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Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Maria Denise Guedes Galvani Vício, pobreza e poder – Democratização no Haiti Trabalho referente à disciplina de Projeto Experimental em Jonalismo, do 8º período do curso de Jornalismo da Universidade de São Paulo Orientado pelo professor Cláudio Julio Tognolli Realizado pela aluna Maria Denise Guedes Galvani São Paulo, 5 de dezembro de 2005 2 Para todos os que trabalham por melhores condições de vida no Haiti. Às classes políticas e populares nacionais, que ainda terão muito trabalho por fazer 3 4 SUMÁRIO Introdução. ........................................................................................09 Parte I.................................................................................................15 Uma promessa de nome Aristide................................17 A crise de 2004..............................................................27 Parte II......................................................................................35 Estrutura da sociedade haitiana.................................37 Tradição Política................................................................47 Parte III..............................................................................................57 A ONU no contexto do Haiti................................................59 Ambiente Seguro e Estável..................................................69 Eleições Justas e Legítimas..................................................83 Conclusão...........................................................................................93 Agradecimentos..............................................................................97 Referências bibliográficas.................................................................99 Galeria de Fotos............................................................................101 5 6 Resumo Em 200 anos de história independente, o Haiti nunca experimentou uma democracia consolidada. Desde os anos 80, o regime democrático vem sendo perseguido como forma de elevar a qualidade de vida do país mais pobre das Américas. Peculiaridades históricas, culturais e de engenharia social medem forças com esse processo. Um livro sobre os avanços e desafios no sentido de democratizar um país miserável e cronicamente sem perspectivas. Summary During 200 years of History as an independent country, Haiti has never experienced a consolidated democracy. Since the 1980´s, the democratic system is pursued as a way to improve the social conditions in America´s poorest country. Historical, cultural and social peculiarities interact with this process. This is book about advances and challenges to democratize a needy country and chronically without perspectives. Sommaire Péndant 200 ans d´histoire independent, l ´Haiti n´a jamais eprouvé une democratie consolidée. Depuis les années 80, le système démocratique est poursuivi comme manière d'améliorer les conditions sociales dans le pays le plus pauvre de l'Amérique. Les particularités historiques, culturelles et sociales sont determinant pour ce processus. C'est livre concernant des avances et les défis d´apporter le democratie dans un pays pauvre et chroniquement sans perspectives. 7 8 INTRODUÇÃO Uma república negra, velha e cheia de vícios “Problemas internos e externos, cuja complexidade não vale a pena discutir aqui, fizeram com que as coisas não dessem certo no Haiti nos últimos 200 anos.” Manual de 1994 para funcionários norte-americanos em serviço no Haiti. A mais antiga nação independente da América Latina não teve festa de bicentenário. A data não constou nas agendas do governo do Haiti, de nenhum chefe de estado, de nenhuma liderança política haitiana ou estrangeira. No dia primeiro de janeiro de 2004, o então presidente Jean Bertrand-Aristide manejava agitações civis e pressões internacionais que em algumas semanas culminariam na sua deposição. O ano do bicentenário seguiria penoso: dias praticamente sem governo central, o desembarque de tropas das Nações Unidas em território nacional e a instalação às pressas de um governo de transição que não encontrou muito menos resistência em seus primeiros meses. E duas fortes tempestades tropicais. Todos esses acontecimentos provocaram alguns milhares de mortes e deterioraram as condições de vida no país. O Haiti entra em seu segundo século de vida tentando se desvencilhar de uma crise política e humanitária aguda, num contexto de problemas sociais crônicos que já lhe rendia a posição de país mais pobre do continente latino americano, com nada menos que 80% da população vivendo com uma renda diária abaixo de US$ 2. No último ranking de desenvolvido humano das Nações Unidas, em 2003, o país ficou na 150ª posição entre 173 países do mundo. 9 O PIB da ordem de US$ 4 bilhões há anos oscila entre a estagnação e pequenos avanços, principalmente em razão das remessas estrangeiras a título de ajuda humanitária. Aliado ao quadro de alto crescimento demográfico, a renda per capita caminha para trás desde os anos 70. Mas nenhum indicador de subdesenvolvimento pode ser tão evidente quanto a precariedade dos serviços públicos no país. Saneamento é privilégio de 28% da população; na capital, basta se afastar um pouco do centro para perceber que não há coleta de lixo periódica. A provisão de energia elétrica é precária e inviabiliza o desenvolvimento das atividades industriais; embora exista infraestrutura de distribuição nas maiores cidades, o fornecimento é interrompido por horas algumas vezes por semana. Quem não tem gerador (muitas casas usam baterias de caminhão), tem de deixar à mão as lamparinas a óleo. O próprio Palácio Nacional dispõe de quatro horas de luz elétrica por dia, para não correr o risco de apagões no meio do expediente. No ambiente de pobreza do país sempre esteve embutido o risco de radicalização de qualquer tipo de reivindicação. Toda a história do Haiti independente foi pautada por uma série de confrontos internos e intervenções estrangeiras, com características de ocupação ou de dissuasão de conflitos. Só cinco presidentes conseguiram terminar seu mandato regular em duzentos anos de república; os outros 44 sucumbiram antes do prazo. Num balanço da cronologia dos governos do país, predomina uma alternância de períodos de autoritarismo e de anarquia, com transições quase sempre traumáticas. A característica agressiva das disputas políticas remonta à história da luta pela independência, o maior mito nacional do Haiti. Seus heróis são os escravos pioneiros das rebeliões que expulsariam os senhores de terra do país e os negros guerreiros que derrotaram o Exército de Napoleão em 1804, numa investida da França para recuperar sua colônia. A primeira Constituição do país, na tentativa de 10 banir o modelo colonial, era fortemente restritiva aos direitos dos brancos no país. Para afirmar a independência e evitar a dominação das antigas elites da colônia, já o primeiro governo, do antigo líder escravo Jean Jacques Dessalines, optou por uma linha autoritária no trato com a oposição. Daí em diante, os grupos políticos que se formariam seguiram reproduzindo o hábito de excluir sumariamente a oposição assim que ascendiam ao poder para preservar sua posição. A existência de uma polarização política sempre foi temerária tanto para o governo quanto para os opositores. O sucesso de um Estado negro, de ex-escravos livres, era pouco interessante para o mundo ainda escravagista – os Estados Unidos só aboliriam a escravidão depois da Guerra de Secessão, em 1864, sessenta anos mais tarde, Cuba poucos anos depois. Até a década de 1860, o Haiti sofreu embargo da América independente e do império napoleônico, que por esta época tinha domínio sobre praticamente todas as colônias européias. Um comércio internacional muito rudimentar só foi começar a se desenvolver no final do século XIX; o Haiti chegou atrasado na divisão de trabalho internacional, o que seria determinante para seus próximos anos de História. Assim como aconteceu em outros países latino americanos, o Haiti também inaugurou uma dívida histórica com pagamentos pelo reconhecimento da independência. O resultado é que na tentativa de se afirmar como nação negra e independente, o país cultivou vícios de gestão política e problemas estruturais. Nunca houve de fato um plano para o desenvolvimento econômico, e o mundo desenvolvido só voltava os olhos ao Haiti quando os conflitos chegavam ao extremo e refugiados vinham bater às suas portas. Todas essas circunstâncias acabaram promovendo uma espécie de mau-desenvolvimento das atividades produtivas e das condições sociais no país. 11 *** Vista de cima, Porto Príncipe é cinza. Próprio de uma cidade em que a devastação ambiental chegou ao seu limite. Vista de perto, Porto Príncipe lembra um canteiro de obras, abandonado. Os ricos adornam suas casas com pedras ou acabamentos finos, mas as casas dos pobres parecem inacabadas. Sem argila, as pessoas constroem suas casas com tijolos de concreto, e a maioria é mesmo deixada pela metade. As regras das favelas das metrópoles brasileiras também funcionam aqui: casas pequenas, muita gente na rua. Tanta criança, que é difícil acreditar que mais de dez por cento delas morrem antes de completar cinco anos. Mas a paisagem da pobreza deles destoa um pouco da nossa. Dizem que a colonização francesa engendrou um povo naturalmente bem vestido: andar sem camisa é uma ofensa para o haitiano; seus filhos freqüentam as escolas públicas em uniformes tradicionais, que enchem a cidade de cores fortes no fim da tarde. Apesar de o ensino ser muito deficiente e as escolas sucateadas, estudar nesta ou naquela escola é motivo de orgulho para os haitianos. Assim como a universidade do Estado, os licées mais importantes têm concursos concorridíssimos para preencher suas poucas vagas. As crianças mais pobres passam os dias nas ruas, a pedir trocados e atrapalhar o trânsito. São dispersas pelos carros de particulares (“allez, allez”). De vez em quando, recebem doces ou postais dos veículos da ONU: o imenso manual de conduta para funcionários da ONU desaconselha a distribuição de dinheiro. *** 12 O nacionalismo ainda é o traço mais presente na motivação dos movimentos políticos modernos e na legislação do país. Como também tem apelo no imaginário do povo, o discurso da elite haitiana ainda é essencialmente nacionalista. Mas a verdade é que, depois de Toussaint L´Ouverture e Dessalines, pouco foi feito pela elevação da qualidade de vida no país. Nunca partiram dos haitianos iniciativas no sentido da estabilização dos processos políticos. Mais recentemente, tem ficado para a comunidade internacional o papel de tentar costurar coalizões e conter excessos nos conflitos entre oposição e Estado. Meses depois da última crise de 2004, as Nações Unidas montaram a Missão para a Estabilização do Haiti (Minustah), com os objetivos de promover um ambiente seguro e contribuir na organização de eleições dentro dos parâmetros internacionais de democracia. Tentou-se aproveitar uma proximidade cultural e geopolítica com a América Latina: a liderança da missão é chilena, o comando das tropas militares, brasileiro. Mesmo assim, levou-se pelo menos um ano para, em julho de 2005, a Minustah declarar ter a maior parte do país sob controle. A Minustah é a quinta missão da ONU no Haiti num período de 11 anos. Em crises passadas, o socorro da ONU e de outras organizações multilaterais foi incapaz de impedir nova deflagração de conflitos alguns anos mais tarde. Essas empreitadas custaram aos cofres estrangeiros mais de US$ 2 bilhões, e é difícil identificar em quais melhoramentos eles foram aplicados. Nos bastidores das Nações Unidas, existe uma pressão para estender a Minustah por pelo menos dez anos, como forma de tornar mais estáveis os progressos conquistados pelas missões. O caminho para resolver o maior dos problemas do Haiti – a situação de completo abandono em que vive seu povo - parece necessariamente ter de passar pela democratização. Estabilidade dos governos é a condição primordial para a realização de qualquer 13 política pública ou para a aplicação de qualquer modelo de desenvolvimento. Não é um caminho simples. Consiste em basicamente treinar uma república antiga e desmoralizada para os fundamentos da democracia – eleições legítimas, compromisso do homem público com seus eleitores, transição de poder natural. Registre-se também a dificuldade das más condições de vida; uma sociedade onde quase metade da população não come adequadamente dificilmente vai comportar uma democracia representativa como a concebemos. Vai demandar todo o tipo de esforço, da eficiência na organização das eleições à disposição do eleitorado para acreditar novamente no potencial da representação democrática. Mas de maneiras diferentes, tanto a comunidade internacional quanto os haitianos tomaram o novo século de vida republicana como um ultimato: é tempo do Haiti corrigir o rumo de seus processos políticos e decisórios. 14 PARTE I A Crise 15 16 CAPÍTULO I Uma promessa de nome Aristide “Nous avons gagné et ce nous coletif n´est pas démagogie: l´election triomphale du prêtre est avant tout un acte d´exorcisme par les Haitiens de leurs propres demóns”* Artigo sobre as eleições do Haiti no semanário Libération, 18 de dezembro de 1990 Um país pobre recém-saído de ditaduras sangrentas tem o direito a sua parcela de esperanças. Em 1990, a economia devastada e sem grandes perspectivas, o Haiti vivia grandes expectativas para a realização do primeiro pleito democrático desde 1957, quando o médico do interior François Duvalier foi eleito e deu início a uma dinastia de ditaduras ferozes. “Papa Doc” permaneceria presidente até 1971, valendo-se da truculência de seus tonton macoutes (a guarda presidencial, batizada pela palavra creole para “bicho papão”) para se sustentar no poder. Com sua morte, seu filho Jean-Claude (“Baby Doc”) conduziria o Estado na mesma linha até fugir do país, em 1986, num misto de acordo político e revolta popular. A partir de então, uma sucessão de golpes militares e mortes em tumultos com o Exército agravaram as condições de segurança do país e chamaram a atenção da comunidade internacional. Talvez nas eleições com o maior número de observadores estrangeiros trabalhando para garantir a correção do processo, um candidato explodiu na preferência dos haitianos com 67% dos votos. No dia 7 de fevereiro de 1991, assumiu a presidência um jovem padre da Igreja Católica, adepto da Teologia da Libertação e * “Nós ganhamos, e esse ‘nós’ coletivo não é demagogia: a eleição triunfal do padre é antes de tudo um ato feito pelos haitianos de exorcismo de seus demônios”. 17 líder de programas sociais promovidos pela corrente. Jean-Bertrand Aristide, então com 37 anos, ganhara projeção combatendo a violência das ditaduras, em geral, e os regimes militares, em particular. Fez uma campanha de forte apelo popular falada em creole, a língua dos mais pobres, e conseguiu articular uma rede de apoios de partidos de esquerda – feito inédito para o espectro político já tão fragmentado do Haiti. Suas bandeiras foram o nacionalismo, o anti-imperialismo e a melhoria das condições de vida dos mais pobres. Embora tenha sido essencial apresentar a Igreja Católica como fiadora num contexto em que os partidos políticos eram ainda incipientes e sem base popular, Aristide conseguiu organizar ao longo dos anos o maior e talvez mais importante grupo político da história do Haiti. Junto com os trabalhos realizados pela Teologia da Libertação no país, estruturou-se durante os anos 80 o movimento Lavalas. Em seu início apenas como movimento popular envolvido com a Igreja, o Lavalas teve um papel importante na queda de Baby Doc e em mobilizações contra os regimes militares. Em 1989, ao lançar uma campanha pelo respeito dos militares à Constituição, o grupo foi formalizado partido político - Organisation Politique Lavalas (OPL). Foi este movimento, enraizado nos bairros mais pobres assistidos pela Igreja, quem colocou pére Titid no poder. O primeiro período de Aristide no Palácio Nacional não durou mais que o tempo de preparação de um golpe de Estado. Oito meses depois de sua posse, em setembro, uma investida militar liderada pelo general Raul Cedras destituiu o governo. A movimentação das forças de oposição já era evidente, mas ninguém parecia acreditar que um governo eleito democraticamente, num processo eleitoral ratificado por diversas instituições internacionais, poderia ter sua legitimidade questionada e ser posto à prova por mais um golpe. Mas a marcha dos militares ao centro da cidade fez-se anunciar pelas rádios. A reação popular foi intensa – a insegurança nos bairros mais pobres esvaziou a 18 capital – e incapaz de evitar a tomada do cargo por uma nova junta militar. A junta apoiava-se na elite econômica do país e em outros setores-chave da sociedade que rejeitavam o Lavalas e suas origens populares. Os Estados Unidos, que temiam outro governo de esquerda no Caribe, encorajavam a oposição ao presidente. Mas aparentemente o presidente americano George Bush percebeu rápido que não fez um bom negócio: suspendeu o apoio financeiro ao grupo três dias depois dos militares assumirem o governo O regime militar inaugurou uma perseguição aos partidários do presidente eleito. Estima-se que de 3 a 5 mil pessoas tenham sido assassinadas