O turismo sueco é um crime - ou vários

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O turismo sueco é um crime - ou vários
Suécia
O turismo sueco é um crime - ou vários
Por Steve Vickers
O que há em Fjallbacka, uma remota aldeia sueca onde vivem menos de mil
pessoas, para lá chegarem vagas de turistas? A morte, senhores. A sensação
literária Camilla Läckberg escolheu-a como cenário de uma série de macabros
homicídios nos seus policiais, o cinema já está de olho nela e as coisas parecem
seguir o caminho desbravado por Stieg Larsson e pela trilogia Millennium em
Estocolmo
Ao chegar a Fjallbacka, uma remota aldeia piscatória com menos de mil habitantes
permanentes, a primeira coisa que se vê é o cemitério. Basta seguir o gotejar constante das
autocaravanas nas margens da estrada principal e descer rumo à frente marítima e vê-se
um mar de lápides cinzentas que se erguem em direcção ao ar salgado.
Será este simplesmente um sítio envelhecido? Ou poderá haver alguma verdade por trás
dos romances da sensação literária sueca Camilla Läckberg (editados em Portugal pela D.
Quixote), que escolheu esta tranquila comunidade na costa Oeste da Suécia como foco de
uma série de macabros homicídios?
Pedimos um Volvo emprestado e guiámos de Gotemburgo, a cerca de 130 quilómetros a
sul, passando por moinhos de madeira que rangiam e campos verdes polvilhados por
dentes de leão. O plano era apanhar o autocarro, mas mesmo o bem oleado sistema de
transportes suecos pode ser lento nestas intermináveis estradas costeiras. Chegámos perto
da igreja de granito vermelho no meio da aldeia, onde Torbjorn, um homem alto de olhos
azuis, ex-chefe da polícia local, nos esperava para nos contar mais sobre a região.
Torbjorn é um dos oito guias locais que mostram a aldeia aos fanáticos da ficção desde
2007, quando dois dos thrillers de Läckberg foram transformados em série televisiva. Na
altura, a sonolenta comunidade preparou-se para uma enchente de turistas. Mas tal como
Torbjorn admitiu quando nos sentámos para conversar frente a uma chávena de café
xaroposo, as séries de TV não eram grande coisa. Por isso, fora a habitual vaga de Verão,
quando suecos e noruegueses de férias chegam às pazadas, a enchente de turistas nunca
chegou.
Desta vez, contudo, as coisas podem ser diferentes. Uma produtora sueca está na aldeia a
filmar Fjallbacka Murders, uma série de dez telefilmes baseados nas personagens dos livros
de Läckberg. Os filmes são protagonizados por dois dos melhores actores suecos (Claudia
Galli e Richard Ulfsater) e Läckberg - hoje uma das mais famosas e vendáveis autoras de
policiais do mundo - é uma das co-produtoras. Os direitos de exibição dos filmes já foram
comprados por canais de dez países e as salas de cinema já estão de olhos postos nas
duas longas-metragens que neste momento estão a ser rodadas em simultâneo. Por isso,
não surpreende que as agências de turismo locais estejam a trabalhar arduamente na
promoção de Fjallbacka como um destino excitante (e sem homicídios).
O primeiro telefilme só chegará aos ecrãs suecos no Natal, por isso o fluxo de turistas ainda
pinga de forma relativamente lenta. Torbjorn e a sua equipa dão vazão aos visitantes, mas
já estão a pensar em treinar um grupo de guias mais jovens para conduzirem visitas
baseadas nos thrillers claustrofóbicos de Läckberg. "Nós estamos a ficar demasiado velhos
e temos noção de que não podemos continuar a fazer isto para sempre", diz o ex-agente.
Apesar de se ter mudado para Fjallbacka em 1944, ainda se descreve jocosamente como
um recém-chegado. "Sabemos muito sobre Fjallbacka, mas temos todos mais de 70 anos e
por aqui o terreno é muito acidentado."
Não é que as encostas e colinas o tenham limitado. Poucos minutos depois da nossa dose
de cafeína, ele estava a guiar-me para lá das casas pintadas de vermelho, das pequenas e
castiças lojas de conveniência e do único hotel de Fjallbacka, que abraça o cruzamento
principal da aldeia. Depois já estávamos a trepar nas rochas escorregadias que ladeiam
Kungsklyftan, um profundo desfiladeiro onde, no livro The Preacher, um rapazinho encontra
uma mulher morta.
A pior descoberta que fizemos foi um cocó de pássaro nas rochas, mas de facto os
pedregulhos colossais que pendem sobre nós como gigantescas gotas de chuva fazem com
que o sítio pareça ligeiramente inseguro. "Não se preocupe", diz Torbjorn, "eles estão aqui
há milhares de anos". Os peritos acreditam que as pedras rolaram com a água derretida no
final da última Idade do Gelo e que ali estão presas desde então.
O sítio ideal para um crime
Para uma panorâmica deste efeito geológico, subimos a escada que se enrola em torno da
Vetteberget, um pedregulho de 73 metros que pende sobre a cidade. A meio da subida,
Torbjorn faz uma pausa e aponta para uma mancha no meio da massa de ilhas que se
estendem perante nós. "Ali é Badholmen", sorriu. "Onde um homem foi encontrado
enforcado numa prancha de mergulho." As sobrancelhas arqueiam-se enquanto as suas
mãos puxam um nó imaginário em torno do seu pescoço.
