O Museu de Lídia
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O Museu de Lídia
CULTURA EXPRESSO VISITA GUIADA O Museu de Lídia Viagem, pela mão da escritora lídia jorge, às histórias de um Portugal antigo por valdemar cruz/expresso Ao esbarrar com a luz e o mistério dos painéis de S. Vicente, o rosto de Lídia Jorge desaba num mar de espanto. Percebe-se a vontade de uma lágrima na continuada humidade de um olhar ansioso por beber aquele mundo todo. A memória de um Portugal antigo e ousado fascina-a. O encontro com as imagens de um tempo sombreado de enigmas desperta-lhe a vontade de efabular sobre o desconhecido. A viagem pelas histórias contidas nos quadros de mestres anónimos do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) provoca-lhe uma dor sem nome. Incomoda-a o contraste com um quotidiano adornado de banalidades com assinatura. Regressar ao Museu é como uma viagem pelos carreiros de um mundo passado onde se espelha um certo modo de ser português. Tal como o vê e sente Lídia Jorge, o MNAA não possui a grandiosidade do Louvre, da National Gallery ou mesmo do Prado. Nada ali é gigantesco — e esse é, para a escritora, um motivo de conforto. “Ao chegar FOTOGRAFIAS TIAGO MIRANDA Longa viagem Partida de S. Francisco Xavier, José Pinhão de Matos, séc. XVIII, cerca de 1740 > 91 I N T E L L I G E N T P R I M A V E R A L I F E 2 0 1 0 CULTURA > aqui”, diz, “é como se fôssemos visitar a casa de uns proprietários abastados que se envolveram numa grande colecção e a mostram, mas tudo à escala humana”. Depois há aquela disposição do edifício debruçado sobre o Tejo, “como se estivéssemos na varanda de uma casa”. O museu, prossegue Lídia, “é uma espécie de sala de visita da cidade e do seu passado, com projecção para o futuro”. O Tejo é importante na relação da escritora com a cidade. Até por isso hesitou e, antes de optar pelo MNAA, pensou no Museu da Água. Não apenas por o achar “deslumbrante do ponto de vista plástico”, mas por ter no percurso da água em Lisboa uma das suas mais frequentes propostas de passeio para amigos chegados do exterior. Ver as pontes sobre o rio, a Mãe d’Água, o Aqueduto das Águas livres e o Museu da Água é todo um manifesto sobre o modo como ver a ex-capital do império. Aquele museu, diz, “mostra uma época que se encerrou e é um espaço cinematográïFRLQFUÊYHORQGHHVWÀRHQFHUUDGRVFHPDQRVGDYLGD das pessoas”. No Museu de Arte Antiga está a história de Portugal, “a história de uma forma de ser e a história de uma relação nossa com o mundo. Estão os elementos que nos diminuem, mas sobretudo os elementos de grandeza que nos podem confortar”. Os portugueses conhecem mal o Museu, lamenta a autora de “Cais das Merendas”. Num fenómeno comum a instituições similares de outros países, há uma espécie de saturação do nome e das imagens. Daí resulta “uma espécie de invenção interior, que faz com que as pessoas” interiorizem o conhecimento do edifício sem nunca o terem visitado. Conhecem, prossegue a escritora, “por determinados elementos de tal maneira difundidos, que dá a impressão de que a pessoa foi lá, mas não foi”. Os painéis do retábulo de S. Vicente, atribuído ao pintor do século XV Nuno Gonçalves e ainda hoje alvo GHLQïQG¾YHLVWHVHVFRPDVPDLVVXUSUHHQGHQWHVLQWHUSUHWDÄÒHVVREUHRVLJQLïFDGR×OWLPRGDFHQDDOLUHFULDda, sofrem com essa sensação tão partilhada pelos portugueses de muito bem conhecer o jamais visto. Lídia Jorge mergulha num turbilhão de palavras ao DSUR[LPDUVHGDTXHODVïJXUDVHVW¾WLFDV&DGDXPDGHlas corresponde a uma escultura. E é esse o ponto central da admiração da escritora por esta obra. Todas as leituras, todos os mistérios, todas as teorias