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O pensamento político de Carl Schmitt:
uma breve introdução
Wambert Gomes Di Lorenzo
(Publicado na Revista Direito e Justiça,
Porto Alegre, v. 23, p. 335-357, 2001.)
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A DOUTRINA POLÍTICA;3. A
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO, 3.1. A idéia de Constituição, 3.2. A
guarda da Constituição; 4. CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.
3
1
INTRODUÇÃO
Carl Schmitt morreu em 1985 após uma polêmica existência.
Schmitt é conhecido como o jurista do nazismo, defensor do estado
totalitário e do Leviatã, um auteur maldit que, contudo, não pode deixar de ser
estudado, pois foi o grande defensor da soberania política.
Apesar de sua produção incansável, não convenceu os teóricos do
nazismo, que viam poucas referências em seu trabalho aos conceitos de povo e
raça. Também sua relações anteriores com judeus e liberais e ainda o fato de ser
católico praticante fizeram com que seu anti-semitismo fosse considerado como
mero fingimento pela SS, que o considerava um arrivista e o desligou do partido
desde o final de 1936. De fato, não era anti-semita, até dedicou uma de suas
obras a um amigo judeu, Fritz Eisler e chamou a lei racial de Nuremberg de
Constituição da liberdade. Mostrou-se racista apenas para tornar sua conversão
ao nazismo mais convincente.
4
Foi preso em Nüremberg, mas não foi levado à julgamento. Escreveu
um livro sobre a experiência na prisão “Ex captivitate salus”, em que admite
responsabilidade moral pelos doze anos precedentes. Após sua soltura, retornou
para sua cidade natal com os direitos políticos cassados e proibido de lecionar.
Em 1941, em conversa com o amigo Ernest Jünger (segundo o diário deste)
comparou sua situação à do capitão branco, dominado pelos escravos negros,
Benito Cereno, Melville. O Capitão branco espanhol é símbolo de resistência
passiva: os escravos negros se amotinam e o tomam como refém, obrigando-o a
fingir normalidade para um capitão americano que vem a bordo do navio. Depois
escapa para o navio americano. Mas a reserva mental que Schmitt tenta passar é
parcial, pois não tentou fugir como Cereno.
Schmitt com a publicação de sua teoria (1928) torna-se um dos
juristas mais famosos da Europa e conselheiro dos últimos chanceleres alemães
von Papen e von Schleicher.
Em 20 de julho de 1932 o primeiro ministro persuadiu o presidente
Hindemburg a adotar o art. 48, retirando o governo dos sociais democratas e
entregando-o a ele, como comissário do Reich. Aquele partido alijado ingressou
com uma ação na Suprema Corte, cabendo a Schmitt a representação do Reich
(ele já era chamado pelas publicações de esquerda de Kronjurist, jurista da corte,
da coroa). Em 20 de janeiro de 1933 Hindemburg nomeou Hitler para o lugar de
von Papen. Em 24 de março de 1933 a maioria parlamentar depois da vitória
5
eleitoral após o incêndio do Reichstag concedeu poderes para Hitler alterar a
constituição.
Raymond Aron Escreveu que Carl Schmitt foi, no tempo da
República de Weimar, um jurista de talento excepcional, reconhecido por todos.
Pertenceu, ainda, à grande escola de sábios alemães que ultrapassaram suas
especialidades, abarcam todos os problemas da sociedade e da política e podem
ser considerados filósofos- como Max Weber foi à sua maneira. Mas foi doutrinário
de direita, nacionalista, cheio de desprezo pela República de Weimar, da qual
analisou impiedosamente as contradições e agonia, interpretou como jurista a
chegada de Hitler ao poder e a formação da tirania nazista.
Carl Schmitt foi o filho mais velho de família rigorosamente católica,
nasceu na Alemanha, em 1888, e em Plettenberg terminou seus estudos jurídicos
em 1910, com sua tese de doutorado sobre a Culpa e os gêneros de culpa. Em
1914 apresentou tese de livre docência em Strasbourg (quando ainda pertencia à
Alemanha, depois da conquista na guerra Franco-prussiana) sob o tema “O valor
do Estado e a significação do individual”. Ensinou em Greifswald (1921), Bonn
(1922-1923) Berlin (1926) Colonia (1933) e Berlin novamente (1945). Releva-se
que a universidade berlinense tinha enormes restrições a aceitar professores não
pertencentes à elite prussiano-protestante. Foi amigo de poetas expressionistas e
intelectuais católicos. Essas amizades talvez justifiquem a abrangência de sua
6
produção, que não se restringiu o jurídico, mas também abarcou a filosofia, a
sociologia e a teologia.
Crítico contundente do sistema político de Weimar, tornou-se
conselheiro do governo quando da intervenção do poder federal na Prússia em
1932. O Ermächtigungsgesetz (lei de autorização) de 24 de março de 1933 foi
saudado por ele como a constituição temporária da revolução alemã. Ingressou no
partido nazista em 1 de maio de 1933. No “Estado, movimento e povo: os três
membros da unidade política” ele dizia que o conceito central do nacional
socialismo era o a liderança do Führer, o Führertum.
Em novembro de 1933 tornou-se líder do grupo professores
universitários na liga jurídica nacional socialista. Em junho de 1934 tornou-se
diretor da revista jurídica mais importante, o Juristenzeitung. Em outubro de 1936
ele presidiu um congresso de direito em Berlin no qual ele exigiu que se limpasse
o direito alemão do espírito judeu. Nessa mesma ocasião sugeriu-se uma
alteração no sistema de citações, para separar os escritores arianos dos judeus, e
para justificar a medida, lembrou que a escola vienense do judeu Kelsen, com a
maior naturalidade, citava apenas a si mesma.