por motivação política nos três anos em que o regime se manteve. O Lavalas, ainda fortalecido, não poupava confrontos com o governo. A sensação de insegurança no país intensificou o êxodo de haitianos do país – incômodo constante para outros governos nacionais, especialmente o dos Estados Unidos, da vizinha República Dominicana e da França. A OEA e a ONU trabalharam durante mais de dois anos numa solução diplomática para a crise. As negociações foram em grande parte mediadas pelos Estados Unidos; a vitória de um padre esquerdista não agradava aos americanos, mas eles tampouco poderiam tolerar a brutalidade da junta militar que governava o país. Em 1992, Clinton chega à Casa Branca e adota uma nova política para o Haiti – elaborada principalmente para estancar o número crescente de haitianos que tentavam asilo na Flórida. Começa a ficar maior a pressão internacional para a volta de Aristide. Depois de uma tentativa frustrada de intervenção das Nações Unidas em outubro de 1993 – o exército americano foi barrado em Porto Príncipe por grupos paramilitares – , os Estados Unidos se convenceram da necessidade de uma terceira via entre um governo de Aristide e o governo militar. Clinton encabeçou um embargo 19 comercial à sofrida economia haitiana por meses, e forçou um novo acordo com Cedras. Convencionou-se que Aristide voltaria para convocar eleições e terminar seu mandato no prazo original previsto pela Constituição, a despeito dos três anos que passara afastado do cargo. A missão enviada pela ONU asseguraria a estabilidade do governo e acompanharia a transição democrática já no ano seguinte. Uma força enviada pelo Conselho de Segurança, liderada entre outros pelo general americano Colin Powell, levou Aristide a Porto Príncipe em 15 de Outubro de 1994. Milhares foram receber os Black Hawks americanos que trouxeram o presidente de seus últimos meses de exílio nos Estados Unidos. Uma paisagem insólita para a capital: os haitianos que tinham visto Aristide ser comparado a Fidel Castro pelos americanos agora o viam reconduzido ao Palácio por helicópteros do exército estadunidense. Pode ter sido durante o exílio que Aristide definiu o rol de aliados e inimigos com que operaria quando voltasse ao governo do Haiti. Na primeira fase do seu afastamento, em Caracas, ele atribuiu sua deposição à influência do que chamou de quatro “A”s: argent, a elite endinheirada haitiana, favorecidas por uma das piores distribuições de renda do mundo; Amerique, os americanos que durante toda a crise dispuseram de inúmeros meios de pressão; Armée, as Forças Armadas que levaram a cabo o golpe e, anunciando mais um rompimento da sua base eleitoral, authorités eclesiastiques, os altos quadros da Igreja Católica que ele já tinha então abandonado. Esses grupos foram acusados por Aristide de ter privilégios históricos na História do país, e a partir daí seriam alvos principais de suas ações políticas nos anos seguintes. O golpe e o reestabelecimento do governo foram decisivos também no futuro do movimento Lavalas, o maior orgulho da política nacional e exemplo de sucesso até então. Antes mesmo de ser deposto, houve rompimentos públicos na ampla aliança de esquerda que levou 20 Aristide ao poder. Ele perdeu apoio no Parlamento sob acusações de autoritarismo e corrupção; mesmo dentro do Lavalas já se delineavam facções pró e contra Aristide. Em 1996, a ruptura aconteceria formalmente, marcando o desmoronamento completo do que tinha sido o movimento político Lavalas. Nos meses em que Aristide exerceu o mandato, a expectativa em torno de uma “revolução social” alimentou vários setores da sociedade civil. Até foram esboçados projetos nacionais de alfabetização, recolhimento de impostos, acesso a serviços essenciais e outros valores que venceram a campanha presidencial, mas nenhum deles chegou a ser propriamente implementado. *** A juventude urbana de um país onde a economia é quase totalmente rural é muito difícil. Nas classes em que o estudo permite alguma mobilidade social, ainda é possível sonhar com carreiras públicas. Nas favelas, ou se vive 60 anos – não mais do que isso – de forma miserável, ou se morre com 30, tendo conquistado algum dinheiro e algum poder na comunidade. Aristide deu à sua guarda pessoal de chiméres (ou quimeras, batizados como diabos do vodu) esta oportunidade. Além de uma opção de vida, é uma opção política que lhes permitia mostrar às elites opressoras do que são capazes. De um fotógrafo que fez um trabalho artístico com crianças de Bel Air e Cité Soleil: “Via pessoas realmente jovens dizendo que se sentiam igualmente enganados e atraídos por Aristide. ‘Sei que ele não fez nada por isso, mas ainda sinto que devo obediência a ele´, era a frase que mais se ouvia daqueles jovens, em péssimas condições de vida.” 21 *** Aristide reassumiu o mandato sob a promessa de convocar eleições no mesmo ano e dividir o controle do país com a missão das Nações Unidas instalada no país, formada principalmente com pessoal e dinheiro americanos. A partir daí sua figura foi-se tornando mais e mais polêmica. Ganharam vulto as acusações de corrupção e impunidade de seus aliados no governo. Os Estados Unidos nunca investiram tanto no Haiti quando nesta missão, na tentativa de aperfeiçoar e fortalecer instituições de Estado – foram afastados 4800 soldados das Forças Armadas, algumas agências do legislativo passaram por reformulações, a Polícia Nacional foi reformada. Veio dos americanos também o financiamento do processo eleitoral, organizado pelo governo sob a supervisão da ONU e da OEA. Por mais de uma vez os investimentos americanos ficaram ameaçados pela forte oposição dos Republicanos no Congresso Americano. Aristide dedicou grandes dispêndios de tempo e dinheiro em lobbies nos Estados Unidos, levantando as suspeitas dos grupos e movimentos nacionalistas que sempre foram muito presentes no Haiti. Em manifestos da época, trabalhadores e estudantes costumavam dizer que o presidente saiu do país como “Aristid” e voltou como “Harry Stid”. Embora a missão tenha empenhado esforços na despolitização de algumas instituições do governo, não se pode dizer que o Estado haitiano ficara mais democrático. Aristide resistia como podia à organização das eleições e tentava boicotar as forças que tinham interesse de tirá-lo do poder. Visou principalmente os quatro “A”s que identificara como os segmentos de maior influência na política nacional. O golpe mais duro foi desferido nas Forças Armadas; poucos meses depois de seu retorno Aristide declarou fechado o Exército do país. Mais de 7 mil militares foram desmobilizados e 22 demitidos, sem nenhuma perspectiva de recolocação. A extinção das Forças Armadas acabaria se tornando, alguns anos depois, num dos maiores problemas sociais e políticos do Haiti. Com a proximidade do pleito, surgiram inúmeras acusações de uso da máquina pública em benefício dos candidatos do governo. As eleições de 1995 foram muito conturbadas, houve denúncia de fraudes nos processos de registro eleitoral e contagem de votos. No segundo turno, os partidos mais à esquerda que haviam se desligado da base de Aristide boicotaram a eleição. O Conselho Eleitoral haitiano declarou vencedor o candidato da OPL René Préval, apoiado por Aristide. As organizações internacionais e os Estados Unidos, maiores financiadores das eleições, abriram um precedente perigoso ao acatar como legítimo os resultados tão questionados por toda a oposição. Préval entraria para história como o presidente mandado de Aristide. Uma certa habilidade política, porém, permitiu que ele conseguisse conciliar os interesses políticos mais relevantes, enfrentasse o desmembramento da OPL e se mantivesse no poder até o final do mandato. Hoje, declara sua simpatia aos partidos que nasceram do Lavalas e diz que rompeu completamente com Jean-Bertrand Aristide. É um dos candidatos favoritos na corrida presidencial para 2006. A verdade é que, depois do aparecimento e ascensão de Aristide no panorama político do Haiti, nada melhorou essencialmente nas estruturas sociais do país. Pelo contrário, a vida nos bairros mais pobres foi ainda mais deteriorada pela proliferação da criminalidade que as grandes cidades viveram neste período. Ainda assim, a figura dele é associada, por quem viveu esta época, à do homem que luta pelos pobres. A prometida “revolução social” não chegou a ser articulada, mas acabou se tornando um símbolo dos anos 90 no país, a mudança que poderia ter acontecido e não aconteceu. 23 Assim como aconteceu em outros processos de redemocratização latino-americanos, o Haiti também experimentou seu salvador da pátria – ou profeta, como era chamado por alguns à época. Antes do desfecho dos acontecimentos, os americanos o comparavam a Castro; com o distanciamento histórico que o passar dos anos permite, ficou mais recorrente o paralelo com Menem, na Argentina, Collor, no Brasil ou Fujimori, no Peru. *** A simpatia do povo haitiano pelo povo brasileiro envolve laços explicáveis e laços inexplicáveis. É explicável a proximidade do passado colonial, a experiência da miséria, da ditadura e da decepção política. É inexplicável o entusiasmo dos haitianos pelo futebol brasileiro. Na final da Copa América, no domingo de 25 de julho de 2004, Porto Príncipe virou um pandemônio. Depois da vitória do Brasil sobre a Argentina os haitianos subiram as ruas, abarrotaram os bares com televisão e houve festa com direito a bebida, desordem e vandalismos, como toda comemoração de título merece. No mês seguinte, os campeões da Copa América participaram de um amistoso com a seleção haitiana: neste dia 18 de agosto, o Force Commander Augusto Heleno Pereira perdeu dez anos de vida. Pelo menos é o que ele mesmo diz: “Quando eu saí com os jogadores do aeroporto, não acreditei que chegaria ao Estádio sem ninguém se machucar”. A seleção ficou menos de cinco horas no Haiti, mas o perigo não era a violência contra os jogadores. “O meu medo era do fanatismo. Nunca vi nada igual. Os haitianos furavam o bloqueio e acompanhavam os blindados de bicicleta”. Aparentemente, em Porto Príncipe não há quem 24 não tenha visto – e tocado, e conseguido autógrafos de – Ronaldo, Ronaldinho, Adriano e Kaká, as preferências nacionais. Uma equipe de documentaristas acompanhou a concentração das duas equipes adversárias: Parreira lembrou o vigor da recepção, os gritos de “eu te amo”, o olhar das crianças. Fernando Clavijo, o uruguaio técnico da seleção do Haiti, lembrou um pedido de Lula: “O presidente deles pediu aos brasileiros que não fizessem muitos gols na gente. Isso me incomodou”. E propôs um desafio: vencer o jogo pode simbolizar a emancipação do povo haitiano. O resultado ficou em 7 a 0 para o Brasil. *** 25 CAPÍTULO II 26 A crise de 2004 “Aristid, Lavalas e Convèjans, se de pomonda pouri nan ton sèl mem pantalon dechire”* Dito em creóle Assim como poucos políticos inspiraram tanta esperança nos haitianos em sua história recente, poucos colecionam uma lista tão grande de inimizades. Depois de retornar ao país trazendo consigo alguns milhares de homens americanos, Aristide feriu o sentimento nacionalista que pauta quase todos os movimentos populares haitianos. Em 2000, uma reeleição controversa minou de uma vez por todas as bases que lhe confiaram os votos para seu primeiro mandato. Com a ineficiência e a falta de interesse na condução de processos de democratização, Aristide caiu em descrédito pelos Estados Unidos e as instituições estrangeiras; durante toda a década de 90, apoiou grandes proprietários de terras ligados ao capital estrangeiro, e se indispôs com as organizações campesinas – em uma das campanhas mais famosas, dezenas de trabalhadores rurais foram mortos em conflitos com a polícia durante protestos quanto às condições de trabalho em fazendas da Cointreau; Aristide se tornou também o presidente que fechou o Exército Nacional e deixou nas ruas 7 mil homens armados, sem colocação profissional no Estado e mal-preparados para tentar trabalho na iniciativa privada. Mas talvez o rompimento mais importante tenha acontecido com os grupos urbanos de esquerda, que um dia se unificaram no movimento Lavallas. Os crescentes conflitos dentro da Organisation Politique Lavalas culminaram num racha em torno da pessoa de Aristide; seus apoiadores pessoais fundaram o Fanmi Lavalas (“Família Lavalas”, numa clara referência aos laços de lealdade pessoal que ligava as pessoas deste grupo). Mais enfraquecida e com * “Aristide, Lavalas e a oposição, são todos lados de uma mesma calça descosturada”. 27 poucas experiências de governo e liderança política, o outro segmento manteve a sigla do partido e fundou a Organisation du Peuple em Lutte, um partido mais à esquerda que o próprio Lavalas original. Publicamente, tornaram-se diretores do Fanmi Lavalas pessoas envolvidas com o crime e representantes de uma pequena burguesia e proprietários de terras. Foi nesta realidade política muito mais fragmentada que o país voltou a convocar eleições, em maio de 2000. Sob o pretexto de convocar um escrutínio realmente justo e legítimo, o calendário teve de ser atrasado por quase um ano e Préval passou meses governando por decreto. Talvez pela inabilidade dos fóruns responsáveis pelo processo eleitoral, mas também pelo uso indevido da máquina pública, as evidências de falcatruas nesta eleição foram ainda maiores que de as de 1994. Houve relatos de fiscais de Aristide lacrando as urnas que seriam encaminhadas aos locais de votação. No dia das eleições, foram registrados verdadeiros massacres nos centros urbanos em que Aristide tinha menos força. A OEA se retirou da organização do pleito na metade do processo e os segmentos políticos anti-Lavalas boicotaram em massa o segundo turno. Ao final da apuração, um resultado nitidamente distorcido: Aristide venceu a eleição com 92% dos votos e o Lavalas assumiu a maioria esmagadora dos cargos no Senado e nas câmaras. Foi por este período que tornou-se mais freqüente no país o termo “chimérisation”. Ficaram conhecidos como “chiméres” jovens da periferia, armados e financiados pelos dirigentes do Lavalas, que passaram a atuar como uma espécie de guarda paralegal do presidente no início dos anos 90. Uma prática comum desde a época da ditadura, num país onde o Exército é historicamente fonte de instabilidade política. Aristide foi buscar apoio em suas raízes, a juventude sem perspectiva das favelas de grandes cidades. À época da eleição, a violência se intensificou. As memórias mais duras deste período 28 envolvem massacres de grupos oposicionistas inteiros e pessoas queimadas nas ruas. Novamente presidente, Aristide estendeu sua influência à Polícia Nacional Haitiana. Os altos cargos foram nomeados por Aristide e no baixo funcionalismo houve incentivo à corrupção. Esse investimento do governo numa polícia “política” faria a instituição cair em total desconfiança da população. A Polícia passa até hoje por reformas para combater o problema; na primeira triagem de oficiais envolvidos em corrupção e narcotráfico, feita em 2004, o efetivo total cairia de 7 para quase 2 mil homens. A primeira tentativa de golpe não tardou a acontecer, e com isso o novo governo entrou definitivamente em período de crise. Em dezembro de 2001, a polícia e os chiméres responderam com saques e mortes a uma tentativa de tomar o Palácio Nacional. No ano seguinte, um grupo armado baseado na República Dominicana tentou forçar a renúncia de Aristide. A resposta do governo ficava mais violenta: a pequena cidade de Pérnal, no país vizinho, foi destruída. Depois de se retirar da organização das eleições, a OEA voltou ao país para tentar costurar acordos políticos entre governo e oposição. Para facilitar o acordo, um grupo de empresários, organizações civis e intelectuais anti-Aristide fundou uma frente de negociações. O “Grupo 184”, sob a liderança do empresário haitiano Andre Apaid, em poucos meses já tinha mais de 400 membros e se transformara na mais organizada força de oposição ao governo – reunindo figuras que apenas meses antes eram favorecidas pelas políticas do governo Aristide. Em dezembro de 2003, a invasão de um congresso do Grupo e uma chacina num encontro universitário promovidas supostamente por facções armadas pró-governo descartaram todas as possibilidade de um acordo. Também o assassinato do líder oposicionista Amiot Metayer, chefe do grupo “Exército Canibal”, feito pelos chiméres em uma das operações de 29 ocupação de propriedades acabou com qualquer disposição dos adversários de Aristide. A movimentação mais intensa de uma rebeldia armada começou a 110 km da capital, na cidade de Gonaïves, no início de fevereiro de 2004. Já nos primeiros dias, pelo menos 40 pessoas morreram em investidas da oposição contra a polícia e grupos armados ligados ao presidente. No espaço de uma semana, os atentados tinham se estendido a doze cidades próximas. Mais dez dias depois, a segunda maior cidade do país, Cap-Haitien, caiu nas mãos dos rebeldes, que progressivamente recebiam a adesão de mais grupos de oposição. Tiveram peso essencial nas ações que visaram a saída de Aristide pequenas células armadas em cidades menores do interior, em geral formada por ex-militares. Aos poucos, alguns sindicatos e representações de camponeses aumentavam o tamanho e a velocidade dos ataques. Provavelmente nunca antes na história do Haiti trabalhadores agiram em conjunto com os patrões – estes maquinando os passos do Grupo 184, aqueles saqueando instalações de Polícia. *** Um jovem de baixa-estatura e auto proclamado chefe militar planeja uma expedição a Porto Príncipe. Se estivéssemos no século XIX, seria Napoleão. Em 2004, foi Guy Phillipe. Em 29 de fevereiro de 2004, seu aniversário de 36 anos, o exmilitar e ex-chefe de polícia chegou à capital no comando de cerca de 50 militares, que irromperam na cidade um dia depois da queda de Jean-Bertrand Aristide. A intenção foi mais de fazer festa na capital que de assumir o governo: Guy Phillipe desfilou pela Delmas, avenida que corta a cidade do litoral às montanhas, e foi aclamado no Campo de Marte, praça do 30 Palácio Nacional, fortemente guardado por 150 fuzileiros navais norte-americanos. Guy Phillipe exilou-se na República Dominicana durante os anos de Aristide, recebendo treinamento militar e chefiando à distância, conforme evidências conhecidas em todo o país, tráfico de drogas e armas no Haiti. Hoje, é candidato à presidência: entrou nos termos democráticos. Aposentou a farda e o distintivo e aparece publicamente em ternos e combinações tropicais, ostenta uma imensa aliança de ouro e um semblante infantil: é difícil acreditar que, pouco mais que um rapaz, ele já tenha tanta história. Sua atitude em 2004 acabou por consolidá-lo como o grande líder do levante que tirou Aristide do poder. Ele gosta de exibir conhecimentos de tática e história militares: descreve em detalhes e com muitas referências as Forças Armadas que devem ser re -estabelecidas em seu governo, conforme o previsto na Constituição. Sua figura é das mais controversas entre a ampla gama de candidatos à eleição presidencial. Por isso, é com freqüência convidado a participar de diálogos e convenções com autoridades, que tentam antever a reação dos candidatos numa possível derrota nas eleições. Nessas reuniões Guy Phillipe mostra algum trânsito, mas é irredutível em dizer que não vai aceitar um presidente que não prime pelo nacionalismo. “Marc Bazin [ex-ministro de Aristide e integrante do governo provisório], por exemplo, é um nacionalista?”