Universidade de São Paulo

Transcrição

Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Maria Denise Guedes Galvani
Vício, pobreza e poder – Democratização no Haiti
Trabalho referente à disciplina de Projeto Experimental em
Jonalismo, do 8º período do curso de Jornalismo da
Universidade de São Paulo
Orientado pelo professor Cláudio Julio Tognolli
Realizado pela aluna Maria Denise Guedes Galvani
São Paulo, 5 de dezembro de 2005
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Para todos os que trabalham por melhores
condições de vida no Haiti. Às classes políticas e populares
nacionais, que ainda terão muito trabalho por fazer
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SUMÁRIO
Introdução. ........................................................................................09
Parte I.................................................................................................15
Uma promessa de nome Aristide................................17
A crise de 2004..............................................................27
Parte II......................................................................................35
Estrutura da sociedade haitiana.................................37
Tradição Política................................................................47
Parte III..............................................................................................57
A ONU no contexto do Haiti................................................59
Ambiente Seguro e Estável..................................................69
Eleições Justas e Legítimas..................................................83
Conclusão...........................................................................................93
Agradecimentos..............................................................................97
Referências bibliográficas.................................................................99
Galeria de Fotos............................................................................101
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Resumo
Em 200 anos de história independente, o Haiti nunca
experimentou uma democracia consolidada. Desde os anos 80, o
regime democrático vem sendo perseguido como forma de elevar a
qualidade de vida do país mais pobre das Américas. Peculiaridades
históricas, culturais e de engenharia social medem forças com esse
processo. Um livro sobre os avanços e desafios no sentido de
democratizar um país miserável e cronicamente sem perspectivas.
Summary
During 200 years of History as an independent country, Haiti
has never experienced a consolidated democracy. Since the 1980´s,
the democratic system is pursued as a way to improve the social
conditions in America´s poorest country. Historical, cultural and
social peculiarities interact with this process. This is book about
advances and challenges to democratize a needy country and
chronically without perspectives.
Sommaire
Péndant 200 ans d´histoire independent, l ´Haiti n´a jamais
eprouvé une democratie consolidée. Depuis les années 80, le système
démocratique est poursuivi comme manière d'améliorer les conditions
sociales dans le pays le plus pauvre de l'Amérique. Les particularités
historiques, culturelles et sociales sont determinant pour ce processus.
C'est livre concernant des avances et les défis d´apporter le democratie
dans un pays pauvre et chroniquement sans perspectives.
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INTRODUÇÃO
Uma república negra, velha e cheia de vícios
“Problemas internos e externos, cuja complexidade não
vale a pena discutir aqui, fizeram com que as coisas não
dessem certo no Haiti nos últimos 200 anos.”
Manual de 1994 para funcionários norte-americanos em
serviço no Haiti.
A mais antiga nação independente da América Latina não teve
festa de bicentenário. A data não constou nas agendas do governo do
Haiti, de nenhum chefe de estado, de nenhuma liderança política
haitiana ou estrangeira. No dia primeiro de janeiro de 2004, o então
presidente Jean Bertrand-Aristide manejava agitações civis e pressões
internacionais que em algumas semanas culminariam na sua
deposição. O ano do bicentenário seguiria penoso: dias praticamente
sem governo central, o desembarque de tropas das Nações Unidas em
território nacional e a instalação às pressas de um governo de
transição que não encontrou muito menos resistência em seus
primeiros meses. E duas fortes tempestades tropicais.
Todos esses acontecimentos provocaram alguns milhares de
mortes e deterioraram as condições de vida no país. O Haiti entra em
seu segundo século de vida tentando se desvencilhar de uma crise
política e humanitária aguda, num contexto de problemas sociais
crônicos que já lhe rendia a posição de país mais pobre do continente
latino americano, com nada menos que 80% da população vivendo
com uma renda diária abaixo de US$ 2. No último ranking de
desenvolvido humano das Nações Unidas, em 2003, o país ficou na
150ª posição entre 173 países do mundo.
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O PIB da ordem de US$ 4 bilhões há anos oscila entre a
estagnação e pequenos avanços, principalmente em razão das
remessas estrangeiras a título de ajuda humanitária. Aliado ao quadro
de alto crescimento demográfico, a renda per capita caminha para trás
desde os anos 70. Mas nenhum indicador de subdesenvolvimento pode
ser tão evidente quanto a precariedade dos serviços públicos no país.
Saneamento é privilégio de 28% da população; na capital, basta se
afastar um pouco do centro para perceber que não há coleta de lixo
periódica. A provisão de energia elétrica é precária e inviabiliza o
desenvolvimento das atividades industriais; embora exista infraestrutura de distribuição nas maiores cidades, o fornecimento é
interrompido por horas algumas vezes por semana. Quem não tem
gerador (muitas casas usam baterias de caminhão), tem de deixar à
mão as lamparinas a óleo. O próprio Palácio Nacional dispõe de
quatro horas de luz elétrica por dia, para não correr o risco de apagões
no meio do expediente.
No ambiente de pobreza do país sempre esteve embutido o
risco de radicalização de qualquer tipo de reivindicação. Toda a
história do Haiti independente foi pautada por uma série de confrontos
internos e intervenções estrangeiras, com características de ocupação
ou de dissuasão de conflitos. Só cinco presidentes conseguiram
terminar seu mandato regular em duzentos anos de república; os
outros 44 sucumbiram antes do prazo. Num balanço da cronologia dos
governos do país, predomina uma alternância de períodos de
autoritarismo e de anarquia, com transições quase sempre traumáticas.
A característica agressiva das disputas políticas remonta à
história da luta pela independência, o maior mito nacional do Haiti.
Seus heróis são os escravos pioneiros das rebeliões que expulsariam
os senhores de terra do país e os negros guerreiros que derrotaram o
Exército de Napoleão em 1804, numa investida da França para
recuperar sua colônia. A primeira Constituição do país, na tentativa de
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banir o modelo colonial, era fortemente restritiva aos direitos dos
brancos no país. Para afirmar a independência e evitar a dominação
das antigas elites da colônia, já o primeiro governo, do antigo líder
escravo Jean Jacques Dessalines, optou por uma linha autoritária no
trato com a oposição. Daí em diante, os grupos políticos que se
formariam seguiram reproduzindo o hábito de excluir sumariamente a
oposição assim que ascendiam ao poder para preservar sua posição. A
existência de uma polarização política sempre foi temerária tanto para
o governo quanto para os opositores.
O sucesso de um Estado negro, de ex-escravos livres, era
pouco interessante para o mundo ainda escravagista – os Estados
Unidos só aboliriam a escravidão depois da Guerra de Secessão, em
1864, sessenta anos mais tarde, Cuba poucos anos depois. Até a
década de 1860, o Haiti sofreu embargo da América independente e
do império napoleônico, que por esta época tinha domínio sobre
praticamente todas as colônias européias. Um comércio internacional
muito rudimentar só foi começar a se desenvolver no final do século
XIX; o Haiti chegou atrasado na divisão de trabalho internacional, o
que seria determinante para seus próximos anos de História. Assim
como aconteceu em outros países latino americanos, o Haiti também
inaugurou uma dívida histórica com pagamentos pelo reconhecimento
da independência.
O resultado é que na tentativa de se afirmar como nação negra
e independente, o país cultivou vícios de gestão política e problemas
estruturais. Nunca houve de fato um plano para o desenvolvimento
econômico, e o mundo desenvolvido só voltava os olhos ao Haiti
quando os conflitos chegavam ao extremo e refugiados vinham bater
às suas portas. Todas essas circunstâncias acabaram promovendo uma
espécie de mau-desenvolvimento das atividades produtivas e das
condições sociais no país.
11
***
Vista de cima, Porto Príncipe é cinza. Próprio de uma cidade
em que a devastação ambiental chegou ao seu limite.
Vista de perto, Porto Príncipe lembra um canteiro de obras,
abandonado. Os ricos adornam suas casas com pedras ou
acabamentos finos, mas as casas dos pobres parecem
inacabadas. Sem argila, as pessoas constroem suas casas com
tijolos de concreto, e a maioria é mesmo deixada pela metade.
As regras das favelas das metrópoles brasileiras também
funcionam aqui: casas pequenas, muita gente na rua. Tanta
criança, que é difícil acreditar que mais de dez por cento delas
morrem antes de completar cinco anos.
Mas a paisagem da pobreza deles destoa um pouco da nossa.
Dizem que a colonização francesa engendrou um povo
naturalmente bem vestido: andar sem camisa é uma ofensa para
o haitiano; seus filhos freqüentam as escolas públicas em
uniformes tradicionais, que enchem a cidade de cores fortes no
fim da tarde. Apesar de o ensino ser muito deficiente e as
escolas sucateadas, estudar nesta ou naquela escola é motivo de
orgulho para os haitianos. Assim como a universidade do
Estado, os licées mais importantes têm concursos
concorridíssimos para preencher suas poucas vagas.
As crianças mais pobres passam os dias nas ruas, a pedir
trocados e atrapalhar o trânsito. São dispersas pelos carros de
particulares (“allez, allez”). De vez em quando, recebem doces
ou postais dos veículos da ONU: o imenso manual de conduta
para funcionários da ONU desaconselha a distribuição de
dinheiro.
***
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O nacionalismo ainda é o traço mais presente na motivação
dos movimentos políticos modernos e na legislação do país. Como
também tem apelo no imaginário do povo, o discurso da elite haitiana
ainda é essencialmente nacionalista. Mas a verdade é que, depois de
Toussaint L´Ouverture e Dessalines, pouco foi feito pela elevação da
qualidade de vida no país. Nunca partiram dos haitianos iniciativas no
sentido da estabilização dos processos políticos.
Mais recentemente, tem ficado para a comunidade
internacional o papel de tentar costurar coalizões e conter excessos
nos conflitos entre oposição e Estado. Meses depois da última crise de
2004, as Nações Unidas montaram a Missão para a Estabilização do
Haiti (Minustah), com os objetivos de promover um ambiente seguro
e contribuir na organização de eleições dentro dos parâmetros
internacionais de democracia. Tentou-se aproveitar uma proximidade
cultural e geopolítica com a América Latina: a liderança da missão é
chilena, o comando das tropas militares, brasileiro. Mesmo assim,
levou-se pelo menos um ano para, em julho de 2005, a Minustah
declarar ter a maior parte do país sob controle.
A Minustah é a quinta missão da ONU no Haiti num período
de 11 anos. Em crises passadas, o socorro da ONU e de outras
organizações multilaterais foi incapaz de impedir nova deflagração de
conflitos alguns anos mais tarde. Essas empreitadas custaram aos
cofres estrangeiros mais de US$ 2 bilhões, e é difícil identificar em
quais melhoramentos eles foram aplicados. Nos bastidores das Nações
Unidas, existe uma pressão para estender a Minustah por pelo menos
dez anos, como forma de tornar mais estáveis os progressos
conquistados pelas missões.
O caminho para resolver o maior dos problemas do Haiti – a
situação de completo abandono em que vive seu povo - parece
necessariamente ter de passar pela democratização. Estabilidade dos
governos é a condição primordial para a realização de qualquer
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política pública ou para a aplicação de qualquer modelo de
desenvolvimento.
Não é um caminho simples. Consiste em basicamente treinar
uma república antiga e desmoralizada para os fundamentos da
democracia – eleições legítimas, compromisso do homem público
com seus eleitores, transição de poder natural. Registre-se também a
dificuldade das más condições de vida; uma sociedade onde quase
metade da população não come adequadamente dificilmente vai
comportar uma democracia representativa como a concebemos.
Vai demandar todo o tipo de esforço, da eficiência na
organização das eleições à disposição do eleitorado para acreditar
novamente no potencial da representação democrática. Mas de
maneiras diferentes, tanto a comunidade internacional quanto os
haitianos tomaram o novo século de vida republicana como um
ultimato: é tempo do Haiti corrigir o rumo de seus processos políticos
e decisórios.
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PARTE I
A Crise
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CAPÍTULO I
Uma promessa de nome Aristide
“Nous avons gagné et ce nous coletif n´est pas
démagogie: l´election triomphale du prêtre est avant tout un
acte d´exorcisme par les Haitiens de leurs propres demóns”*
Artigo sobre as eleições do Haiti no semanário
Libération, 18 de dezembro de 1990
Um país pobre recém-saído de ditaduras sangrentas tem o
direito a sua parcela de esperanças. Em 1990, a economia devastada e
sem grandes perspectivas, o Haiti vivia grandes expectativas para a
realização do primeiro pleito democrático desde 1957, quando o
médico do interior François Duvalier foi eleito e deu início a uma
dinastia de ditaduras ferozes. “Papa Doc” permaneceria presidente até
1971, valendo-se da truculência de seus tonton macoutes (a guarda
presidencial, batizada pela palavra creole para “bicho papão”) para se
sustentar no poder. Com sua morte, seu filho Jean-Claude (“Baby
Doc”) conduziria o Estado na mesma linha até fugir do país, em 1986,
num misto de acordo político e revolta popular.
A partir de então, uma sucessão de golpes militares e mortes
em tumultos com o Exército agravaram as condições de segurança do
país e chamaram a atenção da comunidade internacional. Talvez nas
eleições com o maior número de observadores estrangeiros
trabalhando para garantir a correção do processo, um candidato
explodiu na preferência dos haitianos com 67% dos votos.
No dia 7 de fevereiro de 1991, assumiu a presidência um
jovem padre da Igreja Católica, adepto da Teologia da Libertação e
*
“Nós ganhamos, e esse ‘nós’ coletivo não é demagogia: a eleição triunfal do
padre é antes de tudo um ato feito pelos haitianos de exorcismo de seus
demônios”.
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líder de programas sociais promovidos pela corrente. Jean-Bertrand
Aristide, então com 37 anos, ganhara projeção combatendo a violência
das ditaduras, em geral, e os regimes militares, em particular. Fez uma
campanha de forte apelo popular falada em creole, a língua dos mais
pobres, e conseguiu articular uma rede de apoios de partidos de
esquerda – feito inédito para o espectro político já tão fragmentado do
Haiti. Suas bandeiras foram o nacionalismo, o anti-imperialismo e a
melhoria das condições de vida dos mais pobres.
Embora tenha sido essencial apresentar a Igreja Católica como
fiadora num contexto em que os partidos políticos eram ainda
incipientes e sem base popular, Aristide conseguiu organizar ao longo
dos anos o maior e talvez mais importante grupo político da história
do Haiti. Junto com os trabalhos realizados pela Teologia da
Libertação no país, estruturou-se durante os anos 80 o movimento
Lavalas. Em seu início apenas como movimento popular envolvido
com a Igreja, o Lavalas teve um papel importante na queda de Baby
Doc e em mobilizações contra os regimes militares. Em 1989, ao
lançar uma campanha pelo respeito dos militares à Constituição, o
grupo foi formalizado partido político - Organisation Politique
Lavalas (OPL). Foi este movimento, enraizado nos bairros mais
pobres assistidos pela Igreja, quem colocou pére Titid no poder.
O primeiro período de Aristide no Palácio Nacional não durou
mais que o tempo de preparação de um golpe de Estado. Oito meses
depois de sua posse, em setembro, uma investida militar liderada pelo
general Raul Cedras destituiu o governo. A movimentação das forças
de oposição já era evidente, mas ninguém parecia acreditar que um
governo eleito democraticamente, num processo eleitoral ratificado
por diversas instituições internacionais, poderia ter sua legitimidade
questionada e ser posto à prova por mais um golpe. Mas a marcha dos
militares ao centro da cidade fez-se anunciar pelas rádios. A reação
popular foi intensa – a insegurança nos bairros mais pobres esvaziou a
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capital – e incapaz de evitar a tomada do cargo por uma nova junta
militar.
A junta apoiava-se na elite econômica do país e em outros
setores-chave da sociedade que rejeitavam o Lavalas e suas origens
populares. Os Estados Unidos, que temiam outro governo de esquerda
no Caribe, encorajavam a oposição ao presidente. Mas aparentemente
o presidente americano George Bush percebeu rápido que não fez um
bom negócio: suspendeu o apoio financeiro ao grupo três dias depois
dos militares assumirem o governo
O regime militar inaugurou uma perseguição aos partidários
do presidente eleito. Estima-se que de 3 a 5 mil pessoas tenham sido
assassinadas por motivação política nos três anos em que o regime se
manteve. O Lavalas, ainda fortalecido, não poupava confrontos com o
governo. A sensação de insegurança no país intensificou o êxodo de
haitianos do país – incômodo constante para outros governos
nacionais, especialmente o dos Estados Unidos, da vizinha República
Dominicana e da França.
A OEA e a ONU trabalharam durante mais de dois anos numa
solução diplomática para a crise. As negociações foram em grande
parte mediadas pelos Estados Unidos; a vitória de um padre
esquerdista não agradava aos americanos, mas eles tampouco
poderiam tolerar a brutalidade da junta militar que governava o país.
Em 1992, Clinton chega à Casa Branca e adota uma nova política para
o Haiti – elaborada principalmente para estancar o número crescente
de haitianos que tentavam asilo na Flórida. Começa a ficar maior a
pressão internacional para a volta de Aristide.