construíGDV½YROWDGRVPDLVUHFÑQGLWRVVLJQLïFDGRVGRVSDLQÆLV seriam irrelevantes para Lídia caso “não estivéssemos perante uma belíssima pintura, independentemente da época em que foi feita. Independentemente de tudo. Podemos pegar nela e dizer: isto é uma obra de um ar- No Museu de Arte Antiga está a história de uma forma de ser português WLVWDHVSDQWRVRTXHIRLFDSD]GHSLQWDUïJXUDVTXHQR IXQGRVÀRHVFXOWXUDVSRUTXHFDGDXPDGHVWDVïJXUDV corresponde a uma escultura”. A autora de “Combateremos a Sombra” tem a sua própria chave de leitura dos painéis. Ainda assim inteUHVVDOKHPDLVqRFRORULGRGDVïJXUDVDDWLWXGHDPHQsagem que transmitem”. Sugerem-lhe “um momento de uma solenidade enorme”, expresso no olhar de todas as ïJXUDVUHWUDWDGDV+¾DOLSURVVHJXHqXPDHVSÆFLHGH milagre do olhar. Temos a ideia de que o jogo da inteliJÇQFLDSDVVDWRGRSHORROKDUGHVWDVïJXUDV+¾XPUHWUDto da alma em cada uma delas. Como é que este pintor conseguiu isto? Não sabemos”. A escritora sente haver no retábulo “um ponto de chegada de qualquer coisa que está para trás” que é, em simultâneo, “um ponto de partida para tudo o resto”. Seja qual for a década a que se reportam, aquelas seis pinturas atribuídas ao pintor régio de D. Afonso V (1432-1481) falam, na opinião de Lídia Jorge, “de um período vivíssimo da história portuguesa. Um período onde se jogou tudo, durante o qual de facto Portugal esteve na base de uma globalização para a época, com uma importância enorme. Depois houve uma decadência e sabemos porque foi”. Nesse sentido, acrescenta, “está ali a raiz de uma relação que Quem terá sido? FOTO PEQUENA Retrato de Senhora com Rosário, autor desconhecido, Portugal, séc. XVI FOTO GRANDE, EM CIMA Painéis de S. Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves, séc. XV é a nossa matriz civilizacional com o mundo”. Daí terlhe parecido essencial começar a visita ao Museu frente a um dos mais notáveis retratos colectivos da pintura europeia, onde se reconhecem distintos grupos sociais, com nobres e cavaleiros, frades, clérigos e pescadores. 'LVWLQJXHPVHWUDMHVHWHFLGRVLGHQWLïFDVHDDUPDULD as jóias, a relíquia ou os livros abertos, mas sobretudo surpreende o discurso contido na serenidade devota de FDGDXPGRVURVWRVGHFDGDXPDGDVïJXUDV Há um poderoso deslumbramento a arrebatar os mais profundos sentimentos de quem deixa o olhar confrontar-se com aquelas 58 personagens, cada uma deODVFRPXPDPLVVÀRHVSHFÊïFDFDGDXPDGHODVFRPXP sentido próprio. Ao chegar ao retábulo, diz Lídia JorJHqïFDVHGHVOXPEUDGRHWHPVHRPHVPRVHQWLPHQto de quando se chega junto da ‘Ronda da Noite’, de Rembrandt. É uma coisa que se impõe, que parece que caiu do outro mundo, e que veio ao nosso encontro. Dá DVHQVDÄÀRGHTXHï]HPRVWRGDDFDPLQKDGDSDUDYLUmos até aqui e nos reencontrarmos”. A escritora revela-se atraída por “essa ideia de querer entrar, participar e ser um deles. É uma atracção fortíssima, independentemente das questão sobre a data” em que os painéis terão sido concebidos. Sobre isso, a autora de “O Dia dos Prodígios” espera ainda um esclarecimento. (QTXDQWRQÀRFKHJDXPDWHVHGHïQLWLYDHFRPD noção de que porventura essa leitura categórica nunca chegará, Lídia avança com a sua própria interpre- tação. Saiba-se, primeiro, que na literatura divulgada pelo MNAA é referido que “um segmento consideráYHOGDUHFHQWHKLVWRULRJUDïDFRQFRUGDQRIDFWRGDUHpresentação se centrar na Veneração a São Vicente no contexto das campanhas da Dinastia de Avis contra os mouros, em Marrocos”. Assim, os painéis apresentariam um agrupamento de 58 personagens “individuDOL]DGDVHPWRUQRGDGXSODïJXUDÄÀRGH6ÀR9LFHQWH solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estados da sociedade portuguesa da época, com destaque para a Cavalaria e para a Igreja nas