O LOBBY DOS BANCOS NO BRASIL - Associação Brasileira de

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O LOBBY DOS BANCOS NO BRASIL - Associação Brasileira de
O LOBBY DOS BANCOS NO BRASIL:
UM ESTUDO SOBRE A FEBRABAN VIS À VIS O ESTADO
Marcus Ianoni (Departamento de Ciência Política – UFF) – Julho/2012
Este trabalho tem dois objetivos concatenados. O primeiro é identificar
empiricamente a ação coletiva da Febraban, desde os anos 90, sobre algumas
instituições do Poder Público brasileiro, com o intuito de avaliar se o Estado, através de
suas decisões e não-decisões, é ou não influenciado pelos interesses da financeirização e
em que medida e em quais contextos. O segundo objetivo é de ordem teórica: partindo
das relações, evidenciadas empiricamente, entre Estado e interesses financeiros no
Brasil, são apresentadas e debatidas duas grandes concepções de teoria do Estado que,
no contexto da hegemonia financeira, têm sido mobilizadas para explicar tais relações: a
teoria estadocêntrica da autonomia do Estado (Sola, Kugelmas e Whitehead, 2002;
2002; Kasahara, 2009) e teorias sociocêntricas de corte instrumentalista (BresserPereira, 2007; Ianoni, 2008, 2009 e 2010). A pergunta básica é a seguinte: desde os anos
90, o Estado brasileiro tem operado autonomamente em relação aos interesses
financeiros e rentistas da financeirização ou tem sido capturado por eles? Entre um
extremo e outro há nuanças? Se sim, como formulá-las?
No título desse trabalho, consta a palavra lobby. Em ciência política, o termo
lobby faz parte do vocabulário da teoria pluralista dos grupos de interesse, formulada
pela escola pluralista norte-americana. A teoria pluralista da intermediação de interesses
considera que as sociedades industriais propiciam a emergência, em larga escala, de
organizações de interesses. A crescente divisão de trabalho é uma das principais fontes
da proliferação permanente de grupos profissionais, de comércio e inúmeros outros
tipos de negócios. A ação coletiva dos atores políticos ocorre em uma estrutura tão
fragmentada e competitiva quanto é a estrutura do mercado. Todos os diferentes grupos
de interesse possuem recursos de poder que lhes garantem acesso igual ao processo
decisório público e às políticas públicas. O Estado é visto como neutro, ele apenas
homologa a resultante de forças conformada pelos grupos em disputa em cada
momento, em torno de determinada questão.1
1
Ver Lathan (1952) e Truman (1981).
1
Porém, outro modelo teórico importante tem marcado, desde os anos 70, o
estudo dos grupos de interesse: o corporativismo. Enquanto o pluralismo vê uma
estrutura fragmentada de intermediação de interesses – sendo a sociedade dos EUA a
expressão empírica mais próxima daquela formulação teórica –, o corporativismo
identifica mecanismos de cooperação entre o Estado e alguns grandes grupos de
interesse, que configuram outro sistema de representação de interesses, diferente do
descrito pela escola pluralista. Schimitter (1974: 93-94) assim define o corporativismo:
Corporatism can be defined as a system of interest representation in which the constituent units are
organised into a limited number of singular, compulsory, noncompetitive, hierarchically ordered and
functionally differentiated categories, recognised or licensed (if not created) by the state and granted a
deliberate representational monopoly within their respective categories in exchange for observing certain
controls on their selection of leaders and articulation of demands and supports.
Em sua análise, Schimitter (op. cit., pp. 102-103) apoia-se em Manoilesco para
distinguir dois subtipos de corporativismo: o societal (que a literatura consagrou com o
termo neocorporativismo) e o estatal. O primeiro tem origem na própria sociedade e o
segundo, na ação do Estado.
A distinção entre os modelos pluralista e corporativista de intermediação de
interesses é importante. O modelo pluralista é liberal. A competição entre os grupos de
interesse explica o resultado da ação governamental, vista como neutra e homologatória
do interesse público, sendo este último considerado a decisão resultante das disputas de
interesse levadas a cabo em diversos momentos. Por outro lado, o modelo corporativista
envolve um papel ativo do Estado e de grandes organizações corporativas, empresariais
e trabalhistas, na definição de políticas públicas. Assim, quando, no título desse
trabalho, se fala em lobby, não se está assumindo a avaliação de que a intermediação de
interesses dos banqueiros no Brasil se dá conforme o modelo pluralista. O termo lobby
está aqui utilizado como sinônimo de ação coletiva. Nesse sentido, pode-se falar em
lobby pluralista, lobby neocorporativista, corporativista etc. Portanto, pode-se também
usar o termo grupo de interesse no sentido amplo do termo, ou seja, sem que ele seja
subentendido como enquadrado no universo fragmentado dos grupos de interesse do
modelo pluralista. Uma organização corporativa pode ser concebida como um grupo de
interesse.
No que diz respeito à organização dos interesses financeiros e às suas relações
com o Estado, este trabalho parte da hipótese de que, ao menos através da Febraban, os
banqueiros conformaram um modelo neocorporativista de intermediação de interesses e
de formulação de políticas públicas, o que não implica negar a ocorrência, também, de
2
padrões pluralistas de representação de interesses entre Estado e Finanças, conforme
previsto na análise de Diniz (2005) sobre a estrutura dual.
Pluralismo e (neo)corporativismo implicam em diferentes teorias do Estado.
Enquanto o pluralismo implica uma teoria liberal do Estado, a crítica (neo)corporativista
ao pluralismo concebe um papel mais ativo ao Estado no arranjo desse modelo de
intermediação de interesses. Trata-se de um papel ativo do Estado no processo de
desenvolvimento, que confere ao Poder Público determinada autonomia decisória.
Evans (1993) distingue dois tipos ideais de Estado, o predatório e o desenvolvimentista.
Ao abordar o Zaire, esse autor avalia que o Estado predatório daquele país pode, por um
lado, ser considerado como desprovido de autonomia,
uma vez que o Estado enquanto entidade corporativa é incapaz de formular e implementar metas
coerentes e uma vez que as decisões políticas são tomadas em favor de elites privadas [...]. Ao mesmo
tempo, no entanto, é impressionante como o Estado zairiano não é controlado pela sociedade. Ele é
‘autônomo’ no sentido de que suas metas não derivam da agregação de interesses sociais. Essa
‘autonomia’ não amplia a capacidade do Estado de adotar suas próprias metas, e sim afasta reações
sociais críticas a sua dominação arbitrária (op.cit, p. 121).
No trecho citado, Evans quer chamar a atenção para a diferença entre a
autonomia do Estado e a sua capacidade de ação. O Estado do Zaire é, sobretudo,
instrumentalizado pelas elites e, ao mesmo tempo, possui uma autonomia do tipo
absolutista, por não ser controlado pela sociedade civil. No entanto, é um Estado
patrimonialista, quase sem capacidade de ação, desprovido de um aparelho burocrático
coerente. Porém, ao se referir a países do Leste Asiático, como Japão e Coréia, Evans
destaca que seus Estados desenvolvimentistas gozaram de uma autonomia inserida, ou
seja, uma autonomia associada à capacidade de ação inserida em setores empresariais
chaves, para a formulação e implementação de políticas públicas. Tal autonomia
inserida foi um elemento central da industrialização daqueles estados (Evans, 1993). Por
outro lado, sabe-se que Japão e Coréia possuem arranjos corporativos (Lee, 2004; Kim,
2008).
