Um “sistema perito” - Universidade Federal de Uberlândia

Transcrição

Um “sistema perito” - Universidade Federal de Uberlândia
VOLUME 2 – NÚMERO 2
AUTOR : João Augusto Neves Pires. Graduando em
História na Universidade Federal de Uberlândia.
Contato [email protected]
A LAN HOUSE NO TERMINAL
RODOVIARIO DE UBERLÂNDIA:
Um “sistema perito” e um “não-lugar”?
Resumen
Resumo
Las tecnologías digitales desde hace años
As tecnologias digitais vêm, já há alguns anos,
vienen ocupando espacios en nuestra vida
ocupando espaços em nosso cotidiano sem que
cotidiana
haja tempo para movimentações que retardem
manifestaciones que retarden tal proceso. En las
tal processo. Nas ruas, casas, lojas, empresas,
calles,
escolas, aeroportos e rodoviárias sentimos o
aeropuertos y terminales de autobuses sentimos
cheiro, gosto, peso e o fantasmagórico milagre
el olor, sabor, peso y el milagro fantasmal de
das tecnologias. Assim nos resta, criadores e
las tecnologías. Así queda a los creadores y
consumidores destas máquinas, problematizar o
consumidores de estas maquinas, problematizar
sentido que elas fazem em nossas vidas e de que
los sentidos que ellas hacen en nuestras vidas y
maneira elas ocupam nosso dia-a-dia, para que
de qué manera ellas ocupan nuestro dia a dia
sejamos críticos do processo ao qual nos
para que seamos críticos del proceso que
inserimos neste mundo moderno da cultura (do)
sugerimos en este mundo moderno de la cultura
digital. Deste modo, eu fui a campo para
digital.
compreender de que maneira a Lan House da
De tal manera, me fui al campo
Rodoviária de Uberlândia compõe este universo
comprender como el Cibercafé del Terminal de
multiespacial
Autobuses de la Ciudad de Uberlândia/MG,
e
multitemporal
contemporaneidade, como também
da
procuro
sin
casas,
compone
este
que
ventas,
haya
tiempo
empresas,
universo
para
escuelas,
multiespacial
para
y
analisar o modo pelo qual as pessoas usam as
multitemporal de la contemporaneidad, como
tecnologias digitais, presentes na Lan House,
también intenté analizar la forma de cómo la
como um ―sistema perito‖ que lhes dão acesso
gente utiliza las tecnologías digitales presentes
ao ciberespaço e como este ambiente de acesso
en el Cibercafé, como un ―sistema perito‖ que
ao virtual vai ao encontro da representação de
les dan acceso al ciberespacio, y como este
um ―não-lugar‖. Por fim, este trabalho é apenas
ambiente de acceso al virtual va de encuentro a
uma especulação – se assim o posso chamar –
la representación de un ―no-lugar‖. Finalmente,
de
visa
este trabajo es apenas la especulación – se así
problematizar as as tecnologias digitais e suas
puedo llamarlo – de un recién investigador que
imbricações na vida cotidiana e na cultura de
busca problematizar las tecnologías digitales y
seus usuários.
sus implicaciones en la vida cotidiana y en la
um
recente
pesquisador
que
cultura de sus usuarios.
RECS
1
VOLUME 2 – NÚMERO 2
Palavras-chave: Contemporaneidade; Cultura
Palabras-llave:
Contemporaneidad;
Cultura
Digital; Sociologia do Cotidiano; Sistema
Digital; Sociología de la Cotidiana; Sistema
perito; Não-lugar.
perito; No-lugar.
y sus implicaciones en la vida cotidiana y en la
cultura de sus usuarios.
estão na fronteira entre o mundo rural e o
urbano, entre a casa e a rua, o bairro e o centro,
Introdução
Irônica e contraditória nossa voz denuncia a
uma fazenda e a outra, enfim, convergindo entre
vida moderna em nome dos valores que a
lugares distantes que se encontram no âmbito da
própria modernidade criou. (COLLIGERE,
venda. Tais espaços podem ser entendidos como
2003)
lugares de ligação íntima, identificação e
confiabilidade.
