Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira

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Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira
8º Encontro da ABCP
1 a 4/08/2012, Gramado, RS
Área Temática: AT04 – Ensino e Pesquisa em Ciência Política e RIs
Título do Trabalho:
Reflexões Epistemológicas
sobre a Ciência Política Brasileira
Autores:
Paulo Pirozelli (USP)
Sérgio Simoni Jr. (USP)
Fábio Lacerda M. Silva (USP)
1
Reflexões Epistemológicas sobre a Ciência Política Brasileira1
Paulo Pirozelli (USP)
Sérgio Simoni Jr. (USP)
Fábio Lacerda M. Silva (USP)
Introdução
A obra do filósofo da ciência norte-americano Thomas Kuhn teve uma influência decisiva no
debate sobre a demarcação das ciências no século XX. Foi, com toda certeza, a que alcançou
maior repercussão fora do âmbito da Filosofia da Ciência e até mesmo da própria Filosofia. No
entanto, a despeito de sua reflexão profícua, Kuhn nunca especificou se e como ela poderia ser
estendida para aqueles campos cuja cientificidade permanece até hoje em questão. Tal é o caso da
Ciência Política, que, ao longo da segunda metade do século XX, viu se desenvolver em seu âmago
uma teoria com pretensões a se tornar um paradigma científico, tal qual compreendido por Kuhn: a
teoria da escolha racional.
Movido pela reflexão acima, e orientado pela preocupação normativa sobre critérios de
demarcação de atividades científicas, este trabalho apresenta um duplo empreendimento. Em
primeiro lugar, pretende introduzir as concepções de Kuhn de “paradigma” e “quebra-cabeça”, e
discutir as premissas centrais da teoria da escolha racional na Ciência Política. Feito esse esforço
teórico, o trabalho apresenta um esforço de caráter empírico: uma análise histórica do
desenvolvimento da teoria da escolha racional em uma comunidade científica específica, a saber, o
Departamento de Ciência Política da USP. Acreditamos que este empreendimento é, até certo
ponto, independente do primeiro. Mesmo que não seja consensualmente aceitável falar da teoria da
escolha racional como paradigma kuhniano, é fato inconteste que ela se expandiu de modo
considerável nos principais Departamentos de Ciência Política do mundo, adquirindo grande
influência sobre suas produções científicas. É, portanto, mais do que justificável o esforço de
investigar a expansão da escolha racional na USP.
De modo a dar conta desta dupla empresa, este trabalho está dividido em três partes. Na
primeira, detalhamos as noções de paradigma e quebra-cabeça e expomos brevemente a teoria da
escolha racional. Na segunda parte, investigamos o trajetória histórica do Depto. de Ciência Política
da USP, para num segundo momento, determinar o grau de desenvolvimento da teoria da escolha
racional nele. Para tanto, analisamos a produção de alguns de seus integrantes entre 2000 e 2012.
Por fim, a terceira parte apresenta algumas considerações finais.
1
Este trabalho contou com o apoio da CAPES/PROEX.
2
1. Kuhn, paradigmas, quebra-cabeças e a teoria da escolha racional
1.1. O conceito de ciência para Thomas Kuhn
A demarcação da fronteira entre a ciência e as demais atividades foi uma das questões
centrais da filosofia da ciência contemporânea do século XX. Filósofos eminentes, como Popper,
Lakatos e Carnap, escreveram extensamente sobre a dificuldade de diferenciar os campos
científicos dos não científicos. 2 Diferentemente desses pensadores, entretanto, Thomas Kuhn
nunca produziu qualquer estudo dirigido especificamente ao tema da demarcação.
O artigo “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”, de 1965, é de fundamental
importância para nossa investigação. Dentre todos os escritos de Kuhn, é o que mais se aproxima
de um tratamento explícito da questão da demarcação. Na primeira seção, Kuhn faz uma
esclarecedora, ainda que breve, análise das diferenças entre a astronomia e a astrologia. 3 A real
diferença entre ambas se baseia, segundo Kuhn, na existência de um tipo específico de problema
encontrado nas ciências, que ele nomeia e quebra-cabeças, numa clara analogia com os jogos de
montar. 4 Vejamos o que são estes.
A primeira característica desse tipo de problema é que seu valor deriva de sua própria
legitimidade; ou seja, que são importantes pelo simples fato de serem quebra-cabeças. Outro traço
peculiar é que possuem uma solução (pretensamente) assegurada. Não obstante, o aspecto mais
relevante à nossa análise é que, para ser um quebra-cabeça, o problema “deve obedecer a regras
que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las”
(1970c: 61). Vejamos como tal situação se assemelha a que se dá com os jogos de montar:
Solucionar um jogo de quebra-cabeça não é, por exemplo, simplesmente “montar um
quadro”. Qualquer criança ou artista contemporâneo poderia fazer isso, espalhando peças
selecionadas sobre um fundo neutro, como se fossem formas abstratas. O quadro assim
produzido pode ser bem melhor (e certamente seria mais original) que aquele construído a
partir do quebra-cabeça. Não obstante isso, tal quadro não seria uma solução. Para que
isso aconteça todas as peças devem ser utilizadas (o lado liso deve ficar para baixo) e
2
Os empiristas lógicos, por exemplo, viam na biporalidade das proposições empíricas o caráter particular
dos enunciados científicos. Em outras palavras, a ciência seria aquele conjunto de sentenças que
poderiam, em princípio, ser falsas, cabendo aos testes empíricos determinar sua verdade ou falsidade.
Popper, por sua vez, considerava a testabilidade (por isso, o “falseacionismo”) o diferencial das
proposições científicas em relação às proposições metafísicas.
3
O exemplo não é arbitrário. Se excluirmos a matemática, a astronomia foi a primeira das ciências a se
estabelecer. A astrologia, como seu oposto, foi sempre o grande paradigma de pseudo-ciência na
filosofia. Assim, temos, de certo modo, a velha questão da demarcação entre ciência e não-ciência.
4
Na Estrutura, a prática científica básica, chamada por Kuhn de “ciência normal”, pode ser entendida
como uma atividade de resolução de quebra-cabeças.
3
entrelaçadas de tal modo que não fiquem espaços vazios entre elas. Essas são algumas
regras que governam a solução de quebra-cabeças (1970c: 61-62).
Aqui nossa analogia encontra seu limite. Problemas científicos não seguem regras estritas,
explicitamente articuladas. São, na verdade, modelados a partir de “soluções anteriores,
freqüentemente com um recurso mínimo a generalizações simbólicas” (1970c). Sua aceitabilidade
como solução se dá em razão de serem similares a estas realizações originais, aquilo que Kuhn
chama de “exemplares” (ou paradigmas, no sentido fundamental do termo). O estudante, na sua
formação como cientista profissional, deve descobrir
uma maneira de encarar seu problema como se fosse um problema que já encontrou
antes. Uma vez percebida a semelhança e apreendida a analogia entre dois ou mais
problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos a aplicá-los
à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado sua eficácia anteriormente.
(1970c: 236)
Tomemos um exemplo, frequentemente apresentado por Kuhn, extraído da Física. Segundo
ele, a segunda Lei de Newton, f = ma, por exemplo, não passa de um esboço de lei. Passando de
uma generalização a outra, a generalização simbólica se modifica, sem contudo deixar de ser uma
instância de uma lei fundamental.
No caso da queda livre, f = ma torna-se
se em
; no caso do pêndulo simples, transforma-
; para um par de oscilações harmônicas em ação recíproca
transmuta-se em duas equações, a primeira das quais pode ser formulada como
; e para situações mais complexas, como o giroscópio, toma
ainda outras formas, cujo parentesco com f = ma é ainda mais difícil de descobrir (1970c:
236).
É importante notar que todas essas fórmulas mais complexas são empregos de uma mesma
lei, f = ma. O trabalho do cientista é exatamente aquele de mostrar como novas situações podem
ser resolvidas de maneira semelhante às soluções paradigmáticas, ampliando a aplicação e
precisão das leis.
