olhares sobre escravidao contemporanea - GEDMMA
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olhares sobre escravidao contemporanea - GEDMMA
Ministério da Educação Universidade Federal de Mato Grosso Reitora Maria Lúcia Cavalli Neder Vice-Reitor Francisco José Dutra Souto Coordenador da Editora Universitária Marinaldo Divino Ribeiro Composição do Conselho Editorial da EdUFMT Presidente Marinaldo Divino Ribeiro Membros Ademar de Lima Carvalho Aída Couto Dinucci Bezerra Bismarck Duarte Diniz Eliana Beatriz Nunes Rondon Elisabeth Madureira Siqueira Frederico José Andries Lopes Janaina Januário da Silva Jorge do Santos José Serafim Bertoloto Karlin Saori Ishii Marluce Aparecida Souza e Silva Marly Augusta Lopes de Magalhães Moacir Martins Figueiredo Junior Taciana Mirna Sambrano Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Cuiabá, MT 2011 © FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes (Orgs.). Olhares sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas. Cuiabá: EDUFMT, 2011. ISBN: 978-85-327-0395-8 O45 Olhares sobre a escravidão contemporânea : novas contribuições críticas / Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado (Orgs.). – Cuiabá : EdUFMT, 2011. 442 p. : il. (algumas color.) ISBN – 978-85-327-0395-8 Inclui bibliografia. 1. Trabalho escravo. 2. Escravidão contemporânea. 3. Agropecuária – Trabalho escravo. 4. Trabalho escravo – Amazônia. I. Figueira, Ricardo Rezende (Org.). II. Parado, Adonia Antunes (Org.). CDU – 326.3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Coordenação da EdUFMT: Marinaldo Divino Ribeiro Supervisão Técnica: Janaina Januário da Silva Revisão e Normalização Textual: Giselle Marques Ramos de Oliveira Vânia Siqueira de Lacerda Capa, Editoração e Projeto Gráfico: Candida Bitencourt Haesbaert Foto da capa: João Roberto Ripper Impressão: Gráfica Print Filiada à Editora da Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Corrêa da Costa, 2.367 – Boa Esperança CEP: 78.060-900 – Cuiabá, MT Fone: (65) 3615 8322 – fax: (65) 3615 8325 www.ufmt.br/edufmt | [email protected] Sumário Apresentação....................................................................................... 9 Introdução......................................................................................... 11 I . ABERTURA Representações de trabalhadores, gatos, e empregadores sobre o trabalho escravo.... 23 José Damião de Lima Trindade 1 – Representações de trabalhadores, gatos e empregadores sobre o trabalho escravo........................................................................ 37 Maria Antonieta Vieira Regina Bruno 2 – Depoimentos de trabalhadores rurais escravizados por dívida - 2007, Pará, Brasil.................................................................. 57 Adonia Antunes Prado 3 – A escravidão contemporânea: relações existentes e estudo de caso................. 71 Ricardo Rezende Figueira Adriana da Silva Freitas Andrea Kazuko Murakami Vera Lúcia Cavalieri 4 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a denúncia como um dos caminhos na resistência dos trabalhadores à dominação............................. 93 Alessandra Gomes Mendes 5 – De homens escravos a terra livre: um caso de escravização capitalista Rio de Janeiro (1993-1998).....................................................................113 Gladyson S. B. Pereira II . PODER PÚBLICO E SOCIEDADE CIVIL 1 – Modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo usando lógica Fuzzy...............................................................129 Benedito de Lima e Silva Filho Renato de mello 2 – A cabeça do libertador.....................................................................155 Jaqueline Gomes de Jesus 3 – Trabalho escravo: a dignidade dilacerada pelo capital..............................171 Antônio Alves de Almeida 4 – Trabalho escravo contemporâneo.......................................................197 Marcelo Campos 5 – Violação de direitos humanos no campo: um enfoque a partir da Amazônia......205 José Batista Gonçalves Afonso III . PERSPECTIVA DE TRABALHO E DIREITO 1 – Atuação do ministério público federal no combate ao crime de trabalho escravo no meio rural e políticas públicas para erradicar a escravidão contemporânea.....229 Neide M. C. Cardoso de Oliveira 2 – Tratados e convenções internacionais e seus reflexos (e inconsistências) no tratamento da escravidão pós-abolição..................................................245 Nanci Valadares de Carvalho 3 – Tráfico de pessoas: cenário, atores e crime Em busca do respeito à dignidade humana..................................................265 Waldimeiry Corrêa da Silva 4 – Mecanização do corte de cana crua e políticas públicas compensatórias: indo direto ao ponto............................................................................293 Francisco Alves 5 – Acre, desenvolvimentismo e reservas extrativistas...................................317 Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior 6 – Notas sobre o mundo do trabalho rural no estado de Mato Grosso em fins da primeira década do século XXI..................................... 335 Vitale Joanoni Neto 7 – Depoimento – Uma situação vivida por um imigrante de 1931 .....................349 Mitiko Yanaga Une 8 – Nuevos estándares internacionales, flexibilidad laboral y elementos de trabajo esclavo en la horticultura de exportación en México............................359 Boris Marañón-Pimentel 9 – Os acionistas da casa grande: A reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporâneo............................................................391 Leonardo Sakamoto 10 – Trabalho escravo - uma realidade na cadeia produtiva de corporações com a chamada “responsabilidade social”..................................................427 Marcela Soares Silva Os autores.........................................................................................441 Agradecimentos Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro o apoio, na modalidade APQ2; à Fundação Ford e à Universidade Federal do Mato Grosso pela publicação deste livro; à direção do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida, à Escola de Serviço Social, à Faculdade de Educação e ao Centro de Filosofia e Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo poio à realização da I e II Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas. Em especial, agradecemos à professora Gelba Cavalcante de Cerqueira, por sua dedicação incansável ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), e à doutora Denise Dourado Dora, pela disponibilidade e solidariedade ao projeto do GPTEC. Apresentação É com imensa satisfação que apresento o livro OLHARES SOBRE A ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA: NOVAS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS, organizado por Ricardo Rezende Figueira e Adônia Antunes Prado, com a colaboração de vários autores que estudam a temática da Escravidão Contemporânea. No início da década de 1980, havia grande resistência teórica, no âmbito das Universidades, para aceitar que houvesse escravidão nas agropecuárias na Amazônia. Atualmente, embora ainda não haja consenso sobre a questão, até o poder público, assessorado por pesquisadores de Universidades, combate esta forma de relação social de produção que ainda persiste. A escravidão por dívida é uma chaga social disseminada em várias partes do mundo. Na introdução, os autores fazem referência ao livro “À Margem da História”, no qual Euclides da Cunha denuncia a persistência da escravidão de trabalhadores nos seringais da Amazônia. O “aviamento”, uma forma de escravidão por dívida, praticado nos seringais, era a prática de “cativeiro” mais conhecida no Brasil. Na transição do trabalho escravo para o colonato, nas fazendas de café de São Paulo, os feitores viam os colonos europeus como escravos de pele branca. As cartas-denúncia do colono suíço Thomas Davatz, e a revolta dos colonos da fazenda do Senador Vergueiro, levaram os governos de alguns países europeus a pressionar o governo brasileiro, exigindo dos barões do café a adoção de relações de trabalho condizentes com a condição de homens livres dos colonos. No final dos anos 60 e início da década de 1970, as agropecuárias subsidiadas pela SUDAM, com a intermediação dos gatos, levaram milhares de trabalhadores para derrubar a mata em fazendas na Amazônia. Logo que assumiu a Prelazia de São Felix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga fez as primeiras denúncias sobre a exploração dos trabalhadores nas agropecuárias do Araguaia. Era o início. Ao longo das décadas seguintes esta prática não só continuou como se ampliou. Atualmente os jornais noticiam com relativa freqüência a “libertação” de trabalhadores em situação análoga ao trabalho escravo em modernos empreendimentos capitalistas, como usinas de açúcar, agropecuárias e madeireiras. Os proprietários são empresários, políticos, muitos com formação universitária. Atualmente esta prática está disseminada inclusive em áreas urbanas. Esta coletânea resultou das discussões do Grupo de Pesquisa sobre o Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), de pesquisas de seus membros, e de relatórios de órgãos incumbidos de reprimir a prática do trabalho escravo contemporâneo. Estes textos nos mostram que, apesar do desenvolvimento econômico, muitas empresas capitalistas mantêm, no seu interior, relações sociais de produção atrasadas, incompatíveis com este modo de produção. Os depoimentos de trabalhadores submetidos a formas de exploração análogas ao trabalho escravo são um libelo acusatório contra os exploradores, e contra a sociedade envolvente. Apesar desta situação, nos últimos anos houve avanços significativos, no âmbito legal e político, no combate oficial à prática do trabalho escravo. Grandes empresários e até políticos, donos de empresas agropecuárias foram denunciados e punidos. Seus nomes saíram do anonimato para a lista suja do trabalho escravo. A leitura deste livro mostra que o processo de expansão da fronteira amazônica, estimulada e subsidiada pelo Estado, alardeada como progresso e desenvolvimento, possibilita a acumulação do capital utilizando práticas de expropriação, exploração da força de trabalho, violência e a sujeição dos trabalhadores à situação análoga ao trabalho escravo. Neste contexto os próprios trabalhadores se tornam mercadoria. Prof. Dr. João Carlos Barrozo PPGHis da UFMT Introdução Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado Há mais de um século, em agosto de 1909, morreu Euclides da Cunha. Além de homenagear o escritor de Os Sertões (1922), é hora de retomar outro texto euclidiano. Cinco anos antes, em 1904, o escritor esteve na Amazônia, como chefe da uma comissão de reconhecimento do Alto Purus. A experiência possibilitou que redigisse À Margem da História, publicada, enquanto livro, postumamente. No texto, o autor que combinava pesquisa e denúncia, constatou que ao trabalhador “[...] nas paragens exuberantes das héveas e castiolas, o aguarda(va) a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoismo” (CUNHA, 2006, p. 28) ou, afirma ainda o autor que, o nordestino empurrado pela necessidade para a região, era aguardado para “[...] a mais imperfeita organização do trabalho” também construída pelo mesmo egoísmo (CUNHA, 2006, p. 51). Por isso, prosseguiu o narrador: “De feito, o seringueiro – e não designamos o patrão opulento, senão o freguês jungido à gleba das estradas – realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 2006, p. 28). E retomou poucas páginas depois: “Repitamos. O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 2006, p. 51). Com um vocabulário singular, variado e peculiar, o autor revelou a existência de homens atados aos seringais, vítimas de um crime que não era aleatório, mas intencional. E o demonstrou ao apontar minuciosamente, através de valores da época, o mecanismo e a arquitetura que enlaçavam o Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) homem ao seu senhor. A trama da prisão da pessoa constava inicialmente do adiantamento recebido para a viagem, o transporte, os gastos provenientes da compra de mercadorias e instrumentos de trabalho. Havia, para Euclides da Cunha, atrás desse comércio, um sistema “de venda de um homem” e, como consequência, a escravidão por dívida. É natural que ao fim de alguns anos o freguês esteja irremediavelmente perdido. A sua dívida avulta ameaçadoramente: três, quatro, cinco, dez contos, às vezes, que não pagará nunca. Queda, então, na mórbida impassibilidade de um felá desprotegido, dobrando toda a cerviz à servidão completa. O regulamento é impiedoso: Qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se sem que liquide todas as suas transações comerciais... Fugir? Nem cuida tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acorde de tal não aceitarem uns os empregados de outros antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizarse essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes (CUNHA, 2006, p. 30-31). O mundo do crime sobrevivia com sua organização interna capiciosa, suas reuniões, seus controles sociais e os acordos entre os proprietários dos seringais, moendo esperanças e sonhos de migrantes que queriam o sossego de uma existência. A lógica era o desejo sem freios e limites para o lucro. Ou era o “desaçamado egoismo” sobre gentes amordaçadas; subjugadas pelas lonjuras em que se encontravam. A situação chegada a tal ponto que os escravizados também escravizavam. Os caucheiros “Vão em busca do selvagem que devem combater e exterminar ou escravizar, para que do mesmo lance tenham toda a segurança no novo posto de trabalhos e braços que lhos impulsionem” (CUNHA, 2006, p. 58). O autor, possivelmente, não imaginava que a tragédia persistiria com tanta e amiúde frequência nos anos posteriores. Pouco mais de 30 anos depois, Euclides da Cunha não assistiu, ao deslocamento de milhares de brasileiros de muitos rincões do país em direção à mesma região para viver os mesmos problemas. Eram os chamados soldados da borracha, tangidos pela propaganda do Estado e pela ação das forças armadas, para a coleta da borracha vegetal. Iam abastecer os aliados em tempos de guerra, mas conheceriam a estrutura da dívida, seriam desabastecidos de seus sonhos e morreriam ali mais brasileiros, do que aqueles que tinham ido para os campos de guerra da Itália. No primeiro caso, entre os séculos XIX e XX, havia a omissão do Estado. Nordestinos doentes e famintos eram embarcados 12 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas para a Amazônia; no segundo, nordestinos e não nordestinos, também em situação de maior vunerabilidade, eram enviados pelo governo brasileiro para a área. Em ambos momentos, uma vez na Amazônia, eram abandonados nas mãos dos empresários da borracha. Outros autores, como Ferreira de Castro e Thomaz Davatz, tiveram menos sorte que Euclides da Cunha que não foi submetido à escravidão, mas escreveu sobre ela. Ferreira de Castro, em 1911, com 13 anos, emigrou de Portugal para o Brasil e foi levado de Belém para colher a borracha vegetal em uma fazenda onde permaneceu por quatro anos nas condições similares às descritas por Cunha. A experiência foi inspiradora para o romance de 1930, A Selva que também descreve minuciosamente o sistema do trabalho no seringal, o endividamento e a violência contra os que tentam escapar. Cinco destes personagens fugitivos são presos no tronco e, chicoteados com um peixe boi, sangram. Há um personagem, ex-escravo e amigo do patrão, que diante da escravidão presenciada, revoltado, incendeia o barracão, provocando a morte do dono do seringal. Antes dele, em meados do século XIX, o suíço Davatz, tinha escrito seu livro, que não era propriamente um romance, mas um memorial de sua própria história e a de outros colonos na fazenda de café em São Paulo, do abolicionista e liberal senador Vergueiro. Ali tinham sido submetidos não apenas à situação limite da imigração em terra estrangeira, mas à condição de escravidão. Euclides da Cunha não teve tempo para presenciar, a partir do final da década de 1960, o novo processo de deslocamento humano para a Amazônia. Milhares de pessoas pobres, especialmente nordestinas, se deslocaram nas condições mais desfavoráveis para a Amazônia e já não buscavam o caucho, mas uma terra para viver, ou um trabalho. O egoísmo sem freio e organizado, apontado no À Margem da História, tinha agora outro interesse. Era a pecuária que, financiada e incentivada pela ditadura, concentrava terra, aliciava e submetia os novos trabalhadores ao mecanismo do endividamente. De certa forma repetia o mesmo processo presenciado por Cunha e vivido por Castro e Davatz. E a famosa frase euclidiana podia ser reescrita e revivida: “[...] é o homem que trabalha para escravizar-se.” Passou o governo militar, a chamada Nova República foi proclamada em 1985, e estamos prestes a concluir a primeira década do novo século e milênio. Thomaz Davatz, Euclides da Cunha e Ferreira de Castro, abolicionistas em seus tempos, poderiam imaginar que a escravidão continuaria na ordem do dia tanto tempo depois? O fenômeno que se manifestou em diversas modalidades de produção – café e borracha vegetal – irrompe onde o controle 13 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) social não está suficientemente vigilante, como nos setores antigos e em novos como aqueles de pecuária, cana-de-açúcar, algodão, carvão vegetal e construção civil ou tecelagem. O livro que ora apresentamos - Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas – é, neste sentido, atual. Trata de um problema ainda não solucionado nas diversas latitudes do mundo e os debates sobre a escravidão ilegal e contemporânea, que atinge preferencialmente os imigrantes, ainda mal começaram. O conjunto de textos deste livro é o resultado de estudos realizados por pesquisadores de diversas universidades e apresentados no decorrer da I e II Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, respectivamente em 2007 e 2008, no campus Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As reuniões foram promovidas pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC). O GPTEC, constituído em 2003, faz parte do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da mesma Universidade e guarda um rico arquivo com depoimentos de trabalhadores, textos redigidos por agentes de pastoral, sindicalistas, procuradores e auditores fiscais do trabalho, reportagens, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o tema. É um local onde se conjuga pesquisa, ensino e extensão. Onde estão interligados o estudo e a paixão pela humanidade. A academia que, não sendo indiferente à sorte do mundo e das pessoas que o habitam, reflete e debate. Provoca pesquisas e encontros de pesquisadores. No texto, os leitores encontrarão além dos olhares diversificados de pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Brasília, Bahia, Mato Grosso e do México, o espaço no qual a sociedade civil e o Estado se manifestam. O material está disposto em cinco partes como pode ser observado a seguir. A Primeira Parte intitula-se Trabalho, identidades e resistência e apresenta resultados de pesquisas que tratam da dimensão existencial de realidades vividas por trabalhadores escravizados, patrões e homens que os aliciam, enquanto seres do mundo material e do mundo dos valores, dos sentimentos, memórias e desejos. O capítulo Representações de trabalhadores, ‘gatos’ e empregadores sobre o trabalho escravo, escrito pelas cientistas sociais Maria Antonieta Vieira e Regina Bruno apresenta e comenta as vivências do mando, da obediência e da resistência e os imaginários que as envolvem, e discute, também, as dimensões materiais que interagem com aquelas em um espaço de poder (material e simbólico) contido na relação de trabalho ilegal e desumana 14 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas discutida neste livro. O trabalho tem como base uma pesquisa encomendada pela Organização Internacional do Trabalho. Na pesquisa foram entrevistados trabalhadores e empreiteiros no decorrer de operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (GEFM) e, posteriormente, em seus escritórios ou residências, alguns proprietários de estabelecimentos presentes no “cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo” publicado em página do Ministério do Trabalho e Emprego. As informações recolhidas na pesquisa de campo foram sistematizadas no relatório Perfil dos principais atores envolvidos no Trabalho Escravo Rural, de 2007. No Estudo de depoimentos de trabalhadores rurais escravizados por dívida – 2007. Pará, Brasil, Adonia Antunes Prado, também cientista social, analisa e comenta depoimentos prestados por trabalhadores evadidos do trabalho cativo em fazendas do estado do Pará a agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em diversos municípios, e a agentes do Centro de Defesa da Vida e Direitos Humanos de Açailândia, no Maranhão, dentre outros sujeitos sociais. No processo de análise das fontes primárias são discutidos aspectos relativos à presença de crianças no trabalho forçado, tempo de permanência dos trabalhadores nas fazendas, violência, atividade exercida pelo trabalhador, redes de aliciamento, saúde e doença, endividamento, sentimento de humilhação etc. Ricardo Rezende Figueira, Adriana da Silva Freitas, Andrea Kazuko Murakami e Vera Lúcia Cavalieri, respectivamente, antropólogo, assistentes sociais e jornalista, elaboram uma reflexão sobre as múltiplas relações – parentesco, amizade, dominação, coerção - estabelecidas entre os atores presentes na escravidão contemporânea no Pará a partir de 113 relatórios de fiscalização do GEFM. Entre os imóveis fiscalizados, selecionaram um e elaboraram um estudo de caso que auxilia a compreensão sobre o conjunto e, assim, produzem o capítulo A escravidão contemporânea: relações existentes e estudo de caso. O texto de Alessandra Gomes Mendes, socióloga, intitulado Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: a denúncia como um dos caminhos na resistência dos trabalhadores à dominação discute situações ocorridas nas regiões Sul e Sudoeste no período de 1980-2000 e apresenta questões a respeito da importância da denúncia como estratégia de combate ao trabalho escravo e de busca da garantia de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a autora traz à discussão as ações que o estado e a sociedade civil têm realizado no sentido da “construção e afirmação da resistência dos trabalhadores escravizados”. 15 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) O tema da Segunda Parte é Poder Público e Sociedade Civil e trata de alguns aspectos das ações dessas duas esferas sociais no combate ao trabalho escravo no campo brasileiro, em especial no estado do Pará. São olhares a partir do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), da CPT e da universidade, atores que são, o primeiro e o segundo, sujeitos de longa data envolvidos com o tema e o último, podendo ser percebido como personagem emergente e a cada dia mais comprometido. Benedito Lima, autor do estudo intitulado Modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo usando lógica Fuzzi, é auditor fiscal do MTE e desenvolveu seu estudo propondo a definição e utilização de variáveis consideradas úteis e adequadas à caracterização e identificação do trabalho análogo ao de escravo, depois de validar em campo o modelo de auxílio de decisão e de identificação em questão. O sistema proposto, segundo o autor, “integra informações e verifica se o que foi observado pode ser categorizado como trabalho análogo ao de escravo”. Em outras palavras, Benedito Lima propõe a utilização de um instrumento que possibilite a exclusão ou diminuição da interferência de elementos subjetivos na identificação do trabalho escravo por ocasião das fiscalizações governamentais às empresas denunciadas. Mais uma contribuição originária do campo acadêmico é o trabalho apresentado por Jaqueline Jesus, psicóloga que utiliza as ferramentas da Teoria das Representações Sociais a fim de entender A cabeça do libertador. A autora realizou sua pesquisa de campo junto a funcionários públicos, agentes de instituições internacionais e de organizações não governamentais envolvidos com processos de libertação de trabalhadores escravizados e investigou suas percepções quanto ao seu trabalho e às suas visões de prazer e sofrimento. Antônio Alves de Almeida, historiador, recupera a trajetória da CPT na luta contra o trabalho escravo contemporâneo no Brasil e, levando em conta características históricas que marcam esse processo, discute os limites e potencialidades das ações da CPT na erradicação do problema. O título deste capítulo é Trabalho escravo: a dignidade dilacerada pelo capital. Os dois últimos textos são depoimentos, coroando a Segunda Parte. O primeiro deles foi prestado por Marcelo Gonçalves Campos, auditor fiscal do trabalho e assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE. Seu discurso é contundente e ele, manifesta-se como funcionário público e agente do Estado no combate a ações que afrontam as leis penais e trabalhistas do país, da forma comprometida como o fazem aqueles que transformaram 16 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas seu labor profissional em militância ativa na luta pelo respeito às leis e à dignidade humana. O segundo depoimento é produzido por alguém que combate o trabalho escravo no Brasil a partir da sociedade civil. José Batista Afonso, advogado e agente da CPT em Marabá, no estado paraense. O autor faz um diagnóstico do que considera o problema da terra no país, apresenta números sobre a concentração fundiária, a violência e o trabalho escravo, a correlação de forças, a criminalização do movimento social, denuncia o modelo econômico definido pelo poder executivo e é duro em relação ao papel do poder judiciário. A Terceira Parte, intitulada Perspectiva de Trabalho Escravo e Direito contempla a atuação dos agentes do Direito brasileiro e o processo de produção de normas, acordos e tratados internacionais destinados ao combate do tráfico de pessoas e do trabalho escravo ilegal, apresentando e problematizando diversos momentos em que a luta pela dignidade da condição humana se transformou em pauta de discussão dentro e fora do Brasil, tendo daí nascido agendas nacionais e internacionais que contribuem para a extensão de coberturas legais e proteção aos sujeitos vitimados. Três artigos compõem esta seção. O de Neide M. C. Cardoso de Oliveira, procuradora da República, intitulado Atuação do Ministério Público Federal no combate ao crime de trabalho escravo no meio rural e políticas públicas para erradicar a escravidão contemporânea: breve apresentação, que chama atenção para as dificuldades existentes para a sua erradicação e chama atenção de um aspecto sumamente importante presente a este campo de debate, qual seja: não importa se estatisticamente o número de pessoas escravizadas hoje no Brasil não é significativo. Onde esse exorbita em significações é no campo da violação aos mais elementares direitos humanos em um pais que se encontra entre as maiores economias do mundo, é no escândalo que representa sua existência em empresas tecnicamente modernas, muitas de propriedade de juízes, parlamentares ou outros representantes de classes dirigentes, detentores de saber e poder no Brasil. O texto de Nanci Valadares, cientista política, intitulado Tratados e Convenções Internacionais e seus reflexos (e inconsistências) no tratamento da escravidão pós-abolição arrola e discute um conjunto de determinações que, na história do Ocidente, tentaram encerrar séculos de escravidão mercantil perpetrada por países europeus, processo esse coroado pela presença de dois importantes dispositivos. São eles a Convenção de 1926 e o Protocolo de Palermo, de 2000. A autora estende seus comentários ao Brasil contemporâneo e à atuação do Estado e da sociedade civil no combate ao trabalho escravo. 17 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) O terceiro e último capítulo desta parte intitula-se Tráfico de pessoas: cenário, atores e crime. Em busca do respeito à dignidade humana e foi escrito por Waldimeiry Correa, brasileira que desenvolve seus estudos na Universidade de Sevilha. O trabalho escravo contemporâneo é aqui apresentado no contexto mais amplo das formas abusivas de desrespeito à pessoa e a autora analisa legislação, tratados e convênios que, internacionalmente, no século XX, buscaram estabelecer compromissos visando à extinção de tais práticas. Tais são os casos da Convenção de 1926 e do Protocolo de Palermo, de 2002, estudados no capítulo anterior, como, também, do Convênio para a Repressão de Tráfico de Pessoas e da repressão da Prostituição Alheia, de 1949 ou da Convenção Suplementaria sobre a Abolição da Escravidão, de 1956, dentre outros instrumentos. A Quarta Parte do livro está dedicada a estudos sobre Migração e trabalho. Aí se encontram estudos que tratam do trabalho escravo por dívida no Brasil de nossos dias, relacionando-o ao fenômeno das migrações, aos estranhamentos que esta produz, sua funcionalidade enquanto elemento facilitador de ilegalidades e afronta aos direitos dos trabalhadores, dentre outros aspectos. O primeiro artigo deste bloco é da autoria de Francisco Alves, economista que tem estudado a força de trabalho humana – majoritariamente composta por trabalhadores migrantes - em plantações de cana-de-açúcar, sobretudo no estado de São Paulo e se intitula Mecanização do corte de cana crua e políticas públicas compensatórias: indo direto ao ponto. O autor tem como ponto chave para a discussão que faz os inúmeros casos documentados de abusos contra os trabalhadores que colocam os usineiros frente à necessidade de resolver a seguinte equação: melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores ou não exportarem álcool. Para escapar deste dilema os usineiros pretendem adotar a mecanização completa do corte, passando ao largo das grandes questões que se colocam: como deverá se dar a expansão do Complexo Agroindustrial Canavieiro de forma a preservar e melhorar as condições de vida dos trabalhadores e o meio ambiente? A sociedade deve decidir se aceita esta forma de expansão predatória ou se impõe condições para a expansão da “canavicultura”? Horácio Antunes de Sant´Ana Júnior, sociólogo, é autor do capítulo intitulado Acre, desenvolvimento e reservas extrativistas. Seu foco está centrado na análise em um modelo de unidade de Conservação, no caso as Reservas Extrativistas que “[…] surgiram com o movimento sócio-ambiental originado no Acre, como forma de enfrentamento ao modelo de desenvolvimento con18 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas cebido pelos governos ditatoriais implantados no Brasil a partir de 1964.” O autor discute o tema da modernização na região amazônica e observa que esta, por mais que tenha promovido liberdade e autonomia tem difundido, também, instrumentos de coerção, de destruição e apropriação de bens naturais, de ampliação e criação de novas formas de exploração do trabalho O historiador Vitale Joanoni Neto, autor de vários estudos sobre o fenômeno das migrações e o trabalho escravo no estado do Mato Grosso discute, a partir de referências teóricas, de dados qualificados de organismos nacionais e internacionais e de pesquisa de campo amplamente documentada, a relação entre os fenômenos da pobreza, da migração e da escravização de populações fragilizadas pelos dois fenômenos anteriores. Seu estudo, intitulado Notas sobre o mundo do trabalho rural no estado do Mato Grosso em fins da primeira década do século XXI apresenta ao leitor resultados visíveis da ação do agrobusiness em áreas de fronteira no estado do Mato Grosso, onde à acumulação e concentração de riquezas tem correspondido a exclusão social crescente. A última comunicação desta Parte é o depoimento de Mitiko Une, geógrafa, cujo pai migrou do Japão para o Brasil. Tendo assistido a graves situações de trabalho escravo, ele próprio foi vítima do crime. O pai de Mitiko, o senhor Takeki Yanaga, chegou a Santos em1931, tendo ido, imediatamente trabalhar em uma fazenda de café, em Ourinhos. Ali, conheceu o barracão, a perda da liberdade e o profundo estranhamento causado pelas diferenças culturais e climáticas em relação ao seu país. A última Parte deste livro intitula-se Economia e relações de trabalho. Nos três capítulos que compõem este bloco, os autores discutem a temática central buscando perceber de perto o trabalho escravo contemporâneo enquanto fator produtivo ativo e adequado à economia moderna; suas relações e implicações no que se refere ao atual estado de globalização da economia e alguns aspectos que se apresentam nas relações entre capital e trabalho e entre os fatores produtivos; como Estado e sociedade civil se envolvem nessa trama etc. No Brasil, como no México, as economias globalizadas fazem conviver harmoniosamente em suas entranhas alta tecnologia e relações de trabalho aparentemente anacrônicas. Caberia perguntar: trata-se de uma contradição? Neste caso, faz sentido a suposta dicotomia entre tradicional e moderno ou serão estes os dois lados de uma mesma moeda? O primeiro dos três capítulos foi escrito pelo professor Boris MarañonPimentel, peruano radicado na cidade do México lecionando na Universidade Nacional Autónoma daquele país. O título do trabalho é Nuevos estándares 19 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) internacionales, flexibilidad laboral y elementos de trabajo esclavo em la horticultura de exportación em México e nele encontram-se formulações que o autor busca desenvolver a respeito do que considera o caráter cada vez mais complexo que as relações de trabalho assumem na atual conjuntura mundial – globalização, estados mínimos, flexibilização das legislações do trabalho etc. – e suas consequências para a força de trabalho, sobretudo para os trabalhadores na agricultura de exportação mexicana. Leonardo Sakamoto, doutor em Ciência Política, escreveu Os acionistas da casa-grande: a reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporâneo. O autor apresenta e comenta as formas como o capitalismo contemporâneo se apropria de formas de exploração do trabalho aparentemente exteriores a este modo de produção em busca da ampliação de seus lucros. A busca por produtividade e lucratividade barata leva empresários a fazerem com que “o livre jogo das forças do mercado” produza resultados mais favoráveis àqueles que burlam a ética republicana, levando a uma ampla gama de produtos a marca do suor e do sangue dos trabalhadores migrantes das regiões mais pobres do país. O último capítulo do livro intitula-se Trabalho escravo – uma realidade na cadeia produtiva de corporações com a chamada “responsabilidade social”, foi escrito por Marcela Soares Silva, assistente social e nele a autora discute como atitude do capital, na presente conjuntura caracterizada pelo neoliberalismo, transfere ao Terceiro Setor da economia “as sequelas da questão social” por meio das ações de Responsabilidade Social em empresas onde foi encontrado trabalho escravo por dívida. Referências CASTRO, Ferreira de. A Selva. 10. ed. Lisboa: Guimarães & Cia., 1945. CUNHA, Euclides. À margem da história. São Paulo: Martins Claret, 2006. DAVATZ, Thomaz. Memórias de um colono no Brasil: 1850. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. 20 ABERTURA Representações de trabalhadores, gatos, e empregadores sobre o trabalho escravo José Damião de Lima Trindade Há algumas décadas, o romance infanto-juvenil que narra a história de Poliana desfrutava de certa popularidade, inclusive por sua versão cinematográfica. Essa personagem era uma jovem que, malgrado uma sucessão de infortúnios na vida, amiúde se dedicava a uma brincadeira que chamava de “jogo do contente”, pela qual tentava encontrar em tudo o seu “lado bom” e, assim, “tornava” o mundo melhor, descobrindo sempre razões para se alegrar até em situações muito francamente insatisfatórias. Essa novela, de otimismo ingênuo e risonho, embutia, na verdade, uma mensagem conformista. Ela vem-me à memória porque, ao fazermos um balanço que se pretenda realista da situação atual dos direitos humanos, devemos, logo de partida, nos desvencilhar da “síndrome de Poliana”. Nossa postura ou será exigente e crítica, ou será inútil. O terreno do qual devemos partir é a própria realidade. Olhando-a, temos a obrigação de nos posicionar face ao que de fato vemos. Se quisermos transformar a realidade, será pela arma da crítica, nunca pela “paciência” complacente, nem pelo “contentamento” com avanços já obtidos. Nesse sentido, cabe, antes de tudo, identificar qual é a tendência principal de nosso tempo em relação à temática dos direitos humanos, quero dizer, em relação à situação em que objetivamente se encontram esses direitos. Não podemos fugir da constatação de que vivemos numa quadra– no Brasil e no Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) planeta – em que os direitos humanos, em quase todas as suas dimensões, estão sob fogo. Houve um período, em meados do século XX, em que se dava o contrário. Vivíamos, então, uma conjuntura que favorecia a luta pelos direitos humanos, e uso com ênfase a palavra luta porque, como sabemos, a conquista desses direitos foi e segue sendo fruto da luta social, uma luta que implica em contrariar interesses, frequentemente interesses poderosos. Mas, em meados do século XX, tínhamos uma situação internacional em que tais lutas eram travadas em terreno propício. Que situação era aquela? O breve estado de bem-estar No pós-Segunda Guerra Mundial havia se configurado uma correlação mundial entre as forças políticas caracterizada por fatores de ordem muito progressista. Primeiro, a consolidação da União Soviética como potência econômica e militar, após derrotar o nazismo. Basta imaginarmos o cenário de tragédia e pesadelo se houvesse ocorrido o contrário, se o nazismo houvesse derrotado a União Soviética e vencido a Segunda Guerra Mundial. Segundo, em consequência dessa vitória, se conformara na Europa Central e Oriental o chamado “campo” socialista. Logo esse “campo” seria fortalecido pelas vitórias das revoluções chinesa (1949) e cubana (1959), além da constituição de um amplo leque de nações “não-alinhadas”. Malgrado indícios já então detectáveis de degeneração institucional nos países do “socialismo real”, que só se agravariam nas décadas subsequentes, e malgrado divergências políticas entre eles mesmos, o fato era que perto de um terço da humanidade trilhava um caminho de desenvolvimento econômico-social que, de alguma maneira, contrariava a lógica ocidental de livre-mercado. Terceiro, alastravam-se como incêndio, pela África e Ásia, as insurreições nacionais contra o colonialismo europeu. Em quarto lugar, proliferavam ao redor do planeta partidos centrados, em graus variados, na defesa de interesses dos trabalhadores: partidos comunistas, socialistas, trabalhistas, social-democratas ou nacionalistas de esquerda. Em quinto lugar, correlatamente, também o movimento operário em escala mundial se organizava em sindicatos, fosse nos próprios EUA, em toda a Europa, no Japão, até na América Latina. Esse conjunto de fatores de pressão favorecia a extensão de direitos econômicos, sociais e culturais aos trabalhadores, ao menos nos países centrais (o Estado de Bem-Estar), a autodeterminação dos povos e a própria defesa dos direitos individuais, face à consciência que se criava mundialmente de repúdio às barbaridades cometidas pelo nazi-fascismo durante a guerra. E digo barbaridades do nazi-fascismo porque os vencedores da Segunda Guer24 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas ra Mundial só trataram das violações cometidas pelos perdedores. Os crimes contra a humanidade praticados pelos vencedores não foram a julgamento: o bombardeio-massacre de Dresden, até militarmente sem sentido, ficou impune, assim como ficaram impunes os dois maiores genocídios instantâneos de toda a história da humanidade, perpetrados em agosto de 1945 em Hiroshima e Nagasaki, contra um Japão já derrotado. Os vencedores da guerra julgaram apenas os crimes contra os direitos humanos cometidos pelos perdedores – mas mesmo isso foi um avanço. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada pela Organização das Nações Unidas – ONU, em dezembro de 1948, foi resultado daquela correlação mundial de forças. Sem a pressão dos países do bloco soviético e sem a ascensão operária que se alastrava pelo mundo, seria inimaginável a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais naquele documento, assim como a inclusão do direito de autodeterminação dos povos sem as lutas de libertação nacional, então em curso. Crise dos direitos sociais Mas, aquela correlação mundial de forças se inverteu no final do século XX, a começar pelo impacto do formidável incremento da produtividade do trabalho, decorrente da fortíssima injeção de fatores de ciência e tecnologia na indústria, na agricultura e no setor de serviços. Entre as décadas de 1970 e 1980, a produtividade do trabalho aumentou muito rapidamente, tornando agudas tanto a concorrência econômica mundial, como a expansão do desemprego no planeta. Surgia, já na década de 1980, uma categoria historicamente nova – a do desemprego permanente, isto é, estrutural ao capitalismo. Na antiga categoria do “exército industrial de reserva”, estudada por Karl Marx, quando a economia capitalista entrava em processo de expansão, o desemprego recuava (embora não se extinguisse), e quando a economia mergulhava em crise, o desemprego se alastrava. Essa “reserva” humana de desempregados, que cresce ou diminui ao sabor das crises cíclicas do capitalismo, desempenhava/desempenha, objetivamente, a função social de rebaixar o preço da força de trabalho. Durante as fases de expansão econômica, evita que os salários dos trabalhadores se elevem além de certo patamar e, inversamente, rebaixa de modo drástico esses salários nos momentos de recessão/depressão. Num e noutros casos, a existência de uma massa desempregada preserva a taxa de lucros dos empresários. A partir da década de 1980, a esse emprego-desemprego cíclico, que não deixa de existir e de operar, sobrepõe-se o desemprego estrutural: o capita25 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) lismo, valendo-se da tecnologia mais sofisticada e recente, passa a descartar de modo permanente uma quantidade imensa de trabalhadores ao redor do planeta, eliminando atividades e profissões, substituídas para sempre mediante a informatização/automação/robotização de ramos econômicos inteiros. Os chamados programas de “re-qualificação” de mão de obra só tem sido capazes de reintegrar à economia uma parcela insignificante desses trabalhadores descartados, pois os novos meios de produção dinamizados pela ciência e pela tecnologia conseguem atingir as metas produtivas anteriores, e até superá-las, empregando quantidade crescentemente menor de trabalhadores. A proposta muito óbvia e racional de redução progressiva e universal da jornada de trabalho, na mesma proporção das elevações da produtividade e com manutenção dos níveis salariais, certamente estancaria o crescimento do desemprego. Mas, essa solução é inaplicável num mercado tangido por concorrência feroz e, ademais, contraria a própria lógica da busca do lucro, único motor do capitalismo. Só houve reduções duradouras da jornada, com manutenção dos salários, em alguns momentos do século XX marcados por forte mobilização operária. Numa conjuntura de fraqueza relativa dos trabalhadores, como esta em que, salvo exceções localizadas e fugazes, o planeta ingressou desde o final da década de 1970, a redução de jornada só ocorre no eventual interesse patronal de reduzir a produção em momentos de crise – e, então, é invariavelmente acompanhada da redução dos salários, à qual os trabalhadores acabam se submetendo para postergar o pior, o desemprego. Em outras palavras: se, nos momentos de euforia econômica, os superlucros são apropriados privadamente pelos capitalistas, nos momentos de crise os prejuízos são logo “socializados”, seja pela expansão do desemprego imediato e bruto, seja pelo socorro financeiro que os Estados, sacando recursos públicos, colocam sem pestanejar à disposição dos empresários “em dificuldades”. Assim, nesta nova fase em que ingressou, sem retorno possível, o capitalismo se converteu em máquina feroz de expulsão massiva de seres humanos do mercado de trabalho. Entenda-se: expulsão da sociedade e da própria vida autônoma, pois estar fora do mercado equivale a não existir, a perder toda autonomia pessoal, a ficar na dependência da caridade privada ou do assistencialismo público, se e quando caridade e/ou assistencialismo comparecerem. Essa tendência, desde sempre intrínseca ao capitalismo devido à apropriação privada da ciência e da tecnologia, ganhou fôlego sem mais qualquer 26 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas limitação política a partir do desmoronamento da União Soviética e dos países do chamado “campo” socialista da Europa Central e Oriental. O fim da bipolaridade política, econômica e militar permitiu que aquela tendência da economia capitalista, que vinha se firmando desde as décadas de 1970 e 1980, triunfasse agressivamente a partir da década de 1990. Desde então, por assim dizer, as classes dominantes do planeta vêm respirando aliviadas, após 80 anos de concessões parciais aos trabalhadores, período durante o qual haviam sido forçadas a entregar muitos anéis para não perder os dedos, isto é, para conter os riscos de revolução social. O caminho para manter-se à tona na intensificada competição mundial intercapitalista passa agora por “cortar custos”, isto é, cortar despesas com direitos sociais, que entram em recuo por toda parte. Eis o brado empresarial de vitória: “Chegou a hora de recuperarmos o que havíamos cedido!”. Portanto, sem mais qualquer ilusão quanto à efetividade de um direito ao trabalho, e com os demais direitos trabalhistas em recuo internacional, o Direito do Trabalho tornou-se uma cidadela sob cerco. Para o capital manterse à tona na concorrência, vale até a restauração de relações de trabalho análogas ao trabalho escravo. Retorno do trabalho escravo Aliás, esse tema – o contemporâneo retorno do trabalho escravo – dá bem a medida do grau de hipocrisia e degradação humana inerente às relações sociais capitalistas. A partir do século XVI, para suprir a carência de força de trabalho no recém-conquistado Novo Mundo, o então nascente capitalismo europeu não hesitou em reduzir à escravidão os índios, num primeiro momento, e, logo depois, também os africanos. Todos os discursos “legitimadores” daquela prática infamante foram logo providenciados. No pensamento religioso, cogitou-se muito depressa que os indígenas e os africanos não seriam propriamente “humanos”, que seriam desprovidos de alma, ao menos de alma “igual” à dos europeus – portanto, sua redução à condição de “bens de comércio”, submetidos a trabalho forçado e a castigos corporais, não configuraria “pecado”. Mesmo após a Igreja Católica “reconhecer” a condição humana aos indígenas das Américas, sua captura e redução ao cativeiro não foi jamais detida, pois essa prática já havia se incorporado à conduta corrente dos colonizadores. Quanto aos africanos, a história é muito conhecida: durante quase quatrocentos anos, esses “animais vocais”, não-humanos e sem alma divina, foram vítimas de captura e sequestro na África, transportados pelo oceano sob 27 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ferros, amontoados nos porões imundos de navios negreiros para, ao final, serem vendidos como “mercadorias semoventes” nos portos das Américas. Até o século XIX, escravagistas cristãos das Américas deslocavam citações bíblicas em seu favor, como as do Livro de Gênesis, capítulo 9 (versículos 25 a 27)1 e de São Paulo, na sua Epístola aos Romanos. Esse comércio de carne humana, gerador da diáspora negra que se abateu sobre mais de 12 milhões de vítimas, foi um dos mais importantes fatores a propiciar a chamada “acumulação primitiva” de capital que, no final do século XVIII, conduziria ao florescimento irresistível da Revolução Industrial e do capitalismo industrial moderno. Ao longo do século XIX, as burguesias das nações industrializadas se deram conta de que o trabalho assalariado terminava saindo “mais barato” do que a manutenção de escravos até o final de suas vidas e que, ademais, a generalização do trabalho assalariado convinha à expansão de mercados consumidores nas colônias e nos países do Novo Mundo. Só então, as canhoneiras de Sua Majestade britânica foram colocadas a serviço de dar por encerrado o “ignominioso” (como passou a ser chamado) comércio de seres humanos. O Brasil deteve a posição de último país do planeta a abolir legalmente a escravatura, o que certamente nos informa muito a respeito da mentalidade de nossas classes dominantes. Mas a questão escrava está longe de poder ser “dada por encerrada” neste início século XXI. Nenhuma ilusão a esse respeito. Superado o escravismo colonial ao final do século XIX, o trabalho escravo ressurgiu, sob formas novas e igualmente infames, ao final do século XX – justamente no momento em que as lutas operárias perdiam vigor ao redor do planeta. Mais uma vez, o capitalismo triunfante demonstra que consegue, sem qualquer aguilhão moral, combinar relações de trabalho “modernas” (assalariadas) com relações “atrasadas” (servis ou análogas à da escravidão). Trata-se do regurgitamento contemporâneo e feroz da velha lei capitalista do desenvolvimento desigual e combinado. Seja mediante a retomada do sequestro antigo e direto (África), seja pelo confinamento de trabalhadores migrantes reduzidos ao trabalho forçado por “dívidas” impagáveis (Amazônia, Ásia), seja pela submissão de crianças e mulheres extremamente pobres (zonas rurais da América Latina e da Ásia), seja, ainda, pela submissão “voluntária” de estrangeiros em situação irregu- 1 Gênesis, 9: Versículo 25: E disse: maldito seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos. Versículo 26: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e seja-lhe Canaã por servo. Versículo 27: Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem, e seja-lhe Canaã por servo. 