Veja a versão em PDF

Transcrição

Veja a versão em PDF
FINANCIAMENTO
E MEGAPROJETOS
Uma interpretação da dinâmica
regional sul-americana
Alessandro Biazzi Couto
Eduardo Gudynas
Jairo Estrada Álvarez
Margarita Flórez
Omar Arach
Ricardo Verdum (organizador)
Victor Maeso
Vince McElhinny
Editor Responsável: Ricardo Verdum
Revisão: Eveline de Assis
Projeto Gráfico: Clarissa Teixeira
Tiragem: 1.000 exemplares
Impressão: Gráfica Star Print
Conselho Diretor:
Armando Raggio
David Fleischer
Fernando Oliveira Paulino
Guacira César de Oliveira
Jurema Werneck
Luiz Gonzaga de Araújo
Neide Viana Castanha
Oswaldo Braga Jr.
Silvia Ramos
Colegiado de Gestão
Atila Roque
Iara Pietricovsky
José Antônio Moroni
Assessoria de Políticas
Alessandra Cardoso
Alexandre Ciconello
Ana Paula Felipe
Edélcio Vigna
Eliana Graça
Evilásio Salvador
Lucídio Bicalho
Marcia Acioli
Ricardo Verdum
Assessoria administrativo-financeira
Adalberto Vieira dos Santos
Eugênia Christina A. Santana
Isabela Mara dos S. da Silva
Ivone Maria da Silva Melo
Josemar Vieira dos Santos
Maria José de Morais
Maria Lúcia Jaime
Míria Thereza B. Consiglio
Ricardo Santana da Silva
Rosa Diná Gomes Ferreira
Instituições que apóiam o Inesc
Action Aid, Christian Aid,
Evangelischer Entwicklungsdienst (EED),
Fastenopfer, Fundação Avina,
Fundação Ford, Fundação Mott,
Instituto Heinrich Boll, Kinder Not Hilfe (KNH),
Norwegian Church Aid,
Oxfam Internacional, Oxfam Novib
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana.
Realização:
Apoio: Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc
Fundação Heinrich Böll
Copyright ©, Inesc 2008
Verdum, Ricardo (organizador)
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da
dinâmica regional sul-americana / Eduardo Gudynas ... [et al] Brasília: Inesc, 2008
160p.: il.
1. Financiamento, 2. Megaprojetos, 3. América do Sul, 4.
IIRSA, 5. PAC
CDU 339
Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
Sumário
Introdução______________________________________________ 7
Ricardo Verdum
As Instituições financeiras e a integração
na América do Sul_______________________________________ 21
Eduardo Gudynas
A IIRSA em uma encruzilhada:
indicativos de mudança, implicações para a advocacy_________ 49
Vince McElhinny
A atuação das grandes empreiteiras brasileiras
na integração de infra-estrutura na América do Sul__________ 79
Alessandro Biazzi Couto
O papel dos grandes bancos espanhóis no
financiamento de projetos em litígio na América Latina_______ 89
Víctor Maeso
Articulações ambientalistas em oposição às
grandes obras de infra-estrutura_________________________ 111
Omar Arach
Tendências recentes do investimento do
capital brasileiro na Colômbia___________________________ 133
Jairo Estrada Álvarez e Margarita Flórez
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Apresentação
Esta publicação aborda as transformações recentes da arquitetura
financeira sul-americana e sua relação com os grandes projetos de infraestrutura física em implantação na região.
Por meio dela pretendemos chamar a atenção para a necessidade
de um novo esforço crítico, visando entender o que está acontecendo na
região. Os modelos de análise e interpretação desenvolvidos nos anos 1980
e 1990, enfocados predominantemente nas Instituições Financeiras Internacionais
(IFIs), nos parece estarem necessitando de uma revisão. Os artigos que
compõem esta publicação revelam um cenário em muitos aspectos distinto
daquele período. Novos atores e projetos emergiram e são na atualidade
tão ou mais importantes quanto o desempenhado pelo Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(Bid) no financiamento dos megaprojetos.
A Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) estão hoje envolvidos no
financiamento de obras de infra-estrutura em praticamente todos os países
da região. Entre estas obras estão: hidrelétricas e linhas de transmissão de
energia; a instalação de campos de exploração de petróleo e gás e as vias
de escoamento da produção para os centros de processamento e consumo;
rodovias, portos e aeroportos; extensas áreas de produção de agrocombustíveis
e unidades de processamento etc.
Além disto, em breve deverá estar operando o Banco do Sul, braço
financeiro da União de Nações Sul-americanas (Unasul).
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
5
Financiamento e Megaprojetos
Nossa expectativa é de que esta publicação auxilie as pessoas,
organizações, fóruns e movimentos que conformam o campo sócio-ambiental
brasileiro e latino-americano a reconstruir e redefinir suas estratégias de ação.
Esta publicação esta, portanto, em sintonia com o objetivo do
Inesc de democratizar o debate e o acesso à informação sobre as políticas
de integração e desenvolvimento na Região Sul-americana, em particular da
Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)
e, no caso brasileiro, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
visando à criação dos meios político-institucionais que permitam a proteção
e a promoção dos direitos socioambientais, culturais, econômicos e humanos
das populações e comunidades direta e indiretamente impactadas por essas
estratégias de desenvolvimento econômico.
Colegiado de Gestão do Instituto
de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Atila Roque,
Iara Pietricovsky
e José Antônio Moroni
6
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Introdução
Ricardo Verdum
Instituto de Estudos Socioeconômicos
Esta publicação foca sua atenção na arquitetura financeira sulamericana e sua relação com a execução de grandes projetos de infra-estrutura
física em implantação na região. Ela foi concebida a partir da percepção de
que estamos num momento chave para promover um novo esforço crítico de
análise e interpretativo do que está acontecendo na região.
Os artigos que compõem a publicação revelam um cenário em muitos
aspectos distinto daquele que gerou os modelos de análise e interpretação
desenvolvidos nos anos 1980 e 1990, enfocados predominantemente na
ação do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (Bid).
Novos atores e projetos financeiros emergiram e são - na atualidade
- tão ou mais importantes quanto eles no financiamento de megaprojetos.
Destacam-se na cena atual a Corporación Andina de Fomento (CAF) e o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes), principal instituição de
financiamento de longo prazo no Brasil, que apesar de ser um banco nacional,
atua internacionalmente financiando obras de infra-estrutura econômica e
de interconexão terrestre e fluvial, energia e comunicações em praticamente
todos os países da Região Sul-Americana 1.
Além de nos brindar com um mapa das principais instituições financeiras
regionais (IFR) hoje atuantes na América do Sul, Eduardo Gudynas vai nos
1. O BNDES dispõe de uma linha de financiamento destinada a estimular a inserção e o fortalecimento
de empresas de capital nacional no mercado internacional, através do apoio financeiro a investimentos ou
projetos a serem realizados no exterior. São passíveis de apoio os investimentos em construção de novas
unidades; a aquisição, ampliação ou modernização de unidades instaladas; e participação societária em
empresas já existentes. Além disso, pode ser financiado o capital de giro das empresas.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
7
Financiamento e Megaprojetos
ajudar a perceber que há uma estreita relação entre o conceito de “integração”
embutido no projeto de Integração da Infra-estrutura Regionais Sul-Americana
(IIRSA) e o papel das IFRs. Embora invoquem a integração, diz Gudynas,
na realidade a ação das IFRs está voltada principalmente para financiar
conexões entre infra-estruturas como estradas, hidrovias e gasodutos. Sua
ação está voltada para viabilizar as condições físicas para o aumento da
interdependência econômica em nível regional, impulsionada por acordos
preferenciais de integração, em um contexto de abertura e desregulamentação
sob o argumento de que irá aumentar a “capacidade competitiva” dos países
na economia globalizada.
A partir dos anos 1990, e num ritmo mais acelerado na década atual,
após a domesticação das crises financeiras que marcaram o final da década
passada e o início desta, acentuou-se a inserção dos países da região no
contexto global como exportadores de commodities. Segundo estudo recente
realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL,
2007), os investimentos externos diretos (IED) na América do Sul na última
década se concentram principalmente na viabilização das condições de
acesso aos recursos naturais disponíveis na região. No Brasil, o atual modelo
de desenvolvimento vem provocando relevante impacto ambiental e social,
fruto de demanda crescente dos centros produtores de bens industriais por
recursos naturais.
São sintomáticas neste sentido as palavras do presidente do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luis Alberto Moreno e do
presidente executivo da Corporação Andina de Fomento (CAF), L. Enrique
García, quando dizem que:
(...) a vantagem comparativa atual dos países latino-americanos no
quadro mundial é sua dotação de recursos naturais. Por um lado,
os países asiáticos têm se convertido na grande fábrica mundial de
manufaturas de consumo massivo. Por outro, os Estados Unidos
e a Europa se consolidam como provedores de manufaturas
8
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
especializadas, tecnologia e serviços. África e América Latina têm
sido relegadas ao papel de provedores de matérias primas. No
entanto, este papel como provedor de bens de menor valor agregado
tem hoje em dia uma conotação de fortaleza, dado a escassez relativa
de matérias primas. Ásia, Europa e Estados Unidos carecem dos
recursos naturais para alimentar o vigoroso crescimento de suas
economias, o que tem impulsionado os preços das matérias primas
de forma sustentável a níveis nunca antes observados ao largo da
última década (CAF e IADB, 2008).
Por outro lado, salienta Gudynas, é necessário reconhecer na
atuação das IFRs alguns aspectos positivos e necessários, como solucionar
problemas de interconexão e fragmentação em escala continental. Contudo,
sua ação, de fato, responde a uma visão onde a inserção no mercado global
é o essencial. Isto significa gerar maior acessibilidade a diferentes áreas do
continente, permitindo a extração de recursos naturais (tais como minérios,
petróleo, soja etc.) e facilitando a inserção dos seus produtos nos mercados
globais. Esta interpretação vai ao encontro do que afirma Enrique García, da
CAF, quando diz que:
Em suma, a integração da infra-estrutura física da América do Sul busca
estabelecer mecanismos para superar os obstáculos ao crescimento
e impulsionar o desenvolvimento e a integração da região mediante
inovações metodológicas e financeiras para o estabelecimento de
conexões de transporte, energia e telecomunicações entre mercados
e áreas de alto potencial de crescimento ou zonas isoladas que
ofereçam vantagens comparativas de ordem social, natural e/ ou
cultural (García, 2007:33).
Para Vince McElhinny houve muitas mudanças desde quando foi
lançada, em 2000, a IIRSA. Passados oito anos, ela conta com o apoio dos
governos que chegaram ao poder com base em plataformas de crítica aberta
ao neoliberalismo e à tutela das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs).
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
9
Financiamento e Megaprojetos
A relativa “prosperidade econômica” verificada na região teria reduzido a
dependência de empréstimos do Banco Mundial e do BID e novos atores
nacionais e sub-regionais adquiriram uma posição de destaque no campo
financeiro, como a Corporación Andina de Fomento (CAF) e o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ao lado do avanço da ALBA,
UNASUL e Banco do Sul.
Os dados publicados pelo Comitê de Coordenação Técnica
da IIRSA em dezembro de 2007, revela McElhinny, indicam que dos
US$ 21 bilhões investidos na carteira prioritária de projetos da IIRSA
até então, o BID e o CAF representam respectivamente 7% e 8% dos
compromissos totais de financiamento, em comparação aos 62% alocados
pelos orçamentos nacionais dos 12 países membros da IIRSA e 21% pelo
respectivo setor privado.
Neste processo, afirma McElhinny, o Brasil fortaleceu sua influência
sobre a gestão do BID onde, após o realinhamento institucional, o Brasil
teria passado a liderar a vice-presidência com mais poder, a Divisão de Infraestrutura, e diversos postos do alto escalão. De outro lado, o BNDES não
só empresta atualmente cerca de oito vezes o total somado das IFIs por ano,
como concede empréstimos fora do Brasil (US$ 4.2 bilhões em empréstimos
de 2007 a 2008).
Outro aspecto que será objeto de foco dos autores desta coletânea
é o crescente protagonismo do Brasil na região, tanto do governo, por meio
do financiamento, quanto das empresas públicas e privadas. A expansão
empresarial brasileira para os países vizinhos é a principal marca deste
processo de transnacionalização do capital brasileiro e sua estreita vinculação
com a concepção e implementação da estratégia embutida na IIRSA.
Como destaca Alessandro Biazzi Couto, muitos dos problemas
socio-ambientais gerados na Bolívia e no Peru pelas rodovias inter-oceânicas,
devem-se a uma “corrida ao Pacífico”, que beneficia enormemente o setor do
agronegócio do Centro-Oeste e Norte do Brasil e as cadeias produtivas das
10
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
transnacionais que operam no continente. Os territórios locais são pensados
quase que exclusivamente como áreas de trânsito para os produtos chegarem
aos portos com o menor custo de mercado possível.
De fato, as regiões Norte e Centro–Oeste do Brasil têm um
papel de grande relevância na estratégia (dita) de desenvolvimento. É ai
onde, fundamentalmente, o capital ligado aos setores da mineração e do
agronegócio (incluído os agro-combustíveis) está definindo a forma como se
dará a ocupação territorial, o destino das populações locais (povos indígenas,
comunidades quilombolas e outros) e seus territórios e a forma como serão
exploradas as potencialidades do patrimônio ambiental destas regiões.
São estes setores econômicos que de dentro e de fora do governo estão
orientando as estratégias de implantação de infra-estrutura de transporte
fluvial e terrestre e de geração de energia, com recursos financeiros previstos
no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), reforçados por recursos do
BNDES e próprios, captados no sistema financeiro nacional e internacional
(ex.: Corporação Financeira Internacional-IFC/Banco Mundial). Este Plano
faz parte de uma estratégia mais ampla das elites que orientam o processo
de expansão e modernização econômica brasileira, seja para regiões no
território nacional ainda não integradas completamente ao sistema econômico
capitalista, seja na direção dos países vizinhos.
Por outro lado, observamos que as mesmas empreiteiras responsáveis
pela construção destas rodovias estão consorciadas com grupos empresarias
voltados para a exploração de recursos minerais e petróleo – é o caso, por
exemplo, da Odebrecht e da Petrobras no Peru. A Odebrecht realiza obras
neste país desde 1979, quando iniciou a construção da Central Hidrelétrica
Charcani V, no departamento de Arequipa. A Petrobras atua no Peru desde
2003 e atualmente é a terceira empresa brasileira em importância segundo o
montante investido no país. Em 2005, a Petrobras transformou-se na segunda
maior produtora de petróleo no Peru e a empresa que detém a maior extensão
de área “concedida” à exploração. Juntas, a Odebrecht e a Petrobras detém,
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
11
Financiamento e Megaprojetos
respectivamente, 60% e 40% da maior petroquímica da América Latina, a
Braskem, também presente no Peru.
Empreiteiras como Odebrecht e Queirós Galvão são de fato partes
integrantes de estruturas maiores, corporações multifacetadas, que atuam em
várias frentes, muitas vezes inclusive desenvolvendo atividades que, em tese,
seriam atribuição do poder público. Um exemplo disto é a Odebrecht em
Angola, que segundo o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior (MDIC), Miguel Jorge, explora minas de diamante em sociedade
com uma empresa estatal; expede todos os documentos oficiais do país
– certidão de nascimento, carteira de identidade, passaporte, etc.; e está
montando a primeira rede de supermercados do país, que em 2007 já eram
22 supermercados, de um total de 60 que comporão a rede (PIB, set/out
2008, p.29).
Na Colômbia, a Camargo Corrêa e a Odebrecht receberão a título de
financiamento US$ 650 milhões do BNDES para a construção da Ferrovia
Carare, uma estrada de ferro conectando o altiplano colombiano e o litoral
atlântico, destinada a transportar carvão para exportação. Esta estrada deverá
ter um ramal para a região de Paz del Rio, onde está instalada uma grande
siderúrgica adquirida pela Votorantim 2.
Considerando as altas cifras despendidas pelo BNDES com obras,
não podemos deixar de concordar com Biazzi Couto quando diz que este
procedimento não corresponde aos objetivos sociais que a instituição apregoa.
Além dos impactos sociais e ambientais e do fortalecimento dos privilégios de
grupos de poder na região, estes créditos são responsáveis pela elevação do
endividamento público dos países em detrimento de investidos efetivamente
de interesse social, como saneamento básico, habitação, escolas e hospitais.
O artigo escrito por Víctor Maeso foca sua análise na relação
de dois grandes bancos privados espanhóis, o BBVA e o Santander, com
2. Sobre os investimentos brasileiros nos países andinos, ver: Ribeiro e Lima, 2008.
12
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
o financiamento de grandes projetos de infra-estrutura e exploração de
recursos naturais na América Latina; vai chamar a atenção exatamente para
a atuação de um setor financeiro para o qual pouca atenção tem sido dada
no Brasil e sobre o qual muito pouca informação encontra-se acessível 3.
Segundo Carlos Eduardo Carvalho e Carlos Augusto Vidotto (2007), dentre
os principais objetivos de entrada de bancos estrangeiros no mercado
financeiro brasileiro, a partir de meados dos anos 1990, estava a estratégia
de acompanhar as empresas dos países de origem que vinham expandindo
atividades no Brasil 4.
Há claras evidências de que o BBVA tem prestado serviços
financeiros (inclusive empréstimos e financiamento de projetos, participação
e estruturação de empréstimos agrupados e gestão e atuação como bookrunner
na emissão de bônus) a doze empresas que, por sua vez, estão envolvidas em
vários projetos em situação de litígio. Maeso chama a atenção para o fato de
que todas as empresas são do setor energético ou de setores que dependem
bastante de recursos naturais, como o setor de mineração, de celulose e de
petróleo. A grande maioria das questões em litígio está associada à exploração
de minas (10), seguidas daquelas vinculadas à construção de represas (5), a
projetos de gás ou petróleo (4) e a projetos de fabricação de celulose (2).
Como o BBVA, o Banco Santander também tem sido muito
pouco transparente/aberto. Assim como aconteceu com o BBVA, diz
Maeso, foi necessário esperar pela intervenção de ativistas do SETEM
e de outras ONGs na reunião geral de acionistas do banco para que o
próprio presidente, Emilio Botín, fizesse referência direta ao Complexo do
3. O BBVA é o maior banco em empréstimos e depósitos no México e no Paraguai, o segundo no Peru
e na Argentina, o quarto na Colômbia e no Chile, o quinto no Uruguai e o terceiro em empréstimos e
quarto em depósitos na Venezuela. Tem presença em Hong Kong, com o sétimo maior banco chinês, é o
segundo maior banco da Espanha e tem presença forte em Portugal. Em agosto passado, firmou parceria
com o Bradesco no gerenciamento de caixa para empresas clientes, constituindo-se numa das maiores
plataformas do serviço na América Latina (Valor Econômico - 14/08/2008).
4. Sobre os investimentos espanhóis na América Latina, ver Ruesga et. al 2007.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
13
Financiamento e Megaprojetos
Madeira, co-financiado pelo Banco, dizendo ser conhecedor dos problemas
e riscos envolvidos, e prometendo publicamente uma reunião entre os
representantes do Banco Santander no Brasil e os grupos afetados.
Em verdade ainda há muito que ser feito em termos de análise
sistemática e avaliação do papel dos bancos privados na América do Sul, em
particular na chamada integração regional, na execução dos megaprojetos e
na exploração de recursos naturais na região. No caso dos grandes grupos
empresariais brasileiros, como por exemplo os grupos Votorantin, Gerdau,
Odebrecht e Andrade Gutierrez, todos têm seu braço financeiro, que capta
recursos no mercado financeiro nacional e internacional para ser investido
em empreendimentos de interesse do grupo ou para ser utilizado como
contrapartida nas negociações ou disputas no mercado de megaprojetos 5.
Ao examinar as tendências do investimento estrangeiro na Colômbia,
Jairo Estrada Álvarez e Margarita Flórez verificam uma orientação gradual
e sistemática do ordenamento jurídico (a lei que regula o investimento
estrangeiro) no país para um regime que tem como fundamento a eliminação
de qualquer tipo de restrição ao investimento (sejam eles setoriais ou de caráter
administrativo). Além disto, no período de 2001 a 2006 houve uma mudança
importante na composição do investimento estrangeiro na Colômbia: há um
aumento significativo da participação em recursos naturais e energéticos. Neste
setor, o investimento atingiu 47% do total dos investimentos, principalmente
nos setores petroleiro e mineral, enquanto no setor de serviços houve uma
redução para 34% e na indústria de manufatura caiu para 19%.
Alvarez e Flórez chamam a atenção ainda para a crescente presença
do capital internacionalizado brasileiro nas economias da região andina e na
5. O BNDES, em parceria com instituições multilaterais (como BID e IFC/Bird) e com bancos privados brasileiros, anunciou em setembro deste ano a criação da Empresa Brasileira de Projetos (EBP), com o
objetivo de estruturar e modelar projetos de infra-estrutura para na modalidade de concessões públicas
e Parcerias Público-Privadas (PPPs) no Brasil e na América do Sul. Fazem parte dessa companhia oito
bancos, são eles: Bradesco, Itaú, Unibanco, Santander, Citibank, Votorantim, Espírito Santo e Banco do
Brasil (Folha de SP, 14/09/2008). Sobre a liberalização financeira nos anos 1990 e as políticas de desenvolvimento na América do Sul, ver: Santana e Kasahara 2006.
14
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Colômbia em particular, contrariando as expectativas de quem acreditou que
com o governo Lula os processos de integração poderiam alcançar novas
dimensões e superar os conteúdos essencialmente neoliberais que os haviam
caracterizado os anos 1990.
Para eles, a política brasileira a partir de 2003 contribuiu com o
congelamento do projeto da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA,
mas não impediu a continuidade do processo de transnacionalização e
desnacionalização da maioria das economias latino-americanas, que continuou
por outras vias. As empresas brasileiras de grande porte com atuação global
estão presentes na maioria dos países andinos. É o caso da Petrobrás, Vale,
Gerdau, Votorantim, Odebrecht e Camargo Corrêa. Para Jairo Estrada
Álvarez e Margarita Flórez:
Sem dúvida, mais do que um projeto tendente ao fortalecimento
da posição latino-americana no contexto da economia mundial, o
que se observa é a pretensão de consolidar a posição brasileira na
região, que coincide com uma antiga aspiração das elites brasileiras
de transformar o Brasil em uma grande potência. O Plano de
Aceleração do Crescimento (PAC) do segundo governo de Lula
tem por finalidade justamente incentivar o investimento do grande
capital brasileiro, através de diversas medidas e projetos, e projetar
sua influência em outros países da América Latina, para além do
âmbito do Mercosul. Dentre essas projeções estão as pretensões de
buscar uma saída para o Pacífico e encurtar as saídas para o Atlântico
de algumas atividades produtivas brasileiras. Portanto, não é casual
a vinculação do Brasil a grandes megaprojetos de investimento,
especialmente dentro da IIRSA.
Não poderíamos fechar esta introdução sem destacar, a partir das
análises e interpretações dos autores que integram esta coletânea, aquilo que
identificamos como parte do campo dos desafios dos novos tempos. Seguindo
na mesma linha de pensamento desenvolvida por Alvarez e Flórez, para
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
15
Financiamento e Megaprojetos
Eduardo Gudynas é necessário avançar muito mais na mudança dos estilos
de desenvolvimento e gerar uma integração alternativa. Isto porque, afirma
Gudynas:
(...) substituir o capitalismo transnacionalizado, dependente de
corporações originadas de países industrializados, por um capitalismo
brasileiro, argentino ou chileno, não implica mudanças substanciais
nas relações de poder e nos estilos de desenvolvimento. Da mesma
forma, renunciar a uma integração multidimensional e ficando no
nível das interconexões, seria aceitar uma triste derrota nas demandas
cidadãs por “outra integração”.
Para Vince McElhinny, que vem acompanhando o desenvolvimento
da IIRSA ao longo dos últimos oito anos, a sociedade civil deve se preparar
para um cenário sem a IIRSA nos moldes atuais, quando a tarefa de elaborar
um modelo de integração alternativa for totalmente transferida para a
UNASUL. Isto implicará em ter que demandar dela e dos Estados que a
integram participação, transparência e prestação de contas ao público, ou
seja: aquilo que a ALCA, a IIRSA e a maioria das IFIs não deram. Isto
significa que mesmo sob a coordenação da UNASUL, muitas das críticas e
questões levantadas continuarão pertinentes.
O artigo de Omar Arach vai trazer um outro leque de questões que,
até certo ponto, independem de mudanças político-institucionais como as
assinaladas por McElhinny. Tomando como referência as mobilizações e
os protestos contrários à realização de grandes obras de infra-estrutura em
território argentino da Bacia do Prata, principalmente os projetos hídricos,
ele identifica ai um importante denominador comum: o protagonismo das
organizações e dos argumentos ambientalistas, vinculando atores sociais
(individuais e coletivos) situados em diferentes níveis de atuação6.
Estas mobilizações, diz Arach, revelam a formação de novas
6. Neste trabalho é importante destacar a conexão com as organizações locais que representam as
populações afetadas pela realização de tais obras.
16
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
configurações políticas no debate global sobre meio ambiente e
desenvolvimento. Evidenciam a formação de redes de ativistas e organizações,
que em dadas condições passa a atuar como agência nas arenas políticas onde
se define o rumo dessas obras e, em última instância, se decide em parte
como os bens territoriais da região serão usados. Mas Arach não para por ai,
trás três questões importantes: em primeiro lugar, se pergunta até que pondo
as definições convencionais de desenvolvimento estão sendo desafiadas e até
que ponto esses movimentos estão iniciando processos sociais que permitam
visualizar um futuro onde se desenhem cenários de “pós-desenvolvimento”
ou de desenvolvimento alternativo. Em segundo, que condições propiciam
e quais características expressam essas alianças entre atores distantes e
distintos? E por fim, em terceiro lugar, se questiona sobre os potenciais e
limitações na hora de administrar formas de gestão que possam desafiar os
paradigmas desenvolvimentistas mais convencionais. Todas são questões que
apontam para situações de alta complexidade, ainda muito pouco analisadas
de forma sistemática.
Estes são em linhas gerais os temas, conteúdos e questões abordadas
nesta publicação, que como dissemos no início, visa contribuir para um novo
esforço crítico de análise e interpretativo do que está acontecendo na região
sul-americana.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
17
Financiamento e Megaprojetos
Referências
CAF e IADB. Hacia la Integración Energética Hemisférica: Retos y Oportunidades.
Caracas, 2008.
Carvalho, Carlos Eduardo e Vidotto, Carlos Augusto “Abertura do setor
bancário ao capital estrangeiro nos anos 1990: os objetivos e o discurso do
governo e dos banqueiros” Nova Economia, 17 (3): 395-425. 2007. http://
www.scielo.br/pdf/neco/v17n3/v17n3a02.pdf
Comisión Económica para América Latina (CEPAL). El Regionalismo abierto
en América Latina y el Caribe. La integración económica en servicio de la transformación
productiva con equidad. Santiago do Chile, 1994.
Comisión Económica para América Latina (CEPAL). Evolución y composición
de los flujos de inversión extranjera en América del Sur bajo la óptica de las principales
empresas inversionistas. Texto elaborado por Lúcia Felix, no âmbito do Convênio
PNUD/CEPAL/NAE. Brasília, 2007.
García, Enrique “A integração da infra-estrutura na América do Sul: um
impulso ao desenvolvimento sustentável e à integração regional”. Diplomacia,
Estratégia e Política (janeiro/março): 26-35. 2007.
Gudynas, Eduardo “Dos caminos distintos: tratados de libre comercio e
procesos de integración” em: A. Acosta e F. Falcón (comps.) TLC. Más que
un tratado de libre comercio. Quito, Ecuador: ILDCIS e Flacso. 2005. pp 41-62.
Reinoso, Alan Fairlie. Inversiones Brasileñas en América del Sur. La perspectiva
de los Países Andinos (Perú). Rio de Janeiro: Fundação Centro de Estudos do
Comércio Exterior. 2008. http://www.funcex.com.br/material/semandinos/
Peru%20final.pdf
Ribeiro, Fernando J. e Lima, Raquel Casado, Investimentos Brasileiros na América
do Sul: Desempenho, Estratégias e Políticas. Rio de Janeiro: Fundação Centro de
18
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Estudos do Comércio Exterior. 2008. http://www.funcex.com.br/material/
semandinos/Brasil%20final.pdf
Ruesga, Santos Miguel et. al “O investimento direto esterno espanhol na
América Latina: determinantes e impactos” Cadernos PROLAM/USP, ano 6
(1): 149-186. 2007. http://www.usp.br/prolam/downloads/2007_1_7.pdf
Santana, Carlos Enrique V. e Kasahara, Yuri “Os limites da integração
financeira e políticas de crédito na América do Sul: um novo modelo de
desenvolvimento regional?” Observador On-Line, vol. 1(5). 2006. http://
observatorio.iuperj.br
Sarti, Fernando e Laplane, Mariano F. “O investimento direto estrangeiro
e a internacionalização da economia brasileira nos anos 1990”, Economia e
Sociedade, 11 (1): 63-94. 2002.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
19
20
As instituições financeiras e a
integração na América do Sul
Eduardo Gudynas
Centro Latino Americano de Ecología Social (CLAES)
[email protected]
www.integracionsur.com
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Nos últimos anos, as relações entre os países da América do Sul
se tornaram mais complexas e estreitas. Seus componentes incluem diversos aspectos, tais como convênios essencialmente comerciais (Comunidade
Andina ou MERCOSUL), fóruns políticos (UNASUR) e projetos de infraestrutura física, como estradas ou gasodutos.
Um aspecto particularmente relevante neste processo é que muitos
desses empreendimentos são promovidos e financiados por um conjunto de
“instituições financeiras regionais” (IFRs). Essas instituições são fundos ou
bancos, que têm a particularidade de estar nas mãos dos próprios governos
da América Latina.
O surgimento dessas IFRs não é um fato menor, já que representam
uma alternativa às mais conhecidas “instituições financeiras internacionais”
(IFIs), tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário Internacional. Essas instituições são
fontes clássicas de créditos dos governos latino-americanos e estão por trás
de muitos grandes empreendimentos.
Mas, atualmente, as IFRs mostram um protagonismo crescente que,
em grande parte, é associado ao surgimento dos governos progressistas ou
de esquerda em vários países. Este artigo descreve as IFRs que atuam na
América do Sul e seu papel como promotoras e reprodutoras de certo tipo
de integração continental.
As Instituições Financeiras Regionais na América do Sul
As IFRs apresentam diversas particularidades. Em primeiro lugar,
são “regionais” porque enfocam a América Latina, ou sub-regiões dela, além
de se estruturarem para atuar ali. Em segundo lugar, suas autoridades e o
processo de tomada de decisões estão nas mãos dos governos da região. Em
terceiro lugar, seu enfoque primário são os financiamentos convencionais,
tais como projetos de infra-estrutura e energia, a expansão empresarial privada ou a cooperação técnica. A descrição das IFRs a seguir reproduz algumas
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
23
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
seções da análise em Gudynas (2008), onde é possível encontrar informações
adicionais.
O conjunto de IFRs inclui, no mínimo, oito instituições: Corporação
Andina de Fomento (CAF), Fundo da Bacia do Prata (Fonplata), Banco Centroamérica de Integración Económica (BCIE), Banco Latinoamericano de
Exportaciones (BLADEX), Caribbean Development Bank (CDB), Fundo
Latino Americano de Reservas (FLAR), e os bancos nacionais BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) do Brasil e BANDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) da Venezuela.
O Banco do Sul está atualmente em processo de negociação e deverá entrar
para essa lista quando começar a funcionar. Finalmente, em sentido estrito,
o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) também possui vários
atributos de uma IFR.
As grandes instituições regionais
Este conjunto de IFRs pode ser subdivido segundo o espaço geográfico de ação de cada instituição. Atualmente, há duas instituições com
mandato para operar em toda a América Latina: o Banco Latino Americano
de Exportações e o Fundo Latino Americano de Reservas. A Corporação
Andina de Fomento, embora se concentre nos países andinos, tem se expandido para outras áreas.