Em resumo, a atividade científica é, para Kuhn, uma atividade de resolução de quebracabeças. O cientista profissional aprende, por meio de treinamento e profissionalização, a enxergar
diversas situações de problemas como semelhantes a uma situação original já solucionada. A partir
daí, procura dar uma resposta a esse problema que seja análoga à solução original.
4
1.2. A teoria da escolha racional como paradigma kuhniano
Nesta seção, apresentamos as premissas centrais da teoria da escolha racional (doravante
5
TER) . Muito embora Kuhn afirme que a consolidação dos paradigmas marque o início de uma
ciência - sendo o período anterior a sua “pré-história” -, este trabalho não tem como objetivo
principal a defesa da “cientificidade” da Ciência Política, nem tampouco a afirmação de que ela
seria mais “científica” do que as outras Ciências Sociais. Partimos tão-somente da suposição de
que o recente predomínio da TER na ciência política pode ser satisfatoriamente compreendido por
meio dos trabalhos de Kuhn na Filosofia da Ciência.
Este esforço não é de todo original. No caso da Ciência Política, referências à emergência
de um paradigma na disciplina remontam ao discurso do então presidente da American Political
Science Association, David Truman, em 1965.6 No ano seguinte, no encontro anual da Associação,
a referência seria feita mais uma vez, mas desta vez por Gabriel Almond. 7 Mais recentemente, a
identificação da TER como paradigma kuhniano na Ciência Política foi feito por Monroe (2001) e, na
Economia, por Blankart e Koester (2006). A aplicação da noção de paradigma kuhniano nas
ciências humanas também foi feita por Gow e Dufor (2000) na Administração Pública, e por Lijphart
(1974) nas Relações Internacionais.8
Embora tenha muitos precursores, a TER se desenvolveu, na segunda metade do século
XX, a partir dos desafios enfrentados pela teoria econômica de então. Não à toa, é frequentemente
chamada de “abordagem econômica”. Em 1944, Neumann e Morgenstern publicaram seu Theory of
5 Ao nos referirmos às teorias da escolha racional, fazemos referência também aos campos da teoria
dos jogos, teoria da escolha pública e teoria da escolha social.
6 Truman, no entanto, evita afirmar que a ciência política possua paradigmas tais quais os que Kuhn
identifica nas ciências naturais. Em vez disso, refere-se à existência de “algo vagamente análogo a um
paradigma”, um “acordo geral sobre o que fazer e como proceder dentro da disciplina” (Truman, 1965:
866).
7
Almond afirma que o desenvolvimento da ciência política é semelhante ao que apresenta Kuhn na sua
teoria das revoluções científicas. No entanto, faz a ressalva de que, “se ela não se encaixa direito no
modelo, então é preciso lembrar que as ciências sociais podem ter uma dialética assaz diferente das
ciências biológica e física” (Almond, 1966: 875).
8
Por outro lado, nem todos concordam sobre a possibilidade de aplicação da obra de Kuhn na ciência
política e nas ciências sociais em geral. Gunnel (2004), por exemplo, diz que “[o] que têm sido, e o que
são comumente chamadas de teorias na ciência política (análise de sistemas, escolha racional, teoria da
decisão, institucionalismo, realismo, entre outras) não são construções como as que Kuhn postulou.
Esses esquemas conceituais da ciência política são mais apropriadamente descritos como molduras
analíticas, abordagens ou modelos. (...). A questão que estou colocando é se teria havido mudanças
paradigmáticas na ciência política logicamente comparáveis às que Kuhn tomou como representativas
das ciências naturais” (2000: 48).
5
Games and Economic Behavior, tentando reestruturar a teoria microeconômica a partir de escolhas
individuais e suas interações, e enfatizando a maximização individual dos retornos dessas escolhas.
Em 1951, Kenneth Arrow publicou Social Choice and Individual Values, que, a partir de premissas
da teoria econômica, tenta explicar escolhas sociais e políticas.
Além desses, outros empreendimentos notáveis também partiram da moldura teórica da
escolha racional, e, ao fazê-lo, tornaram-se referências fundamentais para os trabalhos posteriores.
Dentre eles, destacam-se dois: An Economic Theory of Democracy (1957), de Anthony Downs, e
The Logic of Collective Action (1965), de Mancur Olson. Downs tenta explicar a racionalidade
subjacente ao comportamento de partidos políticos ao adotarem plataformas similares. Olson
demonstra que pode não ser do interesse de indivíduos racionais contribuir para o esforço de
melhorar a situação coletiva de todos. Para Baert (1997), não obstante a importância desses
trabalhos, seria preciso ainda fazer referência a duas contribuições igualmente grandes da escolha
racional às ciências sociais: Economic Approach to Human Behavior (1976), de Gary Becker; e
Foundations of Social Theory (1990), de James Coleman.
As premissas dos trabalhos supracitados, bem como daqueles que, posteriormente,
perfilaram-se na esteira da TER apresentam variação. Por conta disso, seria possível afirmar que a
TER não compreende apenas uma empresa, senão várias. Contudo, malgrado o reconhecimento
da existência de várias teorias da escolha racional, apresentamos, a seguir, o que acreditamos
serem premissas comuns a todas elas, e que compõem o que poderia ser chamado de hard core da
escolha racional. São elas: (a) individualismo metodológico; (b) racionalidade instrumental; e (c)
preferências estáveis, ordenadas e exógenas. O reconhecimento de um conjunto mínimo de
premissas comuns não significa que elas não possam ser entendidas de distintos modos pelos
adeptos da escolha racional. Existem divergências no que se refere à compreensão da
racionalidade, à utilidade do individualismo metodológico, aos limites de aplicação da própria teoria,
entre outras (MacDonald, 2003). Porém, mesmo apesar dos desacordos, é possível sustentar que
as premissas apresentadas acima, e que serão explicadas a seguir, formam um mínimo
denominador comum da TER.
Individualismo metodológico
A primeira premissa se refere ao fato de que, para os adeptos da TER, indivíduos são as
unidades básicas de análise. As teorias, pois, referem-se necessariamente a atores individuais e
começam com axiomas sobre suas ações (Riker, 1995). Isso não significa apenas assumir que
indivíduos existem e agem no mundo social, algo bastante trivial. O que parece motivar o
individualismo metodológico é, antes, a crença de que, qualquer que seja a ciência humana em
questão, todos os fenômenos sociais dos quais ela trata podem – e em alguma medida devem – ser
explicados a partir de ações individuais (Arrow, 1994; Elster, 1989).
Apesar do nome, o debate opondo individualistas e holistas nem sempre se restringiu a um
debate metodológico. O individualismo metodológico tem sido defendido e criticado também a partir
6
de bases epistemológicas e ontológicas. Além disso, encontram-se na literatura versões mais fortes
e mais fracas do individualismo metodológico. (Udehn, 2002).
Racionalidade instrumental
A segunda premissa postula que os atores agem segundo uma racionalidade instrumental,
definida como a busca intencional e eficiente de um agente pela realização de suas preferências
(Hardin, 1987). A suposição de racionalidade não impede que uma ação seja feita como um fim em
si mesmo, mas implica que os atores tentam escolher os melhores meios para atingir seus fins. Isso
não significa que saibam necessariamente quais são os melhores meios. Tem-se na literatura
modelos teóricos de informação perfeita e imperfeita, e discussões sobre a “formação de crenças
dos estados do mundo”. É consensual, porém, que as ações não estão relacionadas aos fins de
modo aleatório, e que, embora por vezes se enganem, os atores escolhem meios que acreditam
serem os melhores para atingir determinado fim (Riker, 1995). A premissa da racionalidade significa
também que os atores têm consciência de que os resultados de suas ações serão produzidos em
conjunto com os resultados das ações de outros atores.