Depois de uma tentativa frustrada de intervenção das Nações
Unidas em outubro de 1993 – o exército americano foi barrado em
Porto Príncipe por grupos paramilitares – , os Estados Unidos se
convenceram da necessidade de uma terceira via entre um governo de
Aristide e o governo militar. Clinton encabeçou um embargo
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comercial à sofrida economia haitiana por meses, e forçou um novo
acordo com Cedras. Convencionou-se que Aristide voltaria para
convocar eleições e terminar seu mandato no prazo original previsto
pela Constituição, a despeito dos três anos que passara afastado do
cargo. A missão enviada pela ONU asseguraria a estabilidade do
governo e acompanharia a transição democrática já no ano seguinte.
Uma força enviada pelo Conselho de Segurança, liderada
entre outros pelo general americano Colin Powell, levou Aristide a
Porto Príncipe em 15 de Outubro de 1994. Milhares foram receber os
Black Hawks americanos que trouxeram o presidente de seus últimos
meses de exílio nos Estados Unidos. Uma paisagem insólita para a
capital: os haitianos que tinham visto Aristide ser comparado a Fidel
Castro pelos americanos agora o viam reconduzido ao Palácio por
helicópteros do exército estadunidense.
Pode ter sido durante o exílio que Aristide definiu o rol de
aliados e inimigos com que operaria quando voltasse ao governo do
Haiti. Na primeira fase do seu afastamento, em Caracas, ele atribuiu
sua deposição à influência do que chamou de quatro “A”s: argent, a
elite endinheirada haitiana, favorecidas por uma das piores
distribuições de renda do mundo; Amerique, os americanos que
durante toda a crise dispuseram de inúmeros meios de pressão; Armée,
as Forças Armadas que levaram a cabo o golpe e, anunciando mais um
rompimento da sua base eleitoral, authorités eclesiastiques, os altos
quadros da Igreja Católica que ele já tinha então abandonado. Esses
grupos foram acusados por Aristide de ter privilégios históricos na
História do país, e a partir daí seriam alvos principais de suas ações
políticas nos anos seguintes.
O golpe e o reestabelecimento do governo foram decisivos
também no futuro do movimento Lavalas, o maior orgulho da política
nacional e exemplo de sucesso até então. Antes mesmo de ser deposto,
houve rompimentos públicos na ampla aliança de esquerda que levou
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Aristide ao poder. Ele perdeu apoio no Parlamento sob acusações de
autoritarismo e corrupção; mesmo dentro do Lavalas já se delineavam
facções pró e contra Aristide. Em 1996, a ruptura aconteceria
formalmente, marcando o desmoronamento completo do que tinha
sido o movimento político Lavalas. Nos meses em que Aristide
exerceu o mandato, a expectativa em torno de uma “revolução social”
alimentou vários setores da sociedade civil. Até foram esboçados
projetos nacionais de alfabetização, recolhimento de impostos, acesso
a serviços essenciais e outros valores que venceram a campanha
presidencial, mas nenhum deles chegou a ser propriamente
implementado.
***
A juventude urbana de um país onde a economia é quase
totalmente rural é muito difícil. Nas classes em que o estudo
permite alguma mobilidade social, ainda é possível sonhar com
carreiras públicas. Nas favelas, ou se vive 60 anos – não mais
do que isso – de forma miserável, ou se morre com 30, tendo
conquistado algum dinheiro e algum poder na comunidade.
Aristide deu à sua guarda pessoal de chiméres (ou quimeras,
batizados como diabos do vodu) esta oportunidade. Além de
uma opção de vida, é uma opção política que lhes permitia
mostrar às elites opressoras do que são capazes.
De um fotógrafo que fez um trabalho artístico com crianças de
Bel Air e Cité Soleil: “Via pessoas realmente jovens dizendo que
se sentiam igualmente enganados e atraídos por Aristide. ‘Sei
que ele não fez nada por isso, mas ainda sinto que devo
obediência a ele´, era a frase que mais se ouvia daqueles jovens,
em péssimas condições de vida.”
21
***
Aristide reassumiu o mandato sob a promessa de convocar
eleições no mesmo ano e dividir o controle do país com a missão das
Nações Unidas instalada no país, formada principalmente com pessoal
e dinheiro americanos. A partir daí sua figura foi-se tornando mais e
mais polêmica. Ganharam vulto as acusações de corrupção e
impunidade de seus aliados no governo. Os Estados Unidos nunca
investiram tanto no Haiti quando nesta missão, na tentativa de
aperfeiçoar e fortalecer instituições de Estado – foram afastados 4800
soldados das Forças Armadas, algumas agências do legislativo
passaram por reformulações, a Polícia Nacional foi reformada. Veio
dos americanos também o financiamento do processo eleitoral,
organizado pelo governo sob a supervisão da ONU e da OEA.
Por mais de uma vez os investimentos americanos ficaram
ameaçados pela forte oposição dos Republicanos no Congresso
Americano. Aristide dedicou grandes dispêndios de tempo e dinheiro
em lobbies nos Estados Unidos, levantando as suspeitas dos grupos e
movimentos nacionalistas que sempre foram muito presentes no Haiti.
Em manifestos da época, trabalhadores e estudantes costumavam dizer
que o presidente saiu do país como “Aristid” e voltou como “Harry
Stid”.
Embora a missão tenha empenhado esforços na despolitização
de algumas instituições do governo, não se pode dizer que o Estado
haitiano ficara mais democrático. Aristide resistia como podia à
organização das eleições e tentava boicotar as forças que tinham
interesse de tirá-lo do poder. Visou principalmente os quatro “A”s que
identificara como os segmentos de maior influência na política
nacional. O golpe mais duro foi desferido nas Forças Armadas;
poucos meses depois de seu retorno Aristide declarou fechado o
Exército do país. Mais de 7 mil militares foram desmobilizados e
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demitidos, sem nenhuma perspectiva de recolocação. A extinção das
Forças Armadas acabaria se tornando, alguns anos depois, num dos
maiores problemas sociais e políticos do Haiti.
Com a proximidade do pleito, surgiram inúmeras acusações
de uso da máquina pública em benefício dos candidatos do governo.
As eleições de 1995 foram muito conturbadas, houve denúncia de
fraudes nos processos de registro eleitoral e contagem de votos. No
segundo turno, os partidos mais à esquerda que haviam se desligado
da base de Aristide boicotaram a eleição.
O Conselho Eleitoral haitiano declarou vencedor o candidato
da OPL René Préval, apoiado por Aristide. As organizações
internacionais e os Estados Unidos, maiores financiadores das
eleições, abriram um precedente perigoso ao acatar como legítimo os
resultados tão questionados por toda a oposição. Préval entraria para
história como o presidente mandado de Aristide. Uma certa habilidade
política, porém, permitiu que ele conseguisse conciliar os interesses
políticos mais relevantes, enfrentasse o desmembramento da OPL e se
mantivesse no poder até o final do mandato. Hoje, declara sua
simpatia aos partidos que nasceram do Lavalas e diz que rompeu
completamente com Jean-Bertrand Aristide. É um dos candidatos
favoritos na corrida presidencial para 2006.
A verdade é que, depois do aparecimento e ascensão de
Aristide no panorama político do Haiti, nada melhorou essencialmente
nas estruturas sociais do país. Pelo contrário, a vida nos bairros mais
pobres foi ainda mais deteriorada pela proliferação da criminalidade
que as grandes cidades viveram neste período. Ainda assim, a figura
dele é associada, por quem viveu esta época, à do homem que luta
pelos pobres. A prometida “revolução social” não chegou a ser
articulada, mas acabou se tornando um símbolo dos anos 90 no país, a
mudança que poderia ter acontecido e não aconteceu.
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Assim como aconteceu em outros processos de
redemocratização latino-americanos, o Haiti também experimentou
seu salvador da pátria – ou profeta, como era chamado por alguns à
época. Antes do desfecho dos acontecimentos, os americanos o
comparavam a Castro; com o distanciamento histórico que o passar
dos anos permite, ficou mais recorrente o paralelo com Menem, na
Argentina, Collor, no Brasil ou Fujimori, no Peru.
***
A simpatia do povo haitiano pelo povo brasileiro envolve laços
explicáveis e laços inexplicáveis. É explicável a proximidade do
passado colonial, a experiência da miséria, da ditadura e da
decepção política. É inexplicável o entusiasmo dos haitianos
pelo futebol brasileiro.
Na final da Copa América, no domingo de 25 de julho de 2004,
Porto Príncipe virou um pandemônio. Depois da vitória do
Brasil sobre a Argentina os haitianos subiram as ruas,
abarrotaram os bares com televisão e houve festa com direito a
bebida, desordem e vandalismos, como toda comemoração de
título merece.
No mês seguinte, os campeões da Copa América participaram
de um amistoso com a seleção haitiana: neste dia 18 de agosto,
o Force Commander Augusto Heleno Pereira perdeu dez anos
de vida. Pelo menos é o que ele mesmo diz: “Quando eu saí com
os jogadores do aeroporto, não acreditei que chegaria ao
Estádio sem ninguém se machucar”. A seleção ficou menos de
cinco horas no Haiti, mas o perigo não era a violência contra os
jogadores. “O meu medo era do fanatismo. Nunca vi nada igual.
Os haitianos furavam o bloqueio e acompanhavam os blindados
de bicicleta”. Aparentemente, em Porto Príncipe não há quem
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não tenha visto – e tocado, e conseguido autógrafos de –
Ronaldo, Ronaldinho, Adriano e Kaká, as preferências
nacionais.
Uma equipe de documentaristas acompanhou a concentração
das duas equipes adversárias: Parreira lembrou o vigor da
recepção, os gritos de “eu te amo”, o olhar das crianças.
Fernando Clavijo, o uruguaio técnico da seleção do Haiti,
lembrou um pedido de Lula: “O presidente deles pediu aos
brasileiros que não fizessem muitos gols na gente. Isso me
incomodou”. E propôs um desafio: vencer o jogo pode
simbolizar a emancipação do povo haitiano.
O resultado ficou em 7 a 0 para o Brasil.
***
25
CAPÍTULO II
26
A crise de 2004
“Aristid, Lavalas e Convèjans, se de pomonda
pouri nan ton sèl mem pantalon dechire”*
Dito em creóle
Assim como poucos políticos inspiraram tanta esperança nos
haitianos em sua história recente, poucos colecionam uma lista tão
grande de inimizades. Depois de retornar ao país trazendo consigo
alguns milhares de homens americanos, Aristide feriu o sentimento
nacionalista que pauta quase todos os movimentos populares
haitianos. Em 2000, uma reeleição controversa minou de uma vez por
todas as bases que lhe confiaram os votos para seu primeiro mandato.
Com a ineficiência e a falta de interesse na condução de
processos de democratização, Aristide caiu em descrédito pelos
Estados Unidos e as instituições estrangeiras; durante toda a década de
90, apoiou grandes proprietários de terras ligados ao capital
estrangeiro, e se indispôs com as organizações campesinas – em uma
das campanhas mais famosas, dezenas de trabalhadores rurais foram
mortos em conflitos com a polícia durante protestos quanto às
condições de trabalho em fazendas da Cointreau; Aristide se tornou
também o presidente que fechou o Exército Nacional e deixou nas
ruas 7 mil homens armados, sem colocação profissional no Estado e
mal-preparados para tentar trabalho na iniciativa privada.
Mas talvez o rompimento mais importante tenha acontecido
com os grupos urbanos de esquerda, que um dia se unificaram no
movimento Lavallas. Os crescentes conflitos dentro da Organisation
Politique Lavalas culminaram num racha em torno da pessoa de
Aristide; seus apoiadores pessoais fundaram o Fanmi Lavalas
(“Família Lavalas”, numa clara referência aos laços de lealdade
pessoal que ligava as pessoas deste grupo). Mais enfraquecida e com
*
“Aristide, Lavalas e a oposição, são todos lados de uma mesma calça
descosturada”.
27
poucas experiências de governo e liderança política, o outro segmento
manteve a sigla do partido e fundou a Organisation du Peuple em
Lutte, um partido mais à esquerda que o próprio Lavalas original.
Publicamente, tornaram-se diretores do Fanmi Lavalas pessoas
envolvidas com o crime e representantes de uma pequena burguesia e
proprietários de terras.
Foi nesta realidade política muito mais fragmentada que o país
voltou a convocar eleições, em maio de 2000. Sob o pretexto de
convocar um escrutínio realmente justo e legítimo, o calendário teve
de ser atrasado por quase um ano e Préval passou meses governando
por decreto. Talvez pela inabilidade dos fóruns responsáveis pelo
processo eleitoral, mas também pelo uso indevido da máquina pública,
as evidências de falcatruas nesta eleição foram ainda maiores que de
as de 1994. Houve relatos de fiscais de Aristide lacrando as urnas que
seriam encaminhadas aos locais de votação. No dia das eleições,
foram registrados verdadeiros massacres nos centros urbanos em que
Aristide tinha menos força. A OEA se retirou da organização do
pleito na metade do processo e os segmentos políticos anti-Lavalas
boicotaram em massa o segundo turno. Ao final da apuração, um
resultado nitidamente distorcido: Aristide venceu a eleição com 92%
dos votos e o Lavalas assumiu a maioria esmagadora dos cargos no
Senado e nas câmaras.
Foi por este período que tornou-se mais freqüente no país o
termo “chimérisation”. Ficaram conhecidos como “chiméres” jovens
da periferia, armados e financiados pelos dirigentes do Lavalas, que
passaram a atuar como uma espécie de guarda paralegal do presidente
no início dos anos 90. Uma prática comum desde a época da ditadura,
num país onde o Exército é historicamente fonte de instabilidade
política. Aristide foi buscar apoio em suas raízes, a juventude sem
perspectiva das favelas de grandes cidades. À época da eleição, a
violência se intensificou. As memórias mais duras deste período
28
envolvem massacres de grupos oposicionistas inteiros e pessoas
queimadas nas ruas.
Novamente presidente, Aristide estendeu sua influência à
Polícia Nacional Haitiana. Os altos cargos foram nomeados por
Aristide e no baixo funcionalismo houve incentivo à corrupção. Esse
investimento do governo numa polícia “política” faria a instituição
cair em total desconfiança da população. A Polícia passa até hoje por
reformas para combater o problema; na primeira triagem de oficiais
envolvidos em corrupção e narcotráfico, feita em 2004, o efetivo total
cairia de 7 para quase 2 mil homens.
A primeira tentativa de golpe não tardou a acontecer, e com
isso o novo governo entrou definitivamente em período de crise. Em
dezembro de 2001, a polícia e os chiméres responderam com saques e
mortes a uma tentativa de tomar o Palácio Nacional. No ano seguinte,
um grupo armado baseado na República Dominicana tentou forçar a
renúncia de Aristide. A resposta do governo ficava mais violenta: a
pequena cidade de Pérnal, no país vizinho, foi destruída. Depois de se
retirar da organização das eleições, a OEA voltou ao país para tentar
costurar acordos políticos entre governo e oposição.
Para facilitar o acordo, um grupo de empresários,
organizações civis e intelectuais anti-Aristide fundou uma frente de
negociações. O “Grupo 184”, sob a liderança do empresário haitiano
Andre Apaid, em poucos meses já tinha mais de 400 membros e se
transformara na mais organizada força de oposição ao governo –
reunindo figuras que apenas meses antes eram favorecidas pelas
políticas do governo Aristide. Em dezembro de 2003, a invasão de um
congresso do Grupo e uma chacina num encontro universitário
promovidas supostamente por facções armadas pró-governo
descartaram todas as possibilidade de um acordo. Também o
assassinato do líder oposicionista Amiot Metayer, chefe do grupo
“Exército Canibal”, feito pelos chiméres em uma das operações de
29
ocupação de propriedades acabou com qualquer disposição dos
adversários de Aristide.
A movimentação mais intensa de uma rebeldia armada
começou a 110 km da capital, na cidade de Gonaïves, no início de
fevereiro de 2004. Já nos primeiros dias, pelo menos 40 pessoas
morreram em investidas da oposição contra a polícia e grupos
armados ligados ao presidente. No espaço de uma semana, os
atentados tinham se estendido a doze cidades próximas. Mais dez dias
depois, a segunda maior cidade do país, Cap-Haitien, caiu nas mãos
dos rebeldes, que progressivamente recebiam a adesão de mais grupos
de oposição.
Tiveram peso essencial nas ações que visaram a saída de
Aristide pequenas células armadas em cidades menores do interior, em
geral formada por ex-militares. Aos poucos, alguns sindicatos e
representações de camponeses aumentavam o tamanho e a velocidade
dos ataques. Provavelmente nunca antes na história do Haiti
trabalhadores agiram em conjunto com os patrões – estes maquinando
os passos do Grupo 184, aqueles saqueando instalações de Polícia.
***
Um jovem de baixa-estatura e auto proclamado chefe militar
planeja uma expedição a Porto Príncipe. Se estivéssemos no
século XIX, seria Napoleão. Em 2004, foi Guy Phillipe.