No capítulo XVI da obra de Miguel de
Cervantes, Dom Quixote se envolve em uma
trama graciosa com seu companheiro Sancho
Pansa. Os cavaleiros andantes entram em uma
venda, após se confrontarem com alguns
―desalmados Yangueses‖, pensando ser ali um
castelo e abrigo para curar suas feridas. Durante
o capítulo e nos outros dois posteriores a
história se desenvolve na venda que ganha um
significado representativo, o qual eu trago para
discussão.
profusão de diferentes lugares de confiabilidade
e sociabilidade, onde o desenvolvimento das
tecnologias
digitais
fundamental
para
aparece como lugar de encontro, descanso e,
de
circulação
de
notícias
daquela região ou de lugares mais distantes.
Este espaço de socialização e contato com o
mundo, isto é, o espaço da
tem
assumido
reorganização
papel
dessas
fronteiras de encontro. Segundo Thompson
(2011), o desenvolvimento dessas fronteiras
modifica o processo de formação dos seres, mas
também conduz a um novo tipo de relação
íntima. Porém, este tipo de relação íntima
apresenta
A venda na história do cavaleiro de La Mancha
principalmente,
Por outro lado, na contemporaneidade verifico a
aspectos
diferentes,
mas
fundamentais, das formas de intimidade da
interação face a face nas sociedades prémodernas. Nesse sentido, as fronteiras que
normalmente são lugares de passagens como as
vendas, rodoviárias, aeroportos, salas de espera,
supermercados e as Lan Houses ganham uma
dimensão interessante a ser analisada, pois,
venda - distante nos momentos de viagens
narrado por Cervantes -, esteve presente nas
sociedades ―pré-modernas‖. Espaços estes que
como pontuei logo acima, cria-se uma confiança
entre o sujeito que chega – e logo se vai – e o
sistema que ali vigora.
RECS
2
VOLUME 2 – NÚMERO 2
Giddens (1991), ao pensar sobre a modernidade,
mediadores entre a vida comum e o mundo da
observa que um de seus elementos constitutivos
informa(tiza)ção.
é a confiança que as pessoas empregam nos
Quando as práticas cotidianas são ―trazidas à luz
―sistemas
é
como modo de existência em que o indivíduo
incorporada às nossas atividades cotidianas e
cria relações na base de sua própria experiência,
―[...]
de
em
abstratos‖.
grande
circunstâncias
Essa
parte
intrínsecas
confiança
reforçadas
do
pelas
dia-a-dia‖
sua
própria
possibilidade
de
ação‖
(PETERSEN, 1995, p.52), podemos verificar as
(GIDDENS,1991, p.82). Viver na modernidade
táticas
significa, portanto, ―ter fé‖ nas informações que
confrontos, os rituais, a desconstrução e
estão na fronteira ou pontos de acesso – ―pontos
reconstrução
de conexão entre os indivíduos e coletividades
diariamente por sujeitos simples em suas
leigas e os representantes de sistemas abstratos‖
(rel)ações e modos de representar/apresentar o
1
mundo. Para analisar o que a Lan House
(IBID, 1991, p.81)– e nos símbolos contidos
e
resistências
do
aos
sub-reptícias,
mundo
moderno
passageiros
e
os
feita
nos lugares de passagem.
representa
moradores
Partindo dessa premissa, analiso brevemente
próximos ao terminal, embaso-me nos conceitos
alguns aspectos da Lan House que se constituem
da sociologia do cotidiano.
na Rodoviária de Uberlândia como fronteira
Através de observações com notas de campo,
entre a vida cotidiana dos habitantes de bairros
entrevistas realizadas com usuários da Lan
próximos ou viajantes – usuários deste sistema –
House, funcionário da mesma e leituras feitas
e o ciberespaço2. De maneira especial, observo
sobre a temática, repensei não só esse cotidiano,
como a Lan House e o funcionário da mesma
mas também o das pessoas que o transformam.
assumem o papel de peritos3 – sendo-lhes,
A Lan House, por seu turno, ao assumir e ser
inclusive, confiadas informações pessoais – e
entendida no cotidiano dos seus usuários como a
fronteira entre a vida comum e o ciberespaço,
nos faz problematizar a modernidade, pois
1
Podemos definir como sistemas abstratos os
mecanismos desenvolvidos socialmente que, de certa
maneira, são capazes de organizar e gerir as relações entre
as pessoas e as invenções da modernidade.