O Banco Latino Americano de Exportações (Bladex) foi criado em 1978
por iniciativa do governo do Panamá, aprovado pelos presidentes dos bancos
centrais dos países latino-americanos. Atualmente sua operação se assemelha mais à de um banco privado que financia o comércio exterior e serve
de intermediário de fundos. A propriedade do Bladex está distribuída entre
bancos centrais e agências governamentais de 23 países da região, alguns
bancos internacionais e fundos de investimento, o que o transforma em uma
instituição mista. Tem sede na cidade do Panamá, com uma carteira de clientes muito diversificada, onde quase a metade é de empresas. Em 2007 desem-
24
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
bolsou US$ 8 bilhões em suas operações, inclusive empréstimos de US$ 3 731
milhões (cujo principal destinado foi operações no Brasil, com US$ 1 379 milhões; BLADEX, 2007). Além disso, criou uma subsidiária brasileira, a Bladex
Representação Ltda. e tem um escritório em Buenos Aires (Bladex, 2007).
O Fundo Latino-Americano de Reservas (FLAR) tem por objetivos
apoiar as balanças de pagamento dos países membros, garantindo créditos
ou empréstimos de terceiros, contribuir com a harmonização das políticas de
câmbio, monetárias e financeiras, e melhorar as condições dos investimentos
de reservas internacionais. O fundo, criado em 1991, é composto pela Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Equador, Peru, Uruguai Venezuela, e tem sede
em Bogotá (Colômbia).
A Corporação Andina de Fomento (CAF) foi fundada em 1966, mas suas
atividades começaram em 1970, como um banco de promoção do desenvolvimento e de serviços financeiros, tanto a clientes do setor privado como
estatais. A corporação oferece empréstimos, garantias e avais, assim como
outros serviços financeiros. Além das contribuições de cada país, a corporação recebe capitais dos grandes bancos de países desenvolvidos.
A corporação virou a principal fonte de financiamento em alguns
países andinos, superando tanto o BID como o Banco Mundial. Na realidade, entre 2002 e 2006, concedeu aos países andinos quase 12 bilhões de
dólares (48% do total dos fundos aprovados por agências multilaterais nessa
região). Contudo, ampliou sua integração acionária e seus membros. Atualmente, é composta por 17 países da América Latina e da Espanha, e com
15 bancos privados da região andina. Sua sede principal é em Caracas, com
escritórios em vários outros países. A corporação financia empreendimentos
clássicos de infra-estrutura, como água e saneamento, interconexões entre
países e, particularmente, aqueles vinculados à Iniciativa para Integração da
Infra-estrutura Regional Sul Americana (IIRSA), participando de seu Comitê
de Condução Técnica (CCT), junto ao BID e ao Fonplata. Mais recentemente, começou a conceder empréstimos setoriais para uso contingente. A
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
25
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
carteira de empréstimos cresceu de 6 172 milhões em 2003 para US$ 9 622
milhões em 2007. Seus principais destinos em 2007 foram 22.3 % em projetos no Equador, 18.8% para o Peru, 17% destinados à Colômbia e 15.3%
para a Venezuela.
O BID também pode ser considerado como uma IFR que atua em escala continental. Seu campo de ação se concentra nos países da América Latina
e do Caribe, financiando diversos empreendimentos estatais, mas também ao
setor privado. A principal diferença está no fato que do total de 47 países membros, apenas 26 são nações latino-americanas e, por tanto, o controle da gestão
se encontra, em grande parte, nas mãos dos países industrializados (como os
Estados Unidos, Canadá, várias nações européias e o Japão).
Finalmente, a criação do Banco do Sul avança gradualmente. O Banco
é um organismo de financiamento especificamente voltado para a América
do Sul. Embora tenha sido assinada uma ata de acordo para sua criação,
durante a cúpula presidencial realizada em dezembro de 2007 em Buenos
Aires (Argentina), sua estrutura e funcionamento continua a ser objeto de
negociação (Romero, 2008). Por outro lado, parece que há um consenso de
que este banco financiará projetos de desenvolvimento e integração regional.
A ata de acordo para sua criação foi assinada pela Argentina, Bolívia, Brasil,
Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela; recentemente a Colômbia decidiu
solicitar sua adesão, o que, contudo, não aconteceu.
Bancos e fundos sub-regionais
Dos dois bancos sub-regionais latino-americanos, o Caribbean Development Bank (CDB) conta com membros sul-americanos (enquanto o Banco
Centroamericano de Integración Económica está restrito a países da América Central). Os integrantes sul-americanos do CDB são a Colômbia, Guiana e Venezuela. Este banco foi fundado em 1969 e tem sede em Barbados. Atualmente
conta com 26 membros, dos quais quase todos são países caribenhos, além
de algumas nações como a China, o Reino Unido, a Colômbia e a Venezuela.
26
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
O banco tem por objetivo apoiar a integração caribenha e o desenvolvimento
econômico e social.
Há uma terceira instituição sub-regional atuante na América do Sul: o
Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata). Este
fundo é composto pela Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai, e sua
sede está em Santa Cruz (Bolívia). Seus objetivos são apoiar estudos de préinvestimento e assistência técnica, e pode conceder empréstimos, dar fianças
e avais. Sua sede é em Santa Cruz (Bolívia). Atualmente, financia várias obras
de infra-estrutura, apóia as contrapartes nacionais junto aos empréstimos outorgados por outros bancos, e realiza estudos de pré-investimento (Fonplata,
2008). Além disso, o fundo integra três principais comissões mistas: o Comitê de Condução Técnica (CCT) da IIRSA, o Comitê Inter-governamental da
Hidrovia Paraguai Paraná, um antigo mega prometo de infra-estrutura que
agora é parte da IIRSA, e o Comitê Inter-governamental Coordenador dos
Países da Bacia do Prata. Todas essas comissões estão diretamente envolvidas
com temas de integração. Além disso, apóia o projeto “Aqüífero Guarani”,
um empreendimento conjunto da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, dedicado a promover uma gestão coordenada desse enorme aqüífero.
Bancos nacionais
Entre as IFRs, é necessário considerar ao menos dois bancos que,
embora nacionais, atuam em diferentes países da América do Sul: o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) do Brasil e o Banco de
Desenvolvimento Econômico e Social (BANDES) da Venezuela,
O BNDES é uma estatal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior. Criado em 1952, tem sede no Rio de
Janeiro (Brasil), com escritórios em outras cidades do Brasil. Foi anunciado
que seu primeiro escritório internacional será em Montevidéu (Uruguai), já
que lá se encontra a secretaria do MERCOSUL.
A maioria das operações do banco é no Brasil, com créditos para
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
27
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
a produção, consumo e exportação, além do apoio empresarial. Entre esses financiamentos, há diversos componentes do IIRSA dentro do território
brasileiro. Além disso, avançou em atividades regionais, tais como apoiar
empreendimentos em outros países da região, que em muitos casos também corresponde à IIRSA. A particularidade do BNDES é que ele financia
empresas brasileiras e, então, embora possa apoiar empreendimentos de integração entre outras nações, sempre o faz por intermédio da participação
em uma empresa do Brasil. Sua carteira de recursos é enorme. Em 2006
desembolsou aproximadamente 24 bilhões de dólares (com ganhos líquidos
de US$ 2 500 milhões). Além disso, o BNDES assinou acordos com o CAF
e o Fonplata.
O BANDES está vinculado ao Ministério do Poder Popular para as
Finanças. Criado em 2001, o banco financia projetos de desconcentração
econômica e incentiva ao investimento privado na Venezuela. Mas também
foi designado como agente financiador da política exterior da Venezuela e,
por tanto, apóia diversos programas e investimentos relacionados à cooperação internacional, especialmente na área de energia. O banco segue uma
estratégia que é, em parte, diferente da do BNDES. Embora exija que pelo
menos 50% do empreendimento sejam com participação venezuelana, dá
maior importância a acordos de complementação. Além disso, criou uma
estratégia internacional que divide os países conforme sua classificação no
índice de desenvolvimento humano.
28
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Tabela 1
Países participantes nas diferentes instituições regionais que atuam na América do Sul. As
abreviações são explicadas no texto.
O papel das IFRs na integração sul-americana
Há várias IFRs que atuam, direta ou indiretamente, sobre o amplo
campo da integração regional, as relações entre países e o comércio internacional. Suas capacidades de incidência nesse plano dependem muito dos volumes de financiamento disponíveis. Considerando o patrimônio, o BNDES
supera em muito as outras instituições, contando com 14 070 milhões de
dólares (em 2007), seguido pela CAF com 4 125 milhões de dólares (2007). É
importante dizer que o BNDES está abaixo apenas do BID (cujo patrimônio
em 2007 foi de US$ 20 353 milhões). O BANDES conta com um patrimônio
de US$ 4 560 milhões que, embora inferior ao do BNDES, supera o CDB
(que tinha US$ 506 milhões em 2007), o FLAR (US$ 1 797 milhões em 2007)
e o Fonplata (US$ 415 milhões em 2006). Essas diferenças explicam a relevância que adquire o BNDES que, embora seja um banco nacional de promoção, acaba por atuar como uma IFR que, inclusive, compete com a CAF.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
29
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
A CAF aprovou empréstimos de US$ 6 607 milhões em 2007. A
corporação afirma que é a principal fonte de financiamento dos projetos de
infra-estrutura na América Latina. No caso da IIRSA, seu papel é essencial.
Em 2007 apoiou 46 projetos que totalizaram US$ 4 493 milhões, representando no mínimo 35% dos custos totais desses projetos (CAF, 2008). Os
principias destinos têm sido os projetos destinados a empreendimentos nos
corredores continentais centrais, envolvendo especialmente a Bolívia, o Peru
e o Brasil. Por exemplo, na Bolívia 33% dos desembolsos da CAF estão
orientados à infra-estrutura de transporte, particularmente obras viárias e
pontes. Aí se incluem obras como as estradas de Puerto Suárez a Santa Cruz,
ou as conexões da cidade com Cochabamba e Sucre. A CAF desenvolve o
Programa Portos de Primeira, que atua em cinco portos (Cartagena e Buenaventura na Colômbia; Guayaquil no Equador; El Callao no Peru e o venezuelano Puerto Cabello), e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento e à Integração Fronteiriça (PADIF), que mantém 12 iniciativas em quase todas as
fronteiras sul-americanas. Finalmente, a corporação conta com fundos não
reembolsáveis para promover estudos de pré-investimento (Fundo de Promoção de Projetos de Infra-Estrutura Sustentável – Proinfa) que administra
30 projetos que totalizam US$ 9 milhões (CAF, 2007).
Atualmente o Fonplata tem 14 projetos em execução, por US$
303,67 milhões (alguns deles já há vários anos em execução). Entre esses
empreendimentos, pelo menos sete envolvem infra-estrutura de transporte, e
alguns deles também recebem o apoio da CAF. Na Argentina, podemos citar
a pavimentação das rotas No 8 e 22 e a reconversão do porto Santa Fé; na
Bolívia, a estrada Guabira – Chané – Piraí; no Brasil, obras de infra-estrutura
viária na região sul do Mato Grosso do Sul; no Paraguai, contribuições para
o pré-investimento e execução das obras de um porto multi-propósito na
cidade de Pilar e apoio a obras nas estradas da região ocidental do Paraguai.
No Uruguai, foi concedido um empréstimo como contribuição às contrapartes nacionais do endividamento daquele país com outras agência, onde
30
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
alguns se relacionam à melhoria de estradas. Entre os projetos regionais do
fundo, se destacam as contribuições para um Programa Marco para a Gestão
Sustentável dos Recursos Hídricos da Bacia do Prata (informação em www.
fonoplata.org).
O BNDES financia de várias formas as empresas brasileiras na
América do Sul. Em alguns casos, o faz diretamente no Brasil, para aumentar
sua capacidade de exportação e, em outros casos, apóia as subsidiárias em
outros países, ou financia a compra de bens e serviços gerados no Brasil. No
Brasil, o apoio do BNDES ao comércio exterior atua no mesmo sentido que
o “Programa de Financiamento às Exportações” (Proex).
Podemos citar vários exemplos referentes a projetos de infra-estrutura e intercomunicação que normalmente são apresentados como parte de
uma integração sul-americana. Na Argentina, o BNDES financiou vários
gasodutos, totalizando US$ 690 milhões, como a expansão de 500 km do gasoduto San Martín, da Patagônia a Buenos Aires, e a construção do gasoduto
de interconexão com o Brasil. Financiou, ainda, a conexão viária fronteiriça
de Paso de los Libres - Santo Tomé e está discutindo a construção do túnel
de Água Negra, que cruzará os Andes entre a Argentina e o Chile (14 km
de extensão). Este é um exemplo relevante da racionalidade desses empreendimentos, embora o túnel conecte a Argentina com o Chile, na realidade
é concebido como parte de um “Corredor Bioceânico” que gera uma rota
alternativa que une o sul do Brasil ao porto de Coquimbo no Chile. Em uma
visita presidencial a Buenos Aires, Lula da Silva informou que o banco destinará US$ 1 700 milhões em empreendimentos na Argentina (agosto 2008),
inclusive um fundo conjunto com os bancos estatais argentinos (Banco da
Nação e BICE), de US$ 100 milhões para diversos projetos, entre os quais,
reciclagem da infra-estrutura de transporte.
No Chile, o BNDES começou a financiar a participação de empresas brasileiras no novo sistema de transporte público (US$ 250 milhões para
a aquisição de ônibus brasileiros). No Peru, em vários momentos financiou
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
31
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
obras no segmento peruano do corredor de estradas que se estende do Estado do Acre, cruzam a Amazônia peruana, os Andes, chegando aos portos de
Ilo, Matarani e San Juan, no Oceano Pacífico. O banco já financiou a ponto
sobre o Rio Acre, que liga Assis Brasil (Brasil) e Iñapari (Peru), com US$ 19
milhões, enquanto que a estrada é um investimento de US$ 420 milhões, onde
participam as empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e
Camargo Correa. Na Colômbia, o BNDES está analisando o financiamento
da estrada de ferro de Carare, que permite transportar o carvão das minas de
Boyacá e Cundinamarca, sob os auspícios de uma empresa membro do grupo empresarial brasileiro Votorantim. Na Venezuela, tem desempenhado um
papel chave no financiamento de uma ponte sobre o Rio Orinoco e analisa
uma segunda extensão. Na Bolívia, negocia financiar as conexões viárias do
norte boliviano com os Estados do Acre e de Rondônia, inclusive as rotas
entre La Paz e Guayaramerín, onde coordena ações com o BANDES.
Figura 1
Ponte internacional entre Assis Brasil (Acre, Brasil) e Iñapari (Madre de Dios, Peru) no coração da Amazônia. Uma conexão que faz parte da “Estrada do Pacífico” que conecta o centrooeste da Amazônia do Brasil com o Peru e os portos no Ocean Pacífico. Foto E. Gudynas,
novembro de 2007.
32
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Em nível internacional, o BNDES também apóia o processo chamado de “internacionalização” das empresas brasileiras. Para tanto, não só
garante empréstimos, mas também instala fundos de investimento e chega
a co-participar em aquisições e fusões de empresas em outros países. Os
procedimentos mais comuns têm sido outorgar empréstimos por meio dos
quais as empresas brasileiras adquirem empresas em outros países (como
no caso da compra do setor agroalimentar da Argentina e do Uruguai por
capitais brasileiros), atuar como controlador e financiador de aquisições (por
exemplo, no caso da Companhia Vale do Rio Doce CVRD), comprando
ações ou bônus de empresas brasileiras para financiar sua expansão (por esse
procedimento, a JBS-Friboi de Brasil emitiu ações compradas pelo BNDES,
o que lhe permitiu adquirir por US$ 1400 milhões o frigorífico Swift do Estados Unidos, para se transformar na maior processadoras de carne bovina
do mundo).
O BANDES da Venezuela está envolvido em projetos mais diversificados e sua escala de operação internacional é menor. Mas a petroleira estatal daquele país, a PDVSA (Petróleos de Venezuela SA) participa em vários
empreendimentos conjuntos apresentados como parte de uma “integração
energética”.
As IFRs e a integração reduzida a conexões
É necessário analisar o tipo de integração promovida por essas IFRs,
principalmente se trazem visões inovadoras para o vínculo entre os países.
Um primeiro passo nesta análise deve considerar os vínculos atuais entre
essas instituições e os blocos de integração regional na América do Sul.
A CAF faz parte do Sistema Andino de Integração e é o guardachuva que abriga vários organismos da Comunidade Andina. Sua origem
se encontra na criação do antigo Grupo Andino. Contudo, atualmente, a
corporação desfruta de muita autonomia diante da Comunidade Andina e
se apresenta como uma instituição financeira multilateral, com “acionistas”,
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
33
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
tendo expandido seus membros e área de ação. Por outro lado, o Fonplata
foi criado muito antes do MERCOSUL e, atualmente, esse fundo não faz
parte da estrutura daquele bloco. O BNDES, como o BANDES, são bancos
nacionais e, por tanto, respondem a interesses nacionais. Assim, as diferentes
IFRs não são parte ou têm vínculos obrigatórios com os blocos que integração regional. Esta situação poderia mudar no futuro, com o Banco do Sul,
já que se insiste que ele deveria operar como uma instituição da UNASUR
(União de Nações da América do Sul). Porém, agora se repete um esquema
de tomada de decisões presidencialista: os acordos entre os países devem ser
concretizados nas cúpulas presidenciais e, então, partem das diretivas que devem implementar os blocos de integração (CAN e MERCOSUR), enquanto
cada governo, em paralelo, envia instruções a seus delegados nas IFRs, como
a CAF ou o Fonplata.
De qualquer forma, conforme a época, as principais IFRs colocam a
integração regional como um dos seus principais compromissos. Na realidade, a apresentação institucional da CAF indica que os pilares de sua missão
são o compromisso com o desenvolvimento sustentável e a integração regional. A missão do Fonplata é o “desenvolvimento harmônico e a integração
física dos países membros da Bacia do Prata” e o compromisso com a integração caribenha também aparece no CDB.
As ações de várias IFRs para fortalecer a integração se expressam especialmente na IIRSA. Esta iniciativa em infra-estrutura foi criada na primeira cúpula presidencial sul-americana, realizada em Brasília no ano de 2000. O
movimento pretendia criar uma área de livre comércio sul-americana e uma
de suas colunas vertebrais seria esse grande programa de interconexões de
transporte, energia e comunicações. A idéia de livre comércio sul-americano
sofreu muitas mudanças, até que na cúpula presidencial em Cusco, em 2004,
voltou a ser a Comunidade Sul-Americana de Nações. Naquela ocasião, a
carteira de projetos da IIRSA foi ajustada, mas seus objetivos essenciais foram mantidos. A comunidade foi substituída em 2008 pela União de Nações
34
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Sul-Americanas (UNASUR) que traz as mesmas idéias em seu tratado de
constituição: a integração como “interconexão” da região, junto a alusões
tradicionais como a referência a um desenvolvimento “social e econômico
sustentável”. Os espaços de cooperação regional, como a Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) ou o Comitê Inter-governamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata também apóiam a IIRSA. Em seus primeiros anos, a IIRSA contou com muitos apoios do BID
(considerados em detalhes em Carvalho, 2006a), somando-se, em seguida, à
CAF e ao Fonplata. Inclusive, no caso do Fonplata, é mantida uma relação
estreita com o Comitê Inter-governamental da Hidrovia Paraguai – Paraná,
que é um dos eixos da IIRSA. Portanto, seja por um caminho ou pelo outro,
várias IFRs desembocam na IIRSA como espaço privilegiado da integração
sul-americana.
Contudo, na Alternativa Boliviariana para as Américas (ALBA), que se
apresenta como outro caminho para a integração regional, são propostos
como objetivos uma rede ferroviária latino-americana (RFL), uma rede de
estradas para a integração e o desenvolvimento (RCID), e empresas regionais
em transporte mercantil, uma linha aérea continental, e uma frota fluvial,
junto a vários acordos em energia e hidrocarbonos (Altmann, 2007). Neste
marco, os mesmos objetivos de interconexão física são mais ou menos repetidos, com ênfase em energia (por exemplo, o governo de H. Chávez foi um
forte promotor do “Gasoduto do Sul”). Pelo menos por enquanto, a ALBA
não é uma alternativa à IIRSA.
Essas linhas de evidência e os exemplos apresentados nas seções
anteriores mostram uma estreita relação entre um determinado conceito da
integração expresso pela IIRSA e o papel das IFRs. Embora invoquem a
“integração”, na realidade as ações específicas estão voltadas principalmente
a financiar “conexões” como estradas, hidrovias ou gasodutos. É indispensável fazer uma distinção entre a integração como um processo de vinculação
entre países que se desenvolvem em vários planos, não somente comerciais,
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
35
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
mas também políticos, produtivos, culturais, etc., e as interconexões como
podem ser corredores de estradas, pontes internacionais, extensões elétricas,
etc. Embora as conexões deste tipo sejam um importante ingrediente para
permitir uma integração entre países, não se pode perder de vista que são
conceitos muito distintos: interconexão não é sinônimo de integração (sobre
a integração como processo multidimensional, consulte Gudynas, 2005a).
Estabelecidas essas diferenças, de fato as IFRs financiam especialmente interconexões e não um processo de integração. Referimo-nos especialmente a projetos relacionados à IIRSA e à promoção do comércio
exterior. Neste papel atuam especialmente a CAF e o Fonplata, junto com
o BID. Essas instituições desenvolveram sua própria visão da integração sulamericana, que deveria se orientar por sete princípios: regionalismo aberto;
eixos de integração e desenvolvimento; sustentabilidade econômica, social,
ambiental e político-institucional; aumento do valor agregado da produção;
tecnologias de informação; convergência normativa; e coordenação públicoprivada (BID, CAF e Fonplata, 2003).
Fica claro que esta visão insiste no regionalismo aberto, um conceito
muito difuso utilizado pela CEPAL, uma postura funcional à globalização
econômica, onde os acordos e blocos entre países são considerados uma
preparação e um ajuste para se inserirem nos mercados globais (Gudynas,
2005b). É necessário reconhecer nas IFRs alguns aspectos positivos e necessários, como a importância das complementaridades e sinergias, e o caráter
multidimensional do processo. Contudo, estas instituições respondem a uma
visão onde a inserção no mercado global é essencial e, para tanto, é necessário solucionar os problemas de interconexão e fragmentação em escala
continental.
Essas idéias consideram que dentro da América do Sul ainda há “ilhas”
ou regiões com precárias conexões entre si, até mesmo isoladas umas das outras. Na proposta “América do Sul 2020” (BID, CAF e Fonplata, 2003) cinco
ilhas são reconhecidas: Plataforma Caribe, que cobre o território litorâneo do
36
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Caribe colombiano e a maior parte da Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana
Francesa; Elevação Andina que é a vertente ocidental da Cordilheira dos Andes,
desde o istmo do Panamá até a Patagônia chilena; Plataforma Atlântica que vai
do noroeste do Brasil até a Patagônia argentina, incorporando o Paraguai, Uruguai e o Pampa argentino até a Cordilheira Andina; Enclave Amazônico Central,
formado pela área adjacente à cidade de Manaus e suas conexões fluviais com
outras cidades e o Oceano Atlântico; e o Enclave Amazônico do Sul que “abrange
o território entre a Cordilheira Andina do lado oeste e sul, a Floresta Amazônica ao norte e o Pantanal ao este, pertencente ao Peru (Departamento de Madre
de Dios), Brasil (Estados do Acre e Rondônia) e Bolívia (Departamentos de
Beni, Pando, Norte de La Paz e Santa Cruz)”.
Então, a integração é vista como “pontes” que deveriam conectar
essas “ilhas”. Essas pontes são chamadas “Eixos de Integração e Desenvolvimento” (IED), um conceito chave na plataforma da IIRSA. Esses eixos
organizam o território continental em “faixa multinacionais que concentram
fluxos de comércio atuais e potenciais”, onde se pretende “estabelecer um
padrão mínimo comum de qualidade de serviços de infra-estrutura de transportes, energia e telecomunicações, para apoiar as atividades produtivas específicas” de cada um. Supostamente, esses IED facilitarão “o acesso a zonas
de alto potencial produtivo que se encontram atualmente isoladas ou subutilizadas devido à deficiente oferta de serviços básicos de transporte, energia
ou telecomunicações” (BID, CAF e Fonplata, 2003).
Esta idéia de “ilhas” e conexões entre elas não é nova. Para fins desta
análise sobre as IFRs é importante ressaltar que o BNDES tinha uma proposta similar. Entre seus expoentes mais conhecidos, é necessário mencionar
Carlos Lessa, um economista que foi presidente do banco de 2002 a 2004 e,
particularmente, Darc Costa, que ocupou a vice-presidência em 2003 e 2004
(atualmente é conselheiro da Escola Superior de Guerra do Brasil). Costa é
autor de vários documentos que explicitam seu apoio à IIRSA, ao Gasoduto
do Sul e, inclusive, há idéias ainda mais extremas como conexões entre ba-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
37
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
cias hidrográficas, complexas redes de ferrovias, etc. Costa identificou suas
próprias “ilhas” que eram sete grandes regiões: Litoral atlântico; Altiplano
brasileiro; Bacia do Prata; Cordilheira; Litoral Pacífico; Bacia Amazônica, e
Orinoco/Caribe (Costa, 2005). Por sua vez, também postula que a integração
seria vincular essas ilhas por meio de “conexões estratégicas”.
Os planos nacionais em infra-estrutura idealizados no Brasil mantêm uma lógica similar, já que identificam áreas isoladas que devem ser incorporadas aos processos produtivos em “Eixos Nacionais de Integração
e Desenvolvimento” (ENID). Essas posturas podem ser encontradas, no
mínimo, nos planos plurianuais do governo federal de 1996-1999, 2000-03 e
2004-07 (Verdum, 2007). Esses ENID servem de corredores de transporte
multimodais, permitem incorporar novas áreas com fins produtivos e consolidam a presença e os interesses do Brasil em escala de América do Sul, pois
estes eixos continuam nos países vizinhos.
Este breve sumário indica que a perspectiva que reduz a integração a
uma interconexão entre países para promover o comércio não só não é uma
idéia nova, mas também é defendida em vários locais. Todas essas coincidências explicam a persistência da IIRSA. Porém, a despeito das diferenças
que possam existir, citemos, por exemplo, aquelas entre Santiago do Chile e
Caracas que, apesar de serem capitais, defendem a importância de construir
novas estradas, aumentar o número de travessias internacionais e melhorar as
conexões de energia, como meio de promover o comércio exterior entendido
como motor fundamental de desenvolvimento.
As semelhanças dos planos internos do Brasil com os planos da
IIRSA explicam o forte respaldo desse governo a essa iniciativa e o compromisso financeiro do BNDES. Esta estreita relação e as grandes superposições podem ser interpretadas sustentando que os planos brasileiros de
integração se expandem na IIRSA, ou que a IIRSA incorpora muitas das
idéias brasileiras sobre a integração (consulte Carvalho 2006a, e Verdum,
2007). Finalmente, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da se-
38
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
gunda administração Lula da Silva segue no mesmo sentido (Iglesias et al.,
2007). Inclusive, um relatório recente encaminhado pela CEPAL reconhece
que a IIRSA corresponde a um interesse próprio do Brasil (Cerqueira Antunes, 2007).
Atualmente a IIRSA considera oito EIDs: (i) Mercosul - Chile;
(ii) Andino; (iii) Inter-oceânico Central; (iv) Amazonas; (v) Escudo Guianês (Venezuela – Brasil – Guiana - Suriname); (vi) Peru – Brasil - Bolívia;
(vii) Capricórnio (Porto Alegre –Assunção – Jujuy - Antofagasta); (viii) Sul
(Talcahuano-Concepción-Neuquén-Bahía Blanca); e aí se soma a Hidrovia
Paraná Paraguai. Nesta ampla carteira de projetos, é necessário advertir que
nos países do Cone Sul já existe uma rede básica de transporte e interconexão
energética e, por isso, os empreendimentos estão orientados à sua manutenção, melhoras e em alguns casos, ampliações. Mas a situação é diferente nas
zonas tropicais, especialmente na faixa andino-amazônica, onde essas conexões não existem ou são mínimas. No entanto, a prioridade na construção
de novos empreendimentos envolve o Brasil, a Bolívia, Colômbia, Equador,
Peru, Venezuela, Guiana e Suriname. Nesses casos é necessário construir
estradas a partir do zero em alguns casos, instalar novas pontes e estabelecer
interconexões energéticas.
Podemos citar exemplos dessas duas situações. No caso do Cone
Sul, há a alternação de obras de ampliação de estradas, interconexões elétricas e expansão da rede ferroviária. Mas na zona tropical há vários projetos
onde a construção de estradas parte do zero ou de caminhos precários, e são
construídas pontes onde não havia. Um bom exemplo são as obras da conexão de estradas do Acre (Brasil) a Madre de Dios (Peru), e dali cruzando os
Andes até alcançar os portos no Oceano Pacífico (a obra é conhecida como
“Estrada do Pacífico” no Brasil ou “Interoceánica Sur” no Peru). O empreendimento inclui estradas, novas pontes e inclusive conexões laterais com
diferentes localidades (figura 1). Os atuais projetos nacionais do Brasil e os
empreendimentos internacionais da IIRSA deste tipo colocam em sério risco
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
39
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
importantes zonas amazônicas, abrindo-as ao aproveitamento convencional,
de tipo extrativo (Iglesias et al., 2007). A Amazônia aparece como a “ilha” de
maior envergadura a ser “conectada”.
Uma vez que essas novas estradas dão acessibilidade a zonas isoladas, há pressão para instalar empreendimento energéticos (como, por exemplo, represas no Rio Madeira), mineração ou exploração petroleira (como em
vários locais da Amazônia peruana ou as tentativas de fazê-lo no Estado do
Acre) e usos agrícolas (desmatamento para conversão em áreas de pecuária
e agricultura). Uma vez instalados, os colonos e empresas começam a pedir
financiamento para promover a exportação.
Em todas as fases aparecem as IFRs. Em alguns casos, apóiam os
estudos de viabilidade e pré-investimento, depois financiam a execução do
projeto, seja por vias diretas (tanto empréstimos como apoio às garantias
nacionais), ou por vias indiretas (um caso notório é o financiamento das
empresas brasileiras pelo BNDES). Por fim, apóiam empresas exportadoras que usarão esses transportes (atuam em apoio ao comércio exterior do
BLADEX, CDB, BID e, mais uma vez, se destaca o Brasil, com o BNDES
e outros fundos). Entretanto, agora também financiam estudos e pesquisas
para contribuir com essas perspectivas.
Uma vez descrita essa estreita relação entre as IFRs e IIRSA é necessário se perguntar se o modelo de integração que expressam, com base
em “ilhas” e “interconexões”, serve a uma visão alternativa da integração? A
resposta deve ser negativa.
Na realidade, fica evidente uma postura convencional e reducionista
da integração, com metas essencialmente comerciais e ações convencionais.
As IFRs apoiando um estilo de integração regional que, em seus aspectos
centrais, continua concentrado na geração de acessibilidade a diferentes áreas
do continente para permitir a extração de seus recursos naturais e inserir seus
produtos nos mercados globais. Essas obras de infra-estrutura servem particularmente para se articular com os mercados globais, são funcionais para
40
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
economias muito dependentes de regiões de extração de recursos naturais
(tais como mineração, petróleo, soja, etc.) e as diferentes regiões se anexam
compulsivamente a essa dinâmica capitalista. As “interconexões” oferecem
acessibilidade para a entrada de maquinários e outros insumos, além de permitirem a escoação dos produtos extraídos até os portos de embarque. Em
alguns casos se ensaiam medidas que não passam de compensações de alguns
impactos negativos.
As IFRs assumem um papel funcional nessa estratégias, a alimentam
e reproduzem, sem dar apoio substantivo a outras expressões da integração
regional. O mesmo problema se repete com a estratégia da “transnacionalização” do capital brasileiro e sua estreita vinculação com a IIRSA, já que
seu resultado não é uma genuína integração, mas uma expansão empresarial
brasileira para os países vizinhos. Portanto, nos fóruns governamentais e nos
blocos de integração na América do Sul, todos concordam com maior ou
menor ênfase na IIRSA e a necessidade de interconexões.