Em 29 de fevereiro de 2004, seu aniversário de 36 anos, o exmilitar e ex-chefe de polícia chegou à capital no comando de
cerca de 50 militares, que irromperam na cidade um dia depois
da queda de Jean-Bertrand Aristide. A intenção foi mais de fazer
festa na capital que de assumir o governo: Guy Phillipe desfilou
pela Delmas, avenida que corta a cidade do litoral às
montanhas, e foi aclamado no Campo de Marte, praça do
30
Palácio Nacional, fortemente guardado por 150 fuzileiros
navais norte-americanos.
Guy Phillipe exilou-se na República Dominicana durante os
anos de Aristide, recebendo treinamento militar e chefiando à
distância, conforme evidências conhecidas em todo o país,
tráfico de drogas e armas no Haiti. Hoje, é candidato à
presidência: entrou nos termos democráticos. Aposentou a farda
e o distintivo e aparece publicamente em ternos e combinações
tropicais, ostenta uma imensa aliança de ouro e um semblante
infantil: é difícil acreditar que, pouco mais que um rapaz, ele já
tenha tanta história.
Sua atitude em 2004 acabou por consolidá-lo como o grande
líder do levante que tirou Aristide do poder. Ele gosta de exibir
conhecimentos de tática e história militares: descreve em
detalhes e com muitas referências as Forças Armadas que
devem ser re -estabelecidas em seu governo, conforme o
previsto na Constituição.
Sua figura é das mais controversas entre a ampla gama de
candidatos à eleição presidencial. Por isso, é com freqüência
convidado a participar de diálogos e convenções com
autoridades, que tentam antever a reação dos candidatos numa
possível derrota nas eleições. Nessas reuniões Guy Phillipe
mostra algum trânsito, mas é irredutível em dizer que não vai
aceitar um presidente que não prime pelo nacionalismo. “Marc
Bazin [ex-ministro de Aristide e integrante do governo
provisório], por exemplo, é um nacionalista?”. “Com o perdão
das moças que estão na sala, o meu partido acha que Bazin é
uma prostituta dos americanos”, ele responde, sem perder
nenhuma compostura.
***
31
Uma delegação da Comunidade e Mercado Comum do Caribe
- CARICOM – foi chamada ao país para conter os protestos e tentar
acordos políticos. Aristide chegou a aceitar uma proposta de dividir o
poder com um primeiro ministro de oposição, mas as pressões das
forças rebeldes não cessavam. O Grupo 184 também não admitia
acordo. A despeito dos esforços do CARICOM, os Estados Unidos e,
mais veementemente, a França, pediram pela renúncia do presidente.
Os americanos que o tinham trazido ao país dez anos antes,
em 29 de fevereiro de 2004 o resgataram do Palácio Nacional em
meio às agitações populares que já tomavam com mais força Porto
Príncipe. Aristide assinou uma carta de renúncia e, conforme previsto
na Constituição, o presidente da Suprema Corte Boniface Alexandre
assumiu seu lugar. Sua primeira medida como presidente foi pedir
assistência internacional, inclusive com tropas estrangeiras.
Ele sabia que a crise política demoraria meses para ser
aliviada. Com a queda de Aristide, deixaram o país também seus
aliados mais importantes. Instituições e agências do governo que já
funcionavam mal ficaram desertas e se agravou a insegurança nas
cidades. Mesmo as chefias da Polícia Nacional deixaram os postos
sem nenhum tipo de transição. Os edifícios públicos eram alvos de
vandalismo ou ocupação. Os danos materiais deste período superaram
US$ 100 milhões – em cidades, registremos, onde não havia muito o
que destruir.
Com o objetivo primeiro de garantir a segurança do novo
governo, o Conselho de Segurança enviou por três meses ao Haiti uma
força militar multilateral. Apenas alguns dias depois da renúncia,
chegou ao país uma tropa liderada pelos Estados Unidos e composta
por efetivos canadenses, chilenos e franceses. Neste período, as
Nações Unidas se viram às voltas com o controle de uma situação de
violência de cunho político, entre a oposição do presidente deposto e
32
partidários que permaneceram no país, misturada à criminalidade
indiscriminada. Só em junho o Conselho de Segurança instituiria a
Missão para a Estabilização do Haiti (Minustah), com um mandato
mais completo, que tinha por objetivo não só estabelecer condições
aceitáveis de segurança como preparar o país para uma transição de
poder democrática de fato.
Em duas semanas, a comunidade internacional articulou a
vinda de um empresário haitiano, residente na Flórida, para assumir o
governo de transição e tentar reorganizar um estrago nas instituições
oficiais que ainda nem estava completamente dimensionado. No
interior do país, muitas administrações locais estavam desocupadas e
sem condições de prover informações ao governo central; na capital,
uma situação de violência constante tomava conta dos bairros mais
pobres, redutos do Lavalas, onde nem mesmo oficiais do governo
conseguiam entrar.
A deposição de Jean-Bertrand Aristide de 2004
provavelmente será seu último golpe. Em seu primeiro
pronunciamento já em segurança no exílio, na África do Sul, Aristide
alegou que deixou o poder “seqüestrado” pelo Exército americano. A
comunidade internacional não reconheceu ilegitimidade no incidente.
A verdade é que a carta de renúncia foi objeto da formulação de
estrangeiros, especialmente Estados Unidos e a França, com a elite
econômica local aparelhada no segmento chamado Grupo 184. Houve
também, sem dúvida, participação popular no resultado da deposição,
no papel menos influente, porém mais arriscado, de engrossar as
estatísticas de violência e agitação civil.
O mesmo potencial de união que Aristide inspirou em seu
favor no início dos anos 90, em 2000 funcionou contra ele. A frente
que lutou por sua oposição – o grupo 184, a comunidade
internacional, camponeses e populares – sempre teve muitas
33
divergências de interesses entre si. Deposto o presidente, as diferenças
voltaram à tona em novas disputas por poder.
34
PARTE II
Antecedentes
35
36
Capítulo III
Estrutura da sociedade haitiana
“A respeito de qualquer assunto, o haitiano pensa uma
coisa, diz outra e faz uma terceira”
Gen. Augusto Heleno Ribeiro, ex-Force Commander,
sobre a maronage hatiana
O traço mais evidente da estrutura da sociedade haitiana é a
segregação entre ricos e pobres. Na capital, cidade em que é mais
acentuada a má distribuição de riqueza, a maior parte das paisagens é
completamente uniforme: em geral, casas pequenas, antigas, com
aparência de inacabadas. A condição das vias públicas – quase sem
exceção, de pavimentação ruim e completamente escuras à noite –
sugere a precariedade dos serviços públicos em geral.
Sobrevoando o país, a primeira porção distinguível de terreno
é o porto da capital, por onde o país mais pobre da América Latina
escoa a produção agrícola que compõe sua escassa pauta de
exportação – cacau, café, fumo e banana, essencialmente. A
agricultura sustenta dois terços dos trabalhadores haitianos, que vivem
no interior do país e distantes do poder central. Esses camponeses
ocupam-se com culturas de subsistência e para o comércio local ou
trabalham para proprietários de terras que destinam sua produção ao
exterior. Embora mais longe das políticas públicas e muitas vezes
mais pobres que os haitianos das zonas urbanas, eles vivem melhor
por ter uma alimentação mais completa baseada no plantio e na coleta
de frutas, principalmente.
Também é na costa do oceano que estão localizados os bairros
mais pobres de Porto Príncipe. A maior favela do país é identificável
pelas lajes de lata das suas moradias. As estatísticas mais ponderadas
37
falam em 500 mil pessoas vivendo no bairro de Cité Soleil, mais ou
menos um quinto de toda a população da capital. O governo não tem
trânsito nessa área: nem a Polícia Nacional é capaz de fazer o
policiamento do bairro, nem agentes sociais conseguem prestar
serviços a essa população. A situação é semelhante em outros bairros
mais deteriorados ao longo de toda a planície em frente ao mar, como
Bel Air, Carrefour e Cité Militaire.
Ainda que boa parte dos jovens tenha acesso à duvidosa
educação oferecida pelo Estado, os haitianos mais pobres não falam o
francês e por isso acabam isolados de muito do que acontece nos
serviços de informação institucional do país – dos noticiários aos
comunicados de políticas de governo. Estas pessoas são a maior parte
dos 80% de pobres que compõe a população e têm acesso restrito à
saúde, saneamento e água tratada; sua fonte de renda e é quase que
exclusivamente o comércio informal.
Nos anos 90, estes bairros viveram um arroubo de
criminalidade. O tráfico de drogas e, mais recentemente, o seqüestro,
viraram importantes fontes de renda nas regiões de periferia. As
grandes cidades haitianas, em especial a capital, tornaram-se rota de
exportação de drogas para os Estados Unidos e o Caribe: em 1990, o
Haiti era responsável por 5% da droga que chegava aos Estados
Unidos; hoje, essa proporção está na ordem dos 13%.
Mas a maior movimentação do dinheiro haitiano (o gourde)
nas áreas urbanas pobres é mesmo nos mercados de rua – as mesmas
ruas que carecem de limpeza pública e são visivelmente insalubres. A
grande maioria dos haitianos consegue os itens para sua sobrevivência
no comércio informal, alimentado pelo contrabando de todo o tipo de
mercadoria vindas principalmente da República Dominicana, da
Flórida, do Panamá e da Jamaica. Nesses bairros é comercializada
toda a sorte de itens: alimentos (legumes, frutas, carne, peixe),
38
vestuário, aparelhos eletrônicos, medicamentos, apetrechos de higiene
pessoal.
O pouco de importação registrada nas contas do governo que
chega ao país via Porto Príncipe é distribuída pelos supermercados,
armazéns e farmácias a que poucos haitianos têm acesso. O público
destas lojas é basicamente a elite endinheirada, estrangeiros residentes
no país – situação bastante freqüente, com a sucessão de missões
internacionais no Haiti – ou a pequena classe média que consegue
comprar alguns itens – víveres, leite ou remédios, por exemplo – no
comércio legal.
Esta pequena classe média se misturaria com facilidade aos
pobres pelas condições também inadequadas em que vive, mas se
concentra em regiões mais próximas do centro da cidade. É
constituída pelos mais ou menos 30% de haitianos que conseguem
colocação no mercado de trabalho formal – em geral como
funcionários públicos ou empregados das poucas indústrias nacionais.
Suas crianças são as freqüentadoras de escolas públicas e têm um
acesso pouco melhor à informação, porque falam francês. Esse
segmento, surgido primeiro no período da ditadura e depois ampliada
com a criação de alguns postos de trabalho na gestão de Préval, têm
influência importante nos rumos do país.
Afastando-se um pouco mais do litoral, a cidade de Porto
Príncipe começa a subir as montanhas próximas. Nessa área, que
concentra os bairros mais afastados e de Pétionville, algumas
residências começam a destoar da situação de pobreza completa. São
as residências de empresários, políticos haitianos e diplomatas.
Os ricos haitianos correspondem à mesma elite colonial
mulata que assumiu as funções burocráticas de governo no pósindependência: aproveitadas nos primeiros governos simplesmente
porque eram alfabetizadas, hoje formam uma classe pequena e
extremamente ligada a capitais e cultura internacionais. Nas
39
montanhas se concentram também as opções de entretenimento da
cidade – restaurantes, bares, boates – mas os haitianos ricos assistem à
televisão americana ou francesa e passam os fins de semana em
Miami ou na República Dominicana. Seus planos de assistência
médica têm cobertura internacional e seus filhos estudam no exterior
ou em escolas estrangeiras instaladas no país.
***
O maior embaixador do Haiti no estrangeiro é Wycleaf Jean,
haitiano do conjunto Fugees. É o modelo de sucesso para os
jovens haitianos: músico, radicado nos Estados Unidos, integrante
de uma banda americana, agora também com carreira solo.
Juntou dinheiro e prestígio e hoje investe em programas sociais e
de limpeza urbana no país. Ninguém dúvida que, em próximas
eleições, ele apareça como candidato.
Foi o lançamento de Wycleaf, nos anos 90, que desviou um pouco
a atenção da típica compa, uma espécie de ritmo caribenho, com
letras românticas em francês ou creole, para o hip hop americano.
Na mesma época, também o rap francês ganhou popularidade
entre os haitianos e a música estrangeira se instalou
definitivamente nas rádios.
Os artistas tradicionalmente haitianos são os que vendem nas ruas
pintura e artesanato. Desenvolveu-se no país uma espécie de arte
naif bastante particular, um tipo de pintura dos artistas quase sem
formação e, portanto, sem muitas referências acadêmicas. Por
isso mesmo, em alguns aspectos o naif se aproxima da arte
infantil: as representações são claramente baseadas na
iconografia popular: as pinturas retratam a vida nas ruas – as
feiras livres, as multidões, as mulheres, símbolos religiosos. A arte
naif costuma também ser agradável ao olhar, ainda mais no caso
dos haitianos que sabem explorar as formas e cores tropicais.
40
Um pouco de artesanato pode ser encontrado na casa de qualquer
haitiano. A maior parte da produção, porém, fica comprometida
desde o tempo em que o Haiti não tem mais turistas, faz pelo
menos cinqüenta anos. Quem movimenta a maior parte dessa
economia tem sido os funcionários das missões (e esta
reportagem). Com o tempo, a arte haitiana vai ganhando alguma
projeção internacional.
***
Enquanto na visão dos pobres os mulatos materializam a elite
colonial francesa, a intervenção estrangeira e a perda de soberania, os
pobres são qualificados pelos mulatos como paysans, pessoas
próximas da categoria de homens primitivos quase incapazes de
aprender. Nos últimos dez anos, essas diferenças foram radicalizadas
pelo processo de “chimérisation”, que acabou criando uma sensação
de criminalização da pobreza no país. A segregação atinge a tal ponto
estes extremos que poucos haitianos de Porto Príncipe conhecem a
cidade inteira. Parece paradoxal, mas a república de ex-escravos
acabou se tornando um país racista, em que negros e mulatos não se
misturam nem mesmo nas atividades do dia a dia. No pósindependência, mulatos chegaram a ter escravos no Haiti. Mesmo
entre pares, a elite haitiana cultiva indisposições: é uma sociedade
muito pequena e cheia de interligações cujos reais interesses poucos
são capazes de desvendar.
A dissimulação é uma característica haitiana, popularizada no
país como maronage, a palavra creole para fugitivo. Assim como os
escravos fugitivos que tinham de esconder suas tramas do senhorio, a
impressão no Haiti hoje é que as diversas classes convivem, negociam
e podem até fechar acordos, mas sempre na base da desconfiança.
41
Nada é mais difícil de adivinhar sobre um haitiano do que sua filiação
política.
Mas o fato é que a pequena elite econômica de hoje sempre
esteve próxima do poder desde a colonização e acabou criando as
condições para perpetuar seus privilégios no Haiti independente. Até
hoje, o Estado ampara uma sociedade baseada em um regime quase
mercantilista e cartorial: todas as atividades industriais ou de comércio
exterior dependem de concessões do governo, o que acabou
estabelecendo ao longo dos anos um mercado oligopolista e anômalo,
onde tudo que é comercializado é contrabando ou produto de algum
monopólio industrial ou importador. No âmbito da legislação, as
relações políticas e econômicas são inspiradas por um forte
formalismo jurídico, que acaba preservando regulamentações muito
arcaicas de sucessão e propriedade. Até hoje, por exemplo, o direito à
posse de terras é restritivo aos não-haitianos, em razão de um apêndice
de legislação da época da independência que tentava evitar o retorno
dos senhores de terras franceses ao país.
A ortodoxia do mercado e inúmeras limitações da legislação
criam uma dificuldade de incorporar os haitianos de melhor formação.
Tanto os profissionais formados na Universidade do Estado como os
que vão estudar no exterior são desestimulados a voltar ao seu país.
Em primeiro lugar, porque não foi estabelecido ainda um mercado de
concorrência; em segundo, porque o arcabouço jurídico imenso e
fraco não impede que ao voltarem eles sejam sujeitos à extorsão; mas,
em terceiro lugar e principalmente, pela resistência do Estado em
aceitar a dupla nacionalidade. Ainda preso a uma determinação do
pós-independência, quando os sentimentos nacionalistas estavam à
flor da pele, o Haiti não reconhece como haitianos qualquer cidadão
que tenha “renunciado a seu país de origem”, ou seja, tenha se
naturalizado em outro país. Hoje, são 2 milhões de haitianos – 20% de
toda a população. Para os jovens instruídos que preferem ficar no país,
42
uma das únicas alternativas é partir para a carreira pública. O que
poderia gerar a profissionalização dos serviços do Estado, acaba
fazendo da política nada mais que um meio de vida no Haiti, sem
nenhum comprometimento com as demandas do país.
***
Goddony é “haitian-american”. Deixou o Haiti em 1989,
quando tinha 12 anos e a brutalidade do período pós-ditatorial
começava a ameaçar as classes médias. Seus pais, que já
trabalhavam nos Estados Unidos e remetiam dinheiro para a
família no Haiti, trouxeram então os três filhos para morar em
New Jersey. “Eu vivi a primeira metade da minha vida no Haiti
e grande parte da minha identidade cultural está ligada à
cultura haitiana, mas eu também reconheço e assumo a herança
americana que também tenho”.