28 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas lar (grandes cidades da América Latina, da Ásia, até da Europa ocidental), relações de trabalho abertamente escravas ou a elas análogas voltam a ser adotadas em várias regiões, não importa quantos solenes tratados internacionais hajam proibido o trabalho não-livre. Nas franjas tecnológicas do capitalismo, onde quer que o trabalho braçal não-qualificado ainda possa mostrar-se “atraente” a empresários, diversas modalidades “invisíveis” de escravidão retomam fôlego, nutrindo-se do desemprego massivo, da desvalorização da força de trabalho e da omissão/conivência hipócrita das elites economicamente dominantes. Esse movimento socialmente perverso, claro, só se agrava nos momentos de crise econômica, que não o inventa, mas o expande. A crise dos direitos econômicos, sociais e culturais, que se expressa em várias modalidades, já estava perfeitamente identificada ao término do século XX. E, por efeito reflexo, os direitos individuais-civis também acabavam sendo atingidos, pois não constitui novidade que aos desempregados, ou aos trabalhadores com salários insuficientes para atender as necessidades fundamentais, também os direitos civis se reduzem a frase de efeito – para não falar dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras submetidos àquelas novas formas de escravidão. Mas, quanto a isto – o ataque aos direitos individuais – a entrada do século XXI nos reservaria surpresas sombrias. Crise dos direitos individuais Sob o mote/pretexto da defesa nacional a qualquer custo, as potências imperiais passaram a editar leis e a adotar práticas de violação a antigos direitos individuais que se imaginavam já “consagrados”. Qual é o significado do campo de concentração de Guantánamo, dos sinistros calabouços de Abu Ghraib e de outros centros de tortura no Iraque e no Afeganistão, dos centros secretos de “interrogatório” e de eliminação de prisioneiros sequestrados, instalados pelos EUA em “território estrangeiro” sob complacência dos governos do Egito, do Paquistão, até de países europeus? E os inacessíveis navios-prisões que os EUA mantêm fundeados em águas internacionais? As ONGs de sempre se cansaram de denunciar, documentar e apresentar testemunhas dessas contemporâneas fábricas de horrores. A lei norte-americana denominada Patriot Act, inacreditável recuo histórico em relação à garantia dos direitos individuais, teve reproduções aproximadas em leis adotadas na Inglaterra, na Itália, na França e na Alemanha. Mas a ONU e outras instituições planetárias foram, diga-se com todas as letras, complacentes enquanto tudo acontecia. Salvo lamúrias inconvincen29 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) tes, nada fizeram para impedir que se restaurassem práticas francamente nazistas. Pesou, isto sim, um silêncio hipócrita e conivente face ao sequestro de suspeitos, à tortura sistemática, humilhação, privação do direito de defesa e assassinato de seres humanos de pele mais escura e idioma não-europeu. Dando, talvez, por quase completado o “serviço sujo”, as potências imperiais já cogitam da possível “desativação” desses centros. Mas o que conta é isto: mantiveram/mantêm/manterão tais locais de barbarização de seres humanos durante o tempo que considerarem “necessário”. O recado que nos enviam é este: os direitos à vida, à integridade física e psicológica, o direito a receber uma acusação formal num processo legal que assegure o direito de defesa e o direito de ser assistido a todo tempo por um advogado, a garantia de não ser preso sem os procedimentos legais, e de não permanecer preso além da pena, não são direitos universais, não importando quantos tratados internacionais de direitos humanos tenham sido escritos, assinados e festejados com brindes de champanhe em taças de cristal. Eis, portanto, o cenário em que nos movemos neste momento: à crise dos direitos econômicos, sociais e culturais aberta ao final do século XX, sobrepôs-se, neste início do século XXI, uma crise dos direitos individuais. O único direito individual que segue gozando de todas as garantias é o direito de propriedade. Falamos, é claro, de realidade, não de declarações solenes, nem compêndios de leis. O direito e os direitos humanos E aí chegamos ao fulcro da questão que talvez melhor expresse a esquizofrenia jurídica do nosso tempo: a função efetivamente desempenhada pelo direito positivo. Quando se trata de manter o status econômico-social, a efetividade do direito é imediata e ágil, essa função conservadora entra em cena e opera de modo a não deixar dúvida – até mesmo, se necessário, contra o direito anterior. Ora, dirão vocês, mas o direito positivo também está, em quase todos os países, perpassado por normas avançadas, progressistas, de defesa dos direitos humanos. Eu respondo: é esta a esquizofrenia do direito. Por um lado, nunca tivemos, tanto no direito internacional quanto no direito interno, um conjunto tão amplo e minucioso de normas de defesa de direitos humanos. Mas, a vida nos ensina que essas normas não vão à prática, ou o vão condicionalmente – se, quando e enquanto convém aos interesses dos que realmente detêm os poderes no mundo. Esse traço ilusório do direito pode ser ilustrado com a seguinte fábula: se um dia um disco voador desviar-se de sua trajetória e tiver de fazer um 30 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas pouso forçado na Terra para reparos, e estacionar em alguma faculdade de direito ou biblioteca jurídica, enquanto os marcianos-mecânicos trabalharem no motor, os demais tripulantes, muito curiosos, poderiam passar a noite se dedicando à leitura de documentos jurídicos incríveis, inclusive de uma certa Constituição Brasileira de 1988. Suponho que se deterão especialmente nos longos e belos artigos que arrolam direitos e garantias. Ao retornar a Marte, os marcianinhos relatarão maravilhados aos seus superiores hierárquicos que o paraíso realmente existe, foi encontrado – e fica no Brasil! Ou seja, o direito, a par de sua função precipuamente conservadora, cumpre também uma função ideológica de mistificação da realidade, de retrato falso, ainda mais numa conjuntura como a atual, em que o capital expurga do seu discurso o caráter universal dos direitos humanos, ou o preserva apenas como peça decorativa da diplomacia internacional – ou, agora sim, para a defesa incondicional, e mesmo anti-social, do sacrossanto direito de propriedade. De todos os direitos humanos, esse é o único, repito, que atualmente não corre riscos, é o único que segue completamente bem defendido, e defendido inclusive contra a sociedade. Não devemos nutrir ilusões. Ao lado da Constituição democrática e cidadã de 1988, segue em vigor, funcionando como um lembrete a todos nós, a própria lei de segurança nacional dos tempos da ditadura militar. Não se lembraram de revogar esse, como se diz, “entulho autoritário”. Assim como ainda não houve vontade política para tornar públicos os arquivos secretos da ditadura, ou para responsabilizar os assassinos e torturadores daquele tempo – o que funciona mais ou menos como uma carta branca para os assassinos e torturadores dos tempos atuais. Aliás, um recente estudo desenvolvido pela cientista política norteamericana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota, indicou que, nos países em que os crimes das ditaduras – tortura, homicídio e “desaparecimento” – foram investigados e punidos, o índice atual de violência policial é sensivelmente inferior ao dos países que não investigaram nem puniram aqueles criminosos. Recentemente, em 2008, o relator especial da ONU sobre execuções sumárias visitou nosso país e, em seu relatório, afirmou enfaticamente: no Brasil, a polícia tem mãos livres para matar. A esse respeito, vivi uma experiência especialmente chocante no ano 2000, quando o relator especial da ONU para tortura também visitou o nosso país. Às vésperas de sua visita, foram organizadas, nas cidades pelas quais passaria, comissões de entidades da sociedade civil com o encargo 31 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de sugerir ao relator instituições locais a serem inspecionadas. Eu integrei a comissão de São Paulo. A visita, como todas as inspeções da ONU, teve caráter oficial, fora autorizada pelo governo federal e anunciada com semanas de antecedência. Era público que, em tais dias, o relator estaria em tais cidades. Portanto, houve tempo suficiente para que as autoridades policiais e carcerárias pudessem, digamos, “preparar” as repartições que eram alvos mais frequentes de denúncias. Achávamos, por isso, que a eficácia das visitas poderia estar em grande medida comprometida. A comissão paulista acompanhou o relator da ONU em inspeções em seis ou oito instituições públicas paulistas. E, para nossa surpresa, para nosso estarrecimento, mesmo em se tratando de uma visita previamente anunciada e divulgada pelos meios de comunicação, o relator constatou atrocidades chocantes em quase todas as instituições que visitou – desde o açoitamento de crianças com chicotes de arame numa unidade da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor - FEBEM (atual Fundação CASA), até várias modalidades de tortura como “método” de interrogatório ou medida punitiva em unidades policiais e prisionais. O impensável aconteceu até na visita à Vara da Infância e Juventude da cidade de São Paulo. O relator da ONU observou que dez ou quinze adolescentes, com os uniformes de presidiários-mirins da FEBEM, sob vigilância de funcionários daquela instituição, haviam sido trazidos para aguardar o momento de serem ouvidos pelo juiz em audiências de seus processos de internamento. Então (e sem que isto houvesse sido programado), o relator subitamente dirigiu-se àqueles adolescentes e, por meio de um tradutor, identificou-se e começou a indagá-los sobre eventuais maus-tratos. Tudo foi muito rápido, não houve tempo para a intervenção dos funcionários. Em poucos segundos, deu-se a seguinte cena: vários garotos levantaram as camisas e exibiram, nas costas e no peito, marcas de queimadura por cigarro e outros sinais de castigos físicos. A violação dos direitos humanos é tão escancarada em nosso país, tão generalizada, que, mesmo durante uma visita publicamente anunciada, não se torna possível ocultar tudo – nem mesmo no interior de um órgão do Poder Judiciário! Tudo, em todos os lugares visitados, foi gravado por um cinegrafista da BBC que acompanhava o relator. Esse documentário foi depois exibido na Europa e nos EUA, e o relatório oficial encaminhado à ONU ainda envergonha nosso país – mesmo porque, passados quase dez anos, persiste esse quadro de violação sistemática de direitos dos pobres, dos sem riqueza e sem poder, dos “invisíveis”, que não existem para a grande mídia senão quando são abatidos. 32 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Tanto no plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, como no plano dos direitos individuais, persistem violações, e não se trata de situações excepcionais. Temos de colocar, sem dúvida nenhuma, a mão na sujeira. Se não abrirmos os infames arquivos da ditadura militar, se é que resta alguma coisa de relevante que ainda não tenha sido “expurgada”, se é que não foi tudo convenientemente queimado, enquanto não abrirmos o que resta desses arquivos secretos, enquanto o Estado brasileiro for cúmplice desse ocultamento da verdade, não teremos grande esperança de disciplinar a polícia atual. Enquanto os assassinos e torturadores da ditadura militar seguirem impunes, isto certamente seguirá funcionando como passaporte de impunidade para a violência atual da nossa polícia. No momento em que os torturadores, estupradores e assassinos da ditadura militar, com ou sem farda, tiverem que responder por seus crimes, os homicidas e torturadores de hoje pensarão duas vezes antes de torturar e matar. Há questões sobre as quais não é possível conciliar – esta é uma delas. Ou seguimos os exemplos dos países vizinhos do Cone Sul, considerando juridicamente os assassinatos e torturas da ditadura como crimes contra a humanidade – portanto, imprescritíveis e inanistiáveis – ou fechemos os olhos, na hipócrita postura de “esquecimento” e, então, não nos queixemos mais da polícia violenta e violadora que temos em quase todo o país. Polícia essa, cujas duas principais ferramentas de investigação policial são o pau de arara e o choque elétrico. A diferença é que, ontem, as vítimas eram militantes revolucionários, combatentes da democracia. Hoje são os pobres em geral, os negros, índios, são os que lutam para trabalhar na terra ou para ter um teto que os abrigue nas cidades. Uma convergência inevitável Eu dizia no começo que, em matéria de direitos humanos, ou somos críticos ou somos inúteis. Isso não significa que devamos nos prostrar em pessimismo paralisante, nem que devamos desprezar instrumentos legais. Devemos sim, sacar tais instrumentos, inclusive como dedos acusatórios, denunciadores, exigindo medidas concretas e urgentes, sem poupar governantes, sejam quais forem, sejam de quais partidos forem, que se comportarem de forma omissa e leniente, seja por conivência, seja por covardia política. E esse empenho deve também considerar a necessidade de superação de uma distorção perigosa: a fragmentação dos movimentos de direitos humanos. É certo que ingressamos num período de especificação desses direitos, sendo mesmo esperável que os diversos grupos vulneráveis e oprimidos 33 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) – mulheres, crianças e adolescentes, idosos, grupos étnicos, portadores de necessidades especiais etc. – especializem sua atividade e priorizem suas temáticas próprias. Porém, isso não pode conduzir à perda da dimensão global, ao esquecimento da interligação e interdependência de todos os direitos humanos. Numa palavra, essa fragmentação das lutas precisa ser revertida porque conduz à despolitização – exatamente o que esperam os violadores dos direitos humanos. Ao se perder a visão de conjunto, desviando esforços para um rumo fragmentário de ações paralelas e isoladas entre si, não se dá conta de que há certos movimentos objetivos da realidade que condicionam tudo, que limitam o alcance de cada uma das lutas parciais ou até tornam inalcançáveis certos objetivos específicos. Refiro-me, antes de tudo, a esse poderoso fator objetivo que é o modo como planetariamente se processa o movimento do capital, num sentido anti-humano, excludente de bilhões de pessoas, expulsando do mercado, da sociedade e da vida parcelas imensas e crescentes da humanidade, ou “incorporando” outras como... escravas. Ou detemos este movimento que a tudo engolfa, ou nossas lutas parciais, isoladas e fragmentadas se revelarão impotentes, reduzindo-se a “vitórias” minúsculas e localizadas, vitórias de Pirro, porque logo anuladas pelo movimento excludente e destrutivo global. Se não tivermos a lucidez de dar esse salto de qualidade na compreensão do momento que vivemos, acumularemos revezes demasiado graves, porque esse movimento do capital chegou a um ponto em que, não só precisa destruir um contingente incalculável da humanidade para continuar se autovalorizando, como também não consegue deter sua marcha insensata rumo à destruição física do planeta. Hoje, falar em defesa dos direitos humanos é, antes de tudo, falar em salvar a humanidade e o planeta em que ela vive – estes objetivos demandam remover aquela macro-ameaça global da humanidade e da natureza. A menos que optemos por nos comportar como Poliana e passemos a acreditar na ilusão rósea, tão tola quanto perigosa, de que é possível “humanizar” o capitalismo e reconciliá-lo com a natureza. Institutos jurídicos, tais como o que atribui uma “função social” à propriedade, certamente revestem de uma película adocicada a pílula que nos é dada para engolir, mas não são antídotos para o veneno que ela contém. O capitalismo não se “humanizará”, não se tornará receptivo a chamamentos da razão, não deterá de motu proprio sua voracidade destrutiva, porque isso mexeria com os lucros, assim como os detentores do capital não passarão, milagrosamente, a conduzir-se segundo preceitos tais como “amai-vos uns 34 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas aos outros”. A burguesia ri secretamente desse mandamento, só nós é que almejamos um mundo em que o amor universal seja possível, no entanto, esse mundo só existirá se o capitalismo deixar de existir. A burguesia, embriagada pela obsessiva extração de lucros, comporta-se como o dependente químico terminal: não pode aceitar um mundo fundado na igualdade e na cooperação, precisa manter a humanidade acorrentada a essa divisão antinatural de classes sociais, porque só dessa divisão consegue extrair o óleo combustível da reprodução do capital. Hoje, não é mais possível lutar de modo consequente por direitos humanos sem incorporar as bandeiras da igualdade social substancial, bem como as temáticas do feminismo, do anti-racismo, da ecologia, da livre expressão da vida sexual, da defesa dos migrantes, da busca de uma cidadania mundial e igualitária. Logo, esse feixe de propósitos convergentes e libertadores encontra diante de si uma muralha – que tem o nome de capitalismo. Desmontar essa muralha passou a ser condição para uma luta consequente pelos direitos humanos. A realidade não nos dá mais o direito de nos iludirmos como Poliana. 35 I TRABALHO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA 1 Representações de trabalhadores, gatos e empregadores sobre o trabalho escravo Maria Antonieta Vieira Regina Bruno O presente artigo norteia-se por uma perspectiva relacional, considerando que os diferentes atores sociais envolvidos no trabalho escravo – trabalhadores, empreiteiros e empregadores – fazem parte de um mesmo processo social, estando unidos por um laço tenso e desigual de interdependência que expressa relações de poder. Considera também que para compreender a existência e manutenção da escravidão contemporânea é importante ir além da investigação das condições objetivas de reprodução da força de trabalho, abordando aspectos do mundo subjetivo dos diferentes atores, e, mais especificamente, suas formas de representação sobre as relações de trabalho do trabalho escravo. A concepção acerca das relações de trabalho no mundo rural brasileiro, que foi constituída historicamente pelos diferentes atores, tem como referência um passado escravista. As transformações do campo ocorridas no Brasil na segunda metade do século XX, que produziram modificações importantes nas relações de trabalho, passaram a expulsar os trabalhadores da terra, tornando-os cada vez mais dependentes do assalariamento. No entanto, os códigos que regulam estas relações de trabalho, tanto para trabalhadores como para empregadores não se pautam pela percepção de direitos e garantias de condições de trabalho, mas estão, em grande medi- Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) da, baseados em um passado de dominação tradicional, onde a submissão dos trabalhadores tinha como contrapartida o clientelismo e as formas de proteção pessoal desenvolvidas pelo patrão. O presente artigo, baseado em pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o Perfil dos Principais Atores do Trabalho Escravo Rural1, procura apontar elementos que compõem a representação dos diferentes sujeitos sobre relações de trabalho e emprego e, mais especificamente, sobre trabalho escravo, bem como elementos referentes às suas expectativas e projetos de vida. Representações dos trabalhadores As situações de trabalho escravo, que ocorrem por meio de mecanismos de coerção e violência são, em alguma medida, legitimados pelo assentimento dos que, no limite da sobrevivência, se submetem às formas de opressão. Concepções e valores dos oprimidos, por vezes, naturalizam a exploração a que são submetidos, legitimando as formas de dominação. A seguir, serão abordados alguns aspectos referentes às representações dos trabalhadores no sentido de contribuir para a compreensão do processo de constituição e manutenção do trabalho escravo, enfocando: o que os trabalhadores que foram submetidos à escravidão valorizam nas relações de trabalho e qual o limite socialmente aceito para a exploração, indicando os valores subjacentes que orientam suas escolhas. Em segundo lugar, como se representam socialmente, em outros termos, como consideram que a sociedade os vê. Em terceiro, o que, na sua visão, é trabalho escravo, dando destaque para a questão da dívida contraída com os empreiteiros, que se constitui em um dos principais mecanismos de coerção que os mantém na condição de escravo. Além destes aspectos, serão abordados outros referentes às aspirações e projetos de vida dos trabalhadores e o que, na sua visão poderia ser feito para 1 O estudo foi realizado por pesquisadores e colaboradores do GEPTEC – Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo - que faz parte do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo da pesquisa foi traçar um perfil dos principais atores envolvidos no processo de trabalho escravo rural no Brasil, em áreas de maior incidência com a finalidade de subsidiar a formulação e reorientação de políticas públicas de combate ao trabalho escravo. A pesquisa baseou-se em metodologia qualitativa e foi conduzida mediante a aplicação de entrevistas em profundidade que permitissem captar as práticas, concepções, valores e expectativas dos diferentes atores, tendo como foco principal o trabalho. Foram realizadas 121 entrevistas com trabalhadores, 7 com empreiteiros e 12 com empregadores envolvidos em situação de Trabalho Escravo. As entrevistas com trabalhadores e gatos foram realizadas em 7 viagens que acompanharam as operações dos grupos móveis de fiscalização do Ministério o Trabalho e Emprego no segundo semestre de 2006 e primeiro semestre de 2007 nos estados do Pará, Mato Grosso, Bahia e Goiás. As entrevistas com os empregadores, que foram flagrados pela fiscalização com trabalho escravo em suas propriedades, foram realizadas no período de abril a agosto de 2008. 38 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas erradicar o trabalho escravo. Considera-se que estas informações possam subsidiar a elaboração de políticas públicas, fornecendo indicações sobre as expectativas e interesses dos sujeitos envolvidos. Representações sobre emprego e relações de trabalho Critérios de avaliação do contrato de trabalho – A necessidade Os trabalhadores que se encontram em situação de trabalho escravo são movidos pela necessidade premente para aceitar ofertas de emprego, tendo em vista sua posição desfavorável no mercado de trabalho - baixa qualificação, baixa escolaridade - e a pressão que sofrem face às necessidades da família, nas quais são, muitas vezes, os únicos responsáveis pelo sustento. No entanto, isto não significa que eles não tenham critérios próprios para avaliar o que significa um bom trabalho e parâmetros para estabelecer limites à exploração. Muito pouca importância é dada pela maioria dos trabalhadores escravos à existência de relações formais de emprego. A remuneração – ganhar bem ou ter a garantia de que vai receber – aparece como o critério mais importante para definir um bom trabalho. Alguns depoimentos explicitam a importância da remuneração: Serviço bom é aquele que dá dinheiro. É quando paga bem. A mola do peão é o dinheiro. É quando se ganha bem. Não importa se (o serviço) é pesado ou maneiro. O preço é que agrada a gente. Se dá prá levar um troquinho para ajudar a família É quando vou trabalhar e no final do mês vou ter o dinheiro, recebo o combinado. A valorização da remuneração em detrimento de outras condições de trabalho aumenta a vulnerabilidade destes trabalhadores, podendo fazer com que, premidos pela necessidade, aceitem, diante de um salário aparentemente vantajoso, condições de trabalho extremamente precárias, perigosas, em locais distantes, sem garantias trabalhistas, que possam significar condições de trabalho escravo. Os valores que orientam a avaliação das relações de trabalho não estão pautados pelos códigos que regulam as relações formais do trabalho assalariado que incluem condições de segurança no trabalho, garantia dos direitos trabalhistas com registro em carteira, férias, regulação da jornada de trabalho e horas extras, etc. O trabalho assalariado é visto como uma estratégia, geralmente temporária, que permite obter rendimento monetário para a 39 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) aquisição de bens. Cumpre notar, que a reprodução destes trabalhadores depende cada vez mais do circuito mercantil, seja para garantir a sobrevivência imediata da família como a compra de alimentos, seja para ter acesso a bens de consumo como os eletrodomésticos, peças de vestuário, serviços, etc, que, cada vez mais, passam a fazer parte do modo de vida mesmo de pequenos e distantes povoados rurais. Percepção dos limites da exploração na relação de emprego – a humilhação A aceitação de uma oferta de emprego pelos trabalhadores se norteia principalmente pelo valor da remuneração. No entanto, quando perguntados sobre os principais motivos que os levam a abandonar um emprego outros fatores aparecem como relevantes. A razão mais forte alegada para deixar um trabalho se refere ao tratamento recebido. A ênfase é na falta de respeito e consideração a eles enquanto pessoas, por parte do gato ou empregador, cujas atitudes desqualificadoras e discriminadoras ferem a dignidade humana; nas palavras de um trabalhador, quando a gente não se sente como humano. A categoria humilhação é utilizada de forma recorrente para expressar este sentimento. Os trabalhadores são pouco exigentes com relação às condições de trabalho oferecidas pelo empregador. Condições precárias de alojamento, água, alimentação, equipamento de proteção e segurança e jornada extensiva geralmente não são utilizadas como razão para deixar o emprego. A valorização positiva de um emprego se refere principalmente ao tratamento de respeito e atenção dado a eles e o recebimento do pagamento dentro do que consideram aceitável. Os critérios utilizados para qualificar um emprego não são, portanto, as relações contratuais formais do trabalho assalariado, mas se apoiam em uma ordem moral, baseada em valores tradicionais de honra, reciprocidade, respeito, configurando como injustiça as situações onde estas regras são quebradas, quando se sentem atingidos em sua dignidade como pessoas. O não cumprimento do combinado pelo gato, a ausência de pagamento depois de muito tempo de trabalho, os maus tratos e humilhações, podem fazer com que os trabalhadores se indignem e encaminhem, por exemplo, uma denúncia junto às autoridades sobre as condições de trabalho vividas na fazenda. 40 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Imagem social Imagem social dos trabalhadores – trabalhador sem valor Na imagem social que fazem de si mesmos como trabalhadores assalariados, como peões, predominam os sentimentos de inferioridade, discriminação e desvalorização social. Entre os que possuem uma autoimagem positiva, a característica principal apontada para a valorização é o fato de ser um trabalhador, característica que confere atributos de honra, respeito, honestidade. A grande maioria, no entanto, utiliza atributos negativos e desqualificadores quando descreve como a sociedade os vê, expressando sentimentos de discriminação, desvalorização e inferioridade, em outros termos, de falta de reconhecimento social. A própria denominação peão é, para alguns, sinônimo de preconceito, que desconsidera a condição de trabalhador. A percepção de um dos entrevistados pode ser observada abaixo: (O peão) é discriminado até como o povo chama “esse é um peão”. Não vê que ele é um trabalhador! É maltratado, não é bem recebido. Quando eu era peão o atendimento no comércio, nas festas era um. Quando passei a chefe (em uma fazenda que trabalhei) o atendimento era outro. (O povo) acha que são trabalhador humilde, não tem consideração com a gente. Diz que o peão do campo não vale nada. Os trabalhadores sentem que determinados elementos presentes em seus gestos e em sua aparência física são alvo de discriminação e desqualificação, o que leva à ideia de que o peão não tem valor, ou seja, não é valorizado socialmente, é visto como um objeto descartável. Isto foi relatado em observações feitas por um dos entrevistados: Acho que eles (povo) conhece (o peão) até pelo andar. Ficam olhando desconfiado, ficam mangando do trabalhador. Olham as mãos cheia de calo, já critica. Peão não tem valor. Tem deles que não carrega nenhum peão no carro dele porque diz que peão fede. Não dão valor ao peão. Até o olhar das pessoas é diferente para a gente. Tratam como se fosse uma coisa qualquer, como um objeto de precisão. Precisa dele, põe pra cá; não precisa, vai pra lá. Para alguns, o que confere socialmente valor às pessoas é o dinheiro e, neste sentido só quando está com dinheiro o peão teria valor: 41 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Não tem valor na cidade, o valor é só quando chega na cidade, com dinheiro. Se tem relógio, vale o relógio, se não tem, não vale nada É tudo lascado(o peão) não tem nada.Não dá valor ao peão. Só dá valor quando tem dinheiro. A imagem social que estes trabalhadores fazem de si mesmos se constrói nas relações estabelecidas com o conjunto da sociedade em geral e de trabalho com os patrões em particular. Trata-se de um processo que se constitui ao longo da história rural brasileira, que atribuiu a estes trabalhadores um lugar de inferioridade e desqualificação social. A introjeção desta imagem dificulta aos trabalhadores a valorização de si próprios e a percepção de si como sujeitos portadores de direitos. No entanto, eles não estão reduzidos à visão do outro, na medida em que consideram que sua condição de trabalhador não é devidamente valorizada socialmente. Como diz o trabalhador: [...] se não for o peão que enfrenta a juquira, o povo da cidade não vive. O povo chama:”esse é um peão”. Não vê que ele é um trabalhador! Representações sobre o trabalho escravo Trabalho escravo - a submissão moral De primeiro (a escravidão) era quando trabalhava apanhando. Hoje, quando trabalha humilhado. A escravidão não é só ficar preso numa fazenda. Para os trabalhadores o trabalho escravo se apresenta como uma situação limite de exploração2 na qual se destacam três aspectos: o trabalho não pago ou superexplorado, a existência de maus tratos e humilhação por parte do empregador e o trabalho exaustivo. A privação de liberdade se apresenta nesta visão, também, como um aspecto do trabalho escravo, mas não como o preponderante. Ganhar pouco, trabalhar forçado, ser humilhado Não receber remuneração ou ganhar muito pouco é o elemento mais frequente apontado pelos trabalhadores para caracterizar o que seja o trabalho escravo: 2 Esta representação coincide com o analisado por Neide Esterci quando se refere ao trabalho escravo como uma categoria utilizada para designar a exacerbação da exploração e da desigualdade: “Determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização” (ESTERCI, 1994, p. 44). 42 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas É a pessoa que vai trabalhar na fazenda a vida inteira trabalhando sem ganhar quase nada. Trabalhar a troco de comida. Quando a gente trabalha sem tirar lucro e botou força, trabalhou e o dono do serviço não quer pagar O trabalho exaustivo se refere ao trabalho pesado demais, que esgota as forças do trabalhador ou o faz trabalhar contra sua vontade. Este fato é observado a partir de algumas colocações: Trabalho pesado demais que a gente não pode fazer. Explorar o trabalhador. O trabalhador fazer o que ele não pode, o máximo que o corpo pede. Forçar a pessoa a trabalhar, a fazer o que ela não quer. Os maus tratos, o relacionamento sem consideração e respeito por parte do empregador, com xingamentos, agressividade, são considerados sinônimo de escravidão. Mais uma vez a categoria humilhação sintetiza esta condição que afronta a dignidade humana, que significa ser tratado como animal, como cachorro. Uma condição que desqualifica e submete moralmente o trabalhador à vontade do outro e, neste sentido, priva-o de sua autonomia, mesmo quando não o prende fisicamente. A humilhação aparece para alguns como o equivalente do castigo físico da escravidão colonial De primeiro (a escravidão) era quando trabalhava apanhando. Hoje, quando trabalha humilhado. A escravidão não é só ficar preso numa fazenda. Não poder sair, ter vigia armado, não sair porque está devendo A privação de liberdade com uso de violência física e armada, ameaças por parte de vigias, gatos e administradores, é mencionada por um grupo de trabalhadores: Estar trabalhando no lugar, não poder falar, não poder sair, não poder se comunicar com a família. Trabalho forçado, fazer o que o cara (gato) quer, não ganhar nada e não poder sair. Trabalhar e não receber; trabalhar obrigado; querer sair e não ser liberado. Você estar trabalhando e uma pessoa está com uma arma. Você quer parar pra descansar e ele fica avexando pra trabalhar. Aí eu acho que é. Quando a pessoa trabalha sem condições e obriga a pessoa a ficar na fazenda; Trabalhar obrigado, com gente armada. Trabalhar e não receber, não ter pra comer, ser ameaçado, se quer sair o cara dizer que vai matar. Os depoimentos mostram que, mais do que a privação física da liberdade, a submissão moral levada a seus limites significa escravidão. Ser submetido 43 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ao outro pelo desrespeito, maus tratos, não pagamento ou superexploração, trabalho exaustivo, má alimentação, afronta a dignidade humana dos trabalhadores, significa ser tratado que nem cachorro, o que dá a dimensão do que é injusto e inaceitável, do que é escravidão. Retenção por dívida – quem deve, paga A retenção por dívida é tradicionalmente um mecanismo utilizado para manter os trabalhadores cativos. Neste sentido é importante verificar se, do ponto de vista moral, os trabalhadores consideram a dívida como um elemento que justifica sua retenção na propriedade. Grande parte dos trabalhadores considera que não podem deixar o emprego se estão devendo. A maioria utiliza argumentos morais como a honestidade e a honra como razão para permanecer na propriedade até pagar a dívida com trabalho: Por que tem que pagar o que deve Por que o direito é acertar a cantina É feio a gente sair devendo às pessoas A obrigação de quem deve é pagar Ele tem que pagar porque honestidade é acima de tudo. Uma das coisas mais feias que acho é não cumprir quando deve. Tem que trabalhar pra poder pagar. Se sair não tem como pagar. O trabalhador que é honesto tem que sair limpo de qualquer lugar. Se ele for honesto, ele trabalha e paga o gato O homem tem que ter o seu compromisso, trabalhar para pagar Só tem direito de sair quando não está devendo. Um grupo menor considera que o dever moral de ficar na propriedade para pagar a dívida é relativizado diante de certas circunstâncias como a doença, a quebra do que foi combinado, e, especialmente dos maus tratos e da humilhação Se ele tá devendo tem que pagar, mas se ele for humilhado tem o direito de sair. Dependendo, se o gato tiver querendo prender e explorar aí sim, mas se ele estiver só devendo tem que trabalhar para pagar (a dívida) primeiro Dependendo dos maus tratos ele tem de sair Se tá doente, pode sair. Se combinou de um jeito falou de outro, eu vazo! Como se verifica, o argumento da dívida pode ser um mecanismo eficaz para prender o trabalhador à propriedade, tendo em vista que para grande parte os valores morais são fortes orientadores da conduta. 44 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Aspirações, projetos de vida e propostas para a erradicação do trabalho escravo Aspirações e projetos O conhecimento das aspirações e projetos de vida dos trabalhadores é um fator importante para a elaboração de políticas públicas, uma vez que dá indicações sobre as expectativas e interesses dos sujeitos envolvidos em possíveis projetos a serem desenvolvidos. As aspirações mais expressivas dos trabalhadores que passaram por situações de trabalho escravo estão relacionadas à aquisição de moradia e formação/ retorno ao lar. Em seguida, apareceram algumas relacionadas ao trabalho. Casa e família O desejo de ter uma casa, motivação da maioria, está geralmente associado a um projeto familiar e afetivo. Em muitos depoimentos a família é citada como parte deste projeto: comprar uma casa para a mãe, construir casa para a família, etc. Esse discurso foi verificado em: Comprar uma casa boa, viver feliz com a minha família. Construir uma casa para os meus pais. Poder dar do bom e do melhor para eles. Ter uma família, uma casa, uma esposa e um filho É comprar uma casinha prá mim, lá no Maranhão. Isso Deus vai me ajudar. A ideia de casa está associada à de lar, que é uma aspiração principalmente para os que não têm família ou se encontram longe dela. Gostaria de trabalhar e construir um lar, uma residência Voltar a viver com a família: a mulher e as filhinhas Ficar mais perto da família. Ter um lar e viver sossegado com a família. Trabalho por conta própria O trabalho, que aparece em segundo lugar entre os anseios dos entrevistados, é principalmente o por conta própria, que se apresenta como alternativa de autonomia frente às relações de dependência e exploração. Entre as atividades mencionadas sobressaem às ligadas ao comércio. Trabalhar por conta própria, que não dependesse de outro, uma loja, abrir um comércio. Trabalhar por minha conta. Qualquer trabalho na minha conta. Ter meio de sobreviver sozinho, sem depender de 45 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ninguém. Montar uma oficina, ter meu próprio negócio e não ser mais humilhado.Ter uma vida melhor e trabalhar só para mim. Continuar os estudos e formar os filhos O desejo de estudar se refere principalmente aos filhos e expressa a expectativa de ascensão social, que possibilite não reproduzir a situação dos pais e obter melhora da condição de trabalho: Meu sonho maior na minha vida era formar meu filho em alguma coisa prá tirar ele da juquira, porque se ele não se formar o destino dele é a juquira. Ver os filhos na escola para ser alguma coisa na vida. Que eu tivesse condição de dar um estudo a minha filha. As aspirações demonstram a centralidade da família como valor para estes trabalhadores, em torno do qual se estrutura seu projeto de vida. Um outro valor que sobressai é o da autonomia que se expressa no desejo de ter um trabalho onde não dependa da relação de emprego e possa trabalhar por conta própria. Terra para plantar A aquisição de terra apareceu como expectativa apenas para um pequeno grupo de trabalhadores quando perguntados sobre os seus projetos. No entanto, ela foi a escolha de aproximadamente metade dos entrevistados na pesquisa, quando foram apresentadas para eles quatro alternativas que poderiam resolver os problemas dos trabalhadores - terra para plantar, comércio na cidade, emprego rural e emprego urbano. O comércio na cidade apareceu em segundo lugar, o que reforça a preferência por atividades autônomas de trabalho. Tabela 1: Expectativas em relação ao trabalho (primeira escolha) % Ter terra para plantar Ter um comércio Emprego rural registrado Emprego na cidade 46,1 26,9 13,5 13,5 Do ponto de vista das políticas públicas o que se verifica é que a reforma agrária pode responder ao anseio de uma parcela significativa de trabalhadores que vêem na terra para plantar a primeira opção de trabalho, bem como da preferência pelo trabalho autônomo. 46 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Propostas para erradicação do trabalho escravo A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego é considerada pelos trabalhadores como a medida mais eficaz e decisiva para o combate ao trabalho escravo, capaz de garantir o cumprimento da lei pelos empregadores, combatendo a impunidade, mesmo em locais distantes e de difícil acesso, verifica-se em alguns depoimentos: Fazer a fiscalização em todas as fazendas, aí eu sei que acabava. É isso mesmo que está acontecendo. Ir direto nas fazendas, fiscalizando. Daí vai melhorando. O governo devia fiscalizar direito. Devia fazer um tipo força tarefa, uns 400 policial federal, aí acaba isto. A fiscalização ficar dentro direto porque senão, isto nunca vai parar. Uma fazenda longe como esta nunca vai parar. Fiscalização é fundamental. É tudo muito escondido. Só uma fiscalização boa para achar. O Ministério deveria trabalhar mais em busca das fazendas que ainda utiliza o trabalho escravo. Se tivesse mais pessoas que denunciasse seria mais fácil. Esse serviço (a fiscalização) se tivesse mais vezes, acabava. Eles (fazenda) tão correndo pra fazer casa (para os trabalhadores), muitos já não estão pegando sem carteira. Isto (TE) vai acabar, vai morrer por uma fiscalização mais forte, chegar em tudo quanto é lugar, porque tem muitos nesses mato, vige! O fazendeiro não vai poder criar boi sem ter peão. Alguma coisa (ele) vai ter que fazer. O Ministério andar em todos os lugares que a gente trabalha: firma, fazenda. Tinha que denunciar mais. Mais fiscalização porque sem a denúncia não anda. Fiquei com medo porque diziam que ia correr risco de vida. Mas é preciso fazer a denúncia para ver se eles (fazendeiros) criam vergonha. Porque eles acham que tudo tá bom. Fiscalização bem rigorosa e a participação nossa na denúncia. O cumprimento da lei pelos fazendeiros aparece em segundo lugar. Vários entrevistados se referem à importância do registro em carteira como forma de evitar as situações de trabalho escravo. Alguns ressaltam a importância da fiscalização para o efetivo cumprimento da legislação: O governo botar lei para legalizar tudo. Este povo (fazendeiros) é tudo rico e tem estudo, sabe demais. Eles estão sabendo o que tem que fazer e não faz. Se estivesse tudo legalizado não tinha problema. Deveria ser feita uma justiça para todo mundo trabalhar de carteira assinada.Todo mundo trabalhar de carteira assinada, pagando tudo certinho Que todo mundo trabalhe fichado. Era todos os fazendeiros assinar as carteiras do pessoal. Que o gato criasse vergonha e assinasse a carteira Tinha todo mundo que trabalhar de carteira assinada. Aí quando saia recebia férias, décimo (13º.). Igual o que estão fazendo aqui (fiscali47 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) zação). Tudo conforme, carteira assinada. Se não fizer, a fazenda vai ter que arcar com a consequência. De forma geral os trabalhadores entendem que o combate ao trabalho escravo depende principalmente dos organismos oficiais e do respaldo da legislação que possam garantir as condições de trabalho, dando especial destaque à fiscalização do Ministério do Trabalho e às operações dos grupos móveis para o cumprimento da lei. Não é dado ênfase, no entanto, à punição dos responsáveis. Nenhuma referência é feita à organização e pressão dos trabalhadores para o combate do trabalho escravo, o que evidencia a fragilidade de organização destes grupos. Há apenas menção, por alguns, da importância da denúncia de trabalhadores como elemento importante para a fiscalização. O que se pode concluir é que a presença da fiscalização tem um papel importante na mudança da visão destes indivíduos, fortalecendo-lhes a percepção de sua condição de trabalhador e cidadão, de portador de direitos que podem efetivamente ser concretizados, uma vez que são reconhecidos pela autoridade pública. Representações dos empreiteiros – os gatos Os gatos desempenham papel importante como mediadores no processo de trabalho. Sua posição os torna responsáveis pelo controle dos trabalhadores, pela execução do serviço, funções que desenvolvem de maneira informal e pessoal. Geralmente assumem a empreitada com o proprietário sem fazer nenhuma exigência sobre a forma de contratação e condições mínimas de trabalho. São inúmeros os problemas que enfrentam a partir daí – cobranças do proprietário pela realização do serviço, reclamações e desistência do emprego por parte dos trabalhadores, dificuldades de gerenciamento do dinheiro recebido. Para a resolução destas questões os gatos geralmente penalizam os trabalhadores, com redução da remuneração, atraso ou não pagamento de salários, utilização de mecanismos de aprisionamento dos trabalhadores por meio do endividamento, retenção de salários, não fornecimento de transporte, utilização de violência física e armada. De um modo geral, o que se observa é que os pequenos empreiteiros pertencem à mesma extração social dos trabalhadores, muitos deles tendo desempenhado ou ainda realizando trabalhos como peões e que, em muitos aspectos, apresentam concepções e valores muito próximos dos trabalhadores. 48 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Representações sobre relações de trabalho Como principais problemas que podem ocorrer no trabalho dos empreiteiros, eles destacam, em primeiro lugar, o fato do empreiteiro não receber pagamento da fazenda pelo serviço e, em segundo, ele ser desrespeitado e agredido pelos peões. Perguntados sobre o que daria direito ao trabalhador de abandonar o serviço os gatos apresentam argumentos semelhantes aos dos trabalhadores relacionados a pagamento insuficiente, maus tratos, condições precárias de trabalho, especialmente de alimentação, indicando a existência de elementos comuns na percepção dos limites à exploração do trabalho: Quando ele não está ganhando nada. No meu modo de pensar, não deveria (abandonar o trabalho). Só se passar fome. Quem é que vai trabalhar com fome? Se trabalhou um tempo e não deu prá tirar o valor da diária tem direito de ir embora. Quando ele é maltratado. Quando não alimenta ele bem e falta com respeito, ele deve abandonar. No caso do trabalhador que possui uma dívida, o abandono do serviço se justifica no caso de maus tratos ou se estiver passando fome. Outros utilizam argumentos de ordem pragmática dizendo que é melhor que o trabalhador saia para evitar problemas: Primeiro de tudo, ele fez um compromisso. Mas se o patrão estiver maltratando ele tem direito, para evitar confusão Se ele está passando fome, não tá tendo assistência, tem direito de ir embora Tem (direito de sair)! É melhor porque se ele quiser sair é melhor; se não vai criar dificuldade, acaba não trabalhando. O mundo legal com regras e padrões da legislação trabalhista parece estar muito distante do cotidiano dos gatos, que organizam sua relação com os trabalhadores baseados na experiência, onde predomina a naturalização da exploração do trabalho e o desrespeito às leis trabalhistas. No cotidiano, não hesitam em lançar mão da imposição pessoal de sua vontade por meio de ameaças e mesmo da violência para resolver problemas de contestação dos trabalhadores quanto ao pagamento, tarefas a serem realizadas, alimentação precária, etc. Diante da presença dos fiscais do Ministério do Trabalho e da Polícia Federal, que personifica a força da lei, os gatos se sentem atemorizados, sem entender exatamente os critérios que são utilizados para sua acusação. 49 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Aspirações e projetos de vida dos gatos Geralmente, a origem dos gatos é rural, sendo que a maioria foi trabalhador rural. A função de empreiteiro se consolidou na prática, em função de liderança assumida perante grupos de trabalhadores. Perguntados sobre suas aspirações os gatos se referem a projetos bastante próximos dos apresentados pelos trabalhadores: ter um sítio, um comércio, ser motorista e voltar para o local de nascimento. Gostaria de ter um comércio. Eu nunca tive condições de nada. Já tive no garimpo, depois tive comércio. Daí vendi o comércio. O Collor me tomou tudo. Motorista de carreta (carregar boi). Queria trabalhar para arrumar o dinheiro para voltar para Caxias no Maranhão. O que eu quero mais é trabalhar com construção. Queria ter um sítio para terminar os meus dias de vida, aqui no Mato Grosso. Cabe observar que estas informações se referem a pequenos empreiteiros, os chamados gatinhos, que possuem poucos recursos financeiros e um perfil próximo do encontrado entre os trabalhadores. Agenciam pequenos grupos de trabalhadores e geralmente seu âmbito de atuação se restringe a uma região determinada. Não possuem uma rede de agenciamento com hotéis, comércios, meios de transporte, como era comum em décadas passadas na Amazônia. Isto não significa que este tipo de gato não exista mais atualmente. No entanto, informações recolhidas junto aos responsáveis pela fiscalização indicam que tem havido realmente uma modificação nos mecanismos de recrutamento e contratação de trabalhadores, o que pode ser entendido como um efeito do combate ao trabalho escravo e fiscalização das relações de trabalho. As novas formas, porém, tornam mais difícil o controle do agenciamento da mão de obra, que nem por isso deixa de existir. Para evitar o agenciamento ilegal de trabalhadores e estimular a contratação dentro dos marcos legais seria necessário criar mecanismos que pusessem em contato trabalhadores e empregadores. Uma forma possível seria a criação de centros que informassem aos trabalhadores sobre oferta de postos de trabalho, garantindo que estivessem sendo respeitadas as condições adequadas de contratação e que oferecessem aos empregadores um cadastro de trabalhadores disponíveis. Representações dos empregadores Refletir sobre a prática do trabalho escravo no Brasil também se insere na tentativa de entender o lugar dos empregadores nesse processo. Em 50 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas geral, há uma retórica de legitimação e de poder dos grandes proprietários de terra e empresários envolvidos no trabalho escravo rural. São discursos construídos para defender posições e privilégios historicamente construídos e sinalizam para questões mais amplas, estruturantes, que ultrapassam a problemática do trabalho escravo rural. Em primeiro lugar serão apontados alguns traços gerais do perfil dos empregadores tendo como referência a pesquisa realizada3. Em segundo, como eles representam os trabalhadores rurais e o trabalho escravo. E, finalmente, como representam os empreiteiros. O perfil dos empregadores entrevistados Os empregadores entrevistados têm em média 47 anos. Quase todos possuem a 3º grau completo e dois cursaram a pós-graduação. A grande maioria é branca, católica e casada. Os casados residem com as esposas e filhos menores ou adolescentes e mais da metade tem em média dois ou três filhos. Família e negócio se complementam. Quase sempre um dos filhos segue a atividade do pai e invariavelmente há sempre alguém “vocacionado” para atividades ligadas à agropecuária. A grande maioria é natural da região sudeste, enquanto que as propriedades encontram-se localizadas nas regiões norte e centro-oeste e muitos deles residem em municípios próximos às propriedades. Tornaram-se proprietários de terra “por tradição familiar” ou pela necessidade de investimento e negócio. As propriedades foram adquiridas pela família durante o processo de ocupação das áreas de fronteira na Amazônia e do Centro-Oeste, em especial no período dos governos militares, como decorrência da política de incentivos e de ocupação. Mas, invariavelmente, são eles que dão início ao processo de construção do patrimônio e também de ascensão social, constituindo-se assim uma espécie de elite patrimonialista que acumula recursos e alimenta poderes. Nessa perspectiva, as relações sociais e familiares giram em torno do patrimônio, da terra e por sua vez realimentam os vínculos familiares e se constituem em importantes recursos de poder. A maior parte dos empreendimentos está ligada ao ramo da pecuária, mas há também produtores de cana/álcool e de grãos, sendo parte significativa faz uso de um padrão tecnológico intensivo ou de uma tecnologia de 3 Foram entrevistados na pesquisa 12 empregadores que tiveram nas suas propriedades situações de trabalho escravo, conforme fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Sobre a pesquisa ver nota 1. 