suas diversas hierarquias, em acto de veneração ao patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe. (...) Embora permaneça problemático, na ausência de testemunhos coetâneos à sua criaÄÀRRSOHQRHQWHQGLPHQWRGDLQWHQÄÀRHVLJQLïFDGRGD obra, ela deve estar assim associada a uma dupla função, votiva e evocativa, dos triunfos guerreiros da dinastia de Avis no norte de África”. Lídia Jorge lê o retábulo de modo diferente. Cativa-a a ideia de associação a um certo mito fernandino. Antes de tudo, porém, gostaria de saber se “o Infante de Sagres é aquele mesmo, ou não. A partir daí, se fosse, se tivéssemos absoluta certeza, tudo jogaria. A ideia de ')HUQDQGRÆPXLWRDWUDHQWHr&RPRïFFLRQLVWDJRVWD de inventar. Então, se lhe pedissem para fazer um guião SDUDXPïOPHQÀRWHULDG×YLGDHPFRORFDUDOL')HUnando porque não vê as insígnias do S. Vicente. Por ouWURODGRVHQWHVHDWUDÊGDSHODïJXUDGR,QIDQWHqDWÆSHOD ideia de misturar amigos e inimigos, porque nesse caso possivelmente estariam aqui inimigos, e estariam mortos e vivos”. “Isso dar-me-ia alguma satisfação. Fascina-me imaginar isto em torno do Infante, que é um márWLUPXLWRIRUWH4XLVHUDPTXHHOHï]HVVHRVDFULIÊFLRQR fundo por uma causa que foi perdida”, acrescenta. Num outro momento da sua interpretação a escritora diz que “quem advoga a expansão não tem razão de imediato, mas tem razão no futuro”. E explica: “Isto é muito romanesco, mas dar-me-ia uma grande satisfação que fosse assim, porque então eu leria estes painéis com uma outra intensidade diferente da que se fosse esse santo tão longínquo que é o S. Vicente, com toda a história improvável do corvo, do barquinho, da palma. É uma história longínqua, inverosímil, fantástica, mas que fascina muita gente”. Pelo contrário, com DVXDSURSRVWDqWHUÊDPRVXPDWHVHïFFLRQDOPDVPXLWR histórica ao mesmo tempo”. Uns passos ao lado dos painéis está “O Inferno”, um quadro de mestre desconhecido, mas tão poderoso, com uma narrativa tão intensa que, para a autora de “O -DUGLPVHP/LPLWHVrMXVWLïFDULDSRUVLVÐDYLVLWD$GPLte-se estar neste quadro o primeiro nu da pintura portuguesa. É um nu muito realista se comparado com outros > A glória do Mestre Desconhecido Percebe-se a vontade de uma lágrima no rosto de Lídia Jorge quando tem de evocar o Mestre Desconhecido como o grande autor português. Ao pensar nesta visita ao Museu Nacional de Arte Antiga chegou a equacionar a hipótese de a organizar apenas em função das muitas obras espalhadas por aquelas salas com uma assinatura na aparência semelhante, mas reveladora de uma realidade antiga e difícil de perceber num tempo de, como diz a escritora, “hiperautoria, em que até o restaurador aparece hoje com o seu nome na obra restaurada”. Por isso gostava de passear apenas por entre as obras dos mestres desconhecidos. “É o nosso maior autor e isso dói-me de tal ordem que pensei organizar a visita nessa perspectiva”. Lídia Jorge vê na “dificuldade que temos para nos amarmos a nós próprios” a justificação para essa atracção pelo anónimo. “Somos o anónimo tenaz. Lutamos com tenacidade, mas não reivindicamos a autoria. Isso é inexplicável”, diz. A ideia de falar daqueles mestres desconhecidos impôs-selhe ao ver o “Retrato da senhora com rosário”, numa das salas do rés-do-chão. Ficou quase sem fala ao deter-se no rosto daquela mulher com um olhar “próprio da rapariga púdica, mas sábia. É um olhar tímido”. Comove-a a força daquela boca cerrada, diverte-a ver o modo como foi pintado o buço e emociona-se com as mãos. “As mãos dela são as mãos da minha mãe”, desabafa. 