Seu único retorno ao Haiti, em 1996, foi suficiente para fazê-lo
desistir definitivamente de voltar. “Minha família foi vender
umas terras que tinha no interior, mas tinha pessoas morando lá
que quase mataram os meus pais”. A família voltou para os
Estados Unidos antes do tempo. As terras tiveram de ficar
abandonadas. “Sinto falta de muita coisa: da comida, da
vizinhança que era muito boa... da música, das praias bonitas,
da minha família que ficou lá. Mas as coisas não melhoraram,
na verdade só ficaram piores”. Os amigos com quem mantém
contato já passaram por assaltos, seqüestros e ameaças.
Nos Estados Unidos, Goddonny estudou literatura e poesia e
hoje é escritor e dá aulas em faculdade. “Se eu não tivesse saído
do Haiti, nunca teria o sucesso que tenho hoje”. Os amigos que
deixou no Haiti tiveram muita dificuldade em arrumar
ocupações, apesar da boa educação que receberam nos colégios
43
particulares onde Goddony também estudou. Depois de adultos,
a maioria deles mudou para os Estados Unidos ou para a
Europa.
No ano que vem, Goddony vai casar. Sua família será
americana. “Pobreza é o maior problema do Haiti. E eu não
acho que os políticos vão resolver – mesmo que eles sejam bem
intencionados, são corrompidos no poder Teria medo de criar
minha família no Haiti, depois da minha péssima experiência em
1996”.
***
Desde a independência, as agremiações e lutas políticas no
Haiti têm surgido em torno dessas classes sociais e da própria divisão
geográfica do país, já que é difícil o acesso a certas cidades do interior
e mesmo dentro da capital as fronteiras entre os bairros são muito
distintas. Um terceiro traço também se faz decisivo para explicar as
relações sociais que se estabelecem entre a população: a religiosidade,
que por isso sempre teve forte influência nas decisões políticas.
Não só o Lavalas, movimento popular haitiano mais
importante das últimas décadas, nasceu ligado à atuação da Igreja
Católica em determinados bairros pobres, mas também o maior marco
da Revolução Haitiana, como ficou conhecido o conjunto de revoltas
de escravos que levaria à independência, é uma cerimônia vodu
realizada em 1971. Foi numa grande festa do Bwa Kayiman, ritual
reproduzido até hoje, que os escravos se comprometeram frente a um
espírito poderoso, recebido por um dos maiores hougans da época na
luta pela liberdade.
Ainda hoje, no interior e nas classes mais pobres, as
comunidades vodu são determinantes para a construção de base de
apoio dos haitianos que se aventuram na política. Nas cidades grandes,
44
com freqüência os hougans mais prestigiados são também chefes de
gangues ou criminosos temidos e respeitados.
O debate político chega aos pobres e às cidades do interior em
grande medida no seio dessas comunidades, ou sociedades vodu.
Ainda assim, o vodu permanece impenetrável para as elites estrangeira
e haitiana que atuam na esfera da high politics do país, no plano dos
partidos políticos e das negociações para a definição do governo
central. Elas se mantém tão avessas a esse contado talvez pela sua
configuração extremamente antiga e peculiar, que remonta às fugas de
escravos durante os séculos XVII e XVIII. Grupos fugidos do trabalho
nos latifúndios e fundavam micro-sociedades em meio à floresta que
tinham seitas espirituais à semelhança das práticas animistas que eles
próprios e seus antepassados trouxeram na África. A articulação entre
as diversas sociedades vodu que foram se situando no interior do país
ao longo dos anos foi que pôs em curso toda a sorte de ataques aos
senhores e colonos – envenenamentos, saques, mortes – que
desencadeariam o processo de independência. Nos anos 1960, Papa
Doc exerceria sua influência sob essas mesmas sociedades para se
sustentar no poder por mais de 20 anos.
Embora o vodu haitiano preserve de forma surpreendente a
essência da religião africana – o vodu hoje talvez seja mais presente
no Haiti que no seu próprio continente de origem - , ele se caracteriza
pela incorporação de elementos da religião católica. Pra poder
continuar a praticar suas crenças nas fazendas coloniais, os escravos
tiveram de admitir algum sincretismo – traçar correspondências entre
santos e orixás, por exemplo – e realizar adaptações na freqüência e na
exposição dos cultos, que passaram a acontecer em reservado nos
templos vodu ou outros ambientes próprios.
No Haiti moderno, a Igreja Católica e o vodu convivem
normalmente. Na verdade, a maioria dos haitianos freqüenta a Igreja,
muito popularizada pelos trabalhos sociais da Teologia da libertação
45
nos anos 70 e 80, e também as sociedades vodu. O próprio Aristide
valeu-se da influência de fiéis em sociedades vodu da periferia da
capital e em outros lugares do país para compor sua base de apoio. Em
2003, instituiu o vodu como religião nacional; ele costumava dizer
que 95% da população Haitiana é católica, e 100% praticantes do
vodu.
Hoje, uma terceira força religiosa ganha impulso no país; as
Igrejas Protestantes acabaram por afastar os jovens de grandes cidades
da prática do vodu – uma realidade ainda muito próxima para a
geração de seus pais. Ao contrário dos católicos, os cristãos
evangélicos rejeitam o vodu e toda sua desenvoltura no mundo dos
mortos. A instrução dos pastores evangélicos para os fiéis que
cruzarem com cerimônias vodu, é orar muito intensamente para contar
a Deus que naquele lugar se aprisiona almas. O protestantismo é
relativamente novo no país e ainda não tem muita influência política
no conjunto da sociedade; mesmo assim, representantes da Igreja
evangélica concorrerão nas eleições de 2005 a cargos parlamentares e
à presidência.
Ainda que o acesso às sociedades vodu seja quase impossível
aos não-haitianos, é aparente a força com que os conceitos vodu fazem
parte da cultura e da consciência do país. Provavelmente qualquer
haitiano de Porto Príncipe conhece, ou pelo menos conhece quem
conheça, alguma história de zumbificação. O ritual haitiano de morte e
renascença na forma de zumbi, um indivíduo sem alma e sem
vontades, é talvez um dos fenômenos etnobotânicos que mais
despertou o interesse de pesquisadores em todo o mundo. Para os
haitianos, a idéia de que se poder ter a alma roubada é terrível; os
hatianos de Jeremy e Artibonite, duas cidades do interior famosas pelo
poder de seus hougans, são recebidos em outras partes do país com
uma hospitalidade inspirada por temor e respeito.
46
CAPÍTULO IV
Tradição política
“O Haiti é um país de maus perdedores”
Jean-Baptiste Reynold Leroy, historiador e
Ministro-Conselheiro da Embaixada do Haiti no Brasil
Sempre que se falar de política no Haiti, há de se resgatar sua
história de Independência. É a identidade nacional dos haitianos, o
discurso de mais apelo em todos os segmentos da sociedade e, sem
dúvida, um momento altivo na história do continente e do mundo. De
todo os processos de descolonização ao longo dos séculos XIX e XX,
talvez a do Haiti tenha sido o mais legítimo: a violenta revolta de
escravos que conquista a liberdade, expulsa os colonos opressores e
constrói sua própria república negra.
A despeito dos motivos que impediram o desenvolvimento
político e social nos dois séculos seguintes, o padrão se repete durante
toda a história. No contexto do colonialismo, os haitianos
desenvolveram uma fórmula de chegada ao poder e até hoje não se
libertaram dela; o padrão de comportamento de quem ascende ao
governo é eliminar completamente a oposição e usar de todos os
meios para se manter no poder. À época, ele fazia sentido: antes que
pelo poder, a luta era por liberdades e direitos individuais. Nada mais
justificável que expulsar os senhores e recorrer à violência caso os
franceses voltassem, como de fato voltaram, e com o Exército de
Napoleão, para buscar suas antigas possessões. Mas o modelo
“ascender ao poder, centralizar o governo e expulsar a oposição” é
menos eficiente se aplicado a uma república de homens livres com
aspirações democráticas.
Após um século de golpes de Estado sucessivos e 30 anos de
uma ditadura dinástica, o Haiti tentou corrigir sua tradição autoritária
47
mudando o sistema político para o parlamentarismo clássico: o
presidente escolhe seu primeiro ministro entre o partido que tem a
maioria no Congresso. Mas a legislação é imperfeita e nunca chegou a
produzir efeito: a lei sequer qualifica a maioria necessária para eleger
o chefe de governo. Como os partidos são muito fragmentados,
dificilmente há maioria nas câmaras e, novamente há brecha para o
presidente exercer arbitrariedades.
O curioso é que desde o início da República o Haiti tem uma
divisão política descentralizada. Respondendo ao governo central,
estão dez províncias de considerável autonomia e 140 municipalidades
divididas em mais de 8 mil administrações regionais, eleitas de forma
direta pelos residentes de uma porção geográfica bastante restrita. Esta
estrutura fundamental a princípio satisfaz os requisitos para o
estabelecimento de uma democracia representativa, mas isso nunca
chegou a acontecer no âmbito nacional. Pelo contrário, o grau de
abstenção nas eleições para a administração geral é muito maior e
nenhum presidente já chegou a defender na realidade as demandas das
populações, como acontece menos raramente nas municipalidades.
Paradoxalmente, a política nacional é tão ou mais clientelista que a
política praticada no domínio local.
A fragilidade dos partidos políticos é um dos fatores que
permite o continuísmo destas formulações autoritárias de governo.
Ainda no momento da eleição, um partido político sem bases de
fundação significativas fica muito centrado em um só indivíduo, o que
torna mais provável que o governo resvale no autoritarismo. Essa
condição dos partidos também é a maior responsável pela total
ausência de coalizões, em nome de qualquer tipo de governabilidade.
Uma cultura partidária individualista raramente vai comportar acordos
e bancadas entre grupos diferentes.
Para completar a gravidade do problema, não há regulação do
Estado na ordenação dos partidos. Embora exista um mecanismo
48
público de financiamento, os recursos são escassos e a maioria deles
depende de fontes externas. Num país de uma pequena burguesia é
corrupta e a criminalidade é uma das maiores fontes de renda, isso
acaba abrindo espaço para alianças entre o crime e a política.
Há resistências de todos os lados quando se fala em qualquer
tipo de divisão do poder. Praticamente inexiste o conceito de alianças
partidárias, mesmo porque é difícil encontrar afinidades estruturais
quando os partidos políticos nada mais são do que agremiações em
torno de uma figura pública em especial.
Aparentemente os haitianos herdaram também dos pais da
Independência a aptidão para a radicalização. As transições
presidenciais no Haiti – deposições, renúncias e até o processo
eleitoral – são sempre traumáticas e agressivas. No contexto histórico
da exploração colonial, a atitude fazia mais sentido; na República
Livre, é inaceitável. Não só a oposição reage à perda de poder com
atentados ao Estado estabelecido, mas também o Estado cria
mecanismos igualmente violentos para reprimi-los – seja via forças
nacionais previstas na Constituição, seja na criação de grupos
paralegais como os tonton macoutes de Duvalier ou os chiméres de
Aristide.
Desde que a antiga força de ex-escravos, espelhada no modelo
militar da Revolução Francesa, conteve o Exército de Napoleão
Bonaparte e proclamou a independência do Haiti, as Forças Armadas
se tornaram uma instituição importantíssima na simbologia e no
imaginário nacionalistas. Embora na história mais recente elas tenham
funcionado mais como fonte de instabilidade que como sustentáculo
do Estado, um Exército Nacional forte ainda é muito prezado pela
população. Mesmo tendo construído uma péssima fama no regime
Duvalier, as Forças Armadas permanecem como alegoria da soberania
nacional haitiana. Sua dissolução em 1994 golpeou a auto-estima dos
haitianos; na interpretação corrente da situação, as tropas da ONU
49
permanecem com tal constância no país porque o Haiti não tem os
seus próprios soldados.
***
Apesar de o atual homem forte do primeiro-ministro ser uma
mulher, a ministra da cultura Magali Comeau Denis, a
participação do sexo feminino na política é muito pouca. Dos 52
candidatos que se apresentaram ao Conselho Eleitoral, apenas
uma era mulher.
*
A maior parte dos empregados formais – menos de 30% do total
de ocupados – é homem, mas nas famílias pobres a mulher é
responsável pela maior parte dos rendimentos. Nas feiras livres,
predominam as mulheres fazendo comércio. Dizem que elas são
melhores com os regateadores.
*
Uma propaganda no centro da cidade, do que pareceu testes de
gravidez ou clínicas de aborto, mostrava uma mulher chorando ao
telefone. Em creóle, o outdoor anunciava. “Acidente? Estupro?
Tem solução. Ligue para nós”.
***
Os haitianos estão acostumados a ver tropas estrangeiras
circulando nas ruas, interferindo em qualquer momento de violência
ou de polarização extrema. A primeira tentativa estrangeira de
promover algum equilíbrio na política haitiana é de 1915, na era do
Big Stick americano. O Exército dos Estados Unidos ocupou o país
por dezenove anos, reformulou as velhas Forças Armadas de origem
francesa, criou novas instituições e instalou no país uma espécie de
democracia que ruiu alguns anos depois. Voltariam com o mesmo
50
intuito missões francesas, canadenses, da OEA e, nos anos 90, das
Nações Unidas.
Sobre a presença constante da comunidade internacional no
país, as opiniões se dividem e se confundem. Apenas a rejeição aos
Estados Unidos, encarnação do imperialismo, e à França, encarnação
do colonialismo, são unanimidades nacionais. Há quem condene as
missões da ONU por identificá-la com os Estados Unidos e há quem
as considere legítimas, já que o Haiti é signatário da Xarta das Nações
Unidas. As tropas são muito bem recebidas na maior parte do país,
mas esporadicamente surgem críticas em relação à sua conduta ou ao
papel da ONU no âmbito das high politics.
O consenso é que, até agora, as intervenções estrangeiras no
Haiti fracassaram. Durante os anos 90, a comunidade internacional
enviou ao país toda a espécie de ajuda – investimento direto, missões
de paz, comissões diplomáticas, trabalhos humanitários –, mas as
tentativas até agora trouxeram poucos melhoramentos permanentes e
nenhuma mudança estrutural. Por esse motivo, a comunidade
internacional continua voltando ao país a cada nova deflagração de
crise que se anuncia.
Mas é tão explícita e tão vital a influência estrangeira em
todas as atribuições do Estado – da organização de eleições à
segurança, do acesso à saúde à realização da Justiça – que a
assistência internacional já foi assimilada até pelos grupos mais
nacionalistas. As embaixadas estrangeiras recebem enxurradas de
cartas de prefeituras, associações beneficentes e organismos da
sociedade civil pedindo doações e patrocínios. Mesmo entre os
movimentos de esquerda, são poucos os que rejeitam a ajuda
estrangeira. Os mais críticos fazem questão de frisar que as missões e
trabalhos estrangeiros no país estão ligados à incapacidade da classe
política haitiana em administrar seus próprios problemas.
51
Se os haitianos estão perdendo a fé na comunidade
internacional após tantos insucessos, esta também tem cobranças a
fazer. A prática política haitiana nos termos em que é feita – os
excluídos do poder armam uma oposição nociva, a que o governo
estabelecido responde com ainda mais agressividade – está se
tornando inaceitável para os credores e observadores estrangeiros. O
alto comissariado da ONU, a secretária de Estado dos Estados Unidos
Condoleeza Rice e o corpo técnico da OEA têm enviado mensagens
nesse sentido: eles depositam uma quantidade muito grande de
recursos e esforços para o país continuar o mesmo foco de
instabilidade preocupante. Além do emprego de recursos humanos em
situações de risco, nas quais o staff militar e civil está sujeito a baixas,
os valores ainda são mais altos em cifras: nos anos 90, foram US$ 2
bilhões; hoje, são US$ 400 milhões por ano só dos Estados Unidos e
US$ 200 milhões do Canadá, regularmente. Recentemente, também o
Brasil doou US$ 1 milhão para o processo eleitoral, além de manter
uma carteira de projetos de mais de US$1,2 milhão para o incentivo à
economia e a formação profissional, soma alta para um país que tem
mais de 20 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza.
A insistência em conquistar a estabilidade política é também
requisito para a inserção do Haiti numa economia de mercado de fato.
Os negócios no Haiti são avaliados pelos analistas de risco
internacional como os de uma economia de pós-guerra,
completamente devastada. A anomalia do comércio haitiano, em que a
maior circulação de recursos acontece com o tráfico de mercadorias
contrabandeadas, não avaliza a mínima segurança para investimentos
que poderiam gerar renda e melhorar a vida da população.
Recomendações do Banco Mundial e do FMI às gestões de Préval e
Aristide, como a privatização de alguns serviços públicos e setores da
economia essenciais, não foram atendidas. Reformas mais profundas e
a inauguração de uma linha de política econômica sequer são
52
possíveis quando os quadros de governo não permanecem por pelo
menos quatro anos no poder. Nos momentos de crise, o Banco
Mundial, a União Européia e os Estados Unidos chegaram a suspender
lançamentos da ordem de US$ 500 milhões na frágil economia
haitiana
.
***
Todo país precisa de suas esquerdas. É uma espécie de equilíbrio
natural do espectro político.
O estereótipo discurso, barba e folhetos com palavras de ordem
também parecem ter fundamento universal. “O Capital” em
destaque na estante, cartazes de diversos movimentos populares
nacionais e estrangeiros, uma bandeira do MST.