A partir das esferas governamentais as vozes de alerta têm sido
muito escassas. Nesse sentido, é necessário recordar a carta do presidente
boliviano, Evo Morales, para a cúpula presidencial da Comunidade SulAmericana de Nações (Cochabamba, 2006). Nessa nota, Morales adverte
que a integração física deve estar a serviço dos povos e não ser somente
para exportação. Agrega, ainda, que é necessário “desenvolver a infra-estrutura viária, as hidrovias e os corredores, não tanto para exportar mais
ao mundo mas, sobretudo, para a comunicação entre os povos da América
do Sul respeitando o meio ambiente e reduzindo as assimetrias”. Neste
sentido, postula revisar IIRSA “para levar em conta as preocupações da
gente que quer ver estradas no marco de pólos de desenvolvimento e não
auto-estradas pelas quais passam os transportadores para exportação em
meio a corredores de miséria e um incremento do endividamento externo”
(Morales, 2006). A proposta de Morales não teve eco já que o programa da
IIRSA continua sob os mesmos preceitos.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
41
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Desafios e opções com as IFRs
As IFRs têm muitos desafios e algumas opções no contexto da integração sul-americana. Em primeiro lugar, o fato de as operações dessas
instituições se encontrarem essencialmente nas mãos dos próprios governos
latino-americanos oferece oportunidades importantes. Isso rompe com a
situação observada com as IFIs globais, onde o poder na tomada de decisão é assimétrico e se encontra, acima de tudo, nas nações industrializadas,
com papéis determinantes dos Estados Unidos ou da União Européia. Por
sua vez, nas IFRs as responsabilidades pelas decisões tomadas, seja em seus
aspectos positivos ou negativos, estão com os governos latino-americanos.
Também é importante ressaltar que o protagonismo dessas instituições aumenta cada vez mais, tanto por sua diversificação como pelo volume de
fundos que administram, gerando fluxos regionais de capital de grande importância. Por tanto, em segundo lugar, se os governos da América do Sul
decidissem avançar uma estratégia de integração regional alternativa, agora
contam com suas próprias instituições financeiras para colocar em prática
alguns de seus empreendimentos, o que oferece muitas oportunidades que
deveriam ser aproveitadas.
Contudo, atualmente as IFRs funcionam, em muitos aspectos, de
forma semelhante e nos mesmos ritmos que aqueles empregados pelas IFIs
convencionais. Embora várias invoquem compromissos sociais e ambientais, o conteúdo dessas metas e de suas aplicações é incerto e discutível.
Por exemplo, a CAF afirma que integra as variáveis sociais e ambientais,
conta com uma estratégia ambiental e inclui em suas operações critérios de
ecoeficiência e sustentabilidade (CAF, 2007). Por sua vez, o BNDES possui
um código de ética, avaliações ambientais e um mecanismo de informação
sobre suas operações. No entanto, esses propósitos nem sempre se expressam em diretrizes específicas e detalhadas sobre a incorporação desses
aspectos às operações de cada instituição. No caso, vários projetos financiados pela CAF e pelo BNDES apresentam claras tensões e contradições
42
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
sobre a dimensão social e ambiental. Em outros casos, como acontece com
o BANDES, os procedimentos não são claros, a informação ao público é
insuficiente e as metas institucionais não incorporam adequadamente os
objetivos nesses terrenos.
Nas situações onde houve tensões diante de alguns compromissos
sociais e ambientais, elas não conseguiram impor restrições ou modificações
substanciais nos projetos. Por exemplo, a CAF inovou ao incorporar ensaios de Avaliações Ambientais Estratégicas Rápidas, mas até agora não teve
conseqüências práticas substantivas que sejam palpáveis. Ainda há enormes
vazios em questões que são essenciais para garantir um desenvolvimento sustentável como, por exemplo, diretrizes de operação e mecanismos de avaliação em temas chaves, como povos indígenas, ambiente, livre acesso à informação, procedimentos para levar denúncias ou queixas, sistemas de revisão,
incorporação de análises verdadeiramente multidisciplinares, etc.
Algumas IFRs chegaram a aplicar mecanismos que lembram as exigências impostas pelo Banco Mundial ou pelo FMI. Por exemplo, o BNDES
exige e consegue algumas condicionalidades e vantagens em alguns projetos
na Argentina. Nesses acordos, embora o banco conceda fundos, foi exigido
que o Estado argentino desse garantias a seus empréstimos e conseguiram
que os contratos da Petrobrás pudessem cobrar tarifas mais altas e até aplicaram mecanismos para compensar as flutuações em cotizações das moedas
ou do preço do gás. Em operações desse tipo, o BNDES também atua conjuntamente com empresas transnacionais, tais como Pan American Energy,
Total Austral, e Wintershall Energy.
Nas IFRs as consultas com a sociedade civil são insuficientes, ou têm
um papel subsidiário que não consegue influenciar na tomada de decisões
dos financiamentos. O acesso à informação é difícil, o ciclo dos projetos é
mais difuso e os mecanismos aplicados para avaliar nem sempre são claros.
Tudo isso faz com que as várias dimensões das IFRs sejam opacas. Chegamos à situação em que alguns temas as IFRs latino-americanas parecem mais
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
43
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
atrasadas do que os dos IFIs. Isso pode se dever ao fato que as IFIs foram
objeto de muitas campanhas durantes as últimas décadas.
Também é necessário mencionar a perda de controle de algumas
instituições à medida que se somam países extra-regionais (por exemplo, algumas nações européias e a China aparecem em algumas IFRs). Se este processo se acentuar, algumas instituições terminarão por reproduzir a situação
da tomada de decisão assimétrica, assim como acontece no BID.
A confusão entre “interconexão” e “integração” que está sendo divulgada e reproduzida pelas IFRs junto a outros atores, impede de avançar
em propostas alternativas, onde seja dada mais relevância aos aspectos sociais
e ambientais. Infelizmente, ainda não existe um consenso sobre o tipo de integração que os diferentes governos desejam, já que alguns apostam em continuar com o caminho da liberalização unilateral dos mercados globais (por
exemplo, Chile, Peru e Colômbia), enquanto outros desejam manter os blocos
de integração como fóruns políticos (Argentina e Brasil), enquanto a Venezuela lidera uma tentativa com base na cooperação e assistência financeira (embora
muito dependente de sua renda do petróleo). Contudo, além dessa diversidade
de posturas, na verdade todos os governos têm uma visão tradicional que privilegia interconexões físicas, cuja expressão mais notória é a IIRSA.
Também é necessário reconhecer que no Brasil existe uma discussão
sobre o papel que o país deve desempenhar em nível regional e global. Essa
discussão conta não somente com uma história relevante, mas também é substantiva e parece se cristalizar em algumas idéias básicas acordadas em nível nacional e que são defendidas por grupos da burocracia tecnocrata tanto no setor
estatal quanto empresarial. Aos olhos dos países vizinhos, isso se expressa na
existência de mais coincidências do que diferenças sobre esses temas entre os
governos de F.H. Cardoso e de Lula da Silva. Essa persistência, junto aos enormes recursos disponíveis no BNDES e à própria debilidade das discussões ou
posturas alternativas em outros países, faz que a posição brasileira tenha fortes
influências nos caminhos seguidos na Américas dos Sul.
44
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Essa situação gera enormes desafios para as organizações da sociedade civil. Inclusive em outros governos progressistas, é evidente que substituir o capitalismo transnacionalizado dependente de corporações originadas
de países industrializados, por um capitalismo brasileiro, argentino ou chileno, não implica mudanças substanciais nas relações de poder e nos estilos de
desenvolvimento. Da mesma forma, renunciar uma integração multidimensinal para cumprir com as interconexões seria aceitar uma triste derrota nas
demandas cidadãs por “outra integração”. Assim, continua sendo necessário
avançar muito mais na mudança dos estilos de desenvolvimento e gerar uma
integração alternativa onde as IFRs desempenham outros papéis.
A descrição de uma proposta de integração alternativa foge aos fins
deste artigo, mas é necessário colocar que as análises realizadas na CLAES
mostram um “regionalismo autônomo”. Alguns de seus atributos são a
autonomia diante da globalização, enfocar o desenvolvimento em função
das necessidades humanas e da qualidade de vida diante do crescimento
econômico, promover a articulação e complementação produtiva, gerar
marcos legais supranacionais e desenhar estratégias de desenvolvimento
regionais. Os passos para tanto com certeza necessitarão da cooperação de
instituições financeiras próprias, já que financiará muitos empreendimentos, inclusive em infra-estrutura e energia. Mas a diferença substancial é que
esses empreendimentos são orientados, primeiramente, a resolver nossos
próprios problemas de justiça social e ambiental, mais do que a se incorporarem aos mercados globais.
Por outro lado, as IFRs não podem ser meros canais para repassar
os fundos globais e não podem financiar os mesmos projetos que os bancos
convencionais, gerando altos impactos sociais e ambientais, sob um escudo
que cobre sua operação e os mecanismos de avaliação, servindo a uma integração que se baseia em planos como a IIRSA. Seguindo esse caminho,
é necessário que haja mudanças substantivas nas IFRs como, por exemplo,
explicitar e melhorar os aspectos econômicos, sociais e ambientais nessas ins-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
45
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
tituições, melhorar substancialmente o acesso à informação e à participação
cidadã e estabelecer mecanismos mais transparentes. Essas e outras mudanças, de qualquer forma, continuarão a precisar transformações radicais nos
estilos de desenvolvimento e nas concepções sobre integração.
Referências
Altmann B., J. 2007. Dossier: ALBA. Alternativa Bolivariana para América
Latina y el Caribe. Cuadernos Integración América Latina, FLACSO, San
José, Costa Rica.
BID, CAF e Fonplata. 2003. América del Sur 2020. Una visión estratégica de
la integración física regional. IIRSA, BID, CAF e FonPlata, Santa Cruz.
BLADEX. 2007. Bladex annual report 2007. Bladex, Panamá.
CAF. 2007. La CAF e el medio ambiente. CAF, Caracas.
CAF. 2008. Relatório anual 2007. CAF, Caracas.
Carvalho, G. 2006a. La integración Sudamericana e el Brasil: el protagonismo
brasileño en la implementación de la IIRSA. ActionAid, Rio de Janeiro.
Carvalho, G. 2006b. IIRSA: os ricos da integração. Orçamento & Política
Socioambiental, INESC, 5(17): 1-11.
Cerqueira Antunes, J.A. 2007. Infra-estrutura na América do Sul: situação
atual, necessidades e complementaridades possíveis com o Brasil. CEPAL,
Escritório Brasil, LC/BRS/R.186, Brasilia.
Costa, D. 2005. Estrategia nacional. La cooperación sudamericana como camino para la inserción internacional de la región. Prometeo Libros, Buenos
Aires.
Fonplata. 2008. Memoria anual 2007. Fonplata, Santa Cruz.
46
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
As Instituições Financeiras e a Integração na América do Sul
Gudynas, E. 2005a. Dos caminos distintos: tratados de libre comercio e procesos de integración, pp 41-62. En: “TLC. Más que un tratado de libre comercio” (A. Acosta e F. Falcón, comps). ILDCIS e Flacso Equador, Quito.
Gudynas, E. 2005b. El “regionalismo abierto” de la CEPAL: insuficiente y
confuso. Observatorio Hemisférico, Programa de las Américas, 28 setiembre
(www.ircamericas.org)
Gudynas, E. 2008. Una introducción a las IFRs: instituciones financeiras regionales en América Latina. Programa de las Americas, 15 julio (www.ircamericas.org)
Iglesias, M.P., E. Coffaci de Lima e M. Barbosa de Almeida. 2007. Os riscos
da IIRSA e do PAC para a Amazônia. Orçamento & Política Socioambiental,
INESC, 6(20): 1-12.
Morales, E. 2006. “Construyamos una verdadera Comunidad Sudamericana
de Naciones para ‘Vivir bien’”. Carta del Presidente Evo Morales a los Mandatarios e Pueblos de Sudamérica; documentos de la Cumbre Sudamericana
de Naciones en Cochabamba.
Romero, M.J. 2008. Etapa de definições sobre o Banco do Sul. ALAI, 24 de
julio (alainet.org/active/25401)
Verdum, R. 2007. Infra-estructura e políticas territoriais do Brasil no contexto da integração sul-americana. Programa das Américas, Relatório Especial,
16 de novembro (www.ircamericas.org)
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
47
48
A IIRSA em uma encruzilhada:
indicativos de mudança
e implicações para a advocacy
Vince McElhinny
Bank Information Center
BICECA Gerente de Projeto
[email protected]
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
A Iniciativa de Integração de Infra-estrutura para a América do Sul (IIRSA) foi criada em 2000 por doze governos neoliberais na América do Sul, em
resposta ao último arranjo da econômica global e em face da agenda de reformas políticas dominada pelos países do Norte, caracterizada por políticas
de ajuste e pela proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA). A IIRSA foi criada quando a região da América Latina detinha 80%
de todos os empréstimos não liquidados do FMI (US$ 81 bilhões) e o BID e
o Banco Mundial supriam 75% de todo o débito multilateral.
Houve muitas mudanças em oito anos. A IIRSA agora conta com
o apoio de metade dos governos que chegaram ao poder com base em plataformas de crítica aberta ao neoliberalismo e à tutela das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs). A prosperidade econômica regional reduziu
bastante a dependência de empréstimos do Banco Mundial e do BID. Em
toda a América Latina, apenas dois países ainda mantinham Acordos Stand-by
com o FMI em 2008 e a dívida com o Fundo caiu para menos de US$ 700
milhões. Surgiram novos atores financeiros nacionais e sub-regionais, como
a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dobraram seu volume de empréstimo
à custa dos IFIs do norte. O espaço político para os governos da IIRSA se
expandiu com o término da ALCA e o avanço da ALBA, UNASUL e Banco
do Sul, como um incentivo para modelos alternativos de integração.
Desde 2005, um número crescente de líderes latino-americanos
anuncia sua maior independência dos laços da dependência da política neoliberal. A atual crise financeira nos EUA e a contaminação dos mercados
europeus só aprofundaram o descrédito do antigo conselho das IFIs de privatizar e liberar os mercados de capital e comercial. A prosperidade e a ideologia reduziram a demanda por empréstimo das IFIs e os empréstimos para
desenvolvimento mudaram para outros agentes de crédito. Essas mudanças
simbólicas e substantivas ocorridas na região intensificaram a competição
pelo controle sobre o modelo de integração na América do Sul.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
51
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Desvinculada de uma agenda política orientada ao norte, a IIRSA
se encontra em uma encruzilhada crítica. No âmbito do principal patrocinador institucional – o Banco Interamericano de Desenvolvimento e um
número crescente de governos sul-americanos, aumenta a oposição à IIRSA como o modelo adequado para a integração regional. À medida que a
UNASUL reúne forças como o fórum preferido para os debates políticos de
integração, o BID deve ratificar uma extensão de seu mandato de 10 anos
para continuar a participar como um assessor técnico à IIRSA até o final de
2009. Sustentado por uma avaliação interna, que criticou a gestão da IIRSA
pelo banco, há um apoio cada vez maior em nível de Diretoria do BID para
que corte seus laços com a IIRSA.
A sociedade civil tem sido excluída do processo da IIRSA e há
uma visível deformação do debate sobre integração regional para um debate
sobre como colonizar os recursos naturais da região com o mínimo de interferência pública.
Este capítulo analisa as tendências do financiamento para a IIRSA,
a crise da liderança das IFIs na IIRSA e as implicações para o trabalho de
advocacy da sociedade civil visando influenciar os debates de integração nos
próximos anos.
I. Tendências no financiamento para a IIRSA
Os dados publicados pelo Comitê de Coordenação Técnica da IIRSA em dezembro de 2007 (veja a Fig. 1) revela que dos US$ 21 bilhões em investimento mobilizado para financiar a carteira prioritária de projetos da IIRSA
até o momento (cerca de US$ 69 bilhões), o BID e o CAF representam apenas
de US$ 1.5 a US$ 1.8 bilhões (ou 7% a 8% dos compromissos totais de financiamento) em comparação aos 62% alocados pelos orçamentos nacionais dos
52
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
12 países membros da IIRSA e 21% pelo respectivo setor privado1. A importância do financiamento do BID e do CAF na IIRSA não pode ser subestimada. As duas instituições participam do Comitê de Coordenação Técnica, que
tem subsidiado as atividades de coordenação da IIRSA nos últimos oito anos.
O papel recente das IFIs no financiamento da integração de infra-estrutura na
América do Sul também pode ser melhor visualizado na perspectiva de atração
de somas muito maiores de financiamento público e privado para a IIRSA e, de
forma geral, para projetos que estão fora da carteira oficial da IIRSA.
Figura 1
IIRSA: Fontes de Financiamento da Cartera em Implementação ($US 21 mil milhões, 2007)
Em 2007, o período de estabilidade política e prosperidade econômica começou a induzir uma aceleração no investimento de infra-estrutura pelos governos membros da IIRSA. As reservas acumuladas, os
maiores fluxos de investimento estrangeiro nos setores extrativistas e a melhoria dos ratings de crédito contribuíram para uma diversificação de opções
de financiamento para integrar a infra-estrutura. Neste novo contexto a
influência das IFIs na IIRSA agora está menos vinculada aos fluxos de financiamento. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Brasil,
1. Consulte “Avances en la Implementacion y Perspectivas 2010 presentation at the 9th Cuadro 7 – Fuentes de Financiamiento de la Cartera IIRSA 2003-2006,” Reunião Anual dos Diretores da IIRSA em Montevidéu, Uruguai,
em 4 a 5 de dezembro de 2007. http://www.iirsa.org
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
53
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
orientado por amplo financiamento do BNDES, exemplifica essa mudança
de financiamento na região.
1.1 Mudanças no empréstimo multilateral para a América Latina
Nos últimos 10 anos, a fonte de empréstimos multilaterais para a
América Latina tem mudado. O BID tem vivenciado a gradual erosão do seu
papel de principal provedor de crédito para a região e o empréstimo do Banco Mundial tem sido inconsistente. Mais surpreendente tem sido o rápido
aumento nos empréstimos da CAF no mesmo período. A Figura 2 mostra
que a CAF tem constantemente invadido os fluxos de empréstimo outrora
dominados pelo BID e pelo Banco Mundial. 2
Figura 2
IFI: Emprestimo para América Latina e Caribe, 1997-2007 ($US Mn)
2. O BID e o Grupo Banco Mundial incluem ramos de empréstimo ao setor privado (o antigo PRI e IFC,
MIGA) e de operações não reembolsáveis.
54
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
Em parte, o empréstimo do BID e do Banco Mundial diminuiu
desde 1999 por causa da restrição de crédito que seguiu à crise asiática, ficando em patamares relativamente estáveis de 2000 a 2006.
A CAF também teve uma redução de 33% nas aprovações de empréstimo entre 1997 e 1999, mas desde então seus fluxos de empréstimo na
América Latina aumentaram em 30% ao ano. Os dois principais motivos
para esse crescimento impressionante, especialmente desde 2004, têm sido a
expansão da composição da CAF e da base de capital, assim como a melhor
capacidade da instituição de comercializar seus empréstimos para a América
Latina em um período de excesso de liquidez.
Figura 3
IFI: Total de Empréstimos para ALC, 1997-2007
Para os empréstimos multilaterais cumulativos para a América
Latina nos últimos onze anos, o peso do Banco Mundial e do BID é digno
de destaque: 40% do total regional, contra 20% da CAF. (Figura 3). Contudo, quando comparamos os totais cumulativos para os triênios (1997 a
1999) e (2005 a 2007), a mudança para a CAF fica mais visível. (Figura 4).
Enquanto dois Bancos com sede em Washington tenham visto suas parcelas nos empréstimos para os países da América Latina cair (o BID perdeu
quase 20% da sua fatia multilateral regional) a CAF praticamente duplicou seu volume de empréstimo regional – o mais impressionante para um
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
55
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
mutuante sub-regional que teve apenas cinco grandes mutuários na maior
parte deste período3.
Figura 4
Tendências nos Fluxos de Empréstimo Multilateral para a Região Andina
O declínio do BID seria ainda mais intenso sem a surpreendente
recuperação em 2007, com empréstimos de cerca de US$ 9.6 bilhões. As projeções sugerem que o BID ultrapassará este nível em 2008. Envolvido em
um realinhamento controverso em grande parte o período de 2005 a 2007,
poucos esperavam que o BID alcançasse este aumento nos níveis de empréstimo. Alguns argumentam que o realinhamento e os volumes incrivelmente
maiores de empréstimo em 2007 refletem uma concorrência mais agressiva
com a CAF e uma conseqüente redução das salvaguardas - passando a poucas condições - para atender as demandas do país mutuário. Fica claro que os
dois concorrentes do norte caminham a passos largos para uma abordagem
de “sistemas de país”, que enfraquece as políticas de salvaguarda social e
ambiental e aceleram o lançamento de novos produtos (parcerias públicoprivado, garantias, empréstimos a governos sub-nacionais, linhas de crédito
condicionais) para responder ao crescimento da CAF.
3. As estimativas de empréstimo total não incluem outros bancos sub-regionais (BCIE, Fonplata) ou
bancos nacionais (BNDES, BANDES).
56
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
A concorrência CAF, BID, Banco Mundial é ainda mais perceptível nos cinco países andinos. (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela). De forma geral, a CAF aumentou os empréstimos para a região de cerca
de US$ 2 bilhões em 1999 para US$ 4,5 bilhões em 2007. (Figura 5).
Figura 5
CAF: Tendências nos Fluxos de Empréstimo para a Região Andina ($US Mn)
O BID é o segundo maior mutuante para os países andinos. Contudo, até 2007 a lacuna que separava a CAF do Banco Mundial e do BID
aumentou significativamente (Figura 6). 2003 se destaca como uma exceção
por causa do volumoso empréstimo (US$ 1.8 bilhões) concedido pelo BID
durante o primeiro ano do governo Uribe. Embora o empréstimo multilateral total para a região andina tenha praticamente dobrado, passando de cerca
de US$ 4,7 bilhões ao ano no final dos anos 90, para mais de US$ 8 bilhões
ao ano nos últimos anos, a CAF tem mantido sua posição dominante como
provedor de mais de 50% do financiamento externo para o desenvolvimento
(Figura 7). Nos últimos 10 anos, os membros fundadores, os países andinos,
foram os principais mutuários.4
4. Os estatutos da CAF proíbem que qualquer país membro pegue empréstimos superiores a 20% da
carteira total do Banco (CHECK).
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
57
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Figura 6
IFI: Empréstimos Aprovados para Região Andina ($US Mn)
Figura 7
IFI: Emprestimo para Região Andina, 1997-2007 ($US Mn)
A Colômbia tem sido a maior recipiendária líquida dos empréstimos, seguida pela Venezuela, Peru, Equador e Bolívia. Os membros não
fundadores – Brasil e Argentina – foram responsáveis por 9% e 5% respectivamente do empréstimo cumulativo desde 2001 (Veja a figura 8).
58
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
Figura 8
CAF: Emprestimo Aprovado por País, 2001-2007
Não é de surpreender que a CAF esteja rapidamente se transformando no detentor multilateral da maior dívida pública externa na região
andina. A parcela dos cinco países andinos na carteira ativa de empréstimo
da CAF é de US$ 8.267 bilhões (80%). Com o cancelamento total da dívida
para a Bolívia pelo BID, Banco Mundial e FMI de cerca de US$ 2,9 bilhões, a
CAF agora detém 57% de toda a dívida multilateral e aproximadamente 50%
de toda a dívida pública externa daquele país.
Para toda a região andina, a CAF detém 31% do débito multilateral
pendente, em comparação aos 42% do BID e 26% do Banco Mundial. Considerando o ritmo de empréstimos, a CAF logo se transformará no principal
credor dos países andinos. Esta mudança poderia ser ainda mais rápida se
outros países seguirem a liderança da Venezuela e pagarem antecipadamente
os débitos pendentes com o Banco Mundial e, possivelmente, com o BID, e
reconsiderarem novos empréstimos.
A lacuna entre os novos fluxos de empréstimo da CAF e o BID ou
Banco Mundial é maior na Venezuela, onde a CAF é responsável por 74%
de todo o empréstimo multilateral desde 1997. No Equador e na Bolívia, a
CAF domina dois terços do mercado multilateral. Na Colômbia e no Peru,
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
59
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
onde os mercados de dívida multilateral são os maiores entre as economias
andinas, a parcela cumulativa da CAF é de 36% e 44%, respectivamente.
Talvez o mais surpreendente destas comparações de país seja a Venezuela.
Enquanto as relações entre o governo Chavez e o Banco Mundial e o BID
se deterioraram desde 1999, a CAF concedeu mais de US$ 700 milhões em
novos empréstimos ao ano desde 2001 – principalmente para dois projetos
de hidrelétricas.
Tabela 3.1
Dívida Acumulada para as IFIs na Região Andina (US$ Milhões)
II. Brasil e o BNDES – guardiões emergentes para o planejamento
da integração regional
Um avanço recente é um aumento significativo no percentual dos
empréstimos da CAF para o Brasil, de 25%. Com o movimento brasileiro e
argentina para aumentar a participação e poder de contrair empréstimos na
Direção da CAF, a tendência da CAF de aumentar o empréstimo naqueles
dois países deve continuar. No entanto, o financiamento do BID e do Banco
Mundial no Brasil enfrenta maior concorrência no BNDES e nos bancos do
setor privado. Os empréstimos do Banco Mundial para o Brasil na última
60
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
década foram de cerca de US$ 1.6 bilhões ao ano. Os empréstimos do BID
para o Brasil também caíram de US$ 4,8 bilhões em 1999 para pouco mais
que US$ 500 milhões em 2006. Como o Vice-Presidente executivo do BID
explicou, uma das principais motivações por trás da reorganização do BID é
que o Banco “não é relevante no Brasil” 5. Desde 2006, o BID batalha para
emprestar mais para seus maiores clientes, com mais de US$ 5 bilhões em
potencial e uma chance de emprestar metade daquele montante em 2008.
Historicamente, desde 1961 o Brasil representa mais de 1/5 do empréstimo
total do BID e é atualmente o maior devedor do Banco (US$ 13,3 bilhões
em dezembro de 2007). Acima de tudo, o Brasil fortaleceu sua influência
sobre a gestão do BID onde, após o realinhamento institucional, o Brasil
passou a liderar a vice-presidência com mais poder (Países), a Divisão de
Infra-estrutura e diversos postos do alto escalão.
Figura 9
Empréstimo MDB vc BNDES no Brasil, 1997-2007
O Brasil é um bom exemplo de como a prosperidade econômica
retirou as IFIs do espaço político que elas uma vez dominaram, mas, ao mesmo
5. Veja o artigo do BIC sobre o Realinhamento do BID, http://www.bicusa.org/en/Article.3340.aspx
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
61
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
tempo, intensificou os desafios intra-regionais para consolidar uma ordem regional alternativa. Em 2005, o Brasil orgulhosamente se declarou livre da tutela
do FMI e do Banco Mundial com o pagamento antecipado de US$ 15,5 bilhões da dívida pendente com as duas instituições. Em junho de 2008, as reservas estrangeiras do Brasil de aproximadamente US$ 200 bilhões superaram a
dívida externa do país, emitindo uma outra declaração de liberação do Tesouro
brasileiro, que o país havia se transformado em um credor líquido. O BNDES
agora não só empresta cerca de oito vezes do total combinado das IFIs por ano
(US$ 35 bilhões em comparação a cerca de US$ 4,5 bilhões dos empréstimos
do Banco Mundial e do BID juntos), ele também concede empréstimos fora
do Brasil (US$ 4.2 bilhões em empréstimos de 2007 a 2008).
O BNDES administrará um Fundo para a Amazônia de muitos
bilhões de dólares para estabelecer prioridades de conservação – leia-se,
superou a influência dos Fundos de Investimento Climáticos do Banco
Mundial para os quais países doadores como o Japão, os EUA e o Reino
Unido garantiram mais de US$ 6 bilhões.
6
O Grupo Banco Mundial ca-
minha a passos largos para se posicionar como a agência líder na mitigação
e adaptação da mudança climática. O grupo tem atraído bilhões de dólares
para seu novo Fundo de Investimento Climático (CIF) que daria financiamento privilegiado para investimentos e reformas políticas voltados à tecnologia “limpa”. Criou recentemente o Fundo de Parceria para Carbono
Florestal (FCPF) que operacionalizará o mecanismo REDD – comprando
as emissões evitadas em conseqüência de menor desmatamento no país
“vendedor”, utilizando recursos agrupados dos “compradores” (investidores privados e governos).
6. O Fundo Amazônico proposto promoverá ações em quatro áreas: 1) fortalecimento de áreas protegidas, 2) fortalecimento de instituições, 3) atividades de desenvolvimento sustentável na Amazônia, 4)
aumento do emprego de ciência e tecnologia para a proteção sustentável à biodiversidade. O BNDES
acrescentou que a Noruega confirmou uma contribuição inicial de US$ 100 milhões, mas investirá US$
1 bilhão na próxima década. O BNDES relatou que as contribuições bilaterais ao Fundo Amazônico
podem chegar a US$ 21 bilhões em 10 anos.
62
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
Tanto o CIF quanto o FCPF geraram bastante controvérsia, onde
o governo brasileiro e muitos grupos se opuseram à locação desses fundos
climáticos por conta do histórico do Banco Mundial de financiamento de
projetos de combustível fóssil, enquanto outros questionaram se a inserção
das florestas nos mercados de carbono fará pressão sobre os direitos à terra
dos povos indígenas. Para bloquear o Banco Mundial, o Brasil e o BNDES
criaram rapidamente um Fundo Amazônico soberano que chegaria a US$ 1
bilhão no final do ano.
Talvez o mais importante seja que o BNDES agora está encomendando seus próprios estudos para reescrever cerca de 60 regras de investimento em sub-setor - uma tarefa que com certeza seria solicitada aos
consultores do Banco Mundial e do FMI há cinco anos. O Banco Mundial
e o BID agora se vêem forçados a trabalhar às margens do mercado brasileiro que está em franca expansão. O Banco Mundial assumiu, em sua
recente Estratégia de Parceria do País, que cessaria seus esforços para ser
um “governo em espera”. 7
O sucesso econômico do Brasil nos últimos 5 anos é aclamado
por observadores financeiros e políticos.
8
Alguns chegaram até mesmo a
declarar que a estratégia pragmática do Brasil para integração regional como
vencedora sobre a alternativa venezuelana da ALBA, que é muito mais estridente e de confronto.9
Sem desmerecer os feitos do Brasil, ainda é necessário superar
grandes desafios. Quando comparado a economias asiáticas como a Coréia
do Sul, a taxa real de crescimento econômico per capita tem sido baixa e,
portanto, fica muito atrás (U$ 22.000 de PIB per capita em 2007 em com7. World Bank 2008 Country Partnership Strategy with Brazil. Aproximadamente 50% dos empréstimos preparados para o Brasil em 2007 nunca foram aprovados. O atual CPS não tem grandes empréstimos
planejados para o governo federal.
8. Veja, por exemplo, o FT Special Report on Brazil (julho de 2008).
9. Veja Simon Romero e “Brazil Quietly Eclipses Venezuela,” NYT julho de 2008.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
63
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
paração a cerca de US$ 7.500 no Brasil). A mudança do país para financiamento público e doméstico para o Avança Brasil e o Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC) e outros instrumentos de incentivo elevaram a dívida
interna a aproximadamente três vezes a dívida externa, ou US$ 775 bilhões.
Os pagamentos do serviço da dívida até agora prevalecem sobre o investimento público em saúde e educação. 10 Apesar dos consideráveis incentivos,
o crescimento da produtividade e do investimento do setor privado na infraestrutura necessária tem desapontado.