51 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ponta. No entanto, parte deles pratica a pecuária extensiva com baixo grau tecnológico. Todos contratam mão de obra permanente e temporária nas suas fazendas. Vários recorriam aos gatos e “empreiteiros” para a contratação de mão de obra temporária, mas alegam que, por conta da fiscalização, deixaram de utilizar estes serviços. Representações sobre o trabalhador rural As representações dos empregadores sobre os trabalhadores rurais se orientam a partir de quatro principais supostos: a solidariedade entre empregadores e empregados; a igualdade da racionalidade empresarial; a desqualificação humilhante e, finalmente, a valorização do trabalho e da educação. O suposto da solidariedade entre patrões e empregados O discurso da solidariedade entre patrões e empregados é recorrente e procura excluir a ideia de conflito. São argumentos que expressam uma determinada visão de mundo que muito se aproxima da noção de autoridade tradicional fundada na crença da tradição de regras de há muito estabelecidas na qual a benevolência, a arbitrariedade e a fidelidade pessoal encontram-se na base da obediência ao patrão e do arbítrio do empregador: A legislação trabalhista acabou com a amizade entre patrão e empregado Jogaram uma classe contra a outra Eles gostam de mim, como seu gosto dele, mas não sou manso para eles. O suposto da igualdade da racionalidade empresarial Uma segunda representação busca enquadrar os trabalhadores dentro de uma mesma lógica patronal e empresarial, em particular a capacidade de tomar iniciativa e o objetivo da acumulação. Diferentemente da anterior, esse é um modo moderno e se orienta por uma suposta racionalidade capitalista e pela tentativa de transformar os valores e interesses patronais em valores e interesses do conjunto da sociedade. E concebe os trabalhadores como se estivessem em igualdade de condições para então ressaltar sua incapacidade e desqualificá-los: Não tem iniciativa. Se contenta com pouco, não querem acumular. Trabalha para comer e não para evoluir. Não tem cultura de poupança, ganha e gasta tudo. 52 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Não conhece a palavra produtividade. Carência de se adaptar às novas tecnologias Humilhação e desqualificação Uma terceira forma de representação assume direta e explicitamente a desqualificação e a humilhação. É um raciocínio que em muito se assemelha ao discurso elitista, proferido do alto e alimentado pelo suposto da superioridade e da inferioridade das pessoas, grupos e classes sociais. Trabalhador rural é tudo tosco. Não adianta é tosco! Trabalhador é debochado. Pior impossível. O bicho é grosso, bruto. Tudo o que é de ruim. Pense em uma coisa muito ruim, é o trabalhador rural. Péssimo, o pior que existe. São uns analfabetos. Valorização do trabalho e da educação E, finalmente, a representação que ressalta alguns aspectos positivos dos trabalhadores, contudo, invariavelmente ligados à capacidade de trabalho e a valores familiares e que chama a atenção para a importância da educação e da qualificação na formação da mão de obra. Tem tradição familiar Tem cultura de trabalhar no campo Ninguém é naturalmente relapso e preguiçoso, falta educação. Têm os que se esforçam no trabalho. Representações sobre trabalho escravo De um modo geral os empregadores entrevistados conhecem as situações legalmente definidas como trabalho escravo. A própria definição sobre o que seja trabalho escravo é um campo de força e de tensões entre empregadores e seus representantes e as instituições ligadas à questão como, por exemplo, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Organização Internacional do trabalho (OIT). Duas tendências marcam essa representação, a primeira se caracteriza pela exacerbação do uso da violência física ou à associação entre da violência dos proprietários como resposta à rebeldia dos trabalhadores. A segunda representação procura questionar as situações legalmente definidas como sendo trabalho escravo. A lógica que orienta os dois argumentos é semelhante, ambos por caminhos diferentes procuram relativizar e desconstruir a definição de trabalho escravo, enquanto a exacerbação busca chamar a 53 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) atenção apenas para situações-limite, o questionamento, procura minimizar ou descaracterizar como sendo trabalho escravo algumas situações definidas em lei, como afirma o depoimento a seguir: trabalhar sob a mira de um revólver, trabalhar acorrentado e o uso da violência quando o trabalhador se rebela são fatos isolados. Os mais tradicionais negaram categoricamente a existência de trabalho escravo no Brasil contemporâneo. “Trabalho escravo é coisa para inglês ver. Não existe”, disse um dos entrevistados. “Tudo lorota, mentira”, afirmou outro. “É natural a precariedade das relações de trabalho”, argumentou um terceiro. A grande maioria dos entrevistados tem dificuldade de reconhecer a existência de trabalho escravo em suas propriedades. Eles questionam o que consideram as incoerências e o rigor da lei. Criticam autoritarismo e arrogância dos fiscais do MTE ou então afirmam ser mentira dos trabalhadores. Outros justificam e ressaltam que o trabalho escravo não se restringe ao mundo rural, mas está presente em outras atividades e nas áreas urbanas. Para muitos haveria uma “cultura da informalidade” entre patrões e empregados, razão pela qual os trabalhadores não querem ser registrados e não gostam de usar vestimentas adequadas ao trabalho, dentre outros aspectos. É grande a preocupação em reafirmar quais situações não se configura trabalho escravo. Não é trabalho escravo [...] se o cara tem direito de sair a hora que quer e a não assinatura da carteira de trabalho, simplesmente não poderia ser considerado trabalho escravo. Apenas um, presidente de uma grande empresa moderna, reconheceu sua parcela de culpa [...] fomos negligentes ao contratar uma empresa de terceirização, pois tínhamos por obrigação acompanhar o trabalho, diz. Representação sobre o empreiteiro - gato O empreiteiro é considerado o grande culpado pela prática do trabalho escravo e pela situação em que se encontra o empregador perante a justiça do trabalho. Portanto, é fundamental eliminá-lo. Produto do sistema, ele seria o responsável pela relação de submissão, isentando, desse modo, os empregadores. Como se estes também não fossem parte do mesmo sistema: Entrei numa roubada, cai na besteira de contratar um cara para fazer o serviço. É essa figura terrível do modelo. Ele é fruto do sistema, é o arrebatador de mão-de-obra e o próprio sistema incentiva e privilegia. Ele é 54 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas o responsável pela escravidão. A comida é dele, o ônibus é dele é ele quem paga; é ele quem faz essa relação de submissão. Existiria, segundo os entrevistados, uma tendência a acabar com a figura do empreiteiro ou evitar a contratação, seja por causa da fiscalização; seja pela força do mercado, seja ainda, para alguns, por motivos morais. Mudanças introduzidas pelo combate ao trabalho escravo A erradicação do trabalho escravo depende de múltiplas ações desencadeadas pelo conjunto da sociedade, que inclui tanto os organismos públicos do executivo, judiciário e legislativo, como a sociedade civil, com suas organizações de classe de trabalhadores e empregadores, entidades de direitos humanos e outras. Estas ações têm provocado, em alguma medida, alterações no quadro descrito. Entre elas destacam-se as de fiscalização, levadas a cabo principalmente pelos grupos móveis do MTE, a punição econômica dos infratores seja pela sua inclusão no cadastro dos empregadores flagrados com trabalho escravo, ou ainda pela cobrança de multas propostas pelas ações civis públicas para obtenção de indenizações dos empregadores. Destacam-se também, as campanhas educativas, especialmente da mídia, que têm dado maior visibilidade à questão do trabalho escravo, a criação de planos estaduais de combate e as ações desenvolvidas por empregadores como a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Considera-se que este conjunto de ações tenha contribuído, por exemplo, para o aumento da contratação direta pelos empregadores de trabalhadores para trabalho temporário, com registro em carteira, em áreas de maior incidência de trabalho escravo como o sul do Pará. Ao mesmo tempo, verifica-se uma diminuição da presença do gato, principalmente como aliciador de mão de obra que cruzava estados transportando trabalhadores, ainda que isto não signifique automaticamente uma melhora efetiva das condições de trabalho. Mecanismos informais de arregimentação continuam operando e utilizando, por vezes, os próprios trabalhadores. Há também alguns indícios de que os trabalhadores têm desenvolvido uma percepção mais crítica das relações de trabalho. Tem contribuído para isto o acesso a informações sobre trabalho escravo e principalmente a realização das fiscalizações, que auxiliam os trabalhadores a deixarem de considerar como natural o processo de exploração a que são submetidos. O que é sentido como injustiça nas relações de trabalho passa a ser visto como privação de direitos, e estes atores dão um passo em direção à cidadania plena se percebendo como sujeitos de direitos reconhecidos pela autoridade pública. 55 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Diferentemente dos trabalhadores, grande parte dos empregadores se sentem destituídos de seu lugar social pela fiscalização e atingidos pessoalmente na sua honra, uma situação que é interpretada como injustiça e sentida por eles como humilhação. No entanto, outro grupo considera importante e apoia o combate ao trabalho escravo, participando de iniciativas concretas como as do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e programas de reinserção de trabalhadores que foram resgatados. Apesar dos avanços encontrados no Combate ao trabalho escravo há ainda um longo caminho para a erradicação que inclui a manutenção e ampliação da fiscalização e punição dos escravagistas e intermediários, mas também a ampliação de ações preventivas que impeçam a reincidência no trabalho escravo. Referência ESTERCI, Neide. Escravos da Desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: CEDI, Koinonia, 1994. 56 2 Depoimentos de trabalhadores rurais escravizados por dívida - 2007, Pará, Brasil Introdução Adonia Antunes Prado Esta comunicação faz parte de um estudo mais amplo atualmente em andamento no Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil e tem como objeto privilegiado os conteúdos de declarações de trabalhadores submetidos, em áreas rurais, à exploração servil de sua força de trabalho. Estes depoentes prestaram as declarações a agentes de organizações da sociedade civil, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro de Defesa da Vida de Açailância (MA), do Estado, como é o caso dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e dos procuradores ligados ao Ministério Público e, em um caso, ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região. O projeto, ora em desenvolvimento, objetiva o estudo de um corpus documental relativo a quatro décadas, a saber, dos anos setenta até à presente data e por meio do levantamento, cruzamento e análise dos principais elementos (variáveis) expressos pelos trabalhadores. Com isso, pretende-se produzir novos conhecimentos a respeito do trabalho escravo no Brasil rural de nossos dias, em especial, na região amazônica. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) O trabalho escravo contemporâneo é ilegal no Brasil e sua prática teve repercussão de forma mais visível nos anos setenta, por meio da ação do bispo espanhol radicado no estado do Mato Grosso, na região Centro-Oeste do Brasil, Pedro Casaldáliga. O país vivia os chamados “anos de chumbo” do governo militar e as vozes que se somaram então à do sacerdote eram esparsas e seus autores tinham que portar grande coragem pessoal, bem como fortes convicções políticas e éticas para levar avante denúncias que tanto envolviam setores modernos do grande capital nacional e internacional, como políticos e autoridades regionais tradicionais. 1 Atualmente, pode-se afirmar que, não apenas por parte de entidades da sociedade civil organizada, mas também no seio da universidade no âmbito acadêmico) e no âmbito governamental, cada vez mais se produzem olhares e falas sensíveis a este aspecto da questão social. 2 No ano de 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que tem por função fiscalizar propriedades alvo de denúncia de exploração de mão-de-obra escrava e, em caso de comprovação da existência do delito, punir os infratores. Ainda no Governo Federal, a partir do ano de 2004 o mesmo MTE passou a publicar semestralmente em seu sítio o Cadastro de Empresas e Pessoas Autuadas por Exploração do Trabalho Escravo. A inclusão no cadastro, também conhecido como Lista Suja, impede que empresa ou empresário receba financiamento por parte de órgãos públicos. O que vem a ser o trabalho escravo nos dias de hoje? Como esta categoria vem sendo tratada? Segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro é considerado crime reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.3 A pena prevista é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. Também podem ser punidos pelo mesmo artigo do Código Penal aqueles ou aquelas que impeçam o deslocamento do trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho, podendo a pena ser aumentada de metade, caso a vítima seja criança ou adolescente e/ou o motivo seja preconceito de raça, cor etnia religião ou origem. 1 2 3 Os primeiros estudos do tema foram feitos por e Almeida, 1988; Esterci,1994; Martins, 1994 e Figueira 2004. No que se refere à presença do tema em estudos acadêmicos, ver Figueira e Prado, 2008. Disponível em: <http://www.fiscosoft.com.br/indexsearch.php?PID>. Acesso em: 30 jan. 2009. 58 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Neste estudo, trabalhamos com a noção de que a escravização de mão de obra, atualmente, é entendida como ação ou ações que tiram do sujeito vitimado o direito de locomoção, o direito de ir e vir e de vender sua força de trabalho. Em nosso país, a maioria dos casos em que se encontra tal situação se dá sob a alegação de que o trabalhador deve ao patrão, ao gerente do estabelecimento ou ao agenciador, também conhecido como gato. 4 Considera-se, também, que a condição servil se caracteriza por um conjunto de situações que compõem o quadro da escravidão. A imobilização do trabalhador, a negação do caráter fundamental do trabalho na sociedade capitalista que é a liberdade de oferecer sua força de trabalho a quem lhe pareça melhor, é negada e configura o trabalho escravo. No entanto, esta condição invariavelmente vem acompanhada de outras formas de violência e de negação da condição humana dos trabalhadores. Retenção de salários, alimentação de má qualidade ou insuficiente, falta de condições de higiene ou de segurança nos locais de trabalho e nos alojamentos, agressões físicas ou morais, isolamento, dentre outras formas de desrespeito ao trabalhador, constituem-se em condições assessórias e importantes para a caracterização do trabalho escravo. Parece, ainda, interessante observar nesta introdução que, para se entender o trabalho escravo nas zonas rurais brasileiras dos dias de hoje, de maneira a não se resvalar para os clichês ou para os preconceitos, se faz necessário levar em conta que ele está imbricado com questões que lhe são correlatas, cujo conhecimento é fundamental para a produção de uma consciência estruturada e alicerçada na compreensão da realidade. Pode-se citar aqui a questão ambiental, a presença do tráfico de pessoas, o trabalho infantil, as questões legais nos níveis nacional e internacional, o tema das migrações, a corrida pela produção de fontes alternativas de energia - que em nosso país pode ser observada (não exclusivamente) na potencialização da produção do agro combustível - questões de gênero e étnico-culturais, a “flexibilização” de direitos trabalhistas, dentre outras. Ou seja, parece evidente que falar em trabalho escravo nos dias de hoje não é um anacronismo. No Brasil, grandes empresas incorrem neste crime. Empresas modernas, detentoras de capital de ponta e altamente sofisticado. A superexploração do trabalho humano redunda, para os empresários, em competitividade. 4 “Gato: empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou outros serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado, trabalha com parentes e com uma rede de ´fiscais`, e são acusados de diversos crimes, inclusive homicídios. Em geral, os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem prestar serviço por anos consecutivos para as maiores empresas.” (FIGUEIRA, 2004, p. 17, 122 et seq.). 59 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Bales, que estudou o trabalho escravo contemporâneo, afirma que [...] não há trabalhadores pagos que possam competir economicamente com o trabalhador não pago – escravo (2001, p. 20). Sobretudo, há que se chamar atenção para o fato de que, esta forma de extração e acumulação faz parte de uma cadeia que sustenta o modo de produção dominante no mundo atual e não deve ser interpretada como um “acidente de percurso”. É necessário estudar este aspecto da divisão do trabalho na sociedade contemporânea como expressão de uma realidade em que o trabalho não está desaparecendo, como supõem alguns. O que está desaparecendo é o trabalho protegido, são as conquistas laborais nascidas das lutas sociais do século XX e o trabalho escravo é uma das mais radicais formas de expropriação dos direitos trabalhistas e humanos dos trabalhadores. 5 Kevin Bales (2001, p. 19) afirma que no atual momento da história mundial há mais pessoas escravizadas que “[...] todas as pessoas c apturadas na África na época do comércio transatlântico de escravos.”. Este autor calcula que em todo o mundo atualmente existam em torno de 27 milhões de pessoas. O italiano Walter Zanin (2007), que pesquisa a escravidão contemporânea entre trabalhadores marítimos, cita estudo patrocinado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), datado de 2005, onde se estima em 12.300.000 o número mínimo de trabalhadores cativos em todo o mundo. Bales (2001, p. 20) pondera que pode parecer pouco, se comparado à população economicamente ativa mundial - cerca de 0,4 % desta -, mas que se trata de pouco mais de um quinto da população da Itália e, mais que isto, deve-se considerar que estas pessoas vivem a situação de escravidão “sobre sua própria pele”, ou seja, que não deve ser nada fácil encontrar-se nesta condição. Em quase todos os países do mundo existe exploração de mão de obra escrava, segundo Bales (2001) e, a exemplo do que acontece no Brasil, a atividade econômica que congrega o maior contingente de trabalhadores escravizados é a agricultura. Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, processados pela Comissão Pastoral da Terra, CPT (2008), indicam que de janeiro a outubro de 2008, 2.114 trabalhadores da agricultura canavieira haviam sido libertados nas operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. No mesmo período, o número de libertados na pecuária foi de 832. No ano anterior, a cultura da cana participou com 3.060 libertados e a pecuária com 1.430. Entre os anos 5 A respeito da categoria trabalho escravo contemporâneo, ver Figueira (2004, p. 34 et seq). 60 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas 2003 e 2006 a cana participara com 1.605 enquanto os libertados da pecuária foram 6.510. Ou seja, a presença da agricultura na liderança do ranking das atividades onde o trabalho escravo se fez presente é recente e não é falso afirmar que tal se deve à corrida pela produção de matéria-prima para a produção de agrocombustíveis, à ganância de empresários que buscam sobre lucros por meio da exploração da mão de obra escrava e a necessidade de controle governamental mais eficaz quanto aos processos de contratação de trabalhadores e cumprimento das leis trabalhistas. Ainda são dados da CPT que informam que, de 1995, quando foi criado o GEFM do MTE, até 2008, o número de trabalhadores libertados do trabalho escravo é de mais de 30.000, estimando-se em cerca de 20.000 o número atual de pessoas em trabalho servil no Brasil, apenas no setor primário da economia.6 Caracterizando a situação Este texto é produto da análise de 90 depoimentos de trabalhadores fugidos ou resgatados do trabalho escravo no estado do Pará, tendo estes sido colhidos, em sua grande maioria, por agentes da Comissão Pastoral da Terra nas cidades de Marabá, Tucuruí, Xinguara, Alto Xingu, no Pará e de Araguaina, no Tocantins. No Maranhão, os depoimentos foram dados a agentes do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia e, ainda no Pará, a funcionários do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará. Todos, no ano de 2007, no estado do Pará. Em geral, os depoimentos são individuais, têm apenas um depoente. Porém, alguns são prestados por dois, três e até quatro pessoas, sendo raras as mulheres entre os reclamantes. Ainda, em relação ao conjunto das informações recolhidas, é impactante observar que o número médio de pessoas envolvidas em cada declaração é de 17,5 sujeitos submetidos à condição de escravidão, ou seja, cada declaração prestada e posteriormente encaminhada às autoridades envolve, em média, mais de 17 trabalhadores (que permaneceram na unidade de produção, por ocasião da reclamação). Dados retirados de documento de trabalho da CPT mostram, entre 1996 e 2008, o envolvimento de 55.830 trabalhadores nas denúncias feitas naquele período. 6 CAMPANHA DA CPT CONTRA O TRABALHO ESCRAVO. Estatísticas em 03 out. 2008, em www.cptnacional. org.br 61 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Foram destacados alguns aspectos dentre os mais significativos e mais recorrentes observados no texto dos depoimentos: Trabalho temporário Anteriormente, foi feita menção à situação de proprietários rurais modernos, detentores de fazendas altamente mecanizadas, possuidoras de tecnologia de ponta, etc. quando se trata de caracterizar o empresário que, majoritariamente emprega mão de obra escrava no Brasil rural. No tocante à situação de vida e de trabalho daqueles que são vitimados, nem todos os que exercem funções na propriedade em que se encontra a mão de obra cativa são tratados da mesma forma. Quando o porta voz da empresa mostra ao visitante alojamentos limpos e bem equipados, alimentação e água de boa qualidade e respeito às obrigações trabalhistas, ele não está faltando com a verdade. O que acontece é que tais condições são facultadas aos trabalhadores permanentes, aos trabalhadores de escritório, aos técnicos e a outros trabalhadores que parecem “merecer” uma condição laboral diferenciada daquela que é destinada ao trabalhador braçal e temporário. Em outras palavras: equipamentos modernos, uso de tecnologia de última geração, dentre outros, não significam relações de trabalho também modernas naquelas propriedades. Assim é que as informações colhidas nos depoimentos estudados neste trabalho mostram que 44% dos trabalhadores que compõem este grupo permaneceram de 45 dias a 5 meses na propriedade, sendo 30% deles entre 2 e 4 meses, 44% entre 45 dias e 5 meses e 20% de 6 a 12 meses. Como se vê, é alta a frequência de mão de obra rotativa entre os trabalhadores. Neste grupo, entretanto, há exceções, como um trabalhador que está há seis anos na fazenda e outro há dezessete em situação de escravidão. Outra observação a fazer é que, em relação ao tempo durante o qual o trabalhador permanece escravizado: alguns deles, apesar da temporalidade de suas atividades nas fazendas, permanecem longos anos longe de suas famílias (SUTTON, 1994). Tal se dá, sobretudo, em razão do endividamento a que se fez referência anteriormente, que leva o trabalhador a permanecer ligado a um empreiteiro ou mesmo a um proprietário, trabalhando em troca de “casa e comida”, às vezes passando de uma fazenda a outra, ou de um gato a outro, por não conseguir receber o suficiente para saldar suas dívidas, na maioria das vezes fictícias, improváveis e impagáveis. 62 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Atividades A maioria dos trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo presta serviços temporários. A eles está reservado, não somente o trabalho sem proteção legal, o trabalho superexplorado, mas também, as tarefas mais árduas, que demandam maior esforço físico e que prescidem de níveis de instrução mais elevados. A grande maioria desses trabalhadores é analfabeta ou semialfabetizada7 restando-lhes, assim, o trabalho sem qualificação, o trabalho temporário, o trabalho informal. Como Bales (2001) observou na pesquisa que realizou em vários países do mundo, eles “[...] são usados no trabalho simples, não tecnológico, tradicional”(p. 19). Nos 90 depoimentos foram citadas 126 ocupações. Isto porque muito trabalhadores exercem diferentes atividades nas unidades de produção. Do rol de ocupações citadas, a grande maioria declarou trabalhar na atividade de roço8 na fazenda onde foi submetido ao trabalho cativo (46%). Eles assim denominavam o trabalho que faziam: roço, roço de mata virgem, roço de juquira, roço de capoeirão, derrubada e roço de pasto. Os que cuidam de cercas e de aceiros9 são em 10% e em seguida aparecem aqueles um pouco mais capacitados, os operadores de motos serra, que derrubam árvores operando uma máquina (9%). Em menor porcentagem, encontram-se, ainda, as seguintes ocupações: aplicação de agrotóxico, carvoeiro ou carbonizador, vaqueiro, carpinteiro, destocador, tratorista, plantador de milho, de capim e extrator de palmito, dentre outras. Endividamento O mecanismo da dívida é especialmente perverso, pois justifica a imobilização do trabalhador, na unidade de produção, o que faz com que a dívida aumente e que mais e mais se justifique a sua falta de liberdade. Vejamos o que faz com que o trabalhador seja cativo da dívida: a aquisição de bens e produtos no armazém que geralmente pertence ao proprietário da fazenda, ao gerente ou ao gato. Os locais de trabalho geralmente ficam distantes do povoamento, do comércio local e os trabalhadores não têm alternativa senão comprar alimentos, cigarros, remédios e até equipamentos de trabalho que os patrões são obrigados a fornecer, no chamado barracão 7 Pesquisa encomendada pela Organização Internacional do Trabalho, ainda não publicada, apresenta a situação educacional de trabalhadores regatados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do MTE, dentre outros aspectos. Ver, nesta obra, o artigo de Vieira e Bruno. 8 Pôr abaixo (vegetação), cortar, derrubar. Ferreira, (1999). 9 Vala construída entre a estrada e a cerca da propriedade, a fim de evitar o fogo, em caso de incêndio ou queimada. 63 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) da fazenda, sempre super faturados. Este sistema - conhecido desde os tempos da escravidão africana - persiste até os dias de hoje e é largamente comentado pelos autores dos depoimentos estudados. Em nossa pesquisa encontramos que 87% das informações sobre endividamento se referem às compras feitas na fazenda. Um dos trabalhadores afirma que quem estiver devendo o rancho, ou seja, a alimentação, fica proibido de deixar a fazenda, mesmo que por motivo de saúde... e, ainda, que os trabalhadores trabalham na empreita (tarefa); quando um trabalhador não realiza as atividades não consegue ganhar nem o salário mínimo e já fica devendo a diferença. Vale ressaltar que entre os trabalhadores prevalece a ideia de que quem deve tem que pagar e que o trabalhador, mesmo expropriado de seus mais elementares direitos, não pode se afastar da fazenda se “deve” ao patrão, ao gato etc. 10 Ameaças As agressões e ameaças que os trabalhadores sofrem nas fazendas contribuem para caracterizar o crime de trabalho escravo nos casos estudados, ao mesmo tempo em que representam desrespeito flagrante contra a condição humana dos trabalhadores e contra seus direitos fundamentais. No conjunto de depoimentos estudados, encontramos entre as referências a ameaças e agressões 59% de casos de conhecimento de existência de armas, presença de gato armado e presença ostensiva de armas, 15% de referências a ameaças de morte em caso de denúncia às autoridades e 10% de referências a agressões verbais, violação moral e humilhação, sendo estes itens considerados isoladamente. Essa observação supõe que nos casos anteriores estejam implícitas tais agressões. Foram mencionados, ainda, dois casos de agressão com arma de fogo por cobrança de salário, sendo que em um deles, o trabalhador teria sido assassinado. Há, ainda, casos de agressão física a menor de idade, ameaça de morte ao trabalhador que adoece, maus tratos e amedrontamento. Os trabalhadores contam que conheceram um trabalhador que desapareceu depois de ter dado queixa da fazenda e de um fazendeiro que contava casos em que teria assassinado pessoas, com a finalidade de impor medo aos trabalhadores. 11 10 Encontram-se referência a esta “prisão da alma” em Figueira (2004) e na pesquisa realizada a pedido da OIT, anteriormente referida. 11 A partir da observação de um conjunto de ações agressivas, violências, agravos e atos desrespeitosos, a CPT classifica as denúncias em três tipos: Tipo 1: Trabalho escravo caracterizado; Tipo 2: Trabalho escravo provável e Tipo 3: Super exploração grave. São considerados indicadores de prática de violência contra a pessoa: ameaça de morte, acidente de trabalho, agressão, danos, humilhação e assassinato, dentre outros aspectos. Ver CANUTO et al. (2008), p. 113-119. 64 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Transcrevemos um trecho de depoimento de dois jovens trabalhadores – de 24 e 16 anos: O serviço não está terminado, mas a turma não aguenta mais. Não receberam nenhum dinheiro, moram em barracão de lona no meio do mato, comendo farinha seca, pois a cantina do gato comeu todo nosso dinheiro. Há 3 a 6 menores trabalhando, entre 16 e 17 anos. O motivo da chamada é que ao reclamar seu acerto ao “gato”, um trabalhador de nome Zé recebeu dois tiros do irmão do gato (uma bala em cada perna), não se sabe se propositalmente ou por acidente. O gato não prestou assistência e tentou impedir que os dois denunciantes ajudassem. Eles resolveram levar o companheiro numa rede, andando por 34 quilômetros até o hospital. Reclamações Uma forma elucidativa de estudar o trabalho escravo como questão social em nossos dias tem sido a de procurar entender como os envolvidos nas situações – os trabalhadores, seus familiares, seus empregadores, gatos etc. – representam estas mesmas situações. Como os diferentes atores se referem à questão da saúde do trabalhador temporário, por exemplo, ou à questão dos seus direitos legais, à alimentação, à situação dos alojamentos etc.12 No levantamento das reclamações dos trabalhadores representados nas 90 declarações estudadas observa-se que perpassa uma mescla de lesão ou ferida corporal com lesão moral ou ferida moral, a presença da violência material e da violência simbólica que forma ou deforma consciências e que, muitas vezes leva a mais violência. A privação material não se esgota em si mesma, nesses casos. Ela vai além, ela atinge a autoestima do ofendido, “humilhado”, como é corrente no vocabulário desses trabalhadores. 13A retenção do salário tem dimensões que ultrapassam o comprometimento do poder de compra do trabalhador. A ausência de porta no recinto destinado às necessidades fisiológicas significa muito mais que a falta de um pedaço de madeira. Tudo isto tem uma dimensão moral que é preciso levar em conta. Compõe o rosto de uma economia moral cujo alcance pode, acredita-se, ser medido pelos riscos que os trabalhadores correm quando fogem, ou mentem para sair da fazenda e denunciar o patrão, ou quando encobrem a saída de algum companheiro.14 12 Ver ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007; DE CERQUEIRA et al. (2008). 13 Ver FIGUEIRA (2004), p. 34. 14 Ver GILLY, 1998; FIGUEIRA, 2004; THOMPSON, 1998; MOORE, 1987; PRADO, 2008. 65 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Neste item, a retenção de salário é a informação mais frequente, com 52% de referências (o patrão simplesmente não paga, ou paga aos poucos). Segue a esta, a menção à água suja, com 25%. Outras queixas são frequentes: o trabalhador é obrigado a comprar no armazém da fazenda, não recebe comida nos dias de descanso, como domingos ou dias em que se encontram doentes; não é fornecida carne (dizem que carne, só pescando ou caçando), trabalho sem folga semanal; trabalho sem equipamentos de segurança; o patrão dá carne podre ou de gado morto por doença, mudança na combinação feita no início do contrato; jornada diária excessiva (caso de trabalhador que começa às 3 e termina às 19horas). A quase totalidade afirma a inexistência de instalações sanitárias. São mandados a “fazer as necessidades” no mato. Em 18% dos depoimentos os trabalhadores se queixam do isolamento que sofrem no trabalho dentro da floresta. Acidentes de trabalho Dentre os 90 depoimentos aqui comentados, 22 deles mencionam casos de acidente de trabalho. Além desses, um trabalhador afirmou ter perdido um dedo e não ter recebido socorro; há referência a dois casos de envenenamento por agrotóxico, sendo que um teria redundado na morte do trabalhador e um caso de mordida de cobra. Migrações Um elemento importante para se entender a realidade do trabalho cativo no Brasil contemporâneo - quiçá no mundo também – é a presença de pessoas que migram de regiões empobrecidas em busca de melhores condições de vida. Em alguns dos municípios mais pobres do Brasil, a população masculina em idade produtiva praticamente se ausenta durante a maior parte do ano. São esses chamados bolsões de pobreza os maiores “fornecedores” da mão de obra carente de capacitação para atividades mais sofisticadas, desprovida de educação formal e moradora em locais onde não existe oferta de trabalho – nem mesmo o menos qualificado. No grupo de depoimentos estudados esta tendência se vê confirmada. A observação das informações constantes dos documentos analisados nesta pesquisa mostra que naquele grupo, 42% migraram do estado do Maranhão. Este dado confirma informações da OIT, que apontam naquele estado o maior contingente de pessoas escravizadas no Pará ao longo dos últimos anos. O segundo estado brasileiro a “fornecer” mão de obra para a escravidão 66 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas brasileira atual é o Piauí. 15 Estes dois estados brasileiros são responsáveis por 61% desta mercadoria macabra, segundo fontes da OIT, de 2005 e estão entre os mais pobres do país. 16 Em segundo lugar, encontram-se municípios do próprio estado do Pará como regiões de origem dos trabalhadores. São 27% do total de reclamantes que declararam terem sido submetidos ao trabalho escravo em regiões distantes de seus locais de moradia, mas dentro do estado onde residem. A porcentagem dos trabalhadores que foram escravizados no mesmo município onde moram é de quase 9%. Estudos afirmam de forma enfática que, ao longo da história dos povos, o sujeito escravizado tem sido estranho ao local onde sua força de trabalho é explorada, alguém que não mora no local onde é submetido ao trabalho forçado. As pesquisas empíricas realizadas atualmente dão conta de que este fato continua a ser observado e observável. 17 No universo de informações colhidas nos depoimentos trabalhados neste estudo, como se pode registrar a partir dos dados anteriormente apresentados, esta tendência segue vigente em nosso país. Considerações finais A análise do conjunto de depoimentos 2007 parece trazer à luz uma parte da questão do desrespeito aos direitos humanos e aos direitos trabalhistas de um contingente da população brasileira. Este, por falta de educação formal, de profissionalização e em razão da presença hegemônica de uma economia que cada vez mais prescinde do trabalho humano (hipertrofia do exército de reserva de mão-de-obra), se vê na contingência de trocar sua força de trabalho por um prato de comida e é impelida a migrar em busca do sonho de ter um emprego e receber algum dinheiro, mesmo que isto implique na perda da liberdade e na sujeição a humilhações. Observe-se que apenas recentemente este tema vem ganhando espaço e legitimidade, mesmo que há décadas o problema é denunciado e estudado. Isto significa, parece-nos, 15 Ver Prado, 2008. 16 Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para 2005 informam que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Maranhão era de 0, 683 e do Piauí, de 0,703. O maior IDH do Brasil encontra-se no Distrito Federal e era de 0,874. Estes dois estados brasileiros encontravam-se entre os nove de menor IDH do Brasil naquela ocasião. O IDH é uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação e esperança média de vida. É uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar de uma população. O índice foi desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, e vem sendo usado desde 1993 pelo PNUD no seu relatório anual. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3039&lay=pde> Acesso em: 05 fev.2009. 17 Ver Figueira 2004. 67 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) que muito ainda há que ser pesquisado e trazido à tona nos mais diversos campos da produção intelectual brasileira. O endividamento, a temporalidade do trabalho, as diversas formas de violência, as ocupações a que se dedicam os trabalhadores, a presença recorrente de determinados tipo de queixas, etc. levam a crer que, no campo das ciências sociais, da ciência do direito, da ciência econômica, da educação, das ciências da saúde, dentre outras, muito se pode estudar e contribuir para extinguir o crime do trabalho escravo. O estudo das ameaças impostas aos trabalhadores - quem ameaça, como ameaça, as formas como estes recebem as ameaças e de que maneira reagem às mesmas, as diversas manifestações de resistência - mais ou menos veladas -, por exemplo, são elementos que, se bem entendidos, podem contribuir para a criação de políticas públicas visando à resolução do problema. O mesmo se pode afirmar em relação à questão da temporalidade e da rotatividade do trabalho humano braçal em propriedades altamente mecanizadas e às formas alternativas de resolução da questão, respeitando-se os direitos dos trabalhadores. O mesmo raciocínio serve para o rol das reclamações apresentas pelos trabalhadores etc. Ao mesmo tempo, se observa que o mapa do trabalho escravo reproduz a geografia do cultivo dos produtos primários mais cotados no mercado de exportação brasileiro. As levas de trabalhadores rurais sem terra que migram Brasil afora seguem a rota da monocultura de exportação, das commodities que, das bolsas de valores dos grandes centros de negócios, jogam com a vida de trabalhadores pobres brasileiros e também de outros países. Referências ALMEIDA, A. W. B. O trabalho como instrumento da escravidão. Revista Humanidades. Brasília: UNB, 1988, n. 17. BALES, K. Gente descartável. A nova escravatura na economia global. Lisboa: Caminho, 2001. CPT. CAMPANHA DA CPT CONTRA O TRABALHO ESCRAVO. ESTATÍSTICAS EM 03 out.2008. s/l, s/d. Documento de trabalho. CANUTO, A.; LUZ, C. R. da S.; AFONSO, J. B. G.; SANTOS, M. M. (Coord.). Conflitos no campo. Brasil 2007. Goiânia: CPT Nacional, 2008. DE CERQUEIRA et al. (Org.). Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: Contribuições críticas para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. 68 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas ESTERCI, N. Escravos da desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI)/Koinonia, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999. FIGUEIRA, R. e PRADO; A.A. Um velho problema em discussão: o trabalho escravo por dívida. In: SYDOW: E MENDONÇA, M. L. (Org.). Direitos humanos no Brasil. 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Por diversas razões, a proposta inicial encontrou limitações, como se verá ao longo do texto, e outros aspectos foram acentuados. O recorte estabelecido na pesquisa abrangeu os relatórios das fiscalizações efetuadas no estado do Pará que constam no “Cadastro de Empregadores” do MTE, previsto na Portaria n°. 540/2004, conhecido como 1 Crime previsto pelo no Art. 149 do Código Penal Brasileiro (CPB) de 1940 que trata das condições análogas à de escravo; com nova redação. Ver nota 8. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Lista Suja (LS).2 Ter o nome no cadastro significa que o governo brasileiro considerou que naquele local houve trabalhadores mantidos em condições análogas à de escravo. A publicação do Cadastro se deu antes da Portaria, em novembro de 2003. O estudo abrangeu seis listas compreendidas entre esta data e dezembro de 2007: a 1ª lista e da 11ª (agosto de 2006) até a 15ª (dezembro de 2007). O universo referido de pesquisa das LS abrange 113 relatórios de fiscalizações realizadas entre 1996 e 2005. O artigo parte de um dos casos da LS, o da fazenda São Roberto, verificando as conexões do proprietário com outras unidades de produção e, a seguir, faz diversas considerações sobre o estudo realizado nas respectivas LS. O tema em questão A escravidão por dívida começou a ser estudada mais intensamente a partir dos anos 1970, especialmente em função das consequências do modelo de desenvolvimento implementado na Amazônia pelo governo militar com as chamadas frentes de “expansão” ou frentes de “pioneirismo” e o recrudescimento daquilo que era identificado como o sistema de peonagem.3 Há diversos estudos publicados sobre a escravidão antiga e contemporâ4 nea ; além de livros como depoimento, ensaio, romance, biografia.5 Neste estudo não revisaremos tais autores, o que foi realizado em outra ocasião (FIGUEIRA e PRADO, 2008, p. 91-100). Em documento do poder executivo é relevante a introdução da categoria em 1986 no próprio título de um de seus relatórios: Trabalho Escravo, que foi divulgado pela Coordenadoria dos Conflitos Agrários do MIRAD-INCRA (ALMEIDA, 1988, p. 67). Alguns anos depois, em 1992, o Governo Federal voltou a admitir oficialmente a existência do problema, através de uma resposta do embaixador Celso Amorim, na Organização das Nações Unidas, em Genebra, a uma denúncia da CPT. Também em 1992, o Fórum Nacional de Combate à Violência no Campo, promovido pela Câmara dos Deputados em Brasília, discutiu a escravidão, 2 A publicação, semestral, abrange o país, e, por ordem judicial, o nome da unidade de produção pode ser retirado definitiva ou temporariamente da LS. 3 Veja (Martins, 1981, p. 112-113). O debate acadêmico para tentar melhor explicar esse processo e os que o antecederam de entradas de gentes e ciclos econômicos sobre a região ainda são apresentados como “devassamentos” ou “ondas”. Sobre isso, cf. Horácio A. de Sant´Ana Júnior (2004, p. 62-64). 4 Entre outros autores: Abbagnano, 2000, p. 347; Gorender, 1978, p. 60-61; Vilela, 1997, p. 100-101; Martins, 1994, p. 13-14; 1999, p. 160-162; Bales, 2000, p. 19-22; Esterci, 1994; Esterci e Figueira, 2001; 2004; Castilho, 1999, p. 90. 5Davatz, 1980; Cunha, 1922; Castro, 1945; Audrin, 1946; Élis, 1987; 1956. 72 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas apresentou propostas para que se intensificassem e melhorassem as fiscalizações do MTE e da Polícia Federal, sugeriu uma maior clareza do art. 149 do Código Penal Brasileiro (CPB) e a complementação de diversos dispositivos legais, com a criminalização das condutas detectadas e maior rigor legal quanto às punições. Diversos projetos de lei tramitaram na Câmara dos Deputados, bem como no Senado, além das modificações no art. 149, em 2003. E, desde 1991, foi apresentado o Projeto de Emenda Constitucional (conhecida como PEC 438/2001) estabelecendo sanção de perda de gleba onde for constatado o trabalho escravo. Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso utilizou a categoria trabalho escravo em uma entrevista radiofônica, e apresentou como diferença entre a forma atual de escravidão e a do século 19, o fato de que o escravo do passado sabia quem era seu senhor. Contudo, ao se manifestar em documentos escritos e, ao criar um órgão responsável para combater o crime, o governo preferiu utilizar palavras mais genéricas como “trabalho forçado”.6 A partir de 2003, a postura do Estado sofre alteração. O presidente Luís Inácio Lula da Silva e seus ministros valeram-se regularmente da categoria trabalho escravo. Foi lançado o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e foram desencadeadas medidas para implementá-lo. Ao mesmo tempo, a categoria tornou-se cada vez mais frequente nas declarações do poder judiciário, aparece nos nomes de conferências e seminários promovidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil ou por outros parceiros. Por força de construção social, esta modalidade de trabalho, tem sido reconhecida como não apenas parecida, mas como escrava. Os que empregam a categoria consideram que sua utilização não obscurece ou confunde o seu significado.7 O caso da São Roberto Inicialmente, o grupo de pesquisa selecionou dez fazendas, entre as unidades de produção fiscalizadas, em 2002 e presentes na LS. Destas, a metade era composta por fazendas que envolviam o maior número de “vítimas” relacionadas por parentesco e ou amizade entre si e a outra metade por unidade 6 O Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), criado para o “combate ao trabalho escravo”, como acentuam a Secretária de Fiscalização do MTE e a Coordenadora do próprio GERTRAF (Vilela e Cunha, 1999, 37). 7 Em vista a nova redação do art. 149, a categoria tem sido compreendida por Procuradores e Juízes do Trabalho com um sentido amplo: basta haver condições degradantes de trabalho para ser tipificado como crime de “trabalho análogo à de escravo”. A Lei n. 10.803/2003 altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848 (dezembro de 1940), para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. 73 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de produção nas quais não se identificavam as mesmas relações. A tentativa era descobrir se havia diferenças nas formas de resistência das chamadas vítimas comparando um e outro caso. Apesar do esforço, as informações se mostraram insuficientes para conclusões satisfatórias. Diante disso, a pesquisa tomou como eixo de análise uma fazenda. Como nos relatórios de fiscalização constavam apenas as declarações dos trabalhadores aos auditores fiscais, o Grupo de Pesquisa utilizou como complementodepoimentos prestados à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outros documentos contidos no acervo do GPTEC. A escolha do estudo relacionado a São Roberto, no município de Santana do Araguaia, no Pará, incluído na primeira LS, se deu em função da presença do proprietário não apenas nesta, mas em outras situações de escravidão desde 1998. Além disso, envolvia um número significativo de pessoas, com relatos diversificados e boa parte vinda de um mesmo estado, o Maranhão. Quem é o fazendeiro Antonio Lucena de Barros, conhecido como Antônio Lucena ou Maranhense, era proprietário da fazenda São Roberto, em Santana do Araguaia, ou presidente do Conselho da Administração da empresa.8 Ele aparecia em diversos relatórios de fiscalização, também como proprietário da Matão9 e da Vale do Rio Fresco10; como “integrante” da Associação dos Fazendeiros do Vale do Rio Fresco11, que seria também o nome de uma fazenda; e como administrador da fazenda Santa Ana.12 Todas as cinco unidades de produção no Pará. Acrescidas a tais informações, que às vezes parecem confusas, o Maranhense era personagem em outras histórias, como aquelas das fazendas Garupa13 em 2002, São Roberto14 nos anos 1998, 2002 e 2004, e Vale do Rio Fresco, em 2003 e 2006. Influente e rico, o fazendeiro estaria envolvido com crimes financeiros, teria sido preso em 2003 por utilizar trabalho escravo, e 8 Ministério Público Federal/Procuradoria Geral da República (MPF/PGR) 1472/2003-85 (p. 85). 9 Ele teria vendido a fazenda Matão para a Agropecuária Vista Alegre que também foi fiscalizada em abril de 2002. MPF/PGR 1410/2003 – 73, MP. 92. 10 MPF/PGR 3144/2003-13. 11 MPF/PGR 1414/2003-51, p. 104. 12 Cf. ofício/Incra/SR(27) de 25 jul. 03, da Superintendente Regional/Incra/SR-27 in p. 124, doc MPF/PGR 1414/2003-51. 13 MPF/PGR 5927/2003-31. 14 Em julho de 2003 foi incluído na LS e foi retirado em dezembro 2007. 74 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas não estava só: seu pai, José Silva Barros, apareceu também como proprietário de Vale do Rio Fresco, que constava em LS.15 Antônio Lucena também foi acusado de participar de um sistema de lavagem de dinheiro com o banqueiro Daniel Dantas16 por meio do aluguel de terras para criação de gado.17 E ainda foi apontado, em depoimento à Procuradoria da República em 2001, como um dos “laranjas” do ex-deputado federal, senador e governador Jader Barbalho18 na atividade de extração de madeira.19 O problema A relação de trabalho é acompanhada por um conjunto de práticas tipificadas, conforme a autoridade coatora, como crime – manter pessoas em trabalho “análogo a de escravo”, cárcere privado, violência física, lesão corporal, assassinato, danos ambientais e fraude contra o sistema financeiro - e violações às leis trabalhistas – não assinar Carteira de Trabalho e Previdência Social, não recolher os direitos previdenciários, não pagar salário e férias, condições inadequadas de habitação, transporte, alimentação e segurança. No intuito de apurar denúncias oferecidas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Redenção e das CPT de Marabá e Xinguara20, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GM), composto por agentes do MTE, Polícia Federal e pela Procuradoria do Trabalho do Distrito Federal, realizou uma fiscalização, entre 5 e 20 de abril de 2002, em oito fazendas, entre elas a São Roberto e a Associação dos Fazendeiros do Vale do Rio Fresco.21 A equipe localizou 197 trabalhadores22 na São Roberto em uma empreitada que consistia em roço de juquira, desmatamento com motosserra e trator e 15 Em dezembro de 2004 foi incluída na LS e se mantinha ainda em julho de 2009. 16 Daniel Dantas, banqueiro, foi indiciado por crimes financeiros como evasão de divisas, lavagem de dinheiro, gestãofraudulenta e formação de quadrilha, em 2008. (www.globo.com, 27/04/2009) 17 Ele ainda teria vendido algumas de suas terras por 210 milhões para a Agropecuária Santa Bárbara, do grupo de Daniel Dantas. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,dantas-correrisco-de-perder-terras-que-comprou-no-para,210169,0.htm>. Acesso em 30 de julho de 2009, matéria de 22 jul.2008. 18 Jader Barbalho era também acusado de formação de quadrilha e desvio de verbas da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM. 19 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u67442.shtml>. Acesso em 19 jun.2009. Matéria de 24 fev.2005. 20 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 2. 21 MPF/PGR 1414/2003-51, p. 104. 22 Número de trabalhadores encontrados definido após análise do relatório de fiscalização, que indica o número de 186 empregados em seus autos de infração e 171 retirados ao relatar a ação (MPF/PGR 1472/2003-85, p. 3). 75 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) construção de cercas.23 Entre as vítimas, havia 15 mulheres e três menores de idade. Ora, a presença dos menores no trabalho insalubre de desmatamento violava as leis.24 Os trabalhadores estavam alojados em barracas cobertas de plástico, sem paredes laterais, banheiro, proteção contra as intempéries do tempo e ataques de animal, local para tomar banho e acesso à água potável. A fazenda não oferecia, como determina a lei para as frentes de trabalho com dez ou mais trabalhadores, treinamento em segurança, higiene do trabalho, prestação de primeiros socorros e ainda, dificultou o livre acesso do Agente de Inspeção às dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista. Diante disso, os funcionários do GM lavraram 13 Autos de Infração.25 A situação encontrada foi considerada de trabalho escravo, fraude à legislação trabalhista e descumprimento às normas de proteção ao trabalho.26 Vale considerar a existência ainda na São Roberto de 13 trabalhadores acidentados e com malária27 e a fazenda não lhes disponibilizou atendimento médico, remédio ou transporte em caso de urgência. A situação se agravava pela ausência de equipamentos de proteção individual – botas, capacetes e mosquiteiros – e de condições sanitárias – não havia banheiro e nem água potável para consumo. As atividades desenvolvidas corroboraram as declarações de que havia acidente de trabalho, com feridas feitas por galhos e troncos de árvores, além das reclamações de dores no corpo por excesso de esforço físico. Em 2003, na fazenda Vale do Rio Fresco28, em Cumaru do Norte, foi constatada a presença de 264 trabalhadores do Tocantins, Maranhão e Piauí, em condição análoga à de escravo. O fato justificou a prisão de Antonio Lucena, pela Polícia Federal, no sul do Pará, por determinação do juiz substituto da Justiça Federal de Marabá no Pará, Herculano Martins Nascif. Outras cinco pessoas29 foram presas com ele, todas acusadas de pertencer a um grupo criminoso com atuação nos estados do Tocantins, Piauí e Pará. As 23 Deste total, 15 eram cozinheiro (a)s, 11 mulheres e 4 homens. 24 Art. 7º, XXXIII da Constituição Federal de 1988. 25 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 13-14, 67-79. 26 Idem, p. 18. 27 Ibidem, p. 116. 28 MPF/PGR 3144/2003-13. 29 A prisão foi realizada em 27/fev. 2003. Cf. a denúncia: “Eles são acusados também por formação de quadrilha, frustração de direito assegurado por lei trabalhista, sonegação previdenciária, exposição da vida e da saúde de pessoas a perigo e destruição de floresta considerada de preservação permanente” Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ajb/2003/02/28/ult740u9318.jhtm>. Acesso em 31/jul.2009, matéria de 28/fev. 2003; e, <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/137955/fazendeiros-presos-pormanter-trabalho-escravo>. Acesso em 17/jun.2009, matéria de 28 mar. 2003). 76 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas prisões foram pedidas por um grupo de procuradores federais articulados nacionalmente.30 No relatório de fiscalização da Fazenda Vale do Rio Fresco a equipe do GM destacou que: [...] há mais de um ano, fomos portadores de um dossiê feito pelo Vereador Pedro Tindô, de Redenção, em que faz graves acusações sobre o “Maranhense” e outros. “Maranhense” [...] é de grandes negócios na região: imobiliária, agropecuária, rede de televisão (Globo) e outros. É conhecido como o homem que mais desmata na região de Cumaru do Norte, Santana do Araguaia e São Félix do Xingu; valeria uma devassa fiscal (p. 7). Imobilização sob pretexto de dívida Durante a empreita, dado o tamanho da fazenda (13.068 ha.) e sua distância em relação à sede municipal, o direito de ir e vir dos trabalhadores foi prejudicado. Entre o local do trabalho e a cidade de Redenção, o trabalhador precisava percorrer 320 km. 31 Outros fatores limitaram a saída dos trabalhadores, como a existência de fiscais (capatazes) e gatos (empreiteiros) armados32 e a falta de pagamento, prometido somente para o final da empreita.33 Porém, contrapondo a declaração da maioria do grupo, um trabalhador afirmou que se alguém quisesse sair, receberia o pagamento.34 Um dos trabalhadores – libertado anteriormente da Fazenda Castanhal, no Tocantins, em dezembro de 2001, pelo MTE – já havia prestado serviço na São Roberto em 2001 por quatro meses e declarou: “[...] não valeu a pena, mas voltei porque não tinha opção [...] nunca sofri ameaça, nem agressão física.”, mas destacou que o fiscal andava com uma espingarda. Também relatou que, para sair da fazenda, teria que ir de carona no carro da unidade de produção até Redenção e esperar uns dez dias para receber e, nesse ínterim, seria ele próprio responsável pelo pagamento do hotel.35 Nas declarações dos trabalhadores não é relatado diretamente o sistema de dívida com o cerceamento do direito de ir e vir, apesar de haver o relato 30 Constam como procuradores federais na ação: Mário Lúcio Avelar (Tocantins), Raquel Dodge, Ubiratan Cazetta (Pará), pelo procurador do Ministério do Trabalho, Lóris Pereira Júnior e pela subprocuradorageral da República e procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Maria Eliane Menezes de Farias. 