2
Segundo Lévy o ciberespaço é ―a terra do saber, a nova
fronteira cuja exploração poderá ser, hoje, a tarefa mais
importante da humanidade‖, pois ela ―condiciona o
caráter plástico, fluido, calculável com precisão tratável
em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo,
virtual da informação que é, parece-me, [sua] marca
distintiva.‖ (LÈVY, 1999, p.104 grifo meu)
3
Os peritos caracterizam-se pela ―excelência ou
competência profissional que organizam grandes áreas
dos ambientes material e social em que vivemos hoje. (...)
[fornecendo] ‗garantias‘ de expectativas através de
tempo-espaço distanciado‖ (ROGERIO, 2009,p.85).
―hoje vivemos num mundo no qual a capacidade de
experimentar se desligou da atividade de encontrar‖
(THOMPSON, 2011, p.80) e no qual
abstratos
assumem
papel
sistemas
fundamental
nos
―conectando‖ a contextos, a tempos e espaços
distantes.
Por conseguinte, ao entender os usuários da Lan
House, busco verificar, também, como a
modernidade vem recebendo e (re)significando
RECS
3
VOLUME 2 – NÚMERO 2
essa
―rotineira
mistura
de
experiências‖
constituem este lugar passageiro, dilatando o
mediadas pela cultura digital, pois o ―modo de
espaço e o tempo.
vida urbano, a vida na sociedade de produção
Entre as faces que se agonizam com o tempo, as
industrial têm características próprias no que se
lanchonetes e lojas que se articulam para vender
refere à sociabilidade cotidiana‖ (D‘INCAO,
alguns minutos (de lazer? Comida? Conversa?
1992, p.103).
Descanso?) ao passageiro e entre a entrada e a
saída para embarque, percebi rostos cansados,
Algumas metáforas da Rodoviária de
ansiosos, sonolentos, bêbados, alegres, aflitos;
Uberlândia
rostos que se diluem na espera de algo ou
Ao ser transferida, no ano de 1976, para a atual
alguém, preenchendo o salão de espera. No
localidade (próxima à BR- 365), a rodoviária da
lugar
cidade de Uberlândia - MG ganhou novas
passageiros viam-se mais rostos, muitos ônibus,
características. Símbolo do desenvolvimento
muita poluição sonora, visual e social. Os
urbano, sua arquitetura está em consonância
ônibus e passageiros entravam e saiam. Não era
com o que representa a vida moderna, rápida,
necessário avisá-los, tudo já estava programado.
racional, efêmera, com poucos lugares para a
Assim, este lugar de passagem cria significados
socialização e manutenção de relacionamento
próprios, que estão intrinsecamente ligados ao
duráveis. Divide-se em partes, com funções
mundo moderno, à vida moderna de ―eterno
determinadas, que se congelam, perdendo
retorno‖.
qualquer sentido permanente, entre o fluxo
Neste
constante de pessoas.
passageiros,
Na entrada, nos deparamos com 31 (trinta e um)
fronteira, que também embarca pessoas. Levam-
guichês de diferentes empresas de transportes e
nos a distâncias, experiências diferentes em
um corredor enorme com uma circulação de
espaços e tempos diversos: a Lan House. Com
pessoas a todo instante. Falas e correrias: ―--
suas
Moça! Seu bilhete!‖; ―-- O próximo ônibus só
informatizado, ela espera, continuamente, por
às 21h!‖, ―-- Não fazemos este percurso!‖, ―--
seu próximo usuário. Com apenas R$ 3,00 (três
Gostaria de saber, se...‖ ―-- Mas não tem outro
reais), há a possibilidade de viagem a qualquer
dia?‖, ―-- Você poderia?‖. Além disso, há a
parte do planeta, informar-se e comunicar-se
incidência de gestos que se misturam, corpos
com tudo e com todos, transgredindo espaços e
que se cruzam, mas não se veem. Malas,
tempo.
