reformada é protegida, mas sob a forma de grupos isolados, perdidos na imensidão católica de uma França filha primogênita da Igreja. Apenas Deus e o Rei, seu lugar-tenente na terra, garantem esta possessão e este gozo limitados no espaço - e no tempo, como a continuação da História provará26. Símbolo dessa abertura única pelo alto: a penúltima prancha do livro de Jacques Perret mostrando “o grande pavilhão Real”, destinado a elevar-se no centro geométrico da cidade de vinte e três lados e capaz de “alojar 500 pessoas à vontade”, uma construção de sete níveis de altura aumentados com mais dois andares de forros sob um terraço e um pórtico coroando o todo. Erigido sobre este pórtico em forma de arco do triunfo, um tipo de obelisco de base circular sustenta uma esfera terrestre entre lua e sol, rodeada de estrelas. Ainda mais acima, o nome de “Deus” cercado por raios. Em volta da prancha, apoiado na margem do desenho, pode-se ler esta divisa em letras maiúsculas: “Deve-se subir no ponto mais alto para contemplar o céu, a terra e as coisas que neles estão a fim de adorar apenas Deus, o Pai, o Filho e o Santo Espírito em espírito e verdade. Toda glória pertence ao céu pelos séculos dos séculos. Amém” (PERRET, 1601, f.K). É interessante notar que Jacques Perret, por sua vez, renunciou ao plano troncônico ou helicoidal que Palissy concebia para “a cidade fortaleza”. Esta hélice elevando-se irresistivelmente para o céu remetia sem dúvida claramente à representação tradicional da torre de Babel. De 1563, ano da Recette véritable, data precisamente o famoso quadro de Pieter Bruegel, o Velho representando a torre, símbolo de desmesura e de orgulho. Escolhendo uma construção em plano quadrado, J. Perret 25 O trocadilho contido em hommeaux poderia ser traduzido por “olmens”, um jogo de palavras com “ormeaux”, olmos, e “hommeaux”, justaposição de “homme”, homem, e olmos (N. da T.). 26 Ver sobre este ponto SAUZET (1992, “De Pétrarque à Descartes” LV). 155 FRANK LESTRINGANT frustra antecipadamente qualquer assimilação entre seu sonho arquitetural de comunhão espiritual e a tentação sacrílega de Babel. O Reino de Antangil 27 Sobre a dimensão utópica da obra e as ressalvas que convém considerar sobre esse aspecto, ver a ampla e rica introdução de M. M. FONTAINE (1996, p. XIII-XX). 28 Como haviam entendido os irmãos HAAG, que o incluíram, no entanto, não sem prudência, em La France protestante (1846, p. 101-109). Artigo retomado sob uma forma resumida e privado de sua bibliografia na edição revisada por Henri Bordier em 1877. 29 Ver de FONTAINE, além da introdução citada (em ANEAU, 1996), o artigo de 1984, sobretudo p. 551-554. 156 Em 1616, exatamente um século depois da utopia de Thomas More, é publicada a Histoire du grand et admirable royaume d’Antangil (1616), com o endereço do livreiro Thomas Portau de Saumur. Frédéric Lachèvre, que a reeditou, qualificou-a de “primeira utopia francesa”. A Recette de Palissy, o livro Des fortifications, de Perret, filiavam-se ao gênero utópico apenas pelo espírito. O Royaume d’Antangil, por sua vez, cabe exatamente em sua definição. Poderíamos objetar com um precedente desconhecido por muito tempo, a utopia narrativa Alector ou le Coq, que Barthélemy Aneau publicou em Lyon em 156027. Aneau será massacrado como herético no ano seguinte, no dia de Corpus Christi, em 1561, quando explode um tumulto consecutivo à profanação do santo sacramento durante o trajeto da procissão. Oriundo do meio luterano de Bourges, por um tempo aluno de Melchior Wolmar, Aneau não havia entretanto aderido à Reforma28. Ele era “um pouco panteísta, estóico à maneira dos ciceronianos, irenista como Castellion, e hermetista como muitos destes italianos cujas obras o haviam tanto influenciado” (FONTAINE, 1996, p. CXIV). Não sendo nem católico rigoroso nem protestante de Igreja, colocado fortuitamente entre os dois campos, ele se encontrava na situação típica de muitos utopistas, e morreu por sua independência intelectual em um tempo de caos e de intolerâncias crescentes. Um dos últimos capítulos de Alector, “história fabulosa” e fábula mitológica, descreve a “corografia” de uma cidade ideal que se inscreve na linha das arquiteturas visionárias do Quattrocento italiano, as de Francesco di Giorgio Martini e de Filarete, e mais recentemente de Pietro Cataneo, do qual já notamos a influência sobre Jacques Perret. A cidade de Orbe, “assim chamada por sua forma e figura redonda”, está situada “sobre uma montanha pouco alta mas muito larga, redonda pela metade como um meio globo” (ANEAU, 1996, cap. XXVI, p. 169). Dividida em quatro quartos segundo os pontos cardeais, aberta por quatro portas sobre as quatro estações e as quatro idades da vida, Orbe é o modelo reduzido do cosmos, um orbis terrrarum em miniatura, ao mesmo tempo em que é um emblema do destino humano, uma imagem do microcosmo ou “pequeno mundo” em seu devir29. No entanto, Aneau, que também prefaciou uma tradução francesa de Thomas More, não constrói uma verdadeira utopia. Sua história se recusa a traçar um programa. Ainda que a cidade de Orbe prefigure em seus lineamentos e em sua estrutura A Cidade do Sol de Tommaso Campanella, como ela devotada ao culto solar, ela pertence totalmente a um passado imaginário. Além do mais, em seu prefácio a La Republique d’Utopie par Thomas Maure, Aneau, após Guillaume Budé, estendia a noção de Utopia para a Udepotia, palavra forjada a partir do advérbio grego significando “nunca” HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... (FONTAINE, 1996, p. XV): com esse desvio, a cidade ideal era privada de qualquer futuro, expulsa do mundo dos possíveis e confinada na ficção literária. O mesmo não acontece com a Histoire d’Antangil, que conserva do modelo legado por More o jogo entre real e imaginário e, sobretudo, a dimensão programática. Ela é inclusive uma ilustração um pouco escolar do paradigma utópico. Nada se sabe de seu autor que a assinou com as iniciais I.D.M.G.T., a não ser que ele era protestante, talvez de Tours ou da província da Touraine, e tinha relação com os Países-Baixos. Lançou-se alternadamente a hipótese de autoria do pastor Joachim Du Moulin e de Jean de Moncy (CIORANESCU, 1963). É certo que essa utopia é a primeira a ilustrar o mito da Terra Austral, esse vasto continente estendendo-se de Java à Terra do Fogo, ou seja, maior que as duas Américas, objeto dos sonhos de império das potências do Norte da Europa e, simultaneamente, pólo de fixação privilegiado das utopias narrativas da época clássica. O mito da terra austral havia sido lançado cerca de trinta anos antes pelo livro dos Trois Mondes de La Popelinière (1997), também ele protestante, desejoso de abrir para os países da Reforma, huguenotes da França, Ingleses e Holandeses, uma área de expansão colonial no mínimo igual ao Novo Mundo conquistado pela Espanha e por Portugal30. A Histoire d’Antangil é dirigida a “Senhores Estados [sic] das Províncias unidas do país baixo” e está distribuída em cinco livros. Os quatro últimos expõem com uma extrema minúcia o programa utópico propriamente dito, sob os quatro capítulos seguintes: “Da excelente polícia deste Império”, “Da polícia militar”, “Do alimento e instrução da juventude”, “Da religião deste povo”. O primeiro livro, acompanhado de um mapa orientado pelo Norte para baixo, completado por uma lista de 129 topônimos, é um quadro geográfico deste vasto império situado ao sul da “grande Java” e compreendido entre o trigésimo e o qüinquagésimo grau de latitude austral. Limitado, “do lado de nosso pólo”, pelo oceano Índico, e na Antártica, por “altas montanhas sempre cobertas de neve”, ele manifesta em sua verticalidade toda uma variedade de climas. O Reino de Antangil está em “terra continente”, mas ele reproduz o dispositivo insular da Utopia de More, legível em filigrana. Dois rios, Iarrit e Bachil, demarcam o império a leste e a oeste, recortando no continente austral um retângulo alongado do sul ao norte, “como um quadrado longilíneo”, diz graciosamente o comentário. Esse retângulo delimitado por fronteiras naturais é aberto até o centro por um grande “golfo” chamado Pachinquir, de cem léguas de profundidade e dezessete de largura. Eqüidistante dos dois rios fronteiriços e seguindo o mesmo eixo longitudinal, esse golfo recebe quatro rios, “os quais, após ter percorrido a maior parte deste Reino, nele desembocam”. Pensamos nos quatro rios do Paraíso terrestre, que brotam da fonte de vida no meio do jardim. Mas aqui é o inverso: vindos das extremidades do reino e descrevendo suas sinuosidades até o Mediterrâneo vertical que figura o golfo de Pachinquir, eles convergem para o centro. Sangil, a 30 Ver LESTRINGANT, 1990b, p. 226-234 e 257-261. 