. “Com o perdão das moças que estão na sala, o meu partido acha que Bazin é uma prostituta dos americanos”, ele responde, sem perder nenhuma compostura. *** 31 Uma delegação da Comunidade e Mercado Comum do Caribe - CARICOM – foi chamada ao país para conter os protestos e tentar acordos políticos. Aristide chegou a aceitar uma proposta de dividir o poder com um primeiro ministro de oposição, mas as pressões das forças rebeldes não cessavam. O Grupo 184 também não admitia acordo. A despeito dos esforços do CARICOM, os Estados Unidos e, mais veementemente, a França, pediram pela renúncia do presidente. Os americanos que o tinham trazido ao país dez anos antes, em 29 de fevereiro de 2004 o resgataram do Palácio Nacional em meio às agitações populares que já tomavam com mais força Porto Príncipe. Aristide assinou uma carta de renúncia e, conforme previsto na Constituição, o presidente da Suprema Corte Boniface Alexandre assumiu seu lugar. Sua primeira medida como presidente foi pedir assistência internacional, inclusive com tropas estrangeiras. Ele sabia que a crise política demoraria meses para ser aliviada. Com a queda de Aristide, deixaram o país também seus aliados mais importantes. Instituições e agências do governo que já funcionavam mal ficaram desertas e se agravou a insegurança nas cidades. Mesmo as chefias da Polícia Nacional deixaram os postos sem nenhum tipo de transição. Os edifícios públicos eram alvos de vandalismo ou ocupação. Os danos materiais deste período superaram US$ 100 milhões – em cidades, registremos, onde não havia muito o que destruir. Com o objetivo primeiro de garantir a segurança do novo governo, o Conselho de Segurança enviou por três meses ao Haiti uma força militar multilateral. Apenas alguns dias depois da renúncia, chegou ao país uma tropa liderada pelos Estados Unidos e composta por efetivos canadenses, chilenos e franceses. Neste período, as Nações Unidas se viram às voltas com o controle de uma situação de violência de cunho político, entre a oposição do presidente deposto e 32 partidários que permaneceram no país, misturada à criminalidade indiscriminada. Só em junho o Conselho de Segurança instituiria a Missão para a Estabilização do Haiti (Minustah), com um mandato mais completo, que tinha por objetivo não só estabelecer condições aceitáveis de segurança como preparar o país para uma transição de poder democrática de fato. Em duas semanas, a comunidade internacional articulou a vinda de um empresário haitiano, residente na Flórida, para assumir o governo de transição e tentar reorganizar um estrago nas instituições oficiais que ainda nem estava completamente dimensionado. No interior do país, muitas administrações locais estavam desocupadas e sem condições de prover informações ao governo central; na capital, uma situação de violência constante tomava conta dos bairros mais pobres, redutos do Lavalas, onde nem mesmo oficiais do governo conseguiam entrar. A deposição de Jean-Bertrand Aristide de 2004 provavelmente será seu último golpe. Em seu primeiro pronunciamento já em segurança no exílio, na África do Sul, Aristide alegou que deixou o poder “seqüestrado” pelo Exército americano. A comunidade internacional não reconheceu ilegitimidade no incidente. A verdade é que a carta de renúncia foi objeto da formulação de estrangeiros, especialmente Estados Unidos e a França, com a elite econômica local aparelhada no segmento chamado Grupo 184. Houve também, sem dúvida, participação popular no resultado da deposição, no papel menos influente, porém mais arriscado, de engrossar as estatísticas de violência e agitação civil. O mesmo potencial de união que Aristide inspirou em seu favor no início dos anos 90, em 2000 funcionou contra ele. A frente que lutou por sua oposição – o grupo 184, a comunidade internacional, camponeses e populares – sempre teve muitas 33 divergências de interesses entre si. Deposto o presidente, as diferenças voltaram à tona em novas disputas por poder. 34 PARTE II Antecedentes 35 36 Capítulo III Estrutura da sociedade haitiana “A respeito de qualquer assunto, o haitiano pensa uma coisa, diz outra e faz uma terceira” Gen. Augusto Heleno Ribeiro, ex-Force Commander, sobre a maronage hatiana O traço mais evidente da estrutura da sociedade haitiana é a segregação entre ricos e pobres. Na capital, cidade em que é mais acentuada a má distribuição de riqueza, a maior parte das paisagens é completamente uniforme: em geral, casas pequenas, antigas, com aparência de inacabadas. A condição das vias públicas – quase sem exceção, de pavimentação ruim e completamente escuras à noite – sugere a precariedade dos serviços públicos em geral. Sobrevoando o país, a primeira porção distinguível de terreno é o porto da capital, por onde o país mais pobre da América Latina escoa a produção agrícola que compõe sua escassa pauta de exportação – cacau, café, fumo e banana, essencialmente. A agricultura sustenta dois terços dos trabalhadores haitianos, que vivem no interior do país e distantes do poder central. Esses camponeses ocupam-se com culturas de subsistência e para o comércio local ou trabalham para proprietários de terras que destinam sua produção ao exterior. Embora mais longe das políticas públicas e muitas vezes mais pobres que os haitianos das zonas urbanas, eles vivem melhor por ter uma alimentação mais completa baseada no plantio e na coleta de frutas, principalmente. Também é na costa do oceano que estão localizados os bairros mais pobres de Porto Príncipe. A maior favela do país é identificável pelas lajes de lata das suas moradias. As estatísticas mais ponderadas 37 falam em 500 mil pessoas vivendo no bairro de Cité Soleil, mais ou menos um quinto de toda a população da capital. O governo não tem trânsito nessa área: nem a Polícia Nacional é capaz de fazer o policiamento do bairro, nem agentes sociais conseguem prestar serviços a essa população. A situação é semelhante em outros bairros mais deteriorados ao longo de toda a planície em frente ao mar, como Bel Air, Carrefour e Cité Militaire. Ainda que boa parte dos jovens tenha acesso à duvidosa educação oferecida pelo Estado, os haitianos mais pobres não falam o francês e por isso acabam isolados de muito do que acontece nos serviços de informação institucional do país – dos noticiários aos comunicados de políticas de governo. Estas pessoas são a maior parte dos 80% de pobres que compõe a população e têm acesso restrito à saúde, saneamento e água tratada; sua fonte de renda e é quase que exclusivamente o comércio informal. Nos anos 90, estes bairros viveram um arroubo de criminalidade. O tráfico de drogas e, mais recentemente, o seqüestro, viraram importantes fontes de renda nas regiões de periferia. As grandes cidades haitianas, em especial a capital, tornaram-se rota de exportação de drogas para os Estados Unidos e o Caribe: em 1990, o Haiti era responsável por 5% da droga que chegava aos Estados Unidos; hoje, essa proporção está na ordem dos 13%. Mas a maior movimentação do dinheiro haitiano (o gourde) nas áreas urbanas pobres é mesmo nos mercados de rua – as mesmas ruas que carecem de limpeza pública e são visivelmente insalubres. A grande maioria dos haitianos consegue os itens para sua sobrevivência no comércio informal, alimentado pelo contrabando de todo o tipo de mercadoria vindas principalmente da República Dominicana, da Flórida, do Panamá e da Jamaica. Nesses bairros é comercializada toda a sorte de itens: alimentos (legumes, frutas, carne, peixe), 38 vestuário, aparelhos eletrônicos, medicamentos, apetrechos de higiene pessoal. O pouco de importação registrada nas contas do governo que chega ao país via Porto Príncipe é distribuída pelos supermercados, armazéns e farmácias a que poucos haitianos têm acesso. O público destas lojas é basicamente a elite endinheirada, estrangeiros residentes no país – situação bastante freqüente, com a sucessão de missões internacionais no Haiti – ou a pequena classe média que consegue comprar alguns itens – víveres, leite ou remédios, por exemplo – no comércio legal. Esta pequena classe média se misturaria com facilidade aos pobres pelas condições também inadequadas em que vive, mas se concentra em regiões mais próximas do centro da cidade. É constituída pelos mais ou menos 30% de haitianos que conseguem colocação no mercado de trabalho formal – em geral como funcionários públicos ou empregados das poucas indústrias nacionais. Suas crianças são as freqüentadoras de escolas públicas e têm um acesso pouco melhor à informação, porque falam francês. Esse segmento, surgido primeiro no período da ditadura e depois ampliada com a criação de alguns postos de trabalho na gestão de Préval, têm influência importante nos rumos do país. Afastando-se um pouco mais do litoral, a cidade de Porto Príncipe começa a subir as montanhas próximas. Nessa área, que concentra os bairros mais afastados e de Pétionville, algumas residências começam a destoar da situação de pobreza completa. São as residências de empresários, políticos haitianos e diplomatas. Os ricos haitianos correspondem à mesma elite colonial mulata que assumiu as funções burocráticas de governo no pósindependência: aproveitadas nos primeiros governos simplesmente porque eram alfabetizadas, hoje formam uma classe pequena e extremamente ligada a capitais e cultura internacionais. Nas 39 montanhas se concentram também as opções de entretenimento da cidade – restaurantes, bares, boates – mas os haitianos ricos assistem à televisão americana ou francesa e passam os fins de semana em Miami ou na República Dominicana. Seus planos de assistência médica têm cobertura internacional e seus filhos estudam no exterior ou em escolas estrangeiras instaladas no país. *** O maior embaixador do Haiti no estrangeiro é Wycleaf Jean, haitiano do conjunto Fugees. É o modelo de sucesso para os jovens haitianos: músico, radicado nos Estados Unidos, integrante de uma banda americana, agora também com carreira solo. Juntou dinheiro e prestígio e hoje investe em programas sociais e de limpeza urbana no país. Ninguém dúvida que, em próximas eleições, ele apareça como candidato. Foi o lançamento de Wycleaf, nos anos 90, que desviou um pouco a atenção da típica compa, uma espécie de ritmo caribenho, com letras românticas em francês ou creole, para o hip hop americano. Na mesma época, também o rap francês ganhou popularidade entre os haitianos e a música estrangeira se instalou definitivamente nas rádios. Os artistas tradicionalmente haitianos são os que vendem nas ruas pintura e artesanato. Desenvolveu-se no país uma espécie de arte naif bastante particular, um tipo de pintura dos artistas quase sem formação e, portanto, sem muitas referências acadêmicas. Por isso mesmo, em alguns aspectos o naif se aproxima da arte infantil: as representações são claramente baseadas na iconografia popular: as pinturas retratam a vida nas ruas – as feiras livres, as multidões, as mulheres, símbolos religiosos. A arte naif costuma também ser agradável ao olhar, ainda mais no caso dos haitianos que sabem explorar as formas e cores tropicais. 40 Um pouco de artesanato pode ser encontrado na casa de qualquer haitiano. A maior parte da produção, porém, fica comprometida desde o tempo em que o Haiti não tem mais turistas, faz pelo menos cinqüenta anos. Quem movimenta a maior parte dessa economia tem sido os funcionários das missões (e esta reportagem). Com o tempo, a arte haitiana vai ganhando alguma projeção internacional. *** Enquanto na visão dos pobres os mulatos materializam a elite colonial francesa, a intervenção estrangeira e a perda de soberania, os pobres são qualificados pelos mulatos como paysans, pessoas próximas da categoria de homens primitivos quase incapazes de aprender. Nos últimos dez anos, essas diferenças foram radicalizadas pelo processo de “chimérisation”, que acabou criando uma sensação de criminalização da pobreza no país. A segregação atinge a tal ponto estes extremos que poucos haitianos de Porto Príncipe conhecem a cidade inteira. Parece paradoxal, mas a república de ex-escravos acabou se tornando um país racista, em que negros e mulatos não se misturam nem mesmo nas atividades do dia a dia. No pósindependência, mulatos chegaram a ter escravos no Haiti. Mesmo entre pares, a elite haitiana cultiva indisposições: é uma sociedade muito pequena e cheia de interligações cujos reais interesses poucos são capazes de desvendar. A dissimulação é uma característica haitiana, popularizada no país como maronage, a palavra creole para fugitivo. Assim como os escravos fugitivos que tinham de esconder suas tramas do senhorio, a impressão no Haiti hoje é que as diversas classes convivem, negociam e podem até fechar acordos, mas sempre na base da desconfiança. 