O Museu de Lídia

Transcrição

O Museu de Lídia
CULTURA
EXPRESSO
VISITA GUIADA
O Museu
de Lídia
Viagem, pela mão
da escritora lídia jorge,
às histórias de um
Portugal antigo
por valdemar cruz/expresso
Ao esbarrar com a luz e o mistério dos painéis de S. Vicente, o rosto de Lídia Jorge desaba num mar de espanto. Percebe-se a vontade
de uma lágrima na continuada humidade de um
olhar ansioso por beber aquele mundo todo. A
memória de um Portugal antigo e ousado fascina-a. O encontro com as imagens de um tempo
sombreado de enigmas desperta-lhe a vontade
de efabular sobre o desconhecido. A viagem
pelas histórias contidas nos quadros de mestres
anónimos do Museu Nacional de Arte Antiga
(MNAA) provoca-lhe uma dor sem nome. Incomoda-a o contraste com um quotidiano adornado de banalidades com assinatura. Regressar
ao Museu é como uma viagem pelos carreiros
de um mundo passado onde se espelha um certo modo de ser português.
Tal como o vê e sente Lídia Jorge, o
MNAA não possui a grandiosidade do Louvre, da National Gallery ou mesmo do Prado. Nada ali é gigantesco — e esse é, para a escritora, um motivo de conforto. “Ao chegar
FOTOGRAFIAS TIAGO MIRANDA
Longa viagem
Partida de S. Francisco Xavier,
José Pinhão de Matos,
séc. XVIII, cerca de 1740
>
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> aqui”, diz, “é como se fôssemos visitar a casa de uns
proprietários abastados que se envolveram numa grande colecção e a mostram, mas tudo à escala humana”.
Depois há aquela disposição do edifício debruçado sobre o Tejo, “como se estivéssemos na varanda de uma
casa”. O museu, prossegue Lídia, “é uma espécie de
sala de visita da cidade e do seu passado, com projecção
para o futuro”.
O Tejo é importante na relação da escritora com
a cidade. Até por isso hesitou e, antes de optar pelo
MNAA, pensou no Museu da Água. Não apenas por
o achar “deslumbrante do ponto de vista plástico”,
mas por ter no percurso da água em Lisboa uma das
suas mais frequentes propostas de passeio para amigos chegados do exterior. Ver as pontes sobre o rio, a
Mãe d’Água, o Aqueduto das Águas livres e o Museu
da Água é todo um manifesto sobre o modo como ver
a ex-capital do império. Aquele museu, diz, “mostra
uma época que se encerrou e é um espaço cinematográïFRLQFUÊYHORQGHHVWÀRHQFHUUDGRVFHPDQRVGDYLGD
das pessoas”.
No Museu de Arte Antiga está a história de Portugal, “a história de uma forma de ser e a história de uma
relação nossa com o mundo. Estão os elementos que
nos diminuem, mas sobretudo
os elementos de grandeza que
nos podem confortar”.
Os portugueses conhecem
mal o Museu, lamenta a autora
de “Cais das Merendas”. Num fenómeno comum a instituições similares de outros países, há uma espécie de
saturação do nome e das imagens. Daí resulta “uma espécie de invenção interior, que faz com que as pessoas” interiorizem o conhecimento do edifício sem nunca o terem visitado. Conhecem, prossegue a escritora,
“por determinados elementos de tal maneira difundidos, que dá a impressão de que a pessoa foi lá, mas não
foi”. Os painéis do retábulo de S. Vicente, atribuído ao
pintor do século XV Nuno Gonçalves e ainda hoje alvo
GHLQïQG¾YHLVWHVHVFRPDVPDLVVXUSUHHQGHQWHVLQWHUSUHWDÄÒHVVREUHRVLJQLïFDGR×OWLPRGDFHQDDOLUHFULDda, sofrem com essa sensação tão partilhada pelos portugueses de muito bem conhecer o jamais visto.
Lídia Jorge mergulha num turbilhão de palavras ao
DSUR[LPDUVHGDTXHODVïJXUDVHVW¾WLFDV&DGDXPDGHlas corresponde a uma escultura. E é esse o ponto central da admiração da escritora por esta obra. Todas as
leituras, todos os mistérios, todas as teorias construíGDV½YROWDGRVPDLVUHFÑQGLWRVVLJQLïFDGRVGRVSDLQÆLV
seriam irrelevantes para Lídia caso “não estivéssemos
perante uma belíssima pintura, independentemente da
época em que foi feita. Independentemente de tudo.