Apresentou a Noite dos Longos Punhais como ato do Führer na
figura de juiz supremo (Der Führer schützt das Recht): “ O ato do Führer é uma
jurisdição autêntica, não se subordinando à justiça, pois seu ato é mesmo justiça
superior.”
7
Curiosamente, a célebre disputa entre Schmitt e Kelsen não impediu
que Kelsen aprovasse o nome de Schmitt, no final de 1932, para lecionar em
Colônia. Mais tarde, na vigência do regime nazista, Kelsen foi demitido da
universidade, seus colegas redigiram abaixo assinando pedindo reconsideração
do ato, mas Schmitt se recusou a assinar
Carl Schmitt foi redescoberto pelo movimento estudantil dos anos
sessenta e só depois de sua morte suas obras foram vistas com menos
preconceito.
2
A DOUTRINA POLÍTICA
No prefácio de seu livro “O conceito de Político” (Der Begriff des
Politischen, 1932), Carl Sshmitt confessa sua impotência perante a grandeza do
tema afirmando que pretende apenas “enquadrar teoricamente um problema
incomensurável”.1 Não obstante, esforçou-se para atingir um objetivo: localizar
1
SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.31.
8
com precisão o político na época moderna. Assim, publica Romantismo Político
(Politische Romantik, 1919), Teologia Política (Politische Theologie, 1922) e
Legalidade e Legitimidade (Legalität und Legimität, 1932). Soma-se a estas obras
Die geistesgeschichitliche Lage des heutigen parlamentarimus (A situação
espiritual do parlamentarismo atual) com a qual, em 1922, começa a localizar seu
pensamento político: o parlamentarismo moderno e a sua compreensão liberal de
democracia de massas. Definitivamente, concomitante à unanimidade de seus
intérpretes, Carl Schmitt era um antiliberal.
Levanta-se contra o debate sem fim do parlamentarismo que
desresponsabiliza os agentes políticos em face das decisões concretas. Segundo
ele há na democracia moderna um aspecto meramente formal na sua forma
parlamentar. Partia dos princípios de Rousseau e da sua democracia direta que
afirma a incompatibilidade da democracia com o sistema de representação
parlamentar:
“Os deputados do povo não são, nem podem ser
seus representantes; não passam de comissários
seus, nada podendo concluir definitivamente. É
nula toda lei que o povo não ratificar; em
absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre
e muito se engana, pois só o é durante a eleição
9
dos membros do parlamento; uma vez estes
eleitos, ele é escravo, não é nada”.2
Na idéia rousseauniana, um parlamento seria uma totalidade dentro
da totalidade, havendo portanto, um hiato entre a vontade geral, os parlamentares
e o governo.3
Para Schmitt, o sistema de representação parlamentar perdeu seu
fundamento e credibilidade ao excluir o cidadão de suas discussões que ficam
restritas à comissões fechadas, abandonando assim o ser público da decisão
política. Desta maneira, parlamentarismo e democracia se opõem; enquanto o
primeiro admite o confronto e a superação de um interesse sobre outros de
camadas distintas da sociedade, a democracia funda-se na homogeneidade do
povo.4 O parlamentarismo, pela sua forma, exclui as minorias do poder, bastando
apenas que seus interesses obtenham minoria dos votos do parlamento, enquanto
a democracia busca contemplar a todos. Ademais, ao se limitar à forma, o
parlamentarismo perde sua essência: a representatividade. Já que esta é quem
lhe dá legitimidade, qualquer outro caminho, inclusive a ditadura, seria aceitável
para substituir o sistema parlamentar.
2
ROUSEEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (ou Princípios do Direito político). São Paulo: abril, 1973.
p. 114 (III, cap. XV).
3
Cf. FILONENKO, Alexis. Dicionário das Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. p.
1034.
4
Cf. FLICKINGER, Hans Georg. In: SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.12.
10
Schmitt reconhece que a política não é uma esfera autônoma do
conhecimento, mas resulta de uma intensidade de relações humanas. Todavia
para dar origem ao fenômeno político estas relações devem ser revestidas de
certa relevância. Assim, a tranqüilidade das relações no Estado absolutista são
caracterizadores da polícia e não da política. Essa idéia nos transporta para a
configuração das categorias de amigo e inimigo, definidores do político, como
veremos mais adiante. No momento, nos basta constatar que as intrigas da corte,
as rivalidades e perturbações no seio do Estado absolutista não são fatores
suficientes do surgimento do fenômeno político.5 Ressalta portanto, que
“política e polícia derivam da mesma palavra
grega, pólis. A política no sentido lato, a alta
política, naquela época era somente a política
externa, realizada por um estado soberano
enquanto tal, diante de outros estados soberanos
reconhecidos por ele com tais”.6
Acatando a idéia grega, revela sua insuficiência porquanto diz
respeito apenas à política externa, que derivaria do conceito de político como um
todo. Recorre ao pensamento clássico e o corrobora afirmando que a definição do
político requer distinções claras e precisas: “interior e exterior, a guerra e a paz, e
durante a guerra, o militar e o civil, a neutralidade ou a não neutralidade, tudo isto
5
Cf. SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.32.
11
é nitidamente separado e não propositadamente confundido”.7 Desta maneira, a
construção de um conceito só poderá ser realizada mediante a “descoberta e
identificação de categorias especificamente políticas”.8 Para tanto é necessário
buscar distinções últimas nas quais subsumirão todas as ações especificamente
políticas. Assim, Schmitt chega ao princípio de seu sistema: “a distinção
especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos
é a discriminação entre amigo e inimigo”.9 Mesmo o fenômeno político
derivando das relações, a distinção entre amigo e inimigo o autonomiza e o coloca
como conceito independente: “A natureza objetiva e a autonomia intrínseca do
político já se mostram nesta possibilidade de separar uma tal contraposição
específica com a de amigo-inimigo de outras diferenciações e de compreendê-la
com algo independente”.10
Encontrada a definição última faz-se necessário definir qual a idéia
precisa de
amigo e inimigo. Para tanto segue critérios diferentes do econômico
(rentável e o não rentável, o produtivo e o não produtivo), do estético e do moral. 11
O inimigo não é um criminoso,
12
não é feio ou bonito, bom ou mau, tampouco um
concorrente econômico. A distinção entre amigo e inimigo tem a intenção de
designar um grau extremo de ligação ou separação.13 A definição busca um
6
Id. Ibid. p. 33.