41 Nada é mais difícil de adivinhar sobre um haitiano do que sua filiação política. Mas o fato é que a pequena elite econômica de hoje sempre esteve próxima do poder desde a colonização e acabou criando as condições para perpetuar seus privilégios no Haiti independente. Até hoje, o Estado ampara uma sociedade baseada em um regime quase mercantilista e cartorial: todas as atividades industriais ou de comércio exterior dependem de concessões do governo, o que acabou estabelecendo ao longo dos anos um mercado oligopolista e anômalo, onde tudo que é comercializado é contrabando ou produto de algum monopólio industrial ou importador. No âmbito da legislação, as relações políticas e econômicas são inspiradas por um forte formalismo jurídico, que acaba preservando regulamentações muito arcaicas de sucessão e propriedade. Até hoje, por exemplo, o direito à posse de terras é restritivo aos não-haitianos, em razão de um apêndice de legislação da época da independência que tentava evitar o retorno dos senhores de terras franceses ao país. A ortodoxia do mercado e inúmeras limitações da legislação criam uma dificuldade de incorporar os haitianos de melhor formação. Tanto os profissionais formados na Universidade do Estado como os que vão estudar no exterior são desestimulados a voltar ao seu país. Em primeiro lugar, porque não foi estabelecido ainda um mercado de concorrência; em segundo, porque o arcabouço jurídico imenso e fraco não impede que ao voltarem eles sejam sujeitos à extorsão; mas, em terceiro lugar e principalmente, pela resistência do Estado em aceitar a dupla nacionalidade. Ainda preso a uma determinação do pós-independência, quando os sentimentos nacionalistas estavam à flor da pele, o Haiti não reconhece como haitianos qualquer cidadão que tenha “renunciado a seu país de origem”, ou seja, tenha se naturalizado em outro país. Hoje, são 2 milhões de haitianos – 20% de toda a população. Para os jovens instruídos que preferem ficar no país, 42 uma das únicas alternativas é partir para a carreira pública. O que poderia gerar a profissionalização dos serviços do Estado, acaba fazendo da política nada mais que um meio de vida no Haiti, sem nenhum comprometimento com as demandas do país. *** Goddony é “haitian-american”. Deixou o Haiti em 1989, quando tinha 12 anos e a brutalidade do período pós-ditatorial começava a ameaçar as classes médias. Seus pais, que já trabalhavam nos Estados Unidos e remetiam dinheiro para a família no Haiti, trouxeram então os três filhos para morar em New Jersey. “Eu vivi a primeira metade da minha vida no Haiti e grande parte da minha identidade cultural está ligada à cultura haitiana, mas eu também reconheço e assumo a herança americana que também tenho”. Seu único retorno ao Haiti, em 1996, foi suficiente para fazê-lo desistir definitivamente de voltar. “Minha família foi vender umas terras que tinha no interior, mas tinha pessoas morando lá que quase mataram os meus pais”. A família voltou para os Estados Unidos antes do tempo. As terras tiveram de ficar abandonadas. “Sinto falta de muita coisa: da comida, da vizinhança que era muito boa... da música, das praias bonitas, da minha família que ficou lá. Mas as coisas não melhoraram, na verdade só ficaram piores”. Os amigos com quem mantém contato já passaram por assaltos, seqüestros e ameaças. Nos Estados Unidos, Goddonny estudou literatura e poesia e hoje é escritor e dá aulas em faculdade. “Se eu não tivesse saído do Haiti, nunca teria o sucesso que tenho hoje”. Os amigos que deixou no Haiti tiveram muita dificuldade em arrumar ocupações, apesar da boa educação que receberam nos colégios 43 particulares onde Goddony também estudou. Depois de adultos, a maioria deles mudou para os Estados Unidos ou para a Europa. No ano que vem, Goddony vai casar. Sua família será americana. “Pobreza é o maior problema do Haiti. E eu não acho que os políticos vão resolver – mesmo que eles sejam bem intencionados, são corrompidos no poder Teria medo de criar minha família no Haiti, depois da minha péssima experiência em 1996”. *** Desde a independência, as agremiações e lutas políticas no Haiti têm surgido em torno dessas classes sociais e da própria divisão geográfica do país, já que é difícil o acesso a certas cidades do interior e mesmo dentro da capital as fronteiras entre os bairros são muito distintas. Um terceiro traço também se faz decisivo para explicar as relações sociais que se estabelecem entre a população: a religiosidade, que por isso sempre teve forte influência nas decisões políticas. Não só o Lavalas, movimento popular haitiano mais importante das últimas décadas, nasceu ligado à atuação da Igreja Católica em determinados bairros pobres, mas também o maior marco da Revolução Haitiana, como ficou conhecido o conjunto de revoltas de escravos que levaria à independência, é uma cerimônia vodu realizada em 1971. Foi numa grande festa do Bwa Kayiman, ritual reproduzido até hoje, que os escravos se comprometeram frente a um espírito poderoso, recebido por um dos maiores hougans da época na luta pela liberdade. Ainda hoje, no interior e nas classes mais pobres, as comunidades vodu são determinantes para a construção de base de apoio dos haitianos que se aventuram na política. Nas cidades grandes, 44 com freqüência os hougans mais prestigiados são também chefes de gangues ou criminosos temidos e respeitados. O debate político chega aos pobres e às cidades do interior em grande medida no seio dessas comunidades, ou sociedades vodu. Ainda assim, o vodu permanece impenetrável para as elites estrangeira e haitiana que atuam na esfera da high politics do país, no plano dos partidos políticos e das negociações para a definição do governo central. Elas se mantém tão avessas a esse contado talvez pela sua configuração extremamente antiga e peculiar, que remonta às fugas de escravos durante os séculos XVII e XVIII. Grupos fugidos do trabalho nos latifúndios e fundavam micro-sociedades em meio à floresta que tinham seitas espirituais à semelhança das práticas animistas que eles próprios e seus antepassados trouxeram na África. A articulação entre as diversas sociedades vodu que foram se situando no interior do país ao longo dos anos foi que pôs em curso toda a sorte de ataques aos senhores e colonos – envenenamentos, saques, mortes – que desencadeariam o processo de independência. Nos anos 1960, Papa Doc exerceria sua influência sob essas mesmas sociedades para se sustentar no poder por mais de 20 anos. Embora o vodu haitiano preserve de forma surpreendente a essência da religião africana – o vodu hoje talvez seja mais presente no Haiti que no seu próprio continente de origem - , ele se caracteriza pela incorporação de elementos da religião católica. Pra poder continuar a praticar suas crenças nas fazendas coloniais, os escravos tiveram de admitir algum sincretismo – traçar correspondências entre santos e orixás, por exemplo – e realizar adaptações na freqüência e na exposição dos cultos, que passaram a acontecer em reservado nos templos vodu ou outros ambientes próprios. No Haiti moderno, a Igreja Católica e o vodu convivem normalmente. Na verdade, a maioria dos haitianos freqüenta a Igreja, muito popularizada pelos trabalhos sociais da Teologia da libertação 45 nos anos 70 e 80, e também as sociedades vodu. O próprio Aristide valeu-se da influência de fiéis em sociedades vodu da periferia da capital e em outros lugares do país para compor sua base de apoio. Em 2003, instituiu o vodu como religião nacional; ele costumava dizer que 95% da população Haitiana é católica, e 100% praticantes do vodu. Hoje, uma terceira força religiosa ganha impulso no país; as Igrejas Protestantes acabaram por afastar os jovens de grandes cidades da prática do vodu – uma realidade ainda muito próxima para a geração de seus pais. Ao contrário dos católicos, os cristãos evangélicos rejeitam o vodu e toda sua desenvoltura no mundo dos mortos. A instrução dos pastores evangélicos para os fiéis que cruzarem com cerimônias vodu, é orar muito intensamente para contar a Deus que naquele lugar se aprisiona almas. O protestantismo é relativamente novo no país e ainda não tem muita influência política no conjunto da sociedade; mesmo assim, representantes da Igreja evangélica concorrerão nas eleições de 2005 a cargos parlamentares e à presidência. Ainda que o acesso às sociedades vodu seja quase impossível aos não-haitianos, é aparente a força com que os conceitos vodu fazem parte da cultura e da consciência do país. Provavelmente qualquer haitiano de Porto Príncipe conhece, ou pelo menos conhece quem conheça, alguma história de zumbificação. O ritual haitiano de morte e renascença na forma de zumbi, um indivíduo sem alma e sem vontades, é talvez um dos fenômenos etnobotânicos que mais despertou o interesse de pesquisadores em todo o mundo. Para os haitianos, a idéia de que se poder ter a alma roubada é terrível; os hatianos de Jeremy e Artibonite, duas cidades do interior famosas pelo poder de seus hougans, são recebidos em outras partes do país com uma hospitalidade inspirada por temor e respeito. 46 CAPÍTULO IV Tradição política “O Haiti é um país de maus perdedores” Jean-Baptiste Reynold Leroy, historiador e Ministro-Conselheiro da Embaixada do Haiti no Brasil Sempre que se falar de política no Haiti, há de se resgatar sua história de Independência. É a identidade nacional dos haitianos, o discurso de mais apelo em todos os segmentos da sociedade e, sem dúvida, um momento altivo na história do continente e do mundo. De todo os processos de descolonização ao longo dos séculos XIX e XX, talvez a do Haiti tenha sido o mais legítimo: a violenta revolta de escravos que conquista a liberdade, expulsa os colonos opressores e constrói sua própria república negra. A despeito dos motivos que impediram o desenvolvimento político e social nos dois séculos seguintes, o padrão se repete durante toda a história. No contexto do colonialismo, os haitianos desenvolveram uma fórmula de chegada ao poder e até hoje não se libertaram dela; o padrão de comportamento de quem ascende ao governo é eliminar completamente a oposição e usar de todos os meios para se manter no poder. À época, ele fazia sentido: antes que pelo poder, a luta era por liberdades e direitos individuais. Nada mais justificável que expulsar os senhores e recorrer à violência caso os franceses voltassem, como de fato voltaram, e com o Exército de Napoleão, para buscar suas antigas possessões. Mas o modelo “ascender ao poder, centralizar o governo e expulsar a oposição” é menos eficiente se aplicado a uma república de homens livres com aspirações democráticas. Após um século de golpes de Estado sucessivos e 30 anos de uma ditadura dinástica, o Haiti tentou corrigir sua tradição autoritária 47 mudando o sistema político para o parlamentarismo clássico: o presidente escolhe seu primeiro ministro entre o partido que tem a maioria no Congresso. Mas a legislação é imperfeita e nunca chegou a produzir efeito: a lei sequer qualifica a maioria necessária para eleger o chefe de governo. Como os partidos são muito fragmentados, dificilmente há maioria nas câmaras e, novamente há brecha para o presidente exercer arbitrariedades. O curioso é que desde o início da República o Haiti tem uma divisão política descentralizada. Respondendo ao governo central, estão dez províncias de considerável autonomia e 140 municipalidades divididas em mais de 8 mil administrações regionais, eleitas de forma direta pelos residentes de uma porção geográfica bastante restrita. Esta estrutura fundamental a princípio satisfaz os requisitos para o estabelecimento de uma democracia representativa, mas isso nunca chegou a acontecer no âmbito nacional. Pelo contrário, o grau de abstenção nas eleições para a administração geral é muito maior e nenhum presidente já chegou a defender na realidade as demandas das populações, como acontece menos raramente nas municipalidades. Paradoxalmente, a política nacional é tão ou mais clientelista que a política praticada no domínio local. A fragilidade dos partidos políticos é um dos fatores que permite o continuísmo destas formulações autoritárias de governo. Ainda no momento da eleição, um partido político sem bases de fundação significativas fica muito centrado em um só indivíduo, o que torna mais provável que o governo resvale no autoritarismo. Essa condição dos partidos também é a maior responsável pela total ausência de coalizões, em nome de qualquer tipo de governabilidade. Uma cultura partidária individualista raramente vai comportar acordos e bancadas entre grupos diferentes. Para completar a gravidade do problema, não há regulação do Estado na ordenação dos partidos. Embora exista um mecanismo 48 público de financiamento, os recursos são escassos e a maioria deles depende de fontes externas. Num país de uma pequena burguesia é corrupta e a criminalidade é uma das maiores fontes de renda, isso acaba abrindo espaço para alianças entre o crime e a política. Há resistências de todos os lados quando se fala em qualquer tipo de divisão do poder. Praticamente inexiste o conceito de alianças partidárias, mesmo porque é difícil encontrar afinidades estruturais quando os partidos políticos nada mais são do que agremiações em torno de uma figura pública em especial. Aparentemente os haitianos herdaram também dos pais da Independência a aptidão para a radicalização. As transições presidenciais no Haiti – deposições, renúncias e até o processo eleitoral – são sempre traumáticas e agressivas. No contexto histórico da exploração colonial, a atitude fazia mais sentido; na República Livre, é inaceitável. Não só a oposição reage à perda de poder com atentados ao Estado estabelecido, mas também o Estado cria mecanismos igualmente violentos para reprimi-los – seja via forças nacionais previstas na Constituição, seja na criação de grupos paralegais como os tonton macoutes de Duvalier ou os chiméres de Aristide. Desde que a antiga força de ex-escravos, espelhada no modelo militar da Revolução Francesa, conteve o Exército de Napoleão Bonaparte e proclamou a independência do Haiti, as Forças Armadas se tornaram uma instituição importantíssima na simbologia e no imaginário nacionalistas. Embora na história mais recente elas tenham funcionado mais como fonte de instabilidade que como sustentáculo do Estado, um Exército Nacional forte ainda é muito prezado pela população. Mesmo tendo construído uma péssima fama no regime Duvalier, as Forças Armadas permanecem como alegoria da soberania nacional haitiana. Sua dissolução em 1994 golpeou a auto-estima dos haitianos; na interpretação corrente da situação, as tropas da ONU 49 permanecem com tal constância no país porque o Haiti não tem os seus próprios soldados. *** Apesar de o atual homem forte do primeiro-ministro ser uma mulher, a ministra da cultura Magali Comeau Denis, a participação do sexo feminino na política é muito pouca. Dos 52 candidatos que se apresentaram ao Conselho Eleitoral, apenas uma era mulher. * A maior parte dos empregados formais – menos de 30% do total de ocupados – é homem, mas nas famílias pobres a mulher é responsável pela maior parte dos rendimentos. Nas feiras livres, predominam as mulheres fazendo comércio. Dizem que elas são melhores com os regateadores. * Uma propaganda no centro da cidade, do que pareceu testes de gravidez ou clínicas de aborto, mostrava uma mulher chorando ao telefone. Em creóle, o outdoor anunciava. “Acidente? Estupro? Tem solução. Ligue para nós”. *** Os haitianos estão acostumados a ver tropas estrangeiras circulando nas ruas, interferindo em qualquer momento de violência ou de polarização extrema. A primeira tentativa estrangeira de promover algum equilíbrio na política haitiana é de 1915, na era do Big Stick americano. O Exército dos Estados Unidos ocupou o país por dezenove anos, reformulou as velhas Forças Armadas de origem francesa, criou novas instituições e instalou no país uma espécie de democracia que ruiu alguns anos depois. Voltariam com o mesmo 50 intuito missões francesas, canadenses, da OEA e, nos anos 90, das Nações Unidas. Sobre a presença constante da comunidade internacional no país, as opiniões se dividem e se confundem. Apenas a rejeição aos Estados Unidos, encarnação do imperialismo, e à França, encarnação do colonialismo, são unanimidades nacionais. Há quem condene as missões da ONU por identificá-la com os Estados Unidos e há quem as considere legítimas, já que o Haiti é signatário da Xarta das Nações Unidas. As tropas são muito bem recebidas na maior parte do país, mas esporadicamente surgem críticas em relação à sua conduta ou ao papel da ONU no âmbito das high politics. O consenso é que, até agora, as intervenções estrangeiras no Haiti fracassaram. Durante os anos 90, a comunidade internacional enviou ao país toda a espécie de ajuda – investimento direto, missões de paz, comissões diplomáticas, trabalhos humanitários –, mas as tentativas até agora trouxeram poucos melhoramentos permanentes e nenhuma mudança estrutural. Por esse motivo, a comunidade internacional continua voltando ao país a cada nova deflagração de crise que se anuncia. Mas é tão explícita e tão vital a influência estrangeira em todas as atribuições do Estado – da organização de eleições à segurança, do acesso à saúde à realização da Justiça – que a assistência internacional já foi assimilada até pelos grupos mais nacionalistas. As embaixadas estrangeiras recebem enxurradas de cartas de prefeituras, associações beneficentes e organismos da sociedade civil pedindo doações e patrocínios. Mesmo entre os movimentos de esquerda, são poucos os que rejeitam a ajuda estrangeira. Os mais críticos fazem questão de frisar que as missões e trabalhos estrangeiros no país estão ligados à incapacidade da classe política haitiana em administrar seus próprios problemas. 51 Se os haitianos estão perdendo a fé na comunidade internacional após tantos insucessos, esta também tem cobranças a fazer. A prática política haitiana nos termos em que é feita – os excluídos do poder armam uma oposição nociva, a que o governo estabelecido responde com ainda mais agressividade – está se tornando inaceitável para os credores e observadores estrangeiros. O alto comissariado da ONU, a secretária de Estado dos Estados Unidos Condoleeza Rice e o corpo técnico da OEA têm enviado mensagens nesse sentido: eles depositam uma quantidade muito grande de recursos e esforços para o país continuar o mesmo foco de instabilidade preocupante. Além do emprego de recursos humanos em situações de risco, nas quais o staff militar e civil está sujeito a baixas, os valores ainda são mais altos em cifras: nos anos 90, foram US$ 2 bilhões; hoje, são US$ 400 milhões por ano só dos Estados Unidos e US$ 200 milhões do Canadá, regularmente. Recentemente, também o Brasil doou US$ 1 milhão para o processo eleitoral, além de manter uma carteira de projetos de mais de US$1,2 milhão para o incentivo à economia e a formação profissional, soma alta para um país que tem mais de 20 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. A insistência em conquistar a estabilidade política é também requisito para a inserção do Haiti numa economia de mercado de fato. Os negócios no Haiti são avaliados pelos analistas de risco internacional como os de uma economia de pós-guerra, completamente devastada. A anomalia do comércio haitiano, em que a maior circulação de recursos acontece com o tráfico de mercadorias contrabandeadas, não avaliza a mínima segurança para investimentos que poderiam gerar renda e melhorar a vida da população. Recomendações do Banco Mundial e do FMI às gestões de Préval e Aristide, como a privatização de alguns serviços públicos e setores da economia essenciais, não foram atendidas. Reformas mais profundas e a inauguração de uma linha de política econômica sequer são 52 possíveis quando os quadros de governo não permanecem por pelo menos quatro anos no poder. Nos momentos de crise, o Banco Mundial, a União Européia e os Estados Unidos chegaram a suspender lançamentos da ordem de US$ 500 milhões na frágil economia haitiana . *** Todo país precisa de suas esquerdas. É uma espécie de equilíbrio natural do espectro político. O estereótipo discurso, barba e folhetos com palavras de ordem também parecem ter fundamento universal. “O Capital” em destaque na estante, cartazes de diversos movimentos populares nacionais e estrangeiros, uma bandeira do MST. “Aqui não funciona assim”. A viatura da ONU e a segurança foram barradas na porta da sede do Movimento, na entrada da favela de Bel Air. Mas a casa do diretor é no bairro elitizado de Pétionville. Didier Dominique há algum tempo já não é mais um jovem militante do movimento Batay Ourvriye (“Batalha dos operários”), uma espécie de central sindical do país que reúne a representação das poucas classes profissionais organizadas no Haiti, estudantes e camponeses. Além do futebol, ele admira as esquerdas do Brasil. “A Minustah é uma realidade de ocupação. Não sei como Lula, Néstor Kirchner e Tabare Vazquez são coniventes com ela”. O movimento não admite intervenção militar estrangeira: a ajuda internacional de que o Haiti precisa é humanitária, como a de Cuba, que envia todos os anos uma equipe de médicos para o país. Ou de cooperação econômica, como é o caso de diversos projetos apoiados pelo governo de Taiwan. 