AS PAISAGENS DO DIREITO – FLORENÇA 20001

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AS PAISAGENS DO DIREITO – FLORENÇA 20001
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AS PAISAGENS DO DIREITO – FLORENÇA 20001
GÉRARD MONEDIAIRE2
“Se pudesse haver questão de estética no domínio do direito,
eu não sei se em lugar de ver o belo jurídico naquilo em que se
exclui a luta, não o veria antes naquilo em que a implica.”
RUDOLF VON IHERING (La Lutte Pour le Droit,
traduzido do alemão por
O. DE MEULENAERE, conselheiro na Corte de Apelação de Gand;
Paris, Librairie Marescq Aîne, 1890).
“Florença é a felicidade dos homens já maduros que atingiram
a essência da vida ou renunciaram a esperar por ela e não
querem mais buscar senão sua forma, quer para possuí-la,
quer para a ela renunciar”.
GEORG SIMMEL, Florence em Rome, Florence,
Venise. Ed. Allia, 1998 (1906).
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Definição de Paisagem. 3. Os Princípios Diretores. 4. Conclusão.
Resumo: o Conselho da Europa adotou em Florença (Itália) em 2000
uma importante Convenção relativa à proteção da paisagem. Uma
de suas maiores contribuições consiste na definição jurídica de
paisagens a serem protegidas, reabilitadas ou geridas: trata-se não
apenas de paisagens notáveis, grandiosas, sublimes, mas também
de paisagens do cotidiano, comuns. Essa opção holística do conceito de paisagem confere à Convenção uma dimensão democrática, chamando a atenção para os vínculos que unem os homens às
suas paisagens.
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Tradução para o português realizada por LUCIANA CAPLAN, com revisão por DANIELLE
BERTACHINI MONTELEONE.
Diretor do CRIDEAU – GDR, CNRS “Droit – Sciences – Techniques”, OMIJ
– Faculdade de Direito e de Ciências Econômicas de Limoges, Université de
Limoges – França.
CADERNOS JURÍDICOS
GÉRARD MONEDIAIRE
Palavras-chave: paisagens sublimes, paisagens do quotidiano, Conselho da Europa, política de civilização.
Abstract: The Council of Europe carried at Florence (Italy) in 2000 an
important Convention on landscape preservation. One of its main
points is about the legal definition of landscapes to preserve, or to
rehabilitate, or to manage: they are not only remarkable, majestic,
sublime landscapes, but also the common, everyday. This holistic
choice of landscape concept grants a democratic character to the
Convention, paying attention to the civilising links between human
beings and their landscapes.
Keywords: sublime and common landscapes, Council of Europe,
politics of civilisation.
1. INTRODUÇÃO
O próprio título do presente artigo se propõe ao equívoco.
Com efeito, é possível entendê-lo como anunciando certa dissertação baseada na analogia, e convidando a refletir sobre as paisagens
formadas pelo Direito contemporâneo. Na verdade, há de fato um
objeto possível, sem dúvida excessivamente fértil: que pensemos,
por um segundo, sobre as perspectivas abertas pelas fórmulas tendentes a dar conta das mutações do Direito contemporâneo à coloração pós-moderna, tal aquela de MIREILLE DELMAS MARTY, que vê se extinguir o tempo das hierarquias verticais simples, perpassadas pelas
complexidades circulares. É elegante a expressão que diagnostica a
ruína das pirâmides orgulhosas e sua substituição por um direito de
pirâmides inacabadas e de estranhos loops.3
Não é de uma dessas paisagens mencionadas que trata o presente artigo, sob o risco de decepcionar; talvez estas perspectivas
amplas estejam, elas mesmas, aliás, para além do alcance do autor.
Nós nos limitaremos a examinar superficialmente as modalidades
de apreensão pelo Direito do objeto paisagem, considerando que o
Direito não pode ser considerado como qualquer sujeito suscetível
de deliberação em plena autonomia, ou como uma gama de instrumentos tecnológicos a serviço dos juristas. Retomando os conceitos
de HANNAH ARENDT, nós bem que poderíamos dizer que, se é verdade
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MARTY, Mireille Delmas. Pour un Droit Commun. Seuil, 1984.