Id. Ibid.
8
Id. Ibid. p. 51.
9
Id. Ibid. (grifei).
10
Id. Ibid. p. 53.
11
Cf. Id. Ibid. p. 54.
12
Cf. Id. Ibid. p. 33.
13
Cf. Id. Ibid. p. 52.
7
12
sentido concreto, sem símbolos ou metáforas. As noções que escapam para
outros campos contaminam e enfraquecem o conceito especificamente político 14.
Assim, “no domínio do econômico, de fato, não existem inimigos, mas apenas
concorrentes, e num mundo totalmente moralizado e eticizado talvez apenas
restem adversários de discussão.”
15
Inimigo é o inimigo público, um grupo de
oponentes, semelhantes que se antagonizam em uma possibilidade real de
combate.16
A distinção é de vital importância para a compreensão e identificação
do fenômeno político. Ela trás à luz conceitos como Estado, Estado de Direito,
Estado Neutro, Estado Social, República, Sociedade ou Classe que, dentre outros,
só poderão ser realmente compreendidos quando se localiza aquele que deve ser
combatido com tais idéias.17
A idéia de Schimitt se contrapõe ao conceito corriqueiro de política
que, segundo ele, não passa de antagonismos de táticas, práticas e conflitos de
interesses manipulados no interior do Estado e relativizados e englobados pela
unidade política estatal. São fenômenos facilmente constatáveis que são
expressados como relações políticas pelo uso corrente da linguagem. 18 A própria
definição de político-partidário significa um reflexo da distinção fundamental
(amigo e inimigo).
14
15
Cf. Id. Ibid. p. 53.
Id. Ibid. p. 54.
13
Schmitt recorre ainda ao Evangelho (Mt 5,44 e Lc 6,27) 19 para definir
o inimigo político. Ele não precisa ser pessoalmente odiado. Tampouco trata-se de
uma inimizade pessoal como retrata as passagens bíblicas. Para tanto, relembra
que, no combate com os muçulmanos, nenhum europeu se propôs a entregar a
Europa aos turcos ou sarracenos por “amor aos inimigos”.
A guerra é, portanto, definidora do político. Ela é a inimizade extrema
ou o máximo grau de separação. É “a negação ontológica do outro ser”. 20 Ela é a
luta armada entre duas unidades políticas organizadas que podem subsistir no
interior de um Estado (guerra interna ou civil) ou no antagonismo beligerante entre
dois ou mais Estados (guerra interestatal). Guerra e revolução serão sempre
ações políticas.
16
Id. Ibid. p. 55.
Id. Ibid. p. 57.
18
Id. Ibid. p. 56.
19
Literalmente: “Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, a fim de
serdes verdadeiramente filhos do vosso Pai que está nos céus, pois ele faz nascer o sol sobre os maus e os
bons, e cair a chuva sobre os justos e os injustos” (Mt 5 43-45). “Mas eu vos digo, a vós eu me ouvis: Amai
os vosso inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos maldizem e orai pelos que vos
caluniam. A quem te bate numa face, apresenta ainda a outra. A quem te toma o manto, não recuses também
a tua túnica. Dá a quem quer que te peça, e a quem te toma o teu bem não o reclames e assim como quereis
que os homens façam a vós, fazei do mesmo modo a eles. Se amais os que vos amam, que gratidão mereceis?
Os próprios pecadores fazem o mesmo. E se emprestais àqueles dos quais esperais que vos restituam, que
gratidão mereceis? Até os pecadores emprestam aos pecadores para que lhes restituam o equivalente. Mas
amai os vosso inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar em compensação. Então vossa recompensa
será grande, e vós sereis filhos do altíssimo, pois ele é bom para os ingratos e para os maus” (Lc 6, 27-35).
(Bíblia TEB. São Paulo: Loyola, 1994). Nas palavras do Divino Mestre, percebe-se a forte carga adjetiva que
acompanha a expressão inimigo: “mau”, “injusto”, “maledicente”, “caluniador”, “ladrão”, “cobiçador”,
“caloteiro” e “ingrato”. Isso expressa a correta compreensão de Schmitt de que o inimigo tratado pelo
evangelho é o desafeto pessoal, aquele que faz um mal a um indivíduo. Não se trata necessariamente do
inimigo público, ou seja, do conceito político de inimigo o qual subsiste sem uma necessária adjetivação ou
definição oriundas de categorias apolíticas.
20
Cf. SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.59.
17
14
Tanto a guerra externa quanto a revolução não serão fatos
meramente “sociais” ou “ideais”.21 Daí, não há de se falar em guerra política,
moral, econômica ou religiosa, pois:
“Chegando-se a este agrupamento de combate,
porém, a oposição determinante deixa de ser
puramente religiosa, moral ou econômica, e
passa a ser política. A questão que resta, neste
caso, é sempre apenas acerca da possibilidade
ou presença real de tal agrupamento amigoinimigo, independente dos motivos humanos
capazes de provocá-lo”22
O conceito, como ensina Schmitt, não reside na luta em si, mas na
possibilidade de aglutinar indivíduos que, além se serem uma comunidade
religiosa, tornam-se uma unidade política ou, nas palavras do autor, “um
agrupamento ontológico forte”23. Mesmo o conceito marxista de classe deixa de
ser puramente econômico a partir da identificação do inimigo a ser combatido. É a
partir desta identificação do opositor e do real combate a este inimigo que grupos
se tornam grandezas políticas.24
21
Cf. Id. Ibid.