53 Inconformado, Didier Dominique remeteu uma carta a Lula, falando de sua decepção. Não teve resposta, ainda. *** Apesar de todas as ações que vêm sendo realizadas para a convocação de eleições justas e legítimas em 2005, considera-se a possibilidade de ver perspectivas de estabilidade frustradas. Certamente, a julgar pelo número de partidos e candidatos que concorrem às eleições em todos os níveis, um presidente dificilmente terá apoio da maioria no parlamento, o que já dificulta a aprovação de qualquer mudança importante. Mas o maior receio é a explosão de novo conflito antes mesmo do novo governo ser empossado. O cenário mais difícil pintado pela imprensa é se no segundo turno se enfrentarem representantes do que hoje se chama imprecisamente de Grupo 184 (basicamente qualquer antagonista convicto de Aristide) e o Lavalas. Nessa hipótese, volta-se ao ano passado. Muitos candidatos adotam publicamente a postura de nunca mais deixar o Lavalas voltar ao poder, e isso pode ser um desastre para os empreendimentos de instituir as regras democráticas na política haitiana. Quanto aos anseios populares, os analistas preferem acreditar na politização de um povo que erigiu sua própria república. Mas nenhum candidato ou movimento despertou até agora maiores manifestações de apoio ou simpatia, o que atenta para a possibilidade de que o haitiano simplesmente tenha parado de se interessar por política. Nos anos da ditadura Duvalier, houve momentos de luta nacional por eleições diretas e redemocratização, como conquista fundamental para o respeito aos direitos do homem - é verdade, não estava tão difundida nos anos 60, 70 e 80 a idéia de Direitos Humanos indissociáveis nos planos político, civil e social. Dessa época para cá, 54 os hatianos passaram a votar – é verdade, não com a regularidade devida – , conquistaram uma relativa gama de liberdades individuais – de expressão, de circulação - , mas evoluíram muito pouco em termos de condições sociais. A luta ficou pela metade. 55 56 PARTE III A missão 57 58 CAPÍTULO V A ONU no contexto do Haiti “Esse conjunto de circunstâncias contribuiu para simultaneamente expandir a agenda das Nações Unidas e inflar as expectativas com relação ao seu papel, sem que a isso correspondesse um aumento proporcional de sua capacidade de resolução” José Augusto Guilhon de Albuquerque Nos últimos quinze anos, a presença da comunidade internacional no Haiti deu-se principalmente por meio dos mandatos das Nações Unidas. Quatro missões mantiveram pessoal da ONU no país praticamente de forma ininterrupta entre 1993 e 2000. O Projeto das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) também está lá há mais de 20 anos e as principais organizações do terceiro setor parceiras têm representação na capital e nas cidades maiores. E mesmo assim, o Haiti não é um exemplo de sucesso do socorro internacional. Os problemas estruturais que afligem as condições sociais do país continuam os mesmos e a cada dois ou três anos as comissões diplomáticas voltam ao país para costurar acordos em torno de nova crise política. O fracasso das missões de paz e desenvolvimento é atribuído à múltiplas causas, algumas ligadas à inadequação das missões, outras à incompetência da classe política nacional. Quando Aristide retomou o poder em eleições fraudulentas, os observadores domésticos e estrangeiros entraram em estado de alerta: a crise parecia certa. Quando por fim a tensão evoluiu para novo conflito, em proporções ampliadas, estes atores concordaram em empregar esforços para criar um plano de intervenção melhorado, que trouxesse o equilíbrio à 59 situação a prazos mais longos. Para isso, teria de ser desenvolvido um programa tanto para a contenção da situação de violência civil que se estabeleceu no país quanto para a cooperação do Estado em evitar crises futuras; em linhas gerais, enviar uma força militar bem orientada e processar uma transição de governo segura e que se comprometesse com a manutenção das regras democráticas. Foi com este mote que se iniciaram, um pouco atrasadas, as negociações no Conselho de Segurança para a crise no Haiti, quando Aristide era ainda presidente e OEA e Caricom já articulavam soluções para o impasse político. O primeiro modelo de intervenção debatido no Conselho de Segurança foi uma proposta do Caricom que abarcava o envio de tropas militares e a formação de um governo de transição tripartite, com representantes do Lavalas, do Grupo 184 e de outras forças de oposição. Com essa hipótese a delegação já enviada ao país trabalhou por todo o tempo. Nos dias que antecederam a renúncia do presidente, o plano começou a ser modificado por uma manobra das delegações dos Estados Unidos e da França, principalmente. Articulou-se a vinda de um funcionário de carreira das Nações Unidas, afastado do Haiti havia mais de 30 anos, para assumir o cargo de primeiro ministro e liderar o governo de transição. Gerard Latortue foi recebido com hesitação por sua equipe de governo. O Caricom, criador e entusiasta do projeto de transição anterior, se retirou dos fóruns de trabalho para a situação do Haiti. Dias depois, anuladas as perspectivas de uma divisão de poder, o ex-presidente Aristide anunciaria “um golpe” dos Estados Unidos, França e das Nações Unidas. Uma oportunidade para a conciliação de forças opositoras foi desperdiçada pela via escolhida para a formação do governo de transição. Mas para a redação do mandato da missão de paz, o Conselho de Segurança foi mais judicioso com a orientação da ONU de tentar escapar aos modelos que fracassaram nos anos anteriores. 60 Em fevereiro de 2004, depois de enviar uma força multilateral para conter os primeiros dias de agitação, o Conselho aprovou o desenho original da Minustah, que chegaria ao país no dia 1º de junho. A primeira marca especial da Minustah é ter seus postos de liderança ocupados por representantes latino-americanos: a chefia da missão foi entregue a um embaixador chileno e o Brasil ficou com o comando das tropas militares. Entre os 16 países contribuintes com o pessoal militar, além do Brasil e do Chile, estão a Argentina, a Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai compondo mais ou menos a metade do efetivo que trabalha hoje no Haiti. Essa composição é resultado de uma tendência de se ampliar a participação da países periféricos nas atividades das Nações Unidas, mas também denota uma preocupação em se aproveitar de proximidades culturais para o sucesso da missão. A supressão do exército americano, presença constante durante a década passada, acabou também por dissociar a idéia da missão de paz com alguma espécie de imperialismo. Certamente, os grupos políticos e a população haitiana recebem melhor esta liderança e estes soldados do que os americanos e franceses; porém, também conhecem e criticam a política externa renovada do Brasil, que pleiteia uma influência maior no continente e uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Mas a identificação cultural realmente existe e ajuda. Com freqüência os brasileiros vêem jornalistas e cientistas haitianos se referirem ao Brasil, com toda a sorte de pobreza e problemas sociais que temos, como uma espécie de primo rico. *** A Réseau Nacional de Droits Humans, a mais importante rede de ONGs haitianas, recebeu uma séria denúncia da cidade de Gonaïve contra a Minustah, logo na fase de instalação das tropas. Soldados argentinos, responsáveis pelo distrito onde fica a cidade, 61 estariam estuprando mulheres e crianças da região nas saídas das escolas públicas. O assistente social Viléz Alizzar, da RNDDH foi pessoalmente apurar as denúncias. “Nada foi provado e admitiu-se na cidade que tudo não passou de rumores”. Nem por isso, a avaliação da ONG foi menos preocupante. “Se a cidade criou e acreditou plenamente nessa história, é porque não se sentem seguros mesmo com a presença da Minustah”. *** De qualquer forma, a liderança confiada pelo Conselho às lideranças latino-americanas acabou por funcionar também como uma espécie de terapia para todo continente. Ao longo da alternância de convulsões políticas no Haiti, os latino-americanos passaram a flexibilizar sua rejeição ao papel de tropas estrangeiras em crises domésticas. Escaldados como são em matéria de intervenção estrangeira, principalmente os países do Caribe, eles resistiam muito a qualquer resolução que lançasse mão do capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, o dispositivo que dá ao Conselho de Segurança a prerrogativa do uso da força militar dentro das fronteiras de um país em situação de alerta internacional. O próprio Brasil mudou de posição a respeito. Em 1993, a delegação provisória do Brasil no CS se absteve na votação do primeiro projeto de resolução que enviava forças da ONU para o Haiti. Pela experiência histórica do continente, o argumento do pósGuerra Fria de utilizar a ONU para promover a democracia no mundo poderia funcionar como carta branca para uma série de intervenções norte-americanas, como a ocorrida do Panamá poucos anos antes. A mesma tese pautou a atuação dos brasileiros em 1994, empenhados em limitar as ações do Capítulo 7, justamente por defender que esse é um mecanismo permissivo do imperialismo; os cinco países com poder de veto no fórum – Estados Unidos, França, Reino Unido, 62 China e Rússia - nunca verão o capítulo 7 aplicados a seus próprios distúrbios domésticos. Pois em 2004 o Brasil e outras diplomacias influentes da América Latina não só endossaram o projeto da Minustah como também se dispuseram a integrá-la. Mas também o teor do mandato tem diferenças fundamentais em relação a missões de paz anteriores: atuando nas frentes de pacificar a situação de violência, criar melhores condições de direitos humanos e fundar um processo político democrático, a missão mantém hoje perto de 10 mil pessoas em todo o país, a maior estrutura que a ONU já bancou no Haiti até agora. O mandato atual consiste em um contingente de cerca de 7 500 militares para conter as atividades violentas, um corpo de 1600 policiais civis para treinar e colaborar com a Polícia Nacional na repressão a crimes e mais de 500 civis prestando apoio à organização das eleições e envolvidos em trabalhos sociais e políticos de base. Os quadros ainda não estão completos, mas a missão hoje opera com a maior força desde a sua instalação. O custo de manutenção desses quadros por seis meses consome da ONU por volta de US$ 500 milhões, orçamento relativamente alto em relação aos dispêndios em missões anteriores. A Minustah tenta também corrigir um dos maiores problemas das missões antigas: seu tempo de duração. Durante a década de 90 a ONU montou missões no país por um ou dois anos, até que os antagonismos fossem suavizados, mas logo os grupos se reorganizavam e meses depois o país voltava a nova crise. O mandato inicial, que previa uma resolução de só seis meses, foi sucessivamente prorrogado para até fevereiro de 2006. A extensão desse prazo também é tida como certa: o chefe da missão, Embaixador Juan Gabriel Valdéz, tem dito publicamente que a Minustah precisa permanecer no Haiti por pelo menos dez anos. A orientação de tentar processar mudanças sustentáveis no Haiti está presente principalmente nos trabalhos da porção civil dos 63 funcionários, sob coordenação direta da Secretaria Geral da ONU. Nesse sentido, o próprio staff da ONU e entidades parceiras têm proposto planos de diálogo nacional e pactos de governabilidade entre os candidatos e partidos. Iniciada a temporada de campanha eleitoral, o Departamento de Assuntos Políticos prepara uma cartilha com pontos nevrálgicos para investidores internacionais, para incentivar o debate de projetos políticos em nível mais profundo. Neste sentido, as Nações Unidas tentam usar a expertise internacional para estimular alianças e coalizões políticas, que não refletem com naturalidade a realidade de um país de tradição política de polarização e autoritarismo, mas são pressupostos para a democracia. Estes programas demandam uma aplicação continuada para que realmente tenham efeito em larga escala e de forma permanente; uma instituição americana convidada para um trabalho de fortalecimento de partidos políticos, o National Democratic Institute, diagnosticou a situação como muito difícil. A disputa eleitoral sequer chegou a redutos do interior do país, assim como a noção de democracia. *** Como bons militares, os antigos integrantes das extintas Forças Armadas do Haiti precisavam de um Forte depois da revolução de 2004. Nada mais apropriado que a casa do presidente deposto. Dezenas de militares permaneceram na residência de Aristide até dezembro de 2004, sonhando a reestruturação do Exército Nacional e definindo termos de negociação com o novo governo. A maior parte deles era originária do norte do país, onde sobreviveram por dez anos fazendo a segurança particular das poucas empresas e grandes propriedades estabelecidas lá, em troca de pouco dinheiro, ou a segurança pública de pequenas cidades, muitas vezes em troca de comida. 64 No dia 15 de dezembro de 2004, as autoridades militares receberam em suas fardas antigas o alto comando das tropas da Minustah e o primeiro escalão do governo, para dar início às negociações de um acordo. Eles aceitaram a desocupação, em troca do compromisso do governo de Latortue com uma ajuda de custo mensal, enquanto não são aproveitados em outras funções no governo. Pela tradição das Forças Armadas do Haiti, os soldados não entregam seus armamentos nas mãos dos opositores. A Minustah teve de providenciar caixas de madeira para recolher as armas sem tocá-las. *** Expedientes bem-sucedidos em diversas missões recentes na África e na Ásia também são aproveitados e aplicados pela Minustah no Haiti, como o programa de combate à AIDS e outros planos de proteção aos direitos humanos e à Justiça. Entre eles, um dos mais controversos é o Programa de Desmobilização, Desarmamento e Reinserção (DDR). Sua linha principal é a entrega voluntária de armas, mediante a inscrição num cadastro que aproxima o cidadão de oportunidades de trabalho e de participação em programas de assistência do governo e da própria ONU. Os progressos foram poucos até agora. Numa das últimas operações de busca em Bel Air, quando a situação do bairro já era considerada sob controle, as tropas encontraram duas granadas 81 mm em uma casa de família. Não há como esperar que uma comunidade que tem parte de seus rendimentos vindos do crime vá entregar suas armas, ainda mais porque o programa de reinserção é bastante comprometido em razão das próprias dificuldades econômicas do país: não há emprego para todos. Se o desarmamento voluntário é inviável, a apreensão de armas 65 em operações militares é também difícil, porque as armas em uso no país são pequenas e facilmente ocultas. O DDR é considerado o maior desafio da Minustah, já que as armas são abundantes na segurança particular e em residências nas zonas mais pobres das cidades; estima-se que 25 mil haitianos tenham armas em casa. Mas a concepção do programa é combatida veementemente por várias organizações e institutos de diretos humanos haitianos. O porte de armas é permitido no Haiti, por isso as operações militares só podem apreender as armas sem licença. Muitos bandidos até têm armamentos legais, já que a maior parte das licenças é bastante antiga. A maior relutância das instituições é quanto ao incentivo à impunidade; os haitianos não poderiam tolerar algum tipo de anistia da ONU a bandidos e gangues que se desarmarem voluntariamente. O programa informa que ainda não recebeu armas entregues por pessoas procuradas pela justiça (o que denota outra dificuldade: o DDR não atinge as armas realmente usadas em atividade ilegais), mas mesmo assim podem integrar o programa pessoas que já cometeram transgressões de que a polícia não tem conhecimento. Distribuir emprego ou ajuda a essas pessoas, segundo as ONGs, seria recompensar o crime. O exemplo do DDR sustenta uma tese corrente na imprensa e na sociedade civil haitianas de que o modelo de atuação da Minustah não é apropriado para a realidade