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que os juristas fabricam o Direito (homo faber), eles não o fazem no
sentido da ação do mundo sobre ele..
E nesta fase que se deve lembrar acerca do caráter de epicentro da normatividade jurídica como tal, característica imemorável no
tempo e universal no espaço, a saber; seu lugar heterônomo de terceiro em relação ao mundo da vida. O Direito registra assim, através
de modalidades infinitamente variáveis na História e nas culturas,
a inevitabilidade do conflito entre os homens e a necessidade de
os proteger da violência pela imposição de uma medida (jurídica)
alheia ao conflito material. Não será diferente em matéria de Direito
da paisagem e de direito à paisagem; e assim também o será conforme a modalidade mais clássica: a codificação do vivo na metalinguagem jurídica, seus vocabulários e conjugações singulares
Preliminarmente (e neste momento, é necessário fazer pouco
caso de um argumento, que, se aceito, arruinaria o próprio princípio
da comunicação), vozes poderiam se erguer, para negar ou contestar
a própria legitimidade do Direito em propor uma definição jurídica
de paisagem, e a exprimir em sua linguagem as preferências estéticas. Terá que se permitir ao autor, com recurso ao argumento de
autoridade, de recusar o lugar comum que quer que a apreciação
do belo seja assunto subjetivo (a antífona de sabores e cores). Basta,
com efeito, para medir a fraqueza da proposição, observar que o pretenso subjetivismo pode igualmente ser aplicado à definição do bom
ou do razoável: raros são os momentos de consenso... E, simetricamente, não foi jamais do projeto do Direito definir um belo objetivo:
infinitamente mais prudente, e de modo algum demiurgo, ele vai na
maioria das vezes propor instrumentos próprios a garantir os valores
estéticos (e de fato sociologicamente dominantes) de uma sociedade
e de uma era. O Direito e a Estética, que podem perfeitamente se
ignorar mutuamente, podem também se encontrar, e as regras da
Arte se conjugar com as regras do Direito.4 É um pouco recuperar
a fulguração de um sofista que convidava seus contemporâneos a
fazer de suas vidas uma obra de arte.
A substância da contribuição consistirá numa reflexão sobre a
Convenção europeia da paisagem, elaborada aos cuidados do Con4
Sobre estas questões: MAKOWIAK, Jessica (CRIDEAU) Esthétique et Droit, LGDJ
2004, prefácio de MICHEL PRIEUR, diretor científico do CRIDEAU, p. 402.
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selho da Europa5 e firmada em Florença, em 20 de outubro de 2000.
O fato de a França, assim como a maior parte dos países europeus,
ter ratificado o instrumento internacional reforça consideravelmente seu interesse, ainda que sintomático, sendo inapropriado aqui
esmagar o leitor com excesso de Direito positivo técnico, francês6 e
comparado. Por consequência, nós nos limitaremos a concentrar a
reflexão sobre o conjunto de definições como entendidas pela disciplina jurídica (I), antes de questionarmos acerca de uma categoria
particularmente problemática, que é a dos princípios (II).
2. DEFINIÇÃO DE PAISAGEM
Durante décadas, pode ter havido Direito efetivo sem que este
tenha se dado ao trabalho de definir, ab initio, as coisas às quais ele
imaginava abranger. Sem dúvida, nós vivemos então o período mais
quimicamente puro do efeito performativo da regra jurídica. Era o
tempo dos grandes padres laicos do Direito moderno. Através de
numerosos processos e mediações impossíveis de serem invocados
todos aqui, a forma normativa própria do Direito começou a evoluir
para dar o aspecto ao que atualmente vários filósofos, sociólogos
ou teóricos do Direito denominam Direito pós-moderno. Ora, este
último faz geralmente, no estágio do Direito escrito, o uso de definições, que não vão faltar na Convenção (A), com uma originalidade
particularmente promissora para o futuro (B).