As negociações políticas para consolidar o UNASUL e lançar o
Bando do Sul também exemplificam os passos únicos do Brasil e de outros
líderes sul-americanos para oferecer vantagens econômicas à pedra fundamental de algum acordo institucional alternativo em relação às iniciativas inconsistentes e criticadas dos EUA e das IFIs. As duas iniciativas refletem
princípios anti-IFIs, mas têm lutado para conciliar as variações nas perspectivas entre os próprios líderes sul-americanos sobre em quais aspectos esse
marco deve se distinguir do Banco Mundial e do FMI. Quase dois anos
depois das negociações terem começado de fato, o Banco do Sul ainda não
aprovou sua primeira operação.
Por toda a solidariedade professada em quase uma década de reuniões entre os líderes sul-americanos, o comércio intra-regional não cresceu
muito (US$ 72 bilhões em 2006), se comparado aos US$ 180 bilhões totais
do comércio. 11 Além disso, uma dependência em pagamentos elevados mas
baixo valor agregado das exportações dos produtos primários contribuiu
pouco para transformar a produtividade econômica regional. Conseqüen-
10. Gabriel Trautman (July 2008) “Brazilian Public Debt: Who owes who?” Institute of Alternative Policies for
the Southern Cone (PACS). As estimativas atuais da dívida externa do Brasil são subestimadas, segundo
o autor, pois excluem a dívidas das empresas multinacionais na forma de empréstimos entre empresas
(cerca de US$ 50 bilhões).
11. Em 2005, as exportações latino-americandas e caribenhas para a Ásia-Pacífico totalizaram US$ 48,5
bilhões, equivalente a 9% do total das exportações latino-americanas. No mesmo ano, as importações asiáticas na região totalizaram US$ 97.1 bilhões, representando 20.5% do total das importações. (CEPAL)
64
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
temente, a lacuna de crescimento e competitividade entre as economias da
América Latina e da Ásia continuou a aumentar. 12
As assimetrias intra-regionais também estão se tornando mais pronunciadas. O boom no preço das commodities (5-7x maior que a média depois
da 1a guerra mundial) trouxe um boom no preço dos alimentos (ou, mais
precisamente, um retorno à média de preços dos alimentos no pós guerra).
No caso da América Latina, os pobres sofrerão mais, destruindo os recentes
e modestos ganhos em pobreza e redução de desigualdades. A Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) das Nações Unidas
estimou que os choques dos preços de alimento aumentariam a pobreza extrema em 10 milhões de pessoas em 2008, a despeito do rápido crescimento
econômico. 13 São números dramáticos que representam mais da metade da
redução da pobreza extrema que ocorreu no boom econômico recente de
2004 a 2007.
O impacto dos altos preços dos alimentos e do combustível se
fará sentir de forma desigual na América do Sul, onde o Brasil e a Argentina
se beneficiarão mais como exportadores de alimentos, enquanto o restante
da região poderia perder. O impacto da mudança climática na América Latina
também está ficando mais evidente, já que o desafio do desenvolvimento
recairá desproporcionalmente sobre os mais pobres e pode exacerbar as rivalidades regionais. A falta de um progresso mais significativo para lidar com
essas desigualdades entre os ricos e os pobres, assim como entre os países,
restringirá cada vez mais a capacidade da América do Sul de transformar as
atuais oportunidades econômicas e políticas em ganhos duráveis, relativos às
elites da região e ao resto do mundo.
Os desafios do UNASUL para superar as disparidades econômicas
profundamente enraizadas foram enfatizados na recente resposta de emer-
12. Ref. BID “All that glitters is not gold”
13. O’campo CEPAL (Mar 2008)
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
65
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
gência para a violência galopante na Bolívia. Os governos regionais, como
a Argentina, Brasil, Chile, Equador e Venezuela, a Comunidade Andina de
Nações e o MERCOSUL não demoraram em condenar a violência e enfatizaram o papel provocativo dos chefes de polícia da região “Media Luna”.
A UNASUL convocou uma reunião de emergência alguns dias depois do
massacre de agricultores desarmados em Pando para dar apoio ao governo
Morales, enviando uma comissão para investigar o crime e ajudar a mediar o
conflito. O Brasil visivelmente desempenhou um papel central na orquestração da resposta da UNASUL.
Contudo, por trás dos gestos retóricos de apoio, a UNASUL talvez
agora enfrente seu primeiro teste como um espaço alternativo deliberativo
para as raízes dos desafios postos à América do Sul que giram ao redor dos
privilégios das elites econômicas. O que emerge da crise boliviana é uma
antecipação do que a UNASUL pode fazer para prevenir ou mitigar a intervenção dos EUA na instabilidade regional. Assim, a crise põe em relevo
as diferenças nas estratégias diplomáticas e de desenvolvimento do Brasil e
da Venezuela em relação aos Estados Unidos, assim como os desejos mais
ambiciosos de mudança entre a população da região. Depois de meses de
cobertura positiva da mídia e no salto de um aumento anunciado do crescimento econômico, o Presidente Lula da Silva mais uma vez se vê emaranhado nas mais complexas ameaças internas e externas à soberania da Bolívia (e
ao poder regional crescente do Brasil).
Um exemplo dessas contradições internas é o fato de o governo
do Brasil, em particular, haver combinado respostas para a crise. O governo
brasileiro preparou um plano de evacuação para seus cidadãos nas regiões de
batalha da Bolívia e aconselhou àqueles que pretendiam ir para aquelas regiões que cancelassem suas visitas. Principalmente nas terras baixas da Bolívia,
o Brasil foi associado à impunidade exercida pelas autoridades provinciais
devido à grande presença de proprietários de terra e madeireiros brasileiros
66
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
na área. O governo boliviano informou que entre os assassinos havia brasileiros associados aos sindicatos de tráfico criminoso no Brasil, que fugiram
para aquele país.
Na 6a feira, 12 de setembro, uma declaração do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, sugeriu que se as exportações de
gás da Bolívia para o Brasil não fossem estabilizadas (um país que depende
da Bolívia para 50% da importação de gás), o governo se veria forçado a negociar com os governadores da região de Media Luna. O Ministro das Minas
e Energia, Edison Lobão, argumentou que a instabilidade na Bolívia não
passava de um pretexto para acelerar os planos do Brasil de construir 50 usinas nucleares no futuro. Não está claro como essas declarações do primeiro
escalão apoiaram um companheiro de luta.
Claramente aliado com os interesses econômicos ilícitos do Brasil,
o prefeito de Pando, acusado de ser autor intelectual do massacre, Leopoldo
Fernandez representa um modelo para o tipo errado de integração regional
que as iniciativas como a Iniciativa para Integração Regional da Infra-estrutura na América do Sul (IIRSA) só reforça, ao invés de substituir. Depois
de oito anos construindo o caminho para promover a integração regional e,
por sua vez, o desenvolvimento de populações isoladas, o massacre de Tres
Barracas apenas pontua a incapacidade da IIRSA em lidar com obstáculos
reais de desenvolvimento em regiões de fronteira sem lei, como Leopoldo
Fernandez. Além disso, a fraca presença do governo conspira para perpetuar
os enclaves de pobreza e injustiça. Assim, nos perguntamos se as novas rodovias, financiadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
e pela Corporação Andina de Fomento (CAF), em construção em Pando e
planejadas para ligar a região aos mercados distantes (Corredor Norte) vão
descarrilar ou darão continuidade a essa tendência perversa.
A Bolívia continua a representar um teste para a direção da América Latina em relação aos Estados Unidos e à UNASUL.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
67
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
III. A IIRSA em crise
Uma avaliação interna recente do BID sobre a tão falada Iniciativa para Integração em Infra-estrutura da América do Sul, IIRSA, questionou o
impacto de oito anos de esforços para promover uma maior integração de
infra-estrutura nos setores de transporte, energia e telecomunicações na
América do Sul. O relatório critica a falta de claros avanços na profunda
integração, que vão além da pavimentação de mais rodovias e do mapeamento dos corredores comerciais. A lacuna entre a América do Sul e o
resto do mundo é um grande referencial que a qualidade da infra-estrutura
aumentou ao invés de diminuir. Nos dois casos, o relatório conclui que os
esforços autônomos de integração dos líderes da América do Sul geraram
resultados bastante insuficientes.
O relatório do Escritório de Avaliação e Supervisão do BID, Evaluation of the IDB Action in IIRSA (RE-338) é bastante crítico em relação à
participação do Banco na IIRSA e sobre questões da sobrevivência da IIRSA
além do atual mandato do Banco até 2010.
14
O relatório foi encomenda-
do pela Diretoria do BID e foi iniciado em setembro de 2007. Uma versão
preliminar do relatório foi submetida à Diretoria e à Gerência do Banco em
março de 2008. Na avaliação, alguns comentários gerenciais (RE-338-1) foram incluídos, mas as principais críticas continuam:
• Oito anos depois da concepção da IIRSA, o BID não tem objetivos
claros de integração para sua participação no Comitê de Coordenação Técnica ou para seus 14 projetos IIRSA.
• Depois de 8 anos, a IIRSA não tem uma base de dados oficial e
completa para os projetos, que permita um mecanismo confiável de
rastreamento de financiamento ou resultados.
• O BID não integrou a IIRSA a seu processo de tomada de decisão
14. Escritório de Avaliação e Supervisão do BID (OVE) (abril de 2008) IDB Actions in IIRSA. Washington, D.C.: O Banco Interamericano de Desenvolvimento. http://www.iadb.org/ove/. Consulte também
o documento Management Response.
68
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
operacional geral de país ou regional, porque o Banco não tem propriedade suficiente da iniciativa.
• O BID não tem capacidade de dizer quais projetos IIRSA obtiveram
maior integração ou se os projetos IIRSA diminuíram as assimetrias
regionais ou locais.
• A IIRSA teve um desempenho fraco na maioria dos indicadores
relevantes (aumento do comércio intra-regional, melhores índices
de qualidade da infra-estrutura, mais parcerias público-privado para
infra-estrutura, quase nenhuma adoção das ferramentas de planejamento da IIRSA por parte dos governos membros, pouca criação de
novos e significativos negócios para o BID).
• O relatório afirma a incapacidade da IIRSA de incorporar a devida
participação da sociedade civil e enfatiza o ocaso de qualquer Visão
Estratégica Sul-Americana relevante para a integração.
• Embora alguns países da IIRSA agora exportem mais, a iniciativa
não contribuiu para aumentar a competitividade regional em termos
de maior parcela do comércio global. 15
• A IIRSA está perdendo relevância em um contexto de mudança das
prioridades políticas em relação à integração entre os governos sulamericanos.
• Provavelmente a IIRSA não sobreviverá a seu mandato de 10 anos
no BID, e provavelmente o Banco deixará sua participação expirar
em 2010.
A Diretoria aprovou uma avaliação controversa em julho, a despeito
da forte oposição dos principais proponentes da IIRSA, como o Brasil, o Peru
e a Colômbia. Os autores do relatório observaram que “nós não fizemos ne15. O Banco Mundial relata que enquanto cinco das 12 maiores economias globais desenvolvem as
economias e os DTCs representam 41% do PIB global, o grande crescimento no período aumentou as
participacoes de todas as regiões em desenvolvimento exceto a América Latina e o Caribe. Em outras
plavras, a região da América Latina continua atrás em termos de parcela da riqueza global.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
69
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
nhum amigo na Direção do BID quando apresentamos a avaliação”. Os compromissos da Diretoria do BID com as recomendações do relatório elaboradas
para salvar a IIRSA são ainda menos promissores. O relatório do Comitê de
Política e Avaliação da Diretoria reduziu a solicitação do Escritório de Avaliação e Supervisão do BID (OVE) de uma nova análise significativa sobre como
o Banco poderia recuperar a relevância no sobre integração sul-americana para
um punhado de sugestões vagas para readaptar os produtos do Banco para
atrair bons negócios entre os clientes UNASUL. A despeito do compromisso do Vice-Presidente para os Países, Octaviano Canuto, de “se esforçar para
cumprir com as recomendações,” o processo de aprovação pela Diretoria apresenta fortes indícios que o fim da IIRSA pode estar chegando. 16
O relatório dá crédito ao BID por haver estabelecido uma agenda
consensual para os projetos de transporte e para a socialização de uma concepção de 10 corredores de integração. Além disso, o relatório faz críticas
consideráveis sobre o valor que o BID agregou à IIRSA e sobre o fraco desempenho da IIRSA, de forma geral, como um catalisador de uma integração
mais profunda.
Apesar dos US$ 10 milhões que o BID pagou para subscrever os
custos administrativos da IIRSA, não há um banco de dados completo dos
projetos IIRSA, com detalhes sobre a situação da execução, fonte de financiamento ou objetivos. 17 Os autores do relatório do OVE argumentam que
não fica claro que o progresso em termos da construção de infra-estrutura
de transporte na América do Sul não teria acontecido de qualquer foram
sem a IIRSA. No final, o relatório sugere que a IIRSA parece ser “intrans-
16. A gerência do BID deve apresentar uma proposta para estender o mandato da IIRSA do Banco até
dezembro de 2008.
17. Na última reunião de meio termo dos coordenadores nacionais em Buenos Aires em junho de 2008, o
BID criticou os Coordenadores por não fornecerem informações atualizadas. A falta de um banco de
dados público ajuda a obscurecer mudanças significativas no planejamento da IIRSA, tal como o fato de a
Argentina haver dobrado o número de projetos que fazem parte carteira IIRSA para 145 no biênio 2007
- 2008, quase o dobro do total do Brasil.
70
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
cendente,” de pouca ou nenhuma importância para a agenda de integração
da América do Sul. Além disso, onde houve progresso as forças motrizes já
existiam antes da IIRSA.
Outra meta da IIRSA – a promoção de maior participação do setor privado nos projetos de integração de infra-estrutura - também é desalentadora. Apenas algumas parcerias público-privado (PPPs) foram realizadas,
a despeito da criação de dois grandes fundos para subsidiar os estudos de
viabilidade do projeto. A demanda por projetos IFI que garantam o financiamento de outros projetos atrativos para o setor privado também está bem
abaixo das expectativas.
No BID, a agenda da IIRSA não teve propriedade. Iniciada como
um acordo entre o ex-presidente do Brasil, Henrique Cardoso e o ex-presidente do BID, Iglesias, o programa IIRSA ficou órfão, como uma unidade
ad hoc no Banco, com mandato ambíguo para mudança. Em 2008, a IIRSA
havia gerado uma quantidade irrisória de novos negócios para o BID (menos
de 5% da carteira ativa total da IIRSA). 18
3.1 Fraca conceitualização de integração da IIRSA
A IIRSA pouco fez para avançar em um dos principais desafios
para aprofundar a integração: a harmonização das políticas ou dos regulamentos setoriais relevantes. O escopo da IIRSA foi reduzido a projetos
de transporte, pouco realizando nos setores de energia e telecomunicações.
Além disso, a avaliação do OVE concluiu que foi baixíssima a utilização de
ferramentas de planejamento de integração criadas pela IIRSA - metodologias para desenvolvimento e avaliação econômica de projetos de infra-estrutura, metodologias para avaliação estratégica dos impactos sociais e ambientais (EASE), estudo de cadeias de produção, integração e logística associadas
18. Durante o período de oito anos, 13 ou 14 projetos IIRSA financiados pelo BID são no setor de
transporte.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
71
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
à IIRSA, Sistema de Informação Gerencial Estratégica do Projeto (SIGE) e a
Rede de Informação Geo-espacial (GEOSUR). Dessas, apenas o SIGE está
em uso, principalmente como uma ferramenta informal, enquanto as outras
continuam nos estágios de implementação ou piloto.
Aonde foram identificados alguns parâmetros de comparação (benchmarks) para os projetos IIRSA do BID, o relatório concluiu que o BID
não estava monitorando sistematicamente o desempenho desses indicadores.
Desde o início, a IIRSA não tinha metas de desempenho explícitas para o
BID como uma instituição. Portanto, agora sua avaliação é difícil e as expectativas institucionais continuam obscuras.
O BID carece de uma metodologia adequada de planejamento
para classificar os projetos com relação a seu impacto de integração ou à
distribuição de riscos e benefícios. No BID, os projetos IIRSA (principalmente transporte) não tiveram tratamento diferenciado de outros projetos
de transporte. 19 As rodovias, que compõem quase toda a carteira da IIRSA,
não são entendidas como um projeto de integração, mas como um projeto
de rodovia. Não são especificados objetivos estratégicos ou indicadores
de avaliação que diferenciem os projetos IIRSA dos projetos nacionais de
rodovias. Não há um adicional ou valor agregado que possa ser medido
de alguma forma. Assim, o valor agregado pela IIRSA, como um todo, à
meta de promover maior integração regional é bastante questionável. A
identificação do que pode servir de sistema preferencial para avaliar os
méritos dos projetos de integração continua a ser um desafio urgente para
a região e para o BID.
19. O relatório aponta a falta de critérios sistemáticos de avaliação ambiental e observa a pouca atenção
dada à distribuição dos custos/benefícios sociais e ambientais dos projetos IIRSA. Apenas US$ 700.000
de um total de US$ 4 bilhões de Cooperação Técnica foram alocados pra os desafios ambientais. O relatório também conclui que as informações disponíveis sobre a situação ou os resultados desses projetos são
limitadas. Não foi feita uma estimativa de quanto do financiamento operacional geral de US$ 1,3 bilhões
para a IIRSA foi dedicado a questòes sociais e ambientais.
72
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
Os critérios para diferenciar os investimentos e projetos são especificados de forma inadequada. O relatório critica a falta de qualquer critério
significativo para priorizar os projetos 351-507 IIRSA em termos de integração, ou porquê apenas 19 de 31 projetos âncora se qualificaram para fazer
parte da agenda de consenso. A justificativa para sua inclusão ou exclusão
pareceu ser mais política do que técnica. “Âncora” é um conceito relativamente sem sentido, significando que sem essa parte toda a rodovia não
funcionará. Aparentemente, as outras dimensões da ancoragem do desenvolvimento regional não foram desenvolvidas. Parece que foi dada a mesma
prioridade e peso para a rodovia que circunda São Paulo e para a ponte Cruzeiro do Sul, apesar de servirem a dois públicos bastante diferentes e terem
impactos diferentes no tipo de desenvolvimento.
O fraco conceito de integração que o BID e a IIRSA têm contribuiu
para importantes oportunidades perdidas. O relatório sugere que a IIRSA não
conseguiu abordar mais diretamente a falta de incentives para diminuir as assimetrias entre grandes e pequenas economias, como o Brasil e a Bolívia, como
critérios explícitos para o desempenho de projetos IIRSA. Como as estradas
IIRSA fariam algo além de aumentar o volume de tráfego e reduzir os custos
de transporte? Segundo a experiência da União Européia, uma maior integração estrutural em contextos de desigualdade requer um financiamento voltado
a essas assimetrias. A IIRSA não deu nenhum impulso para a discussão, menos
ainda para a implantação de fundos estruturais como os da UE.
Um outro erro que o relatório OVE observou foi que a IIRSA foi
concebida como uma nova abordagem à integração regional, independente
do MERCOSUL e da CAN. Este conceito não só era falso, mas também
contraproducente. Algumas oportunidades na liberação do comércio interno, harmonização de legislação, planejamento regional, etc., foram perdidas
ao mudar a atenção para a IIRSA. O Ove percebe a falta de conexão da
IIRSA com os tomadores de decisão da CAN e do MERCOSUL como contraproducente para a meta do BID de promover integração.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
73
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
A IIRSA perdeu a chance de posicionar melhor o BID no financiamento dos projetos de integração. Quando comparamos a CAF ao BID, a CAF
foi muito mais eficiente em apropriar a IIRSA. A CAF pareceu muito mais comprometida com a IIRSA, não apenas em termos de financiamento geral, mas ao
assumir mais riscos e responder mais rapidamente aos países clientes.
Por fim, a IIRSA fez promessas vãs de promover a participação e
a transparência em termos do processo geral de planejamento da integração
regional, o que contribuiu para perder a oportunidade de ganhar mais legitimidade e demanda para o envolvimento do Banco.
IV. A integração sul-americana depois da IIRSA e as implicações
para a advocacy
As mudanças descritas anteriormente questionam a relevância da
IIRSA em um contexto de prioridades políticas em mudança. A expansão da
UNASUL e a rejeição dos modelos da ALCA para integração comercial refletem a possível obsolescência da IIRSA, já que a iniciativa não evoluiu das suas
origens neoliberais.
Na ausência da ALCA e de Doha como os principais instrumentos
políticos para a economia estrangeira dos EUA para a América Latina, os principais debates sobre integração se concentram na integração física e na crescente concorrência entre a IIRSA e a UNASUL. Isso não se dá para diminuir
a relevância dos Acordos de Livre Comércio entre os EUA e a Colômbia e o
Peru, ou o início de negociações de livre comércio entre a Europa e a América Latina. Na verdade, esses processos da ALCA estão subsumidos por um
debate mais ambicioso e regional, que melhor captura as coalizões ideológicas
emergentes ou os eixos que tendem a se formar ao redor de modelos de integração mais abrangentes.
A União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Banco do Sul
representam o núcleo central de uma renovação total da arquitetura financeira
regional que, historicamente, tem dependido dos bancos do norte. Um fundo
74
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
monetário regional, uma moeda regional comum, uma rede regional de bancos estatais de desenvolvimento, bolsas de comércio e mercados de valores
regionais, um Parlamento regional (com sede em Cochabamba) e um Fundo
Regional Social são algumas das novas instituições imaginadas pelos atuais presidentes na América do Sul. Contudo, ainda não está claro se essas instituições
surgirão sob os auspícios da Alternativa Bolivariana das Américas (ALBA), da
Comunidade de Nações Andinas (CAN) ou do Mercado Comum do Sul.
A infra-estrutura de transporte que havia sido planejada para vinte
anos já foi construída. Contudo, no setor de energia e politicamente a América
do Sul está mais dividida do que nunca. As divisões políticas entre a Venezuela
e o Brasil não foram conciliadas pela IIRSA. A UNASUL está montando seus
próprios grupos de energia e infra-estrutura. Há duplicação e planejamento
ineficiente. Conseqüentemente, a América do Sul se encontra mais dividida do
que estava em 2000.
O futuro da IIRSA é incerto, com dúvidas cada vez maiores e, talvez,
até mesmo o reconhecimento que o acompanhamento do BID não irá além
do prazo de 2010. A avaliação da IIRSA no BID é crítica à falta de um claro
“valor agregado” pelo BID na promoção da IIRSA, e este pode ser um fator.
A gerência defende o esforço do BID como subestimado no fortalecimento da
capacidade de chegar a um consenso, no mínimo sobre as prioridades regionais
de transporte. O Banco deixará a IIRSA seguir seu caminho nos próximos dois
anos, e o Banco não renovará seu compromisso institucional. Da mesma forma, a IIRSA provavelmente acabará sem o gerenciamento do BID.
Outros acreditam que a recriação da IIRSA é possível e necessária.
A IIRSA poderia contar com os avanços obtidos na área de transporte, mudando o foco para aspectos da integração mais desafiadores da integração - como
sustentabilidade; o vínculo entre transporte e cadeias de produção; e a regulamentação e investimentos compensatórios para lidar com as assimetrias. Mais
importante, como o Ministério das Relações Exteriores do Brasil defende,
todas as iniciativas de integração devem estar na UNASUL. Como a UNA-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
75
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
SUL se opõe a um mecanismo de assessoria tipo IFI, essa mudança reduziria
consideravelmente o papel do BID de principal coordenador/assessor no
Comitê de Coordenação Técnica (CCT).
A carteira da IIRSA e muitos outros projetos de infra-estrutura indubitavelmente teriam continuidade, mas as organizações da sociedade civil
podem ter que lidar diretamente com a UNASUL para discutir uma agenda
de sustentabilidade no futuro.
A base intelectual e financeira para a integração sul-americana está
mudando. A mudança na dinâmica sul-americana demanda maior propriedade do país sobre os processos de integração e uma nova conceitualização
de integração como algo além da conectividade física transfronteiriça. As
motivações originais da IIRSA devem ser reavaliadas neste novo contexto
– especialmente em relação às premissas segundo as quais construir mais
rodovias fará com que a integração avance e de ênfase exagerada na interconectividade externa em detrimento à integração interna. A UNASUL como
um espaço político que compete pela elaboração de uma integração regional que dá menos peso às considerações sobre como a infra-estrutura pode
impactar a competitividade e o comércio intra-regional, oferece um cenário
para a recriação de um modelo de integração regional que tire proveito da
obsolescência da IIRSA.
Contudo, estamos em um momento muito diferente daquele de
dezembro de 2006, quando alguns governos na Cúpula UNASUL de Cochabamba expuseram claramente seu questionamento da IIRSA e articularam
a grande esperança de poder readaptá-lo. Apesar dos passos desde Cochabamba para estabelecer a UNASUL como um espaço alternativo para uma
integração mais justa e sustentável, é visível que os avanços dos projetos de
IIRSA e outras tendências de investimento em áreas frágeis se dão muito
mais rapidamente.
Com ou sem a IIRSA, o PAC do Brasil, o Proinversión do Peru,
o Plano 2020 da Colômbia avançarão se, apenas se os verdadeiros interesses
76
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A IIRSA em uma Encruzilhada: Indicativos de Mudança e Implicações para a Advocacy
econômicos e políticos subjacentes a esses planos nacionais de infra-estruturas forem mais expostos ao escrutínio público. Um movimento neste sentido foi claramente demonstrado em uma reunião recente convocada pelo Comitê de Coordenação Técnica (CCT) da IIRSA para discutir infra-estrutura
e a Amazônia. A reunião, que envolveu gigantes do empresariado brasileiro
(Odebrecht, Andrade Gutierrez, Petrobras e BNDES, bem como várias organizações de conservação) foi motivada por uma crescente percepção de
que a IIRSA e as tendências de investimentos pertinentes na região amazônica estão gerando efeitos perversos e insustentáveis que estão minando a
legitimidade da iniciativa de integração de infra-estrutura. 20
A reunião revelou que como um marco cooperativo para coordenação e planejamento, a IIRSA continua frágil e bastante ineficiente em
sua capacidade de lidar com alguns dos desafios mais urgentes. A falta
de qualquer marco legal ou jurídico para institucionalizar os princípios de
integração continua a ser um grande obstáculo e o setor empresarial não
considera a UNASUL uma solução viável em curto prazo. O futuro da
IIRSA como um mecanismo politicamente significativo de coordenação
em questões de integração de infra-estrutura está cada vez mais nas mãos
das agendas de desenvolvimento nacionais e do setor privado, principalmente, mas não exclusivamente, as do Brasil (por exemplo, BNDES, Odebrecht, Petrobras, PAC).
A reunião enfatizou os riscos sociais, ambientais e econômicos dos
projetos de IIRSA avançarem muito mais rápido do que o planejamento da
integração e sem praticamente planejamento algum para a sustentabilidade
social e ambiental. Ao mesmo tempo, a relevância da IIRSA continua a ser
minada pela ausência de uma agenda social ou ambiental multilateral para a
integração, principalmente com a importância crescente das iniciativas bilaterais emergentes (Fundo Amazônico do Brasil).
20. Para uma discussão completa sobre a reunião do CCT no Rio de Janeiro em 4 de setembro De 2008,
consulte o Boletim Trimestral BICECA em http://www.bicusa.org/en/Article.3907.aspx
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
77
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
De forma geral, a reunião do CCT enfatizou várias realidades que
ameaçam desestabilizar a IIRSA como um espaço de coordenação para o planejamento da integração. Há indícios que, a despeito das evidências crescentes
dos impactos negativos, o desenho do projeto de infra-estrutura ou o planejamento de integração provavelmente não mudará de forma significativa.
Por sua vez, há em 2008 um aparente crescimento do discurso anti-neoliberal, reconhecendo que as tendências atuais da IIRSA favorecem os
mesmos interesses nefastos do projeto neoliberal. Por isso, não há alternativa
senão delinear um novo modelo de integração, desvinculado das premissas
de livre comércio, mas também das orientações neo-desenvolvimentalistas.
Depois de tentar por vários anos incidir sobre os projetos mais
representativos da IIRSA, é urgente que a sociedade civil tente definir melhor
os cenários de liderança para o debate sobre integração regional no futuro.
Por um lado, o Comitê de Diretores Executivos (CDE) continua a ser o
principal mecanismo para legitimar e orientar a agenda acordada da IIRSA e
depende do consenso dos 12 países para funcionar. O CDE da IIRSA deve
ser um fórum principal para as ações de incidência coletiva de grupos ambientalistas, indígenas, campesinos, emigrantes, governos locais, etc.
Na conjuntura ideológica atual, é possível influenciar três ou quatro governos parceiros da IIRSA para que questionem as premissas neoliberais da IIRSA e peçam a readequação desta iniciativa. Em outras palavras, é
possível romper o consenso atual a favor da IIRSA.
Ao mesmo tempo, a sociedade civil deve se preparar para um cenário sem a IIRSA, quando a tarefa de elaborar um modelo de integração
alternativa for totalmente transferida para a UNASUL, tendo que demandar
dela participação, transparência e prestação de contas ao público, ou seja:
aquilo que a ALCA, IIRSA e a maioria dos planos de IFIs não deram. Isto
significa que muitas das críticas e questões levantadas neste artigo continuarão pertinentes como sempre, a despeito dessa mudança para o Sul.
78
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A atuação das grandes empreiteiras
brasileiras na integração de
infra-estrutura na América do Sul
Alessandro Biazzi Couto
Responsável pela área de
Integração Regional no PACS
[email protected]
A atuação das grandes empreiteiras brasileiras na integração de infra-estrutura na América do Sul
A ALCA, o MERCOSUL, a ALBA e, nos últimos meses, a UNASUL
(União das Nações Sul-Americanas) são acordos de integração nas Américas que figuram constantemente no discurso dos atores sociais regionais,
impulsionados pelos apelos simbólicos e midiáticos de grandes conferências
e discursos presidenciais. Apesar da importância desses acordos, pouco espaço tem sido dado a uma reflexão mais profunda acerca da integração de
infra-estrutura. Um debate fundamental para os processos políticos, e que
tem transformado a paisagem de vários países.
Neste sentido, a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional SulAmericana (IIRSA), lançada no ano 2000, é o mais ambicioso projeto nas
áreas de transporte, energia e telecomunicações já visto na região. A IIRSA
abrange doze Estados e divide a América do Sul em dez grandes eixos, pensados a partir da integração entre cadeias produtivas, do aumento do fluxo
comercial regional e de convergência com o circuito de trocas mundiais,
em particular o de exportação para os mercados dos EUA, Europa e ÁsiaPacífico. Desde o início, o projeto recebeu forte incentivo de instituições
financeiras internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que elaborou o plano de ação inicial e diversos estudos, e da
Cooperação Andina de Fomento (CAF), que financia boa parte das obras.
Dado o protagonismo do governo brasileiro e os interesses econômicos
de grandes empresas instaladas no país, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também participa ativamente no
financiamento da IIRSA.
Em síntese, é possível afirmar que os eixos de “desenvolvimento”
que a IIRSA propõe estão focados no provimento de condições para empresas (trans)nacionais e o agronegócio otimizarem seus lucros, terem acesso a
mais mercados e facilitarem o escoamento de recursos por meio de grandes
“corredores” de exportação que atravessam o continente, inclusive regiões
sensíveis como a Amazônia e os Andes. Apesar da retórica de integração dos
povos, a “Iniciativa” negligencia o desenvolvimento local, o forte impacto
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
81
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
social e ambiental das obras, além da falta de transparência nos dados e a
ausência da participação da sociedade civil nesses processos. Os governos
tidos como progressistas na América do Sul acabaram por abraçar a integração proposta pelo BID sem uma apreensão crítica sobre quem serão os
verdadeiros beneficiados com os aportes de dinheiro público e as conseqüências sociais e ambientais de longo prazo. Também não avaliaram como
essas múltiplas intervenções representam uma continuidade com o modelo
de desenvolvimento promovido por outras Instituições Financeiras Internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI),
outrora tão criticados.
