Introdução - Franklin Goldgrub

Transcrição

Introdução - Franklin Goldgrub
Introdução
Un hombre se entrega a la tarea de dibujar el mundo. A medida
que pasan los años, llena el espacio con imágenes de provincias,
reinos, montañas, bahías, barcos, peces, habitaciones, instrumentos,
estrellas, caballos y personas. Justo antes de morir, descubre que su
paciente laberinto de líneas es una huella de su propio rostro.1
(Jorge Luis Borges, 1960)
Alguns artigos que compõem este libro já foram publicados.
Algumas dessas publicações, cuja tiragem encontra-se esgotada, tornaram-se inacessíveis. Outras, de difícil obtenção. Em certos casos, as
respectivas revistas foram (conforme uma expressão em voga) descontinuadas, e o destino de seu acervo permanece desconhecido. Mas a
principal razão para reunir em um volume os textos dispersos, devidamente revisados, bem como o acréscimo dos mais recentes, foi a percepção da secreta unidade que perpassa os diferentes temas tratados.
Psicanálise e linguagem são termos que, colocados lado a
lado, evocam imediatamente seu primeiro arauto, Jacques Lacan. Há,
evidentemente, bons e inescusáveis motivos para essa vinculação.
Bem menos conhecida é a suspensão dos estudos e reflexões sobre as relações entre a ciência do sonho e a ciência dos signos,
decorrente da migração do teórico francês para as distantes regiões da
matemática, da lógica e da topologia.
O flautista de Hamelin não teria feito melhor. O resultado foi
o abandono do percurso que o gesto inaugural havia prometido, ou
seja, focalizar as relações entre a linguagem, de um lado, e a epistemologia, a teoria e a metodologia da psicanálise, de outro.
Oficialmente, porém, tudo se passa como se o empreendimento em questão houvesse sido plenamente realizado... Pode-se
recorrer novamente a Andersen para ilustrar essa situação. Se a teoria
1 “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um
espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de
peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de
morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto”.
Jorge Luís Borges
8 • Sargaços
lacaniana das relações entre linguagem e psicanálise não está nua, a sua
pretensão de exibir um manto real é desmentida pelo mais superficial
dos escrutínios.
Os vestígios deixados pela relativamente breve incursão de
Lacan constituem uma mistura de conceitos notavelmente heurísticos
com esquemas e raciocínios herméticos, frequentemente arbitrários
(algo nada raro nos Escritos e Seminários). As fórmulas da metáfora
e da metonímia, a associação entre condensação e metáfora, deslocamento e metonímia, e de maneira mais ampla a surpreendente e
notável incompreensão lacaniana acerca do método freudiano ilustram
esse ponto.
As consequências mais graves encontram-se no próprio terreno da interpretação que, sem qualquer exame, foi abandonada ou
secundarizada na prática clínica e, pior, conservando-se o termo, sacralizado graças ao título do livro mais célebre de Freud.2
O mesmo poderia ser dito da teoria da constituição do sujeito,
em que a notável contribuição de Lacan (o estádio do espelho) está
longe de ter sido examinada em relação aos correspondentes conceitos
freudianos (auto-erotismo, narcisismo primário e secundário). O lacanismo também passou ao largo da aquisição da linguagem, fenômeno
cuja importância não poderia ser exagerada. O conceito infans e certas
passagens do artigo sobre o estádio do espelho indicam tanto a presença do tema como as lacunas que afetam seu tratamento.
Os estudos sobre psicanálise e linguagem foram transformados em um território minado, que as vertentes psicanalíticas não (ou
anti) lacanianas evitam ciosamente, por considerar que o mesmo pertence à jurisdição da rua Lille, enquanto os adeptos do papa da psicanálise francesa manifestam um solene desprezo pela sua fase ‘estruturalista’, seguindo obedientemente as últimas manifestações do mestre
a esse respeito.
O casamento entre psicanálise e linguística (“o inconsciente
está estruturado como uma linguagem” e “a linguagem é a condição
do inconsciente”), foi alardeado, enquanto o divórcio permaneceu
2 A interpretação sofreu o mesmo destino na abordagem kleiniana.
Introdução • 9
(quase?) secreto. A separação pode ser representada pelos termos
“lingüisteria” e “alíngua”, denotativos do nível quase insuperável atingido pela babelização do discurso lacaniano.
Portanto, escrever sobre psicanálise e linguagem, hoje,
implica em deixar de lado a lógica (ou ilógica) da trajetória lacaniana,
bem como sua relação com outras correntes e autores. O que não
significa ignorar Lacan, mas situá-lo na reflexão a ser empreendida.
De resto, trata-se de proceder ao estudo de questões
centrais para a teoria psicanalítica, finalidade que o sectarismo só
poderia prejudicar.

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