do país. A ONU não estaria preparada para lidar com uma situação em que as divergências políticas não são representadas por grupos perfeitamente caracterizados – no Haiti, os pró-governo e a oposição podem ser conceitos bem nebulosos. O entendimento de “missão de paz” está correntemente ligado a uma realidade em que dois ou mais grupos antagônicos são dissuadidos de extravasar suas diferenças em atos de violência. No caso do Haiti, as desavenças políticas se confundem com a situação de criminalidade e pobreza, e para isso uma missão de 66 paz da ONU, na acepção original do termo tem poucas soluções a oferecer. Com o fim definitivo da Guerra Fria, as expectativas em relação à ONU se inflaram em todo o mundo; saídos de um equilíbrio de forças bipolar para uma ordenação mundial multipolar, esperava-se que a agenda das Nações Unidas fosse renovada e abarcasse mais opiniões e interesses. O trâmite de deliberação do Conselho de Segurança, porém, continuou o mesmo. Chegou-se à atual conjuntura, em que a natureza dos conflitos políticos mudou consideravelmente – abandonou-se o molde de dois grupos nacionais reproduzirem a queda de braço entre americanos e soviéticos – mas não a essência dos trabalhos das Nações Unidas. A estas críticas, a ONU responde com a intenção do nation building, que começou a aparecer nos mandatos de missões de paz apenas recentemente, e que a Minustah tenta aplicar em programas como o DDR e o de cultivo de coalizões políticas. A proposta do nation building vêm registrando avanços razoáveis e importantes com a experiência da Minustah, porém os empecilhos impostos pela high politics que se faz nas Nações Unidas atravancam o processo. A estrutura de poder formalizada na ONU é a principal responsável pela maior dificuldade de adaptação da Minustah à realidade haitiana. Sem contar o profundo desnível entre o poder deliberativo do Conselho de Segurança e o da Assembléia Geral, em que participam todos os países, no próprio CS há desequilíbrio. Iniciadas as sessões, os membros permanentes do Conselho de Segurança em geral lançam a discussão, apresentando projetos de resolução que serão pouco modificados em sua redação final. A burocracia da ONU não só acabou por permitir que França e Estados Unidos definissem uma linha de atuação das Nações Unidas na composição do governo de transição, mas também ocasionou atrasos em razão do relativo desinteresse pela América Latina de alguns 67 membros permanentes do Conselho, como China e Rússia. Por isso, a ONU chegou tarde no manejo crise haitiana de 2004, meses depois que a OEA e o Caricom já marcavam presença no país. A mesma burocracia da ONU permitiu a demora no início dos trabalhos da Minustah. Durante os primeiros meses de missão, as forças militares tentaram prover a segurança com menos 50% do contingente militar previsto na primeira resolução. O mandato se renovaria ainda sem completar o total de pessoal; o efetivo das tropas só chegaria próximo dos 6700 previstos originalmente em janeiro de 2005. Considerando que a segurança era condição principal para o início dos trabalhos civis, a chefia da missão considera que o funcionamento pleno da Minustah acabou de começar. 68 Capítulo VI Ambiente seguro e estável “Devemos considerar que segurança absoluta não seria um objetivo realista, considerando a situação em que o país tem vivido nos últimos 200 anos. Portanto,nosso objetivo é atingir um nível aceitável de segurança.” Texto de apresentação para visitantes do Staff militar da Minustah Na longa história de golpes de Estado que assolaram o Haiti, nenhum assumiu maiores proporções em termos de deterioração da segurança pública quanto a última queda de Jean-Bertrand-Aristide. O governo ainda está contando as perdas desta época, mas é provável que os anos de 2003 e 2004 tenham sido o período de maior número de mortes na história recente do país. Poderia-se pensar que um povo que viveu tantos anos conturbados está habituado à situação de violência. Mas, pelo contrário, segundo o relato das forças militares o barulho de um tiro é suficiente para instalar o pânico em qualquer praça pública. Tiroteios mais recorrentes são capazes de esvaziar bairros inteiros; nas regiões onde os choques entre grupos pró e contra Aristide foram mais intensos, famílias abandonaram suas casas sem destino certo e só meses depois ousaram retornar para seus bairros. A marca distintiva da sociedade haitiana de 2004 em relação aos seus antepassados que também viveram crises políticas certamente é o volume e a ostentação de armas de fogo. Os processos de chimérização, a desmobilização das Forças Armadas, o aumento do tráfico de drogas e da criminalidade em geral e, por conseqüência, a crescente demanda de segurança particular acabaram por multiplicar o 69 número de armas em uso no país. Foram estes grupos – ex-militares, chiméres e gangues de bandidos – os envolvidos diretos nas lutas pela deposição e sustentação de Aristide. E foi com esses grupos que um efetivo de tropas da ONU ainda desfalcado e sem nenhuma vivência do país teve de lidar nos primeiros meses. De um lado, os chiméres radicalizavam com a saída de Aristide; de outro, ex-militares e algumas organizações civis armadas, aliados ao Grupo 184, respondiam à resistência dos partidários do ex-presidente. Entre tudo isso, a parcela de criminalidade que não poderia faltar em zonas urbanas pobres. Aconteceram neste período inicial também a maior parte de manifestações de hostilidade contra a tropa das Nações Unidas por parte dos rebeldes. A primeira atitude das tropas, sob o comando do General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, foi recuperar os prédios e instituições públicos desertos em razão da debandada de policiais e funcionários que apoiavam Aristide. Durante todo o primeiro ano, foram recuperados edifícios do governo, em geral comissarias de polícia, em várias cidades do interior atingidas pelos protestos, como Tabarre e Pêtit-Goave. A estratégia era reestabelecer, pouco a pouco, a presença do Estado nesses lugares. Em setembro, o furacão Jeanne atingiu a ilha de Hispaniola e pontos nevrálgicos do interior do Haiti, como Gonaïves, a cidade-berço dos protestos contra Aristide. Os afazeres das tropas militares, nesse caso, voltaram-se para o atendimento e ajuda humanitária às vítimas da tragédia, que matou 3 mil pessoas e devastou cidades inteiras. No mês de maio seguinte, uma forte tempestade tropical mataria mais 3 mil pessoas no interior do país. Como mal havia chegado ao país o braço civil da Minustah, o primeiro e o segundo contingentes de militares tiveram de fazer boa parte do trabalho político de desmobilizar os grupos armados no primeiro ano de Minustah. Em dezembro de 2004, a vitória mais 70 importante foi conquistada por meio de um acordo entre Latortue e os ex-militares; principal grupo armado que trabalhou na deposição de Aristide, eles continuaram a organizar manifestações por empregos e indenização, em razão extinção das Forças Armadas, e se mantiveram como ponto de instabilidade durante o governo provisório. Ficou acertado que, dos mais de 3 mil militares mobilizados, os menores de 45 anos seriam aproveitados na Polícia Nacional Haitiana e os demais, empregados em outros setores da administração pública. Este acordo reuniu os ex-militares em espera no pátio da desativada Escola de Magistratura de Porto Príncipe, recebendo uma ajuda de custo mínima enquanto não saíam as cartas de emprego. Até hoje, muito poucos foram chamados pelo governo provisório; a maior parte dos exmilitares voltou às suas cidades de origem e de 100 a 300 continuam a esperar notícias na Escola de Magistratura. A despeito das dificuldades em cumprir o mandato com as forças incompletas, no primeiro ano foi conquistada relativa tranqüilidade nas cidades do interior do país. Restaram, entretanto, pontos de violência sérios na capital; precisamente nos bairros de maior pobreza, onde foi mais intenso o processo de chimérização e a população fica mais exposta à criminalidade. Com o envio de tropas pelos países colaboradores já mais adiantado, o Force Commander pôde concentrar forças na capital. A Minustah então já conhecia melhor o terreno e conseguiu definir uma estratégia para a pacificação dos pontos que persistiam críticos. A capital foi dividida em áreas de atuação entre os Exércitos do Brasil, da Jordânia, do Sri Lanka e do Peru, concentrando aproximadamente metade do contingente militar da missão. A partir de janeiro de 2005, investiu-se na instalação de postos militares permanentes nos lugares mais críticos da capital, descentralizando as forças dos batalhões de cada Exército. Hoje, são 14 postos avançados alojados em quase todas 71 as chamadas “áreas vermelhas” da capital, onde não é permitido o deslocamento de pessoal da ONU sem viaturas blindadas. Para pacificar essas regiões mais críticas foi necessário adotar uma tática mais combativa, e que provocou muito mais mortes de civis do que o processo de pacificação no interior. Só na área sob responsabilidade dos brasileiros, que circunscreve as zonas críticas de Bel Air, Rota Nacional e Cité Militaire, são feitas em média duas operações de cerco e vasculhamento por semana, com o objetivo de procurar armas ilegais e fugitivos da polícia. De janeiro a outubro de 2005, o saldo das operações foi satisfatório: 77 armas e 3.587 munições ilegais foram apreendidas e 282 suspeitos de crimes foram detidos e entregues à Polícia Nacional Haitiana; foram libertadas com sucesso 12 pessoas seqüestradas e recuperados 56 veículos roubados. Neste período, ainda houve o recolhimento de 95 corpos de civis mortos. O Exército Brasileiro estima que mais de 40 delas tenham sido mortas pela ação das tropas, o chamado “efeito colateral” das operações de busca; o próprio Exército Brasileiro considera esta taxa de morbidade muito alta para uma missão de paz. Pondera, porém, que o choque com as gangues infiltradas nas favelas foi imprescindível para que os trabalhos civis e humanitários da missão pudessem começar a funcionar. Virou prática entre o primeiro e segundo contingentes militares, que passaram pelo país enquanto a frente civil da Minustah ainda não estava totalmente ativa, organizar trabalhos de distribuição de comida, remédios e ajuda para a comunidade depois das patrulhas e operações de busca no bairro. O comandante Queiroz, chefe do segundo contingente brasileiro, virou uma espécie de pai dos haitianos pobres, na percepção da população. Durante o mandato das tropas, foram feitos mais de 120 comboios de ajuda humanitária em todo o país. 72 *** É difícil servir na Polícia Nacional Haitiana, principalmente no interior. Em geral, são jovens da capital, de boa formação, que guardam Comissarias de Polícia desertas e dispõem, talvez, de uma bala para cuidar da segurança da cidade. A reputação da Polícia durante o governo de Aristide não ajuda a preservar sua autoridade, e a própria população acaba por escolher seus agentes de segurança pública. Com a deserção de muitos funcionários depois da deposição, em algumas cidades os edifícios da polícia foram ocupados por exmilitares ou seguranças particulares, gente com algum treinamento e que conta com mais confiança da comunidade local. “Um comandante me ligou dizendo que a população local impedia a desmobilização dos rebeldes que ocupavam o posto de Polícia numa cidade do interior”, conta o General Heleno, sobre seu período de Force Commander. “Eu perguntei se eles estavam causando algum problema. Não? Então, deixe-os aí. Vai fazer o quê?”. *** Além das operações de confronto direto com os bandidos, as tropas de capacetes azuis também são responsáveis pela maior parte dos procedimentos de rotina para a segurança nas vias públicas da cidade. Seus métodos se aproximam dos de policiais em zonas urbanas, em geral: os militares realizam patrulhas nas vias públicas, estabelecem check-points, equivalentes às blitz da polícia, e, mais recentemente, fixam pontos fortes nas áreas conquistadas, que funcionam como uma espécie de base comunitária. Foram especialmente sangrentas as operações de busca de grandes chefes de gangues e grupos partidários de Aristide nas favelas da capital. O Force Comander considera o primeiro marco no 73 processo de contenção da violência na capital a prisão do Padre Gerard Jean Juste, antigo ministro de Aristide e acusado de intermediar a distribuição de armas e dinheiro remetidas pelo expresidente no exílio, em julho de 2005. Ele foi detido durante um protesto contra as tropas da Minustah, e está preso até hoje, apesar das tentativas do Fanmi Lavalas em libertá-lo para inscrevê-lo como candidato à eleição em 2005. Prender definitivamente o padre, conhecido no Haiti por lutas em favor dos direitos humanos, foi uma das atitudes mais polêmicas tomadas pela Polícia Nacional Haitiana, mas o comando das forças militares relatou que o nível de mobilização das gangues na cidade realmente caiu após seu afastamento. No mesmo mês, também em Cité Soleil, uma operação de prisão do foragido Emanuel Wilmer resultaria na operação com mais mortes de civis – a contagem das baixas ainda é controversa. Jovem líder do tráfico de drogas e comandante de chiméres no bairro, o hougan vodu Dread Wilmé, como era mais conhecido, acabou morto em confronto com as tropas. Em outubro, uma das maiores operações na favela de Bel Air que movimentou 220 militares e oito viaturas deteve um importante líder chimére de Bel Air, reconhecido pela população como “General Toutou”. Segundo investigações da Polícia Civil da ONU, a UNPOL, ele fazia parte de uma espécie de esquadrão da morte ligado ao Palácio Nacional na época de Aristide, uma organização armada paralegal chamada “Falcão Negro” que funcionava quase como um departamento de Estado e travou batalhas com os adversários do antigo presidente durante os dias que antecederam o golpe. *** Os finais de mês são um pouco mais tensos para a Escola de Magistratura de Porto Príncipe. Lá, mais ou menos 120 exmilitares esperam ajuda de custo ou recolocação profissional do governo, jogando cartas e falando alto no quintal arborizado. 74 A cada atraso das remessas de Latortue, eles organizam um piquete e barram na porta de entrada os funcionários do prédio, que voltam felizes para casa, sem muitos protestos. A biblioteca da Magistratura e a Academia de Polícia ficam fechadas; a lanchonete que os alimenta e um posto de registro eleitoral, a pedido da Minustah, têm permissão para abrir. Quando o atraso é maior e os ex-militares passam algum tipo de aperto mais sério, um regimento permanente de 15 fuzileiros navais brasileiros que cuidam da segurança na Escola ajudam com materiais de higiene e, eventualmente, comida. São todos antigos militares de baixa patente; os oficiais saíram do país ou foram recolocados pelo Estado. Alguns poucos parecem muito jovens para ter servido o exército, são rapazes que aderiram depois à causa da reorganização das Forças Armadas e foram acolhidos pelo grupo. Eleito o porta voz que responderia à entrevista, o cabo Monsan Manius defende a proposta com grandeza. “Uma nação sem Forças Armadas não é uma nação. O Exército deve ser reorganizado porque está na Constituição”. Rumores e brados de aprovação da multidão que se reuniu em volta. Montar um Exército custa muito para um país com necessidades tão mais urgentes. E se o próximo governo não mudar? “Temos fé que o governo eleito vai nos empregar nas novas Forças Armadas do Haiti, porque a voz do povo é a voz de Deus.” Se o Exército não for reorganizado, ou se os ex-militares já não forem tão jovens para ser aproveitados, a solução é a indenização. “Não podemos esperar as eleições, que nem se sabe quando vão acontecer. Nossas mulheres estão nos deixando”. *** 75 Tais grandes operações de busca por fugitivos da Polícia são alvos freqüentes de críticas de ONGs e movimentos internacionais de defesa dos Direitos Humanos. Em março passado, um relatório da seção carioca da ONG Justiça Global, em parceria com a Universidade de Harvard, denunciou abusos em atividades militares em Bel Air e Cité Soleil, acusando a Minustah de cumplicidade com ações violentas da PNH e de não documentar as operações com propriedade. Em novembro de 2005, as denúncias tomaram proporções maiores: um grupo de ONGs e estudiosos americanos apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma compilação de vídeos e depoimentos responsabilizando os capacetes azuis pela morte de 63 pessoas na operação de Cité Soleil que matou Dread Wilmé, em julho, e denunciando sua conivência com uma série de massacres empreendidos pela PNH no mês seguinte. Embora o governo brasileiro e o comando da Minustah ainda não tenham sido notificados pela Corte da OEA, o comando brasileiro da missão da ONU já negou publicamente as acusações. A missão reconhece que é difícil conhecer o número exato de baixas nas expedições militares – nem todos os cadáveres são recolhidos pelos capacetes azuis, há informações de que muitos se perdem durante o conflito ou são coletados para rituais vodu – mas calcula entre 5 e 9 mortes civis perpetradas por militares durante a troca de tiros na operação de busca de Dread Wilmé. O Force Comander na época, General Heleno, fundamenta a explicação: a maior parte dos 63 corpos de que falam as ONGs foram encontrados com tiros na cabeça ou nas costas, o que denunciaria obra intencional de gangues, e não efeitos colaterais da missão. O curioso é que as denúncias de abusos de direitos humanos partem em sua maioria de organizações internacionais ou americanas. A Rede Nacional de Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), maior agremiação de ONGs do país, isenta a Minustah de cometer 76 pessoalmente violações à Declaração de Direitos Humanos. Assim como o governo provisório, as ONGs haitianas criticam a falta de rigor da Minustah no trato com as gangues e bandidos. Seus relatórios abordam as taxas de criminalidade ainda altas e concentradas em regiões pobres da capital e episódios de crimes ou manifestações violentas simultaneamente em localidades próximas a patrulhas ou check-points militares. Essa situação parece denotar interesses de Estado: o International Crisis Group, um dos signatários sugere, entre as medidas a serem tomadas para evitar novos abusos, o envio do militares americanos caso a situação de segurança não melhore apenas com a Minustah. A maior crítica das ONGs haitianas atinge o mandato da Minustah, e não a conduta das tropas: as missões militares não teriam absorvido ainda a realidade de criminalidade que é o maior problema do país. Desmobilizada grande parte dos grupos de atuação política violenta, por meio de acordos ou investidas militares, o grau de insegurança civil não melhorou, notadamente nas grandes favelas da capital. Bel Air e Cité Soleil reúnem a grande base de sustentação do Lavalas e concentram o tráfico de drogas e armas no país. Apesar de ter características populacionais e problemas parecidos, diferenças de geografia e cultura impedem que o mesmo plano de pacificação seja adotado nos dois bairros. Em Bel Air, os brasileiros conquistaram relativo sucesso instalando cinco pontos de observação militar em nas áreas mais altas da favela, de onde se tem uma visão panorâmica de toda a movimentação. A topografia acidentada e as ruas estreitas que no início dificultaram as missões de reconhecimento acabou servindo à estratégia brasileira. A situação é diferente, por exemplo, da de Cite Soleil, onde acontece a maior parte dos conflitos envolvendo a Minustah: o terreno é completamente plano, o que inviabiliza a implantação da mesma tática. 