O Processo segundo Franz Kafka e Orson Welles

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O Processo segundo Franz Kafka e Orson Welles
SESSÃO 14 – FILOSOFIA, CINEMA E LITERATURA
O PROCESSO SEGUNDO FRANZ KAFKA E ORSON WELLES
Prof. Dr. Charles Feitosa 1
1. Notas Afetivas sobre Kafka e Welles
O personagem principal do filme Hanna e suas irmãs (1986), vivido e dirigido pelo
cineasta-pensador Woody Allen (1935-), diz em certo momento que um dos sentidos da vida
é poder assistir a um filme dos irmãos Marx. Para mim, um dos sentidos da vida é poder ler a
obra de Kafka, especialmente O Processo, em alemão. Sei que isso é um privilégio para
poucos e espero que minha afirmação não soe arrogante e sim como um estímulo a aprender
essa bela e difícil língua.
Já a obra de Orson Welles marcou de forma profunda minha percepção estética do mundo.
Sempre fui fascinado pela maneira como ele conseguiu mobilizar a imaginação do público através
da famosa transmissão radiofônica de a Guerra dos Mundos. Como professor e conferencista tive
oportunidade de recriar situações onde histórias absurdas eram apresentadas como verdadeiras,
com o objetivo de testar o senso crítico dos ouvintes. Constatei diversas vezes o grau de recepção
crédula das mais variadas plateias e provoquei, graças a esse recurso, intensos debates após
revelar o sentido orsonwelliano das minhas experimentações didáticas. Esse trabalho é, portanto,
uma forma de comemoração e de rememoração de dois dos maiores artistas do século XX, cujas
obras povoam meus sonhos e pesadelos.
2. Questões
O diretor de cinema Peter Greenaway (1942-), em uma palestra intitulada Cinema is
dead, long live Cinema, proferida na Humboldt-Universtät em Berlim, fevereiro de 2007
(repetida depois em vários lugares, inclusive no Brasil) afirmou: “temos 111 anos de história
atrás de nós, mas ainda não vimos o verdadeiro cinema, até agora só foi um prólogo”. A
polêmica tese do realizador britânico era baseada na tese de que os mais de cem anos de
história do cinema significavam na verdade apenas um longo período de meras transposições
de textos para telas. Filmes teriam sido até agora apenas livros ilustrados. Além disso, na
mesma palestra, Greenaway reclamava que existiria uma certa tirania do texto sobre a
imagem na cultura ocidental. Mas o que mais me impressionou foi sua constatação de que
embora vivamos em um tempo em que em um minuto mais imagens são produzidas do que
em todo o século XIX, faltar-nos-ia ainda o treinamento competente para ler imagens,
equivalente ao treinamento para ler textos que recebemos na escola. O polêmico diagnóstico
de Greenaway serve como um bom dispositivo para uma reflexão em torno da relação
Welles/Kafka. O que é “adaptar” em cinema e literatura? Qual a relação entre imagem e texto
no cinema e na literatura? Qual o papel da filosofia no encontro entre o cinema e a literatura?
O que é O Processo para Kafka e Welles?
3. O Processo de Kafka
Franz Kafka nasceu em 03 de julho de 1883 em Praga, na época pertencente ao império
austro-húngaro, morreu em 03 de junho de 1924 em Kierling, hoje um bairro de
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Departamento de Filosofia e Ciências Sociais Programa em Pó-Graduação em Artes Cênicas UNIRIO.
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Klosterneuburg, Áustria. Kafka era filho de um pai extremamente autoritário, tinha uma saúde
frágil, nunca se casou ou teve filhos e juntamente com o argentino Jose Luis Borges constitui
um dos maiores escritores da literatura contemporânea.
O estilo literário de Kafka poderia ser resumido com uma mistura de humor, absurdo e
mistério. Através dele a língua alemã encontra uma das suas formas máximas de expressão.