“Aqui não funciona assim”. A viatura da ONU e a segurança
foram barradas na porta da sede do Movimento, na entrada da
favela de Bel Air. Mas a casa do diretor é no bairro elitizado de
Pétionville.
Didier Dominique há algum tempo já não é mais um jovem
militante do movimento Batay Ourvriye (“Batalha dos
operários”), uma espécie de central sindical do país que reúne a
representação das poucas classes profissionais organizadas no
Haiti, estudantes e camponeses. Além do futebol, ele admira as
esquerdas do Brasil.
“A Minustah é uma realidade de ocupação. Não sei como Lula,
Néstor Kirchner e Tabare Vazquez são coniventes com ela”. O
movimento não admite intervenção militar estrangeira: a ajuda
internacional de que o Haiti precisa é humanitária, como a de
Cuba, que envia todos os anos uma equipe de médicos para o país.
Ou de cooperação econômica, como é o caso de diversos projetos
apoiados pelo governo de Taiwan.
53
Inconformado, Didier Dominique remeteu uma carta a Lula,
falando de sua decepção. Não teve resposta, ainda.
***
Apesar de todas as ações que vêm sendo realizadas para a
convocação de eleições justas e legítimas em 2005, considera-se a
possibilidade de ver perspectivas de estabilidade frustradas.
Certamente, a julgar pelo número de partidos e candidatos que
concorrem às eleições em todos os níveis, um presidente dificilmente
terá apoio da maioria no parlamento, o que já dificulta a aprovação de
qualquer mudança importante. Mas o maior receio é a explosão de
novo conflito antes mesmo do novo governo ser empossado. O
cenário mais difícil pintado pela imprensa é se no segundo turno se
enfrentarem representantes do que hoje se chama imprecisamente de
Grupo 184 (basicamente qualquer antagonista convicto de Aristide) e
o Lavalas. Nessa hipótese, volta-se ao ano passado. Muitos candidatos
adotam publicamente a postura de nunca mais deixar o Lavalas voltar
ao poder, e isso pode ser um desastre para os empreendimentos de
instituir as regras democráticas na política haitiana.
Quanto aos anseios populares, os analistas preferem acreditar
na politização de um povo que erigiu sua própria república. Mas
nenhum candidato ou movimento despertou até agora maiores
manifestações de apoio ou simpatia, o que atenta para a possibilidade
de que o haitiano simplesmente tenha parado de se interessar por
política.
Nos anos da ditadura Duvalier, houve momentos de luta
nacional por eleições diretas e redemocratização, como conquista
fundamental para o respeito aos direitos do homem - é verdade, não
estava tão difundida nos anos 60, 70 e 80 a idéia de Direitos Humanos
indissociáveis nos planos político, civil e social. Dessa época para cá,
54
os hatianos passaram a votar – é verdade, não com a regularidade
devida – , conquistaram uma relativa gama de liberdades individuais –
de expressão, de circulação - , mas evoluíram muito pouco em termos
de condições sociais. A luta ficou pela metade.
55
56
PARTE III
A missão
57
58
CAPÍTULO V
A ONU no contexto do Haiti
“Esse conjunto de circunstâncias contribuiu para
simultaneamente expandir a agenda das Nações Unidas e inflar
as expectativas com relação ao seu papel, sem que a isso
correspondesse um aumento proporcional de sua capacidade de
resolução”
José Augusto Guilhon de Albuquerque
Nos últimos quinze anos, a presença da comunidade
internacional no Haiti deu-se principalmente por meio dos mandatos
das Nações Unidas. Quatro missões mantiveram pessoal da ONU no
país praticamente de forma ininterrupta entre 1993 e 2000. O Projeto
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) também está lá
há mais de 20 anos e as principais organizações do terceiro setor
parceiras têm representação na capital e nas cidades maiores.
E mesmo assim, o Haiti não é um exemplo de sucesso do
socorro internacional. Os problemas estruturais que afligem as
condições sociais do país continuam os mesmos e a cada dois ou três
anos as comissões diplomáticas voltam ao país para costurar acordos
em torno de nova crise política.
O fracasso das missões de paz e desenvolvimento é atribuído à
múltiplas causas, algumas ligadas à inadequação das missões, outras à
incompetência da classe política nacional. Quando Aristide retomou o
poder em eleições fraudulentas, os observadores domésticos e
estrangeiros entraram em estado de alerta: a crise parecia certa.
Quando por fim a tensão evoluiu para novo conflito, em proporções
ampliadas, estes atores concordaram em empregar esforços para criar
um plano de intervenção melhorado, que trouxesse o equilíbrio à
59
situação a prazos mais longos. Para isso, teria de ser desenvolvido um
programa tanto para a contenção da situação de violência civil que se
estabeleceu no país quanto para a cooperação do Estado em evitar
crises futuras; em linhas gerais, enviar uma força militar bem
orientada e processar uma transição de governo segura e que se
comprometesse com a manutenção das regras democráticas.
Foi com este mote que se iniciaram, um pouco atrasadas, as
negociações no Conselho de Segurança para a crise no Haiti, quando
Aristide era ainda presidente e OEA e Caricom já articulavam
soluções para o impasse político. O primeiro modelo de intervenção
debatido no Conselho de Segurança foi uma proposta do Caricom que
abarcava o envio de tropas militares e a formação de um governo de
transição tripartite, com representantes do Lavalas, do Grupo 184 e de
outras forças de oposição. Com essa hipótese a delegação já enviada
ao país trabalhou por todo o tempo.
Nos dias que antecederam a renúncia do presidente, o plano
começou a ser modificado por uma manobra das delegações dos
Estados Unidos e da França, principalmente. Articulou-se a vinda de
um funcionário de carreira das Nações Unidas, afastado do Haiti havia
mais de 30 anos, para assumir o cargo de primeiro ministro e liderar o
governo de transição. Gerard Latortue foi recebido com hesitação por
sua equipe de governo. O Caricom, criador e entusiasta do projeto de
transição anterior, se retirou dos fóruns de trabalho para a situação do
Haiti. Dias depois, anuladas as perspectivas de uma divisão de poder,
o ex-presidente Aristide anunciaria “um golpe” dos Estados Unidos,
França e das Nações Unidas.
Uma oportunidade para a conciliação de forças opositoras foi
desperdiçada pela via escolhida para a formação do governo de
transição. Mas para a redação do mandato da missão de paz, o
Conselho de Segurança foi mais judicioso com a orientação da ONU
de tentar escapar aos modelos que fracassaram nos anos anteriores.
60
Em fevereiro de 2004, depois de enviar uma força multilateral para
conter os primeiros dias de agitação, o Conselho aprovou o desenho
original da Minustah, que chegaria ao país no dia 1º de junho.
A primeira marca especial da Minustah é ter seus postos de
liderança ocupados por representantes latino-americanos: a chefia da
missão foi entregue a um embaixador chileno e o Brasil ficou com o
comando das tropas militares. Entre os 16 países contribuintes com o
pessoal militar, além do Brasil e do Chile, estão a Argentina, a
Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai compondo mais ou menos a metade
do efetivo que trabalha hoje no Haiti.
Essa composição é resultado de uma tendência de se ampliar a
participação da países periféricos nas atividades das Nações Unidas,
mas também denota uma preocupação em se aproveitar de
proximidades culturais para o sucesso da missão. A supressão do
exército americano, presença constante durante a década passada,
acabou também por dissociar a idéia da missão de paz com alguma
espécie de imperialismo. Certamente, os grupos políticos e a
população haitiana recebem melhor esta liderança e estes soldados do
que os americanos e franceses; porém, também conhecem e criticam a
política externa renovada do Brasil, que pleiteia uma influência maior
no continente e uma cadeira permanente no Conselho de Segurança.
Mas a identificação cultural realmente existe e ajuda. Com freqüência
os brasileiros vêem jornalistas e cientistas haitianos se referirem ao
Brasil, com toda a sorte de pobreza e problemas sociais que temos,
como uma espécie de primo rico.
***
A Réseau Nacional de Droits Humans, a mais importante rede de
ONGs haitianas, recebeu uma séria denúncia da cidade de
Gonaïve contra a Minustah, logo na fase de instalação das tropas.
Soldados argentinos, responsáveis pelo distrito onde fica a cidade,
61
estariam estuprando mulheres e crianças da região nas saídas das
escolas públicas.
O assistente social Viléz Alizzar, da RNDDH foi pessoalmente
apurar as denúncias. “Nada foi provado e admitiu-se na cidade
que tudo não passou de rumores”. Nem por isso, a avaliação da
ONG foi menos preocupante. “Se a cidade criou e acreditou
plenamente nessa história, é porque não se sentem seguros mesmo
com a presença da Minustah”.
***
De qualquer forma, a liderança confiada pelo Conselho às
lideranças latino-americanas acabou por funcionar também como uma
espécie de terapia para todo continente. Ao longo da alternância de
convulsões políticas no Haiti, os latino-americanos passaram a
flexibilizar sua rejeição ao papel de tropas estrangeiras em crises
domésticas. Escaldados como são em matéria de intervenção
estrangeira, principalmente os países do Caribe, eles resistiam muito a
qualquer resolução que lançasse mão do capítulo 7 da Carta das
Nações Unidas, o dispositivo que dá ao Conselho de Segurança a
prerrogativa do uso da força militar dentro das fronteiras de um país
em situação de alerta internacional.
O próprio Brasil mudou de posição a respeito. Em 1993, a
delegação provisória do Brasil no CS se absteve na votação do
primeiro projeto de resolução que enviava forças da ONU para o
Haiti. Pela experiência histórica do continente, o argumento do pósGuerra Fria de utilizar a ONU para promover a democracia no mundo
poderia funcionar como carta branca para uma série de intervenções
norte-americanas, como a ocorrida do Panamá poucos anos antes. A
mesma tese pautou a atuação dos brasileiros em 1994, empenhados
em limitar as ações do Capítulo 7, justamente por defender que esse é
um mecanismo permissivo do imperialismo; os cinco países com
poder de veto no fórum – Estados Unidos, França, Reino Unido,
62
China e Rússia - nunca verão o capítulo 7 aplicados a seus próprios
distúrbios domésticos.
Pois em 2004 o Brasil e outras diplomacias influentes da
América Latina não só endossaram o projeto da Minustah como
também se dispuseram a integrá-la. Mas também o teor do mandato
tem diferenças fundamentais em relação a missões de paz anteriores:
atuando nas frentes de pacificar a situação de violência, criar melhores
condições de direitos humanos e fundar um processo político
democrático, a missão mantém hoje perto de 10 mil pessoas em todo o
país, a maior estrutura que a ONU já bancou no Haiti até agora. O
mandato atual consiste em um contingente de cerca de 7 500 militares
para conter as atividades violentas, um corpo de 1600 policiais civis
para treinar e colaborar com a Polícia Nacional na repressão a crimes
e mais de 500 civis prestando apoio à organização das eleições e
envolvidos em trabalhos sociais e políticos de base. Os quadros ainda
não estão completos, mas a missão hoje opera com a maior força
desde a sua instalação. O custo de manutenção desses quadros por seis
meses consome da ONU por volta de US$ 500 milhões, orçamento
relativamente alto em relação aos dispêndios em missões anteriores.
A Minustah tenta também corrigir um dos maiores problemas
das missões antigas: seu tempo de duração. Durante a década de 90 a
ONU montou missões no país por um ou dois anos, até que os
antagonismos fossem suavizados, mas logo os grupos se
reorganizavam e meses depois o país voltava a nova crise. O mandato
inicial, que previa uma resolução de só seis meses, foi sucessivamente
prorrogado para até fevereiro de 2006. A extensão desse prazo
também é tida como certa: o chefe da missão, Embaixador Juan
Gabriel Valdéz, tem dito publicamente que a Minustah precisa
permanecer no Haiti por pelo menos dez anos.
A orientação de tentar processar mudanças sustentáveis no
Haiti está presente principalmente nos trabalhos da porção civil dos
63
funcionários, sob coordenação direta da Secretaria Geral da ONU.
Nesse sentido, o próprio staff da ONU e entidades parceiras têm
proposto planos de diálogo nacional e pactos de governabilidade entre
os candidatos e partidos. Iniciada a temporada de campanha eleitoral,
o Departamento de Assuntos Políticos prepara uma cartilha com
pontos nevrálgicos para investidores internacionais, para incentivar o
debate de projetos políticos em nível mais profundo.
Neste sentido, as Nações Unidas tentam usar a expertise
internacional para estimular alianças e coalizões políticas, que não
refletem com naturalidade a realidade de um país de tradição política
de polarização e autoritarismo, mas são pressupostos para a
democracia. Estes programas demandam uma aplicação continuada
para que realmente tenham efeito em larga escala e de forma
permanente; uma instituição americana convidada para um trabalho de
fortalecimento de partidos políticos, o National Democratic Institute,
diagnosticou a situação como muito difícil. A disputa eleitoral sequer
chegou a redutos do interior do país, assim como a noção de
democracia.
***
Como bons militares, os antigos integrantes das extintas Forças
Armadas do Haiti precisavam de um Forte depois da revolução de
2004. Nada mais apropriado que a casa do presidente deposto.
Dezenas de militares permaneceram na residência de Aristide até
dezembro de 2004, sonhando a reestruturação do Exército
Nacional e definindo termos de negociação com o novo governo.
A maior parte deles era originária do norte do país, onde
sobreviveram por dez anos fazendo a segurança particular das
poucas empresas e grandes propriedades estabelecidas lá, em
troca de pouco dinheiro, ou a segurança pública de pequenas
cidades, muitas vezes em troca de comida.
64
No dia 15 de dezembro de 2004, as autoridades militares
receberam em suas fardas antigas o alto comando das tropas da
Minustah e o primeiro escalão do governo, para dar início às
negociações de um acordo. Eles aceitaram a desocupação, em
troca do compromisso do governo de Latortue com uma ajuda de
custo mensal, enquanto não são aproveitados em outras funções
no governo.
Pela tradição das Forças Armadas do Haiti, os soldados não
entregam seus armamentos nas mãos dos opositores. A Minustah
teve de providenciar caixas de madeira para recolher as armas
sem tocá-las.
***
Expedientes bem-sucedidos em diversas missões recentes na
África e na Ásia também são aproveitados e aplicados pela Minustah
no Haiti, como o programa de combate à AIDS e outros planos de
proteção aos direitos humanos e à Justiça. Entre eles, um dos mais
controversos é o Programa de Desmobilização, Desarmamento e
Reinserção (DDR). Sua linha principal é a entrega voluntária de
armas, mediante a inscrição num cadastro que aproxima o cidadão de
oportunidades de trabalho e de participação em programas de
assistência do governo e da própria ONU. Os progressos foram
poucos até agora. Numa das últimas operações de busca em Bel Air,
quando a situação do bairro já era considerada sob controle, as tropas
encontraram duas granadas 81 mm em uma casa de família.
Não há como esperar que uma comunidade que tem parte de
seus rendimentos vindos do crime vá entregar suas armas, ainda mais
porque o programa de reinserção é bastante comprometido em razão
das próprias dificuldades econômicas do país: não há emprego para
todos. Se o desarmamento voluntário é inviável, a apreensão de armas
65
em operações militares é também difícil, porque as armas em uso no
país são pequenas e facilmente ocultas.
O DDR é considerado o maior desafio da Minustah, já que as
armas são abundantes na segurança particular e em residências nas
zonas mais pobres das cidades; estima-se que 25 mil haitianos tenham
armas em casa. Mas a concepção do programa é combatida
veementemente por várias organizações e institutos de diretos
humanos haitianos. O porte de armas é permitido no Haiti, por isso as
operações militares só podem apreender as armas sem licença. Muitos
bandidos até têm armamentos legais, já que a maior parte das licenças
é bastante antiga. A maior relutância das instituições é quanto ao
incentivo à impunidade; os haitianos não poderiam tolerar algum tipo
de anistia da ONU a bandidos e gangues que se desarmarem
voluntariamente. O programa informa que ainda não recebeu armas
entregues por pessoas procuradas pela justiça (o que denota outra
dificuldade: o DDR não atinge as armas realmente usadas em
atividade ilegais), mas mesmo assim podem integrar o programa
pessoas que já cometeram transgressões de que a polícia não tem
conhecimento. Distribuir emprego ou ajuda a essas pessoas, segundo
as ONGs, seria recompensar o crime.
O exemplo do DDR sustenta uma tese corrente na imprensa e
na sociedade civil haitianas de que o modelo de atuação da Minustah
não é apropriado para a realidade do país. A ONU não estaria
preparada para lidar com uma situação em que as divergências
políticas não são representadas por grupos perfeitamente
caracterizados – no Haiti, os pró-governo e a oposição podem ser
conceitos bem nebulosos. O entendimento de “missão de paz” está
correntemente ligado a uma realidade em que dois ou mais grupos
antagônicos são dissuadidos de extravasar suas diferenças em atos de
violência. No caso do Haiti, as desavenças políticas se confundem
com a situação de criminalidade e pobreza, e para isso uma missão de
66
paz da ONU, na acepção original do termo tem poucas soluções a
oferecer.