77 O material de que são feitas as habitações em Cite Soleil – lata e papelão – também amplificam enormemente os efeitos colaterais de qualquer operação; é diferente de disparar um tiro em Bel Air, em que as casas de alvenaria isolam o conflito. Nem mesmo a Minustah entra nas áreas mais densas da favela, no temor de que qualquer operação de busca se transforme em uma chacina. Optou-se por ignorar, nesse caso, os apelos por mais rigor do governo e da sociedade civil haitiana. *** Em Bel Air, os brasileiros já passaram à categoria de bomba gai, o “sangue bom” dos haitianos. Se nos primeiros meses os militares brasileiros enfrentavam trincheiras de lixo que impediam a passagem das patrulhas, hoje são convidados de todas as festas e torneios de futebol do bairro. O Capitão Novaes, que comanda as tropas na área, recebe diariamente pedidos de apoio para a realização local. “Temos até que ter cuidado para não apoiar eventos de campanha eleitoral.”. As tropas passaram a notar mudanças depois da ocupação do Forte Nacional, desde março de 2005. Alojada uma companhia (cerca de 170 militares) no coração de Bel Air, a velha edificação militar de onde os escravos combatiam os invasores que chegavam por mar, eles assistiram o bairro à voltar à vida. “Quando chegamos aqui, parecia uma cidade fantasma”. Hoje, a vida e o comércio em Bel Air funciona quase sem transtornos. Para ampliar a presença da Minustah, mais quatro prédios antigos do bairro foram escolhidos para sediar mais pelotões militares. *** 78 Aparentemente, os antigos chiméres não têm mais nenhuma correspondência com Aristide ou o Fanmi Lavalas, mas a violência continua. Dentro do país e dentro da própria missão, as análises se dividem: enquanto alguns vêem motivação política em diversos incidentes de violência urbana, outros acreditam totalmente desmantelados os grupos políticos que irromperam a crise em 2004, tendo sobrado nada mais do que pessoas em situação de miséria com armas à disposição. O maior problema de segurança pública do país hoje é notadamente ligado à criminalidade: os seqüestros. Num dos períodos de pico, entre março e julho de 2005, foram reportados à Polícia Nacional Haitiana cerca de 450 seqüestros. O alvo dos seqüestros são principalmente a elite e as classes médias haitianas, mas, aparentemente, o único motivo é mesmo o resgate. Apesar do número de ocorrências não ser tão elevado quanto em outras cidades do mundo do tamanho de Porto Príncipe, o problema preocupa por ser muito recente: há dois ou três anos, a Polícia não enfrentava esse tipo de chamado, o que redunda em outro agravante da situação atual que é a inexperiência do Estado em lidar com seqüestros. Em qualquer parte do mundo, este seria um problema pertinente às autoridades policiais. A Polícia Haitiana, no entanto, não tem condições materiais de equacionar a situação dos seqüestros. No âmbito administrativo, os oficiais de polícia estão às voltas em concluir uma reforma da instituição iniciada depois do governo Préval-Aristide, período em que a Polícia se envolveu em diversos casos de corrupção e perdeu todo o prestígio e confiança da população; no início do governo de transição, a Polícia era atacada deliberadamente por grupos rebeldes e perdeu praticamente metade dos edifícios que ocupava. Além de pobremente equipada – a PNH não tem viaturas blindadas, por exemplo – , a reforma pela despolitização da Polícia 79 ainda cortou consideravelmente o já pequeno pessoal com que contava em todo o país. De 5 a 7 mil policiais cuidam do país inteiro, enquanto o índice mínimo fixado por instituições internacionais para um país de 8 milhões de pessoas seria de 20 mil. A situação é preocupante, pois a parcela de soberania do Haiti no mandato de segurança da Minustah está justamente na participação da PNH em missões com as forças militares e a Polícia Civil da ONU, a UNPOL. Por isso, uma das ocupações da UNPOL é cooperar em missões da PNH, agilizar a reforma e ampliar o efetivo policial de uma Polícia jovem, de apenas dez anos, e já tão desacreditada para zelar pela segurança pública. Co-dirigida por representantes da ONU, a Academia de Polícia do Haiti emprega táticas de treinamento mais modernas no combate a seqüestros e tenta formar equipes de treinadores que permitam a renovação da força quando a missão já tiver acabado. Mas a parceria da UNPOL e da PNH ainda não está plenamente em andamento. Nas primeiras operações conjuntas, a ONU reclamou ao governo que vazavam informações aos bandidos ainda na fase de planejamento, reflexo de que a corrupção na Polícia não foi completamente superada. Depois de demorados trâmites entre as diretorias, a UNPOL passou a sair para combater o banditismo com os capacetes azuis. O relacionamento entre as forças das Nações Unidas tampouco é tranqüilo: o mandato da UNPOL dispensa operações que envolvam “risco pessoal” para seus integrantes, o que deixa as missões mais pesadas exclusivamente para as tropas, aparelhadas com armamentos de guerra. Está posto, por exemplo, que cabe aos militares da ONU retomar os postos policiais dos rebeldes e à polícia civil ocupar as comissarias em conjunto com a PNH, para que aos poucos as vítimas de criminalidade recorram às polícias, e não aos militares. Este modelo, porém, ainda exige aperfeiçoamentos: o efetivo da UNPOL 80 não permite, por exemplo, manter homens nos edifícios da Polícia 24 horas por dia, sete vezes por semana. Para atender aos chamados na região de Porto Príncipe, são apenas 32 veículos para 104 UNPOLs, insuficiente para atender às demandas de criminalidade da cidade. Na quarta renovação de tropas, os militares receberam um reforço de 900 homens (um salto dos 6200 previstos na primeira resolução para os 7100 militares que servem hoje no Haiti) para ajudar no policiamento das eleições. Neste período, a violência de coloração política pode aparecer com mais intensidade. O tripé da segurança do Haiti – capacetes azuis, UNPOL e PNH – aguarda a definição de detalhes da organização do processo eleitoral para traçar o planejamento do dia das eleições. 81 82 Capítulo VII Eleições justas e legítimas “Elections/Sécurité: la Minustah se dit prête à garantir le bon déroulement des prochaines joutes en Haïti.” Radio Metropole, 25 de novembro 2005 No mesmo dia em que a Minustah se declarou preparada para conduzir o processo eleitoral nos próximos quinze dias, o governo do Haiti anunciou o terceiro adiamento do cronograma de eleições: o primeiro turno das eleições passou do dia 13 de outubro de 2005, no calendário original, para 8 de janeiro de 2006. Apesar das recomendações expressas de toda a comunidade internacional e do próprio governo provisório, nenhum haitiano acreditava que haveria eleições ainda em 2005, como de fato não haverá. A maior fonte de incertezas é mesmo o atraso na parte administrativa da organização das eleições, conduzidas pelo Conselho Eleitoral Provisório Haitiano (CEP) em parceria com a OEA, e com o apoio da Minustah. A poucos dias da nova data da eleição, ainda não se tem a lista definitiva de candidatos, sequer. O processo de registro de eleitores ainda não está completo e falta determinar os locais de votação. Antevendo dificuldades, o calendário eleitoral foi pensado pela ONU para se iniciar depois de mais um ano e meio de missão. É verdade que, em razão nos atrasos para o envio de pessoal, a Minustah começou tardiamente; considerando-se que um ambiente relativamente seguro só foi conquistado por volta de junho de 2005, foram só quatro meses para preparar as eleições, o que não é tanto tempo assim. 83 As dificuldades começaram já na organização do CEP, o órgão designado pelo governo para cuidar das eleições. Ele reuniria nove conselheiros provenientes de grandes setores da sociedade haitiana, entre eles católicos, protestantes, grupos de Direitos Humanos e o Lavalas, que se recusou a enviar representante por não reconhecer como legítima a deposição do ex-presidente. A cadeira foi assumida por um antigo grupo duvalierista de Cité Soleil. O resultado é que os diretores do CEP, vindos de grupos sociais tão distintos, têm interesses e opiniões irreconciliáveis e foram incapazes de entrar em acordo a respeito de diversas questões essenciais ao início dos trabalhos. O primeiro consenso a que chegaram acabou numa das mais desastrosas medidas para o cumprimento do cronograma: o CEP demitiu seu corpo de 60 funcionários de carreira. A estrutura de um órgão que teria de organizar eleições em seis meses terminou com nove membros da diretoria, suas secretárias e motoristas particulares, apenas. Para dificultar a empreitada, a OEA mantinha à época no Haiti o pessoal mínimo para pensar os termos das eleições, mas insuficiente para fazer o trabalho administrativo da organização de que o CEP tinha se eximido com as demissões em massa. Em agosto, a parceria OEA-CEP se viu sem a capacidade, o pessoal e os meios de execução para pôr em andamento o processo eleitoral. Com um pouco mais de mão de obra disponível, a maior parte de voluntários da ONU, a Minustah teve de socorrer essa estrutura nos primeiros meses do ano. Com um número de funcionários comprometido, a Minustah e OEA inauguraram 491 postos de cadastro – tendo que transportar toda uma estrutura de geração de mobiliário, computadores e geração de energia por caminhões, helicópteros ou tração animal. Em 25 de abril de 2005, começou oficialmente o período de registros de eleitores. Sob responsabilidade da OEA, a estrutura funcionou com atrasos mas pode-se dizer que alcançou relativo 84 sucesso: as inscrições foram encerradas com 3,4 milhões registrados, perto de 70% do total de maiores de idade. Houve um a preocupação em atingir mulheres e jovens especificamente, parcelas da população mais excluídas da vida política do país. O registro nas localidades mais pobres ficou aquém do total de eleitores de classe média, mas o registro de algo entre 60 e 70 mil pessoas no bairro mais crítico do país, Cite Soleil, é considerado uma boa marca. O pacote do sistema de registro eleitoral proposto pela OEA foi adotado pelo governo, mas é ainda um ponto controvertido na sociedade. As pessoas se registram não só por um documento de eleitor, mas para uma carta de identificação nacional, que serve como documento de identidade para inscrição em concursos, programas sociais, bancos e outras atividades triviais. O documento acaba servindo como estímulo ao registro eleitoral; na interpretação da Minustah, o sistema é uma oportunidade de induzir o haitiano a um sentimento de cidadania, já que grande parte das pessoas não tem nem mesmo registro de nascimento. Por outro lado, como o voto não é obrigatório, é difícil estimar quantas pessoas se apresentarão às seções eleitorais de fato e medir a legitimidade da eleição que está por vir. A organização teve o cuidado de informatizar o procedimento de registro e unificar o cadastro de eleitores – para impedir fraudes como as que ocorreram nas eleições de 2000, quando era possível a uma pessoa tirar quantos títulos quisesse, desde que se apresentasse em zonas de registro diferentes. Nas últimas eleições, houve casos de eleitores com quinze ou dezesseis carteirinhas de votação. Os cartões distribuídos hoje têm foto de identificação de forma a coibir esse tipo de fraude. É bem verdade que já houve seções em que as pessoas receberam seus cartões com as fotos trocadas, mas o conceito do documento eleitoral está posto. Os documentos, que são impressos no México, ainda não chegaram todos ao Haiti; eles nem poderão ser distribuídos em sua 85 totalidade enquanto não estiverem fechados os 800 edifícios onde vai acontecer a votação. Mas essa não é a maior pendência da coordenação das eleições; a definição da lista de candidatos, também atribuição do CEP, ainda não está fechada. Essas decisões dependem e se relacionam com questões nacionais delicadas, como a demarcação da nacionalidade: para se candidatar a algum cargo eletivo no Haiti, não só é necessário ser haitiano sem nunca ter se naturalizado em outro país, como também é preciso provar a ascendência haitiana por parte de pai e mãe. Num país onde o registro de nascimento é precário, essa é uma condição um pouco mais difícil. Cerca de 12 candidatos inscritos dependem dessa decisão para saberem se podem ou não concorrer à presidência. Para catalisar esses processos, foi solicitada uma mudança na estrutura organizacional do CEP, exigindo uma hierarquia entre os nove conselheiros. Ainda em outubro, foi designado um chefe para a comissão geral do CEP que deve pressionar pela agilidade das decisões. Por ora são 34 candidatos a presidente, extraídos de uma lista de mais de 50 candidaturas em que muitos foram excluídos por violações à Constituição e pendências com a Justiça. Na esfera federal, há ainda 129 postos a ser preenchidos (30 para o Senado e 99 para a Câmara Baixa), e a concorrência é igualmente exagerada. Ao mesmo tempo em que se interpreta o fato como eleições altamente inclusivas, o pleito não parece muito sério. Se for feito um exame mais cuidadoso dos candidatos, ainda, deve-se perceber que não existe representatividade dos diversos segmentos da sociedade haitiana, traduzidos em partidos enraizados e propostas bem delineadas; ao contrário, a eleição periga escorregar para uma disputa de personalidades. O trabalho é imenso também porque não há informações sobre eleições anteriores. Todo o processo – da apresentação de partidos e candidatos ao registro de eleitores – teve de começar do zero. A 86 maioria das legendas se apresentou no primeiro prazo de inscrição com menos que as 5 mil assinaturas exigidas e quase sem exceção, sem comprovar a existência de um caixa de campanha ou a origem de seus rendimentos. Os partidos se assemelhavam mais a um grupo pessoalmente ligado ao candidato presidencial; no início, restavam dúvidas se estes partidos de conveniência teriam quadros suficientes para preencher os quase dez mil cargos executivos e legislativos que se renovariam nas eleições de 2005, agora de 2006. Se o atraso nas eleições se deve essencialmente a defeitos técnicos da organização, ele ocasiona problemas políticos também. As recomendações da Secretaria Geral das Nações Unidas, do Departamento de Estado americano e da própria OEA quanto à data de transição do poder não serão cumpridas. Toda a comunidade internacional pressionou os organizadores para que garantissem a posse do novo governo em 7 de fevereiro de 2006; antes de tudo, é uma data simbólica porque seria o prazo em que Aristide terminaria seu mandato, segundo a Constituição. As eleições se estenderão para além desta data – o segundo turno da presidência foi agendado para dia 15 de fevereiro – e teme-se uma tensão para definir quem vai permanecer no poder depois que expirar o mandato constitucional. O temor é que, se Latortue e Boniface Alexandre se demorarem no poder por mais uma semana, desenvolva-se uma desconfiança de que eles, aliados aos estrangeiros, preparam um estratagema para continuar no poder. Ao mesmo tempo, ainda sem o resultado final das eleições, não seria viável construir um segundo governo de transição. *** Durante o período de registro eleitoral, a televisão entrevistava as pessoas nas filas. “Você vai votar?”