Diante desse contexto se faz necessário destacar o papel ativo que
as grandes empreiteiras brasileiras - Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade
Gutierrez - vêm exercendo na integração de infra-estrutura. Antes do aprofundamento nos projetos internacionais das empresas é preciso enfatizar o
crescente poder econômico que elas vêm adquirindo no plano nacional ao se
constituírem como holdings e diversificarem seus negócios.
Além da área de engenharia, a Odebrecht é o maior grupo petroquímico da América ao controlar a empresa Braskem, e prevê investimentos
bilionários nos próximos anos em sua subsidiária ETH Bioenergia, voltada
para a produção de etanol da cana de açúcar. Já a Camargo Corrêa tem sua
própria fábrica de cimento e controla a Alpargatas Calçados (Havaianas, Rainha, Topper, Timberland e Mizuno), é acionista da Siderúrgica Usiminas, da
concessionária de energia do Estado de São Paulo CPFL Energia e ainda da
Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR), controladora da Dutra (RJSP), da Ponte Rio-Niterói, da Via Lagos e de outras grandes rodovias em
São Paulo e no Paraná, totalizando 1452 km em concessões rodoviárias. A
Andrade Gutierrez não fica atrás: também é acionista da concessionária de
rodovias CCR; da prestadora de serviços de energia Light; controla a empre-
82
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A atuação das grandes empreiteiras brasileiras na integração de infra-estrutura na América do Sul
sa de telecomunicações Telemar (que engloba também a OI celulares) e terá
a concessão do aeroporto de Quito, Equador ainda em construção1.
Expor esses extensos dados é fundamental para que os atores sociais
brasileiros tenham dimensão do poder econômico dessas empresas transnacionais de base brasileira, por vezes “invisível” dada a pulverização de sua
atuação econômica. Essa configuração altamente concentradora de capital
permite a esses grupos pautar políticas públicas e competir internacionalmente a custos mais baixos no que concerne às grandes obras, em que o
repasse de recursos públicos é por vezes burocrático e tardio.
Neste âmbito, a exportação de serviços de engenharia nos remete ao
contexto do final dos anos 70. Apesar dos fortes laços com o Estado brasileiro na realização de obras, o esgotamento do milagre econômico da ditadura
significou uma grande perda para as empreiteiras. Contudo, elas foram beneficiadas por um rearranjo na política externa do presidente Geisel, cujo foco
terceiro-mundista incentivou a participação dessas empresas em licitações e
obras, principalmente na América do Sul e África (ex-colônias portuguesas),
dada a cooperação entre os governos e a ausência de concorrentes nacionais
para a realização de grandes projetos de engenharia.
A liberalização econômica e as privatizações dos anos 90 na América Latina impulsionaram ainda mais a internacionalização desses serviços. As
empresas passaram a atuar não só nas obras, como também na concessão desses empreendimentos, principalmente das estradas. No que concerne a IIRSA,
o foco está na construção de rodovias, portos e hidrelétricas, reproduzindo
o modelo dominante de infra-estrutura que as empresas já desenvolvem historicamente no Brasil. Em anexo, encontra-se uma tabela com os principais
1. Esse estudo abrange apenas as três empreiteiras acima citadas, dada sua atuação de destaque nas
obras de infra-estrutura na América do Sul. Os dados foram retirados do relatório anual e do website das
próprias empresas. Procurei enfatizar os campos de atuação mais relevantes, no entanto existem outros
não citados. Outro dado relevante sobre essas empresas é que dentre os acionistas da Andrade Gutierrez
Concessões figura o International Finance Corporation (IFC) - braço do Banco Mundial (BIRD) para
o setor privado, um exemplo de como as instituições financeiras internacionais atuam indiretamente em
empresas nacionais.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
83
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
megaprojetos em curso nos países da América do Sul, os gastos, as fontes de
financiamento e problemas ocasionados, dentre outras informações.
Como tendência geral, se percebe haver uma convergência entre empreiteiras um tanto difícil a nível nacional e que os projetos têm um forte
respaldo de instituições financeiras internacionais. Além do BID e do CAF,
é interessante observar a atuação de bancos de exportação dos EUA e a Coréia do Sul. A conexão com o Pacífico parece ser o foco não apenas dessas
instituições, como do próprio BNDES, no que atende fortemente ao setor
exportador brasileiro. Muitos dos problemas socioambientais gerados pelas
rodovias interoceânicas, em países como a Bolívia e Peru, devem-se a essa
“corrida ao Pacífico”, que beneficia enormemente o setor do agronegócio
do Centro-Oeste e Norte do Brasil e as cadeias produtivas das transnacionais
que operam no continente. Os territórios locais são pensados quase que exclusivamente como áreas de trânsito para os produtos chegarem aos portos
com o menor custo de mercado possível.
Assim como em muitas das obras do Programa de Aceleração de Cresci-
mento (PAC) do atual governo brasileiro - dentre elas as controversas hidrelétricas do Rio Madeira em que Odebrecht e Andrade Gutierrez também
operam – as altas cifras despendidas pelo BNDES na integração regional
não correspondem aos objetivos sociais que a instituição deveria ter como
um banco público. Além dos impactos permanentes das novas redes que se
constituem e dos privilégios a grupos (apontados e descritos em detalhe nas
tabelas), estes gastos são responsáveis por um aumento do endividamento
público dos países e direcionam recursos fundamentais que poderiam ser
investidos em projetos sociais de infra-estrutura, como saneamento básico,
habitação, escolas e hospitais. Neste sentido, a construção de redes cujo foco
é a complementaridade e o comércio entre pequenos/médios produtores no
âmbito regional também seria uma política fundamental.
Concluímos que de fato o provimento de infra-estrutura e o comércio são centrais para uma integração dos povos da América do Sul. Con-
84
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A atuação das grandes empreiteiras brasileiras na integração de infra-estrutura na América do Sul
tudo, esse fim tem sido em grande parte desvirtuado pelo regionalismo de
livre-comércio e de inserção periférica nos fluxos de troca globais que fundamentam a IIRSA desde o princípio. Os povos da região e o meio ambiente já presenciam alguns dos efeitos negativos das obras que as empreiteiras
brasileiras realizam, cujas conseqüências ao longo do tempo são ainda mais
preocupantes e imprevisíveis. As empresas se vangloriam discursivamente da
“responsabilidade social” de suas obras, no entanto é preciso torná-la efetiva
e apontar suas constantes contradições. As empresas brasileiras não são apenas prestadoras de serviços, mas atores constituintes decisivos nesse processo. Os atores sociais devem intervir criticamente no que tange esses projetos;
conhecer e denunciar suas irregularidades a fim de diminuir os impactos; e
quando preciso se opor integralmente a sua concretização. Devemos resistir
à integração cujo foco é entregar mercadorias de grandes empresas; entregar
recursos escassos aos países do Norte e entregar a soberania popular à lógica
dos fluxos de capital.
Referências
www.biceca.org - BICECA: Uma Resposta da Sociedade Civil a Integração
Regional
www.fobomade.org.bo– Foro Boliviano MedioAmbiente y Desarollo
www.megaproyectos.org – Megaproyectos en América Latina
http://groups.yahoo.com/group/interoceanicasur/ - Grupo de Trabalho
da Interocêanica Sul
www.iirsa.org – IIRSA
www.odebrecht.com
www.andradegutierrez.com.br
www.camargocorrea.com.br
Empreiteiras
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
85
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
CARRION, Maria C.; PAIM, Elisangela S. 2006. “IIRSA: Desvendando os
Interesses”. NAT/Brasil.
CARVALHO, Guilherme 2004. “A Integração Sul-americana e o Brasil: o
protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA”. Rio de Janeiro: FASE.
Anexo
Tabela ao lado
Principais obras de infra-estrutura na América do Sul com participação de empresas
brasileiras
Fontes: BICECA e relatório anual das empresas; valores aproximados.
86
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
A atuação das grandes empreiteiras brasileiras na integração de infra-estrutura na América do Sul
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
87
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
88
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O papel dos grandes bancos
espanhóis no financiamento
de projetos em litígio
na América Latina
Víctor Maeso
SETEM
[email protected]
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
Este artigo é um resumo de dois relatórios 1 elaborados em 2007 pelo
instituto holandês de pesquisa SOMO2 para a ONG do Estado espanhol SETEM3. Com ele, nós pretendemos mostrar a relação dos dois grandes bancos
espanhóis, BBVA e Santander, com o financiamento de grandes projetos na
América Latina, com especial atenção a projetos de infra-estrutura.
CONCEITOS PRÉVIOS
Alcance dos estudos
O SETEM encomendou ao SOMO a realização de um relatório de
pesquisa sobre a Responsabilidade Social Empresarial (RSE) de dois grandes bancos espanhóis: o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (doravante, BBVA) e o Banco
Santander, também conhecido com o nome de Grupo Santander. O principal
objetivo do relatório foi identificar e descrever empresas e projetos considerados socialmente irresponsáveis ou não sustentáveis e que tiveram vínculos
financeiros com um ou com os dois bancos.
A lista de atividades de financiamento controversas não foi exausti-
va. A porta ficou aberta para incorporar novos casos à medida que surgirem
informações adicionais. A pesquisa se concentrou nas atividades de financiamento realizadas pelo BBVA e pelo Banco Santander no mundo, com
absoluto predomínio da América Latina, no período entre janeiro de 2000 e
abril de 2007.
Na pesquisa são definidos os projetos socialmente irresponsáveis de forma
genérica, embora digam respeito principalmente a projetos de investimento,
tais como a construção de represa, expansão de uma mina ou construção de
um oleoduto, em litígio sob a perspectiva de direitos humanos e/ou ambientais. Esses projetos foram selecionados por causa dos vínculos financeiros
1. Os relatórios completos estão disponíveis em: www.finanzaseticas.org
2. Instituto holandês de pesquisa de multinacionais: www.somo.nl
3. ONG de âmbito espanhol que trabalha em sensibilização e incidência política: www.setem.org
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
91
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
diretos ou indiretos com um banco ou com os dois. A vinculação direta
(chamado no jargão bancário de “project finance”) implica que o banco deu
apoio ao projeto através de um contrato de financiamento, um método de
financiamento onde as receitas geradas pelo projeto são a principal fonte de
pagamento. Um vínculo indireto indica que o banco prestou serviços financeiros em geral (por exemplo, créditos, emissão de bônus ou outras transações financeiras) à empresa (matriz) responsável pela execução do projeto.
Esses serviços podem ter sido utilizados para financiar o projeto em litígio.
Em certos casos, parece evidente que o banco previu, ou pode haver previsto, que seu empréstimo ou investimento seria empregado para o potencial
financiamento de um projeto não sustentável devido, por exemplo, à má reputação da empresa que financiava. Em outros casos fica menos evidente
até que ponto o banco pode estar ligado ao projeto em litígio como, por
exemplo, quando concede um empréstimo a um grande conglomerado que
realiza diversas atividades. Neste último caso, fica pouco claro se os fundos
são empregados para financiar o projeto em litígio ou outra atividade. Seria
necessário fazer mais pesquisas para determinar a existência e extensão da
responsabilidade do banco pelo que ele financiou indiretamente.
A metodologia da pesquisa se baseou no enfoque da SOMO chama-
do “Quick Scan” que tem por objetivo dar uma visão sobre as questões e os
problemas específicos em jogo em termos de Responsabilidade Social Empresarial (RSE). Geralmente os resultados são empregados para aprofundar
a discussão com a empresa sobre sua conduta. O Quick Scan não tem por
finalidade apresentar uma imagem completa e definitiva sobre o desempenho
social de uma empresa ou apresentar conclusões finais sobre a sustentabilidade de alguma ação ou projeto.
Padrões de RSE no mundo financeiro
Os padrões mais importantes aplicáveis às atividades de financia-
mento por instituições financeiras privadas são os Princípios do Equador, um
92
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
conjunto de princípios voluntários para a determinação, avaliação e gestão de
riscos ambientais ou sociais no processo de financiamento de projetos4.
Os primeiros 18 bancos assinaram os Princípios do Equador em 2003.
Atualmente, contam com a assinatura de 45 instituições financeiras (especialmente bancos). Os Princípios do Equador se baseiam nas políticas de
proteção ambiental e social, nos padrões de poluição e no sistema de categorização ambiental e social da Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation - IFC), o ramo do setor privado do Grupo Banco
Mundial. O marco básico é um processo de avaliação ambiental pelo qual os
projetos são qualificados conforme o risco social e ecológico que acarretam.
Para os projetos de maior risco, o mutuário deve realizar uma Avaliação de
Impacto Ambiental (Environmental Impact Assessment – EIA) que deve abordar fatores como o uso de produtos perigosos, o reassentamento forçado de
populações indígenas, riscos para a saúde das comunidades locais e danos a
bens culturais. Os bancos esperam que a Avaliação seja levada em consideração durante a execução do projeto.
Outra proposta relevante para promover a responsabilidade social e
ambiental no setor financeiro é a Iniciativa para o Setor Financeiro do Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA FI), criada em 1992. A missão do PNUMA FI é colaborar com instituições financeiras na identificação,
definição e promoção de boas e melhores práticas ambientais em suas operações internas e externas, através de atividades regionais, que inclui programas
de treinamento e pesquisa. Atualmente, o PNUMA FI trabalha com mais
de 160 instituições, inclusive bancos, seguradoras, fundos de capital de risco
e assessores de carteiras de investimento. Todos os participantes assinam a
declaração do PNUMA FI, uma expressão voluntária de intenções pela qual
se comprometem a integrar considerações de natureza ambiental a todos os
aspectos de suas operações.
4 http://www.equator-principles.com/index.shtml
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
93
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
A declaração do PNUMA FI é composta por três partes:
1. Compromisso em favor de um desenvolvimento sustentável onde os signatários expressam seu compromisso com, por um lado,
o desenvolvimento sustentável como parte fundamental da administração da empresa e, por outro lado, com o papel do setor financeiro
como o setor que pode oferecer uma importante contribuição ao
desenvolvimento sustentável.
2. Ordenamento ambiental e instituições financeiras - que reflitam
sobre questões como o apoio ao enfoque de precaução na gestão
ambiental; o compromisso com os regulamentos nacionais e internacionais em termos ambientais; a identificação do risco ambiental; a busca de melhores práticas em gestão ambiental, inclusive em
eficiência energética, reciclagem e redução de dejetos. Inclui ainda
uma declaração sobre a conduta ambiental dos clientes do banco que
parece relevante no contexto dos dados deste relatório: “No que diz
respeito a nossos clientes, achamos que o respeito aos regulamentos
ambientais pertinentes e o uso de práticas ambientalmente corretas
são fatores importantes que demonstram uma eficiente gestão ambiental”.
3. Sensibilização do público e comunicação - que reconhece a necessidade de informar e rever regularmente o desempenho ambiental e
compartilhar informação com os stakeholders.
À margem dos Princípios do Equador e do PNUMA FI há várias
iniciativas de SER em nível empresarial que também podem ser aplicadas ao
setor financeiro. Entre elas, as Diretrizes da OCDE e o Global Compact da
ONU são as mais conhecidas. Esses padrões expressam princípios voluntários em termos de direitos humanos, direitos trabalhistas, meio ambiente e
na luta contra a corrupção. Em 2004, o Global Compact da ONU convidou
as instituições financeiras a aderirem à iniciativa. Esta ação resultou no relatório “Who cares wins: Connecting financial markets to a changing world” (“Quem
94
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
se preocupa, ganha: conectando os mercados financeiros a um mundo em
mudança”), que apresenta um conjunto de recomendações e diretrizes especialmente voltadas ao setor financeiro.
Análise crítica da RSE nas finanças
Embora os códigos de conduta não sejam obrigatórios, eles repre-
sentam um consenso sobre como uma empresa deveria se comportar de forma cada vez mais globalizada. Contudo, os padrões como os Princípios do
Equador não resultaram automaticamente em um melhor comportamento
por parte das empresas e, por tanto, é necessário realizar um acompanhamento crítico do processo de execução dos códigos de conduta.
Com relação aos Princípios do Equador, embora pela primeira vez
as instituições financeiras reconheçam sua responsabilidade social, a execução de suas políticas é muito lenta e não é transparente. Aumenta o número de bancos que aderem aos Princípios do Equador, mas nem todos
cumprem com o requisito de elaborar relatórios anuais sobre o progresso
da implantação daqueles princípios. Além disso, podemos observar que
os projetos que não deveriam receber fundos por causa de seus desastrosos efeitos sociais e ambientais receberam dinheiro dos bancos de qualquer forma.
Definitivamente as ONGs têm observado que as medidas voluntá-
rias não são suficientes para que as entidades bancárias realmente se comprometam a melhorar seu comportamento empresarial. Deveria haver um
regulamento mínimo e um controle independente capaz de sancionar as empresas, ainda que de forma branda, por não cumprirem com os padrões.
Outra desvantagem dos Princípios do Equador é que eles são aplicáveis
somente ao financiamento de projetos (“project finance”), ou seja, a formas
específicas de créditos outorgados a projetos independentes. Cada vez mais,
os projetos de grande escala e ambiental e/ou socialmente suscetíveis são financiados por meio da emissão de bônus ou ações e, portanto, ficam fora do
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
95
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
âmbito de aplicação dos Princípios do Equador. Conseqüentemente, certos
bancos empregam um “padrão duplo” e, às vezes, financiam empresas ou
projetos em litígio por meio de empréstimos ou financiamentos que violam
as diretrizes dos Princípios em termos ambientais e sociais.
RESULTADOS DO RELATÓRIO PARA O BBVA
Descrição do banco
O banco de Bilbao foi fundado em 1857 como um banco de emis-
são e desconto. O banco de Vizcaya foi fundado em 1901 como um banco
comercial e de depósitos. Em 1988 o Banco de Bilbao e o Banco de Vizcaya
se fundiram, criando o BBV. Em 1988 é criado o banco Argentaria existente
da Corporação Bancária da Espanha (CBE), Banco Exterior (BEX), Banco
Hipotecário (BHE) e caixa postal. Em 1999 o BBV e o Argentaria anunciam
sua fusão e adotam a marca BBVA no ano seguinte. A partir dos anos 70 o
Banco de Bilbao, Banco de Vizcaya e Banco Exterior se instalaram na Europa, América, Ásia e América Latina. Em 2001 a marca BBVA é instalada nas
entidades da América Latina. Hoje em dia o banco tem agências e escritórios
de representação em mais de 25 países no mundo. No total, mais de 95.000
pessoas trabalham no BBVA em mais de 7.000 escritórios no mundo todo. O
ativo total em 2006 era de 412.000 milhões de euros.
Política de RSE/ambiental do banco
Além das diretrizes internacionais, o BBVA redigiu a versão preliminar de sua Política Ambiental, onde expressa formalmente seu compromisso
com o meio ambiente. No referido documento, o banco afirma que sua política ambiental:
• inclui o desenvolvimento de critérios ambientais na análise de riscos
das operações financeiras;
• foi elaborada para ter uma influência pró-ativa/positiva sobre o com-
96
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
portamento de seus grupos de interesse (stakeholders), principalmente
clientes, empregados, fornecedores, acionistas e das sociedades onde
participa, para fazer com que adotem políticas e sistemas de gestão
ambientais; e,
• inclui a incorporação de critérios ambientais à análise de riscos das
operações financeiras. Para tanto, o BBVA adota sua própria metodologia para incorporar critérios ambientais de forma sistemática
à análise de risco creditício nas atividades de bancos corporativos
e bancos de empresas. Além disso, o BBVA incorpora critérios
ambientais à análise e à submissão de operações de “project finance”
(grandes projetos de financiamento de rodovias, ferrovias, etc.).
Além disso, o BBVA participa do Carbon Disclosure Project (GDP), que
foi iniciado em 2000 por diferentes ONGs que trabalham cautelosamente
com a Global Reporting Initiative (GRI). A iniciativa tem dois objetivos: informar os investidores sobre riscos importantes e oportunidades em relação à
mudança climática e apresentar as graves preocupações dos acionistas em
relação ao impacto da mudança climática sobre as empresas do setor correspondente. As empresas se comprometem a fazer relatórios anuais sobre suas
emissões de carbono e os regulamentos adotados para reduzi-las – a última
atualização do BBVA data de 25 de setembro de 2007.
No que se refere a diretrizes e padrões internacionais em termos de
RSE, o BBVA participa ou é signatário dos seguintes:
• PNUMA FI, em 1998.
• Pacto Mundial da ONU, 2002. Além disso, três dos bancos do Grupo BBVA assinaram as diretrizes em 2002: BBVA Banco Francês
(Argentina), BBVA Banco Continental (Peru) e BBVA Bancomer
(México).
• Os Princípios do Equador em 2004 (nos projetos de financiamento
com montante superior a 10 milhões de dólares) e sua versão revista
em julho de 2006.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
97
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
No entanto, é pouco provável que o BBV ainda se qualifique para
participar do Global Compact, já que seus participantes devem informar anualmente aos grupos de interesse (stakeholders) sobre o progresso da execução
dos princípios do Global Compact através de relatórios de sustentabilidade,
relatórios anuais ou outros comunicados corporativos. Também se espera
que os participantes no sítio do Global Compact e/ou da rede local apresentem uma breve descrição de seu relatório de progresso e um link para os
comunicados corporativos. Segundo o sítio do Global Compact, “somente os
participantes que informarem sobre seus relatórios de progresso poderão
continuar a participar do Global Compact”.
No entanto, a informação atual do BBVA parece estar desatualizada, já
que o último link se refere a relatórios de 2005 e não foram incluídos estudos de
caso. Em seu relatório anual também não faz referência alguma a “… metodologia, procedimentos, nível de execução, resultados representados por número de
operações rejeitadas”. Além disso, não há evidência que existam “... sistemas de
avaliação e controle que permitam assegurar seu cumprimento, tampouco dados
sobre fornecedores excluídos por questões sociais e/ou ambientais”.
Vínculos financeiros com empresas e projetos em litígio
As evidências mostram que o BBVA tem prestado serviços finan-
ceiros, inclusive empréstimos e financiamento de projetos, participação e
estruturação de empréstimos agrupados e gestão e atuação como bookrunner
na emissão de bônus, a doze empresas que, por sua vez, estão envolvidas em
vários projetos em litígio.
Talvez não seja surpreendente que todas as empresas mencionadas
no relatório sejam do setor energético ou de setores que dependem bastante
de recursos naturais, como o setor de mineração, de celulose e de petróleo. A
grande maioria das questões em litígio está associada à exploração de minas
(10), seguidas daquelas vinculadas à construção de represas (5), a projetos de
gás ou petróleo (4) e a projetos de fabricação de celulose (2).
98
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
Sete das doze empresas citadas no relatório receberam serviços fi-
nanceiros do BBVA que podem ser classificados como financiamento de
projetos (“project finance”) ou financiamento direto. São elas:
• Minera Yanacocha, que administra a mina Yanacocha, mina de
ouro a céu aberto, em Cajamarca, no Peru;
• OCP Ecuador, que opera o oleoduto OCP, no Equador;
• Techint/Tecpetrol, que construiu e opera os dutos para o gasoduto Camisea, no Peru;
• Companhia Minera Los Pelambras, que administra a exploração
da mina de cobre Los Pelambres, no Chile;
• Companhia Minera Los Pelambras, que administra a exploração
da mina de cobre Collahuasi, no Chile;
• Compañía Minera Antamina, que opera a mina Antamina de
cobre e zinco, no Peru;
• Transierra, concessionária do gasoduto Gasyrg, na Bolívia.
No que diz respeito às outras empresas do relatório, o vínculo com
o BBVA é apenas indireto. Nesses casos, como dito no início do relatório, a
falta de informação adicional dificulta a avaliação de até que ponto o banco
pode ser responsabilizado pelas ações da empresa à qual prestou serviços
financeiros. Para tirar conclusões definitivas neste sentido, é necessário fazer
pesquisas adicionais de cada caso específico.
Se analisarmos os dados anteriores com mais detalhes, veremos que
há diversos vínculos entre o BBVA e o setor de infra-estrutura, considerando
três tipos de projetos: dutos, represas e complexos hidrelétricos. No total,
estamos falando de sete empresas e oito projetos correspondentes.
Entre os casos de financiamento direto, temos três:
•
Techint/Tecpetrol, que construiu e opera os dutos para o gasoduto
Camisea, no Peru (descrito anteriormente);
•
Transierra, concessionária do gasoduto Gasyrg, na Bolívia.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
99
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
•
OCP Ecuador, que opera o oleoduto OCP, no Equador;
Os quatro restantes pertencem ao financiamento indireto:
•
Grupo Votorantim que, por meio de sua filial Companhia Brasileira
de Alumínio (CBA) fez parte dos consórcios construtores das represas hidrelétricas de Barra Grande e Campos Novos, no Brasil.
•
Vale do Rio Doce (atualmente Vale), membro do consórcio adjudicado para a construção do projeto hidrelétrico Estreito no Brasil.
•
Petrobrás, através da Transierra, concessionária do gasoduto Gasyrg,
na Bolívia.
•
Endesa Chile, responsável pela construção da barragem Bio-Bio e
das futuras represas dos rios Baker e Pascua no Chile.
Duas das empresas supracitadas estão ligadas a casos recentes de
financiamento direto de projetos altamente em litígio. Em primeiro lugar,
o BBVA foi um dos bancos que participou de um empréstimo agrupado de
100 milhões de dólares à Minera Yanacocha, em 2006. O empréstimo inclui
uma cláusula que outorga aos bancos participantes alguns direitos sobre a
receita da mina proveniente da exportação. O projeto é objeto de litígio por
causa das incessantes críticas pela ONG, por causa dos efeitos da mina Yanacocha, inclusive a contaminação da água na área, problemas relacionados à
posse das terras onde a mina se encontra, os transtornos sociais que causou
e seus vazamentos tóxicos.
Em segundo lugar, em 2006, o BBVA Banco Continental, a filial
peruana do BBVA, financiou um empréstimo de 35 milhões de dólares
à Tecpetrol, uma das empresas que lidera as atividades de exploração do
projeto de gás Camisea no Peru. O empréstimo foi garantido através da
concessão para extrair e vender gás natural, adjudicado à Tecpetrol. O
projeto de gás Camisea se caracteriza pelas rupturas dos gasodutos que
causaram sérios vazamentos de gás. Pesquisas recentes mostram que a
Techint, operadora e responsável pela engenharia do gasoduto, matriz
da Tecpetrol, usou tubos defeituosos e contratou soldadores não qualifi-
100
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
cados para a tarefa e, assim, gerou graves deficiências na construção do
gasoduto. O projeto também foi criticado por seus impactos negativos
nas comunidades indígenas da área.
Os dois casos parecem ferir os Princípios do Equador, a Política
Ambiental do BBVA e os padrões de RSE do Global Compact da ONU e da
iniciativa do PNUMA para o Setor Financeiro (PNUMA FI), instrumentos
que o BBVA afirma apoiar.
O caso específico do gasoduto de Camisea no Peru
Como explicado anteriormente, o BBVA contribuiu com o finan-
ciamento da primeira fase do projeto Camisea (Camisea I) em meio a fortes críticas internacionais, apesar de no momento bancos privados como o
ABN-AMRO e o Citigroup se negarem a participar pelo risco financeiro e de
reputação inerentes.
Segundo as notícias mais recentes, a segunda fase do projeto (Ca-
misea II) continuará com o apoio do BBVA. Em 24 de junho de 2008, a
direção do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) assinou, em
sua sede em Washington (EUA), contratos de financiamento no valor de 800
milhões de dólares para o Camisea II. Este projeto está no Lote 56 e repete
os mesmos problemas que o Camisea I no Lote 88, em seu início em 2004.
Em operações anteriores e atuais, foram infringidas as normas dos próprios
BID e CFI, além de normas internacionais de direitos dos povos indígenas,
sobretudo no que diz respeito à consulta e ao consentimento prévios.
O contrato se divide em duas fases: um empréstimo de 400 milhões
de dólares concedido diretamente pelo BID e um segundo empréstimo de
400 milhões, composto por um consórcio de sete bancos, entre os quais o
BBVA (Société Générale, Calyon, BBVA, Sumitomo, ING, Mizuho, e Bank
of Tokyo Mitsubishi).
Por outro lado, dois dias depois, em 26 de junho de 2008, a Cor-
poração Financeira Internacional (CFI), o braço financeiro do Banco Mun-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
101
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
dial, juntamente com bancos privados (entre os quais provavelmente está o
BBVA), assinaram outro acordo, que concede um crédito de 300 milhões de
dólares para o projeto. No total, entre o BID e o CFI somam 1,1 milhões de
dólares em apoio financeiro.
É necessário destacar que o projeto Camisea está sendo questionado
não somente por seus impactos sociais e ecológicos. Sua orientação à exportação (principalmente ao México e EUA) entra em conflito com a satisfação
de uma crescente demanda do mercado interno peruano. Vários analistas do
setor de hidrocarbonos denunciaram este fato, advertindo sobre um panorama regional onde o gás se transformará em um recurso energético escasso e,
portanto, estratégico.
Conclusões do SETEM
O SETEM conclui que para o BBVA a responsabilidade social com
o meio ambiente e as sociedades afetadas onde o banco opera não é uma
prioridade. O caráter voluntário dos códigos de conduta prece ser insuficiente para que os bancos implantem esses princípios na hora de decidir sobre o
investimento em projetos e/ou empresas. O SETEM urge que o BBVA leve
mais a sério sua responsabilidade de fazer investimentos socialmente mais
responsáveis e recomenda que, no futuro, deixe de financiar projetos como o
de Camisea, no Peru, entre outros.
O BBVA também tem sido muito pouco transparente/aberto. Des-
de a publicação do relatório, o SETEM recebeu uma ligação do banco e
houve troca de alguns e-mails. No entanto, nunca respondeu oficialmente
sobre qualquer dos casos denunciados no relatório ou facilitou informações
sobre os processos e o avanço da implementação dos Princípios do Equador.
A única resposta pública veio de seu presidente, Francisco González, quando
interpelado por ativistas do SETEM e de outras ONGs durante a reunião
geral de acionistas do banco. Ele manifestou preocupação e consideração
pelas críticas que o Camisea I suscitou, mas, como pudemos comprovar, não
102
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
evitou que o banco se envolvesse de novo no Camisea II, de forma ainda
mais profunda. O argumento principal em sua defesa foi a adesão do banco
aos Princípios do Equador, como garantia diante de qualquer suspeita de
irresponsabilidade.
RESULTADOS DO RELATÓRIO PARA O SANTANDER
Descrição do banco
O Banco Santander foi fundado em 15 de maio de 1857 e, em 2007,
comemorou seu 150º aniversário. Desde sua fundação, o Grupo Santander
tem expandido sua presença para mais de 40 países do mundo, contando
com, no mínimo, 129.749 empregados e 10.852 escritórios naqueles países.
O banco tinha um total de 833.000 milhões de euros de crédito, sendo o
maior banco da Espanha e o décimo segundo do mundo. Em outubro de
2007, 86% das ações do banco ABN AMRO, o maior e mais importante
banco da Holanda, passaria para o consórcio dos bancos Royal Bank of Scotland, Fortis e Banco Santander.
Política de RSE/ambiental do banco
O Banco Santander tem uma escassa política ambiental. Contudo,
em suas declarações políticas diz que incorporará critérios ambientais a suas
atividades e adotará resoluções para proteger o meio ambiente.
Essas resoluções incluem: obter certificações ambientais como
ISO 14001 para os centros de trabalho na Espanha e no estrangeiro; prevenir a contaminação e promover resoluções para reduzir os efeitos de
suas atividades sobre a natureza, o uso eficaz dos recursos e a reciclagem
dos dejetos. Declaram, ainda, que cooperam e apóiam projetos que têm
por objetivo a preservação e proteção do meio ambiente. O banco conta
com um comitê ambiental que tem reuniões freqüentes no Grupo Santander City. O comitê é responsável por promover a política ambiental e sua
implantação, atualização e controle. No entanto, seu relatório anual não
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
103
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
apresenta dados sobre a existência de um sistema integral de avaliação
de seus impactos sobre o meio ambiente ou sobre a comunidade onde
funciona. Tampouco há informações sobre projetos recusados por não
cumprirem com os padrões internacionais ou sobre o que realmente analisam nos projetos antes de investir neles.