Com o fim definitivo da Guerra Fria, as expectativas em
relação à ONU se inflaram em todo o mundo; saídos de um equilíbrio
de forças bipolar para uma ordenação mundial multipolar, esperava-se
que a agenda das Nações Unidas fosse renovada e abarcasse mais
opiniões e interesses. O trâmite de deliberação do Conselho de
Segurança, porém, continuou o mesmo. Chegou-se à atual conjuntura,
em que a natureza dos conflitos políticos mudou consideravelmente –
abandonou-se o molde de dois grupos nacionais reproduzirem a queda
de braço entre americanos e soviéticos – mas não a essência dos
trabalhos das Nações Unidas.
A estas críticas, a ONU responde com a intenção do nation
building, que começou a aparecer nos mandatos de missões de paz
apenas recentemente, e que a Minustah tenta aplicar em programas
como o DDR e o de cultivo de coalizões políticas. A proposta do
nation building vêm registrando avanços razoáveis e importantes com
a experiência da Minustah, porém os empecilhos impostos pela high
politics que se faz nas Nações Unidas atravancam o processo.
A estrutura de poder formalizada na ONU é a principal
responsável pela maior dificuldade de adaptação da Minustah à
realidade haitiana. Sem contar o profundo desnível entre o poder
deliberativo do Conselho de Segurança e o da Assembléia Geral, em
que participam todos os países, no próprio CS há desequilíbrio.
Iniciadas as sessões, os membros permanentes do Conselho de
Segurança em geral lançam a discussão, apresentando projetos de
resolução que serão pouco modificados em sua redação final. A
burocracia da ONU não só acabou por permitir que França e Estados
Unidos definissem uma linha de atuação das Nações Unidas na
composição do governo de transição, mas também ocasionou atrasos
em razão do relativo desinteresse pela América Latina de alguns
67
membros permanentes do Conselho, como China e Rússia. Por isso, a
ONU chegou tarde no manejo crise haitiana de 2004, meses depois
que a OEA e o Caricom já marcavam presença no país.
A mesma burocracia da ONU permitiu a demora no início dos
trabalhos da Minustah. Durante os primeiros meses de missão, as
forças militares tentaram prover a segurança com menos 50% do
contingente militar previsto na primeira resolução. O mandato se
renovaria ainda sem completar o total de pessoal; o efetivo das tropas
só chegaria próximo dos 6700 previstos originalmente em janeiro de
2005. Considerando que a segurança era condição principal para o
início dos trabalhos civis, a chefia da missão considera que o
funcionamento pleno da Minustah acabou de começar.
68
Capítulo VI
Ambiente seguro e estável
“Devemos considerar que segurança absoluta não seria
um objetivo realista, considerando a situação em que o país tem
vivido nos últimos 200 anos. Portanto,nosso objetivo é atingir
um nível aceitável de segurança.”
Texto de apresentação para visitantes do Staff militar da
Minustah
Na longa história de golpes de Estado que assolaram o Haiti,
nenhum assumiu maiores proporções em termos de deterioração da
segurança pública quanto a última queda de Jean-Bertrand-Aristide. O
governo ainda está contando as perdas desta época, mas é provável
que os anos de 2003 e 2004 tenham sido o período de maior número
de mortes na história recente do país.
Poderia-se pensar que um povo que viveu tantos anos
conturbados está habituado à situação de violência. Mas, pelo
contrário, segundo o relato das forças militares o barulho de um tiro é
suficiente para instalar o pânico em qualquer praça pública. Tiroteios
mais recorrentes são capazes de esvaziar bairros inteiros; nas regiões
onde os choques entre grupos pró e contra Aristide foram mais
intensos, famílias abandonaram suas casas sem destino certo e só
meses depois ousaram retornar para seus bairros.
A marca distintiva da sociedade haitiana de 2004 em relação
aos seus antepassados que também viveram crises políticas certamente
é o volume e a ostentação de armas de fogo. Os processos de
chimérização, a desmobilização das Forças Armadas, o aumento do
tráfico de drogas e da criminalidade em geral e, por conseqüência, a
crescente demanda de segurança particular acabaram por multiplicar o
69
número de armas em uso no país. Foram estes grupos – ex-militares,
chiméres e gangues de bandidos – os envolvidos diretos nas lutas pela
deposição e sustentação de Aristide.
E foi com esses grupos que um efetivo de tropas da ONU
ainda desfalcado e sem nenhuma vivência do país teve de lidar nos
primeiros meses. De um lado, os chiméres radicalizavam com a saída
de Aristide; de outro, ex-militares e algumas organizações civis
armadas, aliados ao Grupo 184, respondiam à resistência dos
partidários do ex-presidente. Entre tudo isso, a parcela de
criminalidade que não poderia faltar em zonas urbanas pobres.
Aconteceram neste período inicial também a maior parte de
manifestações de hostilidade contra a tropa das Nações Unidas por
parte dos rebeldes.
A primeira atitude das tropas, sob o comando do General
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, foi recuperar os prédios e instituições
públicos desertos em razão da debandada de policiais e funcionários
que apoiavam Aristide. Durante todo o primeiro ano, foram
recuperados edifícios do governo, em geral comissarias de polícia, em
várias cidades do interior atingidas pelos protestos, como Tabarre e
Pêtit-Goave. A estratégia era reestabelecer, pouco a pouco, a presença
do Estado nesses lugares. Em setembro, o furacão Jeanne atingiu a
ilha de Hispaniola e pontos nevrálgicos do interior do Haiti, como
Gonaïves, a cidade-berço dos protestos contra Aristide. Os afazeres
das tropas militares, nesse caso, voltaram-se para o atendimento e
ajuda humanitária às vítimas da tragédia, que matou 3 mil pessoas e
devastou cidades inteiras. No mês de maio seguinte, uma forte
tempestade tropical mataria mais 3 mil pessoas no interior do país.
Como mal havia chegado ao país o braço civil da Minustah, o
primeiro e o segundo contingentes de militares tiveram de fazer boa
parte do trabalho político de desmobilizar os grupos armados no
primeiro ano de Minustah. Em dezembro de 2004, a vitória mais
70
importante foi conquistada por meio de um acordo entre Latortue e os
ex-militares; principal grupo armado que trabalhou na deposição de
Aristide, eles continuaram a organizar manifestações por empregos e
indenização, em razão extinção das Forças Armadas, e se mantiveram
como ponto de instabilidade durante o governo provisório. Ficou
acertado que, dos mais de 3 mil militares mobilizados, os menores de
45 anos seriam aproveitados na Polícia Nacional Haitiana e os demais,
empregados em outros setores da administração pública. Este acordo
reuniu os ex-militares em espera no pátio da desativada Escola de
Magistratura de Porto Príncipe, recebendo uma ajuda de custo mínima
enquanto não saíam as cartas de emprego. Até hoje, muito poucos
foram chamados pelo governo provisório; a maior parte dos exmilitares voltou às suas cidades de origem e de 100 a 300 continuam a
esperar notícias na Escola de Magistratura.
A despeito das dificuldades em cumprir o mandato com as
forças incompletas, no primeiro ano foi conquistada relativa
tranqüilidade nas cidades do interior do país. Restaram, entretanto,
pontos de violência sérios na capital; precisamente nos bairros de
maior pobreza, onde foi mais intenso o processo de chimérização e a
população fica mais exposta à criminalidade.
Com o envio de tropas pelos países colaboradores já mais
adiantado, o Force Commander pôde concentrar forças na capital. A
Minustah então já conhecia melhor o terreno e conseguiu definir uma
estratégia para a pacificação dos pontos que persistiam críticos. A
capital foi dividida em áreas de atuação entre os Exércitos do Brasil,
da Jordânia, do Sri Lanka e do Peru, concentrando aproximadamente
metade do contingente militar da missão. A partir de janeiro de 2005,
investiu-se na instalação de postos militares permanentes nos lugares
mais críticos da capital, descentralizando as forças dos batalhões de
cada Exército. Hoje, são 14 postos avançados alojados em quase todas
71
as chamadas “áreas vermelhas” da capital, onde não é permitido o
deslocamento de pessoal da ONU sem viaturas blindadas.
Para pacificar essas regiões mais críticas foi necessário adotar
uma tática mais combativa, e que provocou muito mais mortes de
civis do que o processo de pacificação no interior. Só na área sob
responsabilidade dos brasileiros, que circunscreve as zonas críticas de
Bel Air, Rota Nacional e Cité Militaire, são feitas em média duas
operações de cerco e vasculhamento por semana, com o objetivo de
procurar armas ilegais e fugitivos da polícia. De janeiro a outubro de
2005, o saldo das operações foi satisfatório: 77 armas e 3.587
munições ilegais foram apreendidas e 282 suspeitos de crimes foram
detidos e entregues à Polícia Nacional Haitiana; foram libertadas com
sucesso 12 pessoas seqüestradas e recuperados 56 veículos roubados.
Neste período, ainda houve o recolhimento de 95 corpos de civis
mortos. O Exército Brasileiro estima que mais de 40 delas tenham
sido mortas pela ação das tropas, o chamado “efeito colateral” das
operações de busca; o próprio Exército Brasileiro considera esta taxa
de morbidade muito alta para uma missão de paz. Pondera, porém, que
o choque com as gangues infiltradas nas favelas foi imprescindível
para que os trabalhos civis e humanitários da missão pudessem
começar a funcionar.
Virou prática entre o primeiro e segundo contingentes
militares, que passaram pelo país enquanto a frente civil da Minustah
ainda não estava totalmente ativa, organizar trabalhos de distribuição
de comida, remédios e ajuda para a comunidade depois das patrulhas e
operações de busca no bairro. O comandante Queiroz, chefe do
segundo contingente brasileiro, virou uma espécie de pai dos haitianos
pobres, na percepção da população. Durante o mandato das tropas,
foram feitos mais de 120 comboios de ajuda humanitária em todo o
país.
72
***
É difícil servir na Polícia Nacional Haitiana, principalmente no
interior. Em geral, são jovens da capital, de boa formação, que
guardam Comissarias de Polícia desertas e dispõem, talvez, de
uma bala para cuidar da segurança da cidade. A reputação da
Polícia durante o governo de Aristide não ajuda a preservar sua
autoridade, e a própria população acaba por escolher seus
agentes de segurança pública.
Com a deserção de muitos funcionários depois da deposição, em
algumas cidades os edifícios da polícia foram ocupados por exmilitares ou seguranças particulares, gente com algum
treinamento e que conta com mais confiança da comunidade local.
“Um comandante me ligou dizendo que a população local impedia
a desmobilização dos rebeldes que ocupavam o posto de Polícia
numa cidade do interior”, conta o General Heleno, sobre seu
período de Force Commander. “Eu perguntei se eles estavam
causando algum problema. Não? Então, deixe-os aí. Vai fazer o
quê?”.
***
Além das operações de confronto direto com os bandidos, as
tropas de capacetes azuis também são responsáveis pela maior parte
dos procedimentos de rotina para a segurança nas vias públicas da
cidade. Seus métodos se aproximam dos de policiais em zonas
urbanas, em geral: os militares realizam patrulhas nas vias públicas,
estabelecem check-points, equivalentes às blitz da polícia, e, mais
recentemente, fixam pontos fortes nas áreas conquistadas, que
funcionam como uma espécie de base comunitária.
Foram especialmente sangrentas as operações de busca de
grandes chefes de gangues e grupos partidários de Aristide nas favelas
da capital. O Force Comander considera o primeiro marco no
73
processo de contenção da violência na capital a prisão do Padre
Gerard Jean Juste, antigo ministro de Aristide e acusado de
intermediar a distribuição de armas e dinheiro remetidas pelo expresidente no exílio, em julho de 2005. Ele foi detido durante um
protesto contra as tropas da Minustah, e está preso até hoje, apesar das
tentativas do Fanmi Lavalas em libertá-lo para inscrevê-lo como
candidato à eleição em 2005. Prender definitivamente o padre,
conhecido no Haiti por lutas em favor dos direitos humanos, foi uma
das atitudes mais polêmicas tomadas pela Polícia Nacional Haitiana,
mas o comando das forças militares relatou que o nível de
mobilização das gangues na cidade realmente caiu após seu
afastamento. No mesmo mês, também em Cité Soleil, uma operação
de prisão do foragido Emanuel Wilmer resultaria na operação com
mais mortes de civis – a contagem das baixas ainda é controversa.
Jovem líder do tráfico de drogas e comandante de chiméres no bairro,
o hougan vodu Dread Wilmé, como era mais conhecido, acabou morto
em confronto com as tropas.
Em outubro, uma das maiores operações na favela de Bel Air
que movimentou 220 militares e oito viaturas deteve um importante
líder chimére de Bel Air, reconhecido pela população como “General
Toutou”. Segundo investigações da Polícia Civil da ONU, a UNPOL,
ele fazia parte de uma espécie de esquadrão da morte ligado ao
Palácio Nacional na época de Aristide, uma organização armada
paralegal chamada “Falcão Negro” que funcionava quase como um
departamento de Estado e travou batalhas com os adversários do
antigo presidente durante os dias que antecederam o golpe.
***
Os finais de mês são um pouco mais tensos para a Escola de
Magistratura de Porto Príncipe. Lá, mais ou menos 120 exmilitares esperam ajuda de custo ou recolocação profissional do
governo, jogando cartas e falando alto no quintal arborizado.
74
A cada atraso das remessas de Latortue, eles organizam um
piquete e barram na porta de entrada os funcionários do prédio,
que voltam felizes para casa, sem muitos protestos. A biblioteca da
Magistratura e a Academia de Polícia ficam fechadas; a
lanchonete que os alimenta e um posto de registro eleitoral, a
pedido da Minustah, têm permissão para abrir.
Quando o atraso é maior e os ex-militares passam algum tipo de
aperto mais sério, um regimento permanente de 15 fuzileiros
navais brasileiros que cuidam da segurança na Escola ajudam
com materiais de higiene e, eventualmente, comida.
São todos antigos militares de baixa patente; os oficiais saíram do
país ou foram recolocados pelo Estado. Alguns poucos parecem
muito jovens para ter servido o exército, são rapazes que
aderiram depois à causa da reorganização das Forças Armadas e
foram acolhidos pelo grupo.
Eleito o porta voz que responderia à entrevista, o cabo Monsan
Manius defende a proposta com grandeza. “Uma nação sem
Forças Armadas não é uma nação. O Exército deve ser
reorganizado porque está na Constituição”. Rumores e brados de
aprovação da multidão que se reuniu em volta. Montar um
Exército custa muito para um país com necessidades tão mais
urgentes. E se o próximo governo não mudar? “Temos fé que o
governo eleito vai nos empregar nas novas Forças Armadas do
Haiti, porque a voz do povo é a voz de Deus.”
Se o Exército não for reorganizado, ou se os ex-militares já não
forem tão jovens para ser aproveitados, a solução é a indenização.
“Não podemos esperar as eleições, que nem se sabe quando vão
acontecer. Nossas mulheres estão nos deixando”.
***
75
Tais grandes operações de busca por fugitivos da Polícia são
alvos freqüentes de críticas de ONGs e movimentos internacionais de
defesa dos Direitos Humanos. Em março passado, um relatório da
seção carioca da ONG Justiça Global, em parceria com a
Universidade de Harvard, denunciou abusos em atividades militares
em Bel Air e Cité Soleil, acusando a Minustah de cumplicidade com
ações violentas da PNH e de não documentar as operações com
propriedade. Em novembro de 2005, as denúncias tomaram
proporções maiores: um grupo de ONGs e estudiosos americanos
apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma
compilação de vídeos e depoimentos responsabilizando os capacetes
azuis pela morte de 63 pessoas na operação de Cité Soleil que matou
Dread Wilmé, em julho, e denunciando sua conivência com uma série
de massacres empreendidos pela PNH no mês seguinte.
Embora o governo brasileiro e o comando da Minustah ainda
não tenham sido notificados pela Corte da OEA, o comando brasileiro
da missão da ONU já negou publicamente as acusações. A missão
reconhece que é difícil conhecer o número exato de baixas nas
expedições militares – nem todos os cadáveres são recolhidos pelos
capacetes azuis, há informações de que muitos se perdem durante o
conflito ou são coletados para rituais vodu – mas calcula entre 5 e 9
mortes civis perpetradas por militares durante a troca de tiros na
operação de busca de Dread Wilmé. O Force Comander na época,
General Heleno, fundamenta a explicação: a maior parte dos 63
corpos de que falam as ONGs foram encontrados com tiros na cabeça
ou nas costas, o que denunciaria obra intencional de gangues, e não
efeitos colaterais da missão.
O curioso é que as denúncias de abusos de direitos humanos
partem em sua maioria de organizações internacionais ou americanas.
A Rede Nacional de Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), maior
agremiação de ONGs do país, isenta a Minustah de cometer
76
pessoalmente violações à Declaração de Direitos Humanos. Assim
como o governo provisório, as ONGs haitianas criticam a falta de
rigor da Minustah no trato com as gangues e bandidos. Seus relatórios
abordam as taxas de criminalidade ainda altas e concentradas em
regiões pobres da capital e episódios de crimes ou manifestações
violentas simultaneamente em localidades próximas a patrulhas ou
check-points militares. Essa situação parece denotar interesses de
Estado: o International Crisis Group, um dos signatários sugere, entre
as medidas a serem tomadas para evitar novos abusos, o envio do
militares americanos caso a situação de segurança não melhore apenas
com a Minustah.