Preferências estáveis, ordenadas e exógenas
A terceira premissa postula que os atores sabem quais são suas preferências, são capazes
de ordená-las de modo transitivo e que elas se mantêm estáveis. Principalmente, as preferências
são tratadas como exógenas nas teorias da escolha racional. Isso significa que as finalidades das
ações dos atores não são problematizadas nos modelos teóricos e analíticos, antes são
consideradas como formadas ou constituídas por processos psicológicos ou sociais, em momentos
anteriores à ação. Note-se que esta premissa não especifica nenhuma preferência particular como
universal, apenas que uma dada preferência é o fim de uma ação. A despeito das referências
frequentes, muitas vezes mordazes, ao fato de que os atores da teoria da escolha racional seriam
“egoístas” ou “autointeressados”, as preferências dos atores não precisam ser necessariamente
egoístas. Pelo contrário, podem ser as mais altruístas possíveis. Isso, porém, não muda o fato de
que, quaisquer que sejam elas, os atores buscarão o melhor meio de que dispõem para maximizálas. Somente neste sentido é possível dizer que atores racionais são autointeressados: eles agem
de modo a maximizar suas preferências, sejam elas o acúmulo de capital, a reeleição ou a busca
pela santidade.
Embora tenha produzido uma quantidade volumosa de trabalhos de peso, a TER sofreu
duras críticas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Uma análise detalhada dessas
críticas está além do escopo deste trabalho. No entanto, é preciso fazer referência aquela que
talvez seja a principal entre elas. Não é de todo claro, seja para seus adeptos, seja para seus
7
detratores, até que ponto a TER seria puramente descritiva ou positiva, ou, pelo contrário, até que
ponto implicaria na adoção de certos valores.
Segundo Hardin (2001), embora seja comumente considerada uma teoria positiva, isto é,
uma teoria testável sem premissas axiológicas, a teoria da escolha racional se assenta em um
valor. O termo “racional” é um termo substantivo que se refere ao valor do bem-estar do agente. No
entanto, a afirmação de que o próprio bem-estar seja seu valor primeiro não é um achado empírico,
e sim uma hipótese. Como diz Hardin, “[s]e produz boas predições e explicações, é uma boa
hipótese; do contrário, é uma má hipótese” (2001: 58). Para Tsebelis (1998: 33), “há boas razões
pelas quais os atores políticos devem ser racionais (um enfoque normativo), e razões adicionais
pelas quais os atores políticos podem ser estudados utilizando o enfoque da escolha racional (um
enfoque positivo)”.
Este parece ser o centro das divergências sobre a TER, e nem seus críticos, nem seus
adeptos possuem uma compreensão clara das posições em disputa. O componente central dessas
divergências é epistemológico, referindo-se ao modo apropriado de conduzir uma investigação
científica e como a TER pode contribuir para tanto. De um lado, há rational choicers para quem as
premissas da teoria são claramente fictícias. Para esse grupo, dado que a construção de predições
testáveis seria o aspecto mais importante de uma teoria, a racionalidade dos atores e suas
preferências estáveis e ordenadas seriam apenas suposições que facilitariam o desenvolvimento de
hipóteses generalizáveis e parcimoniosas (MacDonald, 2003). De outro lado, estão os rational
choicers para quem a teoria não seria de todo fictícia; pelo contrário, ela permitiria a construção de
explicações de mecanismos que operam em fenômenos sociais. Neste sentido, não seria apenas
um modelo preditivo, mas teria algo a dizer sobre a própria realidade (Idem).
A teoria da escolha racional sofreu críticas pelos dois lados. A defesa do poder explicativo
real da teoria foi questionada por partir de premissas patentemente irreais – indivíduos têm
racionalidade limitada, não sabem quais são suas preferências e elas certamente não são
estáveis. 9 Ao mesmo tempo, a defesa do poder preditivo da teoria também foi colocada em
questão, sobretudo por ter sido aventado como o critério último de cientificidade. Shapiro (2002) se
detém longamente sobre o argumento de que o poder preditivo seria o critério último para definir a
validade do esforço investigativo. Muitos problemas das ciências sociais não se prestam a teorias
preditivas; nem por isso são menos importantes. De modo semelhante, Baert (1997) critica a
suposição epistemológica de que a validade de uma teoria depende de seu poder de previsão. No
9
Bianchi e Muramatsu (2005) argumentam que o conteúdo minimalista da escolha racional limita seu valor
explicativo. Os adeptos desta abordagem não dão conta de explicar certos padrões comportamentais relativos à
compromissos e planos. Isso porque certos planos e compromissos podem requerer escolhas “contraprefenciais”, o
que é um problema para uma teoria baseada na noção de que a escolha do agente revela sua preferência. Segundo as
autoras, isso é importante para que se entenda o que leva indivíduos racionais a manter promessas, levar adiante
ameaças ou agir em conformidade com planos.
8
entanto, a despeito das críticas, a teoria da escolha racional continua se expandindo pela ciência
política e pelas demais ciências humanas.
2. O desenvolvimento da teoria da escolha racional na USP
2.1. Um breve histórico da Ciência Política na USP
O objetivo desta seção é apresentar a constituição histórica do campo ou da comunidade de
Ciência Política na USP. Inicialmente, faz-se necessário contextualizá-la no cenário nacional.
Frequentemente, a interpretação sobre a Ciência Política no Brasil data sua emergência entre o
final dos anos 60 e meados dos 70, período no qual cientistas sociais e políticos estabeleceram
contato e diálogo mais intenso com a produção de Ciência Política das universidades norteamericanas, por meio de estudos de pós-graduação. (Cf. Forjaz, 1997; Keinert e Pinheiro Silva,
2010).
Evidentemente, essa avaliação tem pressupostos e implicações claras: considera que a
Ciência Política é uma ciência social eminentemente americana, e o seu desenvolvimento alhures
depende do seu diálogo, apropriação, contato, etc. com a produção lá formatada. Como bem
assinala Forjaz (1997), esse movimento de conhecimento do campo estadunidense realizou-se por
um grupo geracional e regional específico de cientistas sociais. A autora o denomina grupo
mineiro/carioca. Trata-se de alunos e professores do departamento de Ciência Política da
Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG), e do Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (IUPERJ). Essas instituições, ambas formadas no final dos anos 60, com apoio
financeiro da Fundação Ford, possibilitaram as condições para a formação intelectual de uma
perspectiva que valoriza a política como um campo autônomo em relação a demais ramos das
ciências sociais. 10
Como pode ser notado, a USP não se configura como um dos principais centros do início da
Ciência Política no Brasil. O que pode ser à primeira vista paradoxal, visto que desde os anos 30 as
Ciências Sociais como um todo encontraram nesta instituição um terreno fértil para seu
desenvolvimento. Entretanto, o paradoxo pode deixar de existir quando se considera dois pontos:
primeiro, os estudos sobre a política na FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras) da USP
poderiam estar ancorados sobre outras bases intelectuais, diferentes do modelo americano trazido
pelo grupo “mineiro/carioca”; segundo, a possibilidade do campo sociológico constituído, fortemente
influenciado pela “missão francesa” (grupo de jovens professores europeus, sobretudo franceses,
recrutado para a formação da faculdade) ter impedido ou dificultado o diálogo ou incorporação da
Ciência Política estadunidense. Nos próximos parágrafos discutiremos esses pontos.
10 Alguns nomes importantes desse grupo são: Wanderley Guilherme dos Santos, Fábio Wanderley
Reis, Bolívar Lamounier, Antonio Otávio Cintra, Simon Schwartzman, Amaury de Souza, Olavo Brasil de
Lima Jr, dentre outros.
9
De acordo com Quirino (1994), o ensino de Ciência Política nos primórdios da FFCL (anos
30) dava-se no interior de duas cadeiras: a de Sociologia I, como parte do curso de Sociologia
Especial, sob a denominação Sociologia Política; e a cadeira de Direito Político. Enquanto esta era
ocupada majoritariamente por juristas formados pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
aquela era dirigida pelos professores da missão francesa. Em 1941, é constituída a cadeira de
Política, substituindo a cadeira de Direito Político. Arbousse-Bastide, o primeiro catedrático, leva
consigo como assistente Lourival Gomes Machado, talvez o primeiro grande nome de área de
estudos políticos da USP.