símbolos, sinais, sanitários, lanchonetes, táxis,
E é neste cotidiano que me insiro, procurando
plataforma
de
nos usuários da modernidade os significados
informações, lojas, pessoas e personalidades que
atribuídos a estes espaços e tempos estilhaçados
de
embarque,
guichê
de
embarque
espaço
de
fluxo
encontrei
cabines
e
desembarque
de
outro
conectadas
de
passagens
lugar,
ao
e
outra
mundo
RECS
4
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nas cidades, arquiteturas, relações humanas, nos
cotidiano,
e
corrobora
com
Pais
(2003)
ciberespaços e, finalmente, na Lan Hause.
afirmando que ao aceitar descrever a vida social
como uma trama, devemos ter em conta que ―a
Duas ou três palavras sobre o cotidiano
existência cotidiana é fragmentada, polissêmica,
Alguns autores/pensadores nos surpreendem
constituída de luz e sombras, feita por um
com
homem que é ao mesmo tempo sapiens e
sua
capacidade
de
síntese
sobre
determinado tema, tornando imprescindível
demens,
é
necessário
admitir
que
estes
voltar-se a seus textos para compreendê-los.
elementos não podem ser desprezados na
Assim o é José Machado Pais, que ao pensar a
análise social‖(PETERSEN, 1995, p.63), assim,
sociologia do cotidiano nos apresenta uma série
para entender as relações sociais, devemos nos
de questões capazes de nos inquietar e fazer-nos
aprofundar nas contradições humanas, pois
avançar cada vez mais a esta especialidade da
[...] a vida cotidiana é trazida à luz como um modo
sociologia.
de existência em que o indivíduo cria relações na
Em
poucas
palavras
o
autor
base de sua própria experiência, de sua própria
consegue
possibilidade e ação. As ―práticas cotidianas‖,
demonstrar e iluminar caminhos àqueles que se
reveladoras
entregarão(am) a este campo de investigação.
deste
modo de
existência, são
exaustivamente perseguidas pelos autores, através
Ele alerta que sendo o cotidiano uma categoria
dos domicílios, parentelas, vizinhanças e locais de
do
lazer e reuniões diversas, já que elas, por um lado,
social,
conflitos,
―[...]
experimentam-se tensões,
posições
ideológicas,
vão ser objeto da atenção da sociedade capitalista,
mudanças,
cuja necessidade de perpetuação implica controlar
crises, que a sociologia geral e as diversas
sociologias
como
parciais
seus objetos‖
tomam
a totalidade das relações sociais, tanto as
ordinariamente
institucionais como as que se desenvolvem na vida
(PAIS, 2003, p.75),
cotidiana e, por outro, elas vão constituir inúmeras
tornando necessário ―[...] chegar ao [cotidiano]
formas de resistência organizada, de confronto
com teorias adaptáveis e flexíveis, cujos
com o sistema, fora das instituições formais de
quadros e categorias nos permitam, com ‗pinças
produção e do poder. (IBID.,p.60)
de cirurgião‘, a sua apreensão‖ (IBID., p.75).
Seguindo esta linha de pensamento, outro
Contudo, pontua Pais (2003),que neste contexto
aspecto que foi considerado por estes autores -
o desafio da sociologia do cotidiano é abrir
que foram fundamentais para as análises sobre
brechas
as
entre
as
tramas
das
pesquisas
quais
percorri
-
diz
respeito
ao
sociológicas e iluminar os pontos obscuros que
entrelaçamento intrínseco entre as análises
preenchem o social.