Id. Ibid. 62.
23
Id. Ibid. p. 64.
24
Id. Ibid.
22
15
É na unidade que reside a soberania. A unidade política,
independente de onde extrai suas razões, é fator determinante da soberania.
Segundo Flinckinger, a concepção de soberania é o núcleo da doutrina política de
Schmitt.25
Na sua prova de habilitação (1912), Schmitt já apontava a
importância da decisão jurídica, firmando sua autonomia quanto à regra, que
somente lhe servia de fundamento. Há sempre um momento de arbítrio na
sentença, do que é exemplo acabado a dosimetria da pena. Esse é o gérmen de
sua teoria sobre a soberania, pois a aplicação do direito não se resume à norma,
tem sempre um elemento voluntarístico. Num estado normal esse elemento de
vontade é mínimo, mas em estado de exceção, é forte, e quem define quando é
momento de decretá-lo é o soberano, ele é quem decide quando a vontade deve
imperar.
Schmitt considera a decisão como um elemento do estado de
exceção
propriamente
jurídico,
mas
o
fazendo
recusa
as
concepções
transcendentais apriorísticas do neo-kantismo. Para ele a decisão faz parte do
processo de criação do direito. Ela na realidade não decorre da norma, mas se
revela uma auctoritatis interpositio, que por sua vez não decorre, como pretende
Kelsen, da ordem jurídica abstrata.
25
Cf. FLICKINGER, Hans Georg. In: SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992.
p.10.
16
Ele parte da crítica à Teoria do Estado moderno que faz uso de
conceitos teológicos dados pelo seu desenvolvimento histórico ou sua estrutura
sistemática.26 Trata-se da tese da secularização sobre a qual se referiu Schmitt
em sua Teologia Política:
“não transforma, senão esconde apenas o que o
mundo não suporta e – o que não pode suportar
o qualifica”27
Corroborando a secularização, Schmitt propõe a substituição,
método que retoma, de forma sistemática, as questões não respondidas pela
secularização.28 Esse transporte do campo teológico para o político insinua um
certo anti-racionalismo ou mesmo um antiiluminismo em todo o pensamento
Schmittiano. Isso se dá pela própria idéia iluminista que exige uma fundamentação
racional para a legitimação da validade de uma ordem política. Em contrapartida, a
26
Cf. Id. Ibid. p. 1.
Secularização e Auto-arfirmação. Apud: FLICKINGER, Hans Georg. In: SCHMITT, Carl. O Conceito de
Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.20.
28
Segundo Flinckinger a idéia se dá pela “contraposição do Deus histórico com o transcendente. Embora o
Deus cristão tenha se feito homem pela encarnação, falta-lhe a historicidade prática do Deus judeu. O logos,
representa, por sua vez, a verdade eterna da soberania divina. Mais do que isto, no logos divino deveria
tanto revelar-se a razão inerente ao mundo quanto definir-se a ordem objetiva submissa a esta razão”. Na
Encarnação (onde o verbo se fez carne) ocorre “dois momentos legitimadores da onipotência e em última
instância, da soberania do Deus Cristão. “O primeiro momento manifesta-se pela decisão originária quanto à
criação do mundo [...] O segundo momento legitimador da soberania divina tornar-se-á mais importante
ainda para a compreensão posterior do conceito schmittiano da soberania política. Ao logos divino pertence
o vigor de constituir a ordem objetiva, contendo-se nele a sua capacidade criadora desta ordem.[...] São
exatamente estes dois momentos constitutivos que Schmitt retomará, seguindo esta tradição teológico-cristã,
para reforçar sua crítica ao conceito moderno da soberania, esvaziado de seu sentido verdadeiramente
político: O caráter do logos divino enquanto decisão originária, por sua vez não mais fundamentável e
enquanto princípio criador da ordem objetiva aparecerá, de novo, no contexto de sua interpretação da
essência da soberania política.” Cf. FLICKINGER, Hans Georg. In: SCHMITT, Carl. O Conceito de
Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.23.
27
17
doutrina de Schmitt, sobretudo a sua teologia política, admite a existência de um
momento constitutivo apartado da razão política vigente. A decisão política
precede à racionalidade de sua normalidade objetiva. É considerada como que
criada do nada.29 Trata-se de um momento constitutivo do político apartado da
própria razão política.
Schmitt distingue soberania de Estado e se insurge contra uma
metafísica acrítica de Estado e a personificação do Estado que são resquícios do
absolutismo e ignoram o sentido político da idéia de soberania. Constata que as
“formulações sobre a ‘onipotência’, do Estado são de fato freqüentemente apenas
superficiais secularizações das fórmulas teológicas da onipotência de Deus, e a
doutrina alemã do século XIX, da ‘personalidade. Do Estado é, em parte, uma
antítese polêmica dirigida contra a pessoa do príncipe ‘absoluto”.30
O Fracasso do Reich de Bismarck na KulturKampf (luta cultural)
contra a Igreja Católica e no embate contra os sindicatos (que permaneceram com
direito de greve) demonstram que, mesmo na sua inquebrantável força, não era
absolutamente soberano ou onipotente.31
O Conceito de Estado é distinto do conceito de político. Tudo na
sociedade é potencialmente político. Questões religiosas, culturais, econômicas –
29
Cf. Id. Ibid.
O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.68.
31
Cf. Id. Ibid.