No ano seguinte, Gomes Machado defende sua tese de doutorado, intitulada “Alguns
aspectos atuais do problema do método, objeto e divisões da Ciência Política”. Quirino (1941: 3401) assinala que a tese “apresenta como bibliografia básica, em meio aos seus 40 títulos, 23 autores,
entre ingleses e americanos, muitos destes bem recentes (...), alguns alemães, outros franceses.
(...) Percebe-se nessa obra, nitidamente, a preocupação em mostrar a necessidade do
conhecimento dos fenômenos políticos, para se chegar ao entendimento da sociedade como um
todo e estabelecer métodos de análise que possam ser mais adequados a essa ciência.” Assim,
podem ser sublinhados dois aspectos: as variadas fontes nacionais da bibliografia de Gomes
Machado, com a presença marcante de literatura anglo-saxã; e a importância concedida a
discussões sobre o método científico 11.
Em 1944, Lourival Gomes Machado assume a posição de catedrático de Política. Quirino
(1994) apresenta a estrutura curricular dos cursos de Política por essa época. Segundo a autora,
essa organização irá marcar o desenvolvimento da Ciência Política da USP. Trata-se de três
grandes eixos: (1) Curso sistemático de introdução à Ciência Política; (2) Lições sobre a história das
ideias políticas; (3) Seminário de leituras e comentários sobre os trabalhos dos alunos.
O item (2) abarcou as leituras dos clássicos da teoria e filosofia políticas. O ponto (3), que
nos anos 50 passou-se a chamar “Instituições Políticas Brasileiras”, consistiu no grande projeto de
pesquisas e formação de alunos de Gomes Machado. Tratava-se de analisar a história política
brasileira: sistema de administração da época colonial, o regime escravocrata, o pensamento
político da Conjuração Mineira, o Império e a Primeira República, dentre outros. Dentro deste
grande programa de pesquisa, formou-se um número considerável de futuros cientistas sociais e
políticos centrais para o campo da USP.12
11 Esses pontos podem ser levantados como uma mitigação à interpretação segundo a qual a área de
política da USP era fortemente centrada em autores franceses e não se preocupava com questões
metodológicas.
12
Cabe apontar um aspecto intelectual interessante na proposta da Cadeira de Política: ao contrário dos
dias que correm na Ciência Política brasileira (e uspiana), não existia uma forte separação entre
pesquisa de teoria política, de pensamento político brasileiro, e de instituições políticas brasileiras. Tanto
Gomes Machado, quanto outros, inclusive a própria Célia Galvão Quirino (que serve como guia do relato
contado nesta seção), Paula Beiguelman (hoje professora emérita do Departamento de Ciência Política
da USP), Oliveiros Ferreira, dentre outros, publicaram estudos que dialogavam temas e autores
10
Logo, pode-se dizer que na USP até os anos 60 existia um leque considerável de pesquisas
sobre a política, mas ancoradas em perspectivas outras que não os padrões do campo americano.
Nas palavras de Brandão (2007: 26), “tudo somado (...), [essa tradição da USP] permite relativizar a
ideia de que a ciência política no Brasil é uma invenção dos anos 80 ou algo que tem uma préhistória nos anos 1930 e 1950 e depois o silêncio antes do fiat lux pronunciado pelos heróis
fundadores que estudaram nas universidades norte-americanas ou foram financiados pela
Fundação Ford”.
Por outro lado, retomando o segundo ponto que elencamos parágrafos acima, a hegemonia
de determinados tipos de pensamentos sociológicos na antiga FFCL impactou os estudos políticos
de tal modo que dificultou ou retardou a incorporação ou o diálogo intenso com as principais linhas
de pesquisa da Ciência Política americana. Isso se deu principalmente pela transferência de alguns
intelectuais, que à época bebiam na fonte marxista, da Sociologia para a cadeira de Política no final
dos anos 60, notadamente Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort.
O primeiro foi o último catedrático da área, em 1968, com a tese “Política e
Desenvolvimento em Sociedades Dependentes”. O segundo concluiu seu doutoramento no mesmo
ano, cujo título é “Classes Populares e Política”. Ambos serão centrais para a compreensão do
caminho tomado pela Ciência Política na USP.
A tese apresentada por Cardoso contém no primeiro capítulo uma discussão teórica com a
Ciência Política estadunidense centrada em torno dos temas da ideologia e do poder. O ponto que
procura ressaltar o autor são os ganhos e as perdas que a tradição behaviorista/pluralista 13 logrou
(Cardoso debate basicamente Dahl, Almond e Verba, Easton) ao se distanciar do por ele chamado
“pensamento clássico”, que nada mais é que Durkheim, Marx e Weber. Explicitamente, o autor não
se coaduna de todo com a visão empiricamente orientada para atores típica do pluralismo, e propõe
ao final que os instrumentos metodológicos avançados propostos pela Ciência Política americana
fossem utilizados sem deixar de lado as preocupações e discussões da Ciência Social clássica.
Weffort, por seu turno, apresenta uma tese que marcará uma tradição de estudos sobre a
política na USP: trata-se do tema do populismo. Este dizia respeito ao fenômeno da emergência
das massas na democracia liberal, e dos impactos recíprocos entre a prática eleitoral e a luta de
classes em países subdesenvolvidos 14.
As pesquisas do autor ocorrem em paralelo com as ideias formuladas por Cardoso, em coautoria com Enzo Falleto, sobre dependência econômica da América Latina. Nestes estudos, os
europeus clássicos e/ou modernos com obras de intelectuais brasileiros e com análise histórica das
instituições políticas nacionais. Estas áreas de investigação não estavam compartimentadas e
estanques, como sói acontecer na Ciência Política atual.
13 Cardoso ressalta ainda as bases parsonianas do behaviorismo.
14 A temática sobre populismo é hoje retomada, no departamento de Ciência Política da USP, pelos
estudos de André Singer sobre o lulismo, como veremos adiante.
11
autores buscavam ressaltar a importância da dinâmica política para o desenvolvimento econômico,
numa crítica ao determinismo economicista. Logo, tanto os estudos de Cardoso quanto os de
Weffort representavam um primeiro passo para uma ênfase analítica na dimensão política.
Vê-se, assim, que esses estudos sobre política da USP foram conduzidos por autores
formados no campo da Sociologia francesa e do marxismo, e, logo, apresentavam bases teóricas,
epistemológicas e metodológicas dessemelhantes àquelas trazidas pelo grupo mineiro/carioca.
Não à toa, como ressalta Forjaz (1997: 15), “várias polêmicas marcaram o relacionamento
tenso entre o grupo mineiro/carioca e os paulistas”. A construção intelectual da Ciência Política fora
da USP resultou em embates teóricos com abordagens da Escola Sociológica Paulista. Um dos
exemplos mais conspícuos é o artigo escrito por Fábio Reis, “A propósito de Ciência e Dialética”,
em 1966, no qual discute textos de José Arthur Giannoti, da área de Filosofia da FFCL, e as
análises de Weffort sobre o populismo. Seguindo caminho, em grande medida, inverso ao tratado
no primeiro capítulo da tese de Fernando Henrique Cardoso, Reis critica o tratamento excessivo
das discussões teóricas e o descaso com as observações empíricas características, segundo ele,
da Sociologia paulista.
Weffort teve um papel central como orientador de vários futuros professores, como Maria
Hermínia Tavares de Almeida, José Álvaro Moisés, Gildo Marçal Brandão (este mais
recentemente), dentre outros. Liderou uma série de estudos sobre sindicalismo, classe
trabalhadora, etc., sediados no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), órgão de
pesquisa em Ciências Sociais fundado no final dos anos 60 por professores expulsos da USP pelo
regime militar.
Uma das alunas de Weffort, Maria do Carmo Campello Souza merece destaque por seu
pioneirismo. Entre os anos 60 e 70, essa professora da área de Instituições Políticas Brasileiras
empreendeu estudos sobre os partidos e os sistemas partidários da Primeira República e do
período 46-64, com abordagens em muito semelhantes às desenvolvidas pelo referido grupo
mineiro/carioca na mesma época. A defesa da autonomia das instituições políticas estatais sobre o
desenvolvimento do quadro partidário levaram-na a um diálogo profícuo com a literatura
estadunidense recente.