micro e macro sociológicas, isto é, entre ―o
Da mesma forma, Petersen (1995) chama a
atenção para as dificuldades de abordar o
plano dos comportamentos dos indivíduos, com
aqueles
outros
planos
que
resultam
da
conjugação de variáveis macrosociológicas,
RECS
5
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como
poder,
ideologia,
autoridade,
de continuar produzindo nos momentos de
desigualdade social, alienação e etc.‖ (PAIS,
espera. Todavia, ao submergir nas narrativas
2003, p.76). Sendo a ―partição do todo‖ parte
dos que constroem e significam aquele espaço,
das tradições científicas, o cotidiano revela
verifiquei que a Lan House está além disso. Ali,
também - quando mantida essa ligação entre o
são tecidas relações entre diferentes espaços e
micro e o macro social - a possibilidade de ser
tempos, os sistemas burocráticos do Estado, a
identificado como a partição de uma totalidade a
cibercultura, enfim, entre o mundo moderno e
ser compreendida.
suas representações.
Partindo dessas premissas e atento para não
Nesse sentido, a fim de aprofundar minha
transformar o cotidiano apenas no lugar da
análise, utilizarei os conceitos de ―lugar‖ e
repetição rotineira, volto-me à Lan House da
―não-lugar‖ de Marc Augé, para compreender
Rodoviária de Uberlândia, a fim de apreender,
como
também, a maneira pela qual seus usuários
―supermodernidade” tornando-se espaço de
inovam, reorganizam
confiança, sendo ela a fronteira de acesso entre
e transformam
suas
atividades cotidianas.
a
Lan
House
participa
da
a vida dos usuários - leigos ou não - e o
ciberespaço. Segundo o autor, o conceito de
Lan House: Um “sistema perito” e um “não-
lugar se constitui e se ―[...] completa pela troca
lugar”?
alusiva de algumas senhas, na convivência e na
Amanheceu mais uma vez. É hora de acordar para
intimidade‖ (AUGÉ, 1994, p.73) entre sujeitos
vencer. E ter o que falar. Alguém para mandar,
que partilham relações que constroem e dão
uma vida pra ordenar. Poder acumular e aí então
viver. Viver e prosperar, mais nada a pensar.
significados a lugares identitários, relacionais e
históricos. Por outro lado, os não-lugares se
(DEAD FISH, 1999)
constituem
Esperar algo ou alguém é sempre um momento
tanto [como] construções necessárias à circulação
de tensão ao homem moderno. A condição que
acelerada das pessoas e bens (vias expressas,
lhe impõe alguns minutos de silêncio e descanso
trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios
é sempre vista como improdutiva, pois sempre
meios de transporte ou os grandes centros
buscamos
―poder
acumular‖,
―viver
e
prosperar‖. Por isso, a necessidade de criar
comerciais, ou ainda os campos de trânsito
prolongado onde são estacionados os refugiados do
planeta (MORCELLIM, 2009,p.85).
mecanismos em que a espera seja menos
tortuosa. Esta foi a maneira, no primeiro
momento, que percebi a Lan House do terminal
rodoviário de Uberlândia, como lugar (ou não-
Considerando o espaço da Lan House como
não-lugar, o tratamento para com seus usuários,
por parte do atendente, pode ser indiferente e de
lugar?) de passar o tempo ou (re)ordenar a vida,
RECS
6
VOLUME 2 – NÚMERO 2
impessoalidade, fazendo com que os vínculos
já que ele apenas a utiliza com a finalidade de
sejam ―desconectados‖ ao fim de cada acesso.
sanar seus problemas. Desta forma, consumindo
Vê-se bem que por ‗não-lugar‘ designamos duas
alguns minutos de conexão, ele se relaciona
realidades
distintas:
apenas provisoriamente com a Lan House, outra
espaços constituídos em relação a certos fins
característica fundamental para o conceito de
complementares,
porém,
(transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação
que os indivíduos mantêm com esses espaços. Se
as duas relações se correspondem de maneira
não-lugar, segundo Augé (2005).