Em síntese, foi dito que será examinada a ação coletiva dos banqueiros,
organizada em molde neocorporativista, em prol da financeirização do sistema
financeiro, e esse exame servirá de base empírica para uma discussão teórica sobre o
Estado,
sobre
sua
autonomia
perante
as
burguesias
financeiras
e/ou
sua
instrumentalização por elas. Tal debate teórico ambienta-se no contexto de construção
de uma nova estratégia de desenvolvimento pós-nacional-desenvolvimentista e antifinanceirização. Primeiro vem a parte empírica, depois a teórica e, ao fim, a conclusão.
3
2.
Empresariado Financeiro e Estado no Brasil
Esta seção busca evidenciar o processo de construção institucional da
financeirização no Brasil, desde os anos 90, pela ação, por um lado, dos interesses
financeiros organizados, sobretudo a Febraban, e, por outro, do Estado; em segundo
lugar, visa apontar para as mudanças graduais, operadas desde Lula, nas relações entre
Estado, sociedade e economia.
A Febraban (2007) define-se como organização de representação de interesses
dos associados do setor financeiro junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
para, entre outros objetivos, “propor e defender mudanças ou edição de normas que
aumentem a eficiência do sistema financeiro e o aprimoramento de seus instrumentos”
(Angelo, 2007, p. 210). Ela é uma organização que se enquadra no modelo
neocorporativo.
Várias mudanças regulatórias aprovadas nos últimos anos são vistas pela
Febraban como resultado de suas ações. Pesquisas das ações de lobby dos interesses
financeiros na grande mídia mostram, por exemplo, a presença dos banqueiros, em
1997, no Conselho de Recursos do SFN; sua ação, em 2000, por meio de parlamentares
do PPB, para impedir a aprovação do regime de urgência para o encaminhamento
processual de projetos de combate à elisão fiscal e à sonegação de impostos, através de
dados da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de
Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira); que, em 2003 (início do
primeiro governo Lula), há manifestações públicas para que o COPOM (Comitê de
Política Monetária do BCB) decida sobre juros por critérios técnicos; o empresário
Antonio Ermírio de Moraes, do setor produtivo, dizendo, em 2003: “o lobby financeiro
é muito mais forte que o nosso”; a ocorrência, em 2006, de uma ação vitoriosa da
Febraban sobre o CMN para retardar e mudar conteúdos da resolução sobre a “conta
salário” (portabilidade dos salários); a organização, em 2008, de forte lobby sobre o
governo federal e o STF (Supremo Tribunal Federal), para que fossem julgadas
improcedentes ações de correntistas que pediam na Justiça a reposição das perdas na
poupança causadas pelos planos econômicos Bresser, Verão e Collor I e II; que, em
2011, os banqueiros se mostraram descontentes em relação à publicação mensal, pelo
BCB, de um novo índice para a Taxa Preferencial Brasileira e, em 2012, o
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questionamento da Febraban em relação à possibilidade do governo induzir à ampliação
da oferta de crédito. Adiante, serão vistos mais exemplos de lobby dos banqueiros.
Segundo Epstein (2005, p. 3) “financialization means the increasing role of
financial motives, financial markets, financial actors and financial institutions in the
operation of the domestic and international economies”. Guttmann (2008, pp. 12-14)
avalia que a financeirização é um processo complexo e de muitas facetas e destaca,
entre outros, três elementos: a) a maximização do valor ao acionista; b) o
desacoplamento entre lucros e investimento; c) redistribuição da renda em benefício dos
ricos.
Com respeito aos bancos, instituições financeiras altamente poderosas dos
mercados financeiros financeirizados, Minella (2003, pp. 248-49), apoiando-se em
Mintz e Shwartz (1985), afirma: “O fator fundamental para entender o poder dos bancos
e das instituições financeiras é o controle que exercem sobre parte substantiva dos
recursos e do fluxo de capitais na economia. Através deste controle são capazes de
impor constrangimentos ao processo decisório das políticas governamentais e das
decisões estratégicas das empresas, caracterizando-se um processo que alguns autores
identificam como ‘hegemonia financeira’”.
No Brasil, a financeirização foi sendo institucionalizada desde os anos 90. A
abertura financeira (liberalização e desregulamentação) iniciou-se com Collor e
consolidou-se em 2000, na gestão de Armínio Fraga no BCB (Freitas e Prates, 2001).
Carvalho (2004) avaliava que as transações com a dívida pública representavam uma
fonte de ganho fundamental das instituições financeiras, concorrendo com a alocação
produtiva de seus recursos. O processo de construção da engenharia institucional da
financeirização no Brasil pode ser observado através da trajetória da regulamentação
financeira desde a Constituição de 1988.
A Carta Magna estabelecera, em seu Art. 192, que o SFN seria regulamentado
por lei complementar. Em três legislaturas consecutivas, de 1991 a 2003, a Câmara dos
Deputados formou a Comissão Especial do Sistema Financeiro para tentar cumprir a
determinação constitucional. Em seus doze anos de atividades, assim como na
Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, produziram-se inúmeros projetos
de lei, realizaram-se seminários, audiências públicas etc. Aprovada a EC 40/2003,
houve uma relativa desmobilização da discussão da regulamentação do Art. 192,
embora inda haja projetos sobre essa matéria em tramitação, como o PLS-102/2007.
5
Mas o Congresso não deixou de legislar sobre conteúdos da versão original do
Art. 192. Assim, a EC 13/1996, de autoria parlamentar, altera o inciso II, extinguindo a
exclusividade do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) como órgão oficial
ressegurador. A Lei 9.932/1999 transfere atribuição do IRB para a Superintendência de
Seguros Privados (Susep). Em 2002, essa lei é suspensa pelo STF, mas, em 2005, a
Fazenda envia ao Congresso o PLP-249/2005, que, em 2007, é convertido na LC 126,
que disciplina o mercado de resseguros. Tais mudanças quebraram o monopólio estatal
do resseguro, privatizaram-no e, depois, abriram esse mercado ao capital externo.
Foram demandadas pelos grupos de interesse correspondentes.
Por iniciativa do Executivo, em 2001, é aprovada a LC 109, que estabelece o
Regime de Previdência Complementar, a previdência privada, seja aberta ou fechada.
Em 2009, também por iniciativa do Executivo, é aprovada a Lei 12154, que cria a
Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), novo órgão
fiscalizador e supervisor dos fundos de pensão (previdência privada fechada). A
previdência aberta passou a ser fiscalizada pela Susep. A liberalização da previdência
complementar tem desenvolvido os mercados financeiros, sobretudo por fortalecer os
investidores institucionais, cujos ativos têm alavancado vários segmentos econômicos.
Uma grande rede de grupos de interesse vincula-se a tais mercados, fomentados por leis
de autoria do Executivo e normas de agências como Susep, Previc e CVM.
Por iniciativa do Congresso, aprova-se, em 2009, a LC 130, que normatiza o
crédito cooperativo, conforme previsto no inciso VIII do Art. 192. Esse mercado,
embora não seja novo, tem se desenvolvido com o novo marco legal e seus agentes
pretendem ocupar um espaço alternativo de oferta de produtos e serviços bancários em
melhores condições que os proporcionados pelo mercado financeiro tradicional.