A – Instituir a paisagem com qualidade de um objeto jurídico
O artigo 1º da Convenção enumera um certo número de definições, entre as quais, a genérica de paisagem, que é a seguinte:
Paisagem designa uma parte do território percebida pelas populações, cuja característica resulta da ação de fatores naturais e/ou
humanos e de suas inter-relações. O relatório explicativo anexo à
Convenção não acrescenta muito ao texto normativo, limitando-se
a precisar que esta definição leva em consideração a ideia de que
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Ver: Revue Européenne de Droit de l’Environnement – CRIDEAU, 2003-3, nº
especial consagrado à Convenção Europeia da Paisagem. Cumpre sublinhar que
MICHEL PRIEUR, diretor científico do CRIDEAU, teve um papel ativo na elaboração
da Convenção de Florença, na qualidade de expert junto do Conselho da
Europa.
O CRIDEAU e o CIDCE realizaram o Estudo de impacto sobre o projeto de lei
autorizando a ratificação da Convenção Europeia da Paisagem pelo Ministério
da Ecologia e do Desenvolvimento Sustentável (dezembro/2002, p. 119).
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as paisagens evoluem no tempo, sob o efeito de forças naturais e
da ação dos seres humanos. Ela ressalta igualmente a ideia de que
a paisagem forma um todo cujos elementos naturais e culturais
são considerados simultaneamente. Uma discussão é sem dúvida
necessária focando-se sobre o estatuto de tal definição, ainda que
para tranquilizar aqueles que temem a legitimidade do direito de
instituição da paisagem.
Uma queixa sem sentido, um tanto contraditória com o receio
de ver o Direito impor sua concepção de paisagem, poderia ser assim formulada: a própria generalidade dos termos da definição parece trazer apenas pouca substância científica ao conhecimento do
que seja uma paisagem. O raciocínio inverso pode ser revelador:
a par de todas as necessárias controvérsias provindas de culturas
profissionais setoriais, de pensamentos individuais ou de escola, no
mínimo não é uma paisagem o que está dito na Convenção?7 Expresso de outra maneira, não seria possível compartilhar neste mundo
comum uma definição minimalista (uma espécie de land’art bruta
jurídica), para então ser discutida democraticamente?
Mas, uma objeção pode ainda surgir: por que se valer de uma
definição assim vaga, de densidade jurídica nebulosa, um tipo de
banalidade de base consternante para todos aqueles que dedicaram
seus esforços à conceituação da paisagem, e que dedicaram, no fim
das contas, seus esforços, por vezes até recentemente, digamos há
cinco anos, após aproximadamente o momento da assinatura da
Convenção de Florença que colocou com vigor a paisagem na agenda das políticas públicas?
À questão supraevocada, a resposta é simples e reside em dois
aspectos. O primeiro refere-se a um estilo de direito, em qualidade de texto específico, de metalinguagem, valendo particularmente
para o Direito internacional num contexto de Direito pós-moderno:
com a preocupação quanto à acessibilidade, e talvez mais de inteligibilidade do Direito, a norma define os conteúdos das categorias
que ela vai empregar. O segundo é correlato ao primeiro: longe de
atribuir a tarefa de definir o conceito de paisagem, de fixá-lo em
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Ao menos no que diz respeito ao panorama contemporâneo de senso comum,
remetendo à extensão física do espaço. A Convenção não pretende intervir
no seio de audácias analógicas (paisagem interior, paisagem institucional,
paisagem musical, paisagem olfativa, etc.).
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Direito, o instrumento jurídico se limita a descrever e delimitar seu
objeto. As duas operações são incomensuráveis.
Ademais, a descrição do objeto jurídico paisagem, cuja densidade, como se disse, fôra mantida, parece ainda reincidir na indeterminação na fase de indicação do campo de aplicação (artigo 2). Por
princípio, todo o território (no sentido jurídico) dos Estados-partes
é visado, incluindo-se... o mar territorial.