A maior crítica das ONGs haitianas atinge o mandato da
Minustah, e não a conduta das tropas: as missões militares não teriam
absorvido ainda a realidade de criminalidade que é o maior problema
do país. Desmobilizada grande parte dos grupos de atuação política
violenta, por meio de acordos ou investidas militares, o grau de
insegurança civil não melhorou, notadamente nas grandes favelas da
capital.
Bel Air e Cité Soleil reúnem a grande base de sustentação do
Lavalas e concentram o tráfico de drogas e armas no país. Apesar de
ter características populacionais e problemas parecidos, diferenças de
geografia e cultura impedem que o mesmo plano de pacificação seja
adotado nos dois bairros. Em Bel Air, os brasileiros conquistaram
relativo sucesso instalando cinco pontos de observação militar em nas
áreas mais altas da favela, de onde se tem uma visão panorâmica de
toda a movimentação. A topografia acidentada e as ruas estreitas que
no início dificultaram as missões de reconhecimento acabou servindo
à estratégia brasileira. A situação é diferente, por exemplo, da de Cite
Soleil, onde acontece a maior parte dos conflitos envolvendo a
Minustah: o terreno é completamente plano, o que inviabiliza a
implantação da mesma tática.
77
O material de que são feitas as habitações em Cite Soleil – lata
e papelão – também amplificam enormemente os efeitos colaterais de
qualquer operação; é diferente de disparar um tiro em Bel Air, em que
as casas de alvenaria isolam o conflito. Nem mesmo a Minustah entra
nas áreas mais densas da favela, no temor de que qualquer operação
de busca se transforme em uma chacina. Optou-se por ignorar, nesse
caso, os apelos por mais rigor do governo e da sociedade civil
haitiana.
***
Em Bel Air, os brasileiros já passaram à categoria de bomba gai,
o “sangue bom” dos haitianos. Se nos primeiros meses os
militares brasileiros enfrentavam trincheiras de lixo que impediam
a passagem das patrulhas, hoje são convidados de todas as festas
e torneios de futebol do bairro. O Capitão Novaes, que comanda
as tropas na área, recebe diariamente pedidos de apoio para a
realização local. “Temos até que ter cuidado para não apoiar
eventos de campanha eleitoral.”. As tropas passaram a notar
mudanças depois da ocupação do Forte Nacional, desde março de
2005. Alojada uma companhia (cerca de 170 militares) no
coração de Bel Air, a velha edificação militar de onde os escravos
combatiam os invasores que chegavam por mar, eles assistiram o
bairro à voltar à vida. “Quando chegamos aqui, parecia uma
cidade fantasma”. Hoje, a vida e o comércio em Bel Air funciona
quase sem transtornos. Para ampliar a presença da Minustah,
mais quatro prédios antigos do bairro foram escolhidos para
sediar mais pelotões militares.
***
78
Aparentemente, os antigos chiméres não têm mais nenhuma
correspondência com Aristide ou o Fanmi Lavalas, mas a violência
continua. Dentro do país e dentro da própria missão, as análises se
dividem: enquanto alguns vêem motivação política em diversos
incidentes de violência urbana, outros acreditam totalmente
desmantelados os grupos políticos que irromperam a crise em 2004,
tendo sobrado nada mais do que pessoas em situação de miséria com
armas à disposição.
O maior problema de segurança pública do país hoje é
notadamente ligado à criminalidade: os seqüestros. Num dos períodos
de pico, entre março e julho de 2005, foram reportados à Polícia
Nacional Haitiana cerca de 450 seqüestros. O alvo dos seqüestros são
principalmente a elite e as classes médias haitianas, mas,
aparentemente, o único motivo é mesmo o resgate. Apesar do número
de ocorrências não ser tão elevado quanto em outras cidades do
mundo do tamanho de Porto Príncipe, o problema preocupa por ser
muito recente: há dois ou três anos, a Polícia não enfrentava esse tipo
de chamado, o que redunda em outro agravante da situação atual que é
a inexperiência do Estado em lidar com seqüestros.
Em qualquer parte do mundo, este seria um problema
pertinente às autoridades policiais. A Polícia Haitiana, no entanto, não
tem condições materiais de equacionar a situação dos seqüestros. No
âmbito administrativo, os oficiais de polícia estão às voltas em
concluir uma reforma da instituição iniciada depois do governo
Préval-Aristide, período em que a Polícia se envolveu em diversos
casos de corrupção e perdeu todo o prestígio e confiança da
população; no início do governo de transição, a Polícia era atacada
deliberadamente por grupos rebeldes e perdeu praticamente metade
dos edifícios que ocupava.
Além de pobremente equipada – a PNH não tem viaturas
blindadas, por exemplo – , a reforma pela despolitização da Polícia
79
ainda cortou consideravelmente o já pequeno pessoal com que contava
em todo o país. De 5 a 7 mil policiais cuidam do país inteiro, enquanto
o índice mínimo fixado por instituições internacionais para um país de
8 milhões de pessoas seria de 20 mil.
A situação é preocupante, pois a parcela de soberania do Haiti
no mandato de segurança da Minustah está justamente na participação
da PNH em missões com as forças militares e a Polícia Civil da ONU,
a UNPOL. Por isso, uma das ocupações da UNPOL é cooperar em
missões da PNH, agilizar a reforma e ampliar o efetivo policial de
uma Polícia jovem, de apenas dez anos, e já tão desacreditada para
zelar pela segurança pública. Co-dirigida por representantes da ONU,
a Academia de Polícia do Haiti emprega táticas de treinamento mais
modernas no combate a seqüestros e tenta formar equipes de
treinadores que permitam a renovação da força quando a missão já
tiver acabado.
Mas a parceria da UNPOL e da PNH ainda não está
plenamente em andamento. Nas primeiras operações conjuntas, a
ONU reclamou ao governo que vazavam informações aos bandidos
ainda na fase de planejamento, reflexo de que a corrupção na Polícia
não foi completamente superada. Depois de demorados trâmites entre
as diretorias, a UNPOL passou a sair para combater o banditismo com
os capacetes azuis. O relacionamento entre as forças das Nações
Unidas tampouco é tranqüilo: o mandato da UNPOL dispensa
operações que envolvam “risco pessoal” para seus integrantes, o que
deixa as missões mais pesadas exclusivamente para as tropas,
aparelhadas com armamentos de guerra.
Está posto, por exemplo, que cabe aos militares da ONU
retomar os postos policiais dos rebeldes e à polícia civil ocupar as
comissarias em conjunto com a PNH, para que aos poucos as vítimas
de criminalidade recorram às polícias, e não aos militares. Este
modelo, porém, ainda exige aperfeiçoamentos: o efetivo da UNPOL
80
não permite, por exemplo, manter homens nos edifícios da Polícia 24
horas por dia, sete vezes por semana. Para atender aos chamados na
região de Porto Príncipe, são apenas 32 veículos para 104 UNPOLs,
insuficiente para atender às demandas de criminalidade da cidade.
Na quarta renovação de tropas, os militares receberam um
reforço de 900 homens (um salto dos 6200 previstos na primeira
resolução para os 7100 militares que servem hoje no Haiti) para ajudar
no policiamento das eleições. Neste período, a violência de coloração
política pode aparecer com mais intensidade. O tripé da segurança do
Haiti – capacetes azuis, UNPOL e PNH – aguarda a definição de
detalhes da organização do processo eleitoral para traçar o
planejamento do dia das eleições.
81
82
Capítulo VII
Eleições justas e legítimas
“Elections/Sécurité: la Minustah se dit prête à garantir le bon
déroulement des prochaines joutes en Haïti.”
Radio Metropole, 25 de novembro 2005
No mesmo dia em que a Minustah se declarou preparada para
conduzir o processo eleitoral nos próximos quinze dias, o governo do
Haiti anunciou o terceiro adiamento do cronograma de eleições: o
primeiro turno das eleições passou do dia 13 de outubro de 2005, no
calendário original, para 8 de janeiro de 2006. Apesar das
recomendações expressas de toda a comunidade internacional e do
próprio governo provisório, nenhum haitiano acreditava que haveria
eleições ainda em 2005, como de fato não haverá.
A maior fonte de incertezas é mesmo o atraso na parte
administrativa da organização das eleições, conduzidas pelo Conselho
Eleitoral Provisório Haitiano (CEP) em parceria com a OEA, e com o
apoio da Minustah. A poucos dias da nova data da eleição, ainda não
se tem a lista definitiva de candidatos, sequer. O processo de registro
de eleitores ainda não está completo e falta determinar os locais de
votação.
Antevendo dificuldades, o calendário eleitoral foi pensado
pela ONU para se iniciar depois de mais um ano e meio de missão. É
verdade que, em razão nos atrasos para o envio de pessoal, a Minustah
começou tardiamente; considerando-se que um ambiente
relativamente seguro só foi conquistado por volta de junho de 2005,
foram só quatro meses para preparar as eleições, o que não é tanto
tempo assim.
83
As dificuldades começaram já na organização do CEP, o
órgão designado pelo governo para cuidar das eleições. Ele reuniria
nove conselheiros provenientes de grandes setores da sociedade
haitiana, entre eles católicos, protestantes, grupos de Direitos
Humanos e o Lavalas, que se recusou a enviar representante por não
reconhecer como legítima a deposição do ex-presidente. A cadeira foi
assumida por um antigo grupo duvalierista de Cité Soleil. O resultado
é que os diretores do CEP, vindos de grupos sociais tão distintos, têm
interesses e opiniões irreconciliáveis e foram incapazes de entrar em
acordo a respeito de diversas questões essenciais ao início dos
trabalhos. O primeiro consenso a que chegaram acabou numa das mais
desastrosas medidas para o cumprimento do cronograma: o CEP
demitiu seu corpo de 60 funcionários de carreira. A estrutura de um
órgão que teria de organizar eleições em seis meses terminou com
nove membros da diretoria, suas secretárias e motoristas particulares,
apenas.
Para dificultar a empreitada, a OEA mantinha à época no Haiti
o pessoal mínimo para pensar os termos das eleições, mas insuficiente
para fazer o trabalho administrativo da organização de que o CEP
tinha se eximido com as demissões em massa. Em agosto, a parceria
OEA-CEP se viu sem a capacidade, o pessoal e os meios de execução
para pôr em andamento o processo eleitoral. Com um pouco mais de
mão de obra disponível, a maior parte de voluntários da ONU, a
Minustah teve de socorrer essa estrutura nos primeiros meses do ano.
Com um número de funcionários comprometido, a Minustah e OEA
inauguraram 491 postos de cadastro – tendo que transportar toda uma
estrutura de geração de mobiliário, computadores e geração de energia
por caminhões, helicópteros ou tração animal.
Em 25 de abril de 2005, começou oficialmente o período de
registros de eleitores. Sob responsabilidade da OEA, a estrutura
funcionou com atrasos mas pode-se dizer que alcançou relativo
84
sucesso: as inscrições foram encerradas com 3,4 milhões registrados,
perto de 70% do total de maiores de idade. Houve um a preocupação
em atingir mulheres e jovens especificamente, parcelas da população
mais excluídas da vida política do país. O registro nas localidades
mais pobres ficou aquém do total de eleitores de classe média, mas o
registro de algo entre 60 e 70 mil pessoas no bairro mais crítico do
país, Cite Soleil, é considerado uma boa marca.
O pacote do sistema de registro eleitoral proposto pela OEA
foi adotado pelo governo, mas é ainda um ponto controvertido na
sociedade. As pessoas se registram não só por um documento de
eleitor, mas para uma carta de identificação nacional, que serve como
documento de identidade para inscrição em concursos, programas
sociais, bancos e outras atividades triviais. O documento acaba
servindo como estímulo ao registro eleitoral; na interpretação da
Minustah, o sistema é uma oportunidade de induzir o haitiano a um
sentimento de cidadania, já que grande parte das pessoas não tem nem
mesmo registro de nascimento. Por outro lado, como o voto não é
obrigatório, é difícil estimar quantas pessoas se apresentarão às seções
eleitorais de fato e medir a legitimidade da eleição que está por vir.
A organização teve o cuidado de informatizar o procedimento
de registro e unificar o cadastro de eleitores – para impedir fraudes
como as que ocorreram nas eleições de 2000, quando era possível a
uma pessoa tirar quantos títulos quisesse, desde que se apresentasse
em zonas de registro diferentes. Nas últimas eleições, houve casos de
eleitores com quinze ou dezesseis carteirinhas de votação. Os cartões
distribuídos hoje têm foto de identificação de forma a coibir esse tipo
de fraude. É bem verdade que já houve seções em que as pessoas
receberam seus cartões com as fotos trocadas, mas o conceito do
documento eleitoral está posto.
Os documentos, que são impressos no México, ainda não
chegaram todos ao Haiti; eles nem poderão ser distribuídos em sua
85
totalidade enquanto não estiverem fechados os 800 edifícios onde vai
acontecer a votação. Mas essa não é a maior pendência da
coordenação das eleições; a definição da lista de candidatos, também
atribuição do CEP, ainda não está fechada. Essas decisões dependem e
se relacionam com questões nacionais delicadas, como a demarcação
da nacionalidade: para se candidatar a algum cargo eletivo no Haiti,
não só é necessário ser haitiano sem nunca ter se naturalizado em
outro país, como também é preciso provar a ascendência haitiana por
parte de pai e mãe. Num país onde o registro de nascimento é
precário, essa é uma condição um pouco mais difícil. Cerca de 12
candidatos inscritos dependem dessa decisão para saberem se podem
ou não concorrer à presidência. Para catalisar esses processos, foi
solicitada uma mudança na estrutura organizacional do CEP, exigindo
uma hierarquia entre os nove conselheiros. Ainda em outubro, foi
designado um chefe para a comissão geral do CEP que deve
pressionar pela agilidade das decisões.
Por ora são 34 candidatos a presidente, extraídos de uma lista
de mais de 50 candidaturas em que muitos foram excluídos por
violações à Constituição e pendências com a Justiça. Na esfera
federal, há ainda 129 postos a ser preenchidos (30 para o Senado e 99
para a Câmara Baixa), e a concorrência é igualmente exagerada. Ao
mesmo tempo em que se interpreta o fato como eleições altamente
inclusivas, o pleito não parece muito sério. Se for feito um exame
mais cuidadoso dos candidatos, ainda, deve-se perceber que não existe
representatividade dos diversos segmentos da sociedade haitiana,
traduzidos em partidos enraizados e propostas bem delineadas; ao
contrário, a eleição periga escorregar para uma disputa de
personalidades.
O trabalho é imenso também porque não há informações sobre
eleições anteriores. Todo o processo – da apresentação de partidos e
candidatos ao registro de eleitores – teve de começar do zero. A
86
maioria das legendas se apresentou no primeiro prazo de inscrição
com menos que as 5 mil assinaturas exigidas e quase sem exceção,
sem comprovar a existência de um caixa de campanha ou a origem de
seus rendimentos. Os partidos se assemelhavam mais a um grupo
pessoalmente ligado ao candidato presidencial; no início, restavam
dúvidas se estes partidos de conveniência teriam quadros suficientes
para preencher os quase dez mil cargos executivos e legislativos que
se renovariam nas eleições de 2005, agora de 2006.
Se o atraso nas eleições se deve essencialmente a defeitos
técnicos da organização, ele ocasiona problemas políticos também. As
recomendações da Secretaria Geral das Nações Unidas, do
Departamento de Estado americano e da própria OEA quanto à data
de transição do poder não serão cumpridas. Toda a comunidade
internacional pressionou os organizadores para que garantissem a
posse do novo governo em 7 de fevereiro de 2006; antes de tudo, é
uma data simbólica porque seria o prazo em que Aristide terminaria
seu mandato, segundo a Constituição. As eleições se estenderão para
além desta data – o segundo turno da presidência foi agendado para
dia 15 de fevereiro – e teme-se uma tensão para definir quem vai
permanecer no poder depois que expirar o mandato constitucional. O
temor é que, se Latortue e Boniface Alexandre se demorarem no poder
por mais uma semana, desenvolva-se uma desconfiança de que eles,
aliados aos estrangeiros, preparam um estratagema para continuar no
poder. Ao mesmo tempo, ainda sem o resultado final das eleições, não
seria viável construir um segundo governo de transição.
***
Durante o período de registro eleitoral, a televisão entrevistava as
pessoas nas filas. “Você vai votar?”. As respostas se dividiam:
87
metade das pessoas enfrentava às vezes horas de fila só para tirar
seu ID card; metade tinha interesse em votar.
Unanimidade: ninguém ainda tem candidatos.
É o caso do estudante Festen Cleone, que tem 24 anos e vai votar
pela primeira vez nas próximas eleições. “Todos os políticos que
eu conheço não me agradam. Nos que eu não conheço, não posso
votar”. Mas Festen não tinha muita certeza de que ia haver
eleições. Sua maior preocupação era a prova de admissão do
Licée de Petionville, um dos melhores colégios públicos do país.