31 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 25. 32 Idem, p. 211. 33 Ibidem, p. 118. 34 Ibidem, p. 121. 35 Ibidem, p. 139. 77 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) acerca do gato Arnaldo36, por exemplo, que comprava as roupas, botinas, fumo e remédios e descontava, posteriormente, de seus salários. É notável o destaque dado ao não recebimento do salário por meses, a falta de socorro, e a compra dos materiais necessários na cantina para posterior desconto no salário, prática conhecida como sistema de barracão ou truck system, mecanismo relatado como dívida pelo Grupo Móvel. Um exemplo de contraponto é o das declarações dos trabalhadores da Fazenda Rolemaq37, que afirmaram serem impedidos de sair antes de saldar a dívida contraída na cantina. Nos dois casos, embora o meio utilizado para manter o trabalhador na fazenda seja idêntico – a dívida – é possível identificar uma diferenciação no trato e percepção do problema. No que se refere à Fazenda Boa Esperança38 – localizada em Canaã dos Carajás e fiscalizada em dezembro de 2002 – outra estratégia era utilizada para imobilizar os trabalhadores, a distribuição regular noturna de bebida alcoólica. Ademais, eles só poderiam sair da fazenda após o término de todo o serviço, quando então receberiam seus pagamentos. Quem denuncia Para que um crime seja punido é necessária uma investigação. Nos casos de trabalho escravo, em geral existe a denúncia e pode ou não haver fiscalização. A CPT, por exemplo, lamenta que o expressivo número de denúncias que apresenta não é alvo de fiscalização. Mas também, há fiscalização que não é fruto da denúncia. Pode ser resultado de uma ação regular, preventiva ou acidental. E, às vezes em uma mesma operação, há a denúncia e o acaso. A denúncia chega ao conhecimento do MTE, através da pessoa prejudicada ora por pessoas, ora por instituições que as obtiveram através de trabalhadores que viveram o problema, presenciaram ou souberam por terceiros. Em um levantamento nos arquivos do GPTEC, quanto ao período compreendido entre 1972 a 2009 no Pará, se constata que o MTE acolheu denúncias de diversas fontes. Os trabalhadores, em vez de irem direto ao MTE, em muitos casos procuraram antes algum órgão público – IBAMA, Polícia Civil e Federal, Ministério Público Federal, Cartório, Promotoria e Câmara Municipal, Conselho Tutelar –, a sociedade civil – STR, Diocese e Centro de 36 Este gato era conhecido como “Grande” e arregimentava vítimas em Redenção/PA. 37 Localizada em Água Azul do Norte/PA, a fazenda foi fiscalizada de abril a maio de 2003. Foram 13 os trabalhadores libertados (MPF/PGR 4651/2003-54, p. 5). 38 Propriedade de José Braz da Silva (na época prefeito da cidade de Unaí/MG). MPF/PGR 4627/2003-35, p. 116. 78 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) – em especial, a CPT. Quanto à fiscalização realizada na fazenda São Roberto, houve uma denúncia coletiva, formulada e apresentada no Pará pelo STR de Redenção, e pela CPT de Marabá e Xinguara. Em diversos casos, para que a fiscalização seja eficiente, um dos trabalhadores denunciantes acompanha os auditores como aconteceu na São Roberto. O homem participou de empreitada e, por isso, conhecia o local de desmatamento. Contudo, no caminho para a São Roberto, como passavam pela fazenda Associação dos Fazendeiros da Vale do Rio Fresco, decidiram fiscalizar também esta unidade de produção, o que gerou um problema. A notícia se difundiu e os fazendeiros se prepararam para dificultar a ação dos auditores e da equipe nas demais propriedades, conforme constata o relatório assinado pela coordenadora da equipe.39 No ano anterior, em 2001, o GM tentou realizar uma ação na São Roberto. O insucesso se deu por ter se atrasado e não dispor de aparato de segurança compatível, segundo um dos auditores. O resultado da ação, de fato, depende de uma série de elementos, inclusive da rapidez com que ela é realizada e do proprietário não dispor de tempo para desfazer os vestígios do crime. Em que situação há a denúncia? Em relação à Fazenda Consolação40, fiscalizada em 2002, a decisão e o modo de formular a denúncia surgiram inesperadamente. Dois jovens, de igual faixa etária, admitidos no mesmo dia, brigaram entre si e foram dispensados. Eles saíram a pé e no caminho encontraram um trabalhador libertado pelo GM em outra propriedade.41 O homem, mais experiente pelo contato que havia tido com as autoridades, lhes apresentou um folheto da campanha de erradicação do trabalho escravo da CPT. Os dois tinham agora novos dados sobre o que era considerado trabalho escravo e o caminho mais claro para agir. No caso, a denúncia foi realizada por dois denunciantes, mas poderia ser por uma pessoa ou por um grupo maior, como aconteceu contra a fazenda Señor, de Dom Eliseu, no Pará.42 Dezessete adultos, acompanhados de seis crianças, fugiram e foram ao CDVDH de Açailândia, no Maranhão, onde apresentaram uma queixa contra a unidade de produção. Salvo uma 39 “Fomos desestimulados (a prosseguir nas fiscalizações) pelo Sr. José Eustáquio Caetano Teixeira, responsável pela Associação, ele e alguns fazendeiros, afirmavam que ao saberem da nossa presença as fazendas estavam sendo esvasiadas” (sic). De fato tiveram dificuldades em localizar os trabalhadores que haviam sidos deslocados para outras áreas, pois havia árvores e troncos interditando propositalmente a estrada, como revelam fotos do relatório (MPF/PGR 1472/2003-85: p. 17ss). 40 Localizada em Brejo Grande do Araguaia e propriedade de José Ribamar Oliveira (MPF/PGR 4655/200352). 41 Da fazenda do Zucatelli, cf. depoimento concedido à CPT de Marabá. 42 MPF/PGR 7957/2003-82, p. 100-111. 79 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) pessoa do Piauí, os denunciantes eram do Maranhão. Quanto aos adultos, três eram do mesmo município, Açailândia, e cinco de uma região próxima, Itinga; da região central do estado, uma pessoa era de Pio XII, outra de Esperantinópolis, duas de Altamira e três de Alto Alegre; do norte, uma de Encruzo. Como eram do Maranhão e alguns do mesmo município, poderiam ter construído relações mais próximas de amizade e, por isso, controles sociais mais profundos, noções de fidelidade e responsabilidade mútua maiores. Dominavam uma mesma tradição. Eram de certa forma estabelecidos entre si, mas outsiders43 em relação ao Pará de onde vinham. Lá eram imigrantes temporários, estavam em trânsito, e não tinham a quem buscar socorro. Estranhavam e eram estranhados. Diversas pesquisas demonstram que indignar-se e formular uma denúncia não é algo simples para os trabalhadores; principalmente quando são oriundos da mesma região e não apenas pela exposição física a retaliações. Fugir da fazenda porque se tem uma dívida pode ser considerado um ato de desonestidade, de roubo e obrigaria o fugitivo a ter que se explicar para si, para os parentes e conhecidos. E situação menos complicada se dá quando o trabalhador não conhece nem é conhecido; quando não precisa prestar contas morais para ninguém e os riscos físicos forem menores. Ele tem a liberdade de recompor seus valores e construir um novo jeito de ser compreendido e aceito.44 No caso da Señor, havia uma relação de conhecimento entre alguns do grupo, o acontecimento que gerou a indignação e desencadeou motivações até para a fuga, foi a suspeita de que alguns teriam roubado pimenta. Dois foram presos e interrogados. Até então os trabalhadores aparentemente estavam tranquilos, inclusive alguns estavam na fazenda havia dois anos. Contudo, a violência moral e física sofrida, agravada pela presença de menores e mulheres, contribuiu para a atitude do grupo.45 Rede de aliciamento Há pessoas atraídas por promessas que emigram do local onde moram, em companhia de amigos e parentes, para outras regiões do país ou do exterior; outros, vão sós, sem relações de parentesco, compadrio, amizade ou vizinhança anteriores estabelecidas. Nos casos estudados, elas foram 43 Empregando uma categoria cara a Elias e a Scotson (2000). 44 Sobre as bases sociais que justificam a indignação, veja Moore, 1987 e Figueira, 2004. 45 Entre as 153 vítimas, havia 18 menores e 48 mulheres. (MPF/PGR 1472/2003-85, p.2 e 106). 80 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas aliciadas46 especialmente no nordeste, para atividades no Pará ligadas à pecuária (roçar, derrubar florestas, plantar capim, limpar pasto, erguer, recuperar cercas ou proteger as cercas e os pastos do fogo), a fruticultura (extração, colheita ou beneficiamento de açaí, palmito e pimenta) e a carvoaria (corte de madeira, abastecimento de forno, carbonização, retirada e ensacamento do carvão)47 ou para executar diversas dessas atividades ao mesmo tempo no Pará. Uma vez nos imóveis, os recrutados em princípio para sair devem pagar o “abono” eventualmente recebido no ato do recrutamento, os gastos com a viagem e a alimentação e os instrumentos de trabalho adquiridos em uma cantina na própria fazenda, onde os preços superam a remuneração prometida. Sair depende de fatores, tais como a responsabilidade moral dos recrutados com a dívida, as ameaças psicológicas ou físicas, a distância entre o local do trabalho e o de recrutamento, a eficiência do sistema de coerção para “imobilizar” o trabalhador. Longe de casa, de parentes, amigos e conhecidos que poderiam apoiá-lo, o aliciado fica mais vulnerável a todo tipo de pressão e exploração. Importante considerar aqui a rede de aliciamento que fomentava a empreitada na São Roberto. Baseado em declarações das vítimas, foi possível identificar a atuação efetiva de três gatos, Alacides, Iron e Arnaldo. Entretanto, um dos trabalhadores afirmou também conhecer outros dois gatos, Gonzaga e Cantô, porém não foi encontrado outro registro acerca destes no relatório.48 Os trabalhadores da Fazenda São Roberto foram aliciados em Redenção, Pará, João Lisboa, Balsas e São Raimundo das Mangabeiras, Maranhão. O gato Iron, que já havia sido indiciado no Inquérito Policial instaurado durante a fiscalização na Fazenda Rio Dourado arregimentava os trabalhadores em Redenção, Pará.49 Enquanto Alacides realizava suas contratações geralmente no Maranhão, de onde era natural, apesar de residir em Redenção, aonde também recrutava trabalhadores – pelo menos cinco50 destes teriam traba46 O aliciamento de trabalhadores de uma região para outra do território nacional é crime previsto pelo CPB, art. 207, caput e § 2º. 47 Sobre o tema da carvoaria, cf. Elizabeth Dias, 2002, p. 272. 48 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 20 e 127. 49 Idem, p. 25. 50 Os trabalhadores, em um grupo composto por 51 pessoas, foram arregimentados em Estreito e Imperatriz, Maranhão, e levados pelo gato Altamira, para a Fazenda Matão. Com base nas declarações destes trabalhadores, constata-se que a permanência na unidade de produção foi de cerca de três meses. De acordo com um dos trabalhadores, não houve saldo, pois “a cantina comeu tudo”, e ainda ficou sem receber por oito alqueires. 81 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) lhado na Fazenda Matão, supracitada. Além disso, um grupo de cerca de 40 pessoas foram contratadas por ele em Balsas/MA. Uma prática comum no aliciamento é o engodo – promessas de boas condições de remuneração e trabalho para atrair a vítima –, como afirmou um menor de idade libertado na São Roberto. Segundo ele, a proposta de pagamento foi de R$ 200,00 e ao chegar à empreitada mudou para R$ 100,00.51 Em declaração, o gato afirmou que “quando vai arregimentar o pessoal no Maranhão fala o valor aproximado do que cada um vai ganhar, sendo combinado o serviço e o preço efetivamente pago quando chega à fazenda”.52 Um dos elementos primordiais que aprisiona o trabalhador é a dívida. Em geral, começa no aliciamento – o chamado adiantamento ou abono. A partir desse ponto ele é submetido a um sistema de crescente endividamento. No que tange à São Roberto, os adiantamentos foram descontados das verbas rescisórias dos libertados.53 Contudo, não foi possível identificar quais foram considerados, se os referentes à cantina ou aos pagamentos já realizados, pois alguns trabalhadores receberam parte da remuneração antes da fiscalização. Em relação à fazenda Rolemaq, a fiscalização não permitiu que fossem efetuados descontos irregulares no salário dos empregados, somente os adiantamentos feitos em moeda corrente foram subtraídos do total a receber.54 Cabe observar, que esta decisão do GM com relação à São Roberto – o que também se repete em outras55 fazendas – é uma contradição, que implica na legitimação do sistema de endividamento criado pelas UP. Uma vítima, que afirmou ter sido aliciada por Alacides com um grupo de 11 pessoas, relatou que sua conta do hotel e de refeições foi paga pelo gato, como forma de adiantamento. Na empreitada ficou sob a coordenação do gato Daniel, com quem acertou trabalho livre, pois receberia gratuitamente dele a alimentação e a foice, porém sua remuneração era menor – o que pode indicar um desconto indireto referente à alimentação. Ele fazia retiradas na cantina com outro gato, o que aumentava sua dívida. No momento da fiscalização o trabalhador não tinha ciência do saldo devedor e não havia recebido nenhum valor pelo serviço.56 51 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 95. 52 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 99. 53 MPF/PGR 1472/2003-85, Ibidem, p. 252-415. 54 MPF/PGR 4651/2003-54, p. 10. 55 Como por exemplo: a Fazenda Rio Tigre, localizada em Santana do Araguaia, e fiscalizada de 16 a 22 de junho de 2004; a Fazenda Cinco Estrelas, localizada em Marabá/PA, e fiscalizada em agosto de 2002. 56 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 168. 82 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Por outro lado, os trabalhadores coordenados por Alacides, em sua maioria, estavam sob o sistema cativo, quando a alimentação é descontada da remuneração. Segundo declaração, este gato era uma pessoa conhecida nos municípios de aliciamento do Maranhão. Diante disso, o controle das vítimas sob sua responsabilidade era feito “por cabeça”, não havendo registro dos trabalhadores. O gato declarou que “a maioria dos trabalhadores é conhecida, não sendo preciso haver anotações do trabalho feito ou do valor combinado”.57 Obstáculos ao grupo móvel No que tange ao momento da ação do GM na fazenda, os auditores fiscais ressaltaram a falta de cooperação tanto do gerente, dos gatos e advogados da fazenda, quanto do próprio fazendeiro. O que ocorreu de forma distinta na Fazenda Olivence58, fiscalizada em fevereiro de 2003, onde não houve resistência à atuação do GM, entretanto, a presença de repórteres de um jornal de circulação local chamado “A Notícia” foi considerada como “fato estranho” pelo GM, pois aqueles fotografavam o “rosto” de auditores fiscais e trabalhadores. Ademais, o jornal “Correio de Tocantins” escreveu notas hostis em relação à fiscalização móvel.59 Outro fato relevante foi ressaltado na fazenda Boa Esperança pelo GM. O filho do proprietário não esboçou “sentimento de humanidade pelo trabalhador doente que estava na sua frente relatando a desgraça de sua vida” (p.102) e resistiu fortemente a cumprir as exigências impostas pelo Ministério Público do Trabalho. A situação se modificou quando o Procurador ameaçou levar os fatos à imprensa. Só então o filho do fazendeiro assinou o Termo de Ajustamento de Conduta proposto. A administração da fazenda São Roberto tentou esconder os trabalhadores e os equipamentos de fiscalização e impediu o acesso dos fiscais do trabalho aos locais aonde as vítimas viviam, por meio da obstrução da estrada com troncos e galhos de árvores. Também foi apontado pela coordenadora da fiscalização o “total desrespeito” em relação ao horário da reunião por parte dos representantes da fazenda, além das tentativas de pagar o mínimo possível aos trabalhadores. 60 57 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 98. 58 Fazenda localizada em Curionópolis/PA, propriedade de Carlos Gilberto de Oliveira Barreto (MPF/PGR 2344/2003-59). 59 MPF/PGR 1472/2003-85, Idem, p. 3. 60 MPF/PGR 1472/2003-85, p. 20, 23-25. 83 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Em um dos momentos de tensão, o sub-coordenador do GM, se retirou “exasperado” por haver “falta de ética e respeito ao que fora acordado”. Aliás, assinala o documento que também os “trabalhadores” se consideravam “desrespeitados” pelos advogados e pelo gato da empresa, pois lhes foi oferecido uma proposta (150 reais) para que ficassem quietos e se mantivessem escondidos da fiscalização. A conduta de um dos advogados da empresa tinha precedente. Também em outra fazenda – a Rio Dourado –, com a participação do mesmo advogado, trabalhadores foram subornados para se retirarem da propriedade antes da chegada do GM. O Relatório final descreve o clima entre as partes do conflito: Mais uma vez reunidos no Sindicato, os advogados (da fazenda) compareceram na hora do almoço sem proposta concreta. Tudo parecia uma brincadeira de péssimo gosto. Acostumados com as peças da peripécias do Dr. João Roberto que posterga sempre, usa de ironia e até de uma boa dose de cinismo para emperrar as negociações possíveis, nosso Grupo tomou-se de certa apreensão. Víamos com apreensão a ansiedade e a insegurança dos trabalhadores que estavam permanentemente sendo molestados pelos “gatos” e alguns funcionários da fazenda para alterarem seus depoimentos, para desistirem de seus direitos e toda uma gama de chantagem. Além disso, o prazo para o pagamento, estabelecido no TAC61estava vencendo e eles apostavam no depósito em consignação, de apenas um salário mínimo. (MPF/ PGR 1472/2003-85, p. 21-22). Ainda merece atenção a falta de segurança sentida pelos trabalhadores encontrados e também por parte do próprio grupo de fiscais do MTE. De acordo com documento da CPT/Xinguara, de 26 de abril de 2002, o GEFM ficou isolado, sem o apoio necessário. E enumera os problemas: Ausência de delegado da Polícia Federal, o que inviabilizou flagrantes de vários crimes, como o trabalho escravo, prisão do fazendeiro e de seus cúmplices; Ausência do IBAMA62, o que inviabilizou flagrante de crime de extração ilegal de mogno; Saída antecipada do Procurador de Trabalho que fragilizou a atuação do Grupo Móvel; Saída antecipada de alguns policiais federais, o que inviabilizou outras operações de libertação de 61 Termo de Ajuste de Conduta. 62 O IBAMA realizou uma vistoria na Fazenda São Roberto, em 10 de abril de 2003, onde foi constatado desmatamento em uma área de 3.112 hectares, destes aproximadamente 218 hectares eram área de preservação permanente. O que mostra, apesar das fiscalizações do GEFM realizadas anteriormente, que Lucena de Barros continuava a infringir a legislação vigente. 84 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas trabalhadores que continuavam escravizados na mesma fazenda e em várias outras; Ausência total do Ministério Público Federal e Estadual. Certamente, estes foram fatores que comprometeram a ação do GM e que reforçaram o cenário de insegurança no qual os trabalhadores viviam e do qual seriam libertos. Diante desse quadro, eles receberam um valor inferior ao combinado. Caso contrário, permaneceriam em Redenção, aguardando o pagamento, sem um aparato de proteção legal. Deve-se acrescentar a isso, as limitações físicas e psicológicas dessas vítimas escravizadas, que antes de serem libertas, passaram mais de 45 dias na fazenda, sem receberem seus salários, em péssimas condições de sobrevivência, algumas doentes e acidentadas, isoladas na mata. Quem é o trabalhador Financiados pela OIT, pesquisadores e colaboradores do GPTEC estudaram o perfil dos diversos atores envolvidos com o trabalho escravo. No transcurso de operações do GM, ouviram 121 trabalhadores e 7 empreiteiros. Posteriormente, 12 empregadores. Entre os aspectos assinalados pelos pesquisadores, percebe-se que geralmente vítimas são pessoas provenientes de localidades de acentuada pobreza, desempregadas, 62% tinham filhos, 18% eram analfabetos e 45% “analfabetos funcionais, ou seja, tiveram menos do que 4 anos de estudo”. Quanto à distribuição etária: 3% tinham menos de 18 anos; 45% de 18 a 29 anos; 42% de 30 a 49 anos; 10% de 50 anos ou mais. As mulheres correspondiam a 4% do total de libertados. No que se refere à posse de documentos pessoais, apenas um estava sem “identificação”. Entre os analfabetos, 32% não tinham título de eleitor e CPF (BRUNO, 2007, p. 24-28). Predominavam entre os trabalhadores as “atividades de limpeza e roço de pasto (59%), seguidos da derrubada (29%), catação de raiz (28%), lavoura de café (20%), cana (19%) e algodão (19%)” e 10% já haviam sido libertados pelos grupos móveis anteriormente” (Ibidem 2007, 51-59). Naquilo que concerne ao aspecto profissional, não foi identificada alteração entre as gerações. A maioria dos pais (78%) trabalhava em área rural; sendo 69% destes, lavradores, e 8 %, vaqueiros e garimpeiros (ibidem, 2007, p. 37-39). [...] o trabalho escravo atual é precedido pelo trabalho infantil. Praticamente a totalidade dos entrevistados (92%) iniciou sua vida de trabalho antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a trabalhar é de 11 anos, sendo que 40% iniciaram antes desta idade. Na 85 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) maioria dos casos (69%) o trabalho infantil era trabalho familiar. No entanto os demais trabalhavam com a família para um patrão (8%) ou exclusivamente para um patrão (20%). (Ibidem, 2007, 46-47). Ao retomar a história da São Roberto deve-se destacar que alguns haviam sido libertados, anterior ou posteriormente, em outras empreitadas na região do Pará, o que denota a fragilidade das condições econômico-sociais das cidades nas quais eles viviam. Mesmo constando na LS 186 pessoas escravizadas, só tiveram rescisão de contrato 171 trabalhadores. Vale considerar o fato de se tratar da 1ª LS, divulgada em 2003, que indica o número de trabalhadores prejudicados e não libertados, como as que a sucederam. Ademais, posteriormente à leitura dos diversos relatórios das fazendas listadas nesse documento, verificou-se que, na maioria dos casos, o número de trabalhadores prejudicados contemplava os escravizados e os permanentes na unidade de produção, que em geral não são considerados incursos como vítimas no Art. 149. No que se refere a esta fazenda, eram dez os trabalhadores fixos, incluindo dois advogados, João Roberto Dias de Oliveira e Álvaro Roque Siliprandi – que também advogaram para a Fazenda Rio Dourado63 em 2001 – e uma preposta, Virgínia Márcia Machado de Souza. Resultados preliminares da pesquisa O caso da São Roberto revela as relações complexas estabelecidas entre proprietários, seus prepostos e os trabalhadores; revela tensões entre aqueles e funcionários públicos. Contudo, outros dados podem ser identificados quando se investiga e se debruça sobre as demais unidades de produção. Foram identificados e cadastrados, entre as 113 propriedades do universo da pesquisa do GPTEC, 5.070 trabalhadores escravizados, 4.501 libertos; do total dos escravizados, 167 eram menores; 274 eram mulheres; nove pessoas foram presas nas operações – um pistoleiro e oito proprietários que exerciam também a função de gato. As fazendas fiscalizadas em 2002 e 2003 foram as que mais pessoas foram libertas; respectivamente, 1.113 e 1201; e o maior número de operações, respectivamente 26 e 30. Os anos 1998 e 2005 foram aqueles com menor número de escravizados identificados nas operações cadastradas: 91; e, libertos, respectivamente, 44 e 88 pessoas. 1997 e 1999 tiveram o 63 Localizada em Cumaru do Norte/PA, esta unidade de produção é de propriedade da Agropecuária Rio Largo Ltda. A fiscalização mencionada ocorreu em março de 2001, quando 54 trabalhadores foram libertos MPF/PGR 1580/2003-58. 86 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas menor número de unidades de produção inseridas no cadastro, apenas duas e uma respectivamente. Entre 1995 e 2007, o GM fiscalizou no país 1.683 propriedades e encontrou trabalho escravo em 624 (37 %). Efetuou 503 fiscalizações no Pará e constatou o crime em 116 (44,44%).64 Deixou de fiscalizar boa parte das denúncias porque os dados recebidos eram insuficientes ou por qualquer outra razão. A seguir apresentamos alguns resultados sintéticos do estudo: A. Demora na inclusão na LS.65 De 1995 a 2006, das 269 fazendas fiscalizadas no Pará e consideradas como envolvidas em trabalho escravo, conforme pode ser apreendido na relação dos imóveis nos quais houve libertação de trabalhadores66, 153 (56,87%) não entraram até dezembro de 2007 na LS. Somente depois de tempo relativamente longo, decorrido entre a fiscalização e os trâmites internos no próprio ministério, houve a inclusão na LS: 58 fazendas demoraram uma média de 2,8 anos; ou 33,8 meses. Esta pode não ser necessariamente a média nacional, na opinião de Marcelo Campos, Coordenador Nacional do GM. O Pará, por razões diversas – pressões políticas locais, desatenção da autoridade – estava entre os estados com maior morosidade na inclusão do nome das unidades de produção na LS; B. Reincidências no crime. Foi constatado que o mesmo trabalhador pode ser libertado em fazendas diferentes. Por exemplo, dos 50 trabalhadores escravizados na fazenda Rio Liberdade67, em Santana do Araguaia, em 2004, cinco tinham sido escravizados e libertados em outras propriedades. Um na fazenda São Roberto; dois, na Monelo68; um, na Santana, e outro, na Vale do Rio Fresco. Também é perceptível que entre as unidades de produção inseridas nas LS, cinco constam mais de uma vez, por incorrerem novamente no crime. Alguns proprietários, em torno de nove, aparecem mais de uma vez na LS, como os citados a seguir: Antônio Lucena de Barros possui duas fazendas; Celso Chuquia Mutran, as fazendas Baguá69, em Eldorado dos Carajás, e Castanhal Cabaceiras70, em Marabá, e Celso Chuquia Mutran tem parentes envolvidos na relação da LS – Aziz Mutran Neto, Délio Chuquia Mutran, 64 Vide Conflitos do Campo da CPT do mesmo período. 65 As Superintendências Regionais do Trabalho poderiam ter parte de responsabilidade pelo atraso na inclusão das unidades de produção na LS, segundo um funcionário do MTE. 66 Vide Conflitos do Campo da CPT do mesmo período. 67 TE.PA. Rio Liberdade 04.1.1. 68 TE.PA. Monelo: 05/4.10. 69 MPF/PGR 9787/2003-71. 70 MPF/PGR 7142/2003-01. 87 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Evandro Chuquia Mutran, Helena Chuquia Mutran – e não é o único que tem parentes nesta situação. C. Limites dos relatórios e mudanças de forma. Até pelo menos 2002, o número cadastrado de libertos nem sempre coincidiu no próprio relatório de fiscalização com o número anunciado na relação da LS. Faltou a relação completa dos trabalhadores, distinguindo os libertos dos não libertos. Nem sempre o relatório assinala a existência de trabalhador idoso na atividade. Os primeiros relatórios têm forma irregular, há casos em que falta um relato introdutório que sintetize a ação, não obedecem a critérios mais homogêneos, são imprecisos e dificultam a análise, ao contrário dos relatórios dos anos seguintes. Aos poucos, foram sendo superadas tais limitações e as equipes já elaboraram relatórios com um padrão informativo mais claro, mesmo se a ordem das informações varia. Em geral, nos relatórios constam os seguintes itens: composição das equipes; relatório de fiscalização71; fotografias; comunicação de acidentes de trabalho; autos de infração; termo de ajustamento de conduta; verificação física e termo de declaração do trabalhador; termo de rescisão de contrato; ata de assembléia72 e depoimento do denunciante. As categorias sofreram mudanças. Na primeira LS, em vez de uma relação de trabalhadores libertos, há uma relação de trabalhadores “prejudicados”. No caso da fazenda Primavera73, o relatório apresenta 248 trabalhadores “prejudicados”; contudo há uma relação de apenas 166 trabalhadores e destes, dez eram pessoal da unidade de produção, incluindo um gato. Apesar da introdução de mudanças no artigo 149, dando um sentido jurídico mais elástico e menos estrito ao conceito, os relatórios se tornaram ainda mais cuidadosos e apresentam o sentido estrito de escravidão: dívida, dificuldade de mobilidade etc. D. Reincidências. De 171 gatos identificados parcial ou completamente, quatro estão presentes em fazendas diferentes: 1. Alfredo Antônio Rosa, em 2002, foi flagrado em duas unidades de produção de proprietários e municípios distintos. 2. Edmilson Dantas de Santana foi flagrado em três fazendas, em 2002, em municípios próximos, com proprietários diferentes. 3. Iron Martins Cardoso foi flagrado em duas unidades de produção, em anos, 71 O conteúdo do relatório comporta informações descritivas sobre a operação, as conclusões da equipe e vem ou não assinado pelo coordenador do GM. 72 A assembléia consiste em reunião entre os auditores fiscais e o proprietário e/ou seu preposto no decorrer da operação. 73 MPF/PGR 1721/2003-32. 88 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas municípios e proprietários diferentes. 4. Juarez Feitosa Gomes foi flagrado em três propriedades. Duas estão no mesmo município, e o fato se deu no mesmo ano; uma terceira em município vizinho e no ano seguinte. E. Mudança de status. Foram identificadas mudanças de status de trabalhador. Na fazenda Rio Dourado, em Cumaru do Norte, em 2003, três trabalhadores braçais em situação de vítimas passaram a exercer a função de gato. Um vaqueiro se tornou “tirador de estaca”. F. Relações de parentesco identificadas. F.1. A resistência ou o controle social entre os trabalhadores pode ser modificado caso estes tenham relações de conhecimento ou parentesco anteriores ao trabalho ou serem outsiders em relação à unidade de produção e ao próprio grupo. F.2. Foi possível constatar relações de parentesco entre alguns proprietários. Além da relação de parentesco entre eles, foram detectadas relações entre os outros atores presentes nas fazendas. E há os casos de parentesco não comprovado, mas provável – o nome de família idêntico, o local de residência ou outras informações. F.3. Quanto às relações de vítimas & vítimas existem relações variáveis no mesmo imóvel ou em imóveis diferentes como avô & neto; pai & filho; mãe & filho; pais & filhos; padrasto & enteado; esposo & esposa; companheira & companheiro; irmãos & irmão; primos & primos. F.4. Quanto a vítimas & pessoal da unidade de produção – se relacionam trabalhadores com gerente, ajudante de caminhão, fiscal/capataz/gerente, capataz, vaqueiro, operador de motosserra, operador de máquina, tratorista, cozinheiro. F.5. Os lugares sociais, como vimos, são diversificados; alguns têm poder de mando outros são subalternos em graus diferentes. Quanto a gato & vítima, há casos de possível parentesco estabelecido da seguinte forma: tio & sobrinho; pai & filho; padrasto & enteado; cunhado & cunhado; irmão & irmão; esposo & esposa; sogro & nora. F.6. Quanto a gatos & gatos, estes mantêm relações de parentesco como: pai & filho; irmão & irmão; sogro & genro; tio & sobrinho; cunhado & cunhado; esposo & esposa. Aqui chama a atenção para a presença de mulher no exercício de uma função prioritariamente masculina. 89 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Conclusão A pesquisa aponta para alguns aspectos do perfil dos trabalhadores e das relações de parentesco entre os agentes sociais envolvidos de alguma forma nas atividades produtivas denunciadas por organizações reconhecidas pelo Estado como incursas na escravidão. Indica também que é necessário efetuar alguns cruzamentos de dados que podem revelar aspectos ainda não suficientemente conhecidos inclusive e principalmente sobre as formas de resistência em função das relações anteriormente estabelecidas. O estudo demonstra que, apesar de tantas operações nas quais o crime da escravidão foi constatado e da indignação demonstrada pelos agentes do Estado, somente nove pessoas foram presas em flagrante: um pistoleiro e oito proprietários que também exerciam a função de gato. Diversas formas de enfrentar o problema foram implementadas ao longo dos últimos anos. Em 1995, foi criado o GM,74 nos anos seguintes, setores da Justiça Federal atuaram com penalidades expressivas em ações por danos morais coletivos nas relações de trabalho ou de crime previsto no art. 149. Outras medidas foram tomadas, especialmente após 2003, como o I e II Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo; o MTE instituiu a Lista Suja; o Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo75 se organizou e envolveu grandes empresas. Para os trabalhadores foram acionados o seguro desemprego, a bolsa alimentação, a prioridade em assentamentos de reforma agrária etc. Tem se destacado a Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo no monitoramento das medidas tomadas e na formulação de propostas de novas ações, mas o problema está longe de ser superado (Sakamoto, 2009, p. 19-22). Nenhum proprietário ou empreiteiro foi mantido preso, sequer aqueles que foram condenados, e a escravidão persistiu. Outras medidas, para sanar o problema, terão de ser acionadas de forma preventiva e curativa, como a geração de novos empregos, a distribuição de renda, a perda da terra de quem utiliza mão de obra escrava, a reforma agrária e um novo modelo de desenvolvimento. 74 De sua criação em 1995 até 2008, conforme o MTE, foram realizadas 2.169 fiscalizações, resgatados 32.563 trabalhadores e houve pagamento de indenizações aos trabalhadores de R$ 47.089.081,51. Cf. Disponível em <http://www.mte.gov.br/fisca_trab/est_quadro_comparativo_1990_2008.pdf.> Acesso em 14/set. 2009. 75 Cf. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br/pacto/conteudo/view/4>. Acesso em 14/set. 2009. 90 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: M. Fontes, 2000. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. 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Os estudos, os debates e as ações de combate à escravização de trabalhadores são resultados da ampliação do fenômeno social da escravidão contemporânea, no âmbito nacional e internacional, visíveis nas denúncias apresentadas ao Ministério do Trabalho e no Relatório Global da OIT (Organização Internacional do Trabalho) do ano de 2005 Uma aliança global contra o trabalho forçado sobre a escravização de trabalhadores e imigrantes estrangeiros clandestinos, tanto no espaço rural quanto no urbano. Neste artigo, partimos da pesquisa que deu origem à dissertação apresentada no mestrado em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa, sobre o trabalho escravo contemporâneo no Brasil (Mendes, 2002), onde buscamos interpretar as estratégias de dominação e de resistência desenvolvidas pelos diferentes atores sociais envolvidos no processo. Naquele estudo, foram levantadas questões fundamentais para a compreensão da Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) escravidão contemporânea no Brasil, como a fluência entre as formas das relações de poder e de troca passando pelo favor, pela promessa, pela reciprocidade e pelo clientelismo. Outro ponto importante está nas diferenças regionais, principalmente entre as regiões norte e o sul do Brasil, quanto à caracterização das situações de escravização de trabalhadores, seja por parte destes ou por parte dos agentes do Estado. A partir dos dados levantados e tratados, escolhemos para discutir os casos ocorridos na grande região Sul-Sudeste, no período de 1980-2000, apresentando algumas questões acerca da importância da denúncia como caminho para o combate ao trabalho escravo e a busca de garantia de direitos humanos, e mostrar como as ações do Estado e da sociedade civil vêm contribuindo para a construção e afirmação da resistência dos trabalhadores escravizados. Transição da economia escravista para o trabalho livre Na tentativa de interpretação das formas de trabalho escravo contemporâneo devemos estabelecer cuidadosas distinções conceituais. Esse esforço consiste em compreender as aproximações possíveis e especificidades do fenômeno frente às modalidades presentes nos sistemas escravistas da antiguidade e da era moderna, assim como em relação a outras formas de dependência e de dominação pessoal. Nas múltiplas formas contemporâneas de trabalho compulsório, a escravização de pessoas, sob quaisquer circunstâncias, representa a negação de direitos civis e sociais fundamentais afirmados pela ordem jurídica. Os casos de escravização representam transgressões do ordenamento contratual do trabalho livre e são combatidos tanto por agências especializadas do Estado, quanto por entidades da sociedade civil. A escravidão não é, pois, socialmente legitimada, ferindo frontalmente algumas das mais elementares noções de valores humanos. Ainda assim, a presença continuada de tais casos revela sua persistência à margem da ordem legal, seu enraizamento em mentalidades distorcidas e nos contextos econômicos e políticos que a tornam plausível. Ao contrário do escravismo da era moderna, em que o escravo representava uma mercadoria que podia ser objeto de todas as formas características da apropriação mercantil (venda, hipoteca, aluguel, empréstimo) em um mercado de dimensão intercontinental, as formas de escravidão contemporânea ocorrem em circunstâncias que não mais reconhecem como legítimos os direitos de propriedade do senhor sobre a vida do escravo. A escravidão contemporânea acontece nos interstícios da economia de mercado baseada no trabalho livre. As formas de imposição do trabalho escravo 94 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas contemporâneo emergem fundamentalmente no contexto de transgressões da ordem regular do trabalho livre, como nos impedimentos à livre circulação dos trabalhadores e como violação na aplicação das condições legais dos contratos de trabalho. Para compreendermos a dinâmica da escravidão contemporânea no Brasil, é necessário situá-la no quadro histórico mais amplo da transição do trabalho escravo ao trabalho livre no Brasil. O fim do tráfico negreiro em 1850 marca o ponto a partir do qual o escravismo brasileiro estava inexoravelmente condenado (Carvalho, 1988, p.5083). Diferentemente do sul dos Estados Unidos, onde a reprodução natural dos escravos era um importante componente da dinâmica demográfica do escravismo (breeding), a reposição do plantel escravista no Brasil repousava de forma quase exclusiva no tráfico transatlântico (Alencastro, 2000). A partir de então, as elites se defrontavam com a necessidade de conformar um mercado de trabalho livre que permitisse a continuidade da expansão da grande lavoura exportadora, especialmente nas regiões cafeeiras. No terço final do século XIX, combinaram-se novas iniciativas legislativas, culminando com a Lei Áurea, a dinâmica demográfica e migratória, a emergência do movimento abolicionista e a resistência dos escravos para inviabilizar alternativas de imobilização servil da força de trabalho num modelo semelhante ao da Rússia Czarista e da África do Sul (Foner, 1988). A abolição se faria sem indenização aos proprietários e sem quaisquer formas de proteção social aos ex-escravos, mas também, sem estabelecer uma rígida regulamentação do trabalho que imobilizasse a força de trabalho nas fazendas. O fim do trabalho escravo não significava necessariamente a criação espontânea do trabalho livre assalariado. Desde o período colonial, no entorno do mundo da plantation, emergia gradativamente uma ampla camada de homens livres pobres e libertos (Franco, 1983) e (Mattos, 1998). Frente à imensa disponibilidade de terra livre, constitui-se um universo povoado de sitiantes, vendeiros, tropeiros, garimpeiros e outros personagens que, caracterizados por ampla mobilidade geográfica, ocupam os interstícios da ordem escravista. Relativamente desnecessários para a lógica de operação da plantation escravista, tais homens, entretanto, estão articulados ao universo de poder representado por extensas redes de patronagem e clientela. Já no censo de 1872, a população escrava representava cerca de apenas 20 % da população do Império. Com a abolição, entretanto, nem o Estado nem os grandes proprietários seriam capazes de converter a massa da população livre pobre em força de trabalho disciplinada para a grande lavoura. 95 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Jessé de Souza (2003, p.121) ao analisar o personalismo presente nas relações diretas entre senhor e o escravo, afirma que o lugar estrutural ocupado pelo sistema escravocrata brasileiro, tanto no sentido social quanto econômico, influenciou outro estrato social fundamental e numeroso no Brasil colônia: o “dependente” ou “agregado”, formalmente livre. A situação social do dependente estava marcada pela posição intermediária entre o senhor proprietário e o escravo obrigado a trabalhos forçados. Ele era um despossuído formalmente livre, cuja única chance de sobrevivência era ocupar funções nas franjas do sistema como um todo. (Souza, 2003, p. 122). O autor nos mostra que se constituiu, portanto, um estrato social “ralé” que cresceu e se espalhou pelo território: “homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e os deixava sem razão de ser” (Souza, 2003, p.122). A transição ao trabalho livre e a formação de um mercado de trabalho dependeria, em última instância da importação maciça de força de trabalho a partir da grande imigração (Martins, 1979) e (Holloway, 1984). No campo, a transição ao trabalho livre seria representada pela emergência de uma ampla gama de formas não-tipicamente capitalistas de organização do trabalho (Martins, 1979). De uma forma característica, a passagem ao trabalho livre combinará uma série de incentivos adicionais aos trabalhadores (como no colonato, na parceria, na figura do “morador” e do “agregado”) com elementos tácitos ou explícitos de limitação da mobilidade e da liberdade dos trabalhadores. Mesmo os empreendimentos industriais da primeira metade do século XX (como, por exemplo, a instalação da indústria siderúrgica no Vale do Aço, em Minas Gerais), estabeleceriam estratégias de imobilização da mão de obra através de “vilas operárias”. A formação incompleta do mercado de trabalho livre, especialmente nas áreas de fronteira, faria com que a possibilidade de formas compulsórias de trabalho como sendo uma realidade. A partir da segunda metade do Século XX, se no Sul e Sudeste a industrialização e a urbanização se firmavam, as áreas de fronteira do Centro-Oeste e do Norte do País apresentavam-se como atrativas para a ocupação por aqueles trabalhadores expulsos de suas terras. Neste sentido, o fluxo migratório de trabalhadores e famílias inteiras intensificou-se consideravelmente. Migração e desenraizamento nas áreas de fronteira constituirão uma das principais fontes dos casos de escravização que analisaremos. 96 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Martins (1997) considera, portanto, que o advento principal da transição do trabalho escravo para o trabalho livre foi a definição e a universalização da propriedade capitalista da terra onde o cativeiro foi uma forma de assegurar a sujeição do trabalho, atribuindo singularidade à situação. A nova modalidade de relação não-capitalista de produção foi capaz de assegurar uma produção não-capitalista de capital, numa sucessiva acumulação preventiva dos países ricos e na condição fundamental da reprodução capitalista. Martins (1997) afirma que é preciso considerar não somente o processo do capital, mas também, a singularidade do momento em suas condições históricas. Nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil viveu um período de acentuado crescimento econômico e de expansão de sua fronteira agrícola, incorporando novas regiões antes praticamente desocupadas, como o sul do Mato Grosso, Rondônia e o Pará. Nesta época, o governo militar tentava promover a expansão econômica e o desenvolvimento da região amazônica através do estímulo à colonização por trabalhadores rurais vindos do Nordeste e do Sul do País, e do fomento a investimentos de grande escala através de incentivos fiscais (Sutton, 1994). Muitos desses colonizadores, entretanto, foram entregues à própria sorte tornando-se mais tarde, mão de obra barata e vulnerável a qualquer tipo de arbitrariedade. Martins afirma que “[...] fronteira é um cenário de intolerância, ambição e morte” (Martins, 1997, p.11). Por isso, a figura central e reveladora da realidade social da fronteira é a “vítima” e não o “pioneiro”. É na condição de vítima que podem ser encontradas duas características centrais da constituição do humano: a alteridade e a visão particular do outro (Martins, 1997, p.12). Esta fronteira possui muitas e diferentes situações, é a fronteira do humano. Ademais, a institucionalização tardia dos direitos trabalhistas no campo, em contraste com os trabalhadores urbanos, alimentou um amplo grau de arbítrio e violência nas relações de trabalho no campo. Em 1969, o Estatuto do Trabalhador Rural estabeleceu a ampliação dos benefícios da legislação trabalhista no campo, revogando o estatuto de 1963. A reação dos proprietários rurais iniciou um processo de “modernização dolorosa” (Silva, 1982) com a adoção de novas tecnologias poupadoras de trabalho na produção e a substituição dos antigos moradores por trabalhadores assalariados volantes. Esses fenômenos levaram a uma desarticulação das formas tradicionais de relações de trabalho no campo, a um aumento de pagamento por tarefas e da categoria de trabalhadores temporários, desprotegidos do Estatuto do Trabalho Rural. Foram significativos os efeitos da 97 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ‘modernização dolorosa’ sobre a estrutura fundiária e os níveis de renda e emprego no campo. O setor agroindustrial canavieiro, por exemplo, recebeu nos anos 60 grandes incentivos federais para a concentração de capital, promovendo a integração agroindustrial através da aquisição de bens de capital e de terra. Nos anos 70, os complexos agroindustriais trouxeram uma redefinição do processo de acumulação capitalista, com condicionantes políticos e econômicos. As políticas públicas para a modernização dos processos produtivos agrícolas davam nova forma à estrutura fundiária e ao trabalho. O Pró-Álcool em 1975 foi um marco decisório na concentração de capital (Silva, 1982). A revogação do Estatuto do Trabalho Rural, em 1973, por outro lado, consolidou as redes de empreiteiros e “gato” como intermediários na contratação de mão de obra temporária e volante, permitindo inúmeras novas formas de infração dos contratos verbais e da legislação trabalhista do trabalhador rural.1 A escravidão contemporânea: características gerais Ao se tratar de “formas contemporâneas de escravidão” no Brasil, faz-se necessário conceituar e distinguir as modalidades de trabalho que envolvem “formas escravistas de relações”, diferenciando-as da escravidão. Enquanto a escravidão supõe uma relação de sujeição, percebida nas situações onde o trabalhador é humilhado, castigado, torturado ou morto, a escravidão por dívida é trabalho sob coação. Para Martins (1997), ambas se diferenciam do “[...] uso repressivo da força de trabalho” e da “[...] imobilização da força de trabalho”, uma vez que o sistema social recusa como valor o trabalho escravo. Por isso, a escravidão contemporânea é uma situação temporária, manifesta nas “[...] formas coercitivas extremadas de exploração do trabalhador”, dentro do processo de reprodução do capital, não podendo ser reduzida à sua relação com o modo de produção. Neste sentido, compreende-se a escravidão contemporânea enquanto um processo de escravização, favorecido pela inexistência de condições de vida e trabalho favoráveis aos trabalhadores em regiões e cidades com alto nível de pobreza ou diante da situação de ilegalidade, no caso dos imigrantes estrangeiros. Os pontos críticos do debate acerca do trabalho escravo e do trabalho livre referem-se às limitações dos conceitos, e às relações entre trabalho 1 O Pró-Álcool ou Programa Nacional do Álcool, criado em 14 de novembro de 1975 pelo decreto 76 593 foi um programa de substituição em larga escala dos combustíveis veiculares derivados de petróleo por álcool, financiado pelo governo do Brasil a partir de 1975 devido à crise do petróleo. Disponível em: <http://wapedia.mobi/pt/Pr%C3%B3-%C3%A1lcool>. Acesso em: 21 mai. 2009. 98 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas livre e o desenvolvimento do sistema capitalista (Martins, 1999, p.83). Sobre a escravidão contemporânea na Índia e no Peru, Tom Brass (1986), afirma que o trabalho escravo não é só compatível com o capitalismo como, em certas situações, este o prefere ao trabalho livre. No caso do Brasil, Esterci (1994) destaca que mesmo que se possa pensar que todo uso da mão de obra é repressivo, na escravidão contemporânea, está se pensando em “[...] formas extremas de repressão”. Por isso, a escravidão contemporânea entendida como fenômeno social, constitui uma categoria política de luta de interesses e de conflito de visões de mundo entre diferentes segmentos e atores sociais. Ao projetar-se como evidência no cenário social contemporâneo, a escravização provoca a estranheza, a indignação moral e a repulsa na sociedade, assim como a sua compreensão dentro do processo de acumulação e expansão do capital, marcando novos sentidos de interpretação, no contexto de uma ordem que afirma, ao menos teoricamente, a preservação da dignidade humana e dos direitos de cidadania. A escravidão contemporânea é reconhecida nas seguintes formas: 1. O trabalho forçado: a pessoa é reduzida à condição análoga à de escravo por meio de fraude e do uso de coerção; 2. O aliciamento da mão de obra: ocorre quando um grupo de pessoas atraído pela oferta de pagamento de salários e de condições de trabalho é recrutado por empreiteiro ou “gato” para prestar serviços em outras localidades, onde constatam que os compromissos e as promessas não são compridos por este; 3. A servidão: ocorre quando a pessoa fica obrigada por lei, costume ou acordo, a viver e a trabalhar nas terras do proprietário, a prestar-lhe serviços, remunerados ou não, em troca do direito de ocupar uma parcela de terra cedida pelo proprietário, mas sem a possibilidade de mudar sua posição; 4. A imobilização de trabalhadores por dívida adquirida (debt bondage ou debt peonage): ocorre quando o empregador exige que o trabalhador lhe preste serviços como forma de compensar uma dívida adquirida através da aquisição de instrumentos de trabalho, gêneros alimentícios, moradia, vestuário e remédios. No Brasil, esta é a forma mais disseminada de escravização. No período analisado, 1980 a 2000, a maior parte dos casos de escravização no Brasil foi encontrada na região da Amazônia Legal, nos estados do Pará, Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Amapá e partes do Maranhão, Goiás e Tocantins. Respondendo por 72% das situações de escravidão por 99 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) dívida, foi também onde houve o maior grau de violência e brutalidade. Mas, não se restringindo a ela. Os estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais também apresentaram muitos casos de escravização. A distribuição geográfica das situações de escravização seguiu os ciclos econômicos e de ocupação no país, incidindo, na maioria dos casos, nas atividades econômicas da pecuária, da agroindústria canavieira e cafeeira (corte de cana e colheita do café), do desmatamento (tombada de árvores), da extração de látex nos seringais, do reflorestamento (criação de mudas e plantio), das madeireiras, do carvoejamento (derrubada de árvores e produção de carvão vegetal) e do garimpo. Em conexão com os casos de escravização, havia um significativo fluxo migratório sazonal de trabalhadores recrutados, mas, também havia trabalhadores fixos, como na manutenção das fazendas, nas baterias de carvão e nas plantações. A migração produzia um desenraizamento dos trabalhadores que facilitava o aliciamento da mão de obra e a criação de dívida imobilizadora (Figueira, 2003). Nos estados centrais, como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, as relações de trabalho se desenvolveram de forma que se apresentaram muito mais marcadas pelo conflito capital/trabalho do que pelas relações baseadas no paternalismo ou no clientelismo. Neste ponto, incide a diferença fundamental entre as duas grandes regiões analisadas na dissertação – Área Sul e Área Norte. Apesar das diferenças, relações pessoais subsistiam com relações impessoais, institucionalizadas em contratos de trabalho, configurando um cenário mesclado, onde fazendeiros mantêm ‘colonos’ em suas terras, e empreiteiros ‘gatos’ contratavam trabalhadores conhecidos, assim como trabalhadores ofereciam seus serviços para aqueles que conheciam. Há, portanto, aspectos fundamentais na configuração das relações de trabalho no campo nas diferentes regiões do Brasil, que fundamentam o ressurgimento de situações de escravização, a saber: 1. a incorporação tardia dos direitos trabalhistas, presente nas cidades desde os anos 40, no campo, iniciada apenas a partir do programa FUNRURAL, de forma ainda incipiente 2; 2. a existência de uma ampla gama de arranjos de relações de trabalho que divergem dos modelos típicos de assalariamento, como o 2 O Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) foi criado pela Lei Complementar nº. 11, de 25/maio1971, que instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL). Em seu artigo 2º, o Programa previa a prestação dos seguintes benefícios: I - aposentadoria por velhice; II - aposentadoria por invalidez;III - pensão;IV - auxílio-funeral;V - serviço de saúde;VI - serviço social. (Disponível em http://www.dji.com.br/leis_complementares/1971-000011-patr/000011-1971-patr.htm. Acesso em 21 maio 2009. 