30
18
prevalecendo a distinção entre Estado e sociedade – são “neutras” no sentido
estatal mas não necessariamente “neutras” no sentido político.32
“O conceito de Estado pressupõe o conceito de político”33. Significa
dizer que grupos sociais ao se aglutinarem em antagonismos concretos formando
as categorias amigo e inimigo podem formar inicialmente uma unidade política
para, acessando o poder, posteriormente tornarem-se uma unidade estatal. Mas,
não há de se confundir os dois conceitos como faz a doutrina majoritária. Tal
confusão gera um ciclo interminável onde o político é comparado ao estatal, o
Estado surge como ser político e o político como algo estatal.34
Sugere como missão da democracia a abolição das distinções que
geram a distinção maior entre Estado e Sociedade, pois significam a oposição
entre o político e o social, extinguindo assim as separações típicas do Estado
Liberal onde os elementos religião, cultura, economia, política, direito e ciência se
opõe necessariamente ao político.35
Desta forma, Estado “é um estado (zustand) peculiar de um povo, a
saber, o estado (zustand) que fornece a medida em caso de decisão e , portanto,
diante dos muitos status individuais e coletivos pensáveis, o status pura e
simplesmente [...] é o status político de um povo organizado numa unidade
32
Id. Ibid. p.47
Id. Ibid. p. 35.
34
Cf. Id. Ibid. p. 44.
35
Id. Ibid. p. 47.
33
19
territorial”.36 O Estado é uma unidade política determinante que deve ser
entendida em uma perspectiva ontológica: ou existe ou não existe. Se existe ela é
uma unidade suprema, ou seja, soberana. Assim é o Estado, uma unidade que dá
a norma, ou a medida, o que configura seu caráter político.
Retomando a análise anterior análise sobre a limitação do Reich de
Bismarck, entende-se que mesmo a Igreja e os sindicatos não tiveram força para
se opor à declaração de guerra contra a França, pois assumiriam a categoria de
inimigo político trazendo para si todas as conseqüências desta classificação. Ao
titular da soberania (Bismarck) é dado o poder de distinguir o amigo e o inimigo.
Daí advém o conceito schmittiano de soberania decorrente da unidade política
(Estado), ou seja uma unidade determinante capaz de definir o amigo e o inimigo.
Portanto, o Estado é uma unidade política soberana, mas como já dissemos, a
soberania não se reveste do absoluto ou da onipotência.
36
Id. Ibid. p. 43.
20
3
A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
3.1
A idéia de Constituição
Todo ser tem seus elementos substanciais, aqueles que segundo
Santo Tomás formam a sua essentia (essência). Isso se aplica a qualquer esse
(ser existencial).A essentia nada mais é que a simples aptidão para a existência.
Como qualquer ser, o Estado “é” porque existe e se definirá quod est ( como o que
é) ou, como afirmou Santo Tomás, res habens esse (uma coisa possuindo a
existência)37,realizando seu actus essendi (ato de ser).38
O termo Constituição si per si indica sua natureza jurídica. É aquilo
que constitui, formula, acomoda os componentes do estado. É a fórmula que
regula a acomodação dos seus elementos substanciais.39
Schmitt parte da mesma idéia pois qualquer homem ou objeto tem
sua própria constituição, todavia, essa ontologia ampla não define nada de
específico. Necessário é definir o que é constituição de um Estado, esse tido como
unidade política que resulta do agrupamento de amigos. Ente que retém o
37
38
AQUINO, Tomás Santo. In Peih, I, lect. 5, Leonina, Apud: JOLIVET, Régis. Op. Cit., p.198
Cf. Também: AQUINO, Tomás. O Ente e a essência. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Cap.5.
21
monopólio da força e preserva a própria unidade política. Tendo o inimigo também
uma perspectiva ontológica, cabe ao soberano identifica-lo. Ao soberano é dado o
poder de fugir da norma constitucional para salvar o Estado.
A homogeneidade pode compatibilizar a unidade política com o
conceito de povo. Ela não decorre da unidade formal do Estado Liberal. Não se
preocupa também com a divisão de classes, pois é justamente quando um classe
perde uma qualificação específica (como religiosa, econômica, étnica, cultural et
coetera) que assume uma categoria política tornando-se povo.
Como já se sabe, política é a distinção amigo inimigo que no plano
externo se define pelo jus belli. Soberania é a capacidade de definir o amigo e o
inimigo, uma unidade determinante que decorre da política. No plano interno a
política tem função análoga ao direito pois busca a paz social, na verdade, a
política se serve do direito para atingir seu fim. O Estado de exceção se justifica
pela necessidade de manter a constituição, garantidora da paz social. O Estado de
exceção é a o uso da soberania na guarda da constituição e, em ultimo grau, da
paz social.
Como observa José Javier Esparza, Schmitt contemplou com uma
estranha mescla de sentimentos a vitória de Hitler, que tornou-se a exceção
permanente. Ele contemplava a possibilidade de existir na Alemanha um poder
39
Cf. DI LORENZO, Wambert Gomes. O Ser do Estado e o Poder Reformador. 51 a Reunião Anual da SBPC.
Anais, Porto Alegre: PUCRS, 1998. CD-ROM.
22
sólido, apesar da possibilidade de um Estado de exceção definitivo. Não era essa
hipótese que incomodava o jurista Schmitt, pois defendia a possibilidade de
encontrar elementos positivos na exceção. Entretanto, o partido nazista e a SS
defendiam a idéia de realizar uma revolução no estilo bolchevique, inclusive com o
mesmo método de exportação do sistema.40
A constituição é a situação total da unidade política. Expressa seu
ser, sua forma e espécie. Compreende princípios de unidade e uma instância
decisória para resolver conflitos de interesses ou poderes em escala extrema. Ela
também é um sistema fechado de normas, não total existente mas meramente
pensado. Apresenta conceitos absolutos que oferecem um todo (real ou ideal).
Não é um fato ou uma dinâmica, mas uma forma absoluta de dever ser. Não é
também um conjunto de leis várias, mas uma normatividade total que dá unidade
ao Estado. Todas as demais normas a ela se referem. Assim há, mesmo que de
forma diversa, uma identidade entre Estado e Constituição. O Estado é um dever
ser, um sistema de normas que não tem existência no ser, mas no dever ser.