Os trabalhos sobre política feitos por pesquisadores da USP começariam a mudar mais
fortemente já na metade dos anos 70. Entretanto, eles eram desenvolvidos em outra instituição, no
Cebrap. Referimo-nos aos estudos eleitorais e sobre partidos políticos, uma importante tradição de
pesquisa da Ciência Política norte-americana. O principal nome nesta área é Bolívar Lamounier, um
dos nomes de destaque do já referido grupo mineiro/carioca, mas que vem a São Paulo integrar os
quadros do Cebrap. As pesquisas sobre a adesão ao MDB, o papel dos partidos da desintegração
do autoritarismo, etc., também coordenadas por Cardoso, dialogaram com as teorias americanas
vigentes sobre comportamento eleitoral e teoria de partidos políticos15.
15
Maria D’Alva Kinzo, na época assistente de pesquisa, seria nos anos 80 e 90 um dos principais nomes
da Ciência Política nacional
12
Nos anos 70, também sediado no Cebrap, realizam-se pesquisas sobre a estrutura social e
econômica de São Paulo, pobreza e periferia, numa discussão da área de Sociologia Urbana
ancorada em preocupações mais gerais sobre o desenvolvimento do capitalismo, e logo sobre
dependência e marginalidade. Um dos nomes que mais tarde integraria os quadros da Ciência
Política da USP, e cujo trabalho se voltava para o estudo da marginalidade, é Lúcio Kowarick 16. Nos
anos 80, a agenda de pesquisas em política não poderia ser outra que a redemocratização do País.
É central o papel do Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), na promoção de
pesquisas sobre movimentos sociais e cultura política, conduzidos principalmente por José Álvaro
Moisés 17. Apenas no final dessa década, em 1987, tem-se a separação efetiva entre os três
departamentos das Ciências Sociais uspianas: Sociologia, Antropologia e Ciência Política.
A escolha racional como inspiração teórica apenas surgiria mais diretamente no
departamento de Ciência Política da USP na segunda metade dos anos 90, por meio dos trabalhos
de Fernando Limongi sobre as relações Executivo-Legislativo, o Congresso Nacional e os partidos
políticos. No entanto, isso não ocorre sem apropriações importantes. Como veremos na próxima
seção, na análise da produção dos docentes do DCP-USP entre os anos 2000-2012, parte das
agendas de pesquisas construídas historicamente mantém seu fôlego, outras foram descartadas, e
a expansão da teoria da escolha racional apresenta caráter heterogêneo.
2.2. A produção recente do Depto. de Ciência Política da USP (2000-2012)
Quais são as sub-áreas do Depto. de Ciência Política da USP (doravante denominado DCPUSP) nas quais a TER mais se desenvolveu? Como veremos, a expansão da TER na USP ocorreu
de modo gradual, e seu desenvolvimento apresentou grande variação entre os diferentes campos
que compõem o Departamento. Para os propósitos do argumento esboçado neste trabalho, a
produção do DCP-USP foi dividida em seis sub-áreas, que serão vistas em detalhes adiante:
Relações Executivo-Legislativo; Eleições e Partidos; Judiciário; Estudos Urbanos; Cultura Política; e
Sociedade Civil.
Relações Executivo-Legislativo
Dos cientistas políticos integrantes do DCP-USP, Fernando Limongi, Paolo Ricci e Marta
Arretche são os que apresentam o maior uso da teoria da escolha racional. Todos estudam o
funcionamento das instituições políticas brasileiras, e defendem teses semelhantes, quais sejam, de
que a estrutura institucional não é um empecilho para a governabilidade 18. Limongi é o precursor
16
Cabe notar que esta agenda de pesquisas ainda hoje se faz presente neste departamento e nas
pesquisas do CEM (Centro de Estudos da Metrópole), que conta em seus quadros alguns professores do
DCP-USP, como Eduardo Marques, Marta Arretche e Adrian Lavalle.
17
Os trabalhos mais recentes de Adrian Lavalle também se inserem nesta temática.
18 Marta Arretche tem estudos sobre políticas públicas, que não serão aqui abordados.
13
desse grupo e maior responsável pela assimilação dos estudos legislativos americanos por parte da
ciência política brasileira.
A maior parte de seus trabalhos é empírica e trata do funcionamento da ordem democrática
brasileira, particularmente das relações entre poder Executivo e Legislativo. A incorporação dos
estudos legislativos marcou a ruptura com os estudos sobre as transições para a democracia, bem
como o início dos estudos comparados sobre o funcionamento efetivo da democracia no Brasil.
Dadas as peculiaridades do sistema político brasileiro, em muito diferente do americano, a
assimilação da literatura americana exigiu uma alteração de foco em relação aos estudos
pregressos sobre o processo político brasileiro. O foco, agora, era a relação entre Executivo e
Legislativo. 19 Não obstante, o caso brasileiro contribuiu também para o debate dentro da
perspectiva neoinstitucionalista, já que chamou a atenção para variáveis tais como os poderes
legislativos do presidente e a organização dos trabalhos parlamentares (Limongi, 2010).
Embora a maior parte de seus trabalhos seja de caráter empírico, alguns de seus artigos
apresentam as preocupações normativas que orientam sua pesquisa aplicada. Há um deles que,
embora partindo de uma discussão empírica, posiciona-se no debate travado entre perspectivas
culturalistas e econômicas sobre as bases da democracia. Nele, Przeworski, Cheibub e Limongi
(2003) apresentam manifestações claras de adesão às premissas da teoria da escolha racional. A
discussão central dos autores é sobre se haveria evidências de que democracias podem emergir e
subsistir apenas em determinados padrões culturais. Como se sabe, a resposta dos autores é um
sonoro “não”. Porém, a despeito do desenvolvimento desse debate, o que nos importa ressaltar
aqui é que, de modo a sustentar seu argumento central, Przeworski, Cheibub e Limongi se valem
de modelos baseados nas premissas da escolha racional. Na verdade, esses modelos fazem parte
de uma agenda de pesquisa comum aos três autores, e foram usados para formular hipóteses
empíricas já testadas em seus trabalhos pregressos. 20 É igualmente digno de nota o esforço feito
pelos autores para contrapor à concepção culturalista uma concepção não culturalista de
democracia. Embora reconheçam que há boas razões para levar a concepção culturalista a sério,
os autores tentam demonstrar a falta de evidências empíricas que a sustentam. A concepção não
culturalista, por outro lado,
“[T]em forte apoio empírico. Nessa visão, a democracia sobrevive porque é mais
vantajoso para as forças políticas relevantes, pautando suas ações por puro interesse
próprio, obedecer o veredicto das urnas do que fazer qualquer outra coisa. Os perdedores
numa competição democrática podem ter incentivos no curto prazo para rebelar-se, não
aceitando os resultados do turno atual. No entanto, se existir uma possibilidade de ganhar
19
A incorporação dos estudos legislativos americanos proporcionaram uma reviravolta no debate da
ciência política brasileira. Neste sentido, os trabalhos de Figueiredo e Limongi (1999) foram pioneiros.
20
Ver Przeworski, Alvarez, Cheibub e Limongi (1996).
14
as eleições futuras e os benefícios esperados destas vitórias forem grandes o suficiente,
perdedores preferirão aceitar os veredictos das urnas. (Idem, p. 20, grifo nosso)
Colocamos o trecho acima em evidência porque ele revela como o argumento não
culturalista, baseado nas premissas da escolha racional, teria, na visão dos autores, maior
sustentação empírica. A teoria da escolha racional permite, então, que seja elaborado um modelo
preditivo, do qual pode-se extrair hipóteses testáveis. Com isso, e supondo que os testes sejam
satisfatórios, os autores conseguem tornar seu argumento mais convincente. Note-se que, no
trecho ressaltado acima, a afirmação de que as forças políticas relevantes pautam suas ações “por
puro interesse próprio” deixa entrever as premissas da racionalidade instrumental e das
preferências estáveis e ordenadas.21
A produção de Ricci segue a agenda de estudos da relação Executivo-Legislativo aberta por
Limongi. Seu trabalho se foca nas instituições eleitorais e legislativas brasileiras, com alguma
atenção dedicada também às reformas institucionais italianas e à discussão metodológica sobre
conceitos na ciência política. É importante ressaltar que a literatura de estudos legislativos norteamericana se apoia fortemente na TER. Um dos exemplos mais representativos é o de Mayhew
(1974). De modo a compreender o comportamento dos congressistas americanos, Mayhew criou
um modelo explicativo baseado nas premissas da TER, tratando os congressistas como se fossem
“single-minded reelection seekers”. Com isso, Mayhew criou uma das hipóteses mais aceitas da
ciência política, a “conexão eleitoral”, tese que, graças às suas premissas, é capaz de explicar as
consequências da busca do congressista pela reeleição.