100 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas colonato, os meeiros e agregados. Estes arranjos subsistem, em grande parte, devido à rarefação estatal na regulação dos contratos de trabalho; 3. O caráter violento da vida em algumas áreas marcadas pelo isolamento geográfico; 4. o desenraizamento dos trabalhadores provocado pelos fluxos migratórios, expondo grande parte dos trabalhadores à vulnerabilidade quanto às garantias de vida e de trabalho. A denúncia como um caminho para o combate ao trabalho escravo A denúncia formal é praticamente o único caminho para a tomada de conhecimento sobre os casos de escravização e deve-se reconhecer que, para além daqueles que vêm à publico, existem inúmeros casos, situações e regiões onde ocorrem processos de escravização que não engrossam as estatísticas. Durante a ditadura militar, denúncias partiam de vários segmentos sociais, mas o governo não reconhecia a presença de casos de escravização e dificultava a atuação destas entidades. Apesar de a primeira denúncia pública ter ocorrido no início dos anos 70, somente em 1993 o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) brasileiro assumiu a existência de escravidão contemporânea no território nacional. Nos anos de 1994 e 1995, houve um salto no número de casos denunciados tanto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), quanto pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do (MTE). Nesse contexto, em junho de 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) com o objetivo de garantir uniformidade de procedimentos, eficiência e agilidade e, principalmente, o sigilo absoluto de suas operações. O GEFM estimulou a constituição do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), com caráter interministerial e interinstitucional, subordinado à Câmara de Política Social do Conselho de Governo3. A importância das entidades e organizações sociais na denúncia das situações de escravização de pessoas tem impulsionado um movimento maior de defesa dos direitos humanos, civis e sociais. Como parte do projeto de modernização e democratização, o Estado brasileiro vem desenvolvendo políticas públicas para erradicação de relações escravistas de trabalho 3 Coordenado pelo Ministério do Trabalho, é composto por representantes dos Ministérios do Meio Ambiente, de Política Fundiária, da Justiça, da Agricultura, da Previdência e do Desenvolvimento. 101 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) através da legislação constitucional4 e trabalhista5, e da ação de órgãos estatais6, como respostas às pressões dos órgãos internacionais, dos segmentos da sociedade civil e dos trabalhadores escravizados. No entanto, desde a abolição da escravidão colonial, em 1888, o Estado brasileiro apresenta uma prática que oscila entre a construção da cidadania, com a defesa dos direitos e garantias fundamentais, e o estímulo a empreendimentos econômicos em regiões de fronteira de ocupação sem, no entanto, desenvolver políticas públicas que garantam aos trabalhadores, condições dignas de vida e de trabalho não impedindo, portanto, os processos de escravização destas pessoas. Nos casos analisados, verificamos que a denúncia é, entretanto, muitas vezes precedida pelo reconhecimento da situação de escravização pelo trabalhador e pelas suas tentativas de libertação. Tipicamente, um trabalhador rural, interpretando a sua situação e a dos demais como de escravidão, deixa a fazenda ou unidade produtiva. Dado que a escravidão contemporânea se caracteriza fundamentalmente pelo cerceamento da liberdade de ir e vir e pela vigilância constante dos trabalhadores, esta evasão se dá, em grande parte dos casos, por meio de uma fuga, muitas vezes, à noite e pela mata. Se tiver sucesso, o trabalhador segue então a estrada mais próxima com acesso a uma cidade de porte médio. Chegando, procura a Delegacia de Polícia, ou a Igreja Católica local, ou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, quando este existe, e presta depoimento. Há situações em que o ex-escravo telefona para alguns desses lugares, informando a situação e solicitando o comparecimento para confirmar seu relato. Ou então, telefona para algum parente, geralmente mães ou esposas, pedindo que elas contatem autoridades ou representantes para irem ao local libertá-los. Na maior parte dos relatos analisados, além de reconhecer algumas das formas pelas quais as denúncias são feitas, reconhece-se a presença de entidades de defesa de direitos de humanos, a de órgãos governamentais e de sindicatos representativos que recebem, encaminham e apuram estas denúncias. Esses padrões de denúncia parecem revelar transformações recentes e substanciais no contexto político e ideológico em que a escravidão contemporânea se desenrola. A presença crescente de atores públicos 4 Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. 5 Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Forçado; Lei n. 7.998 de 11 fev.1990 discorre sobre trabalhadores em condição análoga à de escravo; Medida Provisória n. 74 de 23/10/2003 que assegura pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado. Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003. 6 GEFM e SIT/MTE. 102 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas envolvidos com a denúncia e a repressão à escravização, de algum modo, abre novos espaços para que os próprios trabalhadores tomem iniciativa de denúncia, demonstrando que uma circularidade de informações e definições de escravização percorre o caminho inverso, permitindo que os trabalhadores sejam capazes de redefinir sua autoimagem como escravos. A escolha por trazer à luz os casos de trabalho escravo ocorridos nas regiões Sul e Sudeste, no período de 1980 a 2000, neste artigo, decorre de dois fatores fundamentais: a) apesar de, nestas regiões, as ‘fronteiras agrícolas’ já terem sido ocupadas, as atividades econômicas ligadas à agroindústria foram o segmento onde o processo de escravização de trabalhadores ocorreu com maior intensidade; b) a presença do Estado e a articulação de entidades civis e religiosas são significativas como formas de mobilização política e de construção da cidadania, dentro do paradigma do Estado Moderno de Direito, principalmente, no período da abertura democrática. Dentre os casos analisados nestas regiões, identificou-se que na atividade do corte de cana-de-açúcar, as reclamações e reivindicações feitas pelos trabalhadores, e apuradas pela fiscalização, referiam-se também às infrações aos direitos humanos e civis como no impedimento de deixar o local, a retenção de documentos, o transporte de trabalhadores em caminhões junto com animais, a omissão de socorro médico nos casos de acidentes e doença e os maus tratos físicos. A situação de escravização, já caracterizada no aliciamento e na imobilização, era reforçada pela dificuldade de acesso aos locais impossibilitando aos trabalhadores realizarem compras em outros locais que não no barracão, em buscar assistência médica nas cidades e em se comunicar com os familiares. A redução no valor combinado dos salários, a quebra do acordo quanto ao pagamento da cana cortada e os descontos de alimentação e ferramentas de trabalho, compõem a referência feita pelos trabalhadores à sua condição de escravos. A caracterização das situações como de escravização era geralmente atribuída pelos próprios trabalhadores vitimados, principalmente quando comparavam as condições existentes com as de outros lugares onde já trabalharam. Mesmo sem referirem-se claramente à escravidão, assumiam que foram enganados na contratação, e que as condições impostas nos locais de trabalho não eram condizentes com um ideal de relação de trabalho, sobre uma base mais justa quanto ao pagamento e ao tratamento recebidos. Ao reconhecerem as irregularidades trabalhistas e a escravização, os trabalhadores construíam mecanismos de resistências que vão de formas mais prudenciais como a manifestação ao encarregado de sua insatisfação, 103 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ou a tentativa de negociação com o encarregado ou com a empresa acerca dos acertos e do pagamento de direitos, mesmo conscientes do perigo de demissão, a formas mais extremadas como a recusa em trabalhar sob condições inadequadas, como na colheita sob chuvas intensas e as fugas. Há casos analisados na região Sul, em que muitos trabalhadores escravizados afirmaram que iriam alertar os demais trabalhadores que permaneceram em suas origens sobre as condições encontradas. Para realizar uma fuga, como forma de resistência mais extremada e última saída para que seus direitos sejam reconhecidos e praticados, alguns trabalhadores escravizados mentiram para sair do local e para procurarem orientações. As fugas nos estados do Sudeste-Sul foram motivadas pela busca dos direitos, pela denúncia das condições dos demais trabalhadores que permaneceram no local de trabalho e para sua libertação e pagamento. Alguns trabalhadores que não conseguiam trabalhar com fome, decidiam por fugir, deixando a carteira profissional na usina. Um deles afirmou que “lá nóis tava preso, que nem numa penitenciária, a gente nunca vimo um castigo deste no mundo” (EM SÃO PAULO..., 1987), contando que já haviam fugido de 200 a 300 pessoas da usina, inclusive, mulheres e crianças; e que, na fazenda, ainda estão 700 migrantes sujeitos a mesma situação. Após a fuga, estes trabalhadores foram assistidos pela Associação dos Voluntários e Integração do Migrante (AVIM), aguardando liberação de passagens para retornarem a Alagoas. Os trabalhadores casados eram os mais preocupados com as famílias e ansiosos para voltar. A fuga é um dos mecanismos extremos de resistência à escravização, uma vez que ela representa grandes riscos para quem foge. Por isso, muitas vezes, os trabalhadores se organizam em grupos maiores. Mas, seja devido ao cenário de desemprego alto e de acirramento da pobreza, seja devido às relações pessoais que mantinham com seus empregadores e patrões, os trabalhadores optavam também por formas mais sutis de resistência, como o atraso nas tarefas, ou a tentativa de negociação direta com o patrão, através de uma conversa. Cientes muitas vezes das retaliações que poderiam sofrer diante de uma fuga, reclamação ou recusa em trabalhar, os trabalhadores adotavam posturas de condescendência a fim de reduzir a possibilidade de sanção, como a suspensão da alimentação ou o desalojamento de sua família. Desta forma, a maior parte dos casos de escravidão contemporânea torna-se conhecida por meio de denúncias feitas por trabalhadores fugidos que, após andarem por horas ou mesmo dias, conforme a distância dos locais, 104 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas procuraram entidades, como a CPT, os sindicatos de trabalhadores rurais, quando estes existiam e funcionavam ou a delegacia de polícia. A partir desta procura, é que se reconhece nestas regiões Sudeste-Sul, as variações quanto ao aparato institucional composto pelos atores que combatem a escravidão, marcando as diferenças no tratamento da questão. Em alguns casos, as denúncias foram encaminhadas diretamente por entidades religiosas, civis, representativas ou pela imprensa nacional. Nos casos denunciados pela imprensa, tanto a impressa quanto à falada, os casos foram encaminhados aos órgãos responsáveis que realizaram a apuração. A partir de matéria televisiva veiculada pelo SBT em 1993, por exemplo, a DRT-MG realizou visita de fiscalização em Morada Nova de Minas. Nos relatórios de inspeção foram relatados indícios de: [...] trabalhadores rurais reduzidos à condição análoga à de escravo, crime tipificado pelo art. 149, do Código Penal”, a partir das características: 1. distância entre o posto de trabalho _ Morada Nova, e o de recrutamento – Piauí e norte da Bahia; 2. relação entre trabalhador e empregador mediada por “um agente inidôneo e hábil em fraudes, o ‘gato’ (constatou-se a existência de 8 ‘gatos’);. temporariedade do trabalho onde a duração de uma safra ou período de 6 a 10 meses (cultura de capim braquiária para colheita de semente para exportação para o Japão); 4. isolamento das fazendas pela barragem Três Marias, impedindo a fuga do trabalhador; 5. péssimas condições de trabalho e de vida, contrastando com as promessas feitas pelos ‘gatos’; 6. existência de vários armazéns para fornecimento de alimentos de qualidade duvidosa e com preços acima dos praticados no mercado; regime de acumulação de dívidas; nenhuma regularidade trabalhista nem previdenciária (DRT-MG, 1993). Realizada a denúncia, os casos foram tratados por instâncias diferentes conforme sua presença na região. Em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, a presença de sindicatos de trabalhadores rurais, de organizações civis e religiosas e de inúmeras entidades não-governamentais, defensoras dos direitos dos trabalhadores e dos direitos civis influenciou a conscientização dos trabalhadores em algumas áreas, no sentido de conhecerem alguns direitos trabalhistas, civis e políticos. A Diocese de AraçatubaSP, por exemplo, em 1988 num Manifesto referindo-se às greves de 1978 e 1979, mostrou que a organização e as lutas dos trabalhadores conseguiram reduzir os abusos, garantindo transporte mais seguro (substituindo os caminhões por ônibus), demonstrativos de pagamentos pelo corte da cana; o estabelecimento do preço da cana cortada, a afirmação de contratos coletivos 105 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de trabalho e o atendimento médico durante o trabalho (CORTADORES DE CANA..., 1988). Nesta época, na Comarca de Araçatuba, existiam mais de 3.000 processos trabalhistas aguardando julgamento. As lutas trabalhistas refletem-se nas atitudes dos trabalhadores ao se organizarem numa paralisação ou mesmo numa greve, muitas vezes, sob orientação dos sindicatos, assim como nas fugas para denunciarem as situações de escravidão. As dificuldades de sindicalização estavam no pagamento da taxa de sindicalização e na realização de assembléias, possível somente aos domingos. Mas, há locais em que a existência do sindicato dos trabalhadores não garante a proteção dos direitos destes. Na Serra dos Aimorés, em Minas Gerais, trabalhadores numa usina de açúcar ao reconhecerem sua situação como de escravidão procuraram o sindicato local. No entanto, este sindicato encontrava-se distante dos trabalhadores e, além de não ter dinheiro para sua manutenção, o Presidente na ocasião estava articulado politicamente com um funcionário da usina denunciada. Outra característica fundamental destes estados, está na maior atuação dos órgãos estatais como o Ministério do Trabalho através das Delegacias Regionais, do Ministério Público do Trabalho e das Polícias Militar e Civil, na fiscalização de irregularidades trabalhistas e de uso da violência de forma geral. Durante uma ação em São Paulo, o chefe da delegacia regional do Ministério Público do Trabalho, informou que empreiteiro seria ouvido porque ele “ele é o contratador, mas deve estar sendo contratado por outros” (BLITZ descobre..., 1995; BLITZ descobre quatro mil..., 1995). Sobre a situação encontrada, o delegado afirmou que: é uma questão social. Os pais precisam do ganha-pão e ficam indignados com a hipótese de interdição das áreas de trabalho, já que também podem perder o emprego”. Diante da possibilidade de interdição da área, o delegado afirmou que “vamos estudar, junto ao Jurídico do Ministério do Trabalho a possibilidade de interdição da área onde as crianças estão trabalhando (BLITZ descobre quatro mil..., 1995). Nos casos analisados, encontramos a ação do judiciário (OAB, Procuradoria da União) nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, das polícias militar, civil e federal nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais. Os órgãos estatais de fiscalização e apuração, Ministério do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho e CPI’s de Assembléias Legislativas, estão mais presentes no Paraná e Minas Gerais. No Paraná, três deputados federais membros da CPI instalada pela Assembléia Legislativa, eram ex-trabalhadores rurais 106 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas (CPI da violência..., 1991). A ação das entidades religiosas, como a CPT foi mais efetiva no Rio de Janeiro e Minas Gerais, enquanto a participação das representativas como os sindicatos e federações de trabalhadores na agricultura (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, Central Única de Trabalhadores, CUT) foi maior no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. No Paraná, além de representantes dos trabalhadores, organizações representativas de fazendeiros e empresários (União Democrática Ruralista - UDR e Federação da Agricultura do Estado do Paraná – FAEP), se envolveram também na apuração das denúncias. Mas, é preciso destacar que tanto as entidades quanto os órgãos fiscalizadores tiveram atuações diferenciadas, que seguiram orientações distintas conforme as coordenações, frente às situações de escravização encontradas. A dificuldade de implementação das políticas de combate ao trabalho escravo, como na criação do GERTRAF, em 1995, pode ser visualizada, por exemplo, nos casos em que os próprios funcionários dos órgãos fiscalizadores demonstraram desconhecimento da realidade na região onde atuavam. O representante do Ministério Público do Trabalho, relatando uma operação para apuração de uma denúncia de trabalho escravo, relatou: Na manhã do dia seguinte, ou seja, menos de 24 horas da denúncia, saímos em comboio para o referido município, somente encontrando a propriedade por volta das 12 horas. Local de difícil acesso, aliado ao total desconhecimento da região e infelizmente para a surpresa da equipe, pois, o município em questão (Santa Teresa) é considerado um dos mais evoluídos do estado (PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO, 1999). A presença dos órgãos fiscalizadores e das entidades denunciantes não garantia a inexistência de situações de escravização de trabalhadores, nem do aliciamento em outras regiões e Estados. Até maio de 2009 estas situações continuam acontecendo e sendo alvo de denúncias e projeção para a sociedade brasileira e internacional. Em 1988, a Polícia Militar de Ibiúna, região de Sorocaba (SP), apurou denúncia feita por um menor fugido de que boias-frias estavam sendo mantidos em ‘regime de escravidão’ por uma família de agricultores descendente de japoneses. Na operação, a polícia apurou que os trabalhadores tinham de cumprir longas jornadas de trabalho, que dormiam em barracos de madeira em colchões ‘imundos’; que a alimentação era precária, havendo casos de desnutrição, principalmente, entre os menores. Os trabalhadores estavam há mais de quatro meses trabalhando, não tendo recebido nenhum pagamento. Quando tentaram falar 107 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) com os proprietários, seu filho ameaçava os trabalhadores de morte em caso de fuga (ESCRAVIDÃO BRANCA, 1988). No dia 27 de novembro de 1995, representantes da CPT, do Partido dos Trabalhadores (PT) e da CUT foram à redação do Jornal Diário da Terra denunciar a existência de trabalho escravo no complexo rural de Santana. Informaram que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST) já havia protocolado pedido de fiscalização local e que a TV Bandeirantes veicularia matéria de flagrante em Iaras (DENÚNCIAS DE TRABALHO, 1995). Durante uma blitz do Ministério do Trabalho, a partir de denúncia do MST (que acompanhou a ação, filmando e gravando depoimentos para formalizar a denúncia) e da CPT, foram encontradas cerca de 4.000 pessoas submetidas ao regime de semi-escravidão, nas fazendas de pinus, à margem da rodovia Castelo Branco que liga a Capital ao oeste paulista. Muitos eram menores. Após esta operação, a denúncia de ‘trabalho semi-escravo’ foi encaminhada formalmente ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo, pelo deputado estadual Renato Simões, do PT. O problema foi ainda retratado informalmente pelo MST à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O delegado do Ministério Público do Trabalho informou que o caso dos menores será encaminhado à Procuradoria do Trabalho em Campinas, pois o trabalho para os menores de 14 anos configura crime previsto na Constituição Federal (MST comprova..., 1995). Alguns contratantes e empregadores reconhecem certos deveres trabalhistas como o registro em carteira profissional e o pagamento de verbas rescisórias. Nos casos em que os empregadores eram empresas, existiam preocupações com a imagem da empresa para além das implicações legais. Foram recorrentes as declarações dos empregadores de que estariam providenciando reformas nos alojamentos, melhorias na alimentação servida e até mesmo, a contratação de trabalhadores terceirizados (DESCOBERTO TRABALHO..., 1999). Apesar de a maioria das empresas terem negado a responsabilidade pela contratação dos trabalhadores e, pela sua escravização, algumas se mobilizaram para reduzir as implicações das denúncias e dos fatos apurados. Algumas empresas rescindiram seus contratos com os empreiteiros responsabilizados e admitiram em seus quadros os trabalhadores vitimados (EMPRESA promete..., 1988). Houve casos em que quando a polícia ou a fiscalização chega ao local, o empreiteiro foge ou esconde trabalhadores (POLÍCIA acaba..., 1988). Durante uma operação no Rio Grande do Sul, o empreiteiro queixou-se da fiscalização 108 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas uma vez que acreditava estar “prestando um serviço à humanidade oferecendo trabalho aqueles pobres coitados e lhes pagando um salário justo” (POLÍCIA acaba..., 1988). Ele tentou se justificar mostrando recibos de pagamento e afirmando que chega a pagar prêmios aos descascadores que atingissem a cota de produção. Além disso, muitos empregadores ou encarregados sabiam que frente à imposição de violência física, havia a possibilidade de denúncia por parte dos trabalhadores e de serem punidos pelas Polícias e por outros órgãos. Em vários casos, tem-se que era o temor das implicações decorrentes que motivou os empregadores a não serem arbitrários e violentos, mas, somente este temor, não garantia uma atitude mais amena, uma vez que o envolvimento dos patrões com os trabalhadores, principalmente, os moradores tinha origem em relações anteriores. Além disto, as relações dos patrões com os órgãos fiscalizadores comprometiam uma ação efetiva para inibir a prática da escravização. Considerações finais A escravidão contemporânea deixa-se conhecer a partir da denúncia. As denúncias de escravidão e do uso repressivo da mão de obra buscam evidenciar situações de profunda degradação humana e, desta maneira, sensibilizar a sociedade e o Estado com o objetivo de exigir a punição dos responsáveis e evitar que elas continuem ocorrendo. Desta forma, muitos segmentos acreditam no poder do termo ‘escravidão’, como fonte de indignação moral, utilizando-o para pressionar os governos para o reconhecimento de alguns casos como tal. Segmentos da Igreja Católica como as Pastorais da Terra e do Imigrante, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, políticos de partidos de esquerda (PT, Partido Socialista Brasileiro - PSB, Partido Comunista do Brasil - PC do B), Ministério Público do Trabalho e do Judiciário têm assumido a posição de denunciantes, uma vez que, na maioria dos casos, os trabalhadores escravizados estão impedidos ou temem fazê-lo, ou, por vezes, não se reconhecem como tal. Neste sentido, à medida que novos atores sociais tematizam a questão e a organização sindical rural e as mobilizações no campo e na cidade aumentam, criam-se mais possibilidades para a efetuação das denúncias e combate ao trabalho escravo. 109 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. 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Procuramos refazer o caminho trilhado pelos protagonistas desse caso concreto, procurando desvendar as forças que se envolveram nessa luta contra a escravidão e registrando os diferentes e mais marcantes momentos desse conflito no período entre 1993 e 1998. 1 Granjeiro dos Rocha Klotz entrevistado pelo jornal “O Dia” a respeito de João Luiz da Rocha Klotz. 2 Para ler histórico da escravidão contemporânea no Brasil ver PEREIRA, Gladyson S. B. Disponível em: <www.gptec.cfch.ufrj.br> Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Aspectos gerais e o contexto histórico Resende é um importante pólo industrial situado à beira da rodovia Presidente Dutra, na fronteira dos dois mais importantes estados do país e se notabilizando pela grande concentração de indústrias químicas especializadas na fabricação de produtos farmacêuticos e veterinários. Os novos grupos sociais que surgiram em função desse processo de industrialização criaram novas organizações que são referências importantes no município e adjacências, como o Sindicato dos Químicos de Resende. Além disso, é marcante a presença de um clero católico progressista que, apesar da repressão da cúria romana, continuava a ter força na região sul do estado do Rio de Janeiro3, dava contornos particulares aos conflitos políticos da região. A atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o da diocese contribuía para mobilização social local. Entretanto, o município ainda possuía fortes laços com as tradicionais oligarquias escravocratas cafeicultoras, tradição manifestada na má aceitação de conquistas históricas como os direitos trabalhistas. A denúncia de trabalho escravo, que pretendo analisar, ocorreu entre 1993 e 1994, período de franca implementação de políticas neoliberais no Brasil pelo governo Fernando Henrique Cardoso, dentre elas a abertura de nosso mercado a empresas estrangeiras com o discurso de motivar a concorrência e, assim, pressionar a modernização das empresas nacionais. Alguns eventos marcaram a região nesse período: no âmbito municipal, a criação do Fórum Popular em Defesa do Jardim Esperança (frente de apoio a sem-tetos ameaçados de despejo por João Luiz da Rocha Klotz) e, no plano nacional o “Movimento da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida” e a priorização do combate à escravidão pelo Fórum Nacional de Combate à Violência no Campo. Antes da denúncia de escravidão contra o senhor João Luiz da Rocha Klotz, já tinham ocorrido dois grandes embates, um entre Klotz e meeiros4 e outro entre Klotz e sem-tetos. 3 As dioceses da região estavam sob a jurisdição do bispo Dom Waldir Calheiros ligado à teologia da libertação, corrente teológica baseada na luta contra os opressores (Matheos, 1996, p. 18). 4 Meeiro – Quem se submete a um contrato de meação, condição de repartir produto do trabalho sob critérios variáveis. Em 1992, um grupo de meeiros da fazenda Barra I se desentendeu com o proprietário Klotz, por esse ter mandado um trator arrasar suas plantações, prontas para a colheita e, em seguida, semear braqueária. Os meeiros revoltados decidiram então tomar posse da terra. 114 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas No primeiro embate, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Barra Mansa5 foi acionado e passou a realizar reuniões periódicas com os ex-meeiros, agora posseiros das terras de Klotz. A presença do sindicato se materializava na figura de seu presidente, o senhor Francisco Bernardino que trabalhou junto com a CPT e a igrejas católicas locais, representadas pelo agente pastoral Valdecir e pelo padre André Petrucce, da diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, cidades próximas a Resende. O trabalho escravo na granja Rocha Klotz Seu Bernardino, apesar das ameaças6, realizava reuniões periódicas com os posseiros da fazenda Barra I a fim de pô-los a par dos acontecimentos e ajudar na organização da luta. No caminho para tais reuniões era levado a penetrar em outras fazendas do mesmo proprietário. Nas idas e vindas o velho sindicalista foi aos poucos conhecendo os empregados da granja e nesse convívio ocasionalmente descobriu que os granjeiros estavam submetidos a um regime de trabalho escravo. Sem limites claros para o tempo de trabalho nem pagamento de salário e sobrevivendo do recebimento de uma suposta “cesta básica” insuficiente para as necessidades das famílias, esses trabalhadores seguiam sua dura rotina sem maiores questionamentos há quase dois anos, como foi registrado na imprensa local: A abolição do pagamento regular em dinheiro, desde abril do ano passado, tornou ainda mais dura a rotina dos granjeiros, acostumados a trabalhar da manhã à noite, sem folgas semanais. ‘Não tem dia santo nem feriado’, conta Homero Vieira Marques. O trabalho aumentava com a chegada de caminhões para o transporte de frango. ‘Se o caminhão chega de madrugada, tem que levantar para encher’, diz Antônio Rodrigues de Andrade, 40 anos, quatro filhos (DINHEIRO, 1993). Bernardino exortou os granjeiros a se rebelarem contra tal situação a qual estavam “acostumados”. Mas a solução não era tão simples, pois os granjeiros retorquiram: “Bernardino, se eu for reclamar ele vai mandar desocupar a moradia!”. Tendo as choupanas da granja como único lugar para morar, os granjeiros se submetiam a Rocha Klotz. 5 No período em questão, não havia sindicato de trabalhadores rurais em Resende. O sindicato de Barra Mansa então, por ser o mais próximo, assumia todas as ocorrências de Resende. 6 João Luiz foi demonstrando progressivamente ser uma pessoa muito violenta. Chegou a contratar um conhecido pistoleiro, Joaquim Neto, para dar fim a vida de Seu Bernardino. O pistoleiro primeiramente tentou coagi-lo a abandonar os posseiros e diante da persistência do sindicalista decidiu assassiná-lo, porém ele, um dia antes, foi morto por um marido ciumento em Resende. 115 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Para esses granjeiros, a alternativa de aceitar o sindicato como seu mediador no conflito já era algo temerário, acostumados que estavam às formas de relação informadas pelas tradições de compadrio. No entanto, o próprio João Luiz, ao submeter seus empregados a um limite tão insuportável sem uma explicação convincente, vinha rompendo com essas tradições: [...] tinham pessoas que há trinta anos trabalhavam pra Rocha Klotz, a média ali era de uns dezoito anos, então vários ali foram admitidos pelo pai do João Luiz da Rocha Klotz,... Então, é como se fosse uma gratidão muito grande daqueles trabalhadores com aquela família, [...] mas chegou a um ponto que extrapolou qualquer limite de resistência, de sobrevivência, tudo... e também o que colaborou para que eles entrassem com a ação também o próprio comportamento eu não sei.. rai[voso, criminoso talvez desse João Luiz, onde os trabalhadores trabalhavam muitos e muitos meses sem nada receber, eles concordavam em receber dois meses de salário já tava bom [...] (PEREIRA, 2007, p. 194). O argumento muitas vezes usado pelo patrão de que a empresa estava falida não resistia ao fato, apontado pelos funcionários, da existência de 10 mil frangos para o abate nas instalações7. Conflitos anteriores e paralelos Quando o caso de escravidão da granja Rocha Klotz veio à tona, a sociedade local já estava mobilizada em função de outro conflito. Tratava-se dos sem-teto do Jardim Esperança, ocupação na Fazenda da Barra, de propriedade de Klotz. Ao fugir da elevação dos preços dos aluguéis, as famílias pretendiam criar um bairro novo o Jardim Esperança. Klotz conseguiu uma liminar de despejo, o que levou várias organizações populares de Resende a criarem o Fórum Popular em Defesa do Jardim Esperança. O Fórum se reunia toda quinta-feira no Sindicato dos Químicos e Farmacêuticos de Resende, coordenado por Valdo Duarte Gomes, advogado do referido sindicato. Em 1993, o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica em 1993, era exatamente “a moradia”, o que contribuiu para o interesse e o envolvimento. A Comissão Pastoral da Terra e vários padres participaram do fórum do Jardim Esperança. A Campanha da Fraternidade ali foi aberta com uma missa no acampamento dos sem-teto, celebrada pelo bispo da região, Dom Valdir Calheiros. A articulação dos setores populares organizados de 7 “Estes (Orlando e João Luiz Klotz) alegam estarem falidos, apesar de funcionários da granja garantirem ao jornal O Globo que havia mais de dez mil frangos destinados ao abate nas instalações.” O GLOBO DENUNCIA ESCRAVIDÃO EM PENEDO. Itatiaia, 08 de Abril de 1993. 116 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Resende no fórum popular se contrapondo ao despejo requerido por Rocha Klotz contribuiu para facilitar a luta contra a escravização. Neste contexto, outra circunstância insólita veio agravar a situação. João Luiz havia levado seu pai, já muito velho e doente, a assinar um documento passando para ele todos os bens da família, deserdando sua irmã. Esta, casada com um juiz, processou o irmão. João Luiz então passou a processar todos os juízes que sucessivamente assumiam o caso para atrasar o processo, se tornando um desafeto do judiciário da região. As ações de combate ao trabalho escravo Em Resende e Itatiaia Nem todos os funcionários da granja Rocha Klotz aceitaram a lei como um espaço de mediação de suas relações com o administrador e o dono da granja. Alguns continuaram submetidos diretamente a sua arbitrariedade. Outros aceitaram participar de uma disputa dentro dos marcos da lei, porém, mesmo os que a isto se dispuseram, ficaram a depender da interpretação que tinham diferentes advogados sobre como traduzir tal conflito para as formas legais. Assim, no caso dos escravizados da Rocha Klotz, podemos afirmar que houve uma imposição de limites ao domínio da lei e a criação de um espaço para a convivência entre o domínio da lei e o poder arbitrário na forma como esses conceitos são propostos por Thompson: Existe uma diferença entre o poder arbitrário e o domínio da lei. Devemos expor as imposturas e injustiças que podem se ocultar sob essa lei. Mas o domínio da lei em si, a imposição de restrições efetivas ao poder e a defesa do cidadão frente às pretensões de total intromissão do poder parecemme um bem humano incondicional.(Thompson, 1987, p. 358.) Houve quem considerasse que o caminho se esgotava na ação trabalhista, como a advogada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Ana Paula Horta Salvador, e houve quem advogasse para acrescentar uma disputa no campo penal, como os advogados Valdo Duarte Gomes, que coordenava o Fórum do Jardim Esperança, e Márcio Prado, membro da coordenação da CPT8. Essa diferença ocorria em função do polêmico artigo 149 do Código Penal, de resto muito antigo9. 8 Os advogados que encaminharam o conflito para o âmbito penal o fizeram de forma a defender a vontade das vítimas. Entretanto, muitos juristas afirmam que a lei visa proteger a ordem social e não a personalidade desses ou daqueles cidadãos e, portanto, a lei deveria ser aplicada independente da vontade das vítimas. 9 O artigo 149 tem origem na “Lei de Plagium” parte da constituição do império e das ordenações filipinas cuja origem se encontra no direito romano. Nesses casos a escravidão era legal, sendo a Lei de Plagium aplicada a quem submetesse à condição escrava pessoas livres ou libertas. O artigo 149 é uma adaptação as novas circunstâncias, sendo crime fazer passar por escravo a qualquer um, já que todos devem ser livres. CUNHA S., 1995. 117 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) De qualquer forma, o primeiro desdobramento jurídico do conflito social começou com processos individuais cobrando verbas rescisórias e salários. O senhor João Luiz Klotz, inicialmente procurou realizar acordos com os trabalhadores e o sindicato, entretanto, passado algum tempo, alterou seu comportamento negando sistematicamente todas as acusações dos trabalhadores, encaminhadas pelo sindicato. Isso produziu um aumento do número de empregados da granja dispostos a lutar judicialmente. O sindicato acabou por elaborar um processo coletivo de sessenta trabalhadores, visando o pagamento de indenizações por infrações trabalhistas. As condições de vida a que estavam submetidos esses trabalhadores indicavam, porém, uma grave situação10: A maioria morava lá dentro, tava morando em condições subumanas, as casas eram totalmente destruídas e a cesta básica que eles recebiam era pobre demais não atendia nem as necessidades básicas deles, não tinham luz, não tinham água! E estavam sem trabalhar porque alguns deles se revoltam com aquela situação então estavam suspensos de trabalhar [...] (PEREIRA, 2007, p. 172). Entretanto, a lei - no caso, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro de 1940, inspirado no artigo 337 do Código Penal Republicano de 1890 - na época ainda era muito vaga e imprecisa na definição do que era trabalho escravo: “O artigo 149 não conceitua para os efeitos penais o que deve entender como tal, o que possibilita interpretações variadas acerca da matéria. Na maioria da vezes, as autoridades entendem que [...], advém do costume e que, portanto, desnaturaria a tipificação penal.” (CUNHA, 1995. p. 59-60). Informados da situação dos granjeiros da Rocha Klotz, os advogados Valdo Duarte e Márcio Prado (então membro da 18ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/RJ), apostando nas contingências políticas favoráveis (a existência do Fórum do Jardim Esperança e do desafeto do judiciário por Klotz) assumiram o caso. A tese fundamental se baseava no fato de que os granjeiros, ao não receberem salários, ficavam imobilizados na fazenda. Argumentavam que sem recursos financeiros os empregados da granja não teriam condições de sair 10 “A maioria morava lá dentro, tava morando em condições subumanas, as casas eram totalmente destruídas e a cesta básica que eles recebiam era pobre demais não atendia nem as necessidades básicas deles, não tinham luz, não tinham água! E estavam sem trabalhar porque alguns deles se revoltam com aquela situação então estavam suspensos de trabalhar [...].” Ana Paula Horta Salvador, advogada do STR/ Barra Mansa. (Pereira, 2007, p. 172). 118 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas devido à grande distância até a cidade e ao fato de serem, na maioria, grupos familiares, cuja saída a qualquer custo correspondia a um risco muito grande: “Uma coisa é a pessoa sair sozinha da propriedade, tentar a vida aí fora. Outra coisa é toda uma prole. E muito mais ainda quando se trata de trabalhadores rurais que não tem nenhuma qualificação profissional e [...] vários deles analfabetos, [...]” (PEREIRA, 2007, p. 193). A imobilização caracterizaria a privação da liberdade, e, portanto, uma situação análoga a de escravo enquanto a ausência do pagamento de salários caracterizaria um mecanismo de redução a escravidão. A divulgação da denúncia do sindicato nos jornais O Globo e A Lira foram os elementos catalisadores de todas essas circunstâncias políticas favoráveis a tal ajuizamento, possibilitando investir na busca de apoio não só dos movimentos já organizados como do conjunto da sociedade como um todo: “Nós não conhecíamos nada, nada, por mais que nós pesquisássemos algumas coisas semelhantes e que estivessem tramitando no nosso judiciário. [...] aquela ocasião foi inédita [...] a gente tem que trabalhar demais a questão política, a divulgação, a sociedade...” (Pereira, 2007, p. 191). Conjunto da sociedade é chamado a opinar Foi com uma reportagem do jornalista Antônio Werneck, publicada em 4 de Abril de 1993 pelo jornal O Globo, que o caso de Penedo tomou uma dimensão pública estadual. Tendo feito um balanço do número de casos de denúncias de trabalho escravo no estado do Rio de Janeiro, Werneck incluiu o caso da Granja Rocha Klotz como sendo “acusada pela Fetag de manter 80 pessoas em regime de semi-escravidão”.11 A partir dessa reportagem vários jornais locais deram destaque ao caso. Sob o efeito da reportagem de Antônio Werneck, o jornal A Lira, na edição de 8 a 15 de Abril de 1993, publicou a denúncia contra Rocha Klotz e revelou as intenções do sindicato de tentar antecipar a audiência marcada para Agosto na justiça do trabalho, realizar manifestações em frente à empresa dos Klotz e junto com a Igreja Católica conseguir doações de alimentos. Além disso, essa denúncia contra Klotz fragilizava-o politicamente frente à disputa da área do Jardim Esperança: “[...] isso politicamente era bastante interessante porque fragilizava a posição do Klotz na discussão dos posseiros já que tava envolvido 11 FETAG: Federação dos Trabalhadores na Agricultura. 119 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) numa denúncia da maior gravidade, né do ponto de vista dos direitos humanos e tal.” Álvaro M. B. Saraiva, jornalista do Sindicato dos Químicos (PEREIRA, 2007, p. 189). No dia 12 de Abril de 1993, ou seja, 8 (oito) dias após a reportagem de O Globo, a FETAG e STR de Barra Mansa12 encaminharam ao promotor de justiça da 2ª vara da comarca de Resende o registro de notitia criminis, onde cita as denúncias de escravidão em O GLOBO e A Lira. Seis trabalhadores rurais da fazenda Barra I foram arrolados como testemunhas. A participação da Igreja no processo de envolvimento da sociedade foi também fundamental. No âmbito local, apresentava o problema do ponto de vista da ética cristã e mobilizava seus fiéis a contribuir materialmente para a causa dos “trabalhadores escravizados”. Essa contribuição com alimentos se tornava um sinal para os granjeiros da Rocha Klotz de que não estavam sozinhos e de que valeria a pena resistir. A CPT procurou conectar outras instâncias de poder, dando à denúncia uma dimensão política que extrapolava os limites municipais. Setores da própria sociedade produziam acontecimentos que “alimentavam” a imprensa. A campanha de solidariedade em apoio do grupo de sem-teto ameaçados de despejo pelo senhor João Luiz Klotz, que se intitulou Movimento pela Cidadania, acabou tendo um papel importante no direcionamento da indignação social que tais reportagens suscitaram. A sobrevinda do movimento nacional contra a fome (o Movimento da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, encampada até pelo presidente Itamar Franco), criou um panorama ainda mais sombrio sobre o que ocorria nas granjas Rocha Klotz. Os dois movimentos, o de solidariedade aos granjeiros escravizados e aos brasileiros que passavam fome, chegaram mesmo a serem confundidos. Com as campanhas para recolhimento de alimentos, a sociedade já não somente foi chamada a opinar, mas passou também a ser chamada a participar ativamente do embate. A partir da metade do mês de abril de 1993, na região sul fluminense, Bernardino e João Luiz protagonizaram uma polêmica pública sobre a existência de escravidão através de cartas em jornais da região e debate na rádio. Apesar dos esforços de Bernardino, João Luiz soube usar sua oratória (era pastor evangélico) se apresentando como empresário moderno, obtendo um desempenho superior no debate de rádio: “[...] tais assertivas mentirosas, [...], vêm enxovalhar o nome de uma empresa tradicional na região, que 12 Apoiados pela Comissão de Assistência e Direitos Humanos da 18ª Subseção da OAB/RJ. 120 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas labuta há mais de 20 anos no ramo de produção de alimentos, empregando trabalhadores, detendo inclusive Know-how genético em avicultura...”. Carta de João Luiz Klotz em A Lira (PEREIRA, 2007, p.189). Entretanto, o desempenho positivo na rádio logo foi frustrado pelo impacto das imagens da televisão. A presença da televisão se deu por mediação da comissão de deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) articulada pela candidatura do deputado Paulo Banana. Fernando Moura, assessor de Paulo Banana e ex-membro da CPT, mantinha contato permanente com Álvaro Miguel, membro do Fórum Popular do Jardim Esperança e um dos principais articuladores, e com o STR de Barra Mansa. Foi através de Fernando Moura que a candidatura de Paulo Banana entrou em contato com o caso Klotz e organizou a comissão de deputados. Quando a comissão parlamentar foi ao distrito de Penedo em Itatiaia e penetrou nas granjas e nas casas dos funcionários, a imprensa que os acompanhou também teve acesso àquelas dependências. Foram divulgadas: listas com as quantidades e tipos de produtos que compunham aquilo que João Luiz chamava de “cesta básica”; a denúncia dos trabalhadores compelidos a assinar recibos em branco por salários que não recebiam para ter direito a “cesta básica”; a imagem de uma mulher grávida que fora demitida e a mais completa falta de comida13. Contribuiu para a articulação da comissão de deputados estaduais um elemento novo na conjuntura nacional que foi a mudança de postura do governo federal frente às denúncias de escravidão, sempre negadas. A partir de março de 1993, o governo passou a admitir a existência de escravidão no país e o ministro do trabalho, Walter Barelli, se mostrou disposto a dialogar sobre o problema (Sutton, 1994). Não foi à toa que a comissão de apuração de denúncia se efetivou em fins de junho de 1993 e teve um encontro com o já referido ministro como uma das primeiras atitudes após a visita à Granja Klotz14. As imagens do estado de miséria dos granjeiros da Rocha Klotz provocaram um grande choque na população e frustraram as intenções de João Luiz provar sua inocência. Os vigias que permitiram a entrada da comissão 13 Informações veiculadas nos jornais: TRABALHO ESCRAVO EM PENEDO. A Voz da Cidade. Resende, 22 de Junho de 1993. FUNCIONÁRIOS DA GRANJA VIVEM EM REGIME DE SEMI-ESCRAVIDÃO. Tribuna do Comércio. Resende, 24 de junho de 1993. ESCRAVIDÃO. Imprensa livre. Resende, Junho/Julho, 1993. DEPUTADOS COMPROVAM EXISTÊNCIA DE TRABALHO SEMI-ESCRAVO EM PENEDO. Momento. Itatiaia, 26 de Junho de 1993. 14 DEPUTADOS COMPROVAM EXISTÊNCIA DE TRABALHO SEMI-ESCRAVO EM PENEDO. Momento. 26 jun.1993. 121 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de deputados na fazenda foram demitidos sumariamente, fato explorado pelos jornais. Durante o mês de julho, no auge do Movimento da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, a defesa dos trabalhadores escravizados das granjas Rocha Klotz se tornou um tema em torno do qual se realizavam coletas de alimentos e passeatas. O corte da “cesta básica” como punição aos funcionários e a tentativa de impedir o contato da CPT com os empregados da fazenda, motivou ainda mais a reação dos agentes da CPT, da Igreja Católica e do Sindicato. Foi distribuída uma carta aberta à população denunciando a “prática da escravidão” de Rocha Klotz e a situação de miséria dos granjeiros, pedindo a doação de alimentos não perecíveis tendo como pontos de referência de entrega, dentre outros, o Sindicato dos Químicos e a Igreja Nossa Senhora da Paz. Assinavam essa “carta aberta” a CPT, o STR/Barra Mansa e o Movimento em Defesa da Cidadania15. Além da carta e da coleta de doações, se organizou uma passeata contra o trabalho escravo. Para a divulgação de todas essas atividades foram utilizadas a distribuição de panfletos e o rádio. A população se dividiu: pequenos comerciantes, donas de casa e trabalhadores em geral se posicionaram levando mantimentos e manifestando apoio à causa dos trabalhadores escravizados. A elite local, entretanto, silenciou, tendo sido notável a omissão da câmara municipal16. Em 27 de Agosto de 1993, foi decretada a prisão preventiva de João Luiz da Rocha Klotz em função das ameaças feitas aos granjeiros. A estadia de Klotz na cadeia foi breve, porém marcante. Foi vivida como uma vitória importante da organização das forças populares. Porém, esse período de agitação e mobilização foi arrefecendo e o caso de escravidão da granja Rocha Klotz se tornou mais um processo dentre os vários na rotina judiciária. Em 1998, seu Bernardino articulou a presença do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST) para ocupar a granja Rocha Klotz. O caso de escravização foi o grande motivador da ação de ocupação da terra e da 15 Segundo me informou o senhor Álvaro Miguel, participavam desse movimento: Sindicato dos Químicos e Farmacêuticos de Resende, Associação dos Aposentados, Federação das Associações de Moradores, Sindicato dos Comerciários, Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação, Associação dos Professores Municipais, comunidades eclesiais de base, associações de moradores, partidos de esquerda (Partido dos Trabalhadores - PT; Partido Socialista do Brasil - PSB e Partido Comunista do Brasil - PC do B). 16 Ver entrevistas com Álvaro Miguel e Valdo Duarte (Pereira, 2007, p.189-200). 122 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas luta pela sua desapropriação em função do não cumprimento de uma das funções sociais da terra – as relações harmônicas de trabalho. A entrada do MST na granja Rocha Klotz reacendeu as discussões sobre a escravidão na região e se tornou uma tentativa de implementar na prática uma ideia que hoje é uma proposta de lei, a desapropriação de terras onde se constate a prática da escravização. Consequências e continuidades da luta Independentemente do desfecho jurídico do caso, as consequências políticas que a luta por esse enquadramento jurídico penal produziu foi uma conquista considerável em termos de organização dos trabalhadores e mobilização social. O escritório de advocacia particular que assessorou o caso acabou por obter certa notoriedade e a receber grande número de trabalhadores em busca de demandas legais. Ou seja, a luta estimulou os trabalhadores a reivindicarem seus direitos. A ausência de pagamento de salários e o pagamento na forma de alimentos como indícios de redução a situação análoga a de escravo, passaram a constar em documentos oficiais e em projetos de lei17. Assim, a luta contra a escravidão na granja Rocha Klotz acabou se somando a um esforço maior, no país, de luta pela alteração da lei que acabou se concretizando em 200318, sem a inclusão, entretanto, dos requisitos propostos a partir do caso da granja Rocha Klotz. Sendo assim, em 2003, dez anos depois de prolongado processo judicial, a ação trabalhista chegou ao fim com a vitória dos trabalhadores. As terras da granja Klotz, apesar de nunca terem sido desapropriadas, se encontram ocupadas até hoje pelo MST, tendo se tornado um exemplo nacional de experiência agroecológica. Agora a granja Rocha Klotz tem um novo nome: acampamento Terra Livre. 17 A Instrução normativa intersecretarial no. 1 de 24 de Março de 1994. Procedimentos da inspeção do trabalho na área rural. Ministério do Trabalho; e o projeto de Lei 929/95, do Sr. Paulo Rocha e outros. Câmara dos Deputados. Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília/DF. 18 Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, altera o art. 149 do decreto-lei n o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - código penal. 