O esvaziamento de significados – permanentes
bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os
– a estes não-lugares, traz a modernidade uma
indivíduos viajam, compram, repousam), não se
nova percepção espaço-temporal. Tendo em
confundem, no entanto, pois os não-lugares
vista que o mundo moderno está sempre criando
medeiam todo um conjunto de relações consigo e
com os outros que só dizem respeito indiretamente
a seus fins: assim como os lugares antropológicos
mecanismos, muitas vezes representados como
não-lugares, que modificam as relações sociais e
criam um social orgânico, os não-lugares criam
pulverizam as antigas apreensões espaços-
tensão solitária.(IBID., p.89)
temporais, fico convencido que, a maneira pela
Não criando qualquer tipo de relação que
qual as pessoas se relacionam com esses não-
perdure por mais que 2 (duas) horas de acesso,
lugares está diretamente colada com uma nova
―o senhor de meia idade‖ nos mostra que a Lan
relação com o tempo e espaço, pois a
House não possui sentidos compartilhados, mas
modernidade nos transforma e transforma
é, por seu turno, identificada apenas pelos fins a
também a maneira pela qual nos relacionamos
que se dedica, de acesso ao ciberespaço.
com o tempo e o espaço.
Um senhor de meia idade pede ao atendente 2h de
Por
conseguinte,
para
complexidade
ao guichê número 5. O senhor se senta ali e acessa
contemporaneidade devemos nos voltar aos
um site de revista e abre outro navegador onde
―sistemas de excelência técnica ou competência
entra em um site de jogos (...). O homem tem a seu
profissional que organizam grandes áreas dos
a meu ver, ele irá viajar dentro de algumas horas. 4
mudanças
a
acesso a internet. O atendente pede-lhe para que vá
lado uma mala grande de rodinhas e outra mochila,
dessas
compreender
na
ambientes material e social em que vivemos
hoje‖ (GIDDENS, 1991, p.30).
Ao conversar com um senhor de 40 (quarenta)
Uma senhora de idade chega ao atendente tira a
anos com roupas formais que sempre utiliza os
identidade e outra folha. Entrega seus documentos
serviços de Lan House em terminais rodoviários
a ele e pede-lhe para retirar a 2a via de uma conta
devido
sua. Diz a senhora: ―Eu atrasei de novo!‖ sorri para
a
exigências
de
sua
profissão
o moço.5
(comerciante), também aponta para a mesma
questão do relacionamento com os não-lugares,
4
Nota de campo 2. Data 04/11/2011.
5
Nota de campo 3. Data 27/11/2011.
RECS
7
VOLUME 2 – NÚMERO 2
Este fato nos demonstra a maneira pela qual um
os habitantes dos arredores da Rodoviária têm
grupo de usuários da Lan House se relaciona
no
com este espaço e com o atendente. Durante
momentos em que lhe foram confiadas as
uma entrevista informal, conforme o atendente,
informações, o dono da Lan House lucra na
muitos moradores da região utilizam seus
posição que ocupa. Em
serviços para ―estas coisas chatas‖, pedem para
percebemos que ele está ciente da situação:
consultar SPC (Serviço de Proteção ao Crédito);
―Final de semana isso aqui lota! Pessoal vem
SERASA (empresa privada de centralização dos
ver coisa de conta pra pagar, tirar Xerox de
serviços bancários); 2ª via de conta; etc. A esse
identidade [e CPF]!‖ 6.
atendente,
devido
aos
resultados
seu
de
depoimento
respeito, Giddens (1991) pontua que a ―maioria
das pessoas leigas consulta "profissionais" —
Conclusão
advogados, arquitetos, médicos etc., — apenas
Seria importante voltar a este lugar, em outros
de modo periódico ou irregular. Mas os sistemas
momentos,
nos quais está integrado o conhecimento dos
manifestações sobre aquele espaço. Todavia,
peritos influencia em muitos aspectos do que
este
fazemos de uma maneira contínua‖(IBID.,
identificar a Lan House como parte do mundo
p.30). Assim, questiono os significados que são
moderno que se informatiza e se (re)significa
atribuídos à Lan House, pois como aponta
constantemente. Procura também verificar a
Rogério (2009), esse saber – neste caso da
maneira que nos relacionamos com os ―não-
informática e dos trâmites burocráticos que se
lugares‖ em que passamos e com os ―sistemas
resolve no ciberespaço – ―embora esteja
peritos‖ que utilizamos em nosso cotidiano para
parcialmente disponível ao grande público, não
viver na sociedade mediada por tecnologias.