É assim, ao contrário, que elementos de precisão são introduzidos. No entanto, trata-se ainda de descrição das plúrimas características do objeto/categoria jurídica paisagem. É então necessário
enumerar os adjetivos (relativos aos espaços) que contribuem para
substancializar a noção. As paisagens podem ser naturais, mas também rurais, ou ainda urbanas,8 e, enfim, periurbanas.9 Por consequência, são evidentemente abrangidos os espaços terrestres, bem
como as águas interiores e marítimas. Não parece que grande coisa
relativa ao entendido tenha sido omitida...10
B – Unidade e pluralidade
Sobretudo, o artigo 2 se conclui com uma frase que confere
à Convenção sua forte originalidade, à semelhança de numerosas
outras convenções internacionais que preveem a proteção das paisagens. Em poucas linhas, é claramente colocado que a Convenção
concerne “tanto às paisagens que possam ser consideradas notáveis
como às paisagens do cotidiano e as paisagens degradadas”. Notese, para registro, a extrema contenção do texto no que concerne
às “paisagens que podem ser consideradas como notáveis”: ainda
uma vez, o Direito europeu (ao contrário da Convenção de Paris
da UNESCO sobre o patrimônio mundial da humanidade) não se
arrisca a entregar a essência da paisagem notável, deixando aos outros (os Estados-partes, às sensibilidades, aos lobbies), o cuidado
de selecioná-las, ou melhor, de lhes descobrir ou lhes inventar. Mas
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Disposição que pode chocar na Alemanha, onde a cultura nacional repugna
historicamente considerar a cidade enquanto paisagem.
9 O periurbano, espaço misto e de muitos aspectos problemáticos, fez efetivamente
sua entrada no Direito em 2000, através da Convenção do Conselho da Europa
e da lei francesa Solidariedade e Renovação Urbana.
10 Uma valorosa associação, que luta contra o dispendioso delírio de iluminação dos
espaços rurais à noite, invocaria que a proteção do céu noturno e da paisagem
noturna (aquela em que não se pode ver nada) foi infelizmente esquecida.
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era inevitável que fosse feita assim referência à paisagem sublime.
Muito mais inovadoras em Direito, e certamente bem-vindas, são as
menções feitas às paisagens “do cotidiano” e “degradadas”. O reconhecimento explícito da paisagem banal,11 na qualidade de espaço
digno de interesse, contribui discretamente à passagem do Direito
da paisagem, implicitamente dedicado às paisagens que tenham sido
objeto de uma distinção em direção a um direito à paisagem. Este
último não pode ser considerado de maneira extravagante, como
conferindo qualquer direito subjetivo de viver no seio de um paraíso
estético, mas muito mais como introduzindo uma exigência legítima
de todos: a de não serem obrigados a viver na fealdade. Daí o interesse pelas paisagens degradadas, que são hoje (se quisermos ser,
por um segundo, sinceros conosco mesmos), uma legião.
Enfim, a disposição do artigo 9 tem seu lugar nos desenvolvimentos consagrados às definições, pois ela institui a noção de paisagem transfronteiriça, expressão jurídica dentre outras de adágio
não jurídico, segundo o qual o meio ambiente não tem fronteiras.
Em geral, se a Convenção de Florença diz alguma coisa fundamental no que se refere à definição de paisagem, é de maneira
absolutamente holística, convidando-nos a considerar que tudo é
paisagem, por toda parte. Alguns irão zombar, dizendo que alguns
assim já o fizeram há um bom tempo. Sem dúvida alguma, mas talvez
deva ser deixado aos juristas do meio ambiente a satisfação de ter
podido trabalhar pela recepção no Direito desta concepção generosa do homem paisagisticamente situado, tornando-a compreensível
em relação ao Estatuto de Direito, que depende de disciplinas e práticas morais, e ao qual não se pede de se afastar do real em o codificando senão para se converter em um meio eficaz de ação sobre o
mesmo real.
3. OS PRINCÍPIOS DIRETORES
Ocupam essencialmente os artigos 3, 5 e 6 da Convenção12. Os
princípios diretores têm uma natureza composta, característica do
11 Já fortemente presente no Direito interno francês, cf. Contribuições de B.
DROBENKO e G. MONÉDIAIRE. In: REDE supra citado.