Podemos pegar nela e dizer: isto é uma obra de um ar-
No Museu de Arte Antiga está a
história de uma forma de ser português
WLVWDHVSDQWRVRTXHIRLFDSD]GHSLQWDUïJXUDVTXHQR
IXQGRVÀRHVFXOWXUDVSRUTXHFDGDXPDGHVWDVïJXUDV
corresponde a uma escultura”.
A autora de “Combateremos a Sombra” tem a sua
própria chave de leitura dos painéis. Ainda assim inteUHVVDOKHPDLVqRFRORULGRGDVïJXUDVDDWLWXGHDPHQsagem que transmitem”. Sugerem-lhe “um momento de
uma solenidade enorme”, expresso no olhar de todas as
ïJXUDVUHWUDWDGDV+¾DOLSURVVHJXHqXPDHVSÆFLHGH
milagre do olhar. Temos a ideia de que o jogo da inteliJÇQFLDSDVVDWRGRSHORROKDUGHVWDVïJXUDV+¾XPUHWUDto da alma em cada uma delas. Como é que este pintor
conseguiu isto? Não sabemos”. A escritora sente haver
no retábulo “um ponto de chegada de qualquer coisa que
está para trás” que é, em simultâneo, “um ponto de partida para tudo o resto”. Seja qual for a década a que se reportam, aquelas seis pinturas atribuídas ao pintor régio
de D. Afonso V (1432-1481) falam, na opinião de Lídia Jorge, “de um período vivíssimo da história portuguesa. Um período onde se jogou tudo, durante o qual
de facto Portugal esteve na base de uma globalização
para a época, com uma importância enorme. Depois
houve uma decadência e sabemos porque foi”. Nesse
sentido, acrescenta, “está ali a raiz de uma relação que
Quem terá sido?
FOTO PEQUENA Retrato de Senhora com Rosário, autor desconhecido, Portugal, séc. XVI
FOTO GRANDE, EM CIMA Painéis de S. Vicente,
atribuídos a Nuno Gonçalves, séc. XV
é a nossa matriz civilizacional com o mundo”. Daí terlhe parecido essencial começar a visita ao Museu frente a um dos mais notáveis retratos colectivos da pintura
europeia, onde se reconhecem distintos grupos sociais,
com nobres e cavaleiros, frades, clérigos e pescadores.
'LVWLQJXHPVHWUDMHVHWHFLGRVLGHQWLïFDVHDDUPDULD
as jóias, a relíquia ou os livros abertos, mas sobretudo
surpreende o discurso contido na serenidade devota de
FDGDXPGRVURVWRVGHFDGDXPDGDVïJXUDV
Há um poderoso deslumbramento a arrebatar os
mais profundos sentimentos de quem deixa o olhar confrontar-se com aquelas 58 personagens, cada uma deODVFRPXPDPLVVÀRHVSHFÊïFDFDGDXPDGHODVFRPXP
sentido próprio. Ao chegar ao retábulo, diz Lídia JorJHqïFDVHGHVOXPEUDGRHWHPVHRPHVPRVHQWLPHQto de quando se chega junto da ‘Ronda da Noite’, de
Rembrandt. É uma coisa que se impõe, que parece que
caiu do outro mundo, e que veio ao nosso encontro. Dá
DVHQVDÄÀRGHTXHï]HPRVWRGDDFDPLQKDGDSDUDYLUmos até aqui e nos reencontrarmos”. A escritora revela-se atraída por “essa ideia de querer entrar, participar
e ser um deles. É uma atracção fortíssima, independentemente das questão sobre a data” em que os painéis terão sido concebidos. Sobre isso, a autora de “O Dia dos
Prodígios” espera ainda um esclarecimento.
(QTXDQWRQÀRFKHJDXPDWHVHGHïQLWLYDHFRPD
noção de que porventura essa leitura categórica nunca chegará, Lídia avança com a sua própria interpre-
tação. Saiba-se, primeiro, que na literatura divulgada
pelo MNAA é referido que “um segmento consideráYHOGDUHFHQWHKLVWRULRJUDïDFRQFRUGDQRIDFWRGDUHpresentação se centrar na Veneração a São Vicente no
contexto das campanhas da Dinastia de Avis contra os
mouros, em Marrocos”. Assim, os painéis apresentariam um agrupamento de 58 personagens “individuDOL]DGDVHPWRUQRGDGXSODïJXUDÄÀRGH6ÀR9LFHQWH
solene e monumental assembleia representativa da
Corte e de vários estados da sociedade portuguesa da
época, com destaque para a Cavalaria e para a Igreja
nas suas diversas hierarquias, em acto de veneração ao
patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe. (...) Embora permaneça problemático, na ausência de testemunhos coetâneos à sua criaÄÀRRSOHQRHQWHQGLPHQWRGDLQWHQÄÀRHVLJQLïFDGRGD
obra, ela deve estar assim associada a uma dupla função, votiva e evocativa, dos triunfos guerreiros da dinastia de Avis no norte de África”.