123 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Conclusão Estudando o caso da granja Rocha Klotz, percebemos o nível dos conflitos gerados por uma denúncia de escravização, envolvendo os seus sujeitos, que vão criando táticas e estratégias para superar as dificuldades. A dificuldade encontrada em enquadrar criminalmente as situações de escravização no artigo 149 do Código Penal, motivou a transposição das lutas locais, através de inúmeras mediações, para uma dimensão política de maior envergadura, buscando adequar a lei à nova realidade social da escravidão. Esses esforços produziram mobilização social e ampliação da capacidade organizativa dos setores populares. É nessa articulação com o conjunto das forças sociais organizadas, que a classe trabalhadora tem exercitado sua capacidade de tornar “universal” sua interpretação acerca das palavras e de seus usos. É nesse contexto que a luta pela caracterização legal da escravidão capitalista atual se insere. Esta ação contra a escravização capitalista é apenas uma das inúmeras manifestações da luta contra o capital, é um dos aspectos da luta de classes que é fruto de novas contradições histórico-sociais concretas. Os encaminhamentos dessas disputas em torno da escravização capitalista dependem de outras disputas, inclusive, e talvez especialmente, de ordem ideológica (Figueira, 1999, p. 200); disputas essas que mesmo se realizando em outras trincheiras, contribuem no conjunto para todos aqueles que se encontram do mesmo lado no campo de batalha. Vivemos um momento da história do capitalismo em que, cada vez mais surgem diferentes caminhos para a redução de trabalhadores a condição escrava. Alguns desses caminhos, mecanismos de redução, foram consagrados na lei através da luta e mobilização social, outros caminhos permanecem sem esse recurso legal. Por isso, os recursos da solidariedade, da vinculação entre lutas setoriais, da articulação entre trabalhadores do campo e da cidade, da ocupação de terras e do embate na imprensa são fundamentais na mobilização da sociedade no combate ao trabalho escravo, bem como no combate a todas as mazelas do Capital que na medida em que se aprofunda nos exige cada vez mais unidade e criatividade para resistir e transformar a sociedade. 124 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Referências CUNHA, S. E. Atualidade do plagium: redução à condição análoga à de escravo. Rio de Janeiro: EMERJ, Dezembro, 1995. Mimeo. DINHEIRO FOI ABOLIDO EM ABRIL DE 1992. O Dia, 12 de Setembro 1993. PEREIRA, Gladyson S. B. A escravização capitalista no Brasil contemporâneo: A denúncia, os conflitos, as mediações e a lei- Resende/Itatiaia Rio de Janeiro, 1993-1994. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2007. SUTTON, Alison. Trabalho escravo: um elo na cadeia de modernização no Brasil de hoje. São Paulo: CPT/CÁRITAS/CEDI-KOINONIA/CONTAG/CUT-DNTR/ FASE/ IFAS/MNDH/MST/OAB. 1994 THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores: A origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. WEISSBRODT, D. et al. La abolición de esclavitud y sus formas contemporâneas. Nova York e Genebra: ONU, 2002. 125 II PODER PÚBLICO E SOCIEDADE CIVIL 1 Modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo usando lógica Fuzzy Introdução Benedito de Lima e Silva Filho Renato de Mello A escravidão do homem para força de trabalho é talvez a mais antiga forma de opressão imposta pelos detentores do poder em relação aos seus semelhantes. São encontrados relatos de escravidão humana nas antigas civilizações da África, da Ásia e mesmo da América do Sul e Central. No Brasil, aconteceu inicialmente a tentativa de portugueses em escravizar os índios, que foi em parte mal sucedida. A nação foi erguida sobre o trabalho de escravos índios e africanos e posteriormente sobre a semi-escravidão dos descendentes dos africanos miscigenados com índios e portugueses. Em todo o mundo, e especialmente no Brasil, convivem lado a lado trabalhadores que têm os seus direitos trabalhistas respeitados pelos empregadores e outros que não os têm, trabalhando em condições análogas às de escravo. Eles estão expostos a riscos ambientais elevados e sem proteção. Alojados em barracos de lona preta, bebem água contaminada, trabalham sem carteira de trabalho assinada, sem acesso a informações trabalhistas e previdenciárias, às vezes contraem dívidas perpétuas com o patrão, o que os colocam em situação de absoluta submissão em relação ao empregador. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Esses indivíduos não têm usualmente capacidade de se mobilizarem para sair destas condições e se emanciparem, seja por razões de falta de entendimento da situação em que se encontram, ou por razões de força do escravizador. Tais como os grupos que necessitam de tutela do Estado: crianças, idosos, indígenas e incapacitados, os trabalhadores escravizados merecem e têm direito de receber proteção social. Até meados da década de 1990 o governo brasileiro vinha negando a existência deste contingente de brasileiros (também de estrangeiros imigrantes) em condições subumanas de trabalho, como se a negação do fenômeno limpasse esta nódoa histórica. As recentes ações institucionais trouxeram à tona a dimensão, nada desprezível, da escravização humana no país e a premente necessidade da eliminação definitiva desta situação limite da condição humana. Há trabalhadores, especialmente os rurais, laborando em condições de trabalho em que os direitos trabalhistas e constitucionais não são respeitados. A situação desses trabalhadores, geralmente, é reconhecida e legitimada como escravidão, ainda que não haja uma definição precisa. Este artigo define as variáveis que melhor caracterizam trabalho análogo ao de escravo, avalia em campo estes indicadores e valida o modelo de auxílio de decisão de identificação dessa situação. Além de apresentar uma estrutura lógica e computacional de apoio à decisão na caracterização das condições de trabalho, utilizou-se instrumentos lógicos na forma de soft decision trees, apoiados na lógica Fuzzy. O que se verifica em campo, é que o cenário encontrado raramente se apresenta como uma situação clara e precisa em relação ao trabalho servil. Na maioria das vezes os auditores são obrigados a fazerem inferências para a identificação daquelas condições. Atualmente, não existe nenhum modelo de apoio à decisão na identificação de trabalho análogo ao de escravo sendo utilizado pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Este fato tem levado à dificuldade em reconhecer tal situação, onde são frequentes as situações em que os agentes públicos discordam entre si. Existe premência que a área de fiscalização do trabalho do MTE disponha de modelo que apoie os decisores na identificação, em campo, do trabalho. As características da analogia à escravidão são de difícil mensuração, estão todas interrelacionadas e se situam em campos dos métodos sociológicos e filosóficos. As ciências exatas voltaram-se para contemplar a avaliação de sistemas difusos e estruturas lógicas de representações. 130 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Entre as contribuições que se mostram promissoras para tal, está a teoria da lógica difusa. Este artigo apresenta um modelo robusto e sensível para estas avaliações e pretende atender aos anseios dos atores sociais envolvidos no combate à escravidão contemporânea. A lógica difusa Zadeh desenvolveu a Teoria de Conjuntos Difusos com o objetivo de fornecer um ferramental matemático que considerasse os aspectos imprecisos do raciocínio lógico dos seres humanos e, ainda, situações ambíguas, não passíveis de processamento através da lógica computacional fundamentada na lógica booleana que é um sistema de dedução matemática restrito aos valores zero e um (falso e verdadeiro). Para que a lógica humana seja implementada em soluções de engenharia é preciso que se construa um modelo matemático compatível com este raciocínio impreciso. Portanto, a lógica difusa tem sido desenvolvida como um modelo matemático que permite a representação das decisões humanas e processos de avaliação em forma de algoritmo. Por isso, o conceito da variável linguística é considerado tal como a essência da técnica da modelagem difusa. Deste modo, ela pode ser considerada assim como o nome dado a um conjunto difuso. E ainda representade modo impreciso conceitos de variáveis de um dado problema, admitindo como valores somente expressões linguísticas, também chamadas de termos primários, tais como muito baixo, baixo, alto, muito alto, etc. Estes valores contrastam com os valores precisos assumidos por variáveis numéricas. A participação difusa de uma variável linguística é definida por quanto um dado elemento xi , do universo de discurso U , satisfaz o conceito representado por um conjunto difuso à , definido pelo valor da função de pertinência µ à ( xi ) , xi ∈ U . São as propriedades sintáticas e semânticas que regem o comportamento do sistema de conhecimento difuso. Elas definem a forma de utilização das variáveis linguísticas. As propriedades sintáticas definem a forma com que as informações linguísticas difusas são armazenadas, proporcionando a criação de uma base de conhecimento com sentenças devidamente estruturadas. É da natureza humana trabalhar com características incertas, mas em muitas situações existe a necessidade de um valor numérico que represente 131 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) o valor de referência. Logo, torna-se necessário um processo que converta o valor difuso resultante da saída de inferência para um número real, tal como uma ação bem definida, processo esse denominado de desfuzificação. O modo mais comum de armazenar informações é a representação por meio de regras de produção difusa, que normalmente são compostas de duas partes principais: SE < situação > ENTÃO < ação > A parte SE descreve a situação, para a qual ela é designada e a parte ENTÃO descreve a ação do sistema difuso nesta situação. A situação compõe um conjunto de condições que, quando satisfeitas, mesmo parcialmente, determinam o processamento da ação, e realiza isso através de um mecanismo de inferência difuso, ou seja, dispara uma regra. Por sua vez, a ação compõe um conjunto de diagnósticos que é processado e que, em seguida produz uma resposta quantitativa para cada variável de saída do sistema. O mecanismo de inferência define o processamento das situações, os indicadores de disparos das regras e os operadores utilizados em um sistema de conhecimento difuso. Isto se dá de acordo com a semântica. Desta forma, é executado o processamento de conhecimento. As informações quantitativas são transformadas em informações qualitativas, e este processo é considerado um processo de generalização, comumente denotado de fuzificação. Por um processo de especificação, comumente chamado de desfuzificação, a conversão difuso → escalar transforma informações qualitativas em uma informação quantitativa. Trabalho escravo no século XXI As práticas coercitivas de trabalho forçado estiveram quase sempre associadas aos regimes colonialistas e às tradições de servidão. Há, no entanto, aspectos de trabalho forçado que continuam presentes nas formas contemporâneas de utilização de mão de obra, como a escravidão por dívida, encontradas nas zonas rurais. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), existe dificuldade de caracterização de trabalho forçado por não haver clara definição do conceito, esse fato implica na coleta de dados e de estatísticas. Quantas pessoas são atingidas pelo trabalho? Quem são essas pessoas? Quem são as principais vítimas? Como funciona exatamente o trabalho forçado? Qual o perfil de quem se beneficia diretamente da sujeição de pessoas à servidão humana? As respostas a estas questões levarão a um maior entendimento da relação existente entre o desenvolvimento, a pobreza e a desigualdade, pois a 132 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas existência de trabalho escravo desafia o valor do trabalho, solapa a formação de capital humano e contribui para o ciclo da pobreza. Trabalho forçado, além de ser uma expressão jurídica que expressa um tipo de relação do mundo do trabalho, é também um fenômeno econômico que vem se reproduzindo no mundo capitalista há vários séculos. O trabalho forçado, do qual o trabalho análogo ao de escravo é espécie, é uma forma de negação da liberdade humana, ainda encontrado em vários países, nos mais diversos continentes. Esta opressão continua sendo um dos problemas mais complexos encontrados no mundo do trabalho. O trabalho servil merece ser atacado pelas autoridades locais, governos nacionais, organizações de empregadores e de trabalhadores e da comunidade internacional a fim de sua eliminação. A convenção de 1926 da OIT define escravidão como o estado ou a condição de uma pessoa sobre a qual se exercem alguns ou todos os poderes relativos ao direito de propriedade. Em 1956, as Nações Unidas adotaram a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravidão, Tráfico de Escravos e Instituições e práticas Análogas à Escravidão na qual se exortavam os países membros a abolirem práticas como a servidão de modo geral e por dívidas. A referida Convenção em seu artigo 1° alínea “a” define servidão por dívida como o estado ou condição que resulta do fato de um devedor se ter comprometido a prestar seus serviços pessoais, ou os serviços de alguma pessoa sobre a qual exerce autoridade, como garantia de uma dívida, se o valor desses serviços razoavelmente avaliados, não for aplicado na liquidação da dívida, ou se não se define o prazo e a natureza dos ditos serviços. Para a OIT o principal aspecto do trabalho forçado nas áreas rurais do Brasil é o endividamento que acaba imobilizando o trabalhador nas propriedades até a quitação da dívida o que na maioria das vezes é construída de forma fraudulenta. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho escravo, Ela Wiecko V. de Castilho (procuradora da República) afirma que o conceito jurídico de trabalho escravo é restrito e imperfeito, cabendo aos servidores do estado aplicá-lo, dando a interpretação mais adequada à proteção dos direitos humanos (CASTILHO, 1994). Segundo Martins (1999), mesmo durante o período da escravidão legal, havia dificuldades jurídicas para definir quem era escravo e quem não era. Alguns aspectos da escravidão contemporânea são piores do que a do negro do período colonial. Algumas das denúncias vêm acompanhadas de relatos 133 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de violências físicas contra o trabalhador, o que ocorria naquela época, mas em proporção bem menor. Na escravidão do período colonial, o escravo era propriedade do senhor e, portanto capital imobilizado e não era de seu interesse incapacitá-lo para o trabalho ou matá-lo. Outra diferença importante é que no caso da escravidão atual no Brasil, ela é sazonal dependente das peculiaridades de cada cultura, enquanto no período colonial a escravidão era permanente. O tipo de trabalho acima referenciado vem algumas vezes acompanhado de um conjunto de práticas que podem ser identificadas juridicamente como crime: manter pessoas em cárcere privado, praticar violência física, como a tortura e as lesões corporais, os assassinatos, os crimes ambientais, e as violações às leis trabalhistas e previdenciárias como a não assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência de Trabalho (CTPS), o não pagamento dos direitos previdenciários, não pagamento dos salários e das férias, e disponibilizar condições inadequadas de habitação, transporte, alimentação e segurança (FIGUEIRA, 2004). O modelo de identificação de trabalho escravo O modelo de auxílio à identificação de trabalho análogo ao de escravo integra os temas de desconformidade legal trabalhista; desconformidade legal de segurança e saúde do trabalhador; desconformidade legal penal e desconformidade social. Estes critérios temáticos foram desdobrados em seus componentes próprios, até que os indicadores possam ter avaliação direta em campo. Então, estes são representados em um mapa do tipo top down decision trees, por meio de operações básicas dos conjuntos Fuzzy. A árvore principal da figura a seguir representa o sistema Fuzzy para a identificação dessa modalidade ilegal de trabalho O desenho da árvore é feito pelos decisores, que definem quais indicadores temáticos melhor compõem o indicador sistêmico de cada um dos temas. É estruturado inicialmente a partir da busca em responder qual é o grau de identificação do tema pesquisado. 134 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Figura a- Árvore de causas de Trabalho análogo ao de escravo. O resultado das operações dos blocos de regras “se, e, ou, então” fornecem elementos indicadores de estado dos avaliadores temáticos. O resultado final do indicador sistêmico localiza a avaliação do que foi observado em campo, em um universo de discurso acordado, para verificação do grau de confiança com que se pode contar para identificar o trabalho como análogo ao de escravo. As definições das variáveis e a estruturação do modelo ficaram a cargo de um grupo interministerial de decisores. O grupo foi constituído de um moderador do MTE e três decisores, sendo dois auditores fiscais do trabalho e um Procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT). 135 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Os decisores procuraram contemplar as variáveis presentes no ordenamento jurídico brasileiro concernente ao trabalho em condições de escravidão, além de inserir alguns indicadores no campo social não constantes no ordenamento jurídico, mas presentes nas relações de trabalho. O grupo definiu os quatro indicadores temáticos que conformam a identificação de escravidão: desconformidade legal trabalhista, de segurança e saúde, além de desconformidade legal, penal e social. Em seguida, a representação foi desdobrada até que os indicadores primários pudessem ser caracterizados e medidos. Cada composição tem regras próprias, segundo o entendimento que os decisores têm da importância relativa destes indicadores individuais e/ou temáticos na composição de um indicador temático, e dos indicadores temáticos na composição de um indicador sistêmico. Foram então estimadas pelo grupo de decisores as importâncias relativas de cada indicador na composição do indicador de ordem superior. A identificação do trabalho é feita dentro da seguinte escala: valor inferior a (0,5) será considerado descumprimento de normas; valores igual ou superiores a (0,5) será considerado trabalho análogo ao de escravo. Os indicadores definidos pelo grupo decisor foram os seguintes: Identificação de trabalho análogo ao de escravo Este indicador expressa o grau de semelhança entre as condições de trabalho encontradas em campo e as previsões legais determinantes de trabalho análogo ao de escravo definidas no ordenamento jurídico brasileiro. Desconformidade legal trabalhista Este indicador expressa o grau de desconformidade legal na relação de emprego existente entre o empregador e o trabalhador em relação à legislação supracitada. Remuneração O termo remuneração representa o conjunto de retribuições recebidas pelo trabalhador pela prestação de serviços, seja em forma de dinheiro ou de utilidades, provenientes do empregador ou de terceiros, decorrentes do contrato de trabalho a fim de satisfazer as suas necessidades básicas e de sua família. Representa o conjunto de remuneração direta ou indireta, recebido pelo trabalhador, derivado da relação do contrato de trabalho (formal ou informal) entre empregado e empregador. 136 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Registro Apesar de não ser uma prestação pecuniária ou utilitária, a variável registro está embutida no bloco remuneração por se constituir a base da relação de emprego de onde todos os direitos trabalhistas derivam. Indicador que verifica a formalização da relação de trabalho entre o trabalhador e o empregador. Salário Compreende-se salário como o conjunto de retribuições recebidas habitualmente pelo trabalhador em troca dos serviços prestados, seja em dinheiro ou em utilidades destinado a satisfazer as necessidades pessoais do trabalhador e de sua família. Contribuições previdenciárias Este indicador expressa a conformidade legal das exigências previdenciárias a cargo do contratante em relação ao trabalhador. Carga de trabalho Este indicador visa comparar as exigências a que são submetidos os trabalhadores frente às cargas máximas admitidas na legislação trabalhista considerado o patamar superior não causador de patologias do trabalho. Jornada Indicador que avalia a exploração da capacidade de trabalho e representa crime capitulado no art. 149 do Código Penal, quando excessiva. Descanso semanal Identifica se a pausa mínima semanal necessária para a reposição das energias dos trabalhado está sendo concedida. Férias Este indicador verifica se as férias estão sendo concedidas de acordo com a legislação trabalhista. Desconformidade legal de segurança e saúde Este indicador expressa o grau de desconformidade das condições de segurança e da saúde do trabalhador em relação ao controle dos riscos físicos, químicos, mecânicos e biológicos existentes no ambiente de trabalho. 137 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Condições sanitárias Indicador temático que mede a qualidade dos fatores higiênicos do trabalho. Água e instalações sanitárias Neste artigo, entende-se como instalações sanitárias o local destinado ao asseio corporal e/ou ao atendimento das necessidades fisiológicas de excreção. Alojamento Alojamento é local onde os trabalhadores moram, seja em caráter temporário ou em definitivo, e devem ter condições de abrigar os trabalhadores em perfeitas condições de higiene e segurança contra intempéries e animais silvestres ou peçonhentos. Este indicador qualitativo avalia as condições de segurança e higiene dos alojamentos disponibilizados aos trabalhadores. Saúde e segurança Este indicador representa o conjunto de fatores que conformam a condição de saúde dos trabalhadores. Equipamento de proteção individual – EPI EPI é todo dispositivo ou produto, de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança e a saúde no trabalho. Atestado de saúde ocupacional - ASO e primeiros socorros Devido à peculiaridade de o trabalho rural proporcionar os mais variados tipos de acidentes e ser desenvolvido normalmente em locais de difícil acesso, o que torna o transporte do acidentado até instalações hospitalares mais próximas demorado, a NR-311 tornou obrigatório que todo estabelecimento rural deverá estar equipado com material necessário à prestação de primeiros socorros, considerando-se as características da atividade desenvolvida e realização de exames médicos a fim de monitorar a saúde dos trabalhadores. 1 Norma que regulamenta a segurança e saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura. 138 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Este indicador qualitativo serve para monitorar a saúde dos trabalhadores. Desconformidade legal penal O indicador de desconformidade legal penal contempla as variáveis presentes no Código Penal brasileiro caracterizadores de atos considerados crimes e passíveis de detenção nas relações de emprego. Servidão por dívidas Este indicador representa a relação de submissão do trabalhador em relação ao empregador derivada de dívidas contraídas durante a relação de emprego. Descontos indevidos A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no art. 462 prevê que “ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo”. Este indicador quantitativo avalia os descontos efetuados pelo empregador no salário do trabalho. Coagir compras Este indicador avalia a subordinação do trabalhador frente ao empregador ao ser este obrigado a efetuar suas compras de mantimentos diretamente do empregador, criando entre ambos o elo da escravidão por dívida. Compra da liberdade do trabalhador A compra da liberdade representa indicador qualitativo que apesar de não ter previsão legal de crime é utilizado com frequência pelos agenciadores de mão de obra como mecanismo de vínculo entre o trabalhador e o gato. Restrição de ir e vir A Constituição Federal assegura aos brasileiros o direito de livre trânsito em todo o território brasileiro em tempo de paz. A restrição a este direito representa uma das formas de violação constitucional mais utilizada pelos fazendeiros que se utilizam de vários artifícios para manter os trabalhadores imobilizados dentro das fazendas. 139 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Coação física ou psicológica A coação física aos trabalhadores, apesar de ainda existir como forma de restringir o direito de ir e vir, tem sido substituída, nos últimos tempos, pela coação psicológica uma vez que esta é mais sutil e difícil de ser detectada pelos órgãos de combate ao trabalho análogo ao de escravo. Indicador de caráter subjetivo e qualitativo que influencia o comportamento dos trabalhadores. Retenção de documentos Este indicador representa outro mecanismo de manutenção dos trabalhadores sob jugo do empregador uma vez que sem documentos os trabalhadores se sentem impotente para saírem das fazendas. Vigilância armada Indicador qualitativo tipificado como crime no Código Penal brasileiro bastante frequente na escravidão contemporânea. Desconformidade social Este indicador qualitativo expressa o exercício de cidadania pois, através dele será determinado o grau de inserção que este trabalhador tem na sociedade e o respeito a seus direitos assegurados na constituição federal. Segregação O indicador segregação expressa o nível de restrição dos trabalhadores em relação ao convívio com os outros companheiros e com as comunidades próximas ao local de trabalho. Aliciamento em outros locais. Este indicador é uma das formas sutis utilizadas pelo contratante para manter o trabalhador preso nas fazendas, uma vez que alienado de seu habitat natural o trabalhador se sente impotente para romper o contrato. Tem previsão legal de pena de detenção de um a três anos e multa. Intermediação de mão-de-obra A contratação de trabalhadores para trabalhar nas fazendas da região Norte e Centro-Oeste do Brasil na derrubada de mata ou roço de juquira normalmente ocorre através de terceiros (gatos) a mando dos fazendeiros a fim de tentar descaracterizar a contratação ilegal de mão de obra em outra localidade. 140 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Este indicador qualitativo demonstra de forma clara um dos mecanismos de construção da relação de trabalho escravo no meio rural brasileiro. Bloco informações e conhecimento Este indicador expressa qualitativamente o nível de informações que chegam ao trabalhador no tocante a informações de caráter pessoal (informações familiares), informações geográficas (se o trabalhador sabe a localização correta da fazenda onde está trabalhando), se tem informações do que ocorre na sociedade através de rádio, televisão, jornais e revistas. Informações gerais/contratuais As informações trabalhistas expressam o grau de conhecimento do trabalhador em relação aos direitos trabalhistas, e indica a possibilidade de defesa destes direitos na relação de emprego, pois quanto menor o grau de conhecimento dos seus direitos mais fácil será mantê-lo em condições de escravidão. Este indicador expressa a conformidade entre o contrato firmado (verbal ou escrito) entre o trabalhador e o empregador no momento da contratação e o efetivamente cumprido pelas partes durante o contrato de trabalho. Isolamento social Indicador de caráter qualitativo expressa o nível de liberdade dos trabalhadores em relação ao convívio com os outros trabalhadores e com as comunidades próximas ao local de trabalho e se é assegurado o direito constitucional de ir e vir. Valoração dos Indicadores A aplicação do modelo tem início com a elaboração de uma planilha, onde são anotados os indicadores primários que, segundo o grupo decisor, melhor caracterizam o trabalho análogo ao de escravo. O indicador temático está disposto na planilha logo abaixo dos indicadores primários de forma a melhorar a visualização de cada tema, bem como, facilitar a visualização da influência de cada indicador primário no indicador temático. Planilha operacional A planilha operacional do modelo em estudo apresenta em sua parte superior, campos destinados à identificação da empresa em que devem ser inseridos nome; endereço; número do Cadastro Nacional de Pessoa jurídica (CNPJ); Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e números de empregados. 141 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Na parte inferior da planilha, constam os nomes dos indicadores primários e temáticos. Cada indicador poderá assumir quaisquer valores entre zero (melhor situação) e Um (pior situação). À medida que os valores dos indicadores primários são inseridos, os valores dos indicadores temáticos se alteram automaticamente, refletindo a influência de cada indicador primário em seu bloco temático e, simultaneamente, é apresentada na parte inferior da planilha a identificação do trabalho que vai se alterando conforme a influência do indicador no modelo e pode assumir as seguintes classificações: descumprimento de norma; análogo ao de escravo. Aplicação do modelo em uma situação real O modelo de auxílio de identificação de trabalho análogo ao de escravo, acima exposto, foi aplicado em uma situação real de fiscalização do GEFM do MTE, na cidade de Sobral-CE, em fevereiro de 2006. Durante a ação foram retirados 41 (quarenta e um) trabalhadores, todos oriundos do Maranhão, em função das condições de trabalho serem consideradas comparáveis a escravidão. O nome da empresa aposto na planilha, bem como o endereço, o CNPJ, o CNAE e o número de trabalhadores são todos fictícios, entretanto, os valores dos indicadores são verdadeiros e correspondem ao consenso do GEFM em relação ao cenário encontrado. MINISTÉRIO DO TRABALHO EMPRESA IDENTIFICAÇÃO DE TRABALHO ANÁLOGO À DE ESCRAVO EMPRESA FICTÍCIA LTDA ENDEREÇO Rua Padre Fialho nº 100 CNPJ 00,999,000/11111-00 CNAE NÚMERO DE EMPREGADOS Descanso semanal 1414 100 SITUAÇÃO EXISTENTE - AVALIÇÃO DE PROBLEMAS 0,8 Férias 0,0 CARGA DE TRABALHO Contribuição previdenciária 1,0 Salário 0,5 EPI 0,8 Jornada 0,7 Registro Água/instalações sanitárias 0,5 1,0 REMUNERAÇÃO 1,0 exames médicos/primeiros socorros Alojamento 142 1,0 0,7 1,0 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas CONDIÇÕES SANITÁRIAS 0,9 NR 31 retenção de documentos 0,8 0,0 RESTRIÇÃO DE IR E VIR 0,2 Coação física 0,0 Vigilância armada 0,0 compra da liberdade informações sobre o contrato 0,3 1,0 SERVIDÃO POR DÍVIDA INFORMAÇ. E CONHECIMENTOS intermediação de mão de obra Isolamento 0,9 Coagir compras 0,0 Decontos 0,7 1,0 0,0 aliciamento em outra localidade 0,3 SEGREGAÇÃO 0,9 IDENTIFICAÇÃO DO TRABALHO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO 1,0 Planilha 1-Situação real encontrada na empresa Fictícia Ltda na cidade de Sobral-CE 2006 A análise de todas essas variáveis de saída será demonstrada a fim de melhorar a compreensão da identificação de trabalho apresentada para esta situação real. A análise é realizada na mesma sequência da planilha de identificação do trabalho escravo. Lembrando que, apesar de estar oculta na planilha, por motivos estéticos, as variáveis “carga de trabalho” e “remuneração” formam juntas a “desconformidade legal trabalhista”; que as variáveis de saída, “condições sanitárias” e “NR-31” constituem a “desconformidade legal de segurança”; que as variáveis de saída, “restrição de ir e vir” e “servidão por dívida” formam a “desconformidade legal penal” e por fim as variáveis de saídas “informação” e “conhecimento” formam a “desconformidade social”. Figura 1 - Variável de Saída Carga de trabalho O indicador temático carga de trabalho pertence ao conjunto de variável linguístico ótima com pertinência igual a (0,0); tem pertinência (0,6) em relação ao conjunto linguístico boa; já em relação ao conjunto linguístico 143 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) média tem pertinência (0,2) e pertinência (zero) em relação ao conjunto linguístico ruim. Figura 2 - Variável de saída Remuneração O indicador temático “remuneração” pertence ao conjunto de variável linguístico “ótima” com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico “boa” tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico “média” tem pertinência (0,4) e em relação ao conjunto linguístico “ruim” tem pertinência (0,6). Figura 3 - Variável de saída Desconformidade legal trabalhista O indicador Desconformidade legal trabalhista tem como entrada os dois indicadores retro analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouca tem pertinência (0,5); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (0,9) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência (zero). O que demonstra que aqueles indicadores influenciam medianamente a desconformidade legal trabalhista. 144 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Figura 4 - Variável de saída Condições sanitárias O indicador de saída condições sanitárias pertence ao conjunto de variável linguístico ótima com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico boa tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e tem pertinência máxima (1), em relação ao conjunto linguístico ruim. Figura 5 -Variável de saída NR-31 O indicador de saída NR-31 tem pertinência igual a (zero) em relação ao conjunto de variável linguístico ótimo; em relação ao conjunto linguístico bom tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico médio tem pertinência (zero) e máxima (1) em relação ao conjunto linguístico ruim. 145 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Figura 6 - Variável de saída Desconformidade legal de segurança O indicador Desconformidade legal de segurança tem como entrada os dois indicadores acima analisados e tem pertinência igual a (zero) em relação ao conjunto de variável linguístico nenhuma; com relação ao conjunto linguístico pouca tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e tem pertinência máxima (1) em relação ao conjunto linguístico alta. O que demonstra que aqueles indicadores influenciam a desconformidade legal trabalhista com a máxima intensidade, fazendo com que este indicador influencie intensamente o indicador sistêmico identificação de trabalho análogo ao de escravo. Figura 7 - Variável de saída Restrição de ir e vir O indicador temático restrição de ir e vir pertence ao conjunto de variável linguístico nenhum com pertinência igual a (0,6); tem pertinência (0,4) em relação ao conjunto linguístico pouca; em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência (zero). 146 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Figura 8 - Variável de saída Servidão por dívida O indicador temático servidão por dívida pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (0,9); em relação ao conjunto linguístico pouca tem pertinência (0,1); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência (zero). Figura 9 – Variável de saída Desconformidade legal penal O indicador Desconformidade legal penal tem como entrada os dois indicadores retro analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (1,0); tem pertinência (0,1) em relação ao conjunto linguístico pouca; já em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta também tem pertinência (zero). O que demonstra que aqueles indicadores influenciam a desconformidade legal penal com intensidade bastante baixa fazendo com que este indicador influencie minimamente o indicador sistêmico identificação de trabalho escravo. 147 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Figura 10: Variável de saída Informação O indicador temático informação pertence ao conjunto de variável linguístico ótima com pertinência igual a (0,0); em relação ao conjunto linguístico boa tem pertinência (1,0); já em relação ao conjunto linguístico médio tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico ruim também tem pertinência (zero). Figura 11: Variável de saída Segregação O indicador temático segregação pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouca tem pertinência (zero); também em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (zero) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência máxima (1). 148 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Figura 12: Variável de saída Desconformidade social O indicador Desconformidade social tem como entrada os dois indicadores acima analisados e pertence ao conjunto de variável linguístico nenhuma com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouca tem pertinência (zero); em relação ao conjunto linguístico média tem pertinência (1,0) e em relação ao conjunto linguístico alta tem pertinência (zero). O que demonstra que aqueles indicadores influenciam a desconformidade social com intensidade média, fazendo com que este indicador influencie medianamente o indicador sistêmico identificação de trabalho escravo. Variável de saída Identificação de trabalho análogo ao de escravo Observa-se pela figura 9 que para a situação real encontrada na EMPRESA FICTÍCIA LTDA, o indicador sistêmico identificação de trabalho análogo à de escravo pertence ao conjunto de variável linguístico pouquíssimo com pertinência igual a (zero); em relação ao conjunto linguístico pouco tem pertinência (0,5); em relação ao conjunto linguístico médio tem pertinência (1,0) e tem pertinência (zero) em relação ao conjunto linguístico alto. Figura 13: Identificação de trabalho escravo 149 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A identificação das condições de trabalho mostrada na figura 9 indica que 0,5556 das condições ideais de trabalho estão sendo descumpridas e, portanto caracterizam as condições de trabalho análogo as de escravo conforme determinado pelo grupo decisor. É importante ressaltar que mesmo o bloco desconformidade legal penal tendo uma contribuição bastante pequena na identificação de trabalho comparável à escravidão por ser constituída em relação a variável nenhuma com o valor máximo (1,0); a desconformidade de segurança e saúde por ter grau de pertinência máxima (1) trouxe a caracterização para a parte central do diagrama, o que foi preponderante para a identificação de escravidão. Fica demonstrado, neste caso, que mesmo não havendo as infrações previstas no código penal e presentes no modelo, as outras variáveis tiveram bastante significância na caracterização do cenário e quase que sozinhas puderam identificar as condições de trabalho encontradas na empresa FICTICIA LTDA como trabalho análogo ao de escravo. Conclusões e recomendações O modelo desenvolvido serve para auxiliar à identificação das condições de trabalho mesmo em condições limítrofes de descumprimento de normas. Estas últimas, às vezes, caracterizadoras de trabalho degradante que são em última instância, trabalho análogo ao de escravo. O modelo procurou contemplar o maior número possível de variáveis constantes no ordenamento jurídico brasileiro e nas convenções internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil, a fim de ser o mais fiel as leis tuteladoras do trabalho. A construção do modelo partiu inicialmente de uma revisão dos conceitos de trabalho escravo ao longo da história e em especial da escravidão brasileira do período colonial e contemporâneo. Em seguida foi realizado um estudo do ordenamento jurídico brasileiro pertinente ao assunto de forma a embasar a escolha das variáveis do modelo. Ponto importante na construção do modelo foi a constituição de um grupo interministerial de decisores com participação de auditores fiscais do MTE, e de procurador do MPT para a escolha e valoração das variáveis presentes no mesmo. O método utilizado para a pesquisa, onde as variáveis escolhidas são fruto de decisões de consenso de especialistas revelou-se importante para que o mesmo se mostrasse sensível e robusto durante a validação em uma situação real de fiscalização do MTE, no município de Sobral-CE. O Modelo desenvolvido ao ser aplicado para validação em uma fiscalização de combate ao trabalho análogo ao de escravo do GEFM do MTE, respondeu de forma precisa, ao identificar como o trabalho com caracterís150 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas ticas de escravidão um cenário em que os blocos temáticos, restrição de ir e vir e servidão por dívida, ambos constituídos totalmente por indicadores primários caracterizadores de crime de acordo com os art. 149 e 207 do código penal, apresentavam respectivamente 0,3 e 0,2 como valores de entrada no bloco desconformidade legal penal, o que poderia sugerir que o cenário fiscalizado seria identificado apenas como descumpridor de normas do trabalho, entretanto, o bloco desconformidade legal de segurança constituído pelos indicadores temáticos condições sanitárias e NR-31 que apresentavam valores máximos de (1,0) conseguiu influenciar a identificação das condições de trabalho como trabalho análogo ao de escravo, contrariando o senso comum inicial. Diante do exposto, conclui-se que o modelo de auxílio de identificação de trabalho análogo ao de escravo é sensível e robusto a ponto de auxiliar os decisores em situações limites, como a que se apresentou no caso concreto de aplicação do modelo na empresa Fictícia Ltda em que todos os indicadores do bloco desconformidade legal, crimes de acordo com Código Penal, não estavam presentes. No entanto, a saída desfuzificada do indicador sistêmico do modelo apresentou valor igual a 0,5185 conforme figura 9, classificando a situação como trabalho análogo ao de escravo. Vale ressaltar que este é o primeiro modelo desenvolvido no Brasil utilizando lógica difusa que se debruça sobre a caracterização de trabalho análogo ao de escravo. O modelo de auxilio de identificação de trabalho análogo ao de escravo apesar de se apresentar bastante sensível e robusto, conforme demonstrado acima, pode e deve ser aprimorado pelos agentes sociais que tenham interesse em fazê-lo, uma vez que variáveis podem ser facilmente suprimidas ou introduzidas no modelo ou valoradas de acordo com o entendimento dos decisores. O objetivo principal deste artigo é a construção de um modelo de auxílio de decisão na identificação de trabalho análogo ao de escravo como demonstrado acima, foi atingido. Limitações do modelo Existem alguns fatores que representam limitações à sua aplicação, e estão basicamente relacionadas à lógica Fuzzy, ao programa FuzzyTECH ®, à apuração de indicadores e à interpretação dos resultados. As limitações relacionadas à lógica Fuzzy se devem, principalmente, ao hábito ocidental de raciocinar, baseado na lógica Cartesiana, muito embora o homem pense, intuitivamente, de maneira fuzzy. 151 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Outra limitação é o custo do programa fuzzyTECH ® que por ser um produto importado é caro, e o idioma, já que o programa é apresentado somente com versões em inglês e alemão, fatores que restringem o uso de forma mais ampla. As limitações relacionadas ao uso dos indicadores residem no fato de que estes precisam ser definidos baseados no ordenamento jurídico brasileiro, o que requer equipe de especialistas. Uma limitação do programa é quanto ao número de indicadores primários a 20 (vinte), isto obriga os decisores a desprezar algumas variáveis significativas que poderiam estar presente no modelo. As limitações relacionadas à interpretação dos resultados se devem ao fato de que nem sempre quem vai aplicar o modelo tem conhecimento de como funciona a pertinência dos conjuntos difusos, por isso foi elaborada a planilha Excel de entrada e saída de dados em que apenas a interface das variáveis primárias, temáticas e sistêmica são mostradas ao usuário, bem como a identificação das condições de trabalho que é mostrada na planilha de forma simultânea a inserção de dados. O modelo foi validado em uma fiscalização de combate ao trabalho análogo à de escravo na cidade de Sobral-CE pelo GEFM. A valoração dos indicadores de entrada foi obtida através de discussão e consenso entre os membros do GEFM. Os resultados de saída Fuzzy foram desfuzzyficados em valores discretos a fim de facilitar a identificação das condições de trabalho. O valor final da variável Identificação de trabalho análogo à de escravo obtido, mostra que o modelo é sensível e robusto e consegue aconselhar os decisores em situações limítrofes. Também pode ser expresso em porcentagem se for conveniente para uma melhor compreensão por parte do aplicador do modelo. Espera-se, ainda, que este modelo contribua para melhorar a transparência nas decisões de identificação das condições de trabalho. Referências CASTILHO, Ela Wiecko. Relatório Final da Subcomissão de Trabalho Escravo, Brasília. Série ação parlamentar, 1994. MARTINS, José de Souza. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação (Reflexões sobre riscos da intervenção subinformada). São Paulo: Edições Loyola, 1999. MARTINS, José de Souza, O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Ciências Humanas, USP, 1979. 152 2 A cabeça do libertador 1 Jaqueline Gomes de Jesus A Psicologia Social e do Trabalho tem muito a contribuir para a compreensão e formulação de estratégias de intervenção no combate ao trabalho escravo. Essa forma de exploração do trabalho demanda não apenas ações de resgate e remuneração imediata dos escravos, mas principalmente a viabilização de modelos alternativos para se empregar estes trabalhadores e de vinculação social, estimulando mudanças psicossociais. A partir das percepções dos respondentes sobre a organização do trabalho, foram investigadas as vivências de prazer e de sofrimento, e com base na Teoria das Representações Sociais, o campo representacional de pessoas que libertam escravos no Brasil contemporâneo. O estímulo para se refletir psicossocialmente acerca da escravidão, sob a ótica dos oprimidos, foi a constatação prática de que, apesar dos tão decantados progressos da humanidade no afã de humanizar-se, ainda hoje nos defrontamos com um número vultuoso de seres humanos excluídos da economia de mercado, do amparo das leis e, ao nível mais básico, de alimentação equilibrada, de saúde pública digna, de moradia, da compaixão por parte de tantos cidadãos de bem e de seus principais exploradores. 1 O texto se refere à primeira parte da dissertação de mestrado (JESUS, 2005), orientada pela professora Maria das Graças Torres da Paz e co-orientada pela professora Ângela Maria de Oliveira Almeida, às quais agradeço. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Muitos são os atores sociais que se defrontam de forma comezinha com o fenômeno da escravidão no Brasil contemporâneo: pessoas escravizadas, pessoas que escravizam e as que libertam; os sujeitos desta investigação são os últimos. Este trabalho, de cunho psicossocial, pouco abordado nas investigações sobre o fenômeno em questão, propôs-se a perscrutar dois aspectos: em primeiro lugar, com base na Teoria das Representações Sociais e organizando os relatos dos sujeitos em categorias relativas a prazer, sofrimento e organização do trabalho, interpretar as percepções e a construção da identidade profissional de trabalhadores ocupados com a libertação de pessoas submetidas aos regimes contemporâneos de escravidão. Em segundo lugar, identificar o núcleo central e os sistemas periféricos das representações sociais dos libertadores. Para fins de coadunação entre a linguagem empregada e a conceituação teórico-metodológica, alerta-se que, toda vez que se cita o termo escravidão se deve compreender que se está referindo a trabalho escravo, enquanto categoria a qual abriga a ideia de que a escravidão é uma situação diretamente relacionada ao mundo do trabalho. Além disso, aponta-se, igualmente, que prazer e sofrimento são aqui entendidos unicamente como fatores de satisfação e de insatisfação, respectivamente, não se relacionando a qualquer corpus ou arcabouço teórico específico; portanto, sempre que se ler a expressão escravidão, entenda-se trabalho escravo, e quando se encontrar os termos prazer e sofrimento nesta dissertação, entenda-se-os por satisfação e insatisfação. Aspectos sócio-históricos da escravidão O trabalho em determinadas condições, baseado em relações de exploração, dependendo do seu grau de infra-humanização, criou duas categorias de pessoas: os cidadãos e os escravos. Há hipóteses de que o domínio da agricultura, na pré-história, tenha possibilitado a preservação da vida das pessoas derrotadas em batalhas tribais, em função do excedente de alimentos: [...] os escravos podiam ser utilizados para cuidar dos rebanhos ou para trabalhar nos campos. Eles aumentavam a riqueza e o conforto do captor. Providenciavam-lhe comida e poupavam-lhe das tarefas árduas e desagradáveis. Finalmente, a agricultura avançou ao ponto de ser lucrativo usar um grande número de escravos para trabalhar na terra [...] (MELTZER, 2003, p. 15). A escravidão subsistiu durante toda a Antiguidade, na Idade Média (MELTZER, 2003, p. 177-194) e, depois, foi amplamente utilizada pelas 156 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas economias nacionais durante o período Moderno, por meio da exploração transatlântica da mão-de-obra de africanos, o que se tornou fator fundante da mentalidade ocidental, como cultura da opressão, da exclusão, da imagem do cidadão negro e no próprio significado da América para os americanos (DAVIS, 2001), visto que a escravidão do africano é: [...] resultado de inúmeras decisões de interesses próprios tomadas por comerciantes e soberanos na Europa e na África, foi uma parte intrínseca do desenvolvimento americano a partir das primeiras descobertas, isso concomitantemente à constatação de que “os sonhos e ideais incorporados a diversas imagens do Novo Mundo não entravam, necessariamente, em conflito com a escravização de um povo estrangeiro (p. 40, 2001). O trabalho escravo é, ainda hoje, uma realidade global, encontrado inclusive nos países desenvolvidos como Estados Unidos (mão de obra latino americana em plantações do sul) e França (mulheres islâmicas no trabalho doméstico abusivo), e que se relaciona a fluxos migratórios e ao tráfico de seres humanos. A escravidão contemporânea se estrutura em torno de organizações isoladas do Estado: fazendas em regiões muito afastadas dos núcleos urbanos ou, nas cidades, em casas de prostituição e no trabalho doméstico abusivo (PAIVA, 2003). Trabalho escravo no Brasil contemporâneo O Brasil escraviza o seu povo por meio da exclusão social estruturalmente integrada à cultura nacional, como denota Véras (2002): além da humanidade formada de integrados (ricos e pobres), inseridos de algum modo no circuito das atividades econômicas e com direitos reconhecidos, há uma outra humanidade no Brasil, crescendo rápida e tristemente através do trabalho precário, no pequeno comércio, no setor de serviços mal pagos, tratados como cidadãos de segunda classe e, acrescente-se, literalmente escravizados (p. 40). No território brasileiro, as migrações que fornecem recursos humanos às organizações escravocratas são internas, restritas ao território nacional, englobando, principalmente, estados das regiões Nordeste e Norte do País (FIGUEIRA, 2001). Organismos nacionais e internacionais se articulam para combater a exploração do trabalho escravo. O Ministério do Trabalho e Emprego, em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho fiscalizam, combatem o trabalho escravo e coletam depoimentos dos libertos; vários agentes não-governamentais também estão envolvidos. 157 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A predominância da escravidão contemporânea em fazendas é um dos sintomas dos graves problemas sociais do meio rural brasileiro, a experiência do subsídio não-uniforme do capitalismo agrário para o capitalismo urbano-industrial foi vivenciada no Brasil, na expressão de Fernandes (1979), concomitantemente à resistência sociopática à mudança social (p. 105), caracterizada, como aponta o autor, por comportamentos econômicos autodefensivos e autocompensadores (p. 109) subcapitalistas. O subcapitalismo é compreendido como um fenômeno regionalizado do capitalismo, particularmente brasileiro, no qual as práticas capitalistas remontam, ao menos indiretamente, ao capitalismo mercantil, podendo se caracterizar, dentre outros fatores, pelo uso de mão de obra não-capacitada. O agronegócio, dadas as particularidades sócio-econômicas e educacionais do país, e apesar das regulares instabilidades nesse mercado, decorrentes da volatibilidade nos preços internacionais dos insumos (VIDOR, 2005) —, é de suma importância para o superávit primário da balança de pagamentos brasileira. Como afirmam Sorj, Pompermayer e Coradini (1982), sempre o setor agrícola brasileiro, enquanto setor tradicional da economia, esteve “articulado ao setor moderno [urbano-industrial], servindo ao processo de acumulação de capital, especialmente através de mecanismo de oferta de alimentos a preços baixos, além de ser uma fonte geradora de força de trabalho” (p. 10). O comportamento da economia agrária relatado por Fernandes (1979) é estrutural, e sua relação com a economia urbana é tão direta que, segundo Fernandes (1979), para que o capital possa reproduzir na economia urbana o trabalhador assalariado, é necessário que exista na economia agrária o capital que reproduz o trabalhador semilivre (p. 114); sustendo essa lógica, considere-se que a existência do trabalhador escravo ou semelho ao escravo no campo, reflexo da desproletarização da economia agrária brasileira, explica e aponta para as mazelas nas atuais condições do trabalho assalariado no meio urbano. Fernandes (1979) nos leva a corroborar que: [...] as populações rurais despossuídas e pobres sofrem o desenvolvimento capitalista como uma espécie de hecatombe social” (p. 117), concomitantemente, as representações sociais da população brasileira, endemicamente explorada, estão diretamente vinculadas à “primeira grande contradição com a qual o país tem que lidar: uma riqueza extrema, e altamente concentrada, e uma pobreza extrema, altamente distribuída (Jovchelovitch, 2000; p. 25). 