Como suprareferido, a EC 40/2003, aprovada no início do primeiro mandato de
Lula, altera a história da regulamentação do Art. 192. A Febraban considera a aprovação
da EC 40 um marco no avanço do ambiente regulatório, por permitir a regulamentação
separada dos diversos mercados do SFN e por eliminar a regra de tabelamento dos juros
reais em 12% ao ano (Angelo, 2007: 135-136). O governo Lula aprovou a EC 40 sob
pressão das Finanças, visando sinalizar aos mercados que variáveis políticas não
interfeririam na política monetária do BCB.2
2
As evidências disso na mídia são inúmeras.
6
O Congresso também produziu, em especial desde 1995, várias leis pertinentes
ao SFN que, embora não normatizaram matérias do conteúdo original do Art.192,
inserem-se na construção da ordem econômico-financeira pró-financeirização. No
processo do Plano Real, o Congresso Revisor aprovou a EC de Revisão n.º 1, que
instituiu o Fundo Social de Emergência, até hoje em vigência sob o nome de
Desvinculação de Receitas da União. Esse fundo desvincula 20% da arrecadação da
União para destiná-lo ao pagamento das obrigações contratuais da dívida pública, cujos
títulos os bancos são os grandes operadores. Em 1995, a medida provisória da nova
moeda, o real, foi convertida na Lei 9.060, que, entre outras mudanças, reduziu a
composição do CMN para três membros. Destacam-se, também, as seguintes leis:
9447/1997 (Responsabilidade Solidária), 9613/1998 (“Lavagem” de Dinheiro),
9710/1998 (Proer), 10214/2001 (Sistema de Pagamentos Brasileiro), Lei Complementar
105/2001 (Sigilo Bancário) e 11101/2005 (Nova Lei de Falências). A Febraban avalia
que todas essas leis demarcam avanços no ambiente regulatório e normativo (Angelo,
op. cit., pp. 121-137).
Na Era Lula, além da Nova Lei de Falências, pode-se mencionar as seguintes
leis, todas de iniciativa do Executivo, que também foram legitimadas politicamente
pelas instituições financeiras: Lei 10820/2003 (Empréstimo Consignado), Lei
10931/2004 (Cédula de Crédito Bancário) e a EC 56, que prorrogou a DRU até 2011.
Veja-se que, em dezembro de 2007, a mesma sessão de votação que aprovou a parte da
PEC 89, enviada pelo Executivo, que prorrogava a DRU, resultando na EC 56, derrotou
o governo na parte da PEC que visava prorrogar a CPMF. Essa ocorrência é muito
elucidativa em relação à hegemonia financeira. Na votação de uma PEC de autoria do
governo, este sofre derrota em sua tentativa de manter um fundo para financiar o
sistema público de saúde e conquista vitória na prorrogação de uma emenda
constitucional que lhe permite direcionar recursos para o pagamento da dívida pública,
cujos principais credores são os grandes rentistas e instituições financeiras. Os
banqueiros apoiaram ativamente o fim da CPMF e consideram a eliminação desse
tributo uma vitória regulatória.3 Enfim, desde 1994, o Congresso aprovou dezenas de
leis sobre a ordem financeira, 40 delas da maior importância para o SFN. Dentre as mais
3
Consultar Bornhausen (2010), que aborda a campanha empresarial contra a CPMF.
7
importantes, o Executivo foi autor de 75% delas e o Legislativo, de 25%. Executivo e
Congresso foram autores das leis que institucionalizaram a financeirização.
O Executivo também normatizou bastante. Várias normas foram editadas pela
autoridade monetária insulada (BCB e CMN), outras partiram diretamente da
Presidência da República ou de normativos da Receita Federal. Enfim, no Brasil o
“capitalismo dirigido pelas finanças” colocou o Executivo à frente de decisões que lhe
favoreceram.
Seleciono aqui algumas normas importantes do Executivo, iniciando pelas
pertinentes ao Art. 192 original. O inciso II abordava seguro, resseguro, previdência e
capitalização. A Susep, órgão de fiscalização e controle do mercado de seguro,
previdência privada aberta e capitalização, tem normatizado sobre os mercados de danos
em geral, automóveis e capitalização. O inciso III abordava “as condições para a
participação do capital estrangeiro” nas Instituições financeiras. Em agosto de 1995, a
Fazenda encaminhou à Presidência da República a Exposição de Motivos n.º 311, que
se tornou o documento formal de justificação da abertura do setor bancário ao capital
estrangeiro (Carvalho & Vidotto, 2007). Essa medida não diz respeito ao lobby da
Febraban, pelo contrário, mas pode ser explicado por lobbies de outras forças internas e
externos e por abordagens estruturais.
O inciso IV da versão original do Art. 192 tratava da “organização, o
funcionamento e as atribuições do banco central e demais Instituições financeiras
públicas e privadas”. Em 1996, a Circular 2698 do BCB originou o Copom (Comitê de
Política Monetária) e o Decreto 3088, de 1999, da Presidência da República instituiu o
regime de metas de inflação. Por fim, o inciso VI previa que a LC do SFN disporia
sobre “a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular”.
Em agosto de 1995, no contexto das crises dos bancos Econômico e Nacional, a
Resolução 2127 do CMN autorizou os banqueiros a criarem o FGC e a Resolução 2211,
de novembro daquele ano, aprovou o estatuto e o regulamento desse fundo. A Febraban
pleiteou ao BCB a normatização que viabilizou o FGC (ANGELO, op. cit. pp. 121123). O Congresso não participou dessas mudanças institucionais.
Além das normas pertinentes ao conteúdo original do Art. 192, o CMN
normatizou outras matérias relevantes vinculadas à nova ordem financeira. Destaco as
seguintes resoluções do CMN que, segundo a Febraban e outros grupos de interesse
financeiro, como a Comissão Nacional de Bolsas, propiciaram um ambiente de negócios
8
mais seguro: a 2390, de maio/1997, que criou a Central de Risco de Crédito (embrião do
atual Sistema de informações de Crédito do BCB); as resoluções 2689 e 2770,
respectivamente de janeiro e agosto de 2000, que consolidam a abertura financeira
(Penido de Freitas & Prates, 2001); e a resolução 3110, entre outras que autorizam os
correspondentes não-bancários, que precariza o trabalho bancário. A Instrução
Normativa n.º 568, de 2005, da RFB, que reduz o prazo de emissão de CNPJ para
investidores estrangeiros, é outra conquista regulatória das instituições financeiras.
Em trabalho anterior (Ianoni, 2008), visando evidenciar empiricamente a
hipótese da captura do BCB, formulada por Bresser-Pereira (2007), investiguei três
agências de relações com investidores (RI), sendo uma delas também de marketing
financeiro. As duas primeiras são estatais e a terceira é conduzida conjuntamente por
instituições financeiras privadas e agências do Estado. São elas: a) Gerência-Executiva
de Relacionamento com Investidores do Banco Central do Brasil - Gerin (BCB); b)
Gerência de Relacionamento Institucional da Secretaria do Tesouro Nacional - Gerin
(TN); c) Brazil Excellence in Securities Transactions (Best), composto, na sua face
empresarial, por ANBID (Associação Nacional dos Bancos de Investimento), BM&F
(Bolsa de Mercadorias e Futuros), BOVESPA (Bolsa de Valores de São Paulo) e CBLC
(Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia); pelo setor público, nele participam o
BCB, o TN e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Agências de RI foram sendo criadas, nos países emergentes, desde as crises
financeiras e cambiais de meados dos anos 90, particularmente a partir da crise do
México, no final de 1994. A comunidade financeira internacional avaliou que a
extensão e o agravamento da crise teve relação com a má qualidade das informações
disponibilizadas para os investidores, tanto por fontes públicas e multilaterais (como o
governo mexicano e o FMI), quanto pelo mercado. Entre as informações deficitárias,
estariam as referentes às reservas internacionais (Fischer, 2004, pp. 127 e 145). Então,
em 1995, o governo mexicano criou, na Secretaría de Hacienda y Crédito Público, a
Oficina de Relación com Inversionistas.