Contudo, essa idéia é contraditória, porque torna a Constituição soberana,
entretanto, também a soberania é algo do ser e não do dever ser.
É necessário portanto, para entender a primeira concepção, distinguir
Constituição de leis constitucionais. Estas têm sua validade na Constituição e a
40
Cf. ESPARZA, José Javier. Un aventurero contra el nihilismo. In: Estudios sobre Carl Schmitt. Madri:
Fundación Cánovas del Castilho, 1996. p. 59.
23
Constituição na decisão da unidade política. A unidade política é racionalizada
pela sua própria existência e não na conveniência ou justiça das normas.
Schmitt critica então Kelsen e a Teoria Pura que equipara
Constituição a lei constitucional. Considera sua teoria liberal, pois sendo todos os
atos do Estado normas, não havendo atos de governo, todos são passíveis de
revisão por parte do judiciário. Para Schmitt o Estado é anterior à constituição,
enquanto para Kelsen são simultâneos. É no Estado que há a unidade política e a
soberania definidora o inimigo. Ou seja, a Constituição não é substância da
unidade, mas mera forma, definida a posteriori dela.
Quanto aos direitos fundamentais, Schmitt entende que estão fora da
Constituição, pois que ela, nesse aspecto, é mera decisão fundamental sobre a
forma de existência do povo. Eles são freios do poder público no Estado Liberal
enquanto a Constituição visa preservar a ordem pública determinando a forma do
Estado. A Constituição é superior aos direitos, pois eles não são aptos a construir
a unidade política do Estado, ao contrário, enfraquecem a unidade, contrapondo a
ela o interesse da liberdade individual apolítica. Se uma Constituição liberal
entende tais direitos como essenciais, estes passam a integrar a própria
substância.
Schmitt ainda nos apresenta conceitos próprios na sua teoria da
Constituição como: destruição da constituição (supressão da constituição e
mudança do poder constituinte), supressão da constituição (supressão da
24
constituição com manutenção do poder constituinte), Reforma constitucional
(reforma das leis constitucionais), quebra da Constituição (violação excepcional
das leis constitucionais), suspensão da Constituição (leis constitucionais são
temporariamente postas fora de vigência) e conflitos (suscitados por órgãos
supremos).
3.2
A guarda da Constituição
Em síntese a doutrina schmittiana da defesa da Constituição é uma
reafirmação da tese do poder neutral de Benjamin Constant41 com base na
interpretação do artigo 48 da Constituição de Weimar que , segundo ele, dá ao
presidente do Reich poderes excepcionais na guarda da Constituição, conferindolhe um poder neutral, ou seja, mediador, regulador e tutelar.42
41
Cf. SCHMITT, Carl. La defesa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y possibilidade
de savaguardia de la constitución. Barcelona: Labor, 1931. p.164.
42
Cf. Id. Ibid. p. 166.
25
A tese de Benjamin Constant é chamada de poder neutro ou
preservador que é exercido pelo soberano por meio de uma alienação radical da
soberania popular.43 Ele elogia a monarquia constitucional por ter colocado um
poder neutro (moderador) na pessoa de um rei. Sobre Constant falou Joaquim
Nabuco:
“Não
há
mais
bela
ficção
no
Direito
Constitucional do que a que imaginou Benjamin
Constant com o seu poder moderador. O que a
América do Sul precisa é de um extenso Poder
Moderador, um Poder que exerça sua função
arbitral entre partidos intransigentes”.44
Schmitt discorda todavia da afirmação de Benjamim Constant de que
o poder neutral, se funda essencialmente em dois poderes distintos por parte do
executivo: um passivo e outro ativo. O monarca exerceria unicamente o poder
passivo e este poder passivo seria um poder neutral. Ora, a constituição confere
ao presidente representação exterior, sanção das leis, o comando supremo do
exército e da armada, a nomeação de funcionários e outras tarefas mais. 45 Como
configurar tal poder como meramente passivo?
43
GAUCHET, Marcel. Dicionário das obras políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993. p. 261.
NABUCO, Joaquim. Apud: BROSSARD, Paulo. In: MEDEIROS, Borges de. O Poder Moderador na
República Presidencial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 1993.
45
Cf. Cf. SCHMITT, Carl. La defesa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y
possibilidade de savaguardia de la constitución. Barcelona: Labor, 1931. p.169.
44
26
Também no Brasil, Borges de Medeiros defendeu a necessidade de
existência de um poder neutral. Se a monarquia constitucional o dá a um rei,
porque não dá-lo ao presidente da república?46 No seu anteprojeto de Constituição
Federal para o Brasil, artigo 82 define este poder e determina suas funções:
“O poder moderador é delegado privativamente
ao presidente da República. O presidente é o
supremo magistrado da nação, e o seu primeiro
representante, a quem incumbe incessantemente
velar sobre os destinos da República e sobre a
conservação, equilíbrio e independência dos
demais poderes políticos, assim como sobre a
inviolabilidade dos direitos fundamentais”.47
A este poder neutral, Carl Schmitt atribui também à guarda da
Constituição. Cabendo esta função ao soberano, o detentor da soberania. Esta
tese se encontra em “A defesa da Constituição – Estudo sobre as diversas
espécies e possibilidades de salva guarda da constituição” (Der Hûter der
Verfassung – Beiträge zum öffentlichen Techt der Gegenwart), lançado em 1931.
No primeiro capítulo desta obra, se esforça por desqualificar o poder judiciário
como defensor da Constituição e no terceiro defende, com base no artigo 48 da
46
MEDEIROS, Borges de. O Poder Moderador na República Presidencial. Porto Alegre: Assembléia
Legislativa, 1993. p. 56.