158 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Portanto, modos de exploração do trabalho, como a escravidão, não podem ser tidos como excepcionais, mas como elementos constitutivos do tecido social brasileiro, e para que sejam efetivamente superados e suprimidos, precisam ser refletidos como tais: representações sociais. A Teoria das Representações Sociais – TRS (Moscovici, 1978) considera que as representações sociais são formas modernas para o ser humano apreender as relações do mundo concreto. Uma representação social é, segundo Abric (2003): [...] um conjunto organizado de informações, de opiniões, de atitudes e de crenças acerca de um dado objeto. Produzida socialmente, ela é fortemente marcada pelos valores correspondentes ao sistema sócioideológico e à história do grupo que a veicula, pelo qual ela constitui um elemento essencial de sua visão do mundo (p. 59). É a consideração de que o objeto de reflexão da Teoria das Representações Sociais – TRS são as relações entre os indivíduos e a sociedade, inseridas no contexto histórico e cultural, o que determina a TRS como referencial teórico-metodológico da presente pesquisa; visto que o fenômeno sócio-econômico da escravidão contemporânea é compreendido como constituído, por elementos afetivos, mentais e sociais particulares, e como forte determinante da realidade material, cognitiva e social dos atores envolvidos, pode-se enquadrá-lo como um objeto por excelência de estudo de representações sociais: adotando-se a classificação apresentada por Oliveira e Werba (2002), ao nível fenomenológico, por mais abomináveis que sejam, os focos de escravidão, nas suas relações entre escravocratas-opressores, escravos-oprimidos e libertadores são elementos da realidade social (p. 105) caracterizados por modos de conhecimento, saberes do senso comum que surgem e se legitimam na conversação interpessoal cotidiana e têm como objetivo compreender e controlar a realidade social. A pesquisa investigou as percepções dos libertadores de pessoas submetidas à escravidão contemporânea quanto ao seu trabalho e as suas vivências de prazer e sofrimento. Método Participaram da pesquisa dez (n = 10) libertadores de escravos. Seis sujeitos representando o governo brasileiro, três sujeitos representando um organismo internacional e um sujeito representando uma organização não-governamental, sete (n = 7) do sexo masculino e três (n = 3) do sexo 159 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) feminino; quanto ao grau de escolaridade, nove (n = 9) completaram o ensino superior, e um (n = 1) o ensino médio. Foram aplicadas entrevistas individuais semi-estruturadas, baseadas em um roteiro amplo, formadas por questões abertas relacionadas à descrição do trabalho, sentimentos em relação a este, dificuldades encontradas, concepções e sentimentos relacionados à dinâmica profissional. As entrevistas foram flexibilizadas de modo a centrar-se empaticamente na pessoa do entrevistado, procurando reformular as questões de acordo com o desenvolvimento da conversação e estimulando o entrevistado com relação aos temas discutidos. Foram gravadas em fitas K7, posteriormente degravadas, resultando em um total de 4 horas e meia de gravações, e seus dados perscrutados de acordo com a análise de conteúdo (BARDIN, 1995), baseada em análise categorial temática, composta de análise por juízes e agrupamento de categorias encontradas em função da semelhança semântica e lógica. Resultados Foram identificados 111 temas, os quais foram organizados em nove categorias. A análise temática categorial das entrevistas indicou uma categoria-síntese para cada conjunto de três categorias: (1) organização do trabalho, (2) vivências de prazer e (3) vivências de sofrimento. A categoria-síntese Organização do trabalho foi estruturada em torno das categorias a) dinâmica do trabalho, b) impotência e c) sucesso. Dinâmica do trabalho engloba temas emotivamente neutros, essencialmente descritivos da rotina de trabalho do libertador, tais como a distribuição das tarefas, regras e normas e estrutura de subordinação. Foi indicada por verbalizações como: • “Desde noventa e sete, eu venho trabalhando, bastante ativamente, na implementação final dos projetos, tanto na área tecnológica quanto social” • “A gente se encontrava semanalmente, e aí, surgiram os trabalhos que são realmente, daí para frente, todos em grupo. Todo mundo decide quase tudo” • “Nós temos sete coordenações, ta? São esses coordenadores, coordenador. Como é que funciona? Nós recebemos denúncias” Impotência engloba temas de vivência de sofrimento diretamente relacionados à rotina de trabalho do libertador, voltadas para as próprias tarefas, 160 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas o modo como são executadas e suas consequências, envolvendo reforços negativos aos seus trabalhos, e foi indicada por verbalizações como: • “É... com uma sensação muito... muitas vezes, de impotência, né?” • “Então, está tudo mais ou menos aí, direitinho. Para sair isso daí, nossa! Teve trocentas mil reuniões, né?” • “A impotência e a frustração, que eu falei no início, que... é normal, é até bom que a gente se... tenha essa capacidade ter esses sentimentos...” Sucesso envolve temas de vivência de prazer diretamente relacionados à realização efetiva da tarefa ou à valorização da formação profissional do libertador. Foi indicada por verbalizações como: • “Acabei caindo aqui, meio que de pára-quedas, mandei currículo e me chamaram. E para minha sorte” • “Trabalhando em um ambiente agradável... é bem satisfatório... é, ainda tem a parte, digamos assim, compensatória, né? O salário...” • “É uma organização que... realmente... aonde você tem prazer de trabalhar pelo... pelo ambiente, pelo caráter e formação técnica das pessoas” A Tabela 1 aponta as categorias presentes em cada entrevista, no referente à organização do trabalho, com a distribuição das frequências brutas de verbalizações de cada categoria. Tabela 1: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Organização do Trabalho Entrevistas Dinâmica do trabalho Impotência Sucesso A 16 03 08 B C D E F 12 27 13 08 17 13 21 28 27 I 10 J 07 07 14 22 25 13 Total 12 22 G H 19 17 02 13 16 08 179 116 Fonte: JESUS, 2005 161 08 15 10 138 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) De acordo com a Figura 1, a categoria Dinâmica do trabalho ocupou 41% dos conteúdos verbalizados sobre a organização do trabalho, Impotência contabilizou 27% e Sucesso correspondeu a 32%. 32% 41% 27% Dinâmica do trabalho Impotência Sucesso Figura 1- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Fonte: JESUS, 2005. A categoria-síntese Vivência de sofrimento foi composta pelas categorias relativas a) à pessoa escravizada, b) à pessoa que escraviza e c) à sociedade onde se escraviza. A vivência de sofrimento relativa à pessoa escravizada engloba temas em que o libertador demonstrou insatisfação com a precariedade e a condição subumana da pessoa submetida ao trabalho escravo, objeto de combate de seu próprio trabalho, ou atribuiu ao escravo características negativas. Foi indicada por verbalizações como: • “A gente via fotos de pessoas que tinham falecido, de pessoas que estavam machucadas, que não tinham auxílio nenhum, então, assim, isso tudo é muito degradante, assim, para o homem” • “Quando tu vê uma menina dizer... ela está presa numa agência, onde ela tem regras e normas, onde ela precisa... ela é ameaçada de morte, ela fica presa em cativeiro, tu vê a dor, tu vê a angústia, tu vê a lesa que isso leva para a vida dessa adolescente” • “Essa mágoa, esse ressentimento, essa vontade de sair dessa situação... mas, muitas vezes, impedida, justamente, por falta de uma retaguarda, seja de políticas públicas, né? Ou de... de uma mão, um colo mesmo, de quem está do lado e que possa estar ajudando a resolver esse problema” A vivência de sofrimento relativa à pessoa que escraviza engloba temas diretamente relacionados à prática escravocrata, seja praticada pelo ge162 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas renciador e guarda dos escravos, denominado “gato”, ou pelo proprietário das terras, que explora mão de obra escrava pelo intermédio do gato. Foi indicada por verbalizações como: • “Olha, é uma escória humana, não é? Que só pensa no lucro, pelo lucro, não importa os meios para atingir esse lucro, para competir... eu diria... que é até uma deformação de caráter” • “Tem uma defecção muito grande, que ele acha que está fazendo muito por aquele indivíduo, ele diz ‘Olha, se eu não colocar ele aqui, ele morre de fome. Morre de fome aí na cidade’, então, ele acha que aquilo, ele já está fazendo demais” • “Então, é um pessoal de muita truculência, muito articulados. Sabem se expressar muito bem, sabem manejar recursos sofisticados, de mídia, inclusive, de assessoria de imprensa, para a continuidade dessa sua exploração” A vivência de sofrimento relativa à sociedade onde se escraviza envolve temas relacionados à formação escravocrata da sociedade brasileira e sua permanência na contemporaneidade sócio-cultural, além de temas econômicos que, na visão dos libertadores, favorecem a escravidão. Foi indicada por verbalizações como: • “Para você ter uma ideia, de cada cem trabalhadores no meio rural, mais de oitenta não têm sequer carteira de trabalho assinada. Quer dizer, isso demonstra que, no meio rural, há uma ausência da aplicação dos direitos trabalhistas. E é nesse caldo de cultura, nesses milhões de brasileiros, que você vai encontrar a superexploração, que é o trabalho escravo” • “A terra está em mãos de poucos, né? Você vai numa fazenda aí, no Mato Grosso, Tocantins, Pará, as fazendas são de trinta mil alqueires de terra. Isso é uma coisa fabulosa, né? Famílias que vão ser exploradas ali, estão sendo exploradas como escravos” • “Se em determinado lugar, se colocar uma placa: ‘Aceitam-se trabalhadores escravos’, vai ter gente que vai se inscrever. Que não está indo iludida, entendeu? Então, infelizmente, é uma realidade econômica muito grave” A Tabela 2 aponta as categorias presentes em cada entrevista, com o total das verbalizações de cada uma. 163 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Tabela 2: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Vivência de Sofrimento Entrevistas Pessoa escravizada Pessoa que escraviza Sociedade que escraviza A 02 00 03 B 23 51 41 C 17 06 03 D 02 00 28 E 57 52 75 F 41 19 26 G 07 00 06 H 58 36 40 I 12 21 05 J 03 11 05 Total 222 196 232 Fonte: JESUS, 2005 A vivência de sofrimento relativa à sociedade onde se escraviza correspondeu a 36% dos conteúdos, a relativa à pessoa escravizada ocupou 34% e à pessoa que escraviza correspondeu a 30% das verbalizações de acordo com a Figura 30% 36% 34% Sociedade que escraviza Pessoa escravizada Pessoa que escraviza Figura 2- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – VIVÊNCIA DE SOFRIMENTO Fonte: JESUS, 2005. 164 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas A categoria-síntese Vivência de prazer foi organizada em categorias relacionadas a) ao liberto, b) ao libertador e c) à sociedade onde se liberta. A vivência de prazer relativa à pessoa liberta engloba temas em que o libertador expressou felicidade com a libertação da pessoa submetida ao trabalho escravo, ou atribuiu-lhe características humanas positivas. Foi indicada por verbalizações como: • “Por isso que eu falo, ainda assim, eles são muito fortes. Depois que você for considerar, e ver a cara deles, até que eles são muito fortes” • “São especializados em trabalhar a terra, historicamente, assim, só fizeram isso, seus ascendentes todos só fizeram isso, e não têm terra, né?” • “Quase toda semana, todo mês, a gente recebe agradecimentos dos sindicatos, dos trabalhadores, com satisfação, por ter resolvido o problema” A vivência de prazer relativa à pessoa que liberta engloba temas relacionados à percepção que o libertador tem do retorno positivo de seu trabalho, articulado em função de seus próprios recursos como profissional, e da visão positiva que desenvolve sobre si mesmo. Foi indicada por verbalizações como: • “Eu assumo essa missão, sabe? Na minha vida, de buscar fazer com que a gente tenha um mundo melhor” • “A gente se sente valorizada sim, por cada peça... aquilo que eu te falei” • “A gente se sente sim, reconhecido, e, para mim, graças a Deus, tem sido uma honra trabalhar aqui” A vivência de prazer relativa à sociedade onde se liberta envolve temas relacionados à transformação da realidade brasileira, com vistas a uma conscientização do povo e abertura de perspectivas que levem ao fim da escravidão. Foi indicada por verbalizações como: • “O que tem destacado o Brasil, nesse processo, é que o Brasil é um dos únicos países que reconhece a escravidão no país. E tem tomado medidas governamentais para erradicação da escravidão” • “O Brasil está avançando muito no combate ao trabalho escravo” • “A gente percebeu, também, que depois da morte dos fiscais do trabalho em Unaí, eles deram muita visibilidade na mídia, muita. 165 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Então foi bom, porque a gente tem a nossa campanha. Foi bom entre aspas, né? Precisou morrer, para darem a visibilidade, para o governo dar mais atenção ao tema” A Tabela 3 aponta as categorias presentes em cada entrevista, com o total das verbalizações de cada uma. Tabela 3: Quadro-resumo das categorias por entrevista – Vivência de Prazer Entrevistas Liberto Libertador Sociedade que liberta A 01 02 00 C 00 14 03 B D 00 00 E 02 G 00 I 01 F H J Total 20 05 05 17 00 02 22 09 08 02 02 00 22 02 15 00 13 15 08 14 104 84 Fonte: JESUS, 2005 A categoria de vivência de prazer relativa ao libertador ocupou 53% dos conteúdos verbalizados, seguida de vivência de prazer relativa à sociedade que liberta (43%), e vivência de prazer com relação à pessoa liberta (4%), como apresenta a Figura 3. 4% 43% 53% Liberto Sociedade que liberta Libertador Figura 3- DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS – VIVÊNCIA DE PRAZER Fonte: JESUS, 2005 166 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas A Figura 4 apresenta a distribuição de frequência percentual das categorias-síntese conjuntamente, indicando que, dos conteúdos expressos e reiterados pelos libertadores, 51% se referiam à vivência de sofrimento; 34% à organização do trabalho e 15% à vivência de prazer. 15% 34% 51% Organização do trabalho Vivências de prazer Vivências de sofrimento Figura 4 – DISTRIBUIÇÃO DAS CATEGORIAS - SÍNTESE Fonte: JESUS, 2005 Discussão Paz (1999) afirma, no concernente à perspectiva de Justiça nas organizações, que: [...] o conflito surge, dentre outras ocasiões, quando as pessoas começam a preocupar-se com as recompensas resultantes do aumento de produtividade decorrente de suas contribuições. Faz-se necessária, então, a existência de um conjunto de regras que norteie e assegure um acordo para distribuição correta de benefícios (p. 271). Essa reflexão é fundamental para se pensar o papel dos escravizadores na relação escravagista: para eles, a exploração é justa, em função de determinados fatores sociais, e suas alegações, quando questionados, remetem a uma alegada incapacidade dos oprimidos, manifesta como a impossibilidade de encontrarem trabalho. O escravagista e o escravo são socialmente representados pelo libertador com imagens menos positivas do que aquelas com as quais o libertador se representa. A Figura 5 apresenta, com base na Teoria das Representações Sociais (TRS), a organização do campo representacional dos libertadores de escravos. 167 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) *aliciamento *falta de apoio *isolamento *força Estado das coisas: *choque *dor *injustiça *repúdio *denúncia *combate *erradicação Estado do ser (brasileiro): é dicotomizado, distingue o *avanço do libertador do *atraso da nação Caráter do Escravagista: Evento: Escravidão no Brasil contemporâneo Causas e Explicações: *herança histórica *desigualdade social, econômica e educacional *subcapitalismo predatório *deficiência na estruturação do trabalho e do direito do trabalho *latifúndio *recorrência familiar *crime *ganância desmedida Caráter do Escravo: Caráter do Libertador: *vocação *legalidade *visibilidade Figura 5 – Campo representacional dos libertadores Os resultados obtidos sugerem que a percepção dos libertadores quanto às vivências de prazer e de sofrimento dos libertos influencia positivamente as suas próprias vivências. O valor atribuído à organização do trabalho dos libertadores é relacionado à eficácia do libertador na transformação das pessoas escravizadas em pessoas libertas, ou seja, na transformação do trabalho escravo em trabalho livre. Quanto à organização do trabalho, a vivência de prazer é maior que a de sofrimento. A dinâmica do trabalho requer profundo envolvimento intelectual e controle emocional por parte dos responsáveis para a devida consecução das metas de libertação. A vivência de sofrimento é distribuída de forma semelhante entre as categorias, com acento um pouco mais alto para o sofrimento ante à percepção de uma sociedade onde se escraviza, não significativamente maior que o referente à pessoa escravizada e o escravagista. A vivência de prazer dos libertadores está relacionada, primeiramente, à auto-valorização de seu trabalho como libertador e à percepção de uma sociedade onde se liberta. O funcionamento psíquico dos libertadores não é livre de influências de prazer e/ou de sofrimento enquanto não há a percepção de que os mecanismos sociais de libertação funcionam, através da satisfação das necessidades e desejos dos escravos, o que só é percebido como real quando estes são libertos. Prazer e sofrimento são construtos inseparáveis (MORRONE 2001), 53% da vivência de prazer é relativa ao próprio libertador, enquanto a vivência 168 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas de sofrimento é distribuída de forma mais homogênea, em torno dos 30% para cada categoria, com diferença de, no máximo, 6%. A preponderância de vivências de sofrimento indica a forte aversão dos libertadores a toda a estrutura escravocrata. As vivências de prazer são significativas, e junto à percepção da organização do trabalho, formam um equilíbrio entre o desgaste causado pelo trabalho e as expectativas positivas de transformação da realidade brasileira. O libertador, ao o outro, também é libertado, tanto pessoal quanto profissionalmente. A sociedade muda para quem liberta, porque se possibilita a assunção de vivências de prazer, as quais são impossibilitadas enquanto o outro é escravizado. A perspectiva da libertação, com o sucesso no combate ao trabalho escravo, reforça o libertador, de modo que se justifica o seu empenho em libertar, apesar de altamente sofrido. Com relação à saúde do libertador de escravos, paradoxos relacionados à organização do trabalho e à violência podem resultar em situações potencialmente estressantes, com quadros clínicos, conforme Glina, Rocha, Batista e Mendonça (2001), de medo, ansiedade, depressão, nervosismo, tensão, fadiga e outros distúrbios psicossomáticos. Nesta pesquisa não foram investigados tais fatores. Conclui-se que o liberto tem papel primordial na definição do cargo e na identidade profissional do libertador, e em como ele se percebe e percebe a sociedade brasileira. Ao demonstrar para a sociedade em geral que o trabalho escravo existe, que ele é gravíssimo e deve ser denunciado e combatido, o libertador não está apenas realizando o ideal de cidadania e de justiça da sociedade, relacionado à ideia de liberdade, mas também é simbolicamente empoderado, e justifica o seu trabalho. Referências ABRIC, J.C. La recherche du noyau central et de la zone muette des représentations sociales. In: ______. (Org.). Méthodes d’etude des représentations sociales. Paris: Éditions érès, 2003. p. 59-80. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. DAVIS, D. B. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FERNANDES, F. Anotações sobre o capitalismo agrário e a mudança social no Brasil. In: SZMRECSÁNYI; QUEDA, O. (Orgs.). Vida rural e mudança social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. p. 105-120. 169 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) FIGUEIRA, R. R.. 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Recorro também à contribuição de intelectuais orgânicos, acadêmicos, juristas e militantes que estão envolvidos de forma direta ou indireta nessa temática. Entre outros, vale destacar Fábio Konder Comparato, Jacó Gorender, Ana de Souza Pinto, Ricardo Rezende Figueira 1, Xavier Plassat, Flávia Piovesan e Binka Le Breton. 1 Ricardo Rezende Figueira trabalhou durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia e, nesse período, foi membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT). É doutor em Ciências Humanas (com ênfase em Antropologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual também exerce o cargo de professor. Coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) e participa coordenação do Movimento Humanos Direitos e da Rede Social Justiça e Direitos Humanos. Escreveu diversas obras, entre elas: Pisando Fora da Própria Sombra: A Escravidão por Dívida no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Embora existente em suas diversas expressões, o trabalho escravo contemporâneo muitas vezes acaba sendo uma questão “invisível”. A discussão do tema é de fundamental importância para o conjunto da sociedade, uma vez que afeta a todos de diferentes formas e viola os direitos e a dignidade da pessoa humana. O combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil2 é desenvolvido por diversos atores, organismos e entidades da sociedade civil e do Estado, bem como por organismos internacionais. A importância da CPT é indiscutível na formulação do conceito e na luta pela sua erradicação. Para tanto, essa pastoral se utiliza de várias ferramentas – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e estratégias, entre as quais a denúncia a organismos nacionais e internacionais. Gênese da cpt no Brasil “Os índios, os sem terra, os assentados, os pequenos agricultores, os sertanejos e os camponeses, os ribeirinhos não querem ser relíquia e sim projeto!” (Campesino de Oaxaca – México. Arquivo da CPT Nacional) Apresento inicialmente, mesmo que de forma muito sintética, a formação da CPT e seus objetivos no que diz respeito à temática em questão. A gênese da CPT ocorreu em uma conjuntura política ditatorial, que se iniciou com o golpe de março/abril de 1964, quando os militares promoveram uma “quartelada” com o apoio de diferentes segmentos da sociedade, tais como: o empresariado urbano; setores da classe média e grupos religiosos, que viam no governo o perigo do comunismo; os latifundiários que estavam descontentes com as “ocupações” de terras pelas Ligas Camponesas no campo ao que se somava a tentativa – mesmo tímida e limitada – de realização de uma reforma agrária por parte do governo João Goulart, o Jango. Os golpistas também contavam com o apoio dos Estados Unidos, que intentavam manter o Brasil e a América Latina longe do “perigo bolchevique”, dando continuidade à sua política externa orientada pela Doutrina Monroe e pela guerra ideológica conhecida como Guerra Fria, fortalecendo a sua hegemonia na região. 2 O conceito trabalho escravo contemporâneo traz em si mesmo questões de diversas naturezas: ideológica, moral, jurídica, política, filosófica, entre outras. É importante ressaltar que não há consenso entre os diferentes setores e atores da sociedade civil e governamental sobre esse conceito. Em relação à sua materialização na prática ele é ainda mais dissensual. A partir das pesquisas que venho realizando, com análises iconográficas da realidade encontrada na Amazônia e no estado de São Paulo, depoimentos dos trabalhadores escravizados etc., entendo que o problema deva ser realmente compreendido como trabalho escravo. Esta compreensão é fundamental e permitirá mais visibilidade à questão, nos planos nacional e internacional, sensibilizando cada vez mais a sociedade para lutar pela erradicação dessa chaga social em pleno século XXI. Para um entendimento mais aprofundado dessa temática, confira: FIGUEIRA, 2004; Velloso e Fava (Org.). 2006. 172 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas No aspecto eclesiástico, a Igreja Católica passava por transformações desde o final da década de 50. A eleição do cardeal Ângelo José Roncalli para papa (João XXIII - 1958 a 1963) e seu papel no Concílio Vaticano II (1962-1965), assim como as diretrizes apontadas por aquele evento foram considerados um divisor de águas na história da Igreja Católica. Antes do Concílio, a Igreja em geral compreendia o mundo como o lugar onde reinava o pecado, a sedução e as práticas heréticas; onde Deus era rejeitado. Pregava-se: “fora da Igreja não há salvação”. O Concílio mudou radicalmente a perspectiva vigente no meio eclesial. A Igreja abriu-se para o mundo, o qual começou a ser visto como um lugar habitado por Deus e onde as suas sementes germinam e dão bons frutos. É no mundo, com seus valores próprios, sua autonomia e, naturalmente, seus contra valores, que os cristãos devem viver e realizar sua missão. A recepção e aplicação do Concílio Vaticano II foi feita levando-se em consideração a realidade de cada continente e de cada país. Particularmente na América Latina e no Brasil, como desdobramento do processo conciliar, houve uma intensa interação entre as diversas Igrejas. Nesse sentido, Beozzo (2003:457) afirma: deve-se notar, entretanto, que não se pode isolar a recepção brasileira da recepção latino-americana, uma impulsionada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outra pelo Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). Na visão do historiador, de modo particular durante o Concílio e no imediato pós-concílio, aconteceu uma intensa e profunda interação entre as diversas igrejas do continente, sendo este um dos frutos mais relevantes do processo conciliar. Ele afirma ainda que seu resultado mais visível foi a criação de uma nova identidade destas igrejas, levando-se a falar daí para frente, com muita propriedade, de uma pastoral, de uma teologia e de um rosto eclesial latino-americano e caribenho. A partir da Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia (1968), e de Puebla, no México (1979), esta presença da Igreja no mundo significou abertura preferencial para os pobres e oprimidos: índios, negros, camponeses, operários, enfim, para a imensa maioria dos homens e mulheres desse continente. A Igreja, ou pelo menos parte dela, tornou-se servidora, uma Igreja pobre para os pobres. No Brasil, as diretrizes do Concílio Vaticano II, de Medellín e Puebla desencadearam uma nova práxis, estimulando a criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a formação da CPT, na década de 70. A CPT nasceu como resultado da convergência de diversas forças: do clamor por parte dos sem-terra, dos posseiros, meeiros e trabalhadores 173 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) assalariados do campo, que estavam perdendo suas terras com a concentração estimulada pelo projeto do governo militar de mudança no modelo de agricultura; do compromisso da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso) e a famosa carta de D. Pedro Casaldáliga, em 1971, denunciando o latifúndio e a marginalização social – com sua presença solidária e profética ao lado dos posseiros e trabalhadores escravizados. A opção feita por um grupo de bispos, pastores, padres e leigos foi significativa porque desencadeou uma ação pastoral eficaz em favor dos pobres, demonstrando grande preocupação com a violação dos direitos humanos, principalmente no campo. A opção preferencial pelos pobres por parte de alguns setores das Igrejas é justificada – além dos elementos já explicitados – como reação diante das injustiças sociais decorrentes da divisão da sociedade entre opressores e oprimidos. A referida opção tem uma fundamentação bíblica, onde Javé se revela como o Deus da justiça e da liberdade e promete, por meio dos profetas, guiar o seu povo para a terra prometida onde jorram leite e mel. Um dos fundadores da CPT, que dedicou a sua vida aos pobres do campo e aos povos da floresta, padre Cláudio Perani, nos auxilia de maneira significativa a entender essa questão: “Ora, na medida em que a gente constata uma sociedade dividida em classes opressoras e oprimidas, para poder fazer fraternidade, é claro, a gente tem que se colocar ao lado dos mais fracos.” Segundo ele, “toda a lição bíblica do Antigo Testamento é de que Deus está do lado dos injustiçados e dos pobres. Toda a orientação de Jesus Cristo é: eu vim para evangelizar os pobres. Isto deveria ser de todo mundo”. 3 A criação da CPT deu-se numa reunião em Goiânia, em 22 de junho de 1975, articulada por Dom Moacyr Grecchi, responsável pela linha missionária da CNBB. A reunião contou com a participação significativa dos bispos envolvidos nos conflitos da Amazônia Legal, que enfrentavam problemas de terra e violação dos direitos humanos devido ao modelo de modernização empregado no campo. O surgimento da CPT, chamada na ocasião Comissão de Terras, foi possível principalmente pela iniciativa desses bispos, que agiram motivados e até “empurrados” por outros agentes pastorais, religiosos, presbíteros e pelos fieis da base, o que, inclusive, estimulou a CNBB a patrocinar o encontro. Embora tenha havido a participação de representantes da CNBB na formação da CPT, esta nasceu de maneira oficiosa em relação àquela. Entendiam os bispos 3 Entrevista concedida em 16 ago. 2002. 174 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas que dessa forma a Comissão de Terras teria maior autonomia, liberdade e agilidade nas ações; que haveria a possibilidade de concretizar o desejo de um maior compromisso da Igreja, abrangendo vitalmente a problemática da terra e suas consequências no planejamento pastoral. A organização da CPT A Comissão Pastoral da Terra surgiu com uma missão bem definida. De acordo com o padre Cláudio Perani, a CPT visava estar a serviço dos trabalhadores para ajudar na organização e no avanço da sua consciência; contribuir para de fato serem sujeitos de uma transformação, de uma mudança, sem dependerem da Igreja 4. A sede com o secretariado nacional está localizada em Goiânia – GO. Possui um colegiado nacional, constituído de um bispo-presidente, um bispo vice-presidente e mais seis membros (católicos e protestantes), escolhidos nas grandes regiões do Brasil. Assim, encontramos uma estrutura ecumênica e capilar. A CPT está organizada em 22 estados brasileiros: Grande Região Noroeste - Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia; Grande Região Norte - Pará, Amapá, Maranhão e Tocantins; Grande Região Nordeste - Ceará, Piauí, Bahia e Sergipe; Grande Região Sudeste - Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro; Grande Região Sul - São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Grande Região Centro-Oeste – Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em cada estado que compõe essas grandes regiões, há um bispo – indicado pela CNBB – responsável pelo acompanhamento dos trabalhos da respectiva equipe de coordenação. Essa coordenação estadual normalmente é composta, além do bispo, por padres, freiras, pastores protestantes e leigos, estes últimos em menor número. Cabe a esta equipe de coordenação atuar junto aos agentes de pastoral nas micro-regiões, verificar a realidade local, apoiar as atividades, organizar encontros de formação, apoiar trabalhadores (as), ribeirinhos, seringueiros, entidades como sindicatos, centrais sindicais, movimentos sociais populares etc. Como podemos observar, a CPT está presente em vários espaços do país, especialmente “na base”. Seus membros a vêem como uma pastoral de fronteira. Entendem que a sua missão é ir “aonde ninguém vai”, é trabalhar e atuar junto aos trabalhadores pobres, marginalizados e excluídos do campo, e também da cidade. Ela atua, portanto, com um universo bastante heterogêneo. 4 Entrevista concedida em 16/ago. 2002. 175 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Trabalho escravo contemporâneo Os homens, pervertendo a igualdade da natureza, a distinguiram com dois nomes tão opostos, como são os de Senhor e Escravo. (VIEIRA, 1999) A existência da escravidão precede a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). No processo histórico, ela assumiu, em cada período, contornos diferenciados; apresentou nuances e elementos variáveis relacionados a fatores geográficos, econômicos, políticos, sociais, culturais e religiosos. Mas, a sua característica reveladora de uma prática desumana que reduz o outro a objeto a ser apropriado, se manteve. A escravidão é tão antiga quanto a história da humanidade, sendo, portanto, quase impossível determinar o período e o local exato onde se iniciou e quais as suas causas reais nos primórdios. Na Bíblia Sagrada, há relatos de pessoas que já viviam na condição de escravos desde a época de Abraão, conforme relato de Gn 9, 20-29, presumidamente por volta do século XIX a.C. (Cf. PEDROSO, 2006). Na Antiguidade Clássica, na Grécia, particularmente na polis ateniense, muito embora o sistema político fosse a democracia, havia grande número de escravos por volta dos séculos V e IV a.C. As mulheres e os estrangeiros (metecos) não eram considerados cidadãos, constituindo, a maioria da população ateniense. Estavam excluídos da participação política e da sua respectiva cidadania. Na península Itálica, a expansão romana ocorreu entre os séculos V a.C. e III a.C. A expansão deu dinâmica própria à estrutura escravista que, estabelecida, passou a exigir novas conquistas para aumentar o número de cativos que passavam cada vez mais a ser indispensáveis à estrutura socioeconômica do mundo romano, conforme entende o historiador Vicentino (1997). Pelos registros arqueológicos, sabe-se que na denominada Antiguidade Oriental existiam seres humanos que já viviam na condição de escravos no Egito há pelo menos 3 000 a.C. (CARDOSO, 2003). Na Idade Média, a escravidão também existiu, mas de forma reduzida, prevalecendo, na essência, a servidão. Na Idade Moderna e Contemporânea, o regime de escravidão fez-se presente, com elementos comuns e particularidades, permanecendo, de alguma forma, em quase todas as sociedades contemporâneas. A partir de 1531, os africanos são trazidos para o Brasil na condição de escravos. Na modernidade (século XVI), o sequestro de pessoas do continente africano e sua subsequente escravização nas terras americanas tornaram-se 176 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas um negócio altamente lucrativo para setores da elite colonial e da burguesia das grandes metrópoles europeias. O tráfico de escravos para o continente americano foi intenso, especialmente para o Brasil. Os escravos, no Brasil colonial, foram os principais responsáveis pela produção de riquezas, na cidade e no campo, especialmente na cultura açucareira e, séculos depois, na atividade mineradora. Os senhores da Casa Grande dependiam dos escravos para desempenharem quase todos os tipos de trabalhos manuais no engenho, desde o preparo das roças até o fabrico do açúcar. Na colônia, o trabalho braçal foi socialmente visto pela elite branca com desdém. Era entendido como “coisa de negro”. Aliás, ainda hoje há essa percepção na sociedade brasileira, tendo o homem branco a primazia do trabalho intelectual. Os escravos sempre lutaram; nunca aceitaram a situação de miséria, humilhação, submissão, exploração e preconceito a que eram submetidos. É importante destacar que a resistência e a luta dos escravos receberam o apoio do conhecido movimento abolicionista5, o qual ganhou força a partir de 1880 com a aparição de associações, jornais e o avanço da propaganda abolicionista. No Brasil, a escravidão perdurou oficialmente por mais de três séculos, sendo abolida pela Lei Áurea6 no dia 13 de maio de 1888. Por este documento, a escravidão teria chegado ao fim, sendo o Brasil o último país (exceção à África) a acabar com a escravidão no mundo7. Sob um olhar crítico, pode-se constatar que essa é a perspectiva da história oficial. Mas é possível outra leitura, feita a partir da história real, na qual a escravidão não é uma realidade do passado; faz-se presente hoje em escala mundial, no meio rural e urbano; convive com o agronegócio e as novas tecnologias e alimenta os ganhos dos donos do capital global. Segundo a escritora inglesa Binka Le Breton (2002), a quantidade de pessoas que vivem atualmente como escravos é muito elevada. Ela cita a organização Anti-Slavery International, onde aponta que existam no mundo 5 O movimento abolicionista foi composto por pessoas de condição social diversa, como intelectuais e escravos, negros e mestiços, que lutaram pela erradicação da escravidão no Brasil. 6 A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, que governava interinamente o país na ausência de seu pai, extinguindo a escravidão no Brasil. 7 Conforme o Jornal Folha de S. Paulo, 09 jun.2002, A 18, “O Brasil e Cuba foram os últimos países a abolir a escravidão. Foram apenas os últimos países não-africanos a fazê-lo. Em 1903 havia cerca de 1 milhão de escravos na região do Sudão. Lá os ingleses só impuseram uma lei de ventre livre em 1901. Serra Leoa aboliu a escravidão em 1928. A Etiópia, em 1942. Na Arábia Saudita, velha compradora de escravos africanos, a escravidão acabou em 1962”. 177 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) milhões e milhões de homens, mulheres e crianças prisioneiros da escravidão, forçadas a lidar com os piores trabalhos, sob as mais degradantes condições, sujeitos a toda sorte de violência e destituídos do mais fundamental dos direitos: o direito de ir e vir. Em linhas gerais, o entendimento de Le Breton é que a escravidão é uma realidade histórica presente em muitos lugares. De um lado, a procura por mão-de-obra barata; do outro, pessoas desesperadas e famintas oferecendo-se para trabalhar de forma submissa e com baixo salário. O Brasil já deu passos no sentido de erradicar a escravidão contemporânea, mas ainda há grande quantidade de pessoas nessa condição. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, hoje há no mínimo 25 mil pessoas, vítimas de trabalho escravo no Brasil (Piovesan, 2006). Apontar com precisão o número de trabalhadores(as) escravos(as) no mundo, e particularmente no Brasil, é tarefa muito difícil, quase impossível. Isso ocorre por fatores que vão desde a dimensão continental deste país até a variedade das culturas agrícolas onde se verifica esse tipo de situação, que muitas vezes é camuflada. Destarte, entendo que é fundamental analisar o assunto, sob uma perspectiva histórica. As discussões, no que tange ao conceito e aos principais personagens e entidades envolvidas precisam ser feitas considerando-se a intrínseca relação existente entre o trabalho escravo e os direitos humanos no Brasil contemporâneo. Nos meios acadêmicos, na literatura, nos movimentos sociais e em outros espaços há um grande debate sobre o conceito de escravidão na contemporaneidade. Não é apenas uma discussão semântica, mas trata-se de uma preocupação concreta com esse problema e com tudo o que ele envolve em termos de causas e consequências para os sujeitos e a sociedade em geral. O assunto levanta uma série de desafios que implicam, por exemplo, a formulação de políticas públicas em sintonia com a participação de organismos nacionais e internacionais para enfrentar o problema da escravidão em nossos dias. O tema em questão é referido com diversas expressões e conceitos, entre os quais: situação análoga à escravidão, escravidão, semi-escravidão, escravidão branca, trabalho escravo, trabalho forçado, superexploração. A multiplicidade e variação dos termos utilizados indicam que os critérios de análise estão em discussão tanto no campo político-ideológico quanto no que diz respeito ao seu enquadramento na legislação trabalhista e nos códigos de defesa dos direitos humanos. Como podemos constatar, não há consenso acerca do conceito entre os atores que se encontram envolvidos – de forma direta ou indireta – nas 178 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas relações trabalhistas. Mesmo entre os atores governamentais há percepções diferenciadas. Isso também ocorre com entidades da sociedade civil e particularmente nos diversos setores midiáticos. Entre os próprios trabalhadores existem níveis muito variados de consciência sobre o grau de exploração e coerção a que estão sujeitos. A respeito da escravidão contemporânea, Ricardo Rezende Figueira (2004) esclarece que há quatro aspectos fundamentais a serem considerados: a) Nela a pessoa é tratada como se fosse mercadoria; b) há, mesmo que temporariamente, uma totalidade de poder exercida sobre ela; c) a vítima é alguém de fora, um “estrangeiro”; c) os donos de escravos temporários não têm criadouros de escravos. As pessoas não se reproduzem onde trabalham, mas no local mesmo do aliciamento, do sequestro ou da guerra. Figueira (2005:183) afirma que, para a CPT, trabalho escravo contemporâneo é a sujeição física ou psicológica de um homem por outro. No caso brasileiro, o instrumento mais comum de sujeição é a dívida crescente e impagável. As personagens envolvidas na rede da escravidão contemporânea no Brasil são muitas. Diversificadas quanto ao gênero, à identidade, às formas de atuar, aos principais objetivos e ao grau de violência utilizada. A rede está constituída por vários “nós”, sendo que em uma de suas extremidades se acha o trabalhador pobre – potencialmente escravo – e, na outra, encontrase o patrão, um personagem “invisível”. Por ser complexa e demandar uma análise aprofundada, irei apontar, de forma sintética, os principais elementos da rede da escravidão contemporânea, a começar pelos trabalhadores. No que tange ao perfil dos trabalhadores, Patrícia Audi8 (2006, p.75) esclarece que estes humildes brasileiros, recrutados em municípios muito carentes, de baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), são oriundos principalmente dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. A respectiva autora ressalta que esses trabalhadores são pessoas iletradas, analfabetas ou com pouquíssimos anos de estudo. Segundo as características apresentadas acima, esses homens e mulheres se tornam presas fáceis dos aliciadores9. Estes têm como função principal arrebanhar trabalhadores, pelo aliciamento, nesses estados 8 Patrícia Audi possui formação acadêmica em Administração de Empresas com especialização em Políticas Públicas. Foi coordenadora nacional do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil – OIT, no período de 2002 a 2007. 9 Ao consultarmos o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, encontraremos para o verbete aliciar os seguintes significados: 1.“Atrair a si; seduzir, atrair, ‘Em São Paulo, Luís Gama, Raul Pompéia e outros aliciavam escravos para que se rebelassem e fugissem para o Rio, onde encontrariam guarida e liberdade´. 2. Peitar, subornar; atrair, angariar” 179 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) citados e também em outros, para os transformarem em futuros escravos. Por serem habilidosos, oferecerem altos salários, muitas vezes com adiantamento em dinheiro para a família do trabalhador e passarem a ideia de passivos e benevolentes, são conhecidos em muitas regiões do país como atravessadores ou gatos10. A figura do gato é fundamental para a permanência e a dinâmica da escravidão. Este personagem paga o transporte do trabalhador, as despesas com alimentação, a bebida alcoólica (eles estimulam o consumo), a estadia nas pensões dos peões etc. Ao chegar no local do trabalho, o trabalhador estará endividado, não recebendo o salário combinado e ainda deverá pagar o “que deve”, acrescentando às dívidas o que ele porventura necessitar: remédios, ferramentas, equipamentos de proteção (quando existem) etc. A Drª Ruth Vilela11 destaca a inteligência desse sistema e aponta a existência dele também nos EUA, geralmente com os imigrantes: O sistema, na verdade, é bastante inteligente: os trabalhadores são recrutados em seu local de origem, não sabem o seu destino certo e, portanto, não deixam informações com a família; a maioria não porta documentos; são conquistados com falsas promessas; entram no sistema de endividamento contínuo e crescente e, portanto, não têm como voltar; ficam fragilizados pelo distanciamento da sua origem e referências pessoais/familiares e até mesmo sofrem ameaças físicas e psicológicas; não têm como sair do local, nem como pedir auxílio. Esse mesmo sistema é utilizado, por exemplo, em algumas regiões dos Estados Unidos, geralmente em relação aos imigrantes, aliciados pelo coiote (que corresponde ao nosso “gato”) para execução de atividades agrícolas e outras.12 Na rede da escravidão, outro personagem intermediário são os donos de pensão. Mantêm uma relação muito próxima aos “gatos” e funcionam como ponto de recepção dos trabalhadores, denominados peões, oferecendo-lhes hospedagem, alimentação, bebidas alcoólicas e mulheres, na condição de prostitutas. 10 Gato: empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou outros serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado, trabalha com parentes e com uma rede de “fiscais”, e são acusados de diversos crimes, inclusive homicídios. Em geral os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem prestar serviço por anos consecutivos para as maiores empresas. (FIGUEIRA, 2004, p.17). Na região Norte do Brasil a designação “gato” é mais usual. Em minhas pesquisas no estado da Paraíba constatei com mais frequência o uso da designação “atravessador”. 11 Ruth Beatriz de Vasconcelos Vilela, formada em Direito, chefiou o serviço de fiscalização do Ministério do Trabalho e comandou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF). 12 Entrevista concedida em 16 de janeiro de 2008. 180 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas A questão em si é desafiadora, não somente para os trabalhadores escravizados, mas para toda a sociedade. Vários órgãos governamentais e organizações da sociedade civil lutam pela erradicação do trabalho escravo, sendo a grande referência para eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sobre essa temática especifica irei tratar agora; entretanto, entendo que se faz necessário, a priori, uma breve reflexão sobre os direitos humanos na atualidade. Direitos humanos e trabalho escravo Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (Declaração Universal dos Direitos Humanos – Art. 1.º) A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), teve como referência a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), produzida pela vitoriosa Revolução Francesa, deflagrada no mesmo ano e gestado no contexto das ideias iluministas, da Declaração de Independência dos EUA (1776) e da França revolucionária (1789-1799). Colocou em relevo os direitos que protegiam as liberdades civis e políticas dos cidadãos contra a prepotência dos órgãos estatais. No mundo ocidental, os Direitos do Homem e do Cidadão formam respeitados aproximadamente por um século e meio. No século XX, o mundo passaria por inúmeros conflitos regionais e duas guerras mundiais, violando direitos, comprometendo a plena participação política e colocando em xeque a importância do referido documento. Ao analisarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, constatamos que é uma construção recente na história da humanidade. Foi escrita após a derrota de regimes políticos totalitários, como o nazismo de Adolf Hitler, na Alemanha, e o fascismo de Benito Mussolini, na Itália. A Segunda Guerra Mundial violou os direitos humanos mais essenciais, destruindo a dignidade das pessoas na forma de holocaustos, migrações forçadas, genocídios, escravidão, sexismo etc. Como consequência das guerras e dos totalitarismos, milhões de pessoas das mais diferentes etnias, religiões e culturas se tornaram apátridas – povos sem Estado (ARENDT, 1989). Na compreensão de Comparato (1999), a criação do universo concentracionário, no século XX, veio demonstrar tragicamente a justeza da visão ética kantiana. Antes de serem instituições penais ou fábricas de cadáveres, 181 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) o Gulag soviético e o Lager nazista foram gigantescas máquinas de despersonalização de seres humanos. Ao dar entrada num campo de concentração nazista, o prisioneiro não perdia apenas a liberdade e a comunicação com o mundo exterior. Não era, tão-só, despojado de todos os seus haveres: as roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele era, sobretudo, esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com a substituição altamente simbólica do nome por um número, frequentemente gravado no corpo, como se fora a marca de propriedade de um gado. O prisioneiro já não se reconhecia como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas as suas energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão. E nesse esforço puramente animal, tudo era permitido: o furto da comida dos outros prisioneiros, a delação, a prostituição, a bajulação sórdida, o pisoteamento dos mais fracos (COMPARATO, 1999). O pós-guerra foi marcado pela reconstrução dos direitos humanos. Como elemento central, enfatizou-se o valor da dignidade humana, compreendida como o ponto de partida e o ponto de chegada, pois é um valor intrínseco à condição humana. No aspecto político, as reivindicações são plurais, sendo a tríade europeia – Direitos Humanos, Estado de Direito e Democracia – uma das mais valorizadas. Em linhas gerais, a construção e reconstrução dos direitos humanos no mundo contemporâneo apresenta desafios, como a necessidade de implementação de políticas públicas eficazes voltadas aos mais vulneráveis, ao fim do racismo, da escravidão e do preconceito contra os indígenas, às mulheres, os homossexuais etc. Por outro lado, abre novas e interessantes perspectivas com a participação de organismos internacionais, nacionais e regionais, no combate às mais diferentes e graves questões como a fome, a falta de moradia, o desemprego estrutural, o trabalho degradante e escravo, a prostituição infantil etc. No Brasil, há setores sociais que negam a existência do trabalho escravo. Este já se constitui em um primeiro e grande desafio para a sua erradicação. Esta é percepção de militantes dos movimentos populares, das pastorais sociais e de ativistas dos direitos humanos. Os militantes da CPT entendem que a Declaração Universal é um instrumento muito importante que precisa ainda ser mais evocado e utilizado, tanto pela sociedade civil quanto pelos poderes públicos para que, de fato, a humanidade consiga recriar formas de convivência, onde os direitos básicos da pessoa humana possam ser respeitados. Nas últimas décadas, constatam-se avanços no respeito aos direitos humanos do trabalhador escravizado, porém ainda há muito que fazer. Nessa 182 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas direção, é importante ressaltar, além do papel do Estado, os relevantes trabalhos desenvolvidos por várias organizações, entre outras: a Organização Internacional do Trabalho (OIT-Brasil)13; a ONG Repórter Brasil14 e a CPT. Esta última, na percepção dos entrevistados desta pesquisa, é o organismo mais ativo da sociedade civil no campo em questão. Ajudou a despertar atores importantes dos organismos estatais e da sociedade civil para o problema da escravidão contemporânea e sempre esteve ao lado dos escravizados, ouvindo-os e denunciando as graves violações aos seus direitos enquanto seres humanos portadores de dignidade. O combate ao trabalho escravo pela CPT A CPT é uma defensora histórica dos direitos humanos dos sem-terra, dos ribeirinhos, dos seringueiros, dos posseiros, dos lavradores, dos trabalhadores escravizados. Como sublinhado anteriormente, para atingir os seus objetivos ela se ampara na Declaração Universal dos Direitos Humanos e denuncia de diferentes formas, a situação do trabalho escravo. A CPT historicamente sempre esteve próxima da realidade dos trabalhadores, acompanhando os fugitivos. A partir dessa realidade tão grave – com a inoperância dos órgãos públicos – atua denunciando, dentro e fora do Brasil, e também busca mostrar na mídia os problemas. 