Embora a transposição dos estudos legislativos americanos para o caso brasileiro tenha
exigido adaptações, os trabalhos que se detêm sobre o funcionamento do sistema eleitoral e do
Legislativo brasileiros estão quase sempre em diálogo com a literatura americana. Por isso, partem,
em geral, dos mesmos pressupostos. No caso de Ricci, ainda que não se preocupe em explicitar
sua adesão à TER, seus trabalhos sobre a produção legislativa brasileira (Ricci, 2003 e 2004)
partem das mesmas premissas. Assim, por exemplo, embora Ricci (2003) questione as
interpretações usuais sobre a produção legislativa brasileira – que, partindo da tese da conexão
eleitoral de Mayhew, sustentam que os congressistas brasileiros produzem políticas paroquiais –,
endossa as premissas da TER. Com efeito, o autor afirma explicitamente não questionar que
congressistas brasileiros busquem a reeleição. Sua discordância com as interpretações pregressas
está no fato de elas não terem levado em conta fatores internos ao Congresso.
21
Przeworski, Cheibub e Limongi (2003) dão muitas outras demonstrações de adesão à teoria da
escolha racional, como, por exemplo, ao afirmarem que “[v]ários outros fatores afetam a sobrevivência
das democracias, mas todos eles perdem sua força quando comparados à renda per capita. Dois deles
são particularmente relevantes para a perspectiva da escolha racional.” (Idem, 22). A afirmação poderia
muito bem ser encerrada desta forma: “Dois deles são particularmente relevantes para a perspectiva da
escolha racional, à qual esposamos.”
15
Marta Arretche adentra esse debate focando no aspecto federativo das instituições. De
modo geral, suas pesquisas buscam responder a seguinte questão: teria a estrutura federativa
brasileira um alto poder de demos-constraining (nos termos de Stepan), ou seja, de limitação às
decisões do governo central, conforme defendido por maior parte da literatura?
Baseada em análises das reformas de políticas públicas dos anos 90, Arretche (2002)
apresenta evidências empíricas que contrariam argumentos correntes, que ressaltam a força
política dos atores subnacionais. Arretche e Rodden (2004) tem como objeto o federalismo fiscal, e
buscam analisar de que forma são distribuídos os recursos entre os entes federativos. Depois,
Arretche (2007) se detém a debater uma hipótese específica sobre o federalismo brasileiro: a de
que os parlamentares seriam politicamente dependentes dos governadores de seus respectivos
estados, e, logo, em determinadas votações no Congresso Nacional votariam conforme seus
interesses, ainda que em detrimento da sua filiação partidária.
Em todos os estudos citados, os dados levantados pela autora possibilitam-na rejeitar visões
tradicionais da literatura. Suas explicações alternativas estão baseadas no neoinstitucionalismo da
escolha racional, e em conceitos como arenas de políticas, antecipação de preferências, regras e
poderes legislativos, etc. Em suma, tanto o debate no qual a autora se insere quanto as “hipóteses
nula e alternativa” apresentadas são ancorados em supostos de racionalidade. Seus estudos nesta
temática relacionam-se de modo direto com os de Fernando Limongi e Paolo Ricci sobre o
funcionamento do Congresso Nacional.
Eleições e Partidos
A área de estudos eleitorais, ao lado da de estudos legislativos, é, talvez, a que apresenta
maior volume de estudos na literatura da TER. No entanto, se nessa última a produção do DCPUSP estabeleceu um diálogo considerável com este paradigma, na primeira tal processo não
ocorreu com intensidade. Discutiremos aqui os trabalhos de Maria D’Alva Kinzo e André Singer.
A preocupação de Kinzo com essa temática das relações entre partido-eleitor deve-se a sua
intenção mais ampla de discutir e avaliar o funcionamento do regime democrático nacional,
apresentando, logo, um forte caráter normativo. A autora, que participou como assistente de
pesquisas nos estudos eleitorais dos anos 70 no Cebrap, é discípula direta de Lamounier. Dessa
forma, pode-se dizer que Kinzo não se filiava totalmente ao paradigma da escolha racional e dos
estudos eleitorais fundados neste vertente, ainda que algumas vezes utilize ferramentas e autores
desta vertente.
Kinzo (2004) busca entender de que forma vem se dando a consolidação dos partidos no
Brasil. Ainda que inicialmente a autora parta de uma concepção procedimental de democracia, ao
final afirma que dimensões normativas devem se fazer presentes na análise, pois a dimensão da
responsividade eleitoral seria precária no Brasil, comprometendo a qualidade da democracia que
vem se consolidando.
16
Em trabalho posterior, a autora deixa sua posição mais clara no debate brasileiro: não se
pode avaliar os partidos apenas pelo seu comportamento parlamentar (vide Figueiredo e Limongi no
debate nacional) ou como meros instrumentos das ambições dos políticos (vide Aldrich no debate
internacional). A tese da autora é a de que os vínculos entre partidos e cidadãos são tênues, não
apresentando sólida base. Isso seria fruto, principalmente, da estrutura institucional (regras
eleitorais, sistema de governo e federalismo, principalmente), que complexifica sobremaneira as
informações necessárias para estabelecer distinções permanentes sobre os partidos.
Sua crítica ao arranjo institucional brasileiro se reforça quando a autora expõe dados que
mostram a existência de clivagens políticas mais ou menos claras ordenando os partidos (Kinzo,
2007). O problema seria especificamente a legislação eleitoral, que não contribuiria para a
maturação das diferenças ideológicas. A não elevação, em séries temporais, da identificação
partidária no Brasil é explicada pelas vicissitudes das legendas políticas, segundo Kinzo e Carreirão
(2004). O funcionamento do sistema partidário não contribuiria para o surgimento de imagens
políticas perenes.
Em suma, um balanço que podemos fazer dos trabalhos de Kinzo acima discutidos, tendo
em vista o objeto deste artigo é: a autora não se filiava na vertente de estudos eleitorais marcada
pela escolha racional, ainda que, em algumas de suas hipóteses de investigação, procurasse
construir explicações minimamente embasadas em supostos de racionalidade. Tem-se como
exemplo o raciocínio segundo o qual as instituições políticas brasileiras incentivam comportamentos
racionais que não favorecem a criação de vínculos de identidade estáveis entre partidos e eleitores.
A parte isso, Kinzo procura trazer uma dimensão normativa sobre a qualidade da representação
eleitoral no Brasil
Os estudos de André Singer enquadram-se especificamente na temática das teorias do
comportamento eleitoral. O autor se notabilizou na literatura nacional por defender uma tese
específica sobre o eleitor brasileiro, e, mais recentemente, por discuti-la com a ascensão do PT ao
governo federal.
O autor, mais do que Kinzo, não se assenta no paradigma da escolha racional.
Evidentemente, isso não significa ignorá-lo. Nada obstante, Singer explicitamente busca dialogar
com conceitos e abordagens outras aos que consideramos ser o paradigma maior da Ciência
Política.
A posição defendida em Singer (2000) no debate sobre comportamento eleitoral brasileiro é
a de que a identificação ideológica é um elemento essencial para a decisão do voto nacional. A
construção teórica dessa hipótese é feita com base na reconstrução do debate internacional sobre
comportamento eleitoral, e na ênfase em novos modelos da escola psicossociológica sobre as
bases cognitivas da ideologia política em eleitorados de massa. Singer ainda pontua que tal visão é
embasada nos modelos espaciais do voto, inspirados na escolha racional.