47
Id. Ibid. p. 94.
27
Constituição de Weimar, a idéia do presidente do Reich como guarda da
Constituição.
Assim determinava o art. 48 da Constituição de Weimar:
“Quando um Território não cumpre os deveres
que lhe impõe a constituição ou as leis do Reich,
o Presidente do Rhech pode abrigar-lhe a faze-lo
com as forças armadas”.
A Constituição de Weimar atribuia poderes distintos ao presidente e
ao chanceler do Reich. O chanceler apoia sua legitimidade na confiança do
parlamento, segundo Schmitt, está revestido de uma legalidade parlamentar. O
presidente conta com a legalidade plebiscitária por ser eleito por todo o povo.
Esse é o ponto fundamental no argumento sobre a legitimidade do presidente
como detentor da soberania popular.
A tese schmittiana é expressão da crise institucional do seu tempo.
Sua preocupação estava centrada nas ameaças à homogeneidade e unidade do
povo alemão por parte dos poderes indiretos, ou seja da atuação prática política
contra a unidade por parte de partidos políticos, associações profissionais,
religiosas et coetera. No fundo há uma coerência em sua preocupação, tendo em
28
vista que todos aqueles que ameaçam a unidade e a homogeneidade, que em
última instância se expressa na própria existência do Estado, devem ser
identificados como inimigos políticos. Mas a quem cabe a identificação do amigo e
inimigo? Ao titular da soberania, que na interpretação de Schmitt é o presidente do
Reich.
Assim, o Chefe de Estado seria um idôneo defensor da Constituição,
um poder neutro, uma instância que está acima dos titulares dos direitos políticos
de caráter decisivo ou influente, um poder político supremo, um terceiro acima de
todos os litigantes.48
Em sua “Teoria da Constituição” (Verfassungslehre, 1928), apesar de
não tratar especificamente da defesa da Constituição, Schmitt já lança suas idéias
fundamentais sobre o tema, qual seja, a possibilidade do presidente do Reich
suspender a lei constitucional para defender a Constituição. Desta maneira todo o
poder neutral se concentra na figura do ditador. Na expressão de Jürgen
Fijalkowski, este protetor, detentor deste poder neutral seria um “dono secreto” da
48
Cf. SCHMITT, Carl. La defesa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y possibilidade
de savaguardia de la constitución. Barcelona: Labor, 1931. p.174.
29
Constituição.49 Mencionando Carl J. Friedrich50, Gasió pergunta: quem deve
guardar o guarda?51
A pergunta de Gasió coloca em cheque o caráter democrático da
tese de Schmitt. Todavia, Schmitt já respondera ao classificar o poder do
presidente como plebiscitário. Desta forma estaria revestido de legitimidade e sua
soberania nada mais seria que uma soberania popular.52
A crítica afirma que a tese de Schmitt é uma releitura reacionária de
Max Weber do seu princípio carismático, da idéia da decisão e da crise do
parlamentarismo.53
Ao presidente não faltaria legitimidade, enquanto o parlamento não
passaria e um “teatro” incapaz de agir. Pretende portanto uma ruptura com o
liberalismo propondo uma soberania do executivo e não do legislativo. Tanto o
legislativo quando o judiciário são produtores de normas o primeiro estava adstrito
49
Cf. La trama ideológica del totalitarismo – Análisis crítico de los componentes ideológicos em la Filosofia
Política de Karl Schmitt. Madri, 1996. Apud: GASIÓ, Guillermo. In (Estudio Preliminar) KELSEN, Hans.
¿Quién debe ser el defensor de la Constitución Madri: Tecnos, 1995. p. XXXIII.
50
Teoría y realidade de la organización constitucional democrática – Em Europa y America. México, 1946.
pp. 233-248). Apud: GASIÓ. Ib. Idem.
51
Literalmente, quem deve custodiar o custódio. No sentido de fiscaliza-lo. Cf. GASIÓ, Guillermo. In
(Estudio Preliminar) KELSEN, Hans. ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución Madri: Tecnos, 1995.
p. XXXIII.
52
Cf. SCHMITT, Carl. La defesa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y possibilidade
de savaguardia de la constitución. Barcelona: Labor, 1931. p.194.
53
Para Weber a política diz respeito a certo tipo de atividade e de relação entre os homens, ou seja, uma
relação entre tipos de atividades e de dominações legítimas. Schmitt se aproxima de Weber sobretudo na
fundamentação carismática do poder, que para Schmitt seria a legitimação do soberano pela vontade do povo
expressa em uma eleição (Cf. também, RAYNAUD, Philipe. Dicionário das obras políticas. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1993. ) Weber assim se expressa: “Um caráter carismático, (repousando sobre a
submissão extraordinária ao caráter sagrado, à virtude heróica ou ao valor exemplar de uma pessoal, ou ainda
30
à lei e o segundo à Constituição. Já o Soberano não é um órgão mas a ordem
jurídica como um todo.54
Schmitt exige portanto, uma decisão soberana para o conflito
constitucional. O que é impossível ao judiciário que, limitado pela sua adstrição à
lei, não decide livremente mas aplica a subsução.55 Ainda, a jurisdição é sempre
aplicação da lei a um caso concreto por meio da subsunção, não haveria portanto
jurisdição constitucional propriamente dito, pois seria esta a aplicação de norma
sobre norma.
A pretensão de Schmitt era evitar a destruição da ordem
constitucional de Weimar. Esta Constituição pelo seu núcleo pétreo impedia a sua
reforma mesmo que por maioria constitucional. Era uma forma de proteção ao
bolchevismo, não tanto eficaz, já que, a rigor, deveria ter impedido também a
ascensão do Partido Nazista. Desta maneira, por meio da “quebra da
Constituição”, a constituição deveria ser salva da neutralidade dos valores
políticos.