12 Os artigos 7 a 11 tratam sobre a cooperação europeia, e certas disposições
poderiam posicionar-se entre os princípios diretores. Não são estudados aqui.
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Direito pós-moderno13. Eles baseiam-se no Direito até mesmo introduzindo-se ao estado inicial, mais primitivo, mas são simultaneamente constitutivos de objetivos teleológicos de políticas públicas.
Logo, devem ser expostos os objetivos globais da Convenção (A) e a
série de medidas que ela importa (B).
A – A trindade dos objetivos
O artigo 3 expõe os objetivos globais constitutivos dos objetivos teleológicos: trata-se de promover a proteção, a gestão e o planejamento paisagístico.14 Três substantivos que são definidos, por
sua vez, no artigo 1º. A proteção remete à ideia de conservação no
estado; a gestão implica as ações coerentes com os objetivos tradicionais do desenvolvimento sustentável e convida a pensar na evolução das paisagens; o planejamento designa igualmente ações, quer
se trate de pensar a restauração de uma paisagem degradada ou de
considerar uma paisagem futura consecutiva a um equipamento.
Observa-se que, a título da gestão e do planejamento, o Direito, em
seu linguajar próprio, registra claramente a constatação evidente da
evolução diacrônica das paisagens. Mas o sentido geral do texto visa,
e nisso é feliz, a cessar de fazer da paisagem uma resultante, no máximo variável secundária, para erigí-la, na ordem paradigmática do
desenvolvimento sustentável, ao estatuto de variável por inteiro da
antropização no espaço e no tempo.
B – As medidas
Tais metas, para serem progressivamente aproximadas, necessitam da aplicação de medidas mais concretas e imediatas do que
aquelas às quais os Estados se comprometem a realizar. O artigo 5º
define as medidas de caráter geral; e o artigo 6º, as medidas particulares.
Surgem das medidas gerais quatro obrigações para os Estadospartes. Trata-se, primeiramente, de institucionalizar em seus res13 Cf em particular, CHARLES ALBERT MORAND. Le droit néo-moderne des politiques
publiques. LGDJ – MSH – Droit et Société nº 26, 1999.
14 Assim como organizar a cooperação europeia nesta área (ponto não estudado
aqui, tratado no capítulo III, artigo 7 Políticas e programas internacionais; artigo
8 Assistência mútua e troca de informações; artigo 9 Paisagens Transfronteiriças
– cf. Supra; artigo 10 seguido da execução da Convenção; artigo 11 Prêmio da
paisagem do Conselho da Europa.
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pectivos direitos internos a categoria jurídica paisagem. Na verdade, o ponto não se limita a exprimir uma estipulação vaga, mas sim
precisa sobre o sentido da juridicização da paisagem, contribuindo
desta forma para substancializar sua definição. Apreende-se, assim,
que a paisagem é uma componente essencial do contexto de vida
das populações, que exprime a diversidade de seu patrimônio comum cultural e natural, e que é o fundamento de sua identidade.
Convém, em seguida, para os Estados, executar as políticas da paisagem, em se valendo de medidas particulares (cf. Infra), com o objetivo de lhes proteger, gerir ou organizar, segundo as definições do
artigo 1º. O ponto em questão é estreitamente ligado ao precedente,
no sentido de que as políticas públicas devem se submeter a uma
exigência procedimental característica do Direito ambiental, e além
das políticas de desenvolvimento sustentável elaboradas e executadas no contexto de governança. Com efeito, todos os atores envolvidos, institucionais ou relevantes da sociedade civil, devem poder
tomar parte na concepção e realização das políticas da paisagem
através de procedimentos de participação popular. E a este título
que DOYEN MICHEL PRIEUR pode com razão escrever que a Convenção
de 2000 institui a paisagem enquanto lugar de cidadania democrática.15 Enfim, o último ponto convida firmemente a integrar os