Lídia Jorge lê o retábulo de modo diferente. Cativa-a a ideia de associação a um certo mito fernandino. Antes de tudo, porém, gostaria de saber se “o Infante de
Sagres é aquele mesmo, ou não. A partir daí, se fosse,
se tivéssemos absoluta certeza, tudo jogaria. A ideia de
')HUQDQGRÆPXLWRDWUDHQWHr&RPRïFFLRQLVWDJRVWD
de inventar. Então, se lhe pedissem para fazer um guião
SDUDXPïOPHQÀRWHULDG×YLGDHPFRORFDUDOL')HUnando porque não vê as insígnias do S. Vicente. Por ouWURODGRVHQWHVHDWUDÊGDSHODïJXUDGR,QIDQWHqDWÆSHOD
ideia de misturar amigos e inimigos, porque nesse caso
possivelmente estariam aqui inimigos, e estariam mortos e vivos”. “Isso dar-me-ia alguma satisfação. Fascina-me imaginar isto em torno do Infante, que é um márWLUPXLWRIRUWH4XLVHUDPTXHHOHï]HVVHRVDFULIÊFLRQR
fundo por uma causa que foi perdida”, acrescenta.
Num outro momento da sua interpretação a escritora diz que “quem advoga a expansão não tem razão de imediato, mas tem razão no futuro”. E explica:
“Isto é muito romanesco, mas dar-me-ia uma grande
satisfação que fosse assim, porque então eu leria estes
painéis com uma outra intensidade diferente da que se
fosse esse santo tão longínquo que é o S. Vicente, com
toda a história improvável do corvo, do barquinho, da
palma. É uma história longínqua, inverosímil, fantástica, mas que fascina muita gente”. Pelo contrário, com
DVXDSURSRVWDqWHUÊDPRVXPDWHVHïFFLRQDOPDVPXLWR
histórica ao mesmo tempo”.
Uns passos ao lado dos painéis está “O Inferno”,
um quadro de mestre desconhecido, mas tão poderoso,
com uma narrativa tão intensa que, para a autora de “O
-DUGLPVHP/LPLWHVrMXVWLïFDULDSRUVLVÐDYLVLWD$GPLte-se estar neste quadro o primeiro nu da pintura portuguesa. É um nu muito realista se comparado com outros >
A glória do Mestre
Desconhecido
Percebe-se a vontade de uma
lágrima no rosto de Lídia Jorge
quando tem de evocar o Mestre
Desconhecido como o grande
autor português. Ao pensar nesta
visita ao Museu Nacional de Arte
Antiga chegou a equacionar a
hipótese de a organizar apenas
em função das muitas obras
espalhadas por aquelas salas
com uma assinatura na aparência
semelhante, mas reveladora de
uma realidade antiga e difícil de
perceber num tempo de, como diz
a escritora, “hiperautoria, em que
até o restaurador aparece hoje com
o seu nome na obra restaurada”.
Por isso gostava de passear
apenas por entre as obras dos
mestres desconhecidos. “É o nosso
maior autor e isso dói-me de tal
ordem que pensei organizar a visita
nessa perspectiva”. Lídia Jorge vê
na “dificuldade que temos para
nos amarmos a nós próprios” a
justificação para essa atracção pelo
anónimo. “Somos o anónimo tenaz.
Lutamos com tenacidade, mas
não reivindicamos a autoria. Isso é
inexplicável”, diz.
A ideia de falar daqueles
mestres desconhecidos impôs-selhe ao ver o “Retrato da senhora
com rosário”, numa das salas do
rés-do-chão. Ficou quase sem
fala ao deter-se no rosto daquela
mulher com um olhar “próprio da
rapariga púdica, mas sábia. É um
olhar tímido”. Comove-a a força
daquela boca cerrada, diverte-a ver
o modo como foi pintado o buço
e emociona-se com as mãos. “As
mãos dela são as mãos da minha
mãe”, desabafa.