93 I N T E L L I G E N T P R I M A V E R A L I F E 2 0 1 0 CULTURA $DXWRðDJHODÄÀR é inestética Com tanta gente a decretar o fim iminente de Portugal, Lídia Jorge responde com um sorriso de desdém a um raciocínio ancorado na forte vocação nacional para a autoflagelação. É um sentimento alheio ao sentir da escritora, cada vez mais triste com a vida pública da nação. “Estamos a viver um momento esquisitíssimo, mas não esqueço que quando se falava de muitas coisas que afinal estão aí e vieram a acontecer, chamavam-nos pessimistas”. Lídia fala de um país anónimo “que avança com um espírito de sobrevivência espantoso. Há um país silencioso, que trabalha, que age, que é solidário, que não tem o nome escrito no jornal e possui um instinto de sobrevivência e de agremiação tão espontâneo como fantástico”. Na opinião da escritora, “é isso que mantém este país — e não as elites culturais, nem as elites políticas”. dois nus pendurados no outro extremo do quadro. Lídia É esse espírito de sobrevivência > considera-os “plasticamente muito bonitos” e acha que que Lídia Jorge detecta no espólio o pintor, em pleno século XVI, só os poderia ter incluído museu. Um espírito que serviu do numa cena como aquela, por ser de representação dos de âncora para que um país de tormentos do inferno para quem peca e não pode aspiapenas três milhões de habitantes marcasse presença em todo o rar à salvação. É um quadro através do qual se percebe mundo. FRPRVHLPDJLQDYDDSXQLÄÀRHRWHUURUQRïQDOGD,GDEmbora tenhamos “energia de Média. É um terror objectivado numa parábola “exsuficiente para ultrapassar as traordinária do ponto de vista plástico, porque tem uma dificuldades”, a escritora detecta simetria absoluta”, observa Lídia. O quadro “cria medo ainda assim uma forte vocação dos numa primeira leitura, mas ao mesmo tempo consegue portugueses para a autoflagelação. aquilo que toda a grande obra de arte faz ao desencadear Só que, como diz, “a autoflagelação a atracção absoluta numa segunda leitura. Há medo na é inestética”. perspectiva primária, porque todos os elementos são de terror. Na segunda leitura surge a atracção, porque há uma harmonia absoluta entre os elementos”. Dois eixos vão desembocar num caldeirão com água a ferver. Lá dentro estão alguns padres e uma mulher. Por baixo, nota Lídia Jorge, revolvem-se os diabos e as almas torturadas. Se vamos aos pormenores, FRQVWDWDqHQWUDPRVQRMRJRO×GLFR-¾ÆXPDWHUFHLUD OHLWXUD3HUFHEHVHDWÆTXHHVWDVïJXUDVQÀRVÀRUHDLV o que acabará por criar uma outra sensação, que é a de riso. Partimos de um primeiro elemento, do terror, para um segundo, da harmonia, com o jogo das manchas de cor e das formas, para depois irmos a uma deFLIUDÄÀRPDLVPL×GDHVHQWLPRVRULGÊFXORRTXHDQXOD a primeira mensagem. Podemos pegar nisto junto das FULDQÄDVHVRUULU½YRQWDGH7HPRVDVïJXUDVGHIRUPDdas e podemos decompor”. Acresce que “os diabos aparecem aqui imensamente femininos, o que também tem as suas leituras”. Biblicamente, refere a escritora, qDVSREUHVGDVPXOKHUHVVHPSUHï]HUDPJUDQGHVPDOdades”. Um pormenor não passa despercebido a Lídia Jorge. Os padres, que se presume estarem no caldeirão por se terem envolvido com uma mulher, estão no centro, “numa atitude semelhante ao que está a fazer Gil Vicente”. Ressalta do quadro a exposição de um terror em siPXOW¿QHRO×GLFRHOLEHUWDGRUr6HVÀRPXLWDVDVKLVWÐULDV passíveis de serem contadas através daquela cena, há, na opinião de Lídia, uma a impor-se a todas as outras, materializada na representação “do maior terror que a igreja dos cristãos criou, que é a punição eterna de onde não se sai por não haver salvação possível”. Todo o imaginário da época entronca nesta visão. Diz a escritora: “pensamos em Dante e vemos que o que aqui está é uma perspectiva dantesca. A ideia de que não se liberta. Do ponto de vista de quem percebe a pintura, só