17
Logo, se neste livro Singer se apoia, ainda que brevemente, nas suposições de um modelo
da rational choice, seus textos mais recentes sobre Lula e o PT estão envolvidos em debates
teóricos de outros gêneros.
A hipótese do autor é a de que houve um realinhamento eleitoral em 2006, com os estratos
mais pobres da sociedade apoiando Lula pela primeira vez, enquanto que a classe média aderiu
mais fortemente ao competidor oposicionista. Segundo Singer, esse fenômeno das classes baixas
apoiarem uma plataforma de esquerda seria inédito nas eleições presidenciais brasileiras, mas
apenas foi possível devido ao casamento entre as políticas de Lula e o conteúdo ideológico
predominante neste estrato: o desejo de uma distribuição de renda capitaneada por um Estado
forte, mas com a manutenção da ordem social.
Assim, Singer busca uma interpretação de cunho mais “sociológico” para compreender as
seguidas vitórias do PT. Sem minimizar explicações como o voto “econômico”, o autor concede
ênfase ao substrato classista e ideológico da disputa partidário-eleitoral. Singer propõe no final de
seu texto que a agenda de pesquisas da USP sobre o populismo dos anos 60 pode ser retomada
para a compreensão dos fenômenos atuais da política nacional 22.
Em seu texto especificamente sobre o PT, o “espírito” da interpretação de Singer é
semelhante: o realinhamento ocorrido no primeiro mandato presidencial do partido corroborou uma
síntese contraditória entre uma faceta radical e outra moderada do PT. A abordagem do autor se
assenta nas duas correntes ideológicas opostas que coabitariam no partido, e suas respectivas
bases sociais.
Desse modo, Singer se posiciona num debate intelectual que não se enquadra nos
parâmetros da escola da escolha racional. O autor não se atém em modelos sobre competição
eleitoral e partidos políticos construídos pela literatura internacional inspirada naquela corrente.
Judiciário
Rogério Arantes e Matthew Taylor estão inseridos em uma sub-área de pesquisa diferente,
sendo a maior parte de sua produção voltada ao estudo do poder Judiciário, onde o
desenvolvimento do paradigma da TER é pequeno. 23 Porém, é importante salientar que, muito
embora os estudos legislativos sejam, entre todas as sub-áreas da ciência política, a que mais usa
a teoria da escolha racional, não há, a priori, nenhum impedimento para que o paradigma seja
usado nas outras. 24
Arantes se destacou por suas pesquisas relativas ao Ministério Público (MP) e à
judicialização da política no Brasil, bem como por suas análises da Constituição Federal de 1988. A
22 Não à toa o título de seu artigo, “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, remete ao de Weffort,
“Raízes sociais do populismo em São Paulo”.
23
Segundo Kapiszewski e Taylor (2008), há muito poucos trabalhos sobre política judicial a utilizar a
TER.
24
Para o uso da teoria dos jogos nos estudos do Judiciário, ver, por exemplo, Vanberg (2001).
18
judicialização de conflitos coletivos no país foi investigada por Arantes (2002) como resultado de um
processo endógeno de reconstrução institucional do MP. O caráter marcadamente endógeno deste
processo se refere às convicções de procuradores e promotores de que deveriam agir como
defensores da sociedade, numa espécie de voluntarismo político. No que se refere à Constituição
de 1988, Couto e Arantes (2006) investigaram como a constitucionalização de políticas
governamentais trouxe dificuldades consideráveis para o sistema político brasileiro, obrigando
sucessivos governos a modificar a Constituição para implementar suas políticas.
Assim como Arantes, Taylor também vem se dedicando ao estudo do poder Judiciário e da
judicialização da política. Taylor (2006) aplicou as teorias de veto players de Tsebelis (2002) aos
tribunais de Justiça brasileiros, de modo a investigar o impacto do desenho institucional dos
tribunais na política. Embora Taylor não faça referências à TER, a teoria de Tsebelis supracitada é
um dos mais conhecidos exemplos de uso da teoria dos jogos na ciência política. Em outro artigo,
Ríos-Figueroa e Taylor (2006) argumentam que a estrutura institucional do sistema legal de um país
molda os resultados da produção legislativa de modo semelhante a outras instituições políticas, tais
como o bicameralismo ou o sistema de comissões. Para justificar seu argumento e identificar alguns
determinantes da judicialização da política, analisam os casos de México e Brasil.
Posteriormente, Taylor (2007) descreveu o estado da literatura sobre Judiciário e política no
Brasil, enfocando a relação madisoniana entre os três poderes republicanos. De modo a reforçar a
importância de se considerar o Judiciário como ator na tomada de decisões do sistema político
brasileiro, Taylor se utiliza de um pequeno modelo baseado na TER. 25 Embora seja um uso menor
do paradigma, já que busca apenas fortalecer um argumento secundário, ainda assim é digno de
nota.
Cultura Política
A área de cultura política no DCP-USP, é representada por José Álvaro Moisés. Tendo sua
tese de doutorado orientada por Weffort, Moisés é professor do DCP-USP desde meados da
década de 1970. Durante os anos 80, o autor produziu importantes estudos na área de movimentos
sociais e estudos urbanos. Nos anos que correm, essas temáticas são tratadas no departamento
em estudo por Adrian Lavalle e Eduardo Marques, autores que discutiremos abaixo. Durante o
recorte temporal aqui analisado, a produção de Moisés se concentrou nos estudos sobre a
confiança dos cidadãos nas instituições democráticas (2005), sobre a percepção da corrupção
(2008) e sobre o desempenho do Congresso brasileiro no presidencialismo de coalizão (2011).
25
Para exemplificar a importância do Judiciário, Taylor cria um modelo para explicar a reforma agrária de
1999-2000, durante o governo FHC. Seu objetivo é mostrar que o governo possuía um ponto ideal para a
reforma distinto dos pontos do MST e dos latifundiários. Embora tenha editado uma Medida Provisória
para alterar o status quo e aproximá-lo de seu ponto ideal, o governo desconsiderou a atuação do
Judiciário. Para nossos propósitos, interessa ressaltar apenas que, de modo a fortalecer sua explicação,
Taylor trabalha, ainda que implicitamente, com as premissas da racionalidade instrumental e das
preferências estáveis e ordenadas. Com isso, consegue colocar em um gráfico euclidiano todos os
pontos ideais dos atores envolvidos.
19
Porém, a despeito da variedade de temas, todos eles são investigados a partir de uma perspectiva
culturalista.
De toda a ciência política, a sub-área da cultura política é, talvez, a que se mostra mais
refratária à incorporação da TER. Tal resistência é, até certo ponto, compreensível, se se
considerar que perspectivas culturalistas costumam ressaltar aspectos estruturais em detrimento
dos individuais. Seguindo essa tendência, a orientação teórica e metodológica dos trabalhos de
Moisés sempre se manteve distante das premissas da TER. No período aqui analisado, os
trabalhos empíricos de Moisés usaram diferentes surveys como fonte de dados. 26 Com efeito, uma
das características marcantes da pesquisa feita na área de cultura política é o uso extensivo dessa
metodologia, com o objetivo de captar avaliações e opiniões dos cidadãos sobre o sistema político.
Este objetivo distancia as pesquisas de Moisés do paradigma da TER, que, por sua própria
definição, ignora a formação de preferências dos atores. Na TER, as preferências são dadas a
priori. A abordagem do autor tem um aspecto normativo claro, que consiste em avaliar a qualidade
da democracia no Brasil, com base, em grande medida, em aspectos cognitivos de seus cidadãos.
Estudos Urbanos
As pesquisas sobre pobreza urbana desenvolvidos na USP e no Cebrap nos anos 70 e 80
reverberaram nos trabalhos de Eduardo Marques. Além desse tópico, o autor também se dedicou a
analisar estruturas internas de governos municipais.