Além disso, o Grupo Santander participa do Carbon Disclosure Pro-
ject (GDP), que foi iniciado em 2000 por diferentes ONGs que trabalham
cautelosamente com a Global Reporting Initiative (GRI). A iniciativa tem dois
objetivos: informar os investidores sobre riscos importantes e oportunidades
em relação à mudança climática e informar os gerentes das empresas sobre
as preocupações dos acionistas em relação ao impacto da mudança climática
sobre o valor da empresa. As empresas se comprometem a apresentar relatórios anuais sobre suas emissões de carbono e as medidas que adotaram para
reduzi-las. A última atualização do Grupo Santander é de 2006.
O Banco Santander investiu 29 milhões de euros em projetos locais
de ação social e ambiental. Porém, não é possível concluir quanto dinheiro
exatamente foi investido nos projetos, tampouco desagregar por país. É necessário acrescentar que os investimentos em universidades são discutíveis,
se é que podem ser classificados como ação social ou RSC, já que gera contrapartidas diretas no negócio bancário. O investimento em energia renovável do Banco Santander também não é significativo sobre o total de investimento que ele faz em grandes projetos.
Por outro lado, em nível internacional, o Banco Santander participa
ou é signatário das seguintes diretrizes e padrões em termos de RSE:
• PNUMA FI
• Pacto Mundial das Nações Unidas, em 2002.
No entanto, é pouco provável que o Banco Santander se qualifique
para participar do Global Compact, já que seus participantes devem informar
anualmente aos grupos de interesse (stakeholders) sobre o progresso da execução dos princípios do Global Compact através de relatórios de sustentabi-
104
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
lidade, relatórios anuais ou outros comunicados corporativos. Também se
espera que os participantes no sítio do Global Compact e/ou da rede local
apresentem uma breve descrição de seu relatório de progresso e um link para
os comunicados corporativos. Segundo o sítio do Global Compact, “somente
os participantes que informarem sobre seus relatórios de progresso poderão
continuar a participar do Global Compact”. No entanto, a informação atual do
Banco Santander parece estar desatualizada, já que o último link se refere a
relatórios de 2005 e não foram incluídos estudos de caso.
Além disso, o Banco Santander não assinou os Princípios do Equa-
dor, tampouco faz referência às Diretrizes da OCDE em seu Relatório Anual
de Sustentabilidade, que é seu principal documento de políticas de RSE.
Vínculos financeiros com empresas e projetos em litígio
As evidências mostram que o Banco tem prestado serviços financei-
ros, inclusive empréstimos e financiamento de projetos, participação e gestão
de empréstimos agrupados e gestão e atuação como bookrunner na emissão de
bônus, a dez empresas que, por sua vez, estão envolvidas em vários projetos
em litígio. Talvez não seja surpreendente que todas as empresas mencionadas
no relatório sejam do setor energético ou de setores que dependem bastante
de recursos naturais, como o setor de mineração, de celulose e de petróleo. A
grande maioria das questões em litígio está associada à construção de represas ou usinas hidrelétricas (9), seguidas daquelas vinculadas à mineração (5),
a projetos de gás ou petróleo (4) e a projetos de fabricação de celulose (2).
Somente uma das atividades de financiamento mencionadas se encai-
xa na categoria de financiamento direto de projetos: o complexo hidrelétrico
Rio Madeira do Brasil. É necessário ressaltar que essa condição de financiador
direto não era a mesma à época da publicação do relatório. Pesquisas posteriores confirmaram a nova situação, onde o banco desempenha um papel protagonista e uma parcela importante da responsabilidade no que diz respeito aos
impactos já causados e os que serão potencialmente causados pelo projeto.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
105
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Nos casos de financiamento indireto, como dito no início do rela-
tório, a falta de informação adicional dificulta a avaliação de até que ponto
o Banco Santander pode ser responsabilizado pelas ações das empresas às
quais prestou serviços financeiros. Para tirar conclusões definitivas neste sentido, é necessário fazer pesquisas adicionais de cada caso específico.
Se analisarmos os dados anteriores com mais detalhes, veremos que
há diversos vínculos entre o Santander e o setor de infra-estrutura, considerando três tipos de projetos: dutos, represas e complexos hidrelétricos. No
total, estamos falando de oito empresas e 14 projetos correspondentes.
Entre os casos de financiamento direto, temos apenas um:
•
O próprio Santander faz parte do consórcio responsável pela construção da barragem de Santo Antonio, que faz parte do complexo
Rio Madeira no Brasil.
Os sete restantes pertencem ao financiamento indireto:
•
Grupo Votorantim que, por meio de sua filial Companhia Brasileira
de Alumínio (CBA) fez parte dos consórcios construtores das represas hidrelétricas de Barra Grande e Campos Novos, no Brasil.
•
Tractebel, que é parte do consórcio Transportadora de Gas del Perú
(TGP), responsável pelo transporte de gás no gasoduto Camisea, no
Peru; assim como construtora da represa de Cana Brava e membro
do consórcio adjudicado para a construção do projeto hidrelétrico
Estreito no Brasil.
•
Petrobrás, através da Transierra, concessionária do gasoduto Gasyrg,
na Bolívia.
•
Vale do Rio Doce (atualmente Vale), membro do consórcio adjudicado para a construção do projeto hidrelétrico Estreito no Brasil.
•
Endesa Chile, responsável pela construção da barragem Bio-Bio e
das futuras represas dos rios Baker e Pascua no Chile.
•
106
Furnas, responsável pela construção da represa de Manso, Foz do
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
Chapecó e membro do consórcio responsável pela construção da
barragem de Santo Antonio, que é parte do complexo Rio Madeira,
todas elas no Brasil.
•
CPFL Energia que fez parte dos consórcios construtores das represas hidrelétricas de Barra Grande e Campos Novos, no Brasil.
Deixando de lado o caso evidente do Complexo Rio Madeira, do
qual falaremos a seguir, as provas disponíveis sugerem que pelo menos no
caso de três das empresas que receberam serviços financeiros do Banco Santander, é altamente provável que o banco pudesse saber, ou soubesse, que
estava financiando projetos em litígio.
Em primeiro lugar, o Banco Santander foi um dos principias bancos
a oferecer o enorme empréstimo de 18.000 milhões de dólares para financiar a
aquisição da Inco pela Companhia Vale do Rio Doce, em 2006. Muito antes de
aprovar o empréstimo, a Inco tinha a reputação de conduta irresponsável e não
sustentável, ilustrada por sucessivos conflitos com as populações indígenas de
Nova Caledônia, Indonésia e Guatemala, por causa da falta de compensação às
populações locais por seu reassentamento forçado, o assédio e a poluição.
Em segundo lugar, o Banco Santander tem uma ampla relação finan-
ceira com a Endesa Chile, motivo pelo qual deve saber até que ponto a empresa está envolvida em dois projetos de reputação duvidosa, relacionados à
construção de barragens no Chile.
Por último, o Banco Santander liderou o consórcio de bancos que
facilitaram fundos para Furnas, a empresa energética estatal brasileira, e parece que também ia participar em uma segunda operação de financiamento
em 2007. Como a atividade principal de Furnas é gerar eletricidade com suas
usinas hidrelétricas, fica evidente que a empresa atrai fundos para financiar
a construção de barragens de alto custo e controversas. O Banco Santander
tem que ter previsto, ou pelo menos poderia ter previsto.
Essas práticas são incompatíveis com os padrões de RSE do Global
Compact da ONU e do qual o Banco Santander declara ser membro, espe-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
107
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
cialmente com o compromisso assumido ao assinar a Iniciativa do PNUMA
para o Setor Financeiro (PNUMA FI).
O caso particular do complexo hidroelétrico Rio Madeira no Brasil
O projeto, que se chama “Complexo Hidroelétrico do Rio Madeira”, consiste da construção de quatro barragens naquele rio, o segundo mais
caudaloso da Amazônia brasileira. O projeto também contempla a criação de
uma hidrovia fluvial para o transporte de matérias-primas.
A Comissão Mundial sobre Represas, uma comissão independente financiada pelo Banco Mundial e por empresas de energia elétrica, concluiu em
um relatório que as grandes represas têm sido “incapazes de garantir seus
objetivos, produzindo menos energia e muitas delas foram anti-econômicas”.
O Banco Santander, junto com o banco português Banif, está financiando
20% da barragem de Santo Antonio, a primeira do projeto, que tem um custo
estimado de 14.200 milhões de dólares.
As pesquisas realizadas revelam vários fatores que, com certeza, prejudicarão a viabilidade do projeto Rio Madeira. Em março de 2007, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis negou
a licença ambiental ao projeto devido à “ausência de controle ambiental e a
existência de informação contraditória” do estudo apresentado pelo consórcio Odebrecht-Furnas, que não contemplava todo o território afetado pelos
projetos, ou os impactos nas comunidades indígenas. Atualmente, há organizações brasileiras que estão utilizando o meio legal para lutar contra essas
irregularidades.
Cabe mencionar também que hoje em dia se percebe um aumento
na tensão política com a Bolívia, por causa da ausência de uma avaliação
sobre o impacto no território boliviano, outro motivo que questiona a viabilidade deste projeto no longo prazo.
Como dado significativo, é necessário destacar que os outros bancos
envolvidos no projeto Rio Madeira, como o Banco do Brasil, Bradesco, Itaú
108
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
O Papel dos Grandes Bancos Espanhóis no Financiamento de Projetos em Litígio na América Latina
e Unibanco, estão questionando sua continuidade no projeto e manifestaram
sua preocupação com a pouca vontade do Banco Santander para analisar
todos esses riscos.
Por outro lado, em nível de impactos sociais e ambientais, o projeto
apresenta grandes riscos, entre os quais: colocar em perigo uma área de incalculável valor ecológico; dificultar o acesso à água potável de Porto Velho,
capital do Estado de Rondônia no Brasil; causar o desaparecimento de povos
indígenas; fomentar a proliferação de bairros marginais e complicar o futuro
de 2.400 pescadores da região, além de obrigar 5.000 famílias a se deslocar,
sem prever compensação alguma.
Conclusões do SETEM
O SETEM conclui que o Banco Santander não tem levado a sério
sua responsabilidade social em relação ao meio ambiente ou às sociedades
afetadas onde opera. O caráter voluntário dos códigos de conduta prece ser
insuficiente para que os bancos implantem esses princípios na hora de decidir
sobre o investimento em projetos ou empresas. O SETEM urge que o Banco
Santander leve mais a sério sua responsabilidade de fazer investimentos socialmente mais responsáveis e recomenda que, no futuro, deixe de financiar
empresas como a Inco, entre outras.
O Banco Santander também tem sido muito pouco transparente/
aberto. Desde o momento da publicação do relatório, não respondeu oficialmente a nenhum dos casos denunciados no relatório. Por exemplo, não deu
informação alguma sobre os processos ou o progresso da implementação
dos Princípios do Equador. Assim como aconteceu com o BBVA, foi necessário esperar pela intervenção de ativistas do SETEM e de outras ONGs na
reunião geral de acionistas do banco para que o próprio presidente, Emilio
Botín, fizesse referência direta ao caso Madeira, mostrando ser conhecedor
do fato e prometendo publicamente uma reunião entre os representantes
do Banco Santander no Brasil e os grupos afetados. Essa reunião aconteceu
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
109
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
somente pela metade, já que só houve contato com os membros das ONGs
brasileiras, mas não com os afetados diretos. Atualmente, o projeto sofre
atrasos, mas segue adiante sem esperanças de produzir uma reforma social e
ambiental notável.
110
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Articulações ambientalistas
em oposição às grandes
obras de infra-estrutura
Omar Arach
Membro do Conselhoh
Cone Sul do Global Greengrants Fund
[email protected]
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
Introdução
Nos últimos anos houve um grande volume de mobilizações e protestos em relação à realização de grandes obras de infra-estrutura, normalmente
promovidas como sendo grandes projetos de desenvolvimento. Por dizer respeito apenas à parte da Bacia do Prata que pertence à Argentina e ao segmento
de obras no âmbito de projetos hídricos, podemos mencionar a bem sucedida
oposição às represas do Médio Paraná, Corpus e Garabí, a resistência à hidrovia Paraguai-Paraná e as ações em relação à represa de Yacyretá.
Essas mobilizações têm como denominador comum o fato de ter um
importante protagonismo de organizações e argumentos ambientalistas em sua
formação, além de mostrar diferentes formas de vinculação entre diferentes
atores encontrados em diferentes níveis de atuação1. Esses vínculos, independente das conotações que tenham alcançado, têm relação com correntes de
opinião e formas de articulação que vão além das arenas políticas onde se desenvolvem e remetem a processos transnacionais, que revelam novas configurações políticas no debate global sobre meio ambiente e desenvolvimento. Juntos, evidenciam uma rede de ativistas e organizações em crescente processo de
vinculação, que foi ganhando capacidade de agência nas arenas políticas onde
se define o rumo dessas obras e, em última instância, se decide em parte como
os bens territoriais da região serão usados.
Gustavo Lins Ribeiro (1987) cunhou a noção de Projetos de Grande
Escala (daqui em diante PGE) para se referir ao complexo processo que a
realização de uma grande obra de infra-estrutura implica2. Devido ao grande volume de recursos materiais e humanos que a construção de um PGE
demanda, é necessária a participação de diversos atores que constituem um
1 Neste trabalho é importante destacar a conexão com as organizações locais que representam as populações afetadas pela realização de tais obras.
2 Com esta denominação, que contém aspectos relevantes das mesmas: dimensão e planejamento, busca
esclarecer as noções de uso comum, como grandes obras de engenharia ou grandes projetos de desenvolvimento. A primeira porque se reduz ao aspecto técnico, a segunda porque toma com certo que elas
geram desenvolvimento..
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
113
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
campo de poder transnacional. Entidades financeiras, empresas transnacionais, departamentos do Estado constituem o pacote de forças que se
unem para viabilizar a construção. Isso implica gerar as condições jurídicas e institucionais para dar legalidade à obra, promover um processo de
propaganda para alcançar sua aceitação ou desejo social pela obra, assim
como para reunir os recursos técnicos, financeiros, materiais e humanos
que devem ser mobilizados para levar adiante a gigantesca operação sobre
a natureza que essa construção implica. Este processo toma tempo, no que
é conhecido como “ciclo do projeto” e é suscetível às mudanças políticas,
econômicas, sociais, institucionais da sociedade onde ele é desenvolvido.
Este processo de construção também é um processo gerador de conflitos
que se desenvolvem na arena política e abrange diversos níveis correspondentes à natureza dos vínculos que definem o sistema de decisão: desde o
nível local até o transnacional 3.
Tanto a realização dessas obras quanto as ações de resistência a
elas evidenciam dois aspectos de suma importância. Por um lado, até que
pondo as definições convencionais de desenvolvimento estão sendo desafiadas e até que ponto esses movimentos estão iniciando processos sociais
que permitam visualizar um futuro onde se desenhem cenários de “pós-desenvolvimento” ou de desenvolvimento alternativo? Por outro lado, quais
condições propiciam e quais características expressam essas alianças entre
atores distantes e distintos, e quais os potenciais e limitações na hora de
administrar formas de gestão que possam desafiar os paradigmas desenvolvimentistas mais convencionais? Estas perguntas orientam o conjunto de
notas que compõem este ensaio.
3. A construção de uma grande obra implica um processo de transformações enormes, com conseqüências negativas para as populações e para os elementos ambientais onde é realiza, colocando um drama
tipicamente desenvolvimentista: aquele assinalada por processos de criação destrutiva (Berman, 1998).
114
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
Projetos e Iniciativas em Grande Escala
Diante de uma corrida desenfreada pela construção de grandes obras
de infra-estrutura que tendem a redefinir o espaço sul-americano em função
de novas inserções na economia global, eu considero esses temas como de
extrema importância nos dias de hoje. A Iniciativa para Integração da Infra-Estrutura Regional na América do Sul (de agora em diante, IIRSA) – uma verdadeira
Iniciativa em Grande Escala – aparece como a expressão institucionalizada
por excelência, onde este processo se torna visível. Entendida (por seus promotores) como um fórum inter-governamental voltado ao planejamento do
desenvolvimento de infra-estrutura em escala continental, a IIRSA aparece
como um novo cenário de decisão onde os PGEs elaborados à época de rígidas fronteiras são redefinidos e re-legitimados sob postulados que remetem
ao tradicional discurso desenvolvimentista, mas que adquire outro sentido à
medida que invoca processos de integração sul-americana4.
Na realidade, embora a tendência a realizar PGEs e promovê-los
como veículos de desenvolvimento e bem-estar seja bastante antiga, há novas formas de encarar sua construção e que sugerem novos desafios para as
organizações que vinham batalhando com eles. Por um lado, novos agentes
financiadores, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) do Brasil, da Corporação Andina de Fomento (CAF) ou o
Fundo Financeiro para Bacia do Prata (FONPLATA), organismos que não
são monitorados pelas organizações da sociedade civil e que, portanto, não
estão ambiental ou socialmente “civilizados”. Por outro lado, uma nova visão de planejamento, onde os PGEs não são pensados (como o eram) por
sua funcionalidade dentro do território nacional, mas fazem parte de uma
cartografia continental que vem sendo elaborada pelas elites econômicas e
políticas do continente, à medida que se acentuam os processos de liberação
econômica e comercial em escala global.
4 E com isso fazer ressurgir uma antiga aspiração latino-americana que acompanha os países da região
desde seus primórdios.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
115
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Com certeza a carteira da IIRSA, com seus mais de 500 projetos,
é expressiva o bastante para evidenciar os desafios postos aos defensores
do estabelecimento de formas de apropriação do espaço que sejam ambientalmente sustentáveis e socialmente eqüitativas. Não se trata somente
de enfrentar determinados projetos (que estão obtendo novas condições
institucionais e de argumentos para sua realização), mas sim de fazer frente
a uma verdadeira iniciativa regional, claramente associada a uma visão do
assunto que é prioritariamente mercantil (não por acaso que a caracterização feita na IIRSA de cada eixo de integração tem como argumento central
a “visão dos negócios”). Com certeza a complexidade da arena política de
cada PGE parece ser ampliada por esse cruzamento de PGEs em um plano
diretivo comum.
Porém, talvez a IIRSA tenha como aspecto positivo o fato de permitir uma visualização mais clara do que pode estar ocorrendo de qualquer forma. Em outras palavras, nada melhor do que os mapas da IIRSA para mostrar o que as organizações ambientalistas mais politicamente radicais vêm advertindo há tempos: que a realização de PGEs é uma forma de ocupação do
espaço que redefine os territórios segundo a funcionalidade econômica em
um mesmo sistema mundial, e que esta lógica não percebe as particularidades
sociais e culturais desses territórios, tampouco os ritmos e fluxos próprios do
ambiente onde se encontram (consulte Rodríguez y Albarenque, 2006).
Mas se aceitarmos integralmente essa caracterização da IIRSA, podemos vir a correr o risco de ignorarmos também os próprios antagonismos e as controvérsias que animam a realidade da IIRSA em um campo tão
complexo de articulação e disputa entre diversos interesses (Verdum, 2007).
Corre-se o risco também de perder a sensibilidade para captar as múltiplas
formas em que a IIRSA (ou o que ela representa) é promovida, resistida ou
questionada em nível local (Rodríguez Mitchell, 2007).
Não há dúvidas que as organizações enfrentam muitos desafios diante da IIRSA, que demandam um complexo processo de seleção de ações de
116
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
incidência 5 para aumentar a eficiência do uso dos recursos de poder existentes, que normalmente são escassos. Contudo, um desafio muito importante
é criar vínculos com os setores locais, com a população dos territórios que
estão em disputa. Com certeza a situação atual aponta para a necessidade de
construir agências sociais com capacidade de resistir a processos com fortes
impactos locais, ao mesmo tempo em que gerar forças que transformem em
realidades outras múltiplas modalidades de integração territorial na América
do Sul. Porém, isso implica realizar processos de articulação entre diferentes unidades sociais à luz de vários aspectos (residencial, lingüístico, étnico,
nacional, de classe, religioso, entre outros), trabalhando os vínculos em um
contexto de mudança acelerada. Trata-se de um cenário organizacional bastante complexo devido à diversidade de interesses e perspectivas que estão
em jogo e cuja análise talvez possa ajudar a pensar como administrar esta
diversidade de forma mais conveniente, em função dos objetivos almejados.
As redes ambientalistas e as alternativas da articulação
A importância das redes ambientalistas na política contemporânea tem sido enfatizada. Elas se mostraram eficientes na reconfiguração da
agenda dos Estados e dos organismos multilaterais, estabelecendo melhores
condições para as reivindicações das populações prejudicadas e, em muitos
casos, para deter empreendimentos ou processos que poderiam trazer sérias
conseqüências para algum segmento da população 6.
Uma das potencialidades políticas dessas redes reside no fato de
elas mesmas construírem espaços onde se encontra a política ambientalista
5 Civilizar novas entidades financeiras em termos sociais e ambientais, dialogar com as esferas governamentais em novos cenários, iniciar formas de incidência sobre outros campos (agindo sobre as instituições que regulamentam os mercados consumidores dos produtos americanos, por exemplo) entre outras
ações.
6 Keck y Sikkink (2000) definem as redes como formas de organização caracterizadas por padrões de
comunicação e mudança horizontais, recíprocos e voluntários, estabelecidos entre atores diversos e distantes, mobilizados ao redor de um objetivo comum e que prosperam com base em sua capacidade fractal
de gerar novas redes e de produzir relações sinérgicas com outras redes organizadas em torno de outros
problemas.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
117
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
construída em nível transnacional e se transnacionaliza a problemática local.
Nesse marco é possível ativar o “padrão bumerangue” (Keck e Sikkink, op.
cit.) e contribuir para modificar as condições desfavoráveis que possam existir nos contextos domésticos para levar adiante as reivindicações. Um fato
particularmente importante se considerarmos que, paradoxalmente, aquelas
áreas especialmente importantes do ponto de vista da diversidade biológica
e cultural são as mais vulneráveis ao desenvolvimento da infra-estrutura por
causa de uma fraca institucionalidade para regulamentar os processos de intervenção (Humphrey, Nuñes e Mego, 2008).
Há excelentes exemplos de incidência positiva dessas redes. Mas
é importante reconhecer os problemas que elas enfrentam. Com certeza
as redes são estruturas submetidas a diferentes tensões, muitas das quais
resultantes do campo de poder onde atuam e dos poderosos atores que enfrentam. Contudo, há outras resultantes de processos internos, que torna a
constituição das mesmas vulneráveis às pressões externas. É neste sentido
que pretendo me concentrar na reflexão sobre algumas particularidades das
formas de articulação entre as organizações ambientalistas (normalmente
de atuação nacional ou transnacional) e as organizações locais (preferencialmente de setores afetados pelos empreendimentos). Sem dúvida este é
um dos elos mais difíceis de administrar e manter e, paradoxalmente, é o
mais importante, já que é o que pode servir de veículo entre o nível local e
os outros, permitindo não somente a harmonização de ações, mas também
a introdução das perspectivas locais nos cenários onde os planos são definidos em escala regional ou global.
Os pontos que apresento são pensados basicamente sobre as alianças entre ONGs ambientalistas e as populações afetadas. Sem dúvida, generalizar esses vínculos seria um excesso, já que há muitos tipos de ONGs e
dificilmente seria possível reduzir um campo tão variado a uma denominação
genérica que pressupõe uma homogeneidade em seu interior. O mundo das
ONGs é plural em vários aspectos (ideológicos, de composição interna, de
118
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
nível de atuação) assim como o mundo das organizações locais e de afetados.
Contudo, há certos aspectos comuns que permitem manter uma distinção
analítica entre esses dois “tipos organizativos”. A seguir, é apresentada uma
série de pontuações que resume minhas impressões sobre problemas que
ocorrem nesta relação, assim como as conjecturas de outros autores também
sobre a relação entre as ONGs e as organizações de afetados.
Um primeiro aspecto crítico é o que poderíamos chamar de assimetrias existentes nas diversas situações e condições dos indivíduos e grupos
que participam do processo de articulação. As articulações acontecem em
um contexto de desigualdade entre os conjuntos que as protagonizam. Nós
poderíamos citar assimetrias em dois planos: estrutural e contextual.
Assimetria estrutural, porque os indivíduos ocupam diferentes posições na escala social e por fim manifestam nesse encontro as desigualdades
próprias do sistema social onde atuam. Poderíamos também falar de uma
assimetria cultural, já que se trata de encontros sempre entre pessoas com
diferentes bagagens culturais, onde algumas estão mais bem preparadas para
atuar na arena política, já que compartilham dos códigos lingüísticos e culturais dos que tomam decisões nos PGEs. Sem dúvida, as decisões nos PGEs
são informadas por um jargão extremamente técnico, acessível em princípio
somente aos especialistas, normalmente expressas no idioma oficial dos países envolvidos e em inglês – o “creole” do sistema mundial (Ribeiro, 1999).
Assimetria contextual, porque os grupos de pessoas são impactados
de formas diferentes pelo PGE nos quais estão atuando. Embora os dois
conjuntos possam se considerar afetados, já que em termos de afetação a
definição do limite tem um componente subjetivo, é claro que para alguns
(os afetados) são conseqüências que alteram diretamente os padrões que organizam seu quadro de vida (residência, trabalho, vizinhança, etc.) e no outro
caso não. Isso implica que os riscos e benefícios resultantes da batalha não
são distribuídos eqüitativamente e, por fim, podem levar a diferentes avaliações da situação e a optar por cursos de ação divergentes, que produzem
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
119
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
tensão na comunidade política que se pretende construir. Da mesma forma,
implica interesses diferentes que podem ser traduzidos em objetivos díspares,
que não necessariamente são negados, mas que podem vir a colidir.
O efeito dessas assimetrias sobre a relação de articulação é paradoxal. Por um lado, é um incentivo para criar o vínculo, já que os afetados
precisam de aliados que os ajudem a se orientar no verdadeiro labirinto que
é o sistema de decisões de um PGE. Porém, é também uma fonte constante de tensões que ameaçam a continuidade dos vínculos, uma vez que a
comunidade política que pretende sustentar se vê refutada pela existência
de situações desiguais.
É impossível resolver este aspecto, mas pode haver diferentes formas de administrá-lo, dependendo do tipo de estruturas de mobilização criadas para negociar e entrar em consenso sobre as táticas e estratégias a serem
seguidas. Eu acredito que as possibilidades de administrar essas tensões aumentam à medida que sejam realizados encontros freqüentes e sejam criados
espaços de contínua negociação entre os componentes. Mas isso não é tão
fácil de conseguir, apesar da boa vontade dos protagonistas. E isso nos leva
a outro ponto crítico.
O próximo ponto é o que chamo de uma conectividade restrita. Quando
falamos de conectar o local ao global, falamos de processos de interações e
vínculos que possibilita a conexão entre um mundo de relações locais e um
mundo de relações globais, falando de forma simplificada. Mas esta conexão
não se dá a partir de conexões generalizadas entre pessoas e organizações
locais e globais. Cada vez mais a articulação se baseia no vínculo entre indivíduos que são, com base em suas relações e seu carisma, os que podem
administrar e manter essas alianças.
Sem dúvida, a manutenção de redes ou coalizões transnacionais é
muito onerosa, o que impede a geração de espaços de representatividade e
encontro generalizado (de conectividade generalizada). Assim, a articulação entre
conjuntos bastante amplos de pessoas e organizações está sujeita à ação de
120
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
uns poucos indivíduos que servem de intermediários. O mundo das redes,
como qualquer mundo que emerge em processos de articulação, é realmente
um mundo intermediário, de pessoas que podem exercer o papel de conectar
dois mundos organizacionais diferentes. Essas pessoas costumam apresentar
habilidades muito especiais por manejarem pelo menos dois códigos distintos e aumentam seu poder no decorrer da luta, adquirindo uma influência
especial para orientar as alianças e as ações. Este fato leva ao próximo ponto
crítico, que fala do risco de que alguma forma de poder construída coletivamente seja apropriada setorialmente ou individualmente.
A criação de uma forma de agência social é também a criação de
um poder (seja tangível ou simbólico) que circula e é distribuído de forma
díspar. A concatenação em formas de articulação induz os indivíduos a se
conectarem ao “nível superior”, em uma busca pelo controle de algumas
das fontes do poder social. Com certeza, ainda que as redes se esforcem por
atuar de forma poli-centralizada e em redes, a procedência dos principais
fluxos (financeiros, informação, relações sociais) funciona desde o global até
o local. A participação em níveis superiores exige habilidades e recursos que
não estão disponíveis para todos no nível de partida. Assim, os movimentos
podem aumentar os processos de diferenciação, tanto entre organizações
como dentro delas7. Isso nos leva ao próximo ponto.
A participação em movimentos desta natureza, juntamente com a
construção de coletivos sociais, faz com que diferentes grupos falem em
nome deles. Porém, quem está plenamente autorizado a falar em nome do
coletivo, ou falar em nome dos outros? Batalhar contra os PGEs implica uma
tarefa árdua e desgastante, que exige muita dedicação e implica necessariamente a distribuição de papéis e funções, entre as quais assumir a represen7 Analisando o mundo das ONGs que trabalham ativamente em processos de articulação, creio que há
dois tipos de pessoas: aquelas orientadas localmente, que enfatizam seu trabalho para as bases, e aquelas
orientadas globalmente, que reforçam seus vínculos com atores globais. O bom desempenho depende
de um equilíbrio adequado entre o poder das duas. No entanto, os processos de articulação podem levar
aqueles que são orientados globalmente a ganharem mais poder para decidir as posições da organização
no campo de batalha.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
121
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
tatividade de terceiros. Mas nem sempre é possível estabelecer claramente os
mecanismos para tanto e, em muitos casos, quem acaba tendo a oportunidade de manifestar a voz dos afetados não pertence a esse mundo ou acaba se
desligando dele. Ainda que sejam sensíveis à sua problemática, no caso das
ONGs, podem acabar projetando imagens e expectativas que não necessariamente são a dos grupos que servem de referência para sua intervenção.
Certamente as ONGs afirmam falar por direito próprio e que conseguiram conquistar um espaço legitimo, uma vez que os problemas que elas
combatem são assuntos públicos que afetam bens de propriedade difusa.
Contudo, não se pode negar que sua legitimidade e autoridade moral aumentam à medida que fica provado que elas transmitem a verdadeira voz dos
afetados. Diferentes formas de administrar esta situação têm sido testadas,
entre as quais uma que favorece audiências em níveis transnacionais, onde os
afetados expressam seus verdadeiros interesses e problemas. Mas isso não
pode ir além de uma participação pontual. Certamente os processos de articulação se baseiam em processos de delegação. E qualquer delegação é um
ato que põe em prova a confiança dos que delegam a representação e a responsabilidade de quem as assume.
Mas além desses termos tão impregnados de uma carga moral (confiança, responsabilidade), os vínculos são estabelecidos também com base
nas expectativas sobre o comportamento dos parceiros, que se baseiam em
determinadas imagens do outro e na premissa de uma reciprocidade de perspectivas de dá coesão à relação. Em muitos casos, a conexão com os atores
locais tem por base uma visão desses atores como populações que levam uma
vida de relação harmoniosa com a natureza, algo que alguns (especialmente
os antropólogos) chamam, pejorativamente, de essencialismo ecologista (Brossius, 1999; Conklin e Graham, 1995). As populações locais são apresentadas
como “comunidades” com estilos de vida tradicionais e à margem das regras
e imposições de um sistema econômico predatório, que está sendo combatido. Essas imagens são promovidas para dar suporte a uma das dimensões
122
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
particularmente valorizadas hoje em dia e que pode estar ameaça pelo PGE
em questão: a diversidade cultural e a sustentabilidade dos modos de vida.