nos libertamos SHODLURQLDHSHORJURWHVFRGDVïJXUDVr Nesta viagem pelos primitivos portugueses marcaGRVSHODHVFRODðDPHQJDDDXWRUDGHq1RWÊFLDGD&LGDde Silvestre” detém-se nos quadros de Josefa d’Óbidos, D q-RVHïQKDr FRPR FDULQKRVDPHQWH OKH FKDPD ROKD superior do Museu, depara com o painel feito para ser colocado numa zona alta do colégio da Cotovia, dos jesuítas, na zona de S. Mamede. Como se fora uma imensa tapeçaria, contém um grande panorama da cidade de Lisboa e, como observa a escritora, ao retratar a saída de S. Francisco Xavier, surge como a ilustração possível, “feita a posteriori, do que é a ‘Peregrinação’, um dos livros mais espantosos que temos”. Se “Os Lusíadas” são a epopeia dourada dos portugueses, naquele painel, com uma linguagem completamente diferente das obras anteriores, “temos a DOPDGDVSHVVRDVTXHï]HUDPRVGHVFREULPHQWRV2 Fernão Mendes Pinto descreve à exaustão a epopeia dos homens de poder, mas sobretudo dos homens sem poder, que iam nas naus até à Índia, China ou Japão”. Talvez transportassem o sonho — e é essa utopia que Lídia Jorge encontra no painel, onde encontra a história de uma fantasia que permanece quando já está implantada a decadência. “A cidade, com a Ribeira das Naus, surge como um sonho imperial e real. É o sonho de Portugal imperador do mundo, o que é um sonho absolutamente doido, embora possível se tivéssemos tido outra agilidade intelectual”. Isto porque, considera a escritora, foram cometidos dois erros graves. “As nossas expedições foram sempre ocasionais. Com excepção do tempo de D. João II, não houve um plano. A partir daí foi-se ao sabor dos interesses, ao sabor de cada um. Como ideia, ou como embrulho, levávamos a religião”. O problema, acrescenta, “é que a nossa nunca foi uma religião de gente culta e limitou-se sempre aos actos de pregação e culto. Não tivemos a cultura da Bíblia e não instruímos ninguém”. Lídia Jorge passa ainda pelos biombos Nambam, que representam os “bárbaros do sul”, ou seja, os portugueses, e lamenta o encerramento temporário da Capela das Albertas, do século XVI, onde gostaria de termiQDUDYLVLWD-¾DWDUGHYDLORQJDHO¾IRUDK¾XPGLO×YLR DDEDWHUVHVREUH/LVERD/ÊGLD-RUJHGHLWDXP×OWLPR olhar para aqueles corredores onde gosta de voltar e dos quais se despede com palavras tranquilas. Conforta-a a LGHLDGHWHUQDTXHOHPXVHXXPHVSDÄRGHUHðH[ÀRq&RP tudo isto que vemos e sabendo como somos, é surpreendente, apesar de tudo, o que conseguimos”. O apelo do museu é tão forte que lhe faz “imensa impressão que as pessoas se sintam sozinhas quando há um museu próximo”. Nos museus circulam vozes, passeiam-se pessoas. Um museu povoado é uma casa com milhares de outros. Então, conclui Lídia Jorge, “dentro do museu estamos no seio de uma família muito grande. Não podemos estar sós”. Q “O sonho de Portugal imperador do mundo é absolutamente doido” E estes pintores, quem terão sido? Retrato de Senhora, autor desconhecido, Portugal, séc. XVI FOTO GRANDE, EM CIMA Inferno, autor não identificado, Portugal, primeiro terço do séc. XVI (1505-1530) FOTO PEQUENA, EM CIMA Deposição no túmulo, Cristóvão de Figueiredo, séc. XVI ainda para um quadro de Cristóvão de Figueiredo, q$GRUDÄÀRr TXH D qGHVOXPEUD FRP WRGDV DV ïJXUDV FRQYHQFLRQDLVHGXDVïJXUDVDEVROXWDPHQWHUHDOLVWDVr passa pelos olhares místicos de outras telas, evita o importante acervo da pintura europeia e, antes de saltar quase dois séculos para concluir a visita junto de um painel da zona ribeirinha de Lisboa, interroga-se sobre a origem de todo o espólio do MNAA. A questão ganha toda a pertinência quando se sabe da existência de um Bosch, de um Piero de la Francesca, ou de um Brueghel ïOKR$SHUVSHFWLYDEHQÆYRODGDHVFULWRUDVHJXQGRD