Como exemplo de um estudo dessa temática, tem-se Marques (2006). Neste artigo, o autor
faz uma síntese teórica de suas pesquisas27, nas quais procura defender a importância de uma
abordagem centrada na dinâmica interna e relacional do Estado na produção de políticas urbanas.
Sua discussão mais geral encaixa-se no debate das “teorias sobre o Estado” e sobre políticas
públicas, e Marques filia-se na vertente neoinstitucionalista, ainda que com matizes importantes.
Um desses matizes emerge da abordagem metodológica, a saber, a análise de redes sociais. Isso
permite ao autor ressaltar os vínculos mais ou menos perenes entre atores estatais e entidades
privadas, que conformam a dinâmica das políticas públicas.
Concedendo igual ênfase à estrutura e à agência, focando a análise nas relações sociais e
trabalhando com a ideia de racionalidade limitada, Marques levanta elementos analíticos que estão
além de uma abordagem da escolha racional estrito senso.
Sua agenda de pesquisas mais recente sobre pobreza urbana desenvolve-se, pode-se
dizer, em duas abordagens. De um lado, o autor procurou ressaltar a importância do Estado e das
políticas públicas na produção da segregação 28. De outro, Marques focou na importância das redes
sociais nesse fenômeno. Um balanço teórico se encontra em Marques (2009). Por certo, este
debate se insere mais no campo da Sociologia e da Economia que no da Ciência Política. A posição
26
Ver, por exemplo, Moisés (2008).
27 Como por exemplo Marques e Bichir (2002).
28 Ver Marques (2005)
20
do autor é criticar tanto abordagens estruturalistas e holistas da pobreza, advindas de certa
concepção sociológica, quanto individualistas e atomistas, fruto de algumas visões economicistas.
O autor defende uma perspectiva relacional, que conjuga ambos elementos. Novamente, as redes
sociais são o elemento chave da análise.
Em suma, nesse breve balanço pode-se dizer que os estudos de Marques não se
encontram nos parâmetros da escola da escolha racional.
Sociedade Civil
Adrián Gurza Lavalle tem como principal temática os movimentos sociais, ou a política da
sociedade civil. O autor, que outrora pesquisava mais diretamente na área de Teoria Política,
adentrou no debate sobre sociedade civil buscando conceder ênfase aos espaços de interconexão
entre Estado e atores societários. Em um texto no qual procede a uma interpretação da literatura
sobre sociedade civil no Brasil, Gurza Lavalle (2003) procura argumentar que nos anos 80 e 90
constituíram-se modelos teóricos, fortemente normativos sobre a essência e o papel de movimentos
da sociedade civil, que implicaram numa perda de consistência conceitual e acurácia empírica. Ao
final, afirma que novas configurações políticas, como abertura de canais estatais para a sociedade
civil, exigem um esforço conjunto da Ciência Política e da Sociologia para um enquadramento
adequado da questão.
De fato, os estudos do autor discutem temáticas afeitas tanto à área de Sociologia Política
quanto a uma vertente empírica da Ciência Política diretamente ligada à Teoria Política. Assim, já
fica claro que Gurza Lavalle não trabalha dentro dos limites do paradigma da escolha racional.
Ainda que o autor critique concepções “minimalistas” de democracia, que tendem a
desconsiderar a importância da sociedade civil no funcionamento do regime democrático, Lavalle e
co-autores (2006a) também não endossa bandeiras normativas, como as que veem a nova
sociedade civil como sendo indubitavelmente o agente de um processo de ampliação da
democracia. Antes, procura mostrar que as instituições políticas tradicionais se imbricam com as
entidades civis, num processo dinâmico que necessariamente reconfigura a representação política
tradicional.
O tema da representação política também é fartamente discutido pelo autor. Gurza Lavalle e
co-autores (2006b) discutem diretamente com as teorias da representação, e com a ideia de que os
sistemas políticos contemporâneos passam por processos de mudanças não triviais nessa área. A
problematização dos autores versa sobre o estatuto representativo das associações civis. Uma
solução teórica proposta é a ideia de representação virtual de Burke, o que já denota o afastamento
analítico do autor em relação às abordagens mais tradicionais da escolha racional.
3. Considerações finais
Este trabalho é apenas um pequeno passo numa proposta ambiciosa. Propusemo-nos a
pensar em que medida a Filosofia da Ciência de Kuhn poderia nos ajudar a compreender a TER
21
dentro da Ciência Política, e, em seguida, como se deu a expansão da TER em uma comunidade
acadêmica específica, a saber, o DCP-USP. Como se sabe, as investigações de Kuhn não
chegaram às ciências humanas, embora ele jamais tenha insinuado que tal empreendimento fosse
inviável – ou mesmo indesejável. Buscamos colocar em evidência em que medida a TER poderia
ser vista como um paradigma nos moldes daqueles existentes nas hard sciences. Depois, num
segundo movimento, analisamos a trajetória do DCP-USP, de sua criação até sua fase atual (20002012), que foi, então, vista de modo mais detalhado, com o objetivo específico de identificar o
desenvolvimento da TER em cada sub-área departamental.
O crescimento da TER no DCP-USP deve ser compreendido dentro dos marcos de diálogo,
apropriação e utilização do mainstream da literatura de Ciência Política dos EUA. Como vimos,
tradicionalmente os estudos sobre política da USP baseavam-se em outras perspectivas. Alguns
deles continuam a influenciar a produção intelectual de docentes do Departamento, como os
estudos sobre pobreza urbana, movimentos sociais e populismo. Por certo, os trabalhos mais
recentes apresentam uma aproximação maior com a academia norte-americana que os de outrora,
embora alguns ainda permaneçam distantes de assimilar a produção norte-americana strito sensu.
As únicas áreas nas quais a TER faz-se presente são as de estudos das relações
Executivo-Legislativo e de estudos do Judiciário, sendo a presença evidente no caso da primeira e
sutil no caso da segunda. Entretanto, mesmo nas relações Executivo-Legislativo, a utilização dessa
teoria combinou-se com discussões que escapam ao escopo tradicional de uma abordagem em
teoria da escolha racional. Como afirma Limongi (2010), a área de relações Executivo-Legislativo
surge dentro das discussões sobre consolidação da democracia no Brasil.
De fato, essa preocupação é central na agenda de estudos do DCP-USP. Mais ainda, sua
presença parece ditar até que ponto a TER é utilizada. Por um lado, o debate teórico-normativo
sobre a consolidação da democracia brasileira, que opõe um grupo de pesquisadores de inclinação
“otimista” a um mais “pessimista”, revela a falta de maturidade da Ciência Política no país, ao
menos quando comparada à norte-americana. Por outro lado, esse mesmo debate suscita o uso –
sobretudo por parte da corrente “otimista” – da TER e, de um modo geral, da produção da academia
norte-americana para, justamente, fundamentar o diagnóstico de que a democracia no Brasil goza
de plena consolidação e, assim, superar o debate teórico-normativo, que já não teria mais sentido. 29
Se a defesa da consolidação da democracia no país – tal qual encontrada nos trabalhos de
Limongi, Ricci e Arretche – foi feita com base no uso da TER, o questionamento dessa
consolidação, em grande medida, – como, por exemplo, nos trabalhos de Kinzo e Moisés, esse
29 Cabe esclarecer que, se a TER é mais usada pela corrente “otimista” no Brasil, isso não significa que
a literatura norte-americana não tenha se apoiado nela para questionar a solidez das instituições
políticas brasileiras. Basta ver a produção de Ames, Mainwaring e Stepan, entre outros autores.
22
principalmente – continuou sendo feito com base em perspectivas mais sociológicas, que parecem
reverberar as principais teses clássicas do pensamento social brasileiro 30.
BIBLIOGRAFIA
ALMOND, Gabriel (1966). “Political Theory and Political Science”, American Political Science Review, vol. 60, no. 4,
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30 Pode-se fazer referência aqui ao texto de Werneck Vianna (1999) sobre a apropriação de Weber no
pensamento social brasileiro, que mostra que este tem sido predominantemente lido pelo viés das
formas patológicas de acesso à modernidade, em detrimento do aspecto central de sua obra: as
patologias da própria modernidade.
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