é do conhecimento pleno deste‖ (ROGÉRIO,
Desta forma, esta breve pesquisa me leva a
2009, p.83), obrigando-o a se valer da confiança
afirmar que a Lan House se identifica por
dos sistemas peritos, já que ―o cotidiano é
alguns aspectos: primeiro como um ―não-lugar‖
viabilizado [em grande parte] por mecanismos
pela sua inconstância e efemeridade de uso,
desconhecidos‖ (IBID,. p.83) que lhes são
restringindo o relacionamento das pessoas com
depositados confiança.
aqueles
Apesar dos riscos de entregar ao atendente
comprados/alugados. Como também, posso
informações pessoais, os usuários confiam neste
dizer,
―especialista‖ por ele possuir a capacidade de
moradores dos arredores da Rodoviária no
trânsito no ciberespaço, sendo ele o único capaz
especialista
para
breve
trabalho
espaços
que
reconhecer
a
teve
como
apenas
confiança
representa
nos
diferentes
intenção
minutos
depositada
uma
relação
pelos
mais
de realizar procedimentos usando mecanismos
das tecnologias digitais. Utilizando da ―fé‖ que
6
Nota de campo 3. Data 27/11/2011.
RECS
8
VOLUME 2 – NÚMERO 2
espaço
FREHSE, F. Onde estamos? Entendendo os “não-
significados de um lugar antropológico, no qual
lugares” da “supermodernidade” de Marc Augé.
você cria laços afetivos e identitários. De outro
Lasc. São Paulo, 1996, p. 87-91.
modo, a Lan House pode ser entendida como
GIDDENS, A. As conseqüências da Modernidade.
um ―sistema perito‖ capaz de embarcar as
São Paulo: Editora UNESP, 1991. Tradução Paul
pessoas leigas ou não, na cultura digital.
Fiker. p.8-104
Não esgotando a discussão, mas caminhando
LÈVY, P. Cibercultura. 1 ed. São Paulo: Ed. 34,
para uma conclusão, posso dizer que a
1999. Tradução de: Carlos Irineu da Costa.
submersão ao cotidiano da Lan House - munido
MORCELLIM, A. Lugares, não-lugares, lugares
das teorias da sociologia das relações cotidianas
virtuais. Em Tese, Florianópolis, v.6, n. 3, jan./jul.,
- me permitiu verificar as contradições da vida
2009.
moderna que se sustenta nos símbolos e
PAIS, J. M. Vida Cotidiana. Enigmas e revelações.
mecanismos construídos socialmente e nas
São Paulo: Cortez, 2003
pessoalizada
conferindo
àquele
relações dia após dia com o mundo da
PETERSEN,
S.R.F.
Dilemas
e
desafio
da
informatização, como também foi possível
historiografia brasileira: a temática da vida
entender de que maneira o ―não-lugar‖, o
cotidiana. In: MESQUITA, Z. ; BRANDÃO, C. R.
―lugar‖ e os ―sistemas peritos‖, como o caso da
Territórios do cotidiano: Uma introdução a novos
Lan House, estão intrinsecamente ligados a esta
olhares e experiências. Santa Cruz do Sul: Ed.
realidade paradoxal da contemporaneidade.
UNISC, 1995.
ROGERIO,de M. R. Etnografia de um espaço de
fluxo no aeroporto de Fortaleza. 2009. p. 200.
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THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: Uma
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COLLIGERE. Urge. In: Incerto. Liberation: São
Paulo, 2003. 1 disco sonoro.
2011. Tradução de: Wagner de Oliveira Brandão ;
revisão: Leonardo Avritzer.
DEAD FISH. Sonho Médio. In: Sonho Médio.
Terceiro Mundo Produções Fonográficas: São Paulo,
Recebido em: 25/04/2012
1999. 1 disco sonoro.
Aprovado em: 24/07/2012
D‘INCAO, M. A. Modos de ser e de viver: A
sociabilidade urbana. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, São Paulo v.4 jan/fev, 1992, 95-109.
RECS
9

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