Em muitos casos, essas imagens encontram correspondente na realidade, mas em outros casos não. Elas podem ser assumidas até mesmo
pelos representantes dos atores locais, em uma verdadeira “performance”. O
caráter consciente da representação levou alguns ativistas a defini-la como
um essencialismo estratégico. Este recurso é válido e legítimo quando a verdade
se encontra nos objetivos buscados e não na correspondência com a realidade. Contudo, pode levar a mal-entendidos e dificuldades de relações, já que
a representação acaba virando um “deve ser” que pode inibir a expressão
dos verdadeiros interesses e perspectivas de quem está sendo representado.
Como dito em algumas ocasiões, a comprovação desta separação entre a
realidade e sua representação leva a acusações de manipulação por parte dos
atores locais. E tem usurpado das organizações ambientalistas a capacidade
de compreender a lógica das populações locais, ou tem minguado sua vocação para continuar “representando” essas populações no processo (Conklin
e Graham, op.cit.).
O próximo aspecto que quero salientar tem relação com o anterior
e está vinculado a algo mais amplo, que tem a ver com as noções divergentes
de desenvolvimento que podem existir nos dois setores. Para os ambientalistas,
especialmente aqueles no arco de ecologistas radicais, a noção de desenvolvimento é um artefato ideológico empregado para cobrir as relações de domínio dentro do sistema mundial e para dar uma expectativa de futuro para os
setores oprimidos, sem precisar questionar os fatores estruturais que determinam sua condição. Para os atores locais, contudo, a noção pode ter outros
matizes (Rangan, 1996).
E não se trata de uma questão meramente retórica, mas também de
conteúdos. Indubitavelmente, os territórios impactados por essas obras costumam ser particularmente valorizados por sua riqueza biológica, paisagística
e cultural. São territórios que se encontram no centro do ideário ambien-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
123
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
talista e são vistos, talvez corretamente, como os embriões das sociedades
sustentáveis do futuro. A tarefa dos ambientalistas passou por valorizá-los,
desafiando os relatos desenvolvimentistas que se referiam àqueles territórios
como áreas improdutivas, atrasadas, etc. E, sem dúvida, esta luta pelo significado tem fornecido importantes referências cognitivas e simbólicas para as
populações locais se oporem aos discursos desenvolvimentistas.
Porém, além dessa importância inegável, esses locais ocupam uma
posição marginal na estrutura econômica, política e social do Estado nacional ao qual pertencem ou foram anexados. Sob esse ponto de vista, representam áreas isoladas, mal servidas, com poucas oportunidades de trabalho,
entre outras carências. Normalmente essas áreas são muito receptivas aos
discursos do desenvolvimento e suas populações (principalmente os segmentos mais influentes) conseguem expressar com força o sentimento inerente à
modernidade que Marshal Berman (1998) definiu como o “desejo de desenvolvimento”. Se dúvidas, para estas populações a noção de desenvolvimento
continua a ser o veículo semântico usado para expressar as reivindicações de
acesso à cidadania, a serviços, à inclusão e à melhoria da qualidade de vida.
É um paradoxo que aquele que deseja também represente um risco muito
provável de desaparecimento do mundo onde vive.
Nestas condições, e conforme forem apresentados os argumentos e
as ações, a intervenção das organizações ambientalistas pode resultar antipática. Em alguns casos, podem ser expostas à acusação chauvinista de defender
interesses estrangeiros que querem “impedir o desenvolvimento da região”.
E assim parecem enfrentar um dilema duplo: desmistificar o projeto como
veículo de desenvolvimento ou questionar a fundo o mesmo conceito de desenvolvimento sobre o qual se baseia. Tenho a impressão que em muitos casos
uma ênfase excessiva no segundo aspecto reduziu as possibilidades de maior
comunicação para o local. Sem sombra de dúvida, o termo desenvolvimento é tanto transnacional como ambientalismo, mas o primeiro tem sido “indigenizado”
e pode parecer muito familiar aos ouvidos locais, o que não ocorre com as po-
124
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
sições ambientalistas. Sem dúvida, talvez para se conectar melhor com alguns
setores locais, seria conveniente assumir um desenvolvimentismo estratégico8.
Este conjunto de condições sob as quais os processos de articulação
são estabelecidos resultou em uma diversidade muito grande de situações,
que também nos falam sobre diferentes formas de resolver alguns dos dilemas apresentados. Van Tuij e Jordan (1999) analisaram diferentes campanhas
transnacionais e propuseram uma tipologia em função do grau de alinhamento e convergência apresentado pelos diferentes atores envolvidos em
cada campanha. Assim, quatro tipos de campanha foram diferenciados: cooperativa, concorrente, dissociada e competitiva. Se a campanha cooperativa
mostrava o ideal, marcado por um processo de alinhamento contínuo que
resultava em uma convergência fluida em troca de informação e definição
de objetivos, a campanha competitiva mostrava a possibilidade menos desejável, onde o intercâmbio de informações era restrito ou nulo, os espaços de
negociação inexistiam e os objetivos buscados pelos atores atrapalhavam a
realização dos objetivos propostos por atores em outro nível.
Van Tuijk e Jordan apelaram ao conceito de responsabilidade política 9 dos ativistas para conseguir administrar as diversas tensões existentes
nos processos de articulação. Esta responsabilidade política seria indicada
em função da disponibilidade de recursos de poder e da vulnerabilidade
diante das decisões tomadas pelos diferentes componentes da rede. A distribuição do poder e a distribuição dos riscos delimitavam um marco de
referência para postular o grau de responsabilidade política que cabia a
cada um e como se deveria trabalhar em função disso. Os autores parecem
propor um esquema semelhante à idéia de Marx na hora de aplicar algum
princípio de justiça distributiva: de cada um segundo sua capacidade, a cada
um segundo sua necessidade.
8 Sugiro esta idéia a partir dos argumentos desenvolvimos por Peet (2007).
9 Diferente, em inglês, de accountability. Os autores usam essa distinção para avaliar de forma diferente os
comportamentos dos que têm um “dever moral” diante do assunto e aqueles que têm efetiva e formalmente um lugar no sistema de tomada de decisões.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
125
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
É necessário esclarecer que o tipo de vínculo estabelecido em uma
campanha depende de muitos fatores, além das questões comportamentais
apresentadas. Este tipo de aliança é muito vulnerável ao contexto político
onde a ação é desenvolvida e, com certeza, às ações desenvolvidas por aqueles com quem confrontamos, o que Voss (1999) chama de os contra-movimentos. Com isso pretendo evitar a possibilidade de aderir a um voluntarismo cego às dificuldades existentes, especialmente aquelas estruturalmente
marcadas. Contudo, assim como Van Tuijk e Jordan, creio que diante de
situações “estruturalmente similares”, são os comportamentos das pessoas
que fazem uma diferença.
Mas se essa diferença não estiver predisposta a lidar com as organizações locais, só contribuirá para modificar a infra-estrutura das relações
nas quais as redes se baseiam. Sem dúvida, o mundo das organizações ambientais pode ser definido, com proposto por Barros (2000), como um campo polinuclear de poder, onde alguns agentes núcleos dispõem de vários recursos
estratégicos (dinheiro, informação, conhecimento, relações sociais, tempo
livre) que lhes garantem uma capacidade especial para incidir sobre a forma que esses processos assumem. Os fluxos de financiamento (a lógica
com a qual são realizadas as atividades que pautam os circuitos por onde
circulam) são um fator importante para ajudar a construir novas parcerias
e articulações. Embora não seja essencial para que surjam forças sociais, o
certo é que uma boa aplicação deles pode revigorar as ações e aumentar sua
capacidade de repercussão.
Tenho a impressão que os fluxos financeiros, escassos por si só,
nem sempre são aplicados eficientemente. Os fluxos financeiros também
circulam em circuitos de conectividade restrita e nem sempre são eficientes para
irrigar as redes sociais e intensificar seus vínculos. Neste sentido, acho que é
necessário desenvolver uma tarefa em termos de construir agências que possam gerar, coletar e distribuir fundos de financiamento apropriados para as
condições em que as organizações locais atuam, e ajustados às necessidades
126
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
dos processos que elas protagonizam10. Não há dúvida que a disponibilidade
de financiamento na medida justa e no momento oportuno pode permitir o
aproveitamento de oportunidades que fortaleçam a rede com um todo.
Reflexões finais
A fonte das reflexões que acabo de expor vem principalmente da
análise de movimentos de resistência a PGEs que aconteceram na Bacia do
Prata nos anos 90. Refiro-me principalmente aos processos de oposição à
represa do Médio Paraná (Arach, 1999), à represa de Yacyretá (Arach, 2003
a) e ao projeto de Hidrovia Paraguai-Paraná (Arach, 2003 b). Também me
baseei em outros trabalhos que analisaram processos equivalentes com situações similares (Bartolomé, 1999; Brossius, 1999; Conklin e Graham, 1995;
Hostetler, 2003; Van Tuijl e Jordan, 1999). Penso que as propostas de desenvolvimento têm algum grau de generalidade e, por fim, validade para outras
experiências afins.
Quando dei início às pesquisas, o fiz para analisar situações e realidades dramáticas e muito expressivas de algumas das forças que impulsionam
a dinâmica de nossas sociedades e definem a forma como atuamos sobre o
meio ambiente. Porém também o fiz interessado em ver o que a antropologia
poderia fazer em contextos dessa natureza – um tema que, apesar de bastante
debatido, não o foi suficientemente, como é de se esperar (Bartolomé, 1992;
Cernea, 1988; Ribeiro, 1992).
Devo enfatizar que essas reflexões também se alimentam de meus
próprios dilemas e preocupação como parte integrante dos movimentos
10 Neste sentido, uma experiência inovadora a ser analisada é a do Global Greengrants Fund (GGF), do
qual faço parte como membro do Conselho para o Cone Sul. O GGF entrega pequenos fundos a grupos
de ativistas em temas de justiça ambiental e sustentabilidade local. Esses grupos são identificados como
“conselhos sub-regionais” e seus membros são selecionados com base nos contatos existentes com organizações e atores que trabalham temas de justiça social, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
Atualmente há cinco conselhos na América Latina. Há também conselhos em outras partes do mundo e
um “conselho global” composto por entidades amigas do GGF. Para mais informações, consulte www.
greengrants.org
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
127
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
que analisei, assim como habitante de algumas redes de organizações que
os administram, preocupado e comprometido com os objetivos que se busca. Sem dúvida, desenvolvi essas pesquisas aplicando as técnicas tradicionais de indagação antropológica (principalmente a observação participante)
e como ocorreu a muitos antropólogos, fui cativado pelo objeto de estudo
e comprometido com os sujeitos que protagonizam suas principais referências. Atualmente, sou membro de uma rede internacional que trabalha com
o financiamento a organizações de base e diariamente enfrento alguns dos
dilemas que enfrentavam os ativistas ambientalistas cujas ações eu analisei
por muito tempo.
Há quase dois séculos, Gustavo Lins Ribeiro (1992) escreveu um breve
artigo onde propunha que a antropologia pode contribuir com uma metodologia de ação para enfrentamento dos PGEs. Duas áreas nas quais o antropólogo
poderia efetivar seu compromisso, mediante o envolvimento nas áreas políticas
dos PGEs, foram identificadas sob essa premissa: por um lado, conduzindo
uma política da informação que deixe mais claro para as populações afetadas
o contexto onde acontecia o drama desenvolvimentista que afetava suas vidas. Por outro lado, um lobby político institucional onde se desdobraram as
ações que migraram do Município para o Banco Mundial. Ou seja, ações que
conectaram os esforços dos reclamantes nos diferentes níveis de ação em que
geralmente um PGE se desenvolve: desde o local até o global.
Desde então, os movimentos de resistência aos PGEs aperfeiçoaram
seus recursos e cursos de ação e, de certa forma, a aspiração Ribeiro foi realmente viabilizada, principalmente por meio da ação organizada de grupos de
cidadãos geralmente reunidos sob a figura organizacional das ONGs. Essa
mudança geral do contexto, com novos atores políticos, novos cenários de
atuação e novos recursos disponíveis para a luta, coloca em outro plano as
perguntas que podíamos nos fazer a várias décadas. A “antiga” preocupação dos antropólogos envolvidos no drama desenvolvimentista que tentava
tornar os PGEs menos nocivos em termos sociais e ambientais abre novas
128
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
perguntas. A partir de então, a questão passa não somente por tornar mais
sensíveis as instituições que desenham e implementam os PGEs diante das
realidades ambientais e sociais que perturbam e/ou destroem. Passa também
por pensar sobre como o trabalho da antropologia pode contribuir com o
desempenho daquelas organizações e estruturas de mobilização administradas para, então, se opor. O título deste trabalho pretende responder a este
propósito, além de remeter a uma preocupação que, creio eu, é central para a
construção de forças eficazes em oposição a PGEs. Penso que estas questões
são úteis diante dos desafios que as organizações ambientalistas enfrentam,
especialmente em face ao complicado panorama da realização de grandes
obras de infra-estrutura na região, vis-à-vis a IIRSA. Esses desafios nos mostram a necessidade de conseguir formas fluidas e eficazes de articulação entre
organizações muito heterogêneas, para construir uma densa rede de vínculos
que possam resistir a processos globais com fortes impactos locais. E nos
falam, mais amplamente, da necessidade de gerar movimentos sociais e referências de cidadania verdadeiramente transnacionais, como uma forma de
viabilizar outra integração.
Gostaria de finalizar mencionando Rodríguez Mitchell (op. cit.) quando disse: “Este panorama de superposições e entrelaçamentos nos coloca
diante de condições inéditas para a produção de conhecimentos e técnicas,
cujo eixo seja a articulação de sociedades, culturas, direitos, compromissos (na
participação informada de e com todos) e o desenvolvimento. Ou seja, a ética,
a ciência e a técnica envolvidas nos processos sociais em modalidades inovadoras, além das modas intelectuais em voga e da tecnologia de mercado. E, além
disso, a multi e interdisciplina, conhecendo e operando na interculturalidade
concreta e em relações multi-étnicas e plurinacionais em transição” (: 56).
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
129
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Referências
ARACH, Omar 1999 a. “La represa y el drama. Conflictos sociales y argumentos ambientalistas en torno a la represa del Paraná Medio”. Em: Revista
POS. Instituto de Ciências Sociais. Universidade de Brasília.
ARACH, Omar 2003 (a). “Ambientalismo, Desarrollo y Trasnacionalidad: las
protestas sociales en torno a la represa de Yacyretá” em E. JELIN (comp.)
Más allá de na Nación: Las Escalas Múltiples de los Movimientos Sociales.
Buenos Aires: Libros del Zorzal.
ARACH, Omar 2003 (a). “Ambientalismo, Proyectos de Gran Escala y Trasnacionalidad. El caso de la Coalición Ríos Vivos y la oposición a la ‘Hidrovía
del Mercosur’” en Revista AVA. Nº 4. Posadas
BARROS, Flávia Lessa de 2000. “Ambientalismo, globalização e novos atores sociais” em iedade e Estado xi (1):121-137.
BARTOLOME, Leopoldo 1992. “O extrangeiro profisional” en ARANTES
(et.al.) DESENVOLVIMENTO E DIREITOS HUMANOS. Campinas.
Sao Paulo: Ed. UNICAMP.
BARTOLOMÉ, Leopoldo J. 1999. “Combatiendo a Leviatan. La articulación y difusión de los movimientos de oposición a los proyectos de desarrollo
hidroeléctrico en Brasil (1985-1991)” em Desarrollo Económico. Vol 39. Nº 153.
Bs. As. IDES.
BERMAN, Marshall 1998. Todo lo Sólido se Desvanece em el aire. México:
Siglo XXI.
BROSIUS, Peter 1999. “Analyses and Interventions. Anthroplogical Engagements with Environmentalism” em Current Anthropology. V.40 Nº 3.
130
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
articulações Ambientalistas em Oposição às Grandes Obras de Infra-estrutura
CERNEA, Michael 1988. “Involuntary Resettlement in Development Prjects: Policy Guidelines in World Banks- Financed Projects”. World Bank
Technical Paper 80. Washington, D.C.: World Bank.
CONKLIN, Beth and GRAHAM, Laura 1995. “The Shifting Middle Ground:
Amazonian Indians and Eco-Politics” in American Anthropologist, Vol. 97, Nº
4. American Anthropological Association.
HOSTETLER, Kathryn 2003. “MERCOSUR, ciudadanía y ambientalismo”
en E. JELIN (comp.) Más allá de na Nación: Las Escalas Múltiples de los
Movimientos Sociales. Buenos Aires: Libros del Zorzal.
HUMPHREY, Denisse, NUÑEZ, Tristan y MEGO, Andrés 2008. “Perú:
IIRSA ¿una oportunidad perdida?”, consultado em: www.bicusa.org.
KECK, Margaret y Kathryn SIKKINK 2000. Activismos sin Fronteras (cap.
4). Madrid. Siglo XXI.
PEET, Richard 2007. “Imaginarios de desenvolvimento” En: Mançanco Fernandez, Medeiros Marquez e Suzuki (comp.) Geografia Agrária e Poder. São
Paulo. Expresação popular.
RANGAN, Haripriya 1996. “From Chipko to Uttaranchal. Developent, enviroment, and social protest in the Garthwal Himalayas, India” in R. PEET
and M. WATTS (eds) Liberation Ecologies. Environment, Development, Social Movements. Londres: Routledge.
RIBEIRO, Gustavo Lins 1987. “Cuanto más grande mejor? Proyectos de
Gran Escala: una forma de producción vinculada a la expansión de los sistemas económicos” en Desarrollo Economico, v.27, Nº 105. Buenos Aires
RIBEIRO, Gustavo Lins 1992. “De la Prefeitura ao Banco Mundial” em
ARANTES (et.al.) DESENVOLVIMENTO E DIREITOS HUMANOS.
Campinas. Sao Paulo: Ed. UNICAMP.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
131
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
RIBEIRO, Gustavo Lins 1999 “A condicho da transnacionalidade” em Revista Brasiliense de Políticas Comparadas. Ano III. Nº 1. Brasilia
RODRÍGUEZ, Mara e Iván Albarenque 2006. LAS ESPACIALIDADES
ABIERTAS DE AMERICA LATINA. Tesina de la carrera de posgrado en
Educación en Ambiente para el Desarrollo Sustentable. Universidad Nacional del Comahue. (inédito)
RODRÍGUEZ Mitchell, Nemesio 2007. “La colonización silenciosa. Megaproyectos de Desarrollo en territorios indígenas y afroamericanos de América Latina”. Oaxaca Población Siglo XXI. Ano 7, Nº 20. pp. 53-59.
VAN TUIJL, Peter y Lisa Jordan 1999. “Political Responsability in Transnacional NGO Advocacy” (consultado em BIC’s HOME PAGE, internet, em
29/11/2001).
VERDUM, Ricardo 2007. “Obras de infla-estrutura no contexto da integração sul-americana”. Em: Ricardo Verdum (comp.) Integração, Usinas Hidrelétricas e Impactos Socioambientais. Brasília. INESC. pp. 13-40.
VOSS, Kim 1999. “El colapso de un movimiento social: estructuras de movilización, creación de marcos interpretativos y oportunidades políticas en el
caso de los Knights of Labor” en Mc ADAM (et. al) Movimientos Sociales:
Perspecticas Comparadas. Madri: Istmo.
132
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento
do capital brasileiro na Colômbia
Jairo Estrada Álvarez
Pesquisador ILSA.
Professor da Universidade Nacional da Colômbia.
Margarita Flórez
Pesquisador ILSA.
[email protected]
[email protected]
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
Introdução
Este trabalho tem como finalidade principal examinar as tendências principais do investimento brasileiro na Colômbia nos últimos anos.
O desenvolvimento dessa finalidade no texto foi dividido em três partes:
na primeira, são feitas alguma considerações sobre as tendências gerais da
política diante do investimento estrangeiro do Estado colombiano, e mostra seu comportamento mais recente. Na segunda, são formuladas algumas
apreciações sobre a política de investimento brasileiro na América Latina,
especialmente durante os governos de Lula. Na terceira, são analisadas os
investimento de capital brasileiro na Colômbia, realizadas nos últimos anos.
Por fim, são formuladas algumas considerações sobre as perspectivas do investimento brasileiro na Colômbia.
O trabalho foi elaborado com base nas seguintes hipóteses: embora
o investimento recente do capital brasileiro não seja significativo em relação
ao total do investimento estrangeiro na Colômbia, ele é comparativamente
maior do que tem sido o comportamento histórico desse investimento no
país. Essa nova tendência pode ser explicada principalmente pela conjugação
de dois fatores: por um lado, as políticas neoliberais de favorecimento ao
investimento estrangeiro e de proteção aos direitos de propriedade do capital
transnacional incentivadas na Colômbia nos últimos anos, aceleradas especialmente durante os governos de Uribe Vélez (2002-…). Por outro lado, há
os planos de expansão do Brasil na América Latina, no marco das estratégias
de crescimento do governo Lula, que demonstram um crescente interesse
por uma maior presença nas economias latino-americanas, somado com a
pretensão de buscar saídas (mais rentáveis) da produção brasileira para o
Pacífico e reduzir as saídas dessa mesma produção ao Atlântico.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
135
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Nos últimos anos, os estudos sobre o investimento estrangeiro na
Colômbia foram muito limitados e concentrados em caracterizações gerais1.
Praticamente inexistem análises de casos recentes. O investimento de capital
brasileiro na Colômbia não mereceu qualquer abordagem sistemática. Neste
sentido, este trabalho deve ser considerado uma análise preliminar que pretende, além do mais, assentar as bases para pesquisas posteriores2.
Tendências de política e comportamento geral do investimento
estrangeiro na Colômbia
A política de investimento estrangeiro na Colômbia se insere na política geral das últimas décadas de construção de uma ordem neoliberal. Um de
seus pilares se encontra precisamente na profícua produção de normas para a
transnacionalização e a desnacionalização da economia. Os desenvolvimentos neste sentido têm sido orientados, cada vez mais, à geração de condições
para a liberdade dos fluxos de capitais em suas diferentes modalidades. Daí
a criação de novos marcos legais e institucionais de (re)regulação neoliberal
do mercado de capitais, do comércio exterior e o investimento estrangeiro
direto. Estimulou-se não somente a chegada de capital estrangeiro através de
diversos mecanismos e incentivos, mas também a proteção aos investimentos. É sabido que a idéia da política neoliberal se apóia na idéia do círculo
virtuoso: investimento estrangeiro – crescimento – emprego e bem-estar.
Com relação à política de investimento estrangeiro, é observada uma
orientação gradual e sistemático do ordenamento jurídico para um regime que
1 Consulte, por exemplo, Urrutia Montoya, Miguel 1996 “Inversión extranjera en Colombia. Un recuento”,
em Revista del Banco de la República (Bogotá) No. 829; Fedesarrollo 2007 “La inversión extranjera directa como
impulso al desarrollo”, em Economía y política. Análisis de Coyuntura Legislativa (Bogotá); Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe 2006 La inversión extranjera directa en América Latina y el Caribe Informes 19972006 (Santiago do Chile: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe); Estrada Álvarez, Jairo
2008, “Transnacionalización y nueva espacialidad capitalista. Elementos de economía política de la inversión
extranjera en Colombia”, em Revista Espacio crítico, (Bogotá) No. 8, http//:espaciocritico.com
2 Sobre o investimento estrangeiro na América Latina e no Brasil, assim como o investimento brasileiro
na América Latina, consulte: Cepal, Evolución y composición de los flujos de inversión extranjera en América del Sur
bajo la óptica de la principales empresas inversionistas (trabalho realizado por Lucía Félix), 2007.
136
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
tem como fundamento a eliminação de qualquer tipo de restrição ao investimento (sejam eles setoriais ou de caráter administrativo), o estabelecimento
de condições iguais para investidores nacionais e estrangeiros, a criação de
diferentes incentivos – especialmente de caráter tributário – e a criação de um
sistema de proteção desses investimentos, que pretende se transformar em
um verdadeiro impedimento jurídico diante de eventuais medidas (posteriores) que pudessem afetar os direitos de propriedade do capital transnacional
e, mais especificamente, suas condições de rentabilidade.
Traços gerais do regime de investimento estrangeiro
A partir desta consideração geral, vejamos alguns dos principias traços do regime de investimento estrangeiro na Colômbia. O Estatuto de inversiones internacionales de Colombia trata do regime de investimento de capital do
estrangeiro no país e o regime dos investimentos colombianos no exterior. O
Estatuto se baseia na Resolução 51 de 1991, adotada pelo CONPES – Conselho de Política Econômica e Social – e foi modificado por várias normas.
Entre as últimas provisões sobre a matéria, há o Decreto 2080 de outubro de
2000, que editou o Regime Geral de Investimentos de capital do exterior.
O ordenamento jurídico colombiano distingue duas classes de investimento:
a) Investimentos de capital do exterior que incluem as zonas francas
colombianas realizados por pessoas não residentes.
b) Os investimentos realizados por residente do país no estrangeiro ou
em zona franca.
Os investimentos de capital do exterior compreendem tanto o investimento direto quanto o investimento de carteira. Investimento direto é:
a) a aquisição de participações, ações, quotas sociais, contribuições representativas do capital de uma empresa ou bônus obrigatoriamente conversível
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
137
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
em ação; b) aquisição de direitos em patrimônios autônomos constituídos
mediante negócios fiduciários; c) a aquisição, por oferta pública ou licitação, de imóveis, títulos resultantes de processos de titularização imobiliária
(proveniente de um imóvel ou projetos de construção, ou de fundos imobiliários); d) as contribuições mediante atos ou contratos (concessão, serviços
de administração, licença, transferência de tecnologia, colaboração). O investimento de carteira é representado em ações, bônus e outros valores inscritos
no registro nacional de valores. Os créditos e operações realizados por conta
de trâmites de endividamento são taxativamente excluídos.
Os investimentos de capital acontecem em diferentes modalidades:
a) a importação de maquinário, equipamentos ou outros bens físicos ou tangíveis, incorporados ao capital de uma empresa como importações não reembolsáveis, destinada a empresas localizadas na zona franca; b) a importação
de divisas de livre conversão para investimentos em moeda nacional; c) as
contribuições em espécie para o capital de uma empresa, consistentes de
intangíveis como contribuições tecnológicas, marcas e patentes, segundo a
legislação comercial; d) os recursos em moeda nacional com direito a remessa ao exterior, tais como principal e juros de créditos externos, somas
devidas por importações reembolsáveis, ganhos com direito a movimentação
e regalias derivadas de contratos devidamente aprovados e registrados, que se
destinem a investimentos diretos, indiretos ou de carteira; e) os investimentos complementares ao capital alocado das sucursais.
Os investimentos estrangeiros diretos podem ser feitos em qualquer
proporção e em todos os setores da economia. As restrições setoriais que historicamente caracterizaram a política de investimento estrangeiro aconteceram
sistematicamente. Atualmente, só há proibições explícitas em atividades de defesa e segurança nacional, assim como em relação ao processamento, disposição e
despejo de lixos tóxicos, perigosos ou radioativos, não produzidos no país.
O regime de investimento estrangeiro se caracteriza ainda pela definição dos seguintes direitos do investidor:
138
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
a. Re-investimento de ganho ou retenção no superávit das utilidades
não distribuídas e que tenham direito de movimentação;
b. Capitalização das somas que tenham direito a movimentação;
c. Remessa ao exterior dos ganhos líquidos gerados pelos investimentos;
d. Remessa ao exterior do dinheiro em moeda conversível resultante da
transferência do investimento no país, ou quando o capital é liquidado ou reduzido.
Além disso, o ordenamento contempla regimes especiais de investimento. Este é o caso dos investimentos em hidrocarbonos e mineração, que
são sujeitos a um regime excepcional. Neste caso, a norma menciona especificamente as atividades de exploração de petróleo e gás natural para projetos
de refinaria, transporte e distribuição de hidrocarbonos e para a exploração,
beneficiamento e transformação de minerais. Com relação aos direitos de
câmbio para o setor petroleiro, de carbono e gás natural, não há obrigação de
reintegrar ao país as divisas provenientes de suas vendas em moeda estrangeira. Por outro lado, as importações de bens de capital, repostos e outros
elementos para uso exclusivo em empresas desses setores terão o caráter de
não reembolsáveis. Contudo, a norma geral de movimentação total dos ganhos líquidos comprovados é mantida.
Com relação ao regime geral do investimento de capital estrangeiro
de carteira, qualquer investimento de carteira de capital do exterior se dará
por meio de um fundo de investimento de capital estrangeiro que terá por
objetivo único a realização de transações no mercado público de valores. O
fundo de investimento de capital estrangeiro é definido como o patrimônio organizado em qualquer modalidade, na Colômbia ou no estrangeiro,
com recursos de uma ou mais entidades, ou pessoas físicas ou jurídicas
estrangeiras, com a finalidade de fazer investimentos no mercado público
de valores.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
139
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Como dito anteriormente, o regime de investimento estrangeiro se
caracteriza também por incorporar medidas de proteção dos direitos de propriedade de diversas naturezas. Desde que entrou em vigor, o Estatuto sobre
investimento deu proteção aos direitos de câmbio, no sentido de que as condições de reembolso e a remessa de ganhos não poderiam ser mudadas, exceto
em condições excepcionais. E a garantia aumentou com a promulgação da lei.
Foi estabelecido que as controvérsias serão solucionadas pela lei colombiana,
exceto se houver outra jurisdição nos termos dos tratados de investimento
vigentes. A estabilidade jurídica (para os investimentos) foi consagrada pela Lei
963 de 2005, que estabeleceu os chamados contratos de estabilidade jurídica,
que têm por finalidade a promoção de novos investimentos e a ampliação dos
existentes. A legislação dispõe precisamente em seu artigo primeiro que: “.. Mediante esses contratos, o Estado garante aos investidores que os assinarem, que se durante sua vigência houver alguma modificação adversa às normas
identificadas nos contratos como determinante do investimento, os investidores
terão direito a que essas normas continuem a ser aplicadas até a expiração do
respectivo contrato. Para todos os efeitos, modificação é entendida como qualquer alteração no texto
da norma realizada pelo Legislador se for uma lei, pelo Executivo ou pela entidade autônoma respectiva se for um ato administrativo da ordem nacional, ou
uma alteração na interpretação vinculante da mesma, realizada pela autoridade
administrativa competente” (sublinhado por nós).
A estabilidade jurídica se aplica em favor dos investidores nacionais
e estrangeiros, ou para consórcios, cujos investimentos se orientem a realizar atividades: turísticas, industriais, agrícolas, de exportações agro-florestais,
mineração, de zonas processadoras de exportação; zonas livres comerciais e
de petróleo, telecomunicações, construções, desenvolvimentos portuários e
férreos, de geração de energia elétrica, projetos de irrigação e uso eficiente de
recursos hídricos (artigo 2).
140
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
Os contratos de estabilidade jurídica devem contar, de forma clara,
as normas e interpretações realizadas por via administrativa que sejam determinantes para realizar o investimento (artigo 3).
Assim sendo, podem ser objeto desta classe de contratos… “os artigos, incisos, ordinais, numerais, literais e parágrafos específicos de leis, decretos ou atos administrativos de caráter geral, concretamente determinados,
assim como as interpretações administrativas vinculantes que integram o braço executivo do poder público, as Comissões de Regulação e os organismos
estatais sujeitos a regimes especiais, exceto o Banco da República”.
Esta lei equivale a uma garantia plena para o investidor que também
pode alegar a modificação da norma quando não quiser cumprir com suas
obrigações. Até o momento, esse tipo de contrato foi assinado com cerca de
40 empresas na Colômbia.
A legislação de estabilidade jurídica se aplica aos projetos que ultrapassem um milhão de dólares e com vigência de 3 a 20 anos. Nem todos os
temas podem ser objetos desta classe de contratos, já que o seguinte está expressamente excetuado: (a) normas relativas ao regime de seguridade social;
(b) a obrigação de declarar e pagar os tributos ou investimentos obrigatórios
que o Governo Nacional decretar em estados de exceção; (c) os impostos
indiretos; a legislação que protege a confiança dos depositantes no sistema
financeiro e (d) o regime sobre tarifas dos serviços públicos. Com relação à
duração dos contratos, eles entram em vigor na sua assinatura e não podem
ser válidos por menos de três anos ou mais de 20. A qualificação sobre os
contratos está a cargo de uma secretaria técnica do Comitê de Estabilidade
Jurídica - Decreto 2950, de 29 de agosto de 20053.