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$DXWRðDJHODÄÀR
é inestética
Com tanta gente a decretar o fim
iminente de Portugal, Lídia Jorge
responde com um sorriso de
desdém a um raciocínio ancorado
na forte vocação nacional para a
autoflagelação. É um sentimento
alheio ao sentir da escritora, cada
vez mais triste com a vida pública
da nação. “Estamos a viver um
momento esquisitíssimo, mas não
esqueço que quando se falava de
muitas coisas que afinal estão aí e
vieram a acontecer, chamavam-nos
pessimistas”.
Lídia fala de um país anónimo
“que avança com um espírito de
sobrevivência espantoso. Há um
país silencioso, que trabalha, que
age, que é solidário, que não tem
o nome escrito no jornal e possui
um instinto de sobrevivência e
de agremiação tão espontâneo
como fantástico”. Na opinião da
escritora, “é isso que mantém este
país — e não as elites culturais, nem
as elites políticas”.
dois nus pendurados no outro extremo do quadro. Lídia
É esse espírito de sobrevivência >
considera-os “plasticamente muito bonitos” e acha que
que Lídia Jorge detecta no espólio
o pintor, em pleno século XVI, só os poderia ter incluído museu. Um espírito que serviu
do numa cena como aquela, por ser de representação dos
de âncora para que um país de
tormentos do inferno para quem peca e não pode aspiapenas três milhões de habitantes
marcasse presença em todo o
rar à salvação. É um quadro através do qual se percebe
mundo.
FRPRVHLPDJLQDYDDSXQLÄÀRHRWHUURUQRïQDOGD,GDEmbora tenhamos “energia
de Média. É um terror objectivado numa parábola “exsuficiente para ultrapassar as
traordinária do ponto de vista plástico, porque tem uma
dificuldades”, a escritora detecta
simetria absoluta”, observa Lídia. O quadro “cria medo
ainda assim uma forte vocação dos
numa primeira leitura, mas ao mesmo tempo consegue
portugueses para a autoflagelação.
aquilo que toda a grande obra de arte faz ao desencadear
Só que, como diz, “a autoflagelação
a atracção absoluta numa segunda leitura. Há medo na
é inestética”.
perspectiva primária, porque todos os elementos são de
terror. Na segunda leitura surge a atracção, porque há
uma harmonia absoluta entre os elementos”.
Dois eixos vão desembocar num caldeirão com
água a ferver. Lá dentro estão alguns padres e uma mulher. Por baixo, nota Lídia Jorge, revolvem-se os diabos e as almas torturadas. Se vamos aos pormenores,
FRQVWDWDqHQWUDPRVQRMRJRO×GLFR-¾ÆXPDWHUFHLUD
OHLWXUD3HUFHEHVHDWÆTXHHVWDVïJXUDVQÀRVÀRUHDLV
o que acabará por criar uma outra sensação, que é a de
riso. Partimos de um primeiro elemento, do terror,
para um segundo, da harmonia, com o jogo das manchas de cor e das formas, para depois irmos a uma deFLIUDÄÀRPDLVPL×GDHVHQWLPRVRULGÊFXORRTXHDQXOD
a primeira mensagem. Podemos pegar nisto junto das
FULDQÄDVHVRUULU½YRQWDGH7HPRVDVïJXUDVGHIRUPDdas e podemos decompor”. Acresce que “os diabos
aparecem aqui imensamente femininos, o que também
tem as suas leituras”. Biblicamente, refere a escritora,
qDVSREUHVGDVPXOKHUHVVHPSUHï]HUDPJUDQGHVPDOdades”.