objetivos paisagísticos em um grande número de políticas setoriais,
tais como o planejamento territorial, o urbanismo, a cultura, o meio
ambiente, a agricultura, as políticas sociais e econômicas. É como se
esta lista, já substancial (pensemos, por um segundo, no número de
planificações adstritas a estes diferentes objetos, tendo, no entanto,
como ponto de incidência comum o espaço), não bastasse, o texto,
para se garantir de um esquecimento ou para disfarçar a impotência
de nomear uma ou outra política, conclui sobre a fórmula bem como
nas outras políticas, podendo haver um efeito direito ou indireto
sobre a paisagem.16
15 REDE, op. Cit., p. 260.
16 Sobre o princípio da integração, cf Déclaration de Limoges II – Chartre
RIO+10. CRIDEAU-CIDCE, 2001, Gestion intégrée de l’environnement, p. 34
sg. Para um instrumento comunitário de execução, que vise expressamente à
paisagem: L’évaluation des incidences de certains plans et programmes sur
l’environnement: la directive 2001/42 du 27 juin 2001. CRIDEAU, CIDCE,
GRIDAUH; 2002, p. 136.
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Por fim, ao final, considerando-se o conteúdo do artigo 5º,
observa-se a sucessão de dois tipos de medidas gerais. O primeiro
tipo é de algum modo interno ao objeto da Convenção, meios ou
recursos de seus objetivos teleológicos: implica a obrigação de estabelecer a paisagem como uma categoria jurídica, e em conceber e
implementar as políticas públicas congruentes. A segunda categoria
de recursos estabelece pontes e reforça a coerência do instrumento
paisagístico em relação a outros instrumentos de Direito internacional do meio ambiente acolhendo os princípios gerais da “participação pública” e da “integração”. Não saberíamos sugerir melhor, sem
redigir, que através desta dupla referência, é que o objetivo inominável da governança das paisagens é promovido.
Quanto ao longo artigo 6º, consagrado às medidas particulares, o mesmo não conta com menos do que cinco subdivisões, sobre
as quais nos limitaremos essencialmente a repetir os títulos. Os Estados se comprometem a sensibilizar não somente a sociedade civil,
mas também as organizações privadas e as autoridades públicas, que
poderiam, de fato, necessitar do valor das paisagens. Eles devem
igualmente se comprometer com as ações de formação e de educação, visando à formação de profissionais paisagísticos, mas também
de seus atores privados, públicos ou associativos através de programas multidisciplinares, e ainda criar ensino escolar e universitário
adequados.17 Além disso, é seu dever identificar e qualificar suas
paisagens, com vistas à extensão, ao aprofundamento e racionalização de políticas públicas. Estes estudos de identificação devem ser
feitos à luz de intercâmbio de experiências e de metodologias, (cf.
Capítulo III: cooperação europeia) o que, longe de introduzirem
um risco de dogmatismo, constituem simplesmente a expressão da
natureza europeia da Convenção: nem universal nem composta por
uma justaposição de escolas nacionais fechadas em si mesmas. Chega-se, logicamente, uma vez identificadas e qualificadas as paisagens
na fase de coletânea de dados das políticas públicas, a uma segunda,
de formulação de objetivos de qualidade paisagística, inseparáveis
das contribuições dos procedimentos de participação popular naquilo em que devam exprimir as aspirações da população.18 Enfim, o
17 Cf. Déclaration de Limoges II…. , op cit. Enseignement du Droit de l’Environnement,
p. 43 sg.
18 Esta disposição é angelical? A fim de evitar as más surpresas, parecia prudente
não fazer depender do senso comum paisagístico a definição dos objetivos de
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último parágrafo tem por título a execução. Pela leitura, os Estados
se obrigam a fornecer os meios de intervenção, ou seja, financeiros,
para conduzir a bom termo o ambicioso programa da Convenção do
Conselho da Europa.
Há abundância, portanto, de princípios diretores próprios ao
direito de paisagem,19 consagrados num instrumento internacional
europeu doravante em vigor já que ratificado por um número superior ao necessário de Estados. Mas escrever princípio, e assim usá-lo
como categoria jurídica, gera múltiplos e árduos problemas.20 No
fundo, a Convenção é omissa quanto à proclamação de um princípio substancial relativo à paisagem, salvo que, como visto, tudo é
paisagem, ainda que todas as paisagens não se equivalham, nem em
natureza, nem em excelência. Portanto, os princípios da Convenção
são mais modestamente princípios de ação ou políticos, sustentados
na tríade da proteção, gestão e organização de diferentes paisagens.