Um ponto que tem suscitado grande controvérsia diz respeito ao impacto fiscal que essa classe de contratos pode ter. Se esses contratos fossem
assinados com as 87 empresas principias do país, quase metade do valor total
3 Carteira http://www.eltiempo.com/archivo/documento/MAM-1784800
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
141
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
arrecadado por este gravame seria comprometida. Até o momento, foram
assinados cerca de 10 contratos, há solicitações de 44 empresas e, nos contratos assinados, há o outorgado por 20 anos à ISA, a empresa colombiana
transportadora de energia, com interesses no Brasil4.
Através da jurisprudência da Corte Constitucional sobre a lei 963 de
2005, de contratos de estabilidade jurídica (sentença C-320 de 2006), ficou
claro que com essa lei não se poderia comprometer a soberania e, por tanto,
foi determinado que “os órgãos do Estado poderão modificar todas as leis,
inclusive aquelas sobre normas determinantes no desenvolvimento de um
negócio milionário no país”. Ou seja, “não se garante aos investidores a impossibilidade de modificar a lei”. E, em caso de modificação dessas condições,
foi prevista a possibilidade de recorrer aos mecanismos de ressarcimento ou
às indenizações administrativas5. Nesse sentido, haveria uma avaliação da relação entre o impacto tributário de uma nova lei e a indenização cabível para
mudar as “regras do jogo”, para determinar o que seria menos oneroso.
Além desses aspectos do regime de investimento estrangeiro, o que
se espera no futuro próximo é uma maior liberalização dos regulamentos em
questões de investimento estrangeiro. Segundo o gerente executivo do Banco
da República é “urgente realizar ajustes importantes no regime de investimento estrangeiro para estimular o ingresso de novos capitais na economia
nacional”. Seria o caso de eliminar as diferenças que há entre o investimento
estrangeiro direto e o investimento de carteira, simplificar os registros onde
não estes são automáticos, simplificar o registro de imóveis para facilitar a
compra desses bens por estrangeiros.
As disposições em matéria de investimento estrangeiro apresentadas
brevemente neste trabalho são, sem dúvida, um fator explicativo do grande
aumento dos investimentos estrangeiros na Colômbia nos últimos tempos,
mas principalmente durante a primeira década deste século. Esse aumento
4 Carteira http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-4352097
5 Carteira Carteira http://www.eltiempo.com/archivo/documento/MAM-2209790
142
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
também é explicado pelo significado do projeto político-econômico do governo de Uribe, que tem um dos pilares exatamente na oferta de qualquer
tipo de garantia aos investimentos de capital transnacional. De alguma forma,
a Colômbia se transformou em um “país emblemático” do aprofundamento
do projeto neoliberal em face aos câmbios políticos na América Latina que,
embora não representem uma transformação substancial no modelo econômico construído nas últimas décadas, parecem tentar redefinir, em alguns
casos, a forma como foram constituídas as relações com o capital estrangeiro
no período de hegemonia neoliberal.
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na
Colômbia
Uma análise do comportamento geral do investimento estrangeiro na
Colômbia mostra que, a partir da década de 1990, há uma tendência ao aumento acelerado. Na realidade, embora de 1971 a 1980 o conjunto de investimento
estrangeiro tenha atingido 1.030.1 milhões de dólares, e de 1981 a 1990, aumentou para 4.998.6 milhões de dólares, na década seguinte, de 1991 a 2000,
o montante de investimento atingiu 19.997.7 milhões de dólares e, de 2001 ao
primeiro semestre de 2007, chegou a 26.115 milhões de dólares. Se compararmos o período de 1971 a 1990 com o período de 1991 a junho de 2007, o
aumento do investimento estrangeiro é espetacular, pois de um investimento
de 6.028.7 milhões de dólares, chegou a um montante de 46.111.7 milhões de
dólares, ou seja, aumentou em 7,6 vezes. Por trás desse extraordinário aumento
estão, sem dúvida, os processos de liberalização da economia, a implantação
do pacote de reformas neoliberais e as mudanças ocorridas no regime de investimento estrangeiro, analisados no parágrafo anterior. É evidente que as
restrições existentes até a segunda metade da década de 1980 tiveram uma
importante incidência sobre os fluxos de investimento estrangeiro.
Em 2007, a tendência se manteve. O total de investimento estrangeiro direto (IED) foi de 9.040 milhões de dólares. Segundo dados preliminares,
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
143
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
durante o primeiro trimestre de 2008, a IED subiu a 3.146 milhões e se espera que até o final do ano aumente para aproximadamente 10.000 milhões
de dólares.
A tendência geral da IED de 2000 a 2007 é apresentada no gráfico 1.
Gráfico 1
Evolução da IED na Colômbia, segundo balança de pagamentos de 2000-2008, em US$ milhões
No último período, de 2001 a 2006, há uma mudança importante na composição do investimento estrangeiro na Colômbia. Enquanto a
participação do investimento em serviços é reduzido e, em menor grau, na
indústria de manufatura, há um aumento significativo da participação em
recursos naturais e energéticos. Neste setor, o investimento atingiu 47% do
total do investimentos, enquanto no setor de serviços houve uma redução
para 34% e na indústria de manufatura caiu para 19%. O investimento em
recursos naturais é explicado pelo investimento na indústria petroleira que
subiu para 4.670 milhões de dólares, bem como pelo aumento do investimento em mineração, que apresentou um aumento extraordinário de 6.803
milhões de dólares.
O comportamento do investimento na indústria de manufatura
neste período, que registrou 7.367 milhões de dólares foi destorcido pela
144
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
operação de venda da cervejaria Bavária à SAB Miller em 2005. No setor
dos serviços, houve uma desaceleração do investimento no setor financeiro, onde alcançou 2.48 milhões de dólares. Já nas telecomunicações e no
comércio, foram observados aumentos significativos. O investimento em
telecomunicações chegou a 3.267 milhões de dólares e no comércio ficou
em 1.571 milhões de dólares.
A tendência do investimento estrangeiro neste período obedece, de
forma geral, a operações de compra, de capitalização ou a “alianças estratégicas”. Em alguns casos, foram revendas. Falando estritamente, de forma geral
não se tratou de “novos investimentos”.
Em 2007, o comportamento setorial da IED manteve a tendência
dos últimos anos. Os investimentos em recursos naturais (principalmente
mineração) e energéticos chegaram a 4.464 milhões de dólares (desses, 3.324
milhões em petróleo), enquanto no setor de serviços e no setor de manufatura, houve um aumento para 2.707 e 1.867 milhões de dólares, respectivamente. O gráfico 2 apresenta uma distribuição setorial da IED em 2007.
Gráfico 2
IED na Colômbia por setores, em 2007
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
145
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
Ao final do primeiro trimestre de 2008, a informação preliminar registrava investimentos de 1.765 milhões de dólares em recursos naturais e
energéticos e de 1.086 milhões e 294 milhões nos setores de serviços e manufatura, respectivamente.
Por outro lado, a tendência à diversificação da origem do investimento
estrangeiro se manteve no período 2001-2006. A participação dos Estado Unidos aumentou para 29%, com um investimento de 5.075 milhões de dólares.
Contudo, essa participação continua muito longe dos níveis registrados nos
anos 80. A Europa também aumentou sua participação em 39%, mediante um
investimento de 7.019 milhões de dólares. O capital espanhol continua a ser o
principal investidor europeu na economia colombiana. Os paraísos fiscais (Panamá e algumas ilhas do Caribe), embora tenham diminuído sua participação,
continuam com uma parcela importante do total do investimento (21%), equivalente a 3.742 milhões de dólares. A novidade neste período foi a chegada de
capitais mexicanos, que reportaram investimentos de 1.160 milhões de dólares.
Além do investimento estrangeiro direto que, como se pode observar, teve um aumento extraordinário no período estudado, é necessário mencionar a crescente importância que vem adquirindo o investimento em carteira. Este tipo de investimento é fundamentalmente especulativo, se orienta
ao mercado de capitais e responde claramente à lógica de financeirização da
atual fase capitalista. Trata-se de um investimento de altíssima mobilidade,
submetido à volatilidade própria do negócio financeiro, que provoca fluxos
instáveis (e às vezes imprevisíveis) de capital, que circulam livremente segundo as rentabilidades que ofereçam no mercado internacional de capitais. Segundo Proexport, este tipo de investimento traz uma dinâmica em ascensão,
que fez com que no período de 1994 a 2004 tenham sido registrados fluxos
de capital da ordem de 1.100 milhões de dólares anuais em média (equivalente
a 45.8% dos fluxos de investimento estrangeiro direto no mesmo período).
Em suma, a tendência recente do investimento estrangeiro na Colômbia mostra um grande interesse por investimentos no setor primário da
146
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
economia, seguido do setor de serviços e, em menor grau, do setor de manufatura. Assim, parecem validar as hipóteses de que as modalidades atuais de inserção da economia colombiana na economia capitalista mundial se
caracterizam por um padrão de acumulação que tende à reprimarização da
economia enquanto tende a debilitar o aparato produtivo.
Políticas brasileiras de investimento na América Latina
A política do Brasil para a América Latina parece caminhar para a
maior presença de capital brasileiro nas economias da região6. Contrariando
as expectativas de que com o governo Lula os processos de integração poderiam alcançar novas dimensões e superar os conteúdos essencialmente neoliberais que os haviam caracterizado em tempos passados, a balança que estava
avançada no segundo mandato presidencial de Lula não registra uma grande
mudança de tendência. Por certo a política brasileira contribuiu com o congelamento do projeto da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA,
mas não impediu a continuidade dos processos de transnacionalização e desnacionalização da maioria das economias latino-americanas que continuaram
por outras vias. Sem dúvida, mais do que um projeto tendente ao fortalecimento da posição latino-americana no contexto da economia mundial, o
que se observa é a pretensão de consolidar a posição brasileira na região,
que coincide com uma antiga aspiração das elites brasileiras de transformar
o Brasil em uma grande potência. O Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC) do segundo governo de Lula tem por finalidade justamente incentivar
o investimento do grande capital brasileiro, através de diversas medidas e
projetos, e projetar sua influência em outros países da América Latina, além
do âmbito do Mercosul. Dentre essas projeções, estão as pretensões de buscar uma saída para o Pacífico e encurtar as saídas para o Atlântico de algumas
6 O Brasil é o maior receptor de investimento estrangeiro da América do Sul. Segundo o estudo supracitado de Lucía Félix para a Cepal, em 2006, o país recebeu 42% do total de investimentos. O setor que
recebeu mais investimentos foi o de serviços, seguido pela manufatura e os recursos naturais. Cepal,
Evolución y composición… ob. Cit., p. 5 y 8.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
147
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
atividades produtivas brasileiras. Portanto, não é casual a vinculação do Brasil
a grandes megaprojetos de investimento, especialmente dentro da IIRSA.
No desenvolvimento desses propósitos tem prevalecido um conceito de política exterior com certo pragmatismo, que coloca os interesses econômicos e de geopolítica brasileira acima de outras considerações de caráter
político. É neste contexto que, em nosso ponto de vista, deve ser analisada
a aproximação do governo de Lula com o governo de Álvaro Uribe na Colômbia, assim como a reconhecida afinidade que, em diversas matérias, esses
governantes expressam.
A crescente projeção do Brasil na América Latina e, sobretudo, na
América do Sul, deve ser considerada analisando diversos aspectos. Primeiramente, atendendo as tendências do comércio exterior, que registram um
aumento importante das operações brasileiras, especialmente de suas exportações. No período de 1995 a 2005, o Brasil aumentou sua participação no
total das exportações da América do Sul de 36.7% para 38.8% e, dentro das
exportações intra-regionais, de 30.2% para 38.2%. Esta mudança na participação das operações intra-regionais mostra precisamente o crescente interesse do Brasil pelos mercados latino-americanos7. Nos dois casos, o total das
exportações da América do Sul e nas exportações intra-regionais, o Brasil
ocupa o primeiro lugar na região. No que diz respeito às importações, as
importações brasileiras no total das importações da América do Sul passaram
de 40.5% a 36.6% no mesmo período. As importações provenientes da região foram reduzidas de 32.7% para 19.7%. A conseqüência dessa tendência
mostra uma situação de superávit comercial a favor do Brasil em relação ao
restante da América do Sul8. Segundo Flavio Tavares, este superávit mostraria uma baixa complementaridade entre as economias sul-americanas e seria
7 O total de exportações da América do Sul em 2005 chegou a 305.000 milhões de dólares. As exportações intra-regionais, naquele mesmo ano, passaram a 55.300 milhões de dólares. Consulte: Cepal, O Brasil
no processo de integração da América do Sul: evolução recente, problemas e complementaridades potenciais, Texto elaborado por Flavio Tavares de Lyra no âmbito do Convênio PNUD/CEPAL/NAE, 2007.
8 Ibid.
148
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
um obstáculo para aprofundar as relações comerciais9. Contudo, esse mesmo aspecto encerra a explicação das exigências para uma maior projeção do
Brasil na América do Sul.
Em segundo lugar, a maior projeção do Brasil se expressa no aumento sensível do investimento estrangeiro direto. De 1995 a 2006 houve
um aumento espetacular da IED de Brasil no total do investimento da América do Sul no exterior, passando de 1.384 milhões para 28.202 milhões de
dólares. Do total dos investimentos realizados pelos capitais sul-americanos
no mesmo período (107.683 milhões), o Brasil foi responsável por 46.1%
(49.651 milhões de dólares) 10. Por outro lado, a participação do Brasil no
total de investimentos recebidos pelos outros países da América do Sul subiu
de 0.48% para 4.03% em 200611. Os fluxos de investimento brasileiro aumentaram significativamente em 2007.
A IIRSA, Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da América do Sul é,
em terceiro lugar, uma das forças motrizes da expansão econômica, sendo
considerada como o instrumento para ligar oceanos e facilitar o comércio até
o Pacífico, assim como um campo de investimento de grandes construtores.
Mais recentemente, se transformou em recipiendária de financiamento de
grandes projetos, através do BNDES. Neste sentido, a IIRSA é considerada
um cenário privilegiado para que o BNDES, organismo de crédito brasileiro,
alavanque as operações de empresas na região. Estima-se que o potencial de
financiamento chegue a 18.000 milhões de dólares para obras nos diferentes
países12. Essas operações também expandiram os fundos para promover as
9 Ibid.
10 Cepal, Evolución y composición… ob. Cit., p.11.
11 A participação deve ser muito maior, pois os dados para a Argentina e a Bolívia não estavam disponíveis. Ibid., p.14.
12
Consulte: Infra-estrutura na América do Sul: situação atual, necessidades e complementaridades possíveis com o Brasil, Trabalho realizado por Antônio José Cerqueira Antunes, no âmbito do
Convênio PNUD/CEPAL/NAE, para elaboração de estudos sobre os sistemas industriais na América
Latina. As opiniões são de exclusiva responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição
das instituições envolvidas, LC/BRS/R.186 Setembro de 2007, Original: português, páginas 23 -27.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
149
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
exportações brasileiras. Este é o caso da produção de ônibus para a Colômbia, ou a construção de gasodutos na Argentina, de hidroelétricas na Venezuela e no Equador, ou de estradas no Paraguai.
A participação das construtoras brasileiras na agenda acordada da
IIRSA ou fora dela, que são de grande envergadura, é vista como uma grande
oportunidade para aumentar a capacidade tecnológica, econômica e financeira dessas empresas. É necessário mencionar que essas empresas fazem
parte de grupos que têm interesses nos setores de petroquímica, siderurgia,
cimento e construção.
Contudo, o papel que o Brasil pode desempenhar na IIRSA se tornou mais evidente. Da mesma forma, são mais notórias as oportunidades
de investimento (e de expansão) geradas para aquele país com o conjunto
de projetos. Particularmente, se prevê um papel preponderante da Petrobrás
no setor de energia. Parte de sua estratégia consiste na associação a empresas petroleiras nacionais de caráter estatal, embora também realize atividades
conjuntas com as multinacionais do petróleo.
Um espaço relativamente inovador é o investimento em projetos de
agrocombustíveis. O próprio presidente Lula se encarregou de obter fundos
adicionais para a construção de portos e para mais plantações de agrocombustíveis. Esse foi exatamente um dos focos de atenção durante sua recente
viagem à Holanda. Lá foi discutida a possibilidade de usar portos holandeses
para reenviar o etanol brasileiro e o apoio holandês ao plano de abertura de
portos no Brasil13.
O Brasil assumiu a IIRSA em toda sua dimensão. Enquanto contribui
em nível nacional para modernizar a infra-estrutura necessária para o desenvolvimento agroindustrial e energético, é uma fonte de investimento para os bancos e
empresas brasileiros (por exemplo, através de sua participação em mega projetos)
que poderão, além disso, consolidar suas posições na América do Sul.
13 Lula vai à Holanda em busca de investimentos privados, Gazeta Mercantil - 10/04/2008
150
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
Por outro lado, a agenda latino-americana do Brasil é associada à
pretensão de ampliar a capacidade de incidência brasileira em diferentes iniciativas de caráter político e de cooperação militar. Este é o caso das iniciativas da UNASUR (União de Nações Sul-Americanas) e do Conselho SulAmericano de Defesa.
O investimento de capital brasileiro na Colômbia
De um ponto de vista histórico, a presença do capital brasileiro na
economia colombiana tem sido praticamente inexistente. Não existiu na fase
de industrialização dirigida pelo Estado e, nas primeiras décadas de política
neoliberal na Colômbia, de abertura indiscriminada ao capital estrangeiro, foi
muito débil. Contudo, a partir da primeira década deste século, e particularmente durante os últimos cinco anos, foi registrada uma mudança nessa tendência, que denota maior interesse do capital brasileiro por fazer investimentos na Colômbia. Com certeza o volume de IED brasileiro é baixo quando
comparado com o total de investimento estrangeiro dos últimos anos. Aqui,
o que interessa é que particularmente desde 2007, há registro de maiores
operações brasileiras de IED que devem ser consideradas e analisadas.
Gráfico 3
Investimentos de capitais brasileiros na Colômbia de 2000 a 2007, em US$ milhões
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
151
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
No período entre 2003 e 2007, o IED do Brasil na Colômbia cresceu vertiginosamente, passando de 9.15 milhões para 529 milhões de dólares
(veja o gráfico 3). Em 2007, o IED brasileiro atingiu 11% do total de IED
na Colômbia.
Do ponto de vista setorial, como se observa na tabela 1, considerando
os dados disponíveis até o primeiro semestre de 2007, a maior quantidade de
investimento brasileiro se concentra na indústria (93.5%), seguida pela construção (5.1%) e pelo comércio, transporte e outros setores (1.4%).
Tabela 1
IED do Brasil na Colômbia, por setor. (milhares de dólares)
Principais operações e negócios de empresas brasileiras na
Colômbia
A análise da recente incursão do capital brasileiro na Colômbia permite afirmar que as atividades onde as empresas brasileiras investiram nos
últimos anos podem ser consideradas de caráter estratégico. Na verdade, as
principais operações se concentraram na indústria petroleira, na construção
de geradores de energia, no transporte aéreo e na indústria siderúrgica. Há
uma presença menor nas indústrias têxteis e de produtos de beleza e cosmé-
152
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
ticos. Também no caso do investimento brasileiro, se reafirma a tendência de
investimento estrangeiro direto em geral. Falando estritamente, não se trata
de novos investimentos tendentes a aumentar a capacidade do aparato produtivo colombiano. Trata-se sobretudo de aquisições que respondem melhor
a estratégias de expansão das empresas brasileiras na América Latina e, em
nosso caso, na Colômbia. Na tabela 2 é apresentada uma relação das principais empresas brasileiras na Colômbia.
Tabela 2
Principais empresas brasileiras na Colômbia
Indústria petroleira
No caso da indústria petroleira é necessário mencionar os investimentos da Petrobrás que abrangem várias etapas do negócio de energia. Sua
incursão mais recente começou no segundo semestre de 2004 com a adjudicação do contrato de exploração da zona de Villanueva do Departamento del
Meta, que é realizado em conjunto com a multinacional Occidental14. A pesar
14 A atuação da Petrobrás no exterior começou na Colômbia, com investimentos em exploração em 1972.
Depois de um período de ausência, voltou ao país em 1986. Ampliou seus negócios nos anos noventa,
com as aquisições de ativos da britânica Lasmo e da americana Exxon.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
153
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
de ser um investimento inicial baixo, de 5 milhões de dólares, o que importa
é que a partir de então foram registrados novos movimentos que indicam um
crescente interesse por um maior posicionamento da Petrobrás no negócio
petroleiro colombiano. Por isso que em 2006 foi anunciada a intenção da
empresa de aumentar sensivelmente suas operações na Colômbia (o investimento naquele ano ultrapassou 80 milhões de dólares), de começar a exploração do bloco Tayrona (com participação de 20%) 15e, mais recentemente,
em maio de 2007, foi informado o interesse em reforçar os investimentos de
exploração através da Metapetroleum. A decisão de ampliar os negócios na
Colômbia foi reiterada em julho de 200716. O marcado interesse pelo negócio
petroleiro coincide com o alto nível de incentivos, os maiores da América
Latina no momento, que as políticas neoliberais impuseram na Colômbia a
favor das transnacionais do petróleo. A incursão da Petrobrás no negócio
de energia é acompanhada de outros investimentos daquela empresa, que
tende a participar no mercado de distribuição de gasolina. Até fins de 2005, a
Petrobrás adquiriu a rede (nacional) de estações de serviço da multinacional
Shell. Esta operação permitiu que participasse também no negócio de óleo e
lubrificantes. Segundo a empresa, esta operação “faz parte do plano estratégico da companhia, orientado a consolidá-la como uma empresa integrada de
energia, com forte presença internacional e liderança na América Latina”.
Em 2000, a Petrobrás foi responsável por uma das maiores descobertas nos últimos 15 anos naquele país: o Campo de Guando, em sociedade
com a empresa canadense Nexen e com a Ecopetrol. Atualmente, a empresa
tem participação em 6 blocos de desenvolvimento, dos quais opera 5, e em
11 blocos exploratórios, dos quais opera 6. A Petrobrás e a Ecopetrol assinaram em 2006 dois acordos de cooperação para o desenvolvimento conjunto
15 A exploração do bloco Tayrona é feita em parceria com a Exxon Mobil (20%) e Ecopetrol (20%).
Trata-se de uma extensa área (mais de 4 milhões de hectares) de águas do Caribe que chega a 3.000 metros
de profundidade e poderia representar uma das maiores descobertas do país.
16 A Petrobras desenvolve atividades em outras regiões da Colômbia. Trata-se, por exemplo, de Tierra
Negra em Casanare e do projeto conjunto assinado com a Ecopetrol no campo Tibú, além do contrato
Rio Tua, de avaliação técnica, que executa em conjunto com a Occidental.
154
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
de negócios nas áreas de biocombustíveis e de distribuição de produtos derivados do petróleo.
Geração de energia (construção de hidroelétrica)
A presença do capital brasileiro na Colômbia também se expressa
com a vinculação das empresas Vale e Camargo Correa a dois projetos de
infra-estrutura para geração de energia. Trata-se das hidroelétricas de Pescadero Ituango e do projeto Porce III, ambos no departamento de Antioquia.
O projeto de Pescadero Ituango está a cargo da Vale e a hidroelétrica
deve entrar em funcionamento em 2018. Segundo a Vale, o projeto se encaixa em sua estratégia de expansão e permite acesso à geração de energia para
tornar sua própria produção industrial, o alumínio, mais competitiva. Neste
sentido, a Vale tem o projeto de construção de uma fábrica de alumínio em
Urabá, instalou o parque industrial de Lebbos, em Cota (município próximo
a Bogotá), e abriu uma filial para ter uma fábrica produtiva. A empresa comercializa seus produtos na Colômbia há bastante tempo.
O projeto de Porce III tem um valor estimado de 911 milhões de
dólares. A Camargo Correa tem participação de 50% e divide o projeto com
um consórcio colombiano. A obra implica a construção de uma central subterrânea, da represa e de outras obras associadas a Porce III. Estima-se que a
capacidade da hidroelétrica será de 700 MW.
Nas atividades de engenharia e construção desenvolvidas pelas empresas brasileiras na Colômbia, além das inerentes à construção de hidrelétricas, há os projetos da Andrade Gutiérrez de construção da ferrovia Grecia
- San Rafael de Lebrija e do viaduto Pereira-Dosquebradas
Transporte aéreo
O grupo brasileiro Sinergy, de propriedade do empresário Efraín
Efromovich, adquiriu a empresa de transporte aéreo Avianca em 2005, em
uma operação que o permitiu assumir o controle da empresa em menos de
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
155
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
um ano. Essa empresa estava em uma difícil situação financeira, o que facilitou a transação. O valor estimado do negócio foi 23 milhões de dólares. A
aquisição da empresa fazia parte da estratégia do grupo Sinergy para ampliar
suas operações internacionais e conseguir uma posição melhor no mercado
brasileiro. O investimento em Avianca seria uma plataforma para entrar no
negócio de transporte aéreo, de armazenamento, correio e comunicações, já
que essa empresa também prestava serviços de carga e contava com uma rede
de correio e comunicações, Deprisa. A partir da Avianca, o grupo Sinergy
começou uma série de novos investimentos (agora da multinacional) com os
quais buscava modernizar a frota de aeronaves. Em maio de 2007 anunciou a
aquisição de aviões (Airbus) no montante de 2.900 milhões de dólares.
Siderurgia e metalurgia
Na siderurgia e metalurgia, foram registradas importantes operações
de empresas brasileiras, especialmente do grupo Gerdau e da Votorantim. O
grupo Gerdau desenvolveu uma estratégia agressiva para assumir o controle
de uma parte considerável da produção siderúrgica e metalúrgica do país. O
controle das empresas colombianas Diaco e Sidelpa iniciado em 2004 foi a
plataforma para futuras projeções, particularmente para a realização de novas aquisições. Através da Diaco, em 2007 a Gerdau teve acesso à Aceros
Boyacá e à companhia siderúrgica da savana, Comsisa. O mesmo havia ocorrido anteriormente com os Laminados andinos. O grupo Gerdau adquiriu
recentemente, por 59 milhões de dólares, 50.9% da Cleary Holdings Corp,
uma empresa produtora de coque metalúrgico, com acesso a reservas de 20
milhões de toneladas de carbono na Colômbia. André Gerdau disse que este
investimento fazia parte de uma estratégia de crescimento do grupo e representava “um passo a mais para garantir o abastecimento de matérias-primas
fundamentais para a produção de aço”.
Nas operações de capital brasileiro de maior importância nos últimos anos, é necessário mencionar a aquisição, por licitação pública, de 52%
156
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
da empresa siderúrgica colombiana Acerías Paz del Río pelo grupo Votorantim em março de 2008. A transação, que chegou a 490.7 milhões de dólares e
permitiu o controle da empresa pela Votorantim, finalizou um processo que
havia se iniciado com a compra pela Gerdau de 9.98% das ações (por 66.2
milhões de dólares) que ela possuía em Paz de Río. Segundo o presidente
do grupo, Ermírio de Moraes, “a proximidade da siderúrgica colombiana à
zona do Caribe (daria) à Votorantim um meio para exportar aos lucrativos
mercados dos Estados Unidos e da Europa”. A compra da siderúrgica foi
seguida pela aquisição da maior produtora e comercializadora de ferro do
país, a G y J.
Como podemos observar, a indústria siderurgia e metalúrgica colombiana, que havia sobrevivido com dificuldades às reformas neoliberais do
início da década de 1990 está nas mãos do capital brasileiro: o grupo Gerdau
e a Votorantim.
Outras indústrias
O capital brasileiro se faz presente na Colômbia através de outras
empresas. Embora a magnitude das operações dessas empresas possa ser
considerada de menor quantia, não o é se considerarmos os setores ou ramos da atividade econômica onde se encontram. É o caso da Marcopolo
na indústria de carroceria, da Roida Poliamida, Santana Têxtil e Cedro que
anunciaram em 2006 investimentos na indústria têxtil, assim como a Natura
que recentemente, em 2007, fez um investimento de 6 milhões de dólares na
indústria de produtos de beleza e de cosméticos.
Considerações Finais
Como pudemos observar, a presença do capital brasileiro na Colômbia, em comparação ao fluxo total de investimento estrangeiro direto na Colômbia, pareceria não ser significativa. Porém, é necessário registrar a recente
mudança de tendência que mostra um crescente interesse em investir na ativi-
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
157
Financiamento e Megaprojetos. Uma interpretação da dinâmica regional sul-americana
dade econômica colombiana. Além disso, tudo indica que devemos esperar um
fluxo maior de capital brasileiro para a Colômbia nos próximos anos.
Fizemos nosso juízo das circunstâncias sobre o comportamento recente do investimento do Brasil na Colômbia. Por um lado, o sistema de
incentivos (extremos) que os governos neoliberais criaram para os investimentos estrangeiros nos últimos anos, particularmente durante os governos
de Uribe Vélez. Por outro lado, beneficiou muito as empresas brasileiras que
souberam aproveitar os (novos) cenários de rentabilidade que lhes foram
apresentados na Colômbia, como o governo de Uribe que usou o maior investimento estrangeiro para exortar as bondades de seu projeto econômico e
do círculo virtuoso subjacente: “segurança, investimento, crescimento, bemestar”. A população colombiana tem sido uma mera espectadora de como
vem ocorrendo a venda do país, pois não viu os benefícios até agora.
Por outro lado, é necessário levar em consideração que o maior investimento brasileiro na Colômbia deve ser entendido como parte do projeto expansionista de suas empresas transnacionais na América Latina. Do
ponto de vista da potência que aspira ser, o capital brasileiro se interessa por
projeções de controle econômico e territorial. Não resta dúvida que a maior
presença de capital brasileiro na América Latina também tem intenções geopolíticas. O Brasil pretende ser um ator participante das novas configurações
da geografia do poder na América Latina. No caso dos investimentos realizados até o momento na Colômbia, é evidente seu foco em atividades que
podem ser consideradas de alcance estratégico: recursos petroleiros, geração
de energia, transporte aéreo e siderurgia e metalurgia, principalmente.
Como observado, as identidades e afinidades entre os governos de
Uribe e de Lula não são casuais. Aí se une o pragmatismo de dois projetos
políticos distintos, que no momento dos negócios têm a possibilidade de falar a mesma língua. Em um caso, para aprofundar a entrega da economia ao
capital estrangeiro. Em outro, para avançar no projeto de expansão brasileira
na América Latina.
158
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia
Finalmente, chamam muita atenção os (novos) cenários prováveis
onde deve avançar a cooperação entre a Colômbia e o Brasil, segundo a
reunião realizada entre os presidentes Uribe e Lula em 19 de julho de 2008:
Lula assegurou que quer transformar a Colômbia em um sócio em termos
de indústria militar. “O Brasil não quer ser apenas um vendedor de armas de
defesa para a Colômbia. Queremos produzir em conjunto”, disse, e acrescentou: “O Brasil deseja construir fábricas para produzir materiais de defesa em
conjunto com os países da América do Sul e a Colômbia é um país que tem
vontade e potencial17”. Também afirmou: “O Brasil deseja cooperar como
parceiro da Colômbia na área de biocombustíveis”.
Uma perspectiva interessante: armas e agrocombustíveis!
17 El Tiempo, Sección Nación, publicado em 19 de julho de 2008.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
159

Documentos relacionados

As instituições financeiras e a integração na América do Sul

As instituições financeiras e a integração na América do Sul milhões (cujo principal destinado foi operações no Brasil, com US$ 1 379 milhões; BLADEX, 2007). Além disso, criou uma subsidiária brasileira, a Bladex Representação Ltda. e tem um escritório em Bu...

Leia mais

IIRSA - É esta a integração que nós queremos?

IIRSA - É esta a integração que nós queremos? Desde a Cúpula de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília (Brasil), entre os dias 30 de Agosto e 1º de Setembro de 2000, está em curso um silencioso processo de integração física denom...

Leia mais