Este estado total todavia, não deve ser confundido com o regime
nazista. A intenção de Schmitt era salvar a Constituição tanto das ameaças da
esquerda quanto da direita. Coerentemente se opôs à entrega do poder a Hitler.
(emanando) de ordens reveladas ou emitidas por essa (dominação carismática) (Weber, 1955. p. 124. Apud:
RAYNAUD, Philipe. Dicionário das obras políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993. p. 261.).
54
Cf. SCHMITT, Carl. La defesa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y possibilidade
de savaguardia de la constitución. Barcelona: Labor, 1931. p.193.
55
Cf. Id. Ibid. p.190.
31
Ao contrário, pretendia que o poder neutral pudesse até proscrever partidos
antidemocráticos. A guarda da constituição pelo presidente do Reich, pelo artigo
42 da Constituição de Weimar, mais que uma prerrogativa é um poder dever, uma
obrigação constitucional.56
3
CONCLUSÃO
Não há de se ignorar que o núcleo da obra de Schmitt parece ser
uma áspera polêmica Kelsen, daí não se poder dissociar ambos os pensamento
contrapostos. Se entre eles há algum ponto em comum, este é o fato de não
lançarem mão de qualquer recurso ao direito natural.
56
Cf. Id. Ibid. 194
32
No seu “Lei e Sentença”, escrito para sua habilitação aos vinte e dois
anos de idade, ele inaugura sua polêmica com Kelsen ao referir-se a um escrito
deste, na qual, aos vinte anos (mesmo antes de abraçar o neokantismo), já
defendia uma natureza essencialmente normativa do direito. Schmitt falou que o
livro de Kelsen trazia como “o maior dos erros metodológicos” a distinção entre o
modo de observação sociológico e jurídico, causal explicativo e normativo,
enfatizando ser o uso do momento finalista na construção de um conceito jurídico
formal. Criticou assim o método kelseniano de desconsiderar tudo que não pode
ser conceitualmente deduzido da lei. Esta separação da ordem jurídica da
realidade social será o cerne do antagonismo entre os sistemas schmittiano e
kelseniano.
Daí
decorre a oposição entre a identificação de direito e Estado de
Kelsen e a superação do Estado pelo direito, em Schmitt, que afirmava que o
Estado pode suspender o direito independente de qualquer vínculo normativo, pois
é decisão pura, absoluta, para a própria auto-conservação do Estado ( a soberania
é de quem decide, não da norma).
Curiosamente, em 1914 (aos 26 anos) Schmitt se deixa influenciar
pelo neokantismo ao definir direito como norma pura (concomitante a Kelsen) não
justificada pelos fatos e precedente ao poder, no seu escrito “Valor do Estado e a
significação do indivíduo”. Sua aproximação dos círculos expressionistas na I
guerra todavia, o separou de Kant.
33
Ele nega a possibilidade de alcançar a unidade sistemática do direito
a partir de uma criação livre do conhecimento jurídico, objetiva impessoal e
abstrata, por meio de uma autoridade anônima e formalista, conforme Kelsen
queria. O direito só existe onde há decisão pessoal, e quem decide é o soberano.
Na “Teoria geral do Estado”, Kelsen confronta-se pela primeira vez
com Schmitt (Legalidade e Legitimidade), ao defender o parlamentarismo. Ele
sustentava que a democracia correspondia a uma filosofia relativista e empirista,
enquanto a ditadura a uma tendência absolutista e metafísica. Não absolutiza o
parlamentarismo, ao contrário, reconhece suas falhas e busca uma via média, de
compromisso político entre a maioria e a minoria.
É sobretudo, a controvérsia sobre a defesa da constituição que
particularmente nos interessa. Trata-se de um debate em a toda crise institucional
que agitava a Europa. Desta forma, assim com Schmitt publicou “A defesa da
Constituição” em 1931, defendendo o poder neutral e o presidente do Reich como
defensor da Constituição, Kelsen se opõe, publicando, também em 1931, “Quem
deve ser o guarda da Constituição?” no qual defende um Tribunal Constitucional
como guarda da Constituição.
Schmitt se preocupa em desqualificar a justiça como protetora da
constituição e para tanto aponta dois pontos fundamentais: os limites objetivos de
todo órgão jurisdicional (toda decisão judicial ocorre pós eventum) e o fato de uma
norma não poder ser defendida por outra norma, distinguindo a criação do direito
34
(própria do legislador) da aplicação do direito (própria da justiça). Ou seja, toda
sentença judicial implica na subsunção concreta de um caso particular a um
norma legal. Já Kelsen defende uma Jurisdição constitucional, por um tribunal
independente, através de um procedimento contencioso de partes, sobre a
constitucionalidade dos atos do parlamento (em especial as leis), assim como
também do governo (especialmente os decretos).
Percebe-se que Schmitt procura opor o político ao jurisdicional, como
o exercício do poder em face o exercício do direito. Destarte, o Estado é anterior à
constituição (em Kelsen são simultâneos), pois primeiro há unidade política, isto é,
definidora do inimigo, soberana. A partir dela se faz a Constituição, que é a forma
e modo da unidade política. Constituição não é portanto, a substância da unidade
política, mas mera forma, definida a posteriori, dela. Schmitt afirma a primazia do
existencial e fático sobre o normativo.
Para Schmitt a justiça inteira se acha sujeita a normas e sua ação
cessa quando as normas mesmas resultam duvidosas ou discutíveis em seu
conteúdo pois a jurisdição está ligada às normas, ou seja, àquelas normas que
permitem uma subsunção do caso concreto. Kelsen contesta afirmando que a
jurisdição começa uma vez que as normas, enquanto seu conteúdo se tornam
duvidosas e discutíveis, pois de outro modo se tratariam só de disputas sobre
feitos e nunca sobre o direito.
35
4
BIBLIOGRAFIA
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