Um pormenor não passa despercebido a Lídia Jorge. Os padres, que se presume estarem no caldeirão por
se terem envolvido com uma mulher, estão no centro,
“numa atitude semelhante ao que está a fazer Gil Vicente”. Ressalta do quadro a exposição de um terror em siPXOW¿QHRO×GLFRHOLEHUWDGRUr6HVÀRPXLWDVDVKLVWÐULDV
passíveis de serem contadas através daquela cena, há, na
opinião de Lídia, uma a impor-se a todas as outras, materializada na representação “do maior terror que a igreja dos cristãos criou, que é a punição eterna de onde não
se sai por não haver salvação possível”. Todo o imaginário da época entronca nesta visão. Diz a escritora: “pensamos em Dante e vemos que o que aqui está é uma perspectiva dantesca. A ideia de que não se liberta. Do ponto
de vista de quem percebe a pintura, só nos libertamos
SHODLURQLDHSHORJURWHVFRGDVïJXUDVr
Nesta viagem pelos primitivos portugueses marcaGRVSHODHVFRODðDPHQJDDDXWRUDGHq1RWÊFLDGD&LGDde Silvestre” detém-se nos quadros de Josefa d’Óbidos,
D q-RVHïQKDr FRPR FDULQKRVDPHQWH OKH FKDPD ROKD
superior do Museu, depara com o painel feito para ser
colocado numa zona alta do colégio da Cotovia, dos jesuítas, na zona de S. Mamede. Como se fora uma imensa tapeçaria, contém um grande panorama da cidade de
Lisboa e, como observa a escritora, ao retratar a saída
de S. Francisco Xavier, surge como a ilustração possível, “feita a posteriori, do que é a ‘Peregrinação’, um dos
livros mais espantosos que temos”.
Se “Os Lusíadas” são a epopeia dourada dos portugueses, naquele painel, com uma linguagem completamente diferente das obras anteriores, “temos a
DOPDGDVSHVVRDVTXHï]HUDPRVGHVFREULPHQWRV2
Fernão Mendes Pinto descreve à exaustão a epopeia
dos homens de poder, mas sobretudo dos homens
sem poder, que iam nas naus até à Índia, China ou Japão”. Talvez transportassem o sonho — e é essa utopia que Lídia Jorge encontra no painel, onde encontra a história de uma fantasia que permanece quando
já está implantada a decadência. “A cidade, com a
Ribeira das Naus, surge como um sonho imperial e
real. É o sonho de Portugal imperador do mundo, o
que é um sonho absolutamente doido, embora possível se tivéssemos tido outra agilidade intelectual”.
Isto porque, considera a escritora, foram cometidos
dois erros graves. “As nossas expedições foram sempre ocasionais. Com excepção do
tempo de D. João II, não houve
um plano. A partir daí foi-se ao
sabor dos interesses, ao sabor de
cada um. Como ideia, ou como
embrulho, levávamos a religião”. O problema, acrescenta, “é que a nossa nunca foi uma religião de gente
culta e limitou-se sempre aos actos de pregação e culto. Não tivemos a cultura da Bíblia e não instruímos
ninguém”.
Lídia Jorge passa ainda pelos biombos Nambam,
que representam os “bárbaros do sul”, ou seja, os portugueses, e lamenta o encerramento temporário da Capela das Albertas, do século XVI, onde gostaria de termiQDUDYLVLWD-¾DWDUGHYDLORQJDHO¾IRUDK¾XPGLO×YLR
DDEDWHUVHVREUH/LVERD/ÊGLD-RUJHGHLWDXP×OWLPR
olhar para aqueles corredores onde gosta de voltar e dos
quais se despede com palavras tranquilas. Conforta-a a
LGHLDGHWHUQDTXHOHPXVHXXPHVSDÄRGHUHðH[ÀRq&RP
tudo isto que vemos e sabendo como somos, é surpreendente, apesar de tudo, o que conseguimos”. O apelo do
museu é tão forte que lhe faz “imensa impressão que as
pessoas se sintam sozinhas quando há um museu próximo”. Nos museus circulam vozes, passeiam-se pessoas.
Um museu povoado é uma casa com milhares de outros.
Então, conclui Lídia Jorge, “dentro do museu estamos
no seio de uma família muito grande. Não podemos estar sós”. Q
“O sonho de Portugal imperador
do mundo é absolutamente doido”
E estes pintores, quem terão sido?