qual as elites portuguesas teriam tido a perspicácia de enriquecer o património luso ao longo de séculos, não tem correspondência com a realidade. Na verdade, a maioria das peças regressou ao património nacional no século XIX, uma vez que, antes, as chamadas elites não perderam uma oportunidade para vender tudo quanto SXGHVVHP 3DUWH VLJQLïFDWLYD GR DFWXDO FRQWH×GR GR Museu foi doada por Guerra Junqueiro que, como depois refere Lídia Jorge, “vendeu por preços simbólicos coisas absolutamente deslumbrantes”. Há uma espécie de encantamento no olhar da escritora quando, subidas as escadas em direcção ao piso 95 I N T E L L I G E N T P R I M A V E R A L I F E 2 0 1 0 ESTILO PURO BOM GOSTO Elegância de esteta Uma obra de arte, um fato clássico, um homem distinto. Estilo, segundo luís sáragga leal por mafalda anjos/expresso O homem Exercitar o gosto. Foi isso que fez toda a vida, desde os 20 anos, quando descobriu o enlevo da arte e fez dela a grande paixão da sua vida. “O gosto treina-se, moldase, aprende-se”, explica. O advogado Luís Sáragga Leal não tem dúvidas de que o seu gosto é uma evolução, é fruto de muitos olhares, muita leitura e até muito estudo. Sim, ele é um esteta, na acepção que vem do grego “aquele que sente”. Sente e deixa-se arrebatar pelo belo, inspira-lhe a harmonia, o talento, a arte. Hoje, a fundação PLMJ (criada pela sociedade de advogados PLMJ — A.M. Pereira, Sáragga Leal, Oliveira Martins, Júdice e Associados que dirige) tem mais de 1000 obras, distribuídas entre 600 obras de fotografia, 250 pinturas e desenho, 100 obras de vídeo e 50 de escultura — escolhas nas quais Sáragga Leal se envolve pessoalmente. Apesar da dimensão da colecção, que é um dos maiores acervos privados do país, recusa-se a ver a arte pelo investimento. “Para comprar tenho de gostar da obra, e muito. Tenho grandes impulsos, mas procuro nunca comprar no mesmo dia, para dormir sobre o assunto”. Aos 63 anos, Sáragga Leal é um homem elegante. Como alguém dizia, tem a suprema arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir entre os demais. Mas a moda não o cativa por aí além. Não é grande gastador de roupa, há anos que tem o seu alfaiate tradicional. Deixa-se entusiasmar pelas gravatas, adereços que usa quase diariamente, mas também gosta quando ficam no armário — como na produção fotográfica que fez para a “Intelligent Life”. É que este charmoso galã à antiga adora modernas instalações de vídeo alternativas e priva com jovens artistas de piercings, calças rotas e cabelos às cores. Uma dicotomia de sensibilidades que se estende ao guarda-fatos. Tanto veste calças de ganga e ténis como um formalíssimo fato e gravata. É puro bom gosto. A roupa Luís Sáragga Leal veste um fato clássico italiano de lã fria, um tecido sofisticado que pode ser usado em todas as estações. A escolha recaiu nos dois botões — a tendência desta estação. O visual conservador da camisa de riscas com colarinho e punhos brancos é contrariado AO DETALHE pela ausência de gravata, cada vez Roupa: Fato de dois botões em lã fria, Canali na Rosa & Teixeira, mais frequente nos tempos que €1155; camisa de riscas de colarinho branco, Loja das Meias, €85; correm, mesmo nos executivos cinto, Ermenegildo Zegna, €85; sapatos, Rossetti Frateli na Rosa de topo. Faz lembrar a época & Teixeira, €295. Obra: Luís Sáragga Leal foi fotografado no de faculdade, em que o toque Espaço Fundação PLMJ junto à peça “E tentamos fazer o mínimo de rebeldia de Sáragga era não possível” de Rosa Baptista, 2007. apertar o último botão da camisa. EXPRESSO PRODUÇÃO MARGARIDA FIGUEIREDO FOTOGRAFIA ANA BAIÃO 49 I N T E L L I G E N T P R I M A V E R A L I F E 2 0 1 0