15 As denúncias dessa organização são plurais, não se limitando somente ao trabalho escravo. Ela também luta contra diversas outras formas de injustiças sociais, contra a globalização neoliberal excludente, a atual estrutura fundiária, a concentração da renda, o agronegócio, a mercantilização da terra, da água, do ar, da flora e fauna, das pessoas e a degradação ambiental em geral. Nesta perspectiva, o coordenador dessa pastoral, no estado do Maranhão, Inaldo Serejo, afirma: Numa sociedade, onde tudo é transformado em mercadoria, é fundamental que as pessoas tenham seus direitos garantidos de forma universal. O ativista entende que o trabalho escravo é a ponta do processo de espoliação e saque realizado pelo capital.16 13 A OIT-Brasil atua de várias formas para que os direitos humanos não sejam violados: promove campanhas e elabora projetos de combate ao trabalho escravo no Brasil; estimula a igualdade de gênero e raça, a erradicação da pobreza e geração de emprego; denuncia e luta contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, entre outros. 14 A ONG Repórter Brasil denuncia os maus-tratos a que os trabalhadores escravizados são submetidos; aponta os políticos e empresários que apoiam a escravidão contemporânea; divulga on-line as propriedades onde trabalhadores escravizados foram libertados etc. 15 Ana de Souza Pinto. Entrevista concedida em 03 jul. 2008. 16 Entrevista concedida em 09 jul.2007. 183 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Uma das estratégias de luta da CPT é tornar público o problema do trabalho escravo. Este, por pressão dela, inicialmente, e depois com a atuação da OIT e outros organismos, foi ganhando espaço nos meios de comunicação17, com denúncias das condições concretas dos trabalhadores escravizados, como foi o caso do jornal Folha de S. Paulo de 29 de abril de 2007, B1, que publicou a seguinte reportagem: Cortadores de cana têm vida útil de escravo em SP. Pressionado a produzir mais, trabalhador atua cerca de 12 anos, como na época da escravidão. A superexploração e o trabalho escravo fazem parte da realidade do estado da Bahia, conforme afirmaram frei Luciano Bernardi e Maria A. Caputo, ambos, membros da CPT daquele estado. Eles receberam uma denúncia de trabalho escravo em 2003 e junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a encaminharam para os órgãos competentes. Com essa denúncia, a equipe móvel do Ministério do Trabalho, em ação conjunta com a Delegacia Regional do Trabalho e a Polícia Federal, resgatou 46 trabalhadores em situação análoga a de escravo, que laboravam principalmente na capina de algodão.18 Como na Bahia, também no estado de Goiás constata-se ampla e profunda violação aos direitos humanos dos trabalhadores escravizados. Nas palavras da professora e pesquisadora Adonia A. Prado,19 o que a gente encontra realmente é um total desrespeito aos direitos dos trabalhadores, superexploração, negação de condições mínimas de sobrevivência nos locais de trabalho e de higiene onde eles fazem as refeições. Ela enfatiza que há falta de pagamento pelas tarefas executadas e de conhecimento em relação ao que eles tinham a receber na quase totalidade dos casos.20 As condições concretas do cotidiano desses sujeitos “invisíveis” são de extrema carência e de vulnerabilidade, seja nas atividades da cana-de-açúcar em vários estados do país ou em tarefas como o desmatamento na Amazônia para a implementação de projetos agropecuários ou noutras atividades21. Em sua grande maioria, além de pobres, os trabalhadores escravizados são 17 Conforme Ana de S. Pinto, nos últimos três ou quatro anos, a OIT fez um estudo sobre isso. A porcentagem de reportagens sobre o assunto aumentou mais de 1000%.. Entrevista concedida em 03 jul.2008. 18 Entrevista concedida em 08 ago. 2007 19 Adonia Antunes Prado, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) da UFRJ. Participou de duas operações do Grupo Móvel nos estados da Bahia e Goiás, como pesquisadora e membro de uma equipe de pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) do Brasil. O objetivo era colher informações para traçar um perfil dos sujeitos envolvidos com a prática de trabalho escravo e, naquele momento, particularmente, no que se referia a trabalhadores e gatos. 20 Entrevista concedida em 07 jun. 2008. 21 “Na Amazônia, 72,7% dos peões são empregados no desmatamento da floresta virgem para posterior formação de pastagens para o gado. Fora da Amazônia, apenas 26,2% dos peões são ocupados em desmatamento ou reflorestamento. Ambas as atividades dizem respeito à formação da fazenda, isto é, à transformação da natureza bruta em base de um empreendimento econômico lucrativo, processo que na indústria nem é tão dramático nem tão demorado e nem tão extenso.” (MARTINS, 1997, p. 94-95). 184 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas migrantes, muitas vezes vistos como “estrangeiros” por serem oriundos de outras regiões do Brasil. Na compreensão de Ruth Vilela,22 [...] os primeiros casos de trabalho escravo denunciados coincidem com o período inicial da expansão da fronteira agrícola na região da chamada Amazônia Legal. A prática de recrutar trabalhadores e conduzi-los a regiões remotas e de difícil acesso revelou-se altamente produtiva e econômica e, assim, essa cultura permaneceu. Ao serem transportados de seus estados de origem para territórios estranhos – como as florestas das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte – os trabalhadores tornam-se pessoas desenraizadas do seu meio. Ficam, portanto, confinados nas matas extremamente distantes da cidade, às vezes necessitando de barcos ou mesmo de helicópteros para saírem de lá, conforme relataram os entrevistados. No que tange à alimentação dos trabalhadores escravizados, além de escassa, é de péssima qualidade e manipulada sem o mínimo de cuidados com a higiene. Maria Antonieta Vieira23 aponta que a abertura da floresta é feita com o trabalho escravo. Na Amazônia havia situações aonde os trabalhadores eram levados de avião para determinadas regiões e depois jogavam o alimento lá de cima, e aí eles ficavam ‘ao Deus dará’ na mão daqueles gatos.24 No entendimento da pesquisadora Adonia Prado, há um flagrante desrespeito aos direitos humanos desses trabalhadores, porque recebem alimentação insuficiente para reposição das energias despendidas durante a o trabalho e sempre numa situação que eles consideram de humilhação. São maltratados, insultados pelo empreiteiro, pelo gato ou pelo gerente. A palavra humilhação é muito presente na fala desses trabalhadores, sendo compreendida por eles como sinônimo de escravidão. As condições a que essas pessoas são submetidas são as mais adversas, como estamos sublinhando. Os latifundiários do agronegócio capitalista, com seus respectivos prepostos (gato, fiscal, capanga, gerente...) são muito criativos e eficazes no que diz respeito às formas de superexploração, humilhação e crueldade praticadas sobre esses seres humanos. 22 Entrevista concedida em 16 jan. 2008. 23 Maria Antonieta da Costa Vieira é antropóloga, doutora e pesquisadora. Assessora a CPT. Desenvolveu pesquisas para a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) da USP e coordenou uma pesquisa sobre o trabalho escravo no Brasil, encomendada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 24 Entrevista concedida em 17 jul. 2008. 185 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A crueldade dos senhores do agronegócio remonta ao escravismo colonial, sob as mais diversas formas, técnicas e tecnologias: “Daí ter sido usual a prática de marcar o escravo com ferro em brasa como se ferra o gado. Os negros eram marcados já na África, antes do embarque, e o mesmo se fazia no Brasil, até no final da escravidão. No século XIX, anúncios de jornal comunicavam ao público a marca gravada na carne do escravo fugitivo, em regra com as iniciais do nome e sobrenome do proprietário. E foi certamente inspirado nos costumes brasileiros que Nassau propôs a marcação dos escravos vendidos a crédito pela Companhia das Índias Ocidentais a fim de coibir fraudes dos compradores” (GORENDER, 1978, p. 64). Podemos verificar esta crueldade conforme ilustra a reportagem: Trabalhador escravo é torturado com ferro quente no Pará. A fiscalização encontrou 35 pessoas em situação análoga à escravidão em área de fazendeiro reincidente no crime. Denúncia partiu de trabalhador que diz ter sido marcado com ferro quente quando reclamou de salários atrasados. (www. reporterbrasil.com.br - 17/02/2008). Vale destacar também outros fatores que nos dão uma dimensão das atrocidades e da tipificação dos crimes praticados contra os trabalhadores escravizados na Amazônia: eles não têm liberdade de deixar o local no qual trabalham, mesmo abrindo mão de qualquer ganho, pois estão endividados. Essa consciência emerge quando os pistoleiros da fazenda exibem suas armas ostensivamente; quando torturam na frente dos demais os que eventualmente tenham tentado escapar sem pagar o débito; quando matam o fugitivo e deixam o cadáver exposto ou então o retalham e o dão aos porcos para aterrorizar e dissuadir da fuga os outros peões (MARTINS, 1997, p. 109). Ana de Souza Pinto25 confirma a ocorrência dessas atrocidades e as repudia: O trabalho escravo é um crime. Ele não diz respeito só às leis trabalhistas. É um atentado contra a dignidade do ser humano 26. A violação aos direitos humanos dos trabalhadores escravos acontece de várias maneiras: o cerceamento da liberdade (próprio da condição de escravidão)27, a alimentação deficiente e muitas vezes imprópria para o 25 Ana de Souza Pinto, formada em Ciências Sociais, atua na CPT desde a sua graduação, 1975. Atualmente é membro da equipe de coordenação da CPT Regional Pará. 26 Entrevista concedida em 03 jul. 2008. 27 “Às vezes, principalmente por alguns setores, o trabalhador escravo é visto como a vítima incapaz. Ele não tem recurso, é absolutamente dependente, não pensa, não é um ator social. Eu acho que a coisa não é assim. Pelo que tenho observado nas pesquisas, esse trabalhador tem problemas, dificuldades, mas ele luta, enfrenta, tem as suas estratégias; ou seja, ele não é simplesmente uma vítima. Penso que o resgate dessa condição é muito importante para nós pesquisadores porque senão podemos cair num discurso da vitimização do trabalhador e deixar de considerá-lo como um ator social, um sujeito” (Maria Antonieta da Costa Vieira. Entrevista concedida em 17 jul.2008). 186 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas consumo, a água contaminada, humilhações com palavras e gestos, violências diversas, marcas com ferro quente sobre os seus corpos, assassinatos etc. O entendimento comum dos militantes que procuram combater e erradicar essa “chaga social” é o de que a dignidade humana é o elemento essencial que está em jogo. Ela está sendo violada e roubada sob as mais diferentes e terríveis formas: “Ora, a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo Kant que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma” (COMPARATO, 1999, p. 20). Frei Xavier Plassat, membro da CPT Nacional, observa que: […] trabalho escravo é atentado contra o que cada ser humano tem de mais precioso e inviolável: a sua dignidade de ser um humano. Portanto, ao degradar este bem universal em qualquer pessoa, ela fica reduzida ao estado de coisa, usável, abusável e finalmente descartável 28. Há uma relação estreita entre o capitalismo e a coisificação das pessoas. No processo de desenvolvimento do sistema capitalista de produção – a partir da revolução industrial inglesa (século XVIII) – se intensificou de forma jamais vista a diversidade de mercadorias produzidas e a exploração dos trabalhadores nas indústrias, transformando-os em coisas. Karl Marx os denominou de proletários e, a partir de pesquisas científicas, descobriu e denunciou os mecanismos utilizados pela burguesia para enriquecer-se, utilizando-se, sobretudo, da exploração do proletariado por meio da mais-valia. Sobre a violação da dignidade do ser humano pelo sistema capitalista de produção, Comparato (1999:22-23) afirma: […] como denunciou Marx, ele implica a reificação (Verdinglichung) das pessoas; ou melhor, a inversão completa da relação pessoa-coisa. Enquanto o capital é, por assim dizer, personificado e elevado à dignidade de sujeito de direito, o trabalhador é aviltado à condição de mercadoria, de mero insumo no processo de produção, para ser 28 Entrevista concedida em 10 jul.2007. 187 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) ultimamente, na fase de fastígio do capitalismo financeiro, dispensado e relegado ao lixo social como objeto descartável. As potencialidades da CPT no combate ao trabalho escravo são enormes. Enquanto pastoral de serviço à causa dos mais necessitados do campo, teve e tem um papel fundamental. Antes mesmo da sua sagração como bispo, D. Pedro Casaldáliga já denunciava abertamente, em uma carta pastoral, na região de São Félix do Araguaia – MT, os crimes praticados contra os trabalhadores na Amazônia Legal (CASALDÁLIGA, 1971), denominando aquela situação de trabalho escravo. Tornou-se, assim, um dos precursores na construção desse conceito. 29 A partir de meados da década de 1970, a cortina que escondia a existência de trabalho escravo no Brasil foi sendo aberta. Porém, a maioria da sociedade e o Estado ainda não davam a devida importância às denúncias. Teimavam em ignorá-las ou, quando muito, um Ministro da Justiça, premido pela pressão, determinava a abertura de investigação que não chegava a termo. A CPT era voz isolada e, com frequência, acusada de falta de patriotismo e de ser detratora da imagem do país no exterior (MORAES, s/d). A Pastoral da Terra (como era inicialmente conhecida), no entendimento de Ricardo Figueira, foi uma espécie de consciência crítica: Ela denunciou o trabalho escravo e levantou questões oportunas e sensatas a respeito dos mecanismos para a sua erradicação. A maior parte das pessoas que estavam em determinado momento discutindo o assunto, o faziam a partir da teoria, de aspectos conceituais, mas ela tinha experiência prática”. E complementa: “Então, quando algo não funcionava, a pastoral tinha capacidade imediata de percepção; era capaz de falar e apontar o problema. 30 Para Adonia Prado, a CPT tem um papel fundamental pela sua combatividade e denodo como tem coligido e recolhido informações sobre o trabalho escravo. Então, hoje, as informações mais confiáveis que são publicadas por ela, anualmente, no Caderno de Conflitos no Campo Brasil, servem de base para diversas atividades como a pesquisa, denúncia... 31 A CPT possui um acúmulo histórico sobre os problemas cotidianos dos trabalhadores rurais, com uma capilaridade em quase todos os estados do país. Intervém em realidades nas quais o Estado brasileiro não pode ou não quer intervir. Já são quase quatro décadas de lutas, denúncias, romarias, protestos, 29 Ver, em especial, p.104-18. 30 Entrevista concedida em 12 nov.2007. 31 Entrevista concedida em 07 jun.2008. 188 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas apoio às ocupações de terras, pressão sobre os órgãos governamentais, ações conjuntas com entidades e organismos nacionais e internacionais etc. É importante destacar que a CPT, por um lado, apresenta potencialidades no combate ao trabalho escravo, mas, por outro, tem limites em vários aspectos. Para Patrícia Audi, a CPT é a principal denunciante no combate ao trabalho escravo, mas ela tem limitações geográficas. Nós quase não verificamos, por exemplo, denúncias no estado do Amazonas, onde a CPT não está. Ela afirma ainda: Não existe uma hegemonia da CPT com relação à atuação no combate ao trabalho escravo. Nós conhecemos três CPT’s muito atuantes – Xinguara, Araguaína e Piauí – e uma quarta tentando se tornar atuante no Mato Grosso. As demais nós quase não ouvimos informações com relação à sua atuação no combate ao trabalho escravo.32 Como fator positivo, Patrícia Audi destaca a determinação dos vários “heróis” da CPT e as campanhas nacionais no combate ao trabalho escravo. Entretanto, ela acredita que a atuação da Pastoral é limitada no espaço. A compreensão de Leonardo Sakamoto33 vai ao encontro das afirmações de Patrícia Audi. Ele entende que a importância está no ator social que coordena cada escritório da CPT. Portanto, a sua força tem que ser medida em cada local para o combate do trabalho escravo. Em suas palavras: Tem estado que é inoperante. Depende de quem é que está operacionalizando isso no momento, em torno do que o “negócio” gira. Tanto é que a maior quantidade de denúncias de trabalho escravo são exatamente próximas dos escritórios da CPT mais atuantes. É uma relação de causa e efeito. Então você precisa de atores fortes da CPT 34. Em linhas gerais, encontra-se o desafio de combater o trabalho escravo para preservar a dignidade da pessoa humana. Outros elementos perpassam a leitura do fenômeno do trabalho escravo na atualidade. Entre eles, a percepção do Estado como um Estado burguês; o capitalismo como um sistema altamente excludente e com grande poder de coisificar tudo e todos. A defesa dos direitos humanos aponta a necessidade de valorizar e respeitar a vida de todos os seres vistos como parte de um grande e unitário organismo vivo (a Mãe-Terra). Paulatinamente está havendo maior conscientização da humanidade e, em particular, da sociedade brasileira, na perspectiva de lutar pela erradicação do trabalho escravo. 32 Entrevista concedida em 30 jul.2008. 33 Leonardo Sakamoto, formado em jornalismo, é doutor em Ciência Política e coordenador da ONG Repórter Brasil. 34 Entrevista concedida em 19 set.2006. 189 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Considerações finais O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está (Bertolt Brecht) O trabalho escravo no Brasil contemporâneo é uma questão emblemática, abrangente, complexa e desafiadora. Reinventado pelo capitalismo, manteve elementos do escravismo colonial, ao mesmo tempo em que lhe conferiu novas formas de dominação e exploração. No processo histórico ele se metamorfoseou. Aliás, as questões estruturais do sistema capitalista estão diretamente relacionadas a essas metamorfoses. Significa dizer que, acerca do trabalho escravo, existem mudanças e permanências. Em nosso país, no escravismo colonial, o ser humano podia ser propriedade de outra pessoa. Agora isso é proibido por lei. O custo de aquisição de escravos era alto e a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos que possuía. Agora, o custo é baixo e, raramente há compra. Em alguns casos, custa apenas o valor do transporte. Na atualidade, como ocorre com certa frequência, se o escravo adoece pode ser mandado embora sem nenhum direito trabalhista. No escravismo colonial, a mão-de-obra era escassa, dependendo do tráfico negreiro, da prisão de índios ou da reprodução. O escravo era muito caro, ao passo que hoje há abundância de mão-de-obra em várias regiões devido ao alto número de desempregados, sem-terra, sem-teto, marginalizados e excluídos. O relacionamento entre escravo e senhor durava a vida inteira, podendo, às vezes, permanecer até com os descendentes. Na atualidade é muito curto o período de relacionamento. Terminado o serviço geralmente o trabalhador é despedido. Há aspectos da escravidão colonial que permanecem na escravidão contemporânea, tais como: ameaças, violência, coerção física, punições exemplares, fugas e até assassinatos. Para agravar o quadro, na atualidade os escravos são tratados como devedores do patrão ou de seu respectivo representante – o gato – e são levados à submissão moral segundo a qual “quem deve tem que pagar”. Portanto, passam a ser também escravos da sua consciência. Assim, em repetidas vezes, quando são libertados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do governo federal e recebem o montante financeiro pelos serviços prestados na fazenda, muitos desses trabalhadores voltam e pagam a sua “dívida”. Os trabalhadores entendem que é uma questão de honra ter o nome “limpo”, não dever nada para ninguém. Sem opções de conseguir outro trabalho, muitos retornam à mesma fazenda ou vão se hospedar nas pensões e boates. 190 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Lá se embriagam e se relacionam com prostitutas, até que outro “gato” os procure e os leve para outra fazenda, normalmente já na condição de devedores. O objeto em pauta traz vários questionamentos. Está articulado a uma rede complexa que envolve o agronegócio, o dono da fazenda (político, banqueiro, empresário etc.), o “gato”, o dono da pensão, o motorista do veículo que transporta os trabalhadores aos locais mais distantes deste país, entre tantos outros. A defesa dos direitos humanos é a questão central que leva ativistas, militantes, intelectuais, juristas etc. à luta pela erradicação do trabalho escravo contemporâneo. Com o trabalho dos ativistas em geral, bem como as ações específicas de religiosos (as), padres e bispos da CPT, verificam-se avanços significativos. Denúncias de trabalho escravo a organismos internacionais (ONU, Organização dos Estados Americanos – OEA - e OIT) têm como desdobramento a indenização das vítimas pelo governo brasileiro. É importante destacar também o trabalho de conscientização e as denúncias que vêm sendo feitas por ONGs, e especialmente pela CPT, nos estados mais pobres do Brasil como Pará, Maranhão e Piauí, onde os aliciadores agem com mais frequência e liberdade. As denúncias da CPT, além de proporcionar maior visibilidade – na mídia – ao problema do trabalho escravo, tornam-se fundamentais no sentido de dar mais força à pressão dos organismos internacionais sobre o Estado brasileiro para que este assuma suas responsabilidades. O reconhecimento oficial pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, da existência desta chaga social no Brasil em muito se deve ao trabalho realizado pela CPT e pelos diversos organismos internacionais que visam garantir os direitos humanos. Não são necessários grandes esforços para perceber que existem avanços sobre esta questão. Porém, os desafios ainda são muitos, tais como: reforma agrária e agrícola democrática; aprovação de leis no Legislativo Federal como o confisco da propriedade em que for constatado o trabalho escravo (Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n° 438/2001); educação de qualidade que conscientize alunos, pais e a comunidade em todo o país sobre o problema; mudança cultural de mentalidade dos latifundiários vinculados ao agronegócio, dos empresários, dos banqueiros e dos parlamentares; desburocratização do Estado brasileiro com o fito de concretizar as políticas públicas nessa questão; ações articuladas e mais vontade política dos ministérios públicos; maior empenho da sociedade civil e dos meios de comunicação de massa no enfrentamento desse problema etc. Vivemos em um mundo globalizado onde as novas tecnologias – como a robótica e a telemática associadas ao consumo e ao individualismo – dão o tom para o desenvolvimento capitalista. 191 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) O Brasil ainda é um país de grandes contrastes; de mudanças e permanências; de desenvolvimento e de atraso; de opulência e de miséria; de conhecimento e de ignorância, de “avenidas paulistas” e de senzalas; de trator e de enxada; de agronegócio e de trabalho escravo. Portanto, neste contexto, trabalho escravo e direitos humanos marcham em direções diametralmente opostas. Por outro lado, temos os defensores dos direitos humanos que colocam em relevo a solidariedade e a dignidade humana. Sobressai-se a ação da CPT e de um conjunto de entidades e organismos que lutam destemidamente pela construção de outro mundo possível e necessário, onde haja trabalho digo para todos e prevaleça a paz com justiça social. A erradicação do trabalho escravo e a construção de uma “terra sem males” dependem de todos nós, sendo que cada um deve dar a sua contribuição. Conforme Ana de S. Pinto, diante de tantas atrocidades, violência e exclusão em que vivem os trabalhadores, o mínimo que precisamos fazer é acender a nossa lâmpada. Se não tiver lâmpada, acendamos o nosso toco de vela; se não tiver vela, a gente procura estar repetidamente buscando um fósforo. Na perspectiva de muitos agentes de pastoral, é fundamental somar esforços com outras pessoas, outros companheiros e companheiras. Assim, será possível tornar mais humana a convivência no Planeta, contribuindo para que a justiça social se instaure e o Reino de Deus aconteça. O mínimo que a sociedade pode fazer é compartilhar e apoiar as lutas de resistência dos trabalhadores que têm a sua dignidade roubada e sua existência dilacerada. Referências ANTONIL, André João. Como se há de Haver o Senhor do Engenho com seus Escravos. In: Com Palmos Medida: Terra, Trabalho e Conflito na Literatura Brasileira. São Paulo: Boitempo, 1999. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. 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São Paulo: Boitempo, 1999. 193 4 DEPOIMENTOS 4 Trabalho escravo contemporâneo Marcelo Campos Tratar desta questão relacionada à submissão de trabalhadores a condições de trabalho análogas à de escravo exige, inicialmente, de todos nós, uma compreensão daquilo que é o trabalho escravo contemporâneo. Como eu não tenho a expectativa de que todos tenham a mesma compreensão sobre o tema, farei rapidamente uma abordagem daquilo que se constitui o trabalho escravo contemporâneo na perspectiva do governo federal. Farei rapidamente uma comparação entre as formas de escravidão contemporânea e o que seria a escravidão clássica, que é aquela ocorrida no Brasil no período da colônia e do império e que terminou há 118 anos atrás. A escravidão do ponto de vista histórico é algo muito presente e tão presente que explica a escravidão contemporânea em suas mais variadas modalidades. O primeiro paralelo a se fazer é que na escravidão clássica, a da colônia e do império, ser escravo era ser objeto, era ser uma mercadoria adquirida por um proprietário, por um senhor de escravos. Então, a principal característica daquele ser humano, daquele trabalhador era estar submetido a um status jurídico que o definia como mera mercadoria. O indígena, no início, logo abandonado porque não representava interesse econômico para o modelo escravista internacional e depois os negros capturados na África é que serão as vítimas desse odioso processo. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Para justificar a exploração do negro capturado no continente africano foi construída uma série de argumentos ideológicos que desproviam esse ente humano de qualquer conteúdo de humanidade. Disso, se ocupou inclusive a Igreja Católica ao afirmar que o escravo não era provido de alma, para justificar e criar todo um arcabouço ideológico para a sua exploração. O escravo clássico era um objeto, uma mercadoria legalmente explorada. Já o escravo contemporâneo é um cidadão desprovido, na prática, de direitos que lhe confeririam a necessária dignidade. Ele, em tese, tem status jurídico de cidadão, é sujeito de direitos e obrigações e deveria estar sendo protegido. No entanto, dele são retirados todos esses direitos trabalhistas e humanos. Portanto, ele é desumanizado. A vítima não se torna escravo do ponto de vista jurídico e clássico, porque ele não é sequer mercadoria, transformando-se em mera coisa descartável. Na verdade, estará sendo vítima de um crime. Não é mais legal explorá-lo como escravo como se dava no passado. Naquele período, aquele que tivesse dinheiro, fosse um proprietário rural ou urbano, poderia se dirigir ao mercado de escravos e comprar um ser humano. Esse ser humano passava a ser sua mercadoria, sua propriedade. Como toda mercadoria adquirida, qual é a principal preocupação de seu proprietário? Mantê-la em boas condições, pois ela possui valor de troca. Se o proprietário viesse a necessitar iria ao mercado, venderia a mercadoria e faria dinheiro. Atualmente, ainda possuímos uma visão muito estereotipada do que era a escravidão na colônia e no império. É claro que ser escravo era péssimo, terrível e desumano. Mas, pelo menos o dono do escravo tinha a preocupação de mantê-lo como mercadoria com valor de troca, tendo um mínimo de preocupação em alimentá-lo e vesti-lo. Nas formas contemporâneas de escravidão quem explora e escraviza os trabalhadores não está minimamente preocupado com a manutenção da vida do trabalhador. O escravo é totalmente descartável não se preocupando o explorador em alimentá-lo, em lhe dar roupa ou qualquer outra condição para a garantia de sua saúde e segurança no trabalho. Se morrer hoje, amanhã terá outros dez para ocupar o seu lugar. É importante ter essa medida das diferenças e do status jurídico do que era ser escravo no período da colônia e império e daquilo que é ser um trabalhador em condições análogas à de escravo no Brasil contemporâneo. O trabalhador contemporâneo vítima desse tipo de exploração não tem status jurídico de escravo. Ao contrário, como já assinalado, possui status 198 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas jurídico de cidadão. Deveria estar protegido, deveria ter direitos tais como: carteira assinada; alojamento digno; alimentação farta e sadia. Deveria ter tudo isso e não tem. Por quê? Porque um criminoso seja ele um usineiro da cana-de-açúcar ou um fazendeiro criador de gado ou plantador de soja surrupiou tudo isso que a lei garante ao cidadão trabalhador. Então a vítima foi desumanizada, enquanto trabalhador com direitos trabalhistas, enquanto ser humano, sujeito dos Direitos e Garantias Fundamentais garantidos pela Constituição Federal. A vítima perde na prática seus direitos, estando no cotidiano de suas atividades laborais em situação tão ou mais desprotegida que o trabalhador escravo clássico. Tal fato ocorrerá em atividades do roço de juquira, no Maranhão e no Pará; no desmatamento no norte do Mato Grosso; nas usinas de cana aqui no Rio de Janeiro, São Paulo ou Triângulo Mineiro; nos cafezais lá no Espírito Santo ou no algodão no Mato Grosso. A esse trabalhador, as condições dignas de trabalho são negadas. E o que é oferecido para esses trabalhadores são condições de trabalho análogas a do escravo na colônia e do império. Por que condições análogas? Porque em muitas vezes elas até são piores. Isso porque, quem o explora hoje não tem sequer a preocupação com o trabalhador enquanto mercadoria como acontecia no passado. A partir dessa observação é importante sabermos e percebermos essas sutilezas, pois há muitas pessoas que mantêm a percepção de que quando identificamos um trabalhador contemporâneo submetido a condições de superexploração ele deve ser um negro amarrado ao tronco e sendo açoitado. Essa é uma visão estereotipada e que não colabora para a solução do grave problema. Esses escravos idealizados ninguém irá encontrar. O que encontraremos serão seres humanos brancos, negros, morenos, pardos sendo desumanizados e expropriados de seus direitos. E tudo isso tanto no passado como hoje, tem como característica comum o fato de que as vítimas são inseridas no processo produtivo. Quem utiliza o trabalho escravo contemporâneo em suas diversas modalidades não é um fazendeiro arcaico, atrasado, lá no interior do país e que não sabe as obrigações que a lei lhe obriga cumprir. Ao contrário, quem explora trabalhadores em condições análogas à de escravo são fazendeiros cujas fazendas são apenas uma parte dos seus negócios. Eles moram aqui no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Goiânia ou Belo Horizonte. Moram muito bem. Sendo a fazenda apenas parte dos seus negócios, quem comanda a exploração é o capataz e o “gato”, que possui a função de controlar e vigiar os trabalha199 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) dores. Enquanto isso, essas vitímas produzem aquilo que consumimos em nosso cotidiano. Produzem o álcool que enche o tanque do nosso automóvel; o açúcar com o qual adoçamos as nossas delícias; o aço produzido com carvão vegetal lá do Pará e do Maranhão que está nos carros e nas geladeiras; o cafezinho tão gostoso de cada dia. Todos esses produtos não circulam apenas no âmbito do agronegócio, mas por toda a cadeia da indústria brasileira e podem, se não devidamente fiscalizados, estar contaminados com formas contemporâneas de trabalho escravo. Pois, como não há controle social e nem visibilidade no processo produtivo, em tese, você pode estar comprando, se não estiver bem informado, produto que pode estar contaminado pelo trabalho explorado. A partir dessa reflexão, passemos a análise daquilo que é o trabalho escravo contemporâneo. No Código Penal, o artigo 149 foi atualizado recentemente prevendo quatro hipóteses, quatro formas de trabalho escravo contemporâneo. A primeira delas é o trabalho forçado que ocorre quando alguém com uso da força, violência ou arma, ordene que o trabalhador faça alguma atividade laboral. A segunda é a jornada exaustiva que tanto pode ser uma jornada para além daquela jornada limite de oito horas com duas horas extras ou uma jornada extenuante dentro do limite previsto pela lei e que, entretanto, provoque a exaustão do trabalhador, situação esta identificada em casos ocorridos no setor sucroalcooleiro. Pode ocorrer de existir um trabalhador cortando cana por seis horas, mas o ritmo do corte da cana e as condições de trabalho ser tão extenuantes que ele não resista e tenha sua saúde gravemente comprometida. A jornada exaustiva tem que ser vista não apenas pela quantidade de horas, mas pela capacidade humana do trabalhador dentro daquele contexto de trabalho. E aí faço um parêntese para o setor sucroalcooleiro. Não há nada mais fatigante nessas atividades do agronegócio do que aquelas desempenhadas nas áreas de campo no setor sucroalcooleiro. Eu duvido que algum de nós aqui, todos muito bem alimentados, bem hidratados, resistíssemos uma hora sob o sol escaldante, com aquele facão cortando cana. Não resistiríamos certamente. Isso porque o trabalho é exaustivo, o calor é muito grande e o esforço físico empreendido pode se tornar quase desumano. O quê que se esperaria? Que na frente de trabalho houvesse água potável; que houvesse um local coberto prá comer a marmita na hora do almoço, com uma sombra mínima. Que quando o trabalhador voltasse para 200 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas casa tivesse um chuveiro para tomar um banho, pudesse deitar no colchão e dormir. Mas, nos casos identificados, não tem nada disso. Surrupiam dos trabalhadores as condições mínimas de trabalho, para que a execução das atividades laborais se dê em condições dignas. A terceira forma de exploração em condições comparáveis à de escravo é a servidão por dívida que é comum nas fazendas do interior do país. Ocorre quando o “gato” ou capataz, representantes do fazendeiro vão anotando no caderno de dívida tudo o que o trabalhador consome. Ressalte-se que, pela lei, tudo deveria ser fornecido de graça, pois é um direito do trabalhador. A dívida fica impagável e o trabalhador não é autorizado a sair do trabalho enquanto não quitá-la. E a última modalidade desse trabalho é aquela representada pelo trabalho degradante. Uma vez que, esse é exatamente aquilo que degrada o trabalhador enquanto sujeito possuidor de direitos, enquanto cidadão. Se o trabalhador possui direitos trabalhistas e lhe negam todos; se o trabalhador tem direito a alojamento decente e lhe negam; se o trabalhador tem direito a tomar banho e lhe sonegam a água para tomar banho; se o trabalhador tem direito à comida e lhe dão comida azeda; se o trabalhador tem direito a água potável para matar a sede na frente de trabalho e não lhe dão a água; se o trabalhador tem direito a uma sombra para comer e descansar e lhe dão sol escaldante; se o trabalhador tem direito a sentar dignamente para fazer a refeição e lhe dão o chão ou a cana pra sentar, então é trabalho degradante. Não fornecem ao trabalhador o equipamento de segurança; não fornecem botina; não fornecem luva ou vendem os equipamentos de segurança. Então, degradou-se, surrupiaram-se os seus direitos humanos e trabalhistas. É certamente, conforme prevê o artigo 149 do Código Penal, uma forma de trabalho análogo ao de escravo. É com essa perspectiva de análise e com essas hipóteses legais de trabalho análogo ao de escravo que nós temos trabalhado ao longo desses anos, desde que em 1995, o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo no Brasil. A partir de 2003, com o governo Lula e o lançamento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, houve uma aceleração nesse processo de enfrentamento do crime. Passamos de uma média de 25 ações de fiscalização e repressão até 2003 para, no ano passado, 109 ações. Não é fácil, fazer esse enfrentamento. Nossas equipes de fiscalização e repressão são compostas por auditores fiscais do trabalho; procuradores 201 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) do Ministério Público do Trabalho; delegados e agentes da Polícia Federal e, eventualmente, procuradores da república. Trabalhamos fundamentalmente com base em denúncias que nos chegam por intermédio de nossos parceiros governamentais e da sociedade civil. Vamos ao local denunciado, identificamos a situação. Se identificarmos aquela situação como uma ou mais hipóteses de trabalho escravo contemporâneo, providenciaremos a retirada, a “libertação” dos trabalhadores com uma série de consequências punitivas para o infrator. Inicia-se, a partir da identificação da situação análoga à de escravo das vítimas, uma série de atividades e providências em todos os níveis do Estado brasileiro. No poder executivo; no Ministério Público Federal e no Poder Judiciário com vistas a punir esses criminosos. Isto porque quem explora trabalhador em condições análogas à de escravo deixa de ser apenas um mau patrão. Ele será além de mau patrão um criminoso. O crime, como já dito, está previsto no artigo 149 do Código Penal. Apesar de todo esse nosso trabalho reconhecido, nacional e internacionalmente, somos vítimas de frequentes acusações do setor patronal de sermos exagerados na identificação dos casos de trabalho análogo ao de escravo; de vermos escravos onde não existem; de caracterizarmos como escravo o que não é escravo. Entretanto, a realidade não se inventa. Cumprimos a lei e quem atualizou o artigo 149 do Código Penal não fomos nós. Foi o Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Se quiserem que as práticas e condutas que atualmente são consideradas trabalho escravo não o sejam, que mudem o texto da lei ou, o que é mais desejável, deixem de praticar tais condutas contra os trabalhadores e nós, agentes públicos, não acharemos mais escravos. Entretanto, enquanto o artigo 149 do Código Penal disser que existem aquelas quatro hipóteses de trabalho análogo ao de escravo e enquanto nós possuirmos governabilidade política e compromisso de enfrentamento, certamente nos dirigiremos aos locais de trabalho e levaremos a dignidade ao trabalhador vítima de tão execrável crime. É fundamental, quando se trata dessas formas contemporâneas de trabalho análogo a de escravo, que tenhamos capacidade de enxergar as condutas como algo reprovável e criminoso. Muitas vezes, podemos ter todo um acúmulo de discussão acadêmica e técnica, mas na hora em que chegamos ao campo não teremos a capacidade de ver os fatos como realmente se mostram. Como havia dito no início de minha fala, às vezes temos uma visão muito estereotipada do que seja trabalho análogo ao de escravo. Nunca é demais 202 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas lembrar que somos bisnetos ou tataranetos de escravos ou de escravocratas. Dificilmente fugiremos a esta regra. Considerando que do ponto de vista histórico é muito recente a libertação dos escravos, são apenas 118 anos e isto não é nada, o gene da escravidão ainda corre em nossas veias. Se nós não tomarmos cuidado estaremos tratando os nossos empregados como escravos e achando tudo muito normal. Então precisamos nos exercitar diariamente, fazendo a crítica, inclusive sobre nós mesmos. Superar as formas de escravidão contemporânea no Brasil não é uma tarefa fácil. Então, às vezes, vocês irão encontrar com pessoas muito elegantes nos grandes salões sociais do Rio de Janeiro, grandes empresários e que nas suas fazendas estarão explorando pessoas em condições análogas à de escravos. Precisamos fazer essas reflexões para poder avançar. Afinal, apesar de termos um gene escravocrata, talvez concordássemos em pagar alguns centavos a mais pelo litro de álcool, pelo aço do carro, pelo cafezinho se soubéssemos que estaríamos evitando trabalho análogo ao de escravo. É verdadeiramente desumano conviver com essas práticas de exploração. Não é tolerável. 203 5 Violação de direitos humanos no campo: um enfoque a partir da Amazônia1 José Batista Gonçalves Afonso Nas últimas décadas, a sociedade brasileira (em especial os movimentos sociais) tem dado passos importantes na luta pela defesa dos direitos humanos no Brasil, forçando dessa forma, o Estado brasileiro a reconhecer e adotar políticas voltadas para efetivação desses direitos. O enfrentamento à ditadura militar, a luta pela redemocratização do país, a defesa dos direitos civis e políticos, a mobilização popular pela construção de uma nova Constituição, marcada pela garantia dos direitos individuais e coletivos, constituíram passos importantes nesse processo. As lutas sociais pós-ditadura, o processo de conscientização e organização da sociedade fizeram surgir uma grande rede de entidades ligadas à luta pela defesa dos direitos humanos que, ao longo dos anos, tem contribuído decisivamente nos procedimentos de denúncia da violação desses direitos, na eclosão de lutas e manifestações, as quais têm compelido os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a adotarem políticas concretas de defesa e garantia dos direitos em questão como, por exemplo: a Lei da Anistia, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha, etc. 1 Os dados apresentados neste capítulo foram atualizados pelo autor em janeiro de 2011. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Em termos de legislação, o Brasil é um dos países que mais avançou nesse campo, pois além de ter codificado normas relativas a Direitos Humanos em sua legislação constitucional e infraconstitucional, é signatário dos principais tratados internacionais que versam sobre a proteção dos Direitos Humanos. No entanto, a sociedade brasileira, principalmente sua menor parcela que ainda vive e resiste no campo, não tem nada a comemorar. Saímos de uma situação, de violações sistemáticas e generalizadas dos direitos humanos dirigidas diretamente pelo Estado, durante o regime militar e, entramos numa situação mais recente de violação dos direitos, em consequência da ofensiva do capital que promove uma crescente exclusão social, da mesma forma, violenta e desumana. Podemos, de certa forma, afirmar que as técnicas de violação de direitos humanos, antes utilizadas para reprimir divergências políticas, na atualidade são redirecionadas, e seus efeitos são: o agravamento das injustiças, o aumento da exclusão social e a violência. Temos que considerar, infelizmente, que os avanços se deram mais no campo formal do que no campo prático. Há um enorme descompasso entre a norma e sua aplicação que preceitua a Constituição, as Leis, os Tratados Internacionais em que o Brasil é signatário e o que existe no campo brasileiro. Na prática os direitos dos trabalhadores estão sendo negados como bem afirma Daniel Rech: “A realidade do povo brasileiro”, argumenta “é bem diversa daquela delineada nas leis e autoriza a afirmação de que a democracia é apenas formal e que os trabalhadores e trabalhadoras rurais não possuem total direito à vida, à liberdade e ao trabalho. Trabalhar, comer, educar os filhos e morar, direitos de primeira geração, são aspirações que parecem mais distantes as cada ano (RECH, 2003, p. 107). O Brasil sempre foi o país do latifúndio. Os proprietários de terras, além de ter o poder econômico, também dominam politicamente grande parte da sociedade brasileira. A terra não é só sinônimo de riqueza, mas de poder e controle social. O atual modelo agrário concentrador foi sendo gestado desde que os portugueses aqui chegaram. A promulgação da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a primeira Lei de Terras, regulamentou esse processo instituindo a propriedade privada da terra no Brasil, consolidando ainda mais a desigualdade no campo ao estabelecer, a compra, como a forma de acesso à terra. A Lei discriminou os pobres e impediu que os escravos libertos se tornassem proprietários, pois nem uns nem outros possuíam recursos para adquirir parcelas de terra da Coroa ou para legalizar as que possuíam. A outra consequência social dessa Lei foi 206 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas a consolidação do grande latifúndio como estrutura básica da distribuição de terra no Brasil. Passaram-se os anos, mudaram-se formas de governo, superaram-se períodos ditatoriais, mas, a concentração da terra nas mãos de poucos continuou quase que intocável. Nem as históricas lutas dos trabalhadores em defesa da reforma agrária, conseguiram acabar com o latifúndio e democratizar o acesso à terra no país. Hoje, segundo o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1996), existem no país 4,8 milhões de estabelecimentos agrícolas, ocupando uma área de 353,6 milhões de hectares. Os minifúndios e as propriedades com menos de 100 hectares representam 89,1% desses estabelecimentos e apenas 20% da área total. Já as grandes propriedades, com área acima de mil hectares, representam 1% do total de imóveis e ocupam 45% da área total. Esse processo de concentração da terra tem sido a causa principal da permanência dos conflitos nos campo e das variadas formas de violação de direitos dos camponeses no Brasil. Os relatórios periódicos de avaliação e monitoramento dos direitos humanos no campo, elaborados pelas diferentes entidades de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Rede Social, etc., vem, ano após ano, expressando essa realidade. De acordo com os dados divulgados no Caderno de Conflitos no Campo, da CPT, em 2009, por exemplo, ocorreram 1.184 conflitos no campo, no Brasil, envolvendo 628.009 pessoas2. Grande parte desses conflitos ocorreu, principalmente, em 290 ocupações e 36 acampamentos organizados pelos diversos movimentos sociais com atuação no campo. Ainda segundo a mesma fonte, 12.388 famílias foram despejadas da terra por determinação judicial, 1.884 famílias foram expulsas sem ordem judicial, 25 pessoas foram assassinadas, 143 foram vítimas de ameaças de morte e 204 foram presas pela polícia. Ocorreram ainda, no campo, 45 conflitos pela água, envolvendo 201.625 famílias. Os dados da CPT mostram ainda que, dos 1.184 conflitos, 622 deles ocorreram nos estados que compõem a Amazônia. Os estados do Tocantins, Pará, Maranhão, Mato Grosso e Rondônia, juntos, concentram 516 dos conflitos, demonstrando a continuidades e o agravamento dos conflitos e da violência na região de fronteira de expansão do capital em direção à Amazônia. Os dados revelam também que, em 2007, os sem terra correspondiam a 44% do total das categorias envolvidas em conflito por terra, já em 2008, essa 2 Conflitos por terra (751), trabalho (373) e água (46). 207 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) proporção caiu para 36,3%, ocupando assim o segundo lugar entre as diversas categorias. Por outro lado, as populações tradicionais que ocupavam o segundo lugar, em 2007, com 41% do total, passaram a ocupar o primeiro lugar com 53% do total. É importante observar que, 65,4% das populações tradicionais envolvidas em conflitos por terra estão na Amazônia Legal. Os dados evidenciam claramente, por um lado, a gravidade da violência no campo, pois os índices continuam altos, situação que persiste há décadas e, por outro, a falência do processo oficial de democratização do acesso à terra, através de um programa de Reforma Agrária. Essa bandeira, erguida e defendida, pelos movimentos sociais do campo, continua fora da pauta de prioridade dos sucessivos governantes, e o atual não constitui exceção. Em 2009, o Governo Federal, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) “assentou” apenas 55.498 mil famílias. Em 2010, a projeção é que o número de famílias assentadas fique na faixa de 30.000. O pior desempenho de todos os anos da era Lula. Os números expressam o grau de importância da política de Reforma Agrária no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ou seja, importância quase nenhuma. Por outro lado, permanece a prática do trabalho escravo no campo. A situação continua grave e sem grandes alterações em função das tímidas ações governamentais. Em 2009, foram registrado 240 casos denunciados, envolvendo 6.213 trabalhadores. 2008 foi o ano com maior número decasos denunciados, desde que a pesquisa começou a ser feita, 280 no total. O maior número anteriormente registrado foi em 2005, com 275 denúncias. O número de pessoas libertadas alcançou, em 2008, seu segundo maior número desde a criação, em 1995, dos Grupos Móveis de Fiscalização, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).3 O maior número de casos denunciados está vinculado à pecuária. De 2003 a 2009 essa atividade concentrou 65% dos casos fiscalizados. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2007), entre 2003 e 2006, a Amazônia concentrou 96% do crescimento do rebanho bovino nacional (IBGE, 2007). O Pará é o estado com o maior rebanho bovino. Não foi por acaso que 68,9% do total de casos registrados de trabalho escravo no Brasil, em 2008, se localizava na Amazônia. As políticas públicas, adotadas para a erradicação do trabalho escravo, têm se mostrado notadamente ineficazes na medida em que são direcionadas, principalmente, para combater os efeitos e não as causas geradoras 3 As 280 denúncias envolveram 6.997 trabalhadores (CPT, 2008). 208 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas desta prática criminosa. Além das ações de governo ter ficado mais no campo repressivo, ainda assim, estão muito aquém do que a realidade exige. Das 240 denúncias registradas em 2009, envolvendo 6.231 trabalhadores, os Grupos Móveis, fiscalizaram apenas 169, libertando somente 4.283 pessoas. Em relação aos direitos das populações indígenas, conforme relatório divulgado pelo CIMI4, em 2009, 53 povos indígenas sofreram alguma forma de violência5e 60 indígenas foram assassinados, 45 sofreram tentativa de assassinato, 17 sofreram ameaças de morte e 19 foram vítimas de suicídio.6 Ainda segundo este relatório, Fica evidente que, mesmo com as garantias constitucionais, asseguradas a partir de muita mobilização e lutas dos povos indígenas e da sociedade de modo geral, o poder público tem se negado, sistematicamente, a garantir a proteção dos direitos indígenas, principalmente, no que concerne à defesa de seus territórios. Constata-se que, a maioria dos casos de violência praticados contra os indígenas, advém da invasão de suas terras. Prova dessa omissão do Estado é que mesmo diante das pressões, 324 terras indígenas ainda estão sem qualquer tipo de providência para sua regularização. Em seus 8 anos de governo, Lula homologou apenas 78 terras indígenas, menos que o governo FHC que homologou 146. Com as comunidades remanescentes de Quilombos, a situação não tem sido diferente. Até o ano de 2008, existiam no Brasil, 3.524 comunidades quilombolas registradas pelo Governo Federal7. Mesmo o artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 estabelecendo que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, mais de 20 anos se passaram e o que se percebe, nos últimos anos, é um crescente retrocesso na atuação do poder público. De acordo com o último relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, “recentes dados divulgados pelo INCRA revelam que o governo Lula chegou ao seu último ano de mandato emitindo apenas 11 rítulos às comunidades quilombolas, o que vem denunciar que o próprio órgão tem cada vez mais descumprido sua meta, haja vista que até o 4 Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