Maneira de ilustrar a validade das teses que teorizaram a categoria
de princípios diretores, mista de direito e de orientações de política
pública. Aqui, a clássica fraqueza de densidade jurídica do princípio diretor se conjuga deliberadamente com uma opção pluralista, já que a diversidade paisagística é expressamente dada por uma
componente da identidade cultural europeia. Não poderíamos, por
consequência, imaginar um direito mais liberal (no sentido político), que, tendo definido seu objeto e expressado suas orientações,
devolva integral e simplesmente às sociedades políticas e civis o cuidado de agir em favor das paisagens.
4. CONCLUSÃO
Pode-se ver aqui uma manifestação da plasticidade contemporânea da normatividade jurídica, de sua capacidade segundo a tese
de GUILLAUME BONNEL, de revelar sua empatia formal para entalhar –
ainda que por revogação – suas estipulações a seu objeto, fosse ele
tão frágil e desejado a tanto, que a paisagem, tipo de imaterialidade
qualidade que uma vez o público tenha sido capaz de beneficar efetivamente
ações de sensibilização e educação …
19 Mais que de direito da paisagem, entendido implicitamente como visto visando
as paisagens extraordinárias por consensus omnium, e a propósito das quais os
Estados desenvolvem longamente dispositivos jurídicos positivos.
20 Sobre estas questões, a tese de GUILLAUME BONNEL: Le principe juridique écrit et le
droit de l’environnement (s/dir. MICHEL PRIEUR), 2005, p. 511.
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engendrada por uma coagulação de materialidades. A Convenção de
Florença tem um mérito imenso, pelo conjunto de sua prudência,
quando trata de substancializar a paisagem; pela sua audácia, quando coloca que, a partir de então, em Direito tudo é paisagem na
pluralidade; pela sua inteligência quando ela apresenta os princípios
de ações suscetíveis de serem efetivamente acolhidos pelo maior
número de atores políticos e sociais; de tornar possível e permitir,
reservando cuidadosamente seu lugar às inevitáveis e estimulantes
controvérsias, conflitos, e amanhã mais que ontem, litígios.
Uma última reflexão poderia ainda ser pensada. Em colocando
a imanência paisagística e convidando a zelar pelas múltiplas paisagens, a Convenção de Florença põe à prova uma obra cultural desesperada, no mesmo momento da ruína da transcendência e da
generalização de insignificâncias, uma espécie de reinvenção de um
“laico sagrado”,21N.R não apenas associada a qualquer outro (a paisagem sublime), mas também à cotidianidade para tentar seduzi-lo
um pouco.
Um prestigiado jurista tem contribuído para colocar em evidência as reflexões, associado a um filósofo que não lhe cede nada no
plano do amor pela vida. Como o Conselho da Europa nos convida
a pensar que ninguém é dono da paisagem, não é descabido outorgar a um geógrafo há longo tempo visto como herético pela Academia seu sentimento sobre a paisagem e sobre a vida. Lembremo-nos,
pois, de ÉLISÉE RECLUS, que assim escreveu:
“Lá onde o sol é desfigurado, lá onde toda poesia desapareceu
na paisagem, as imaginações se desligam, os espíritos empobrecem, a rotina e o servilismo se apossam das almas e as expõem ao torpor e à morte”.22
21
N.R.
“Laico” ou “leigo sagrado” – no sentido original (sacré laïque) se refere àquele
que é limitado à uma área cultural determinada; é sagrado para uma sociedade
em particular, tão somente.
22 ÉLISÉE RECLUS: Du sentiment de la nature dans les sociétés modernes. Première
Pierres 2002 (1ª Ed., 1866). Citado em RENÉ RIESEL. Du Progrès dans la
Domestication. Ed. de l’Encyclopédie des nuisances, 2003, p. 15.
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