. As respostas se dividiam: 87 metade das pessoas enfrentava às vezes horas de fila só para tirar seu ID card; metade tinha interesse em votar. Unanimidade: ninguém ainda tem candidatos. É o caso do estudante Festen Cleone, que tem 24 anos e vai votar pela primeira vez nas próximas eleições. “Todos os políticos que eu conheço não me agradam. Nos que eu não conheço, não posso votar”. Mas Festen não tinha muita certeza de que ia haver eleições. Sua maior preocupação era a prova de admissão do Licée de Petionville, um dos melhores colégios públicos do país. *** O atraso na definição das eleições também prejudica o planejamento da segurança para o período. O atual Force Comander, General Urano Bacellar, avalia que o risco de os grupos armados desmobilizados se reorganizarem se concentra no período das eleições. Tanto as gangues da capital que se sustentam com criminalidade quanto pequenos grupos armados do Interior (a Armée Dessalines e a Frente Nacional, por exemplo, as quais a Minustah mantém sob observação), politicamente motivados, podem reunir potencial para realizar algum protesto violento. Durante a campanha eleitoral, que se intensificou em outubro, os militares não relataram manifestações agressivas. Houve passeatas, reuniões, comícios e protestos, mas por enquanto nada que ameaçasse a segurança das cidades. É esperada, porém, alguma tentativa de coação dos eleitores por parte tanto do Lavalas quanto de outros grupos que se sintam pouco representados. Está dentro dos planos deslocar contingentes para áreas consideradas de mais risco, onde determinados grupos rebeldes podem tentar desestabilizar o processo eleitoral. As forças militares estão conscientes também de que é preciso manter-se vigilante com a situação de segurança não só durante o 88 processo eleitoral, mas depois que o governo eleito assumir o poder. Os grupos armados podem não ter potencial suficiente para desestruturar as eleições, principalmente enquanto a Minustah e um grande número de observadores estrangeiros está no país, mas podem reunir forças para desestabilizar o próximo governo. A Minustah e a comunidade internacional toleram os atrasos sucessivos na esperança de que as próximas eleições sejam reconhecidamente justas e legítimas por todos os grupos: se houver margem para qualquer dúvida sobre os resultados, multiplicam-se as possibilidades de o Estado voltar a ser alvo de ataques da oposição. É quase certo que o próximo presidente não terá sustentação nas Câmaras. São mais de 40 partidos disputando cadeiras no parlamento, e as possibilidades de coalizões não são promissoras. Até por antever que o próximo será um governo frágil, a maior parte dos países americanos já se comprometeu a continuar no país depois da transição de poder. O Embaixador Valdez também tem apresentando esta demanda junto à ONU. Mais do que a presidencial, a eleição do Congresso será decisiva para configurar o próximo governo. Se o próximo presidente afrouxar a tradição centralizadora de seus antecessores, espera-se que a fragmentação das cadeiras do parlamento acabe provendo a todos os setores da sociedade a sensação de que, de alguma forma, todos estão sendo representados no governo. É verdade que poucos partidos – destaque-se a atual OPL (Organisacion de People em Lutte) e o Fusion, que avançou um pouco em relação aos demais e articulou uma aliança entre três grupos de esquerda – têm correspondência direta com a sociedade haitiana e é verdade também que muitos deles estão profundamente ligados à criminalidade, ao tráfico de drogas e armas. Mesmo que dificilmente um candidato destes partidos chegue a presidente, eles certamente terão alguma representação que garanta seu lobby no parlamento, o que pode ser uma temeridade. A melhor 89 expectativa é a de que a experiência de uma pluralidade de legendas no Congresso torne os políticos no futuro mais tolerantes e menos irredutíveis a acordos políticos. Absolutamente ninguém arrisca um palpite no resultado das eleições. Todos parecem respeitar o fato de que no Haiti as coisas podem mudar muito rapidamente, sempre. É certo que têm ganhado espaço os candidatos que adotaram uma estratégia de buscar apoios em várias bases eleitorais, como os ex-presidentes René Prevál e Leslie Manigat. O primeiro, que nunca perdeu realmente a simpatia da massa eleitoral do Lavalas, apostou também na simpatia da classe média ao declarar seu afastamento de Aristide; o segundo, um acadêmico muito respeitado pela elite haitiana, tenta despertar também a admiração dos pobres. Outros candidatos tarimbados da política haitiana também tentam se valer de seus feitos no passado para vencer as eleições. Nenhum candidato, porém, ascendeu na preferência do povo. A Minustah e a sociedade civil organizada do Haiti, independente de apoio a este ou aquele candidato, insistem no recado de que o pior cenário é a polarização – ter um presidente autoritário de um bloco, e um parlamento agressivo de outro. Espera-se que a classe política esteja entendendo o espírito; caso contrário, volta-se ao mesmo estágio que cultivou a traumática crise de 2004. *** Muitos que conviveram com Jean-Bertrand Aristide lembram dele como louco ou doente. “Doente pelo poder”, como definiria a hoje inspetora geral de Polícia Mme Gessy Coacou. “Ele armou os pobres e os chamou de seu Exército”. Na época em que esteve exilado em Washington, antes de voltar ao Haiti em 94, um 90 assessor de Clinton o descreveu como “messiânico” e “mitômano”. Uma queixa freqüente de quem o conhecia era de que ele fazia confusões da aparência com a realidade. Pode parecer intriga dos americanos, mas quando chegou à república Centro-Africana, depois de renunciar em 2004, Aristide anunciou ter sido seqüestrado por agentes brancos. Hoje, Aristide vive na África do Sul. A reportagem não conseguiu contato, mas quem o conhece diz que ele está constantemente no telefone tentando interferir na situação do páis Desde a prisão do Padre Jean Juste, não se tem mais notícia de quaisquer ligações do ex-presidente com seus apoiadores. De vez em quando, um grupo baseado nos Estados Unidos intitulado “Close Lavalas Associates” divulga supostos comunicados seus, condenando a Minustah e declarando ilegítimas as próximas eleições. A turma do deixa-disso descarta grandes empreitadas de Aristide. Tudo depende de como ele quer entrar para a história – como o presidente nacionalista e pai dos pobres deposto pelos americanos ou como mais uma figura autoritária na história do Haiti. *** 91 92 CONCLUSÃO Futuro de um povo sem perspectivas “No Haiti confia-se em metade do que você sente e em nada do que você vê” Dito popular, sobre a maronage Há muito tempo, o momento no Haiti é propício para a escalada de um movimento popular de grandes proporções, nos moldes mesmo do que foi o Lavalas nos anos 80, antes de ser corrompido por novos e velhos vícios da política haitiana. No auge da campanha eleitoral, porém, parece predominar a letargia entre os haitianos. Uns preferem interpretar como maturidade do eleitorado, que deixou de acreditar em soluções fáceis para problemas enraizados; outros, como desânimo e descrédito da democracia. Durante o governo Latortue, ilegítimo mas mais condescendente com as divergências políticas, houve algumas tentativas de se articular um diálogo nacional com vistas a debater o futuro do país. Nenhuma vingou, mas muito potencial conciliador continua latente em diversos segmentos da sociedade civil que, em meio ao caos da miséria e da violência, conseguiu se organizar. O diálogo nacional, dizem esses grupos, é o único caminho para começar a consertar as deficiências históricas que freiam o desenvolvimento do Haiti e deterioram as condições de vida da população. Talvez surpreenda que num país onde as carências são tantas e tão urgentes, o objetivo número um do Estado e da missão de paz que o governam é a realização de eleições, como se o instituto da democracia fosse resolver os quase insolúveis problemas haitianos. A comunidade internacional explica sua atitude por meio dos tratados que promoveu: a própria Carta das Nações Unidas e a Carta 93 Democrática das Américas, subscritas também pelo Haiti, reconhecem na democracia o regime de governo que mais favorece o desenvolvimento econômico e social dos povos. Mas os haitianos precisam de uma justificativa mais pragmática para empenhar esforços na construção de uma democracia. Cabe lembrar então: em toda a experiência Ocidental em que mergulhou o mundo hoje, a democracia é o modelo de governo que mais assegura estabilidade para o Estado. E do que o Haiti mais precisa é de equilíbrio e constância em seus processos de transição de poder. É impossível traçar um projeto de nação se qualquer governo é incapaz de permanecer no poder por mais de dois anos. Qualquer que seja o modelo econômico ou político que os haitianos escolherem para si, é preciso antes disso acabar com os traumas das transições de poder. Adotar as regras do jogo plenamente democrático – eleições limpas, direito de expressão e representação da oposição nos fóruns do governo, compromisso do eleito com seu eleitorado – parece a única fórmula conhecida capaz de permitir a instalação de um diálogo nacional com a finalidade de acertar os rumos do país. Estabelecer a democracia se afirma enquanto essencial também para pôr em curso políticas públicas de emergência que podem aliviar a situação imediata de miséria em que o Haiti se manteve por 200 anos. Investir na estabilidade, nesse caso, certamente também teria impacto direto na melhoria das condições de vida do povo haitiano. *** Esperava deixar o país sem ter visto grandes manifestações de violência – uma briga de rua e umas poucas pedradas, bastante seguro para um país recém-saído de uma situação de guerra civil. Feitas as despedidas da capital haitiana, no aeroporto barraram o 94 embarque. Tiros em Cité Soleil, de frente para o aeroporto, atravessavam a pista de decolagem. Nos dias seguintes, o terceiro contingente militar brasileiro iniciaria o rodízio que os levaria de volta para casa. Também alguns civis terminariam seu mandato e ansiavam para retornar a seu país de origem. O curioso é que todos os que trabalharam com mais afinco para fazer a segurança, organizar eleições, prestar assistência, parecem não acreditar muito que o país realmente “tenha jeito”. Os brasileiros voltam até um pouco mais animado com as nossas perspectivas de desenvolvimento. No Haiti, a dimensão da pobreza não deixa margem para muitas esperanças. *** Em toda a sociedade e elite intelectual haitiana, há movimentações intensas e veladas em favor e contra o instituto da democracia. Democracia significa voz para todos e o fim dos privilégios. Apesar de o Haiti ser um país pobre, há muitas pessoas no país que são ricas justamente em razão da histórica incapacidade do Estado de se impôr e proceder mudanças de poder estáveis. Um governo democrático recolhe corretamente impostos, reprime o contrabando, tem uma força policial honesta. Um governo democrático não tolera negócios de carros roubados nem tráfico de drogas, nem compra de juizes ou exploração de empregados. Isso não é do interesse de todos. Esse grupo não é grande, mas é poderoso. A eles interessa o país permaneça assim para sempre, porque é assim que eles têm dinheiro e poder. Alguns deles estão representados na política, alguns permanecem na iniciativa privada e exercem sua influência por meio do dinheiro e relações de trabalho. 95 A acusação que pesa sobre Jean-Bertrand Aristide é a de incitar os pobres contra os ricos, lançando mão das armas que os oprimidos tiveram historicamente, o terror e a brutalidade. Sua falta talvez tenha sido catalisar um processo que estaria por vir: no país onde existe miséria e desigualdade, extravasar as diferenças em violência é só uma questão de tempo. É verdade que a democracia perfeita não existe em lugar algum do mundo, e menos ainda que vai se processar num país com 80% de pobres e 50% de analfabetos. Democracia não significa eleições de cinco em cinco anos, e tanto a Minustah quando os haitianos estão cientes disso. Não se pode deixar, porém, de mirar a democracia num espaço de tempo mais longo. O próximo governo não será o governo democrático do Haiti, tampouco será o seguinte ou o próximo. Se as reais intenções da Minustah e da comunidade internacional abarcam mais do que eleições, a democracia, é um trabalho para gerações, mais longo que os vinte anos que o chefe Juan Gabriel Váldez propôs para a Minustah. 96 AGRADECIMENTOS Aos que, por meio de conversas entrevistas, proveram toda a sorte de informações para este livro: Adriana Lorandi, Amos L. Charles, General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Claudia Mojica, Didier Dominique, Regional Comander Feantz Gilles, Festen Cleome, Mme. Gessy Cameau Coicou, Goddonny Normil, Guy Philippe, Ministro Conselheiro Jean-Baptiste Reynold Leroy, Jocelyn McCalla, Marie-Evelyne Bury, Manson Manius e ex-militares da Escola de Magistratura, Martin Landi, Capitão Novaes, Embaixador Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, Coronel Smicellato, General Urano Bacellar e Viléz Alizzar. À Minustah, agradecimentos especiais aos que viabilizaram os trabalhos no Haiti: Major Alfredo Taranto, Capitão Marcello Yoshida Betty Mauvaise, Jude Brice, e todo o staff militar e de intérpretes da Minustah. À delegação e funcionários da Embaixada do Brasil no Haiti pela disponibilidade e atenção: Embaixador Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, Ministra Isabel Soares, Ministra Isabel Cristina de Azevedo, Ministro Arnaldo Caiche. À equipe do Batalhão Brasileiro em Porto Príncipe, pelo apoio logístico em Porto Príncipe e na estruturação agenda: Coronel Smicellato, Comandante Cícero, Capitão Novaes, regimento de fuzileiros na Escola de Magistratura. 97 À família por se envolver no projeto e por todo o tipo de apoio e incentivo – burocrático, logístico e torcida. Elisabeth e José Galvani Filho, Ligia Galvani e Álvaro Galvani Aos colegas profissionais que ajudaram no caminho das pedras: Cláudio Julio Tognolli, Eduardo Nunomora, Fernanda Guerra Gil, Jorge Zappia, Luciana Taddeo, Ricardo Bonalume Neto. Aos amigos que torceram pelo projeto: Laio Manzano, Vinícius Rodrigues, Aline Posseti, Aline Midlej, Bruno Fernandes, Carolina Oddone, Cláudio Julio Tognolli, Elisa Campos, Felippe Caetano, Gabriel Bueno, Jorge Zappia, Leonardo Sakamoto, Lílian Ferreira, Luisa Leme, Marina Mezzacappa, Tatiana Thé e os colegas de estudos e trabalho. 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Publicações: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. “A ONU e a Nova Ordem Mundial”. / Publicação Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. _____________ , José Augusto Guilhon de. “Dilemas da Consolidação da Democracia”. / 1989, Editora Paz e Terra. CÂMARA, Irene Pessoa de Lima. “Em nome da democracia : a OEA e a crise haitiana 1991-1994”. / 1998, Instituto Rio Branco Fundação Alexandre Gusmão. DAVIS, Wade. “A serpente e o Arco Íris: zumbis, vodu, magia negra”. / 1985, Jorge Zahar Editor. ETIENNE, Eddy V. “Hait 1804-2004i: Deux cents ans de grands combats diplomatiques et de lutes intestines minables”. / 2004, Bibliothèque Nationale d´Haïti. HIPPEL, Karin Von. “Democracia Pela Força: intervenção militar dos EUA no mundo pós Guerra Fria”. / 2003, Biblioteca do Exército Editora. ROCHA, Guilherme Salgado. “Pense no Haiti, reze pelo Haiti”. / 1994-1995, Musa Editora. 99 WARGNY, Christophe. “Haïti n´existe pas – 1804-2004: deux cents ans de solitude”. / 2004, Éditions Autrement. Relatórios e Artigos: Harvard Law Students Advocates for Human Rights e Justiça Global. “Mantendo a paz no Haiti?”/ Relatório de março/2005 International Crisis Group. “A new chance for Haiti?”. Latin America/Caribbean Briefing N°9, 25 November 2005 _____________________. “Can Haiti hols elections in 2005?”. Latin America/Caribbean Briefing N°8, 3 August 2005 _____________________. “A new chance for Haiti?”. Latin America/Caribbean Report N°10, 18 November 2004 Pesquisa em Periódicos e Web: Estado de S. Paulo Folha de S. Paulo Le Matin – www.infoalematin.com Le Nouvelliste – www.lenouvelliste.com Radio Metropole – www.metropolehaiti.com Revista Istoé Revista Veja Informações dos portais: www.mre.gov.br www.un.org www.exercito.gov.br 100 Vista de Porto Príncipe. No centro, o Palácio Nacional. Trecho da Rota Nacional, próximo ao centro da cidade. 101 Feira livre na capital: ocupação predominantemente de mulheres. Mercado movimentado no centro de Porto Príncipe. 102 Comércio nas favelas e áreas pobres da capital. Mercado em Petionville, bairro nobre da capital 103 Saída de colégio público no centro de Porto Príncipe. Faltou energia na escola: crianças em manhã de folga. 104 Haiti Rural: convivência de pobreza e grandes propriedades. Devastação ambiental: reserva de calcário explorada até o limite. 105 Comércio de arte haitiana nas regiões turísticas. Feira de artesanato no Batalhão Brasileiro, todos os sábados. 106 Festen Cleome, 24, mostra sua Carta de Identificação Nacional. Modelo de cédula eleitoral para as eleições presidenciais. 107 Capacetes azuis em frente a ponto forte das tropas em Bel Air. Córrego em Bel Air despoluído pelo Exército Brasileiro. 108 O movimento volta ao normal nas ruas de Bel Air. Ex-militares na Escola de Magistratura. 109 No trânsito caótico de Porto Príncipe, viaturas da ONU, carros de particulares e tap-taps, o transporte público da cidade. 110