Percebe-se em seus textos uma ambiguidade intraduzível de certos termos, o que acaba
gerando uma certa confusão. O exemplo mais conhecido talvez seja a primeira frase de A
Metamorfose (1915), onde o personagem Gregor Samsa, acorda transformado em um
Ungeziefer. Esse termo, costumeiramente traduzido por “barata”, costuma ser usando em
linguagem coloquial mais propriamente se referindo a um “besouro”. Entretanto, em alemão
medieval, Ungeziefer indicava também qualquer animal impuro que não fosse apto para o
sacrifício, inadequado para ser separado e usado para fins sagrados. Os biógrafos relatam que
Kafka sempre se recusou a desenhar o inseto em torno do qual girava sua história, o que
reaviva nossas questões acerca das relações entre texto e imagem ou entre as traduções entre
literatura e cinema.
Der Process, junto de América e O Castelo, constitui um dos três romances inacabados
e publicados postumamente por Kafka. Começou a ser escrito provavelmente no verão de
1914 e foi continuamente elaborado até sua morte em 1924. O contexto histórico coincide o
início da Primeira Guerra Mundial. No âmbito biográfico é a época em que Kafka termina o
noivado com Felice Bauer e começa a viver independente dos pais em quarto todo seu.
O Processo apresenta a história de Josef K., personagem que acorda certa manhã, e,
sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível “processo” por um
crime não revelado. O manuscrito é composto de 10 capítulos e diversos fragmentos. A
organização da ordem dos capítulos por Max Brod é ainda tema de muitas discussões pelos
estudiosos. A obra permite diversas leituras possíveis, mas a interpretação vencedora e
praticamente hegemônica vê o romance como uma alegoria da situação do indivíduo moderno
em uma sociedade excessivamente burocratizada. Desde então o adjetivo “kafkiano” se
popularizou como sinônimo de “surreal” e “absurdo”. Como Orson Welles vê O Processo de
Kafka?
4. O Processo de Orson Welles
George Orson Welles, nascido em 1915, começou a estudar pintura em 1931. Criou sua
própria companhia de teatro em 1937. Em 1938, com 25 anos de idade, Welles produziu a
famosa transmissão radiofônica inspirada em A Guerra dos Mundos de H.G.Wells. Sua
estreia no cinema, em filmes de longa metragem, ocorreu em 1941 com Citizen Kane,
considerado pela crítica como um dos melhores filmes de todos os tempos. Diversas
inovações técnicas no uso das câmeras são creditadas a ele, mas a principal característica do
seu estilo cinematográfico está nas narrativas não lineares em função de recursos de edição
muito sofisticados para a época de sua realização.
The Trial, lançado em 1962, foi considerado pelo próprio Welles, entrevista para TV,
como o melhor filme que já fez. Welles abre o filme com uma animação de Alexandre
Alexeieff (1901-1982), que reproduz a famosa fábula inserida no manuscrito por Max Brod,
Diante da Lei, sugerindo assim que essa estória dentro da estória talvez seja a chave para a
compreensão da obra. Diversas alterações em relação ao romance de Kafka são realizadas. As
mais facilmente perceptíveis são a mudança da forma da execução na cena final, a introdução
de elementos contemporâneos (o uso do computador como símbolo da burocratização), a
utilização de elementos da estética noir e expressionista (evidentes na fotografia em preto e
branco). A principal alteração parece ser que o romance enfatiza um “K.” confuso e
desnorteado, ainda que teimoso e persistente, enquanto o filme retrata “K.” como um rebelde
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anti-autoritário. Essa heroicização do personagem torna-o mais simpático no filme do que no
livro.
A leitura de Welles confirma a interpretação do romance de Kafka como uma denúncia
de uma sociedade totalitária. Um dos objetivos desse trabalho é questionar os limites dessa
interpretação e apresentar outras possibilidades de leitura. É importante observar que o
contraste entre as duas obras costuma ser medido através do binômio hierárquico “original x
adaptação”. O próprio Orson Welles assume que seu objetivo não era só recontar, mas recriar
o romance. Em entrevista para BBC ele diz que o filme não era uma versão ou ilustração do
livro, nem um filme baseado no livro, mas uma obra diferente, inspirada pela leitura de
Kafka. O objetivo principal do presente trabalho é tomar a parceria Kafka/Welles como um
material para repensar filosoficamente as relações entre modelo e cópia na criação estética e
as tensões entre texto e imagem no encontro entre a literatura e o cinema.
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