Antes de conseguirmos reagir, já subia outra vez, rumo ao topo. Sabíamos que ele
provavelmente se referia a um dos livros de Läckberg, não a uma morte real. Mas à medida
que escalávamos, não podíamos deixar de nos questionar o motivo pelo qual a autora teria
escolhido esta aldeia, onde os habitantes nos recebem com um sorriso alegre e não com um
esgar assassino, como pano de fundo para livros que chapinham por temas tão turvos
quanto a morte, o ciúme e a vingança.
"Fjallbacka é simplesmente o sítio perfeito para um thriller policial", diz Lackberg, que viveu
na aldeia até aos 17 anos, quando foi para a universidade em Gotemburgo. "É pequena,
singular e muito bela, mas toda a gente se conhece. É muito importante manter as
aparências e toda a gente está a esconder alguma coisa."
Uma comunidade tão unida quanto esta aparece em Os Homens que Odeiam as Mulheres,
de Stieg Larsson, que chamou a atenção do mundo para o policial sueco (ver texto nas
páginas seguintes). Desde a morte de Larsson, em 2004, vários rivais têm emergido, mas
nenhum foi tão bem-sucedido quanto Läckberg, que hoje já vendeu mais livros do que
Larsson na Suécia. Para ela, os suecos que escrevam bons livros vão continuar a atrair os
leitores. "As pessoas em todo o mundo estão muito curiosas em relação à Suécia. Parece
haver uma imagem da Suécia que diz que temos uma sociedade perfeita, sem pobreza, sem
crime ou coisas do género. Há muito interesse em ver que, "Ah, OK, afinal eles têm os
mesmos problemas que nós"."
Läckberg ainda reconhece a Fjallbacka da sua juventude, onde a superestrela sueca Ingrid
Bergman (que ali passava os verões com frequência), foi fotografada com a futura escritora
de policiais nos braços. "Quando penso em Fjallbacka, lembro-me de sair com o meu pai
num dia de sol no Verão e simplesmente vaguear pelo arquipélago, a ouvir as gaivotas e a
nadar. O meu pai tinha um velho barco de madeira, e o som desse tipo de barcos ainda me
faz pensar na minha infância."
Arenque na luz de Paris
Mas a vida em Fjallbacka nem sempre foi fácil. A localização da aldeia, numa zona da costa
selvagem e batida pelo vento, trouxe-lhe a reputação de ter Invernos gélidos e um mar
traiçoeiro que podia facilmente engolir veleiros e as suas tripulações. O mar também podia
trazer a vida, sob a forma de um peixe tipicamente sueco - o arenque.
"Em Fjallbacka tivemos "eras de arenque" aproximadamente a cada cem anos, pelo menos
desde o ano 1200", explica Torbjorn. A lenda reza que durante vários meses, durante perto
de 50 anos consecutivos, o mar estava tão cheio de arenque que os aldeões podiam
caminhar até à costa e apanhar do mar a sua próxima refeição com as próprias mãos.
Mesmo assim, a estação do arenque era curta em comparação com os longos e gélidos
Invernos de Fjallbacka e para garantir que os mantimentos durariam, os habitantes
começaram a conservar o peixe em sal. Eventualmente o sal acabaria, o que forçava as
fábricas transformadoras de peixe a importá-lo a custo elevado. Só quando uma alma
iluminada descobriu que o óleo de arenque podia ser usado para a iluminação pública é que
a dessalinização se transformou em salvação económica - no final do século XIX, o
combustível à base de peixe de Fjallbacka já estava a manter acesas as luzes de Paris.
Um dia, o arenque deixou de chegar. As pessoas começaram a deixar o porto piscatório
outrora atarefado. Aqueles que ficaram foram forçados a navegar em busca de marisco,
combatendo as ondas, o gelo e as fortes correntes que fluem ao largo das ilhas rochosas.
Estando no porto no Verão, com a brisa amena a soprar do Mar do Norte, é difícil imaginar
tais ordálios. Os barcos serpenteiam sem esforço de um lugar para o outro, como a intriga
de um bom mistério policial, e um ferry transporta passageiros para as ilhas Weather, que
não permitem carros. A solitária casa de hóspedes que lá fica, que serve uma sopa de
mexilhão com montanhas de camarão e lagostim, faz a viagem valer a pena.
Morte em Fjallbacka
Seguindo pela estrada marginal rumo a sul, até à aldeia de Hamburgsund, passa-se por um
letreiro escrito à mão que diz "Vende-se camarões" e que agarra os condutores
esfomeados. Nas imediações há lojas de artesanato em madeira e antiquários para
explorar. E, como em qualquer lado na Suécia rural, o verdadeiro prazer vem de respirar o
ar puro e beber as vistas.
Sentíamo-nos bem ali, junto ao mar, mas ainda não tínhamos perguntado a ninguém sobre
a taxa de crimes do mundo real. Quem melhor para responder do que Torbjorn, que teve 40
anos de experiência na polícia local? Tinha acabado de verificar a lista dos locais de crimes
ficcionais de Läckberg, que agora está impressa num mapa turístico da aldeia, quando lhe
perguntámos: "Mas acontecem mesmo coisas terríveis em Fjallbacka?"
"Não, definitivamente não", respondeu rindo-se. E pensou durante uns momentos. "Bom,
perdemos um homem."
Mais tarde descobrimos que ele se referia ao premiado realizador sueco Daniel Lind
Lagerlof, que desapareceu em Outubro quando procurava sítios para filmar a nova série de
Fjallbacka Murders. Estava a trabalhar nos penhascos a norte da aldeia e a polícia acredita
que caiu e morreu.
Como diz Torbjorn, "às vezes as coisas acontecem, mesmo aqui".
Exclusivo Público/ The Washington Post
Fugas, Público, Sábado 24 Agosto 2012