Essas agências vinculam instituições e organizações internacionais da
comunidade financeira a instituições e organizações domésticas, públicas e privadas,
das áreas monetária e financeira. No Brasil, criaram-se agências e staff burocrático
específicos para RI, que estruturam uma comunicação de mão dupla entre BCB e
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investidores em portfólio e entre emissores (TN) e credores de ativos financeiros da
dívida pública.
As agências de RI no BCB e no TN têm sido avaliadas como as mais eficientes
do mundo pelo Institute of International Finance, maior organização global do capital
financeiro. Elas têm contribuído efetivamente para o confidence building e a
credibilidade externa do Brasil. Suas atividades abrangem o processo de implementação
e monitoramento do inflation targeting, mas vão além. São uma via de comunicação de
mão dupla. Embora as políticas monetária e cambial interessem a todos os agentes
econômicos, o BCB, até o início de 2009, tinha o mercado financeiro como principal
referência para a sua implementação. Além das RI servirem à técnica do sistema de
metas de inflação, que tem nas taxas de juros o principal instrumento de política, elas
também servem para disponibilizar dados tempestivos e de qualidade padronizados
internacionalmente, diversos tipos de contatos com investidores – desde apresentações
sobre conjuntura e regulação econômica até esclarecimento de dúvidas por e-mail,
teleconferências, relações públicas do TN nos mercados externos, disseminação de
informações importantes para as decisões de negócios e de políticas públicas.
As agências governamentais de RI no Brasil são um recurso de poder habilmente
conquistado e utilizado pelos grupos de interesse financeiro para interferir nas políticas
públicas e na regulação econômica. Elas desenvolvem importante parte de suas
atividades com o Best Brazil, iniciativa de RI e de marketing financeiro encaminhada
em parceria entre reguladores estatais (BCB, TN, CVM) e instituições privadas. Tal
empreendimento tem tido sucesso em suas iniciativas de negócios, conforme
reconhecem as próprias partes envolvidas, por conquistar mudanças regulatórias próFinanças, agregar credibilidade aos fundamentos da política econômica brasileira e
atrair novos investidores financeiros, conforme revelam vários de seus indicadores.
O conjunto dos dados empíricos da trajetória da institucionalização financeira no
Brasil, acima expostos, induzem à discordância em relação a autores que trabalham na
chave teórica do neoinstitucionalismo histórico, como Sola et alli (2002) e Kasahara
(2009). Eles avaliam que, desde o Plano Real (1994), o BCB reduziu a influência das
instituições financeiras sobre suas políticas, em comparação com o que teria ocorrido de
Costa e Silva até 1993. Kasahara (2009) considera que o Estado brasileiro, através de
agências econômicas do Executivo e órgãos reguladores (BCB e CVM – Comissão de
Valores Mobiliários), foi um ator capaz de “impor uma agenda própria de expansão da
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sua capacidade de intervenção e regulação sobre os mercados financeiros”. Ele
considera também que o Estado, para implementar e manter com sucesso a estabilização
monetária, precisou fortalecer instituições do SFN, em especial os bancos, mas isso
deve ser visto “muito mais como uma convergência ocasional do que uma evidência do
sucesso do lobby sistemático de bancos ou de captura” (op. cit., p. 73).
Sola, Garman e Marques (2002: 171) avaliam que, desde o governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC), a autoridade monetária distanciou-se do setor financeiro
privado, o que teria propiciado a efetiva autonomia operacional do BCB e uma maior
transparência e accountability nessa esfera institucional e de políticas públicas.
Tais análises da trajetória histórica da autoridade monetária brasileira, que
pensam que, desde o Plano Real, ela, simultaneamente, centraliza-se e distancia-se do
setor privado, baseiam-se em concepções teóricas estadocêntricas e formalistas da
autonomia do Estado. Na análise do processo de implementação da estabilização
monetária neoliberal, essas concepções privilegiam a identificação das preferências e
objetivos dos atores estatais e a capacidade da alta burocracia pública impor seus
interesses ao setor privado. Como resultado, minimiza-se a influência do empresariado
financeiro, de dentro e fora do país, assim como de agências como o FMI (Fundo
Monetário Internacional), sobre a autoridade monetária ou, dito de modo mais amplo,
sobre o Estado. As mudanças institucionais, que, de fato, ocorrem, passam a balizar
uma análise que desloca o foco dos mercados financeirizados, de seus agentes
econômicos e grupos de interesse, para uma ação estatal que supostamente orquestraria
políticas de interesse geral e, para tanto, enquadraria as instituições financeiras privadas.
O problema é que essa análise é feita para compreender mudanças econômicas e
políticas operadas exatamente no contexto em que a financeirização está em seu apogeu
estrutural, no mundo e no Brasil, quando também a captura do Estado pelos interesses
financeiros evidencia-se em grau máximo (Bresser-Pereira, 2007; Paulani, 2008, Ianoni,
2008 e 2010). Para citar um exemplo representativo dessa captura, as instituições
financeiras, ao perderem os ganhos com o float inflacionário, são beneficiadas, em
troca, com taxas de juros estratosféricas, as mais altas taxas de juros do mundo.
Creio que os três conjuntos de perspectivas básicas das ciências sociais são
relevantes e complementares para entender, de modo mais completo, as relações entre
Estado e Finanças: o estrutural, o institucional e o que enfatiza o papel da ação.
11
Na verdade, o distanciamento do Estado em relação aos interesses da
financeirização foi gradualmente operado nos governos Lula, e, agora, no governo
Dilma, mostra-se mais claramente. Ao abordar a política macroeconômica brasileira,
Barbosa (2011) distingue o arranjo institucional do direcionamento de decisões. Ele
esclarece que, desde Lula, a despeito do arranjo institucional ter sido mantido – metas
de inflação, arrecadação de superávit primário e câmbio flutuante –, tem havido
mudança no direcionamento de decisões da política macroeconômica. Enquanto a
política econômica neoliberal operava para favorecer a financeirização da economia,
perspectiva que bloqueava o crescimento (Paulani, 2008), as mudanças em curso,
sobretudo desde 2006, quando Guido Mantega assumiu a Fazenda no lugar de Antonio
Palocci, vão no sentido de alavancar um novo modelo de desenvolvimento (BresserPereira, 2012).