***
O atraso na definição das eleições também prejudica o
planejamento da segurança para o período. O atual Force Comander,
General Urano Bacellar, avalia que o risco de os grupos armados
desmobilizados se reorganizarem se concentra no período das
eleições. Tanto as gangues da capital que se sustentam com
criminalidade quanto pequenos grupos armados do Interior (a Armée
Dessalines e a Frente Nacional, por exemplo, as quais a Minustah
mantém sob observação), politicamente motivados, podem reunir
potencial para realizar algum protesto violento. Durante a campanha
eleitoral, que se intensificou em outubro, os militares não relataram
manifestações agressivas. Houve passeatas, reuniões, comícios e
protestos, mas por enquanto nada que ameaçasse a segurança das
cidades. É esperada, porém, alguma tentativa de coação dos eleitores
por parte tanto do Lavalas quanto de outros grupos que se sintam
pouco representados. Está dentro dos planos deslocar contingentes
para áreas consideradas de mais risco, onde determinados grupos
rebeldes podem tentar desestabilizar o processo eleitoral.
As forças militares estão conscientes também de que é preciso
manter-se vigilante com a situação de segurança não só durante o
88
processo eleitoral, mas depois que o governo eleito assumir o poder.
Os grupos armados podem não ter potencial suficiente para
desestruturar as eleições, principalmente enquanto a Minustah e um
grande número de observadores estrangeiros está no país, mas podem
reunir forças para desestabilizar o próximo governo. A Minustah e a
comunidade internacional toleram os atrasos sucessivos na esperança
de que as próximas eleições sejam reconhecidamente justas e
legítimas por todos os grupos: se houver margem para qualquer
dúvida sobre os resultados, multiplicam-se as possibilidades de o
Estado voltar a ser alvo de ataques da oposição.
É quase certo que o próximo presidente não terá sustentação
nas Câmaras. São mais de 40 partidos disputando cadeiras no
parlamento, e as possibilidades de coalizões não são promissoras. Até
por antever que o próximo será um governo frágil, a maior parte dos
países americanos já se comprometeu a continuar no país depois da
transição de poder. O Embaixador Valdez também tem apresentando
esta demanda junto à ONU.
Mais do que a presidencial, a eleição do Congresso será
decisiva para configurar o próximo governo. Se o próximo presidente
afrouxar a tradição centralizadora de seus antecessores, espera-se que
a fragmentação das cadeiras do parlamento acabe provendo a todos os
setores da sociedade a sensação de que, de alguma forma, todos estão
sendo representados no governo. É verdade que poucos partidos –
destaque-se a atual OPL (Organisacion de People em Lutte) e o
Fusion, que avançou um pouco em relação aos demais e articulou uma
aliança entre três grupos de esquerda – têm correspondência direta
com a sociedade haitiana e é verdade também que muitos deles estão
profundamente ligados à criminalidade, ao tráfico de drogas e armas.
Mesmo que dificilmente um candidato destes partidos chegue a
presidente, eles certamente terão alguma representação que garanta
seu lobby no parlamento, o que pode ser uma temeridade. A melhor
89
expectativa é a de que a experiência de uma pluralidade de legendas
no Congresso torne os políticos no futuro mais tolerantes e menos
irredutíveis a acordos políticos.
Absolutamente ninguém arrisca um palpite no resultado das
eleições. Todos parecem respeitar o fato de que no Haiti as coisas
podem mudar muito rapidamente, sempre. É certo que têm ganhado
espaço os candidatos que adotaram uma estratégia de buscar apoios
em várias bases eleitorais, como os ex-presidentes René Prevál e
Leslie Manigat. O primeiro, que nunca perdeu realmente a simpatia da
massa eleitoral do Lavalas, apostou também na simpatia da classe
média ao declarar seu afastamento de Aristide; o segundo, um
acadêmico muito respeitado pela elite haitiana, tenta despertar
também a admiração dos pobres. Outros candidatos tarimbados da
política haitiana também tentam se valer de seus feitos no passado
para vencer as eleições. Nenhum candidato, porém, ascendeu na
preferência do povo.
A Minustah e a sociedade civil organizada do Haiti,
independente de apoio a este ou aquele candidato, insistem no recado
de que o pior cenário é a polarização – ter um presidente autoritário de
um bloco, e um parlamento agressivo de outro. Espera-se que a classe
política esteja entendendo o espírito; caso contrário, volta-se ao
mesmo estágio que cultivou a traumática crise de 2004.
***
Muitos que conviveram com Jean-Bertrand Aristide lembram dele
como louco ou doente. “Doente pelo poder”, como definiria a
hoje inspetora geral de Polícia Mme Gessy Coacou. “Ele armou
os pobres e os chamou de seu Exército”. Na época em que esteve
exilado em Washington, antes de voltar ao Haiti em 94, um
90
assessor de Clinton o descreveu como “messiânico” e
“mitômano”.
Uma queixa freqüente de quem o conhecia era de que ele fazia
confusões da aparência com a realidade. Pode parecer intriga dos
americanos, mas quando chegou à república Centro-Africana,
depois de renunciar em 2004, Aristide anunciou ter sido
seqüestrado por agentes brancos.
Hoje, Aristide vive na África do Sul. A reportagem não conseguiu
contato, mas quem o conhece diz que ele está constantemente no
telefone tentando interferir na situação do páis Desde a prisão do
Padre Jean Juste, não se tem mais notícia de quaisquer ligações
do ex-presidente com seus apoiadores. De vez em quando, um
grupo baseado nos Estados Unidos intitulado “Close Lavalas
Associates” divulga supostos comunicados seus, condenando a
Minustah e declarando ilegítimas as próximas eleições.
A turma do deixa-disso descarta grandes empreitadas de Aristide.
Tudo depende de como ele quer entrar para a história – como o
presidente nacionalista e pai dos pobres deposto pelos americanos
ou como mais uma figura autoritária na história do Haiti.
***
91
92
CONCLUSÃO
Futuro de um povo sem perspectivas
“No Haiti confia-se em metade do que você sente e em
nada do que você vê”
Dito popular, sobre a maronage
Há muito tempo, o momento no Haiti é propício para a
escalada de um movimento popular de grandes proporções, nos
moldes mesmo do que foi o Lavalas nos anos 80, antes de ser
corrompido por novos e velhos vícios da política haitiana. No auge da
campanha eleitoral, porém, parece predominar a letargia entre os
haitianos. Uns preferem interpretar como maturidade do eleitorado,
que deixou de acreditar em soluções fáceis para problemas enraizados;
outros, como desânimo e descrédito da democracia.
Durante o governo Latortue, ilegítimo mas mais
condescendente com as divergências políticas, houve algumas
tentativas de se articular um diálogo nacional com vistas a debater o
futuro do país. Nenhuma vingou, mas muito potencial conciliador
continua latente em diversos segmentos da sociedade civil que, em
meio ao caos da miséria e da violência, conseguiu se organizar. O
diálogo nacional, dizem esses grupos, é o único caminho para começar
a consertar as deficiências históricas que freiam o desenvolvimento do
Haiti e deterioram as condições de vida da população.
Talvez surpreenda que num país onde as carências são tantas e
tão urgentes, o objetivo número um do Estado e da missão de paz que
o governam é a realização de eleições, como se o instituto da
democracia fosse resolver os quase insolúveis problemas haitianos.
A comunidade internacional explica sua atitude por meio dos
tratados que promoveu: a própria Carta das Nações Unidas e a Carta
93
Democrática das Américas, subscritas também pelo Haiti, reconhecem
na democracia o regime de governo que mais favorece o
desenvolvimento econômico e social dos povos. Mas os haitianos
precisam de uma justificativa mais pragmática para empenhar esforços
na construção de uma democracia. Cabe lembrar então: em toda a
experiência Ocidental em que mergulhou o mundo hoje, a democracia
é o modelo de governo que mais assegura estabilidade para o Estado.
E do que o Haiti mais precisa é de equilíbrio e constância em seus
processos de transição de poder.
É impossível traçar um projeto de nação se qualquer governo
é incapaz de permanecer no poder por mais de dois anos. Qualquer
que seja o modelo econômico ou político que os haitianos escolherem
para si, é preciso antes disso acabar com os traumas das transições de
poder. Adotar as regras do jogo plenamente democrático – eleições
limpas, direito de expressão e representação da oposição nos fóruns do
governo, compromisso do eleito com seu eleitorado – parece a única
fórmula conhecida capaz de permitir a instalação de um diálogo
nacional com a finalidade de acertar os rumos do país.
Estabelecer a democracia se afirma enquanto essencial
também para pôr em curso políticas públicas de emergência que
podem aliviar a situação imediata de miséria em que o Haiti se
manteve por 200 anos. Investir na estabilidade, nesse caso, certamente
também teria impacto direto na melhoria das condições de vida do
povo haitiano.
***
Esperava deixar o país sem ter visto grandes manifestações de
violência – uma briga de rua e umas poucas pedradas, bastante
seguro para um país recém-saído de uma situação de guerra civil.
Feitas as despedidas da capital haitiana, no aeroporto barraram o
94
embarque. Tiros em Cité Soleil, de frente para o aeroporto,
atravessavam a pista de decolagem.
Nos dias seguintes, o terceiro contingente militar brasileiro iniciaria
o rodízio que os levaria de volta para casa. Também alguns civis
terminariam seu mandato e ansiavam para retornar a seu país de
origem.
O curioso é que todos os que trabalharam com mais afinco para fazer
a segurança, organizar eleições, prestar assistência, parecem não
acreditar muito que o país realmente “tenha jeito”. Os brasileiros
voltam até um pouco mais animado com as nossas perspectivas de
desenvolvimento. No Haiti, a dimensão da pobreza não deixa margem
para muitas esperanças.
***
Em toda a sociedade e elite intelectual haitiana, há
movimentações intensas e veladas em favor e contra o instituto da
democracia. Democracia significa voz para todos e o fim dos
privilégios. Apesar de o Haiti ser um país pobre, há muitas pessoas no
país que são ricas justamente em razão da histórica incapacidade do
Estado de se impôr e proceder mudanças de poder estáveis. Um
governo democrático recolhe corretamente impostos, reprime o
contrabando, tem uma força policial honesta. Um governo
democrático não tolera negócios de carros roubados nem tráfico de
drogas, nem compra de juizes ou exploração de empregados. Isso não
é do interesse de todos.
Esse grupo não é grande, mas é poderoso. A eles interessa o
país permaneça assim para sempre, porque é assim que eles têm
dinheiro e poder. Alguns deles estão representados na política, alguns
permanecem na iniciativa privada e exercem sua influência por meio
do dinheiro e relações de trabalho.
95
A acusação que pesa sobre Jean-Bertrand Aristide é a de
incitar os pobres contra os ricos, lançando mão das armas que os
oprimidos tiveram historicamente, o terror e a brutalidade. Sua falta
talvez tenha sido catalisar um processo que estaria por vir: no país
onde existe miséria e desigualdade, extravasar as diferenças em
violência é só uma questão de tempo.
É verdade que a democracia perfeita não existe em lugar
algum do mundo, e menos ainda que vai se processar num país com
80% de pobres e 50% de analfabetos. Democracia não significa
eleições de cinco em cinco anos, e tanto a Minustah quando os
haitianos estão cientes disso. Não se pode deixar, porém, de mirar a
democracia num espaço de tempo mais longo. O próximo governo não
será o governo democrático do Haiti, tampouco será o seguinte ou o
próximo. Se as reais intenções da Minustah e da comunidade
internacional abarcam mais do que eleições, a democracia, é um
trabalho para gerações, mais longo que os vinte anos que o chefe Juan
Gabriel Váldez propôs para a Minustah.
96
AGRADECIMENTOS
Aos que, por meio de conversas entrevistas, proveram toda a
sorte de informações para este livro:
Adriana Lorandi, Amos L. Charles, General Augusto Heleno Ribeiro
Pereira, Claudia Mojica, Didier Dominique, Regional Comander
Feantz Gilles, Festen Cleome, Mme. Gessy Cameau Coicou,
Goddonny Normil, Guy Philippe, Ministro Conselheiro Jean-Baptiste
Reynold Leroy, Jocelyn McCalla, Marie-Evelyne Bury, Manson
Manius e ex-militares da Escola de Magistratura, Martin Landi,
Capitão Novaes, Embaixador Paulo Cordeiro de Andrade Pinto,
Coronel Smicellato, General Urano Bacellar e Viléz Alizzar.
À Minustah, agradecimentos especiais aos que viabilizaram os
trabalhos no Haiti:
Major Alfredo Taranto, Capitão Marcello Yoshida Betty Mauvaise,
Jude Brice, e todo o staff militar e de intérpretes da Minustah.
À delegação e funcionários da Embaixada do Brasil no Haiti
pela disponibilidade e atenção:
Embaixador Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, Ministra Isabel Soares,
Ministra Isabel Cristina de Azevedo, Ministro Arnaldo Caiche.
À equipe do Batalhão Brasileiro em Porto Príncipe, pelo apoio
logístico em Porto Príncipe e na estruturação agenda:
Coronel Smicellato, Comandante Cícero, Capitão Novaes, regimento
de fuzileiros na Escola de Magistratura.
97
À família por se envolver no projeto e por todo o tipo de apoio e
incentivo – burocrático, logístico e torcida.
Elisabeth e José Galvani Filho, Ligia Galvani e Álvaro Galvani
Aos colegas profissionais que ajudaram no caminho das pedras:
Cláudio Julio Tognolli, Eduardo Nunomora, Fernanda Guerra Gil,
Jorge Zappia, Luciana Taddeo, Ricardo Bonalume Neto.
Aos amigos que torceram pelo projeto:
Laio Manzano, Vinícius Rodrigues, Aline Posseti, Aline Midlej,
Bruno Fernandes, Carolina Oddone, Cláudio Julio Tognolli, Elisa
Campos, Felippe Caetano, Gabriel Bueno, Jorge Zappia, Leonardo
Sakamoto, Lílian Ferreira, Luisa Leme, Marina Mezzacappa, Tatiana
Thé e os colegas de estudos e trabalho.
98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Publicações:
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. “A ONU e a Nova
Ordem Mundial”. / Publicação Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo.
_____________ , José Augusto Guilhon de. “Dilemas da
Consolidação da Democracia”. / 1989, Editora Paz e Terra.
CÂMARA, Irene Pessoa de Lima. “Em nome da democracia : a OEA
e a crise haitiana 1991-1994”. / 1998, Instituto Rio Branco Fundação Alexandre Gusmão.
DAVIS, Wade. “A serpente e o Arco Íris: zumbis, vodu, magia
negra”. / 1985, Jorge Zahar Editor.
ETIENNE, Eddy V. “Hait 1804-2004i: Deux cents ans de grands
combats diplomatiques et de lutes intestines minables”. / 2004,
Bibliothèque Nationale d´Haïti.
HIPPEL, Karin Von. “Democracia Pela Força: intervenção militar dos
EUA no mundo pós Guerra Fria”. / 2003, Biblioteca do Exército
Editora.
ROCHA, Guilherme Salgado. “Pense no Haiti, reze pelo Haiti”. /
1994-1995, Musa Editora.
99
WARGNY, Christophe. “Haïti n´existe pas – 1804-2004: deux cents
ans de solitude”. / 2004, Éditions Autrement.
Relatórios e Artigos:
Harvard Law Students Advocates for Human Rights e Justiça Global.
“Mantendo a paz no Haiti?”/ Relatório de março/2005
International Crisis Group. “A new chance for Haiti?”. Latin
America/Caribbean Briefing N°9, 25 November 2005
_____________________. “Can Haiti hols elections in 2005?”. Latin
America/Caribbean Briefing N°8, 3 August 2005
_____________________. “A new chance for Haiti?”. Latin
America/Caribbean Report N°10, 18 November 2004
Pesquisa em Periódicos e Web:
Estado de S. Paulo
Folha de S. Paulo
Le Matin – www.infoalematin.com
Le Nouvelliste – www.lenouvelliste.com
Radio Metropole – www.metropolehaiti.com
Revista Istoé
Revista Veja
Informações dos portais:
www.mre.gov.br
www.un.org
www.exercito.gov.br
100
Vista de Porto Príncipe. No centro, o Palácio Nacional.
Trecho da Rota Nacional, próximo ao centro da cidade.
101
Feira livre na capital: ocupação predominantemente de mulheres.
Mercado movimentado no centro de Porto Príncipe.
102
Comércio nas favelas e áreas pobres da capital.
Mercado em Petionville, bairro nobre da capital
103
Saída de colégio público no centro de Porto Príncipe.
Faltou energia na escola: crianças em manhã de folga.
104
Haiti Rural: convivência de pobreza e grandes propriedades.
Devastação ambiental: reserva de calcário explorada até o limite.
105
Comércio de arte haitiana nas regiões turísticas.
Feira de artesanato no Batalhão Brasileiro, todos os sábados.
106
Festen Cleome, 24,
mostra sua Carta
de Identificação
Nacional.
Modelo de cédula eleitoral para as eleições presidenciais.
107
Capacetes azuis em frente a ponto forte das tropas em Bel Air.
Córrego em Bel Air despoluído pelo Exército Brasileiro.
108
O movimento volta ao normal nas ruas de Bel Air.
Ex-militares na Escola de Magistratura.
109
No trânsito caótico de Porto Príncipe, viaturas da ONU, carros de
particulares e tap-taps, o transporte público da cidade.
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