Retrato de Senhora, autor
desconhecido, Portugal, séc. XVI
FOTO GRANDE, EM CIMA Inferno, autor
não identificado, Portugal, primeiro terço
do séc. XVI (1505-1530)
FOTO PEQUENA, EM CIMA Deposição no túmulo,
Cristóvão de Figueiredo, séc. XVI
ainda para um quadro de Cristóvão de Figueiredo,
q$GRUDÄÀRr TXH D qGHVOXPEUD FRP WRGDV DV ïJXUDV
FRQYHQFLRQDLVHGXDVïJXUDVDEVROXWDPHQWHUHDOLVWDVr
passa pelos olhares místicos de outras telas, evita o importante acervo da pintura europeia e, antes de saltar
quase dois séculos para concluir a visita junto de um
painel da zona ribeirinha de Lisboa, interroga-se sobre
a origem de todo o espólio do MNAA. A questão ganha
toda a pertinência quando se sabe da existência de um
Bosch, de um Piero de la Francesca, ou de um Brueghel
ïOKR$SHUVSHFWLYDEHQÆYRODGDHVFULWRUDVHJXQGRD
qual as elites portuguesas teriam tido a perspicácia de
enriquecer o património luso ao longo de séculos, não
tem correspondência com a realidade. Na verdade, a
maioria das peças regressou ao património nacional no
século XIX, uma vez que, antes, as chamadas elites não
perderam uma oportunidade para vender tudo quanto
SXGHVVHP 3DUWH VLJQLïFDWLYD GR DFWXDO FRQWH×GR GR
Museu foi doada por Guerra Junqueiro que, como depois refere Lídia Jorge, “vendeu por preços simbólicos
coisas absolutamente deslumbrantes”.
Há uma espécie de encantamento no olhar da escritora quando, subidas as escadas em direcção ao piso
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ESTILO
PURO BOM GOSTO
Elegância
de esteta
Uma obra de arte, um fato
clássico, um homem distinto. Estilo,
segundo luís sáragga leal
por mafalda anjos/expresso
O homem
Exercitar o gosto. Foi isso que fez toda a vida, desde os 20 anos, quando descobriu
o enlevo da arte e fez dela a grande paixão da sua vida. “O gosto treina-se, moldase, aprende-se”, explica. O advogado Luís Sáragga Leal não tem dúvidas de que
o seu gosto é uma evolução, é fruto de muitos olhares, muita leitura e até muito
estudo. Sim, ele é um esteta, na acepção que vem do grego “aquele que sente”.
Sente e deixa-se arrebatar pelo belo, inspira-lhe a harmonia, o talento, a arte. Hoje,
a fundação PLMJ (criada pela sociedade de advogados PLMJ — A.M. Pereira,
Sáragga Leal, Oliveira Martins, Júdice e Associados que dirige) tem mais de 1000
obras, distribuídas entre 600 obras de fotografia, 250 pinturas e desenho, 100
obras de vídeo e 50 de escultura — escolhas nas quais Sáragga Leal se envolve
pessoalmente. Apesar da dimensão da colecção, que é um dos maiores acervos
privados do país, recusa-se a ver a arte pelo investimento. “Para comprar tenho de
gostar da obra, e muito. Tenho grandes impulsos, mas procuro nunca comprar no
mesmo dia, para dormir sobre o assunto”.
Aos 63 anos, Sáragga Leal é um homem elegante. Como alguém dizia, tem a
suprema arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir
entre os demais. Mas a moda não o cativa por aí além. Não é grande gastador
de roupa, há anos que tem o seu alfaiate tradicional. Deixa-se entusiasmar pelas
gravatas, adereços que usa quase diariamente, mas também gosta quando ficam
no armário — como na produção fotográfica que fez para a “Intelligent Life”. É que
este charmoso galã à antiga adora modernas instalações de vídeo alternativas
e priva com jovens artistas de piercings, calças rotas e cabelos às cores. Uma
dicotomia de sensibilidades que se estende ao guarda-fatos. Tanto veste calças de
ganga e ténis como um formalíssimo fato e gravata. É puro bom gosto.
A roupa
Luís Sáragga Leal veste um fato clássico italiano de lã fria, um tecido sofisticado
que pode ser usado em todas as estações. A escolha recaiu nos dois botões — a
tendência desta estação. O visual conservador da camisa de riscas com colarinho
e punhos brancos é contrariado
AO DETALHE
pela ausência de gravata, cada vez
Roupa: Fato de dois botões em lã fria, Canali na Rosa & Teixeira,
mais frequente nos tempos que
€1155; camisa de riscas de colarinho branco, Loja das Meias, €85;
correm, mesmo nos executivos
cinto, Ermenegildo Zegna, €85; sapatos, Rossetti Frateli na Rosa
de topo. Faz lembrar a época
& Teixeira, €295. Obra: Luís Sáragga Leal foi fotografado no
de faculdade, em que o toque
Espaço Fundação PLMJ junto à peça “E tentamos fazer o mínimo
de rebeldia de Sáragga era não
possível” de Rosa Baptista, 2007.
apertar o último botão da camisa.
EXPRESSO
PRODUÇÃO MARGARIDA FIGUEIREDO
FOTOGRAFIA ANA BAIÃO
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