Assim que assumiu a Presidência, em 2003, Lula instituiu o Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), reunindo representantes empresariais,
de trabalhadores, de movimentos sociais e outras associações da sociedade civil. Tal
iniciativa visava, conforme estabelecido em seu regimento interno, a concertação entre
os diversos setores da sociedade nele representados, para propor políticas e diretrizes
específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social. Recém-criado, o CDES
aprovou a sugestão da ampliação do CMN, sinalizando um anseio representativo de
mudança na política econômica. Os governos Lula (2003-2010) implementaram
reformas gradualistas, em relação aos anos FHC (1995-2002), como a redução da taxa
média da Selic, o aumento da média de crescimento do PIB, a redução do
endividamento público, a liquidação da dívida com o FMI (passando, inclusive, a
emprestar para essa organização multilateral), o alcance do status de grau de
investimento, pelas agências internacionais de classificação de risco, o aumento do
crédito bancário, a orientação anti-cíclica agressiva dos bancos públicos para o
enfrentamento da crise desde 2008 etc.4 Hoje (junho de 2012), observa-se que as
mudanças iniciadas no governo Lula foram aprofundadas no governo Dilma, em
especial a maior coordenação da política macroeconômica, deixando para trás a
primazia da política monetária, e a política agressiva de redução dos juros e dos spreads.
4
Em junho de 2000, o governo FHC divulgou estudos visando a privatização dos bancos públicos
federais.
12
Está havendo mudança na correlação entre as forças políticas vinculadas, por um
lado, à financeirização e, por outro, ao projeto de desenvolvimento com inclusão social.
Até fins da primeira década, a relação de forças ainda era bem mais favorável às
Finanças. A alteração do padrão de interação entre Estado e sociedade é um elemento
político fundamental para a compreensão dessa mudança. O governo associou-se,
democraticamente, aos setores produtivos (do capital e do trabalho) para implementar
políticas de desenvolvimento e políticas de inclusão social, de combate à fome e à
pobreza. A próxima seção busca entender teoricamente as mudanças recentes no Estado
brasileiro.
3.
A autonomia do Estado na Teoria Política e no Brasil Atual
O Estado é um tema clássico nas ciências sociais e é, ainda, um tema atual. O
debate sobre o Estado está hoje no centro das análises da crise internacional em curso
desde 2008, que teve em seu epicentro o sistema financeiro global. A
desregulamentação financeira implementada pelos Estados capitalistas centrais e
irradiada para outras partes do mundo tem sido apontada como uma das principais
causas da crise financeira global (Guttman, 2008; European Comission, 2009).
Enquanto na crise da Zona do Euro a falta de direção política - devido às limitações
político-institucionais da União Europeia – tem sido apontada como um forte fator
explicativo para sua perseverança (Leonard, 2011), no Brasil, a direção política do
Estado, comparativamente, parece estar sendo bem mais clara.
No II Pós-Guerra, intelectuais marxistas retomaram o debate sobre o Estado,
para compreender as mudanças econômicas e políticas vinculadas ao capitalismo tardio,
que traziam questões novas sobre as relações do Estado com a economia e os interesses
organizados (Carnoy, 1988; Przeworsky, 1995). O que se convencionou chamar de
neomarxismo construiu-se nesse contexto, como as obras Poulantzas, Miliband e Offe.
Por volta do final dos anos 60, esses três autores, entre outros, passam a teorizar sobre a
autonomia relativa do Estado, conceito que se torna uma das principais contribuições
da produção teórica neomarxista a respeito do Estado. Por pensar no campo teórico
marxista, Poulantzas faz uma construção sociocêntrica da autonomia relativa do Estado.
Concebe-a como uma característica especial do Estado na sociedade capitalista. Como,
no plano econômico, a classe dominante é fragmentada, a burocracia estatal cumpre o
13
papel de unificar, no plano político, seus interesses comuns enquanto classe dominante.
Nessa medida, trata-se de uma autonomia relativa do Estado. O conjunto da
superestrutura jurídico-política reproduz as relações de produção capitalistas à medida
que desempenha a função de coesão social da formação social específica de cada
sociedade capitalista.
Nos anos 80, no clima dessa onda teórica de retomada do debate sobre o Estado,
Evans, Rueschemeyer e Skocpol (1985) publicaram um livro denominado Bringing the
State Back In, que se tornou um marco na abordagem estadocêntrica da autonomia do
Estado. Nesse livro, Skocpol (1985) critica as explicações sociocêntricas da política e
das atividades governamentais, segunda ela usualmente presentes nas perspectivas
pluralista, estrutural-funcionalista e na teoria da modernização, todas em voga na
ciência política e sociologia dos EUA nos anos 50 e 60. Mas ela critica também o
neomarxismo:
“Neo-Marxists have, above all, debated alternative understandings of the socioeconomic functions
performed by the capitalist state. Some see it as an instrument of class rule, others as an objective
guarantor of production relations or economic accumulation, and still others as an arena for political class
struggles. […] virtually all neo-Marxist writers on the state have retained deeply embedded societycentered assumptions, not allowing themselves to doubt that, at base, states are inherently shaped by
classes or class struggles and function to preserve and expand modes of production”.
Nessa medida, tal autora considera que os neomarxitas tem má-vontade para atribuir
verdadeira autonomia aos Estados.
Por outro lado, Skocpol considera que, então, cientistas sociais estavam
motivados a oferecer explicações para a mudança social centradas no Estado ocorridas
nos próprios países pioneiros no desenvolvimento capitalista, como Inglaterra e EUA, e
não apenas para compreender as experiências de totalitarismo ou a industrialização
tardia. Para tanto, a investida teórica estadocêntrica resgata os germânicos Max Weber e
Otto Hintze, cuja obra embasaria uma visão do Estado muito mais ampla do que
meramente uma “arena na qual grupos sociais fazem demandas e se envolvem em lutas
ou compromissos políticos” (op. cit., p. 8). Acima, mencionei sua definição do conceito
de autonomia do Estado, na qual ela destaca que o Estado é autônomo por perseguir
metas que não são simplesmente reflexo das demandas ou interesses de grupos sociais,
classes ou da sociedade. Na análise da autonomia de formação de objetivos do Estado,
Skocpol distingue um elemento que ela denomina de capacidades do Estado, que lhe
facultaria perseguir e implementar estratégias e metas de políticas públicas. A autora
14
reconhece que o processo de implementação pode levar a resultados intencionais ou não
intencionais e ambos merecem ser analisados de perto. As capacidades do Estado são,
assim, um elemento importante de análise institucional da concepção estadocêntrica da
autonomia do Estado.
O sociólogo neo-weberiamo Michael Mann (1984), ao abordar a autonomia do
Estado, parte da avaliação de que as teorias do Estado marxista, liberal e funcionalista
são reducionistas. “Elas reduziram o Estado a estruturas pré-existentes da sociedade
civil” e negam a existência de efetivo poder autônomo ao Estado (op. cit., pp. 109-10).
Mesmo nos pensadores neomarxistas que formulam ou absorvem o conceito de
autonomia relativa do Estado, Mann visualiza uma curiosa relutância em se analisar tal
autonomia.
Tal como Skocpol, Mann recorre a fontes alemãs das ciências sociais, embora
retroceda ainda mais longe no tempo, resgatando Gumplowicz (1838-1909), um dos
fundadores da sociologia na Europa, visto por ele como representante da tradição
militarista da teoria do Estado, que via o Estado simultaneamente como força física e
motivo principal (ou máquina motriz). Mann avalia que os bons alemães, entre os quais
Weber e Hintze, receberam influência dessa tradição militarista da teoria do Estado, mas
filtrada dos males de abordagem que a fizeram servir a interesses políticos autoritários e
racistas.