157 FRANK LESTRINGANT capital, sede do governo e da igreja principal, está situada naturalmente “na extremidade do Golfo de Pachinquir”, ou seja, no centro geométrico do mapa. Semelhantemente, na utopia de More, Amaurota está estabelecida no centro e ao fundo da baía que corta em forma de meia-lua o círculo insular e o reduz à forma de um crescente. Esse crescente quase fechado é perceptível em estado de remanência, na quase ferradura que a geografia quadrada de Antangil desenha. Como toda utopia, o reino de Antangil está voltado para si mesmo e é dificilmente acessível do exterior. Excetuados os dois rios fronteiriços, cuja embocadura forma dois portos naturais, a costa do oceano é obstruída de baixios e de rochedos que a tornam inabordável. A entrada do golfo de Pachinquir – “fácil e tranqüila, como o nome o diz” - representa o acesso mais seguro. Ela é ainda estreitada pela presença de uma ilha, Corylée, que obstrui os três quartos de sua largura. Restam, de um lado e de outro, duas passagens estreitas, fáceis de controlar. Na ilha do estuário se ergue um vulcão “ou Vesúvio” em perpétua erupção, que substitui vantajosamente um farol. Na extensão vertical do reino, faixa longitudinal recortada no continente, coexistem todos os climas, do mais frio e seco ao mais quente e úmido, “o que o torna mais deleitável e rico, pois possui sozinho tudo o que as outras regiões têm apenas em parte” (I.D.M.G.T., 1933, p. 30). Antangil é todo o universo, se não em sua extensão, pelo menos em sua variedade. Quatro faixas climáticas se sucedem do sul ao norte, frio e seco nas baixas encostas dos montes Sariché, opulentos em pastagens e em gado; em seguida temperado; excessivo em calor e aridez à proximidade do trópico de Capricórnio, que divide o mapa no terço de sua altura; temperado novamente e chuvoso para além do trópico em direção ao equador, em razão da vizinhança com o mar e com os ventos que aí sopram, esta última observação, esclarece o autor, indo “contra a regra dos antigos”. Tal diversidade climática tem como conseqüência a produção de todas as riquezas imagináveis, desde os minerais extraídos das montanhas meridionais até as pérolas que são pescadas na entrada do golfo de Pachinquir, “das quais umas são brancas e claras como as que vemos em nossa Europa, outras encarnadas e brilhantes como rubis e carbúnculos” (ibid., p. 33). No intervalo são recolhidas as produções exóticas mais variadas, “como cocos, abacaxis, bananas, mangas, betel, palmitos, ameixa de espinho, canela, pimenta, cravo, gengibre, mástica, benjoim, grão guaiac, brasil e vários outros frutos, madeiras e drogas deliciosas”. Resumindo, é um segundo paraíso terrestre. Nada de surpreendente se entre todos os animais que povoam este reino, os voadores são os mais numerosos: Diríamos ao ver a quantidade e diversidade dos pássaros que vivem nestas regiões, e ao vê-los cantar e voar no ar, que é o próprio e particular lugar no qual Deus, o Criador lhes proveu de alimento, ou que ele quis dar esse contentamento aos habitantes deste Reino preferindo-os aos outros povos (ibid., p. 30). 158 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Aí encontramos os pássaros dos dois mundos, sem contar alguns mais maravilhosos ainda, como a legendária ave do paraíso: Os pássaros do paraíso chamados de mamucos, dos quais por aqui ninguém sabe a origem, são vistos pendurados nas árvores de canela e nos craveiros, as fêmeas cuidando de seus filhotes nas costas dos machos, vivendo de maná, orvalho e bons odores. A implacável utopia pode tomar corpo, uma vez dada e inventariada em detalhes essa situação geográfica. O princípio de igualdade, em More, dá lugar, em Antangil, a duas classes bem definidas: nobres e ricos plebeus de um lado; povo, de outro. O Senado, eleito pelo Conselho dos Estados, este formado por delegados enviados pelas vinte e seis províncias, detém a realidade do poder; o rei, nomeado vitaliciamente, mas sempre revogável, tem uma função exclusivamente teórica. O Estado é o único proprietário das terras e das minas, mas ele as arrenda a cada três anos aos que oferecerem mais. Se não há pobres em Antangil, aliás, não mais do que na ilha de Utopia, a sociedade, em todos os seus elementos, civil, militar, eclesiástico, obedece, todavia, a uma estrita hierarquia. É certamente no plano religioso que se afirma a identidade protestante do autor. Ele é indiscutivelmente de cultura reformada, mas a ficção utópica lhe permite tomar liberdades com sua religião de origem. Em relação à utopia de More, o reino de Antangil tem o insigne privilégio de ser cristão. Um brâmane da Índia, convertido por são Tomás em pessoa, para lá levara a boa nova. Seus dons de taumaturgo tiveram um êxito inesperado: graças ao Espírito santo, ele curou publicamente os “doentes, inválidos, cegos, hidrópicos, paralíticos, epiléticos”, por simples toque. Sendo “verificada pelos milagres”, a doutrina cristã é declarada religião oficial e imposta em dezoito meses a todas as províncias do reino. Os templos são esvaziados de seus “ídolos” e imagens, como foram tantas igrejas no tempo da Reforma; as inscrições em honra dos falsos deuses apagadas e substituídas pelas “mais fervorosas passagens tiradas da Escritura”. A iconoclastia dos novos convertidos lembra o das multidões francesas e flamengas no início dos anos 1560. Temperando esse entusiasmo negador, os senhores de Antangil tomam medidas para colocar em lugar seguro “tantas belas figuras e quadros, que poderiam servir de ornamento aos edifícios públicos e casas particulares”. Como na Inglaterra ou nos Países-Baixos, o museu substitui diretamente a igreja. O espaço interior dos templos é rearranjado, e constatamos por esse detalhe o profundo acordo que reina aqui entre Reforma e espírito de utopia. A limpeza pelo esvaziamento libera o espaço da prédica. Bancos de marcenaria são colocados ao longo das paredes até uma altura de doze bancadas e dispostos “em todo o entorno à maneira de anfiteatro” (ibid., p. 124). Os bancos da platéia, “entrecortados por caminhos”, estão reservados às mulheres. Na extremidade da forma oval, sobre a 159 FRANK LESTRINGANT 31 Como ressalta REYMOND (1993-4, principalmente p. 516), o templo reformado não é realmente uma construção como as outras, e ele se distinguirá cada vez mais ao longo dos séculos. Sua forma toma emprestado o modelo da estrutura (retangular, oval ou octogonal) que as reconstituições eruditas tomavam então do templo de Salomão. Daí o nome que os Reformados deram ao seu local de culto. Cf., no mesmo volume, TILLICH e GRELLIER. 160 décima segunda bancada e face à porta de entrada, se eleva a cadeira do bispo. Conforme aos primeiros templos que os reformados constroem, o edifício do novo culto proscreve o plano cruciforme, suspeito de antropomorfismo. Se a figura do templo ainda tem um sentido, é à comunidade viva que remete o oval, a essa comunidade em formação arredondada que se contempla a si mesma, unida em Cristo e unida pela Palavra. Esse templo sem altar, sem santo sacramento e sem imagem, é aparentemente vazio, mas em verdade é pleno, habitado pela Presença espiritual que cada um traz em si e que a assembléia manifesta31. As diversas plantas e vistas perspectivas de templos calvinistas que propunha Jacques Perret em seu tratado sobre as fortificações apresentava a mesma “reforma” do espaço e o mesmo panoptismo. O espaço central, no caso dele quadrangular e ocupado por bancos das mulheres do povo, era cercado de “degraus à maneira de teatro alcançando a muralha”, e sobre eles uma galeria “em todo o entorno, de uma toesa de largura, tendo seus bancos na mesma maneira de um teatro” (PERRET, 1601, f. E r°, descrição do tempo normal). Uma inscrição precisava a intenção de tal modelo espacial: “Os cristãos filhos de Deus são o seu verdadeiro templo” (ibid., f. C1). O pastor Benedict Pictet dirá isso na época do Iluminismo (1716, cap. II, p. 8): não poderíamos encerrar nem, é claro, figurar Deus “em uma cintura de muralhas”. O templo e, ao redor do templo, a cidade inteira, são a imagem, não do Salvador, o que constituiria uma terrível blasfêmia, mas da comunidade reunida no ato de fé da oração e da adoração. Os templos de Antangil, todos construídos segundo o mesmo modelo e variando apenas nas dimensões, nos remetem definitivamente ao jardim plantado de “hommeaux” de Palissy e à arquitetura de “pedras vivas” do engenheiro Jacques Perret. No reino de Antangil, a instauração antiga da “verdadeira” religião resolve da maneira mais simples a questão da instituição eclesiástica. Mas esse cristianismo austral desenvolveu alguns traços originais. Situandose mais perto da fonte evangélica do que o catolicismo degenerado dos ocidentais, ele não comporta, no entanto, dogmas que o afastem do calvinismo stricto sensu. Nos templos, como constatamos, as imagens são prescritas. O culto está centrado na pregação. Ele se abre e se conclui pelo canto dos salmos. Os sacramentos são reduzidos a dois: batismo e santa ceia. Comunga-se numa espécie, recebendo o pão da mão do bispo. Não há orações aos santos, “porque, dizem, um só Advogado do Pai nos é dado para que interceda por nós”, nem orações para os defuntos, “não acreditando nesta quimera de Purgatório” (I.D.M.G.T., 1933, p. 132-13). Por outro lado, essa religião ressalta o benefício das obras, em flagrante contradição com a doutrina reformada do sola fide: “Eles crêem que sem as obras ninguém pode ser salvo”. Comem-se comidas pesadas nos dias da quaresma, assim como nas sextas-feiras e sábados, “o açougue e a peixaria ficando abertos em todas as épocas, segundo a doutrina do Apóstolo”. Mas praticam-se jejum e abstinências às vésperas das grandes festas, Anunciação, Páscoa, Pentecostes, Natal e primeiro dia do Ano. Outra deformação do calvinismo: HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... essa religião tem seu clero e sua hierarquia, bem distinta pelas vestimentas de cores diferentes: assim os bispos são vestidos com uma veste de sarja violeta púrpura, com mangas estreitas, ornada com uma “cruz de galho de palma e de oliveira com bordados de seda, ouro e prata”. Os pastores são postos sob a vigilância de sufragâneos ou arcebispos, que, na proporção de um para dez paróquias, controlam seus costumes e sua doutrina. Mais acima ainda, um bispo é responsável por cada uma das vinte e seis províncias. Esse protestantismo temperado de catolicismo em sua hierarquia e em seus fastos lembra o anglicanismo de tipo episcopal. 6. Utopia e colonização, de Antangil à Ile d’Éden Antangil constitui em todos os aspectos a transição entre as primeiras utopias da Reforma e as utopias de crise da Frühaufklärung. O modelo utópico encontrou seu lugar geográfico, o mítico continente austral, do qual ele não se afastará mais consideravelmente de agora em diante. Ele não define mais uma sociedade assediada e imbricada na sociedade dominante, mas uma sociedade situada em um alhures dos mais vagos. Esse alhures longínquo está, todavia, ligado aos sonhos de império das novas potências coloniais, a Inglaterra e a Holanda protestantes. A informação geográfica do autor do Royaume d’Antangil é vasta e segura. Antangil, além disso, não é um nome forjado por capricho; é o nome de uma baía situada no nordeste de Madagascar. A sábia toponímia figurando em anexo do mapa mistura habilmente as raízes indianas e amerindianas para criar um universo lingüístico misto, um tipo de utopia verbal, situada a meio caminho da Índia bramânica e da América peruana ou brasileira. Quanto às riquezas do fabuloso reino, seu inventário não responde apenas ao prazer lúdico e um pouco infantil da enumeração. Ele traça um programa de exploração e de tráfico. Último ponto anunciador das utopias futuras: a heterodoxia religiosa e o desvio em relação ao sistema estabelecido. A utopia de More desenhava, nos limites da declamação, a república ideal fundada nas leis da razão e da natureza. Depois de Antangil, o utopista não ocupa mais a borda, mas a margem. Não é mais o humanista católico detendo-se no limiar da Reforma e olhando para além, ou ainda, no campo adverso, o reformado projetando no jardim sonhado ou a épura da cidade ideal ou o sonho realizado da sociedade evangélica. As vias que se abrem a partir de agora à utopia, e em particular à utopia protestante, são ao mesmo tempo mais radicais e mais desesperadas: é o proscrito buscando asilo em um outro continente, ou o marginal, o desclassificado edificando por sua própria conta um universo compensatório. No primeiro caso, a dinâmica utópica se encontra nos projetos de colonização que florescem no tempo da Revogação, quando os protestantes perseguidos na França e buscando um Refúgio alhures seguem a injunção bíblica de fugir da “Babilônia perversa” para fundar no deserto a Nova Jerusalém conforme ao ideal evangélico. 161 FRANK LESTRINGANT 32 Ver sobre este ponto os trabalhos de Bertrand VAN RUYMBEKE e, sobretudo, sua tese (1995). 33 Sobre esta aventura, ver J.-M. RACAULT, L’Utopie narrative, op. cit., p. 63-74. 162 Situam-se nessa tradição os opúsculos de propaganda colonial convidando os huguenotes a irem povoar a Caroline32, ou ainda, em 1689, o projeto de Henri Duquesne, primogênito do almirante, “para o estabelecimento da ilha de Éden”, em realidade a ilha Mascareigne ou Bourbon, hoje, ilha da Reunião. Como observa Jean-Michel Racault, é em uma perspectiva bastante próxima que são implantadas massivamente a partir dos anos 1650, sobretudo na América do Norte, colônias protestantes não conformistas, menonitas do Delaware, quakers da Pensilvânia, fraternidades morávias (RACAULT, 1995, p. 16). O projeto de Henri Duquesne fracassará lamentavelmente, mas o resultado será o idílio em Rodrigue contado por François Leguat, abandonado durante dois anos com sete companheiros na menor das Mascareignes, então intacta, sem qualquer presença humana e miraculosamente preservada em sua fauna e flora. A utopia volta-se então para a robinsonada, e o “romance verdadeiro” de Leguat não pode ser estrangeiro à obra famosa de Daniel Defoe. A sociedade ideal, cuja constituição e economia Duquesne havia minuciosamente planificado, resume-se e simplifica-se em um retorno à origem adâmica, em uma ilha de Cocanha onde a caça se oferece por sua própria vontade ao caçador33. Da utopia elitista passamos, portanto, à utopia primitivista, e desta à pastoral inspirada em L’Astrée, segundo uma evolução muito comparável à que havia conhecido, um século e meio antes, em um outro refúgio insular, a minoria huguenote no Brasil durante a breve experiência da França Antártica de 1555 a 1560. O sapateiro e futuro pastor Jean de Léry (1994), principal testemunha da aventura, contou como, ao final de alguns meses de uma coabitação difícil com Villegagnon, o chefe católico da colônia, seus correligionários e ele mesmo haviam preferido à civilização e às suas obrigações, a vida selvagem e sua liberdade entre os Índios canibais das proximidades. A outra via aberta à utopia reformada a partir de Antangil é a da marginalidade e da ruptura. O calvinismo de Antangil já está modificado, e mesmo contradito, em um ponto essencial, a saber, o benefício das obras, que restaura a confiança no homem e no mundo e justifica, além do mais, o papel tutelar do clero. Mas essa utopia se inscreve ainda em um projeto coletivo. Mesmo que ela seja divergente no plano do dogma, ela caminha par a par com a expansão colonial dos países protestantes e se acomoda com o sonho de um Refúgio em terras longínquas. Tudo muda com Foigny e Vairasse, no último quarto do século. Sob o pretexto de um retorno à natureza, a utopia, de agora em diante, mostra em ação a perversão de um modelo em realidade impraticável. A distorção do modelo acentua-se até engendrar, com os Hermafroditas de Foigny, uma inquietante contra-natureza. Então a contra-utopia terá chegado ao arquipélago dos monstros descrito no Quart Livre de Rabelais, precisamente em direção à época em que as Viagens de Gulliver lhe conferirão uma nova e impactante atualidade. HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... 7. As utopias de crise da Reforma Utopias e contra-utopias da época clássica: Foigny, Vairasse, Tyssot de Patot Enquanto as utopias da Reforma combatente, surgidas na época das guerras de Religião e no início do reino estabilizador de Henrique IV, exprimem um ideal comunitário e uma esperança coletiva, ainda que frágil e ameaçada, as utopias da época da Revogação parecem freqüentemente heterodoxas no plano religioso. Seu programa não é o da Igreja militante, nem mesmo exatamente o de uma minoria oprimida. Em sua dispersão, elas são soluções individuais imaginadas, ou, melhor dizendo, improvisadas e construídas por consciências angustiadas face ao desmoronamento de um mundo. Raymond Trousson escreve a esse propósito: “É surpreendente constatar o quanto os três principais utopistas deste período de Frühaufklärung - Foigny, Veiras, Tyssot de Patot – apresentam pontos comuns. São todos os três protestantes, tiveram que se expatriar, levaram uma vida difícil e miserável, vivendo de aulas particulares e procurando em vão fazer seu nome com a literatura, todos os três viveram e morreram na obscuridade” (1979, p. VIII). O édito de Fontainebleau, que revoca em 1685 o édito de Nantes, marca o final, em um grande século, da existência legal do protestantismo na França. A comunidade reformada não tem mais lugar: a mesmo título que o Deserto, a utopia é uma resposta trazida ao escândalo da História, que faz da Reforma um não-lugar. Em Les Entretiens des voyageurs sur la mer, de 1715, o pastor Gédéon Flournois escolherá a ponte instável de um navio como o único lugar possível para um livre debate. No mesmo livro, que tem pontos em comum com a obra de controvérsia e com o romance, vemos, por um empréstimo engenhoso à tradição do catolicismo devoto, um protestante solitário retirado em uma gruta e vivendo segundo sua consciência longe de qualquer sociedade. Para dizer a verdade, as utopias precedem esse acontecimento. La Terre Australe connue de Gabriel de Foigny data de 1676, a Histoire des Sévarambes de Denis Veiras (ou Vairasse) d’Alès de 1678-1679. Apenas Les Voyages et aventures de Jacques Massé é posterior. Antidatada e revestida do milésimo de 1710, a obra foi publicada em realidade entre 1714 e 1717. É a menos original das três, aquela em que a utopia propriamente dita ocupa o lugar mais restrito, situada como se deve no hemisfério austral, à proximidade das Kerguélen, que ainda serão descobertas. A república ideal aí expõe sua organização geométrica em um terreno rigorosamente plano que faz pensar nos polders da Holanda (RACAULT, 1991, p. 395-405). Em Foigny e Veiras, a utopia nasce da ausência de esperança histórica. As liberdades concedidas aos protestantes são restringidas, as carreiras militares e os ofícios jurídicos lhes são progressivamente fechados, deixando-lhes apenas a escolha entre a conversão e o exílio. A Reforma não é mais um partido, é ainda e por pouco tempo uma 163 FRANK LESTRINGANT Igreja lutando por sua sobrevivência, uma comunidade sem chefe carismático, dividida entre os imperativos contraditórios da obediência ao Príncipe e da fidelidade a Deus. Repetidas à saciedade por um século, a controvérsia religiosa e as fulminações recíprocas favorecem a indiferença, a incredulidade, e até o livre pensamento. Segundo Raymond Trousson, a reivindicação compensatória é particularmente aparente em Denis Veiras ou Vairasse, obscuro soldado e advogado sem causas que se auto-proclama, sob o anagrama de Sevarias, legislador genial e fundador de Utopia. A Histoire des Sévarambes é a mais bem acabada das utopias romanescas. É o paradigma da “utopia narrativa” ( J.-M. Racault), com um hábil equilíbrio entre a estatística fictícia e a viagem imaginária. A obra tem cinco partes. A primeira conta uma aventura marítima com naufrágio nas terras austrais e robinsonada, a segunda, o habitual episódio de turismo utópico e a instalação de Siden, anagrama de Denis, e de seus companheiros junto aos Sevarambes por uma quinzena de anos. As três últimas são consagradas à história e aos costumes dos Sevarambes. O herói civilizador dessa Utopia, Sevarias, de origem persa e de religião parse, é um adorador do sol e do fogo. Ele estabelece na Terra Austral uma monarquia “heliocrática”, da qual ele é o vice-rei e grande sacerdote, como Moisés entre os hebreus, ou Calvino, lugar-tenente de Deus na República de Genebra. Além de remeter a precedentes tão ilustres, o principal mérito dessa constituição é de trazer uma solução à grande preocupação política do tempo “definindo um governo que exclui a tirania sem renunciar à estabilidade e ao poder” (TROUSSON, 1979, p. XVI). A heliocracia dos Sevarambes é, de certa forma, o prestígio do Rei-Sol aliado à liberdade de consciência. Além disso, e para a felicidade de todos, com ausência de propriedade privada e de nobreza hereditária. Como em Antangil, a utopia dos Sevarambes concede um grande espaço à questão religiosa. A obra não se limita a expor os princípios da religião ideal, ela começa por evocar um contra-exemplo. A feliz Reforma religiosa de Sevarias sucedeu a uma impostura. Antes dele, StroukarasOmigas, taumaturgo e curandeiro, já havia fundado uma religião solar, mas, apoiando-a em falsos milagres, que lembram estranhamente os de Moisés e de Jesus. Ele se proclamava filho da divindade, se cercava de apóstolos divulgando seus méritos e logo em seguida cercou-se de um clero enganador e ganancioso. No lugar dessas mentiras, Sevarias estabelece o culto de uma trindade razoável, compreendendo o Deus soberano Khodimbas, ou Grande Ser, inacessível aos mortais, um Deus subordinado, o Sol, que é “como o canal favorável por onde escorrem até nós os benefícios e as graças do grande Ser que o sustenta”, e em terceiro lugar uma deusa da pátria. O Deus invisível lembra o Pachacamac dos Peruanos e o culto da pátria se inspira em Esparta, Atenas e Roma. A bricolagem religiosa que se observa em Antangil se confirma em Veiras, grande leitor e fervente compilador de utopias, que não deixa de citar em prefácio, para logo delas distinguir sua obra, “A República de Platão, A Utopia de Thomas More ou a Nova Atlântida 164 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... do chanceler Bacon”. Essa bricolagem verifica-se na descrição de uma seita cristã minoritária que os tolerantes Sevarambes aceitam entre eles. Os giovanitas, assim chamados por causa do nome de seu fundador Giovanni, um veneziano que foi o governador de Sevarias, celebram a ceia como os calvinistas, mas negam a Trindade e a divindade eterna do Filho de Deus. Nisso, eles são arianos ou socinianos. O que não os impede de crer em “quase tudo em que crê a Igreja Romana, como o Purgatório, a oração para os mortos, a invocação dos santos, o mérito das obras”, e de reverenciar o Papa como o verdadeiro sucessor de são Pedro. Essas contradições, ou essas incoerências, podem ser desconcertantes. Elas testemunham, desde a utopia de Antangil, em que ainda se tratava apenas de dar uma forma mais branda ao calvinismo, o formidável progresso do indiferentismo. Todos os ritos e todas as crenças se equivalem. Os diversos dogmas religiosos estão igualmente afastados da verdade, e como tais podem combinar-se entre si em proporções variáveis. O fundamento do pensamento de Veiras, como sugere Raymond Trousson, é, sem dúvida, o materialismo que professa o filósofo Scromenas. O deísmo dos Sevarambes não é mais do que uma religião razoável e suportável, não é uma religião que chega a dar sérias razões de viver. O mesmo pessimismo antropológico já se encontrava na Terre australe connue de Gabriel de Foigny (1990), publicada em Genebra sob um falso endereço em 1676 e reeditada com cortes consideráveis em 1692. Mais marginal ainda que Veiras, Foigny foi alternativamente monge franciscano e protestante heterodoxo, antes de tornar ao catolicismo e morrer católico. Esse perpétuo trânsfuga influenciado pelos Préadamites de Isaac La Peyrère influenciará por sua vez a quarta e última das Viagens de Gulliver34. À sua imagem, Jacques Sadeur, o herói da Terre australe connue, machucado, ferido em sua alma e em sua carne, perseguido por uma inexplicável maldição, busca até em um mundo imaginário uma impossível quietude. Ao final de sua odisséia, ao desembarcar no porto de Livorno, ele cai na água. Sadeur passou trinta e dois anos de sua vida aventurosa junto aos habitantes da Terra Austral. Hermafroditas, estes últimos são gerados em uma partenogênese das mais misteriosas. O esperma e o sangue estão ausentes de sua procriação - procriação pela qual, aliás, eles provam apenas repugnância. Sua aversão é tamanha apenas em ouvir falar desses “começos” (FOIGNY, 1990, p. 135) que eles preferem dizer que seus filhos vêm em suas entranhas como as frutas nas árvores. Eles vivem nus, mas sua nudez ordinária não provoca o desejo em modo algum. Suas partes genitais, menores que as nossas, são pouco aparentes. Durante sua gravidez, o ventre, que eles têm plano, mal se incha. Quase sem abertura e sem protuberância, ainda que possuindo os dois sexos, seu corpo é um corpo perfeito, um corpo fechado. A parte feminina de seu ser não produz “nada como as perdas da natureza comuns às mulheres que não estão grávidas” (ibid., p. 137). Quanto à sua metade masculina, ela não se perturba em modo algum com a visão dos seios arredondados e rubros 34 A profunda semelhança existente entre Foigny e Swift foi trazida à luz por Jean-Michel RACAULT, 1991, p. 594-595. 165 FRANK LESTRINGANT de seus “irmãos”. Ora, longe de partilhar dessa ataraxia, o narrador trai, por não se conter, sua natureza essencialmente diferente. Seus erros repetidos atraem primeiramente reprimendas, depois um afastamento, e finalmente sua condenação à morte, quando, cedendo aos charmes de uma jovem cativa que ele viola na guerra contra os fondinos, é pego em flagrante, convencido de ser “um inventor de crimes”. Mesmo fechamento e mesma reserva no plano alimentar. Alimentando-se de maneira muito frugal, os austrais praticamente não expelem excrementos: eles quase não evacuam no espaço de “oito dias” (ibid., p. 140). Exclusivamente frugívoros, eles ignoram a cozinha, que desnatura. E ainda se escondem para comer o pouco que comem, como se isso fosse uma ação vergonhosa. Esta é, com efeito, uma ação da qual “um homem digno desse nome deveria se abster, se pudesse”. Eles se nutrem somente “em segredo e às escondidas”. Em suma, odeiam qualquer ação que lhes lembre a animalidade. Daí vem seu ódio particular pela alimentação carnívora. Se eles se recusam a comer carne é por causa de um temor vertiginoso: o contágio seria inelutável e os conduziria a devorar seus semelhantes. O fato é “que a carne dos animais tendo muita relação com a dos homens, quem puder comer a carne daqueles, comerá sem dificuldade a carne destes” (ibid., p. 178). A Terra Austral impele o sangue para fora. Nem menstruação nem excrementos vêm poluir seus habitantes, virgens de qualquer dano carnal e que afastam de sua boca como de seu sexo os corpos que se lhes assemelham demais. Eles não dedicam à divindade nenhum sacrifício nem mesmo culto público, e reproduzem, em seu regime de vida, o interdito do Levítico concernente ao sangue. Expulso do centro, o sangue, por outro lado, reflui nas fronteiras. Ele corre em borbotões nas guerras onde não são poupadas nem mulheres, nem velhos, nem crianças, mas onde, conforme o interdito freqüentemente decretado no Antigo Testamento, em caso de vitória sobre o inimigo, todo ser vivo é exterminado, até o rebanho. Separada da animalidade ao preço da exterminação sempre recomeçada dos intrusos que surgem em sua periferia, a utopia austral ignora, aparentemente, as restrições do corpo. Seus habitantes são “homens inteiros”, ou seja, semideuses que, como não podem envelhecer nem caem doentes, suicidam-se por causa do tédio. Essa “humanidade sem pecado e, no entanto, sem redenção nem salvação”, para retomar a fórmula de JeanMichel Racault (1991, p. 513), rechaça para fora dela os vestígios do pensamento sacrificial. Daí esta paródia da Eucaristia situada em Ausicamt ou Oscamt, uma ilha do arquipélago vizinho, da qual Jacques Sadeur é a vítima em seu retorno do continente austral. Ele é amarrado nu sobre um patíbulo de trinta pés de altura, é espetado nos pulsos e nas coxas e os sacerdotes bebem seu sangue em meio às aclamações da multidão. Muito oportunamente, uma irrupção de corsários franceses interrompe o sacrifício. A sociedade austral expulsa ou aniquila o corpo indesejável, que ela não consumiria por nada no mundo, por ele tanto condensar, 166 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... a seus olhos, a impureza primitiva e o vil horror do animal. Ao contrário, os habitantes de Oscamt pretendem apropriar-se até da menor parcela e da última gota da carne e do sangue de uma vítima caída do céu. Nesse antagonismo dos costumes alimentares e religiosos encontramos a oposição paradigmática que Claude Lévi-Strauss, em Tristes Tropiques, estabelece entre a antropofagia e a antropoemia (1955, 447-448), e que se verifica, a partir das origens da Reforma, no divórcio durável dos católicos e dos protestantes. A Terra Austral se coloca resolutamente, por seu horror da carne e da nutrição, sob o signo do vômito. Ela rejeita, extermina e queima tudo o que vem de outro lugar. Oscamt, inversamente, obedece ao regime antropofágico. Ela acolhe em si o intruso até recebê-lo no mais íntimo de sua carne. Se quisermos ler a Terra Austral conhecida à maneira de uma alegoria teológica, é bastante fácil reconhecer na primeira dessas sociedades “uma imagem do rigor do calvinismo genebrino” (RACAULT, 1991, p. 509) e, na segunda, uma clara alusão ao catolicismo. A anamorfose da ficção conduz o primeiro modelo a um deísmo sem ritual e sem sacramentos, onde cada um ora à divindade como bem entende, no foro interior de sua consciência, e o segundo, a uma religião teatral e sanguinolenta, onde o sacrifício se perfaz realmente à vista de todos. O desprezo pelo corpo e por suas necessidades, o culto informal e silencioso, remetem sem dúvida a uma sensibilidade protestante35. Já o júbilo ritual e o sacrifício neste grande espetáculo, onde o corpo carnal é exaltado antes de ser consumido, respondem, de maneira transparente, aos fastos da Igreja católica da Contra-Reforma. Transposição de sua própria situação histórica entre Roma e Genebra, o destino doloroso do herói foi praticamente o mesmo de Gabriel de Foigny, franciscano que abandonou o hábito, convertido ao calvinismo, em tudo marginal e rebelde, sempre objeto de escândalo e de reprovação, e que voltou para morrer, após ter sido expulso de Genebra por má conduta, em um convento na Sabóia. Mas o alcance de tal relato exemplar deve ser ampliado. Entre uma religião que, em nome da natureza, confundida com a razão, exprime um horror visceral da natureza36, e uma outra que dedica sacrifícios a ela, ao contrário, em excesso, pronta a recair na barbárie primitiva, não há realmente escolha. A sobre-humanidade austral, que censura nela mesma a parte animal do ser, evolui para a inumanidade. Por outro lado, a maldição do sangue pesa sobre o mais comum dos mortais, ou seja, na linguagem dos australianos, sobre os “meio-homens” que possuem por causa de sua imperfeição apenas um dos dois sexos. A condenação crítica da utopia37 em Foigny, assim como mais tarde em Swift, na Viagem ao país dos Houyhnhnms, não leva de forma alguma, por uma conseqüência indireta, à reabilitação do real, muito pelo contrário. A ironia geral e propriamente desesperada sobre a condição humana proíbe procurar nas sociedades ou nas religiões existentes uma solução aceitável. A observação de Gustave Lanson sobre este ponto é perfeitamente justificada. Cf. Maria Teresa BOVETTIPICHETTO (1976, p. 388). 35 36 Conforme a fórmula de COULET: “estes seres naturais têm em realidade horror da natureza, ela é a seus olhos desonra e queda, e talvez mesmo pecado” (1967, t. I, p. 283). Cf. RACAULT, 1991, p. 496-501. 37 A expressão é de RACAULT, 1991, p. 594. 167 FRANK LESTRINGANT Da utopia como impostura: a ilha Formosa de George Psalmanaazaar 38 Ver LESTRINGANT 1994b. 39 A edição original inglesa havia sido editada em 1704 em Londres sob o título: An Historical and Geographical Descriptions of Formosa. Sobre o personagem, de origem francesa, e as fontes de sua obra, ver ADAMS, 1993, p. 93-97. Do mesmo autor, 1983, p. 71 e 108. Psalmanaazaar, alias Psalmanazar, se tornará em sua velhice, amigo de Samuel Johnson. 168 A uma viagem pouco menos sombria nos convida o suposto George Psalmanaazaar, muito provavelmente um huguenote que fugiu da França logo após a revogação do édito de Nantes38. Mas ao invés de fazer surgir no oceano, como Foigny, uma hipotética Terra Austral, com sua geografia, sua flora, sua fauna e sua humanidade hermafrodita, ele limitou-se a escolher uma ilha bem conhecida desde o Renascimento, a bela e planturosa Formosa, e a preencher esses contornos e esse nome já familiares com um novo conteúdo. Tal procedimento foi maravilhosamente bem-sucedido. Não apenas ele pôde dissimular o caráter fictício de sua relação, mas também fez com que o herói e narrador, que era ele, sobrevivesse à sua aventura. Literalmente, ele construiu com esse relato imaginário sua carreira e sua glória, e conseguiu que lhe fosse atribuída uma cadeira de formosano em Oxford. A Description de l’Ile Formosa, primeiramente publicada em Londres em 1704, é, com efeito, uma das mais célebres contrafações que a literatura de viagem produziu39. Essa pintura minuciosa de uma sociedade teocrática e canibal transportava ao Extremo-Oriente os fastos sanguinolentos da religião asteca. A intenção era criticar a ação missionária vigorosa dos jesuítas nesta parte do mundo. Conseqüentemente, a idolatria dos formosanos estigmatizava a concepção católica do sacrifício da missa. Bem acolhida em Londres, onde sua apologia do anglicanismo foi apreciada, George Psalmanaazaar foi, ao contrário, denunciado como impostor pelos jesuítas franceses. Apesar de seus protestos, a relação do pseudojaponês foi amplamente aceita como autêntica durante cerca de trinta anos. Com Formosa, chegamos a um caso-limite. É uma utopia dada como real e que não é uma utopia no sentido estrito, já que ela é reconhecível no mapa e que ela tem um nome e contornos perfeitamente determinados. Formosa, apesar de Todorov (1991, p. 134-141), não coloca apenas um problema de ética histórica; o problema é também de ordem epistemológica. Um século tão apreciador de utopias poderia enganar-se sobre o caráter evidentemente inventado de uma descrição que coincidia com seu desejo. O mais surpreendente é a maneira pela qual o autor soube produzir um sentimento de familiaridade apropriado para fazer com que o mais inverossímil dos relatos fosse acolhido como verdadeiro. A suposta vastidão da ilha de Formosa desafia o simples bom senso. A existência de sacrifícios humanos contrasta com as observações até então trazidas pelos viajantes. Mas tamanho horror não é desconhecido, já que reside no coração do sacramento católico da Eucaristia, tal como ele é espontaneamente interpretado pelos protestantes e por eles cordialmente aviltado. A utopia formosana confere assim um brilho espetacular a esse rito tanto mais escandaloso por ser perpetrado com toda tranqüilidade em regiões próximas à Europa meridional, onde reina sem divisão a igreja de Roma. HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Que se julgue pelos fatos: todo ano são não menos de dezoito mil crianças do sexo masculino, com menos de nove anos, a perecerem pela mão dos sacrificadores. Certamente, como explica o narrador, a teocracia sanguinária de Formosa teve seus precedentes entre os povos mais famosos da história, gregos, latinos, israelitas. Quanto ao risco de extinção da população por esse excesso sacrificial, ele é precavido pela poligamia, fonte de uma descendência inesgotável. Além disso, a cifra de dezoito mil não é estritamente respeitada: a “lei positiva” que o prescreve “não é executada ao pé da letra”. Como nota J.-M. Racault, há algo de Borges no pseudoformosano (1991, p. 304). Com um rigor impressionante, a Description confia todos os elementos necessários à estatística do país. Um mapa, que se estende da Coréia, no Norte, às Filipinas, ao Sul, recoloca a ilha no arquipélago do mar da China. Um alfabeto, em que se encontram alguns caracteres gregos e hebraicos, oferece ao leitor a possibilidade de iniciar-se nos rudimentos da língua formosana. O viajante descobre pouco depois, em seu quarto, moedas gravadas com curiosos hieróglifos que lhe permitirão, se um dia ele tiver o desejo, negociar improváveis mercadorias com os habitantes do lugar, cujos costumes, distintos segundo o sexo e as condições sociais, são descritos. Tanto quanto uma utopia, com efeito, a Description é um guia de viagem. O quadro introdutório prepara para o mais central, este prato principal constituído da antropofagia religiosa dos formosanos. O ritual é descrito com toda a precisão técnica necessária. Nem gritos, nem lágrimas, nem vãs convulsões durante um sacrifício prolongado por horas, onde se degolam as vítimas em série e se arrancam os corações à medida que se dá o sacrifício. O mais religioso silêncio é entrecortado somente pelas orações dos oficiantes. Ressoam em seguida hinos sagrados acompanhados de flautas, tímpanos “e outros instrumentos” (PSALMANAAZAAR, 1705, cap. VI, p. 66-67) quando, assim que a carne é cortada em pequenos pedaços e fervida em seu sangue, cada fiel recebe sua parte. Com destreza, os sacerdotes enfiam em espetos bolinhas de carne humana que, uma a uma, serão distribuídas à assembléia composta de homens adultos, mulheres e crianças com mais de nove anos. Um após o outro, eles avançam em direção do altar, onde recebem respeitosamente das mãos do sacerdote o pedaço de carne consagrado e o comem depois de terem colocado um joelho no chão. É então que intervém o procedimento da “revolução sociológica”, que logo receberá de Montesquieu suas letras de nobreza40. A testemunha dos ritos formosanos fica naturalmente impassível face às cerimônias que lhe são familiares, como se supõe. Por outro lado, ela precisa esclarecer seu leitor europeu por meio de comparações julgadas apropriadas e que, por um efeito de choque retroativo, farão com que pareçam insólitas as práticas mais bem aceitas em nossas regiões. Daí o emprego de formulações ambíguas como “essa espécie de Comunhão” para designar a antropofagia ritual dos formosanos. 40 Sobre este conceito de “revolução sociológica”, ver CAILLOIS, 1947, t. I, p. V. Cf. MAY, 1990. 169 FRANK LESTRINGANT A continuação da apresentação das cerimônias observadas em Formosa confirma esse modo de leitura alegórica, que recomendam, no pé da página, as notas destinadas ao leitor. É assim que a mitra do Grande Sacerdote, a quem pertence o privilégio de arrancar o coração das crianças, lembra a do bispo; a faixa de tecido violeta que ele veste se parece com o escapulário da “maioria dos monges da Europa”. Mais adiante, as sandálias do Grande Sacerdote levam à comparação com as sandálias dos capuchinhos, uma nota logo caracterizando estes últimos como hipócritas: “É um tipo de monge que se diz reformado da Ordem de São Francisco, que dá mostras de uma vida muito pobre e muito austera; eles andam descalços” (PSALMANAAZAAR, 1705, cap. XII, p. 84-86). A primeira parte do livro estigmatiza o catolicismo pelo desvio exótico. A segunda emprega nessa condenação os argumentos complementares de uma narração. Notado por sua inteligência por um padre jesuíta que se apega a ele e o educa, G. Psalmanaazaar é levado à Europa. Primeiramente instruíram-no apenas nas verdades gerais do cristianismo, que ele acolheu com entusiasmo. Ora, em Avignon, o padre Alexandre de Rodes quer obrigá-lo a aceitar o dogma da transubstanciação que o repugna, apesar de estar acostumado com o derramamento de sangue e com a ingestão de carne humana. Ameaçado pela Inquisição, ele se evade, chega a Colônia, onde conhece os luteranos e sua consubstanciação, tão chocante a seus olhos quanto “a Transubstanciação Romana”. O calvinismo lhe parece mais razoável. Não nos esqueçamos de que o “verdadeiro” Psalmanaazaar é um provável huguenote que sofreu com a expulsão. O formosano consulta um ministro da religião reformada, que concorda com ele a respeito dos “absurdos aos quais as doutrinas dos romanos e dos luteranos estão sujeitas”, e ei-lo bem perto de tornar-se cristão. Mas o pastor se mostra por demais apegado ao princípio da predestinação absoluta. Rejeitado uma outra vez, errando de confissão em confissão, o formosano fracassa e termina nos Países Baixos onde ele adota por livre e espontânea vontade o anglicanismo, única doutrina, a seu ver, que está em acordo com a religião natural, a mais conforme, aliás, à Igreja primitiva. Uma oração de ações de graça conclui o capítulo XXXIX e último: “Faça o céu que eu nunca me desvie dele e a este grande Deus seja dada toda honra e toda glória, agora e sempre. Amém.” Antes da Description, Antangil, após a exposição de uma doutrina religiosa bastante vizinha, se concluia com a mesma invocação. A fábula formosana parece, definitivamente, ser de uma simplicidade luminosa. O enigma em forma de rébus geográfico logo se resolve em uma história edificante, coroada por uma conclusão das mais morais. Nesses anos que seguem a revogação do édito de Nantes, tal testemunho constitui um argumento de peso na luta contra a Igreja romana e a intolerância triunfante. É também o balanço um pouco fariseu que faz, praticamente na mesma época, Robinson Crusoé nas Réflexions sérieuses et importantes 170 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... que lhe atribui Daniel Defoe. Ao final de uma vida de aventuras e de provações, o colonizador de Despair Island chega a essa idéia tranqüilizadora, em processo de tornar-se um lugar comum: Deve mesmo parecer a juízes imparciais que entre os cristãos, aqueles cuja religião é a mais conforme aos livros sagrados são mais humanos e mais sociáveis do que os outros. Nos países protestantes, a doçura e o socorro mútuo são infinitamente mais notáveis do que nos países católicos, e não seria difícil demonstrar isso ao longo da história e pela experiência (DEFOE, 1721, t. III, cap. IV, p. 230). Esse testemunho de aprovação podia agradar aos leitores anglicanos das Serious Reflections como aos da Ile Formosa, mas o que pensava realmente Psalmanaazaar? A alegoria canibal certamente pode revestir um outro sentido. O catolicismo é de fato uma antropofagia. Mas a predestinação absoluta recomendada por Calvino e seus discípulos não é menos “monstruosa” que o dogma “absurdo” da transubstanciação. Quando de uma disputa pública organizada na Eclusa, nos PaísesBaixos, o formosano, que hesita em deixar-se batizar, está em condições favoráveis para replicar aos que se indignam com a inumanidade dos sacrifícios de crianças, que o Deus “que tira de propósito criaturas do nada para torná-las soberanamente infelizes, e que as condena a penas eternas, antes mesmo que elas existam”, é muito mais cruel e bárbaro41. A lição é: o símbolo pode ser mais assustador do que a própria realidade. Em sua oposição ao papa, os calvinistas esforçaram-se para reformar e purificar sua religião, afastando dela qualquer traço da obrigação sacrificial das origens42. No entanto, eles não acabaram com o terror que pesa sobre as almas. De volta da contra-utopia de Formosa, o sábio Psalmanaazaar, segundo uma regra várias vezes verificada no curso desta análise, adota em matéria religiosa o caminho do meio como o mais razoável. Essa solução híbrida é testemunha do espírito de bricolagem próprio do autor e narrador, como, além do mais, da inverossímil construção de Formosa em seu conjunto. O genial impostor não podia senão dar uma lição conforme à sua impostura. A escolha do anglicanismo era muito apropriada para capturar seu público e convencê-lo da conformidade de seu relato. Mas essa certeza assim dada por procuração era uma certeza traiçoeira, uma falsa verdade, como a alegoria geográfica que lhe servia de pretexto e suporte. A Description de l’île Formosa poderia assim constituir, para além da ajuda conjuntural que ela traria à Reforma e aos inimigos dos jesuítas, um formidável ataque à própria Reforma e, contando o final, a toda forma de religião. Bibliografia 41 ADAMS, Percy G. Travel Literature and the Evolution of the Novel. Lexington: The University Press of Kentucky, 1983. Tal é o problema tratado em meu livro de 1996b. Ibid., ch. XXXVII, p. 279. 42 171 FRANK LESTRINGANT ADAMS, Percy G. Travelers and travel liars, 1660-1800. Berkeley-Los Angeles: Univ. of California Press, 1962. AMICO, Léonard N. À la recherche du Paradis terrestre. Bernard Palissy et ses continuateurs. Paris: Flammarion, 1996. ANEAU, Barthélemy. Alector ou le Coq, histoire fabuleuse (Lyon, Pierre Fradin, 1560). Édité par Marie M. Fontaine. Genève: Droz, 1996. ARMOGATHE, Jean-Robert. L’Homme de science. In: Bernard Palissy. Mythe et réalité. Catalogue de l’exposition, Musées d’Agen-Niort-Saintes, 1990. AUERBACH, Erich. Mimésis. Trad. fr. Paris: Gallimard, 1968. BACON, Francis. Du progrès et de la promotion des savoirs (1605). Trad. M. Le Dœuff. Paris: Gallimard, 1991. BALMAS, Enea. La ‘città ideale’ di Jacques Perret. In: Studi di Letteratura Francese, II, 1969. BATTISTI, Eugenio. L’Antirinascimento. Fiaba, allegoria, automi, arte profana, astrologia, razionalismo architettonico: storia dell’anticlassicismo nel rinascimento. Milano: Garzanti, 1989. BENEDICT, Philip. Des marmites et des martyrs: images et polémiques pendant les guerres de Religion. In: La Gravure française à la Renaissance à la Bibliothèque nationale de France. Catalogue de l’exposition. Los Angeles et Paris, 1994-1995, p. 108-137. BOVETTI-PICHETTO, Maria T. Gabriel de Foigny, utopista e libertino. In: FIRPO, Luigi (éd.), Studi sull’utopia, Il Pensiero politico, 9, 1976. CAILLOIS, Roger. Prefácio a MONTESQUIEU, Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1947. CAVE, Terence. Transformations d’un topos utopique: Gaster et le rocher de vertu. In: Études rabelaisiennes, XXI, 1988, p. 319-325. CHOMARAT, Jacques. Grammaire et rhétorique chez Erasme. Paris: Les Belles Lettres, 1981. CIORANESCU, Alexandre. Le Royaume d’Antangil’ et son auteur. In: Studi Francesi, VIIe année, 19, 1963, p. 17-25. CONCONI, Bruna. Il Salmo e il Compasso, ovvero gli artifici di um inventore Riformato. In: Studi di Letteratura francese, XIX, “Cinquecento visionario tra Italia e Francia”. Firenze: Olschki, 1992, p. 411-436. COULET, Henri. Le Roman jusqu’à la Revolution. Paris: Armand Colin, 1967. CURTIUS, Ernst R. La Littérature européenne et le Moyen Age latin. Paris: Agora, 1986. DANDREY, Patrick. L’Éloge paradoxal de Gorgias à Molière. Paris: P.U.F., 1997. DEFOE, Daniel. Reflexions sérieuses et importantes de Robinson Crusoe, faites pendant les aventures surprenantes de sa vie. Avec sa vision du Monde angélique. Amsterdam: chez L’Honoré et Chatelain, 1721. ÉRASME. L’Eloge de la Folie. Déclamation d’Erasme de Rotterdam. Trad. J. Chomarat. Paris: Le Livre de Poche, 1991. [Edição brasileira: ERASMO. 172 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... Elogio da Loucura. Tradução e notas de Paulo M. Oliveira. In: ERASMO. Elogio da Loucura e MORE. A Utopia. Tradução e notas de Luís de Andrade. São Paulo: Abril, 1979.] FLOURNOIS, Gédéon. Les Entretiens des voyageurs sur la mer. Cologne: Pierre Marteau, 1715. FOIGNY, Gabriel de. La Terre australe connue (1676). Édition établie, présentée et annotée par Pierre Ronzeaud. Paris: Société des Textes Français Modernes, 1990. FONTAINE, Marie M. Alector, de Barthélemy Aneau, ou les aventures du roman après Rabelais. In: Mélanges sur a littérature da Renaissance à a mémoire de V.-L. Saulnier. Genève: Droz, 1984, p. 547-566. FONTAINE, Marie. M. Introduction. In: ANEAU, Barthélemy. Alector ou le Coq, histoire fabuleuse (Lyon, Pierre Fradin, 1560). Édité par Marie M. Fontaine. Genève: Droz, 1996. FRIESEN, Abraham. Reformation and Utopia: the marxist interpretation of the Reformation and its antecedents. Wiesbaden: Steiner, 1974. FRIESEN, Abraham. Thomas Muentzer, a Destroyer of the Godless. The Making of a Sixteenth-Century Religious Revolutionary. Berkeley-Los Angeles-Oxford: University of California Press, 1990. GRELLIER, Isabelle. Les bâtiments d’église, une question théologique. In: Études théologiques e religieuses, 1993-4, p. 537-556. HAAG. La France protestante. Paris/Genève: J. Cherbuliez, 10 vol., 18461859. I.D.M.G.T. Histoire du grand et admirable royaume d’Antangil. Incogneu jusques à présent à tous Historiens et Cosmographes: composé de six vingts Provinces très-belles et très-fertiles. Avec la description d’icelui, et de sa police non-pareille, tant civile que militaire. De l’instruction de la jeunesse. Et de la Religion. Le tout comprins en cinq livres. À Saumur, Par Thomas Portau, 1616. Reeditado por Frédéric Lachèvre com o título: La Première Utopie française. Le Royaume d’Antangil (inconnu jusqu’à présent) réimprimé sur l’unique édition de Saumur, 1616. Avec des éclaircissements de Frédéric Lachèvre. Paris: La Connaissance, 1933. LAFOND, Jean. Le Discours de la Servitude volontaire da Boétie et la rhétorique de la déclamation. In; Mélanges sur la littérature de la Renaissance à la mémoire de V.-L. Saulnier. Genève: Droz, 1984. LA POPELINIÈRE, Lancelot Voisin de. Les Trois Mondes (1582), éd. critique par Anne-Marie Beaulieu. Genève: Droz, “Travaux d’humanisme et Renaissance”, n° CCCX, 1997. LEFEBVRE, Joël. Thomas Muenzer: écrits théologiques et politiques. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1982. LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Bresil (éd. de Genève, 1580). Paris: LGF, “Bibliothèque classique”, 1994. LESTRINGANT, Frank. Une cartographie iconoclaste: la Mappe-Monde Nouvelle Papistique de Pierre Eskrich et Jean-Baptiste Trento. In: 173 FRANK LESTRINGANT PELLETIER, Monique (éd.), Géographie du monde au Moyen Age et à la Renaissance. Paris: Éditions du CTHS, 1990a, p. 99-120. LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le sauvage. L’Amérique et la controverse coloniale en France, au temps des guerres de Religion. Paris: Aux Amateurs de livres, diff. Klincksieck, 1990b. LESTRINGANT, Frank. La Cause des martyrs dans Les Tragiques d’Agrippa d’Aubigné. Mont-de-Marsan: Éditions InterUniversitaires, 1991. LESTRINGANT, Frank. Le cannibale, grandeur et décadence. Paris: Perrin, 1994a. LESTRINGANT, Frank. Travels in Eucharistia: Formosa and Ireland from George Psalmanaazaar to Jonathan Swift. In: Yale French Studies, n° 86: Corps mystique, corps sacré, 1994b, p. 109-125. LESTRINGANT, Frank. Le Cannibale et la Marmite. In: Bulletin du Bibliophile, 1996b-1, p. 82-107. LESTRINGANT, Frank. Une sainte horreur ou le Voyage em Eucharistie (XVIe-XVIIIe siècle). Paris: P.U.F., 1996b. LESTRINGANT, Frank. L’Histoire de la Mappe-Monde Papistique. In: Comptes rendus de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, juillet-octobre 1998, p. 699-730. LESTRINGANT, Frank. Huguenots en Utopia ou le genre utopique et la Réforme. In: SCHAER, R., CLAEYS, G., SARGENT, L.T. (ed.) Utopie. La quête de la société idéale. Paris: Bibliothèque nationale de France/ Éditions Fayard, 2000. LESTRINGANT, Frank. La Cause des martyrs dans Les Tragiques d’Agrippa d’Aubigné. Mont-de-Marsan: Éditions InterUniversitaires, 1991 [reedição revista e aumentada: Lumière des martyrs: essai sur le martyre au siècle des Réformes. Paris, Champion, 2004.] LÉVY-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1955. LÉVY-STRAUSS, Claude. Histoire de lynx. Paris: Plon, 1991. LIENHARD, Marc. Martin Luther. Un temps, une vie, un message. Paris : Le Centurion et Genève, Labor et Fides, 1983. MANNHEIM, Karl. Idéologie et utopie. Trad. P. Rollet, Paris, 1956. MATOS, Luis de. L’Expansion portugaise dans la littérature latine de la Renaissance. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. MAY, Georges. Sens unique et double sens. Réflexions sur les voyages imaginaires. In: Diogène n° 152, octobre-décembre 1990, p. 3-21. MONTAIGNE. Essais. Éd. P. Villey. Paris: P.U.F., 1965. [Edição brasileira: MONTAIGNE. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril, 1972. ] MORE, Thomas. La Republique d’Utopie, par Thomas Maure [...] Œuvre grandement utile et profitable, demonstrant le parfait estat d’une bien ordonnée politique. 2a ed. Lyon: Jean Saugrain, 1559. Tradução de Jean Le Blond. “Advertissement” liminar de Barthélemy ANEAU. 174 HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO... NIPPERDEY, Thomas. Reformation, Revolution, Utopie: Studien zum 16. Jahrhundert. Göttingen: Vanderhoeck und Ruprecht, 1975. PALISSY, Bernard. Recette véritable. Éd. de F. Lestringant et Ch. Barataud. Paris: Macula, 1996. PERRET, Jacques. Des fortifications et artifices, architecture et perspective de Jacques Perret gentilhomme savoysien. S.l.n.d. [1601]. PICTET, Benedict. Dissertação sur les Temples, leur dedicace, et plusieurs choses qu’on y voit. PSALMANAAZAAR Genève: Fabri et Barrillot, 1716. PREDA, Alessandra. L’Histoire de la Mappe-Monde Papistique de Jean-Baptiste Trento et ses sources italiennes. In: B.S.H.P.F. 145, avril-juin 1999, p. 245261. PSALMANAAZAAR, George. Description de l’Ile Formosa en Asie. Du Gouvernement, des Loix, des Mœurs et de la Religion des habitans: Dressée sur les Mémoires du Sieur George Psalmanaazaar natif de cette Ile [...]. Par le Sieur N.F.D.B.R. Amsterdam: E. Roger, 1705. QUIGNARD, Pascal. Albucius. Paris: P.O.L., 1990. RABELAIS. Œuvres complètes. Éd. M. Huchon. Paris: Gallimard, 1994. [Edição brasileira: RABELAIS. Gargântua e Pantagruel. Tradução de David Jardim Jr. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.] RACAULT, Jean-Michel. L’utopie narrative en Angleterre et en France 16751761. Oxford: The Voltaire Foundation, 1991. RACAULT, Jean-Michel. Introduction. In: LEGUAT, François. Voyage et aventures de François Leguat et de ses compagnons en deux îles désertes des Indes orientales (1690-1698), seguido de DUQUESNE, Henri. Recueil de quelques mémoires servant d’instruction pour l’établissement de l’île d’Eden. Introduction de Paolo Carile. Paris: Les Éditions de Paris, 1995. REYMOND, Bernard. Les Styles architecturaux du protestantisme: un survol du problème. In: Études théologiques e religieuses, 1993-4, p. 507-535. RUYER, Raymond. L’ utopie et les utopies. Paris: P.U.F., 1950. SAUZET, Robert (org.). Les Frontières religieuses en Europe du XVe au XVIIe siècle. Actes du XXXIe colloque international d’études humanistes de Tours. Paris: Librairie philosophique J. Vrin, 1992. TAYLOR, Thomas. La Mappe Romaine, contenant cinq traitez representez en ceste figure. Le tout extrait de l’Anglois de T.T. [par Jean Jacquemot]. Genève: par J. de la Cerise, 1623 (BNF: Rés.D2.15966). THEVET, André. Le Grand Insulaire et Pilotage, circa 1588, Paris, BnF, Ms fr. 15452. TILLICH, Paul. L’Architecture protestante contemporaine. In: Études théologiques e religieuses, 1993-4, p. 499-506. TODOROV, Tzvetan. Les Morales de l’histoire. Paris: Grasset, 1991. TOURNON, André. Montaigne. La glose et l’essai. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1983. 175 FRANK LESTRINGANT TRENTO, Jean-Baptiste, ESKRICH, Pierre. Histoire de la Mappe-Monde Papistique, en laquelle est declairé tout ce qui est contenu et pourtraict en la grande Table, ou Carte de la Mappe-Monde: Composée par M. Frangidelphe Escorche-Messes. Imprimée en la ville de Luce Nouvelle [= Genève], par Brifaud Chasse-diables [= François Perrin], 1567. TROUSSON, Raymond. Preface. In: Denis VAIRASSE d’Allais (ou VEIRAS d’Alès). L’Histoire des Sévarambes. Genève: Slatkine, 1979. VAN RUYMBEKE, Bertrand. L’Émigration hugenote en Caroline du Sud sous le régime des Seigneurs Propriétaires. Tese. Université de Paris III, 1995. WAHRMAN, Dror. From Imaginary Drama to Dramatized Imagery. The Mappe-Monde nouvelle papistique, 1566-1567. In: Journal of the Warburg and Courtauld Institute, vol. 54, 1991. WIRTH, Jean. Luther. Étude d’histoire religieuse. Genève: Droz, 1981. 176