Embora a abordagem militarista pioneira da teoria do Estado seja também
reducionista, pelo fato da força física do Estado ser a incorporação da força física da
sociedade, a junção teórica desses dois grandes reducionismos, por assim dizer, social e
o militarista, este último pela via devidamente filtrada dos bons alemães, estava, então,
segundo Mann, dando novos e excelentes frutos teóricos, a começar pelo livro de
Skocpol (1979), States and Social Revolutions: A Comparative Analysis of France,
Russia, and China. Para Skocpol, a base do poder de Estado está em seu suporte de
recursos administrativos e em suas organizações coercitivas. “This power can then be
used with a degree of autonomy against either the dominant class, or against domestic
war or peace factions and foreign states” (Mann, 1984: 111). A formulação de que o
Estado possui e pode usar um efetivo nível de autonomia, seja contra a classe dominante
ou contra a guerra ou a paz de facções domésticas e Estados estrangeiros, caracteriza o
significado institucionalista e estadocêntrico forte de autonomia do Estado. Nas palavras
de Mann (op. cit., 134), the state is essentially an arena, a place – just as reductionist
15
theories have argued – and yet this is precisely the origin and mechanism of its
autonomous powers.
Mann, como outros teóricos da abordagem centrada no Estado, destacam o papel
da força na constituição da sociedade. Em última instância, a própria sociedade é
considerada uma criação do Estado. Daí por que, em algumas teorias estadocêntricas
não há, a rigor, como se falar em autonomia do Estado. Por isso, nas teorias de elevado
teor estadocêntrico, fala-se em dominação do Estado sobre a sociedade, e não em
autonomia do Estado. No entanto, uma vez que tais teorias não ignoram as tendências
de emancipação da sociedade em relação ao Estado, que levaram à formação da
sociedade civil moderna, ao mercado liberal e à democracia, elas resolvem esse
problema avaliando que o curso do desenvolvimento da história vai do Estado à
sociedade, e não no sentido inverso, como concebem as teorias sociocêntricas das
relações entre Estado e sociedade (Przeworki, op. cit., pp. 65-66). Cabe perguntar como
é possível a concepção estatista ser, efetivamente, um paradigma das relações entre
Estado e sociedade, se a própria história vem configurando, há mais de meio milênio,
uma ordem social na qual a sociedade adentra o Estado? “Quando o poder do Estado se
fundamenta na força, o próprio Estado é uma instituição coesiva, capaz de desempenhar
um papel não apenas contra inimigos externos, mas vis-a-vis a sociedade. Mas, se a
coerção e a eficácia do Estado são, pelo menos em parte, contingentes de condições
localizadas dentro da sociedade, o enfoque centrado no Estado não pode se sustentar
como um paradigma distinto” (op. cit., p. 68).
O estatista Mann se propõe a depurar a confusão vinculada ao conceito de
Estado, cuja definição, em geral, conteria dois níveis diferentes de análise, o
institucional e o funcional. A análise institucional evoca o que o Estado parece ser
institucionalmente e a análise funcional foca nas funções do Estado. Esse autor formula,
então, uma definição mista do conceito de Estado, mas de conteúdo fortemente
institucional, pelo que considera ser ela de matriz weberiana. Essa definição possui
quatro elementos. O Estado é “1) a differentiated set of institutions and personnel,
embodying 2) centrality, in the sense that political relations radiate outwards form a
centre to cover a 3) territorially demarcated area, over which it exercises 4) a
monopoly of authoritative binding rule-making, backed up by a monopoly of the means
of physical violence” (op. cit. p. 112). O elemento funcional é a authoritative binding
16
rule-making. Os outros três elementos são institucionais, sendo que Mann interessa-se
principalmente pela centralidade do Estado e a elite estatal.
Para Mann, esses quatro elementos permitem delimitar que são dois os poderes
do Estado: a) poder despótico e b) poder infraestrutural. O poder despótico é o poder
coercitivo do Estado. Ele é mais acentuado nas sociedades pré-industriais. O poder
infraestrutural é definido como “the capacity of the state actually to penetrate civil
society, and to implement logistically political decisions throughout the realm”. Esse
poder passa a se fazer presente, sobretudo, com a industrialização. Mann avalia que
enquanto o poder despótico declina, o poder infraestrutural aumenta. Nas democracias,
o poder despótico do Estado é fraco, mas é forte seu poder insfraestrutural. Segundo
Mann, a principal dimensão do poder infraestrutural do Estado é a centralização
territorial, atributo que lhe é específico e próprio, não usufruído por nenhum outro
grupo social. Thus states cannot be the simple instrument of classes, for they have a
different territorial scope (op. cit., 123). Ele avança ao caracterizar o poder autônomo
do Estado:
autonomous state power is the product of the usefulness of enhanced territorial-centralization to social
life in general […] How territorialized and centralized are societies? This is the most significant
theoretical issue on which we find states exercising a massive force over social life, not the more
traditional terrain of dispute, the despotic power of state elites over classes or other elites. States are
central to our understanding of what society is. Where states are strong, societies are relatively
territorialized and centralized. That is the most general statement we can make about the autonomous
power of the state.
Na obra Bringing the State Back In, já mencionada, Rueschemeyer e Evans
(1985) apresentam uma rica abordagem da autonomia do Estado, que não a concebe em
uma chave teórica estadocêntrica, e sim com base na interação entre Estado e sociedade.
Eles trabalham com uma definição weberiana do Estado, mas o Estado não é simples
burocracia, pois não pode deixar de ser um instrumento de dominação. O caráter do
Estado é o de um pacto de dominação. Mas, ao mesmo tempo em que o Estado expressa
um pacto de dominação, ele é um ator corporativo ativo desse pacto, atuando e
participando, também, com interesses próprios. A preocupação deles é com a
efetividade da ação estatal, por isso eles focam no Estado como ator corporativo.
Dividem a análise em duas partes: a) nas variações da estrutura do aparato do Estado; e
b) nas variações das relações entre o Estado e as classes dominantes. Procuram mostrar
os dilemas e as contradições que envolvem a intervenção do Estado no processo de
acumulação capitalista, e os impactos dessa intervenção em sua autonomia e em suas
capacidades.
17
Com exceção de Rueschemeyer e Evans, que focam na autonomia do Estado,
mas com uma perspectiva teórica de menor teor institucionalista, essa breve exposição
da origem e do desenvolvimento teórico da concepção estadocêntrica da autonomia do
Estado, mostra que tal abordagem, conforme seus formuladores reconhecem, possui
forte conteúdo institucionalista e destaca a capacidade do Estado formular e
implementar suas próprias metas, distintas dos interesses dos atores sociais situados
externamente à burocracia pública. Dois de seus conceitos-chave são capacidade do
Estado (Skocpol) e poder infraestrutural (Mann). Essa abordagem estadocêntrica, por
opor-se às concepções liberais do Estado mínimo, traz contribuições importantes para a
análise da intervenção do Estado.
A intenção aqui não é negar a autonomia do Estado no capitalismo (pelo
contrário, é confirmá-la), mas é apreender a sua gênese, não tomando-a como uma
prerrogativa que todos os Estados possuem sempre e em alta intensidade. Importa
delimitar as condições para a autonomia do Estado e as intensidades forte ou fraca de
sua ocorrência. Como diz Przeworski (1995, p. 52), “‘Autonomia’ é um instrumento
eficiente de análise quando indica uma entre diferentes situações históricas possíveis”.
Na verdade, seria injusto dizer que a apreensão institucionalista da autonomia do Estado
a concebe como algo inerente ao Estado e de intensidade alta e fixa. Seus defensores
admitem que a autonomia do Estado não é dada e que, quando ocorre, tem níveis que
variam em função da realidade estatal e do momento da trajetória histórico-institucional
(path dependence) em que ela se manifesta (Skocpol, op,. cit., p. 14). Mann, acima
visualiza diferentes níveis de poder infraestrutural do Estado nas democracias.
O problema teórico central está na gênese da autonomia do Estado. Para a
concepção estadocêntrica, a autonomia, embora não exista em quaisquer condições e
não se expresse em um nível idêntico no tempo e no espaço, tem origem endógena ao
Estado, ela é vista com um olhar da sociologia das organizações. Mas esse olhar não dá
uma resposta satisfatória para as causas do desenvolvimento tanto da autonomia quanto
das capacidades do Estado e de seu poder territorial. Em épocas de crise econômica, por
exemplo, Estados costumam promover mudanças em suas instituições. Na crise
internacional atual, isso tem ocorrido nos EUA, Europa, Brasil etc. Por outro lado, não
se quer negar, de modo absoluto, endogenia ao Estado e à sua autonomia, mas de não
inseri-las em uma visão teórica muito estanque das relações entre Estado e sociedade.
18
Carnoy faz uma distinção importante para a análise da autonomia do Estado. Ele
diferencia dois níveis de autonomia do Estado na obra de Marx. São eles 1) a autonomia
da burocracia do Estado (sentido fraco de autonomia do Estado) e 2) a autonomia do
Estado no sentido sociocêntrico forte do termo. Marx (1978), em O 18 Brumário de
Luis Bonaparte, faz tal distinção claramente ao abordar o processo da Revolução
Francesa. Vale a pena citá-lo:
A primeira Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes - locais,
territoriais, urbanos e provinciais - a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente
que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito,
os atributos e os agentes do poder governamental. [...] Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina,
ao invés de destroçá-la. [...] Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão,
a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia (grifos meus). Sob a
Restauração, sob Luís Filipe, sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante (grifos
meus), por muito que lutasse por estabelecer seu próprio domínio (op. cit., pp. 395-396).
No trecho acima, está a ideia de autonomia da burocracia pública (primeiro
conteúdo da distinção observada por Carnoy), cuja dinâmica opera no sentido de tornar
o Estado instrumento da classe dominante.
Ao avançar na análise do 18 Brumário, Marx refere-se à autonomia do Estado,
configurada na França do II Império (1852-1870), que resulta do impacto, no plano
político, de uma situação de equilíbrio de classes, quando “todas as classes, igualmente
impotentes e igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil” (idem, p.
395). “Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente
autônomo” (idem, p. 396, grifos meus). Essa segunda autonomia do Estado tornou-se
um elemento central do bonapartismo. Havendo ou não bonapartismo, a autonomia do
Estado na sociedade capitalista, na apreensão marxista, será sempre relativa, embora
seja relevante teoricamente distinguir a autonomia da burocracia da autonomia do
Estado vinculada ao equilíbrio de classes. O Estado autônomo, resultante do equilíbrio
de classes, é um Estado da ordem burguesa:
Só o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro pode salvar a sociedade burguesa! Só o
roubo pode salvar a propriedade; o perjúrio, a religião; a bastardia, a família; a
desordem, a ordem! Como autoridade executiva que se tornou um poder independente,
Bonaparte considera sua missão salvaguardar "a ordem burguesa" (idem, p. 402).
A rígida oposição Estado autônomo versus Estado instrumental é inadequada.
Na introdução, foi visto que Evans considera o Zaire um Estado com pouca
burocratização weberiana, muito instrumentalizado por pequenas elites e tão distante da
sociedade civil que chega a ser autônomo. O Estado, sobretudo nas sociedades
19
capitalistas com burocracia weberiana, dificilmente será, de modo absoluto, ou
autônomo ou instrumental. Admitir tais extremos seria fazer reducionismo. A regra é
que sempre há, de modo relativo e em níveis variáveis, autonomia e instrumentalismo
no poder do Estado.
Miliband (1983) ilumina a gênese da autonomia do Estado. Ele argumenta que,
quando a hegemonia burguesa é forte e pouco ameaçada pelas classes dominadas, o
Estado também será sujeito a essa hegemonia burguesa e terá pouca autonomia. Se
usarmos a linguagem de Miliband ([1969] 1972, p. 36), essa situação configurará a
condição para a vigência do Estado como instrumento de dominação da sociedade,
também presente no Manifesto Comunista de Marx e Engels, de 1848. Por outro lado,
quando a hegemonia burguesa estiver desafiada de modo persistente e forte,
provavelmente a autonomia do Estado será substancial.
A construção da hipótese desse trabalho passa, primeiramente, pela suposição de
que, no capitalismo, a autonomia do Estado é, sobretudo, uma função da intensidade da
hegemonia burguesa. Trata-se de um componente analítico de conteúdo sociocêntrico,
que, no entanto, não nega que o Estado pode ser um elemento importante para a
qualidade dessa hegemonia. E essa hegemonia, grosso modo, pode ser fraca ou forte. Se
a hegemonia burguesa for fraca, haverá autonomia do Estado, mas uma autonomia
relativa do Estado, pois tanto ela depende de condições especiais de relações de força
quanto ela não significa autonomia em relação ao capital, mas apenas em relação a
interesses de grupos capitalistas particulares. Nesses termos, a autonomia relativa do
Estado é uma das possibilidades no âmbito da dependência estrutural do Estado em
relação ao capital (Przeworski e Wallerstein, 1988). A outra grande possibilidade é o
Estado instrumental (não de modo absoluto, como dito acima).
Mas há também outra variável importante para a análise da autonomia do
Estado, de corte institucional, embora sua gênese seja dupla, estadocêntrica e
sociocêntrica. Trata-se, conforme abordado acima, da capacidade do Estado ou do poder
infraestrutural do Estado (Mann). Essa variável institucional é importante para
compreender a intensidade da autonomia da burocracia pública, que é um tipo político
específico de autonomia do Estado.
Portanto, construindo a hipótese de modo mais completo, essa pesquisa evoca a
consideração de que, no capitalismo, a autonomia do Estado e o Estado instrumento são
20
funções da intensidade de duas variáveis: hegemonia burguesa e desenvolvimento da
máquina burocrático-pública.5
A intensidade da autonomia do Estado, no sentido sociocêntrico forte do termo,
depende da intensidade da hegemonia das burguesias e da intensidade do
desenvolvimento da efetividade da máquina burocrática pública. E a intensidade da
autonomia do Estado, no sentido institucional de autonomia da burocracia pública,
depende do nível de desenvolvimento das capacidades da máquina burocrática e da
intensidade da hegemonia das burguesias. O Quadro 1 busca organizar, de forma
esquemática, a hipótese, construída com base em Marx, Miliband, Poulantzas, Skocpol
e Mann. A apreensão concreta desses dois níveis é o desafio teórico e empírico a se
enfrentar na pesquisa do Estado.
Assim, um desafio fundamental é situar o Brasil atual no quadro abaixo. Embora
o espaço não permita desenvolver a contento o argumento, a ideia básica é que a
hegemonia burguesa no Brasil atual tem sua estrutura construída desde 1994, no
processo do Plano Real (Ianoni, 2009). É através da estabilização monetária
liberalizante, encadeada às reformas estruturais neoliberais, que se constitui um pacto
de dominação com hegemonia financeira. Os dois governos Lula e o governo Dilma,
por um lado, herdaram esse pacto de dominação neoliberal, por outro lado, representam
segmentos sociais excluídos, trabalhadores organizados ligados aos setores produtivos
e/ou interessados na geração de renda e empregos, além de representarem anseios
desenvolvimentistas do empresariado dos setores produtivos. Enfim, pelo fato dos
governos federais encabeçados pelo PT terem estabelecido outros vínculos com os
interesses organizados, com base em outras políticas públicas, vem se construindo um
novo pacto de dominação no Brasil, de corte neodesenvolvimentista e social. Nesse
novo pacto, o espaço para a autonomia do Estado tem aumentado em relação ao que se
observou nos anos FHC, quando o contexto internacional não se caracterizava por crises
financeiras nos países centrais (e sim nos periféricos) e o pacto de dominação aqui
existente não tinha o caráter popular e neodesenvolvimentista que passa a ter, de modo
crescente, desde Lula até Dilma. Isso tem implicado, entre outros, na reconstrução e na
construção das capacidades do Estado. Nesse sentido, avalio que, levando em conta o
5
Talvez seja importante incorporar uma terceira variável na construção da hipótese, o sistema de
intermediação de interesses. No entanto, esse trabalho não fez isso.
21
Quadro 1, o país migra da situação (4), de Estado instrumento, com forte hegemonia
burguesa neoliberal e forte poder infraestrutural, para a situação (3), na qual a
hegemonia burguesa é fraca não pela burguesia ser fraca (pois as burguesias brasileiras
são fortes), mas pela hegemonia liberal-burguesa ser desafiada por uma contrahegemonia popular-desenvolvimentista (anti-neoliberal), contexto que reforça a
autonomia do Estado e induz ao desenvolvimento das capacidades do Poder Público no
sentido de executar políticas para um espectro mais amplo de interesses sociais.
CAPACIDADES/PODER
INFRAESTRUTURAL DO
ESTADO
Quadro 1 – Autonomia do Estado e Estado instrumento
HEGEMONIA BURGUESA
FRACA
FRACA
(1) AUTONOMIA DO
ESTADO (-)
FORTE
(3) AUTONOMIA DO
ESTADO (+)
FORTE
(2) ESTADO
INSTRUMENTO (+)
AUTONOMIA DA
BUROCRACIA (-)
(4) ESTADO
INSTRUMENTO (-)
AUTONOMIA DA
BUROCRACIA (+)
Elaboração do autor
Conclusão
Os dados empíricos mostraram o ativo papel de instituições fundamentais do
Estado brasileiro, no âmbito do Executivo e do Legislativo, mas também no Judiciário,
na construção da estrutura institucional da financeirização, assim como o papel ativo da
Febraban e demais organizações das Finanças na conformação da estrutura institucional
da financeirização. Esse é o principal resultado do primeiro objetivo desse trabalho,
conforme apresentado na Introdução. A regulamentação das normas que propiciaram a
financeirização iniciou-se com Collor, mas aprofundou-se mesmo desde o Plano Real,
em 1994, e seguiu durante os dois governos Lula, embora com atenuantes que,
sobretudo desde 2008, desdobraram-se em mudanças contra-hegemônicas mais
sensíveis. Tais mudanças, agora, com Dilma, se apresentam mais claras e efetivas.
Nos anos FHC, o capitalismo internacional vivia uma situação pré-crise
financeira do mundo desenvolvido e o pacto de dominação constituído desde o Plano
Real tinha uma conformação sociopolítica na qual predominava a hegemonia neoliberal
e pró-financeirização (Ianoni, 2009). No plano político-institucional, há inúmeras
evidências empíricas dos vínculos da coalização PSDB-PFL com as instituições
financeiras (e.g. Nassif, 2007). Os oito anos de Lula e os 17 meses de Dilma tem
ensejado mudanças no pacto de dominação neoliberal. As políticas públicas não são
22
mais neoliberais, a política macroeconômica já não é mais neoliberal etc. A forte
hegemonia burguesa é contrabalançada pela emergência, no processo decisório público,
de grupos sociais organizados até então pouco incluídos ou excluídos do Estado e
também pelas novas preocupações e ações do Estado em relação aos grupos sociais
desorganizados, sobretudo os pobres. O novo contexto propicia mais espaço para a
autonomia do Estado. A inserção sociopolítica e democrática mais ampla e profunda do
aparelho do Estado é, ela própria, uma força motriz da construção da autonomia do
Estado no Brasil. Essa inserção tem conferido ao Estado mais legitimidade e efetividade
nas ações governamentais motivadas para o desenvolvimento. Se corporações como a
Febraban buscaram e ainda buscam influenciar as decisões públicas, outras corporações
e interesses organizados relacionam-se, agora, mais democraticamente com o Estado,
como as centrais sindicais, os movimentos sociais e organizações do setor produtivo,
conformando um novo pacto de dominação. Como argumentam os estudos do
neocorporativismo, esta modalidade de intermediação de interesses é um elemento que
acompanha algumas análises em que se identifica a autonomia do Estado.
O modo e o conteúdo com que Sola et alli e Kasahara visualizavam a autonomia
do Estado eram equivocados. Havia, sim, autonomia do Estado no sentido de autonomia
da burocracia pública, sobretudo nas áreas econômicas de sua atuação, mas não no
sentido forte de autonomia do Estado, como presente na análise de Marx sobre o
bonapartismo. A autonomia do Estado no sentido forte existe mais agora, e pouco
outrora, nos anos 90. Mas não se trata de autonomia de um Estado autoritário, e sim de
autonomia resultante de uma relação de forças mais equilibrada entre as classes sociais,
construída em contexto tocquevilliano de revolução democrática, impulsionada na Era
Lula e ainda em andamento com Dilma. Por outro lado, a autonomia da burocracia
pública e as capacidades do Estado executar políticas públicas também se
desenvolveram. Nesse contexto, o Estado e a sociedade continuam capitalistas, mas o
Estado é muito menos um instrumento de poderosos interesses capitalistas, o Estado é
mais ampliado, no sentido gramsciano do termo, tem mais legitimidade, atende a um
leque de demandas bem mais amplo, de um conjunto de grupos sociais e frações de
classe da sociedade capitalista. E o faz com mais capacidade e recursos. Essa situação
permite que a financeirização seja contra-arrestada pelo Estado ora em construção,
enquanto o Estado, nos anos FHC, agiu, com efetividade, para construir a hegemomia
das finanças, sob forte demanda das instituições financeiras e das condições estruturais
23
da economia mundial, e muito mais distante das demandas desenvolvimentistas e de
inclusão social. Naquele contexto, a autonomia da burocracia pública era, como dizia
Marx, uma das formas das burguesias financeiras e dos rentistas instrumentalizarem as
políticas públicas. Penso que respondi ao objetivo teórico formulado na Introdução.
Concluo afirmando que o esforço de compreensão teórica do Estado capitalista e
de sua autonomia requer mobilizar três perspectivas, a estruturalista, a institucionalista e
a da ação. E requer também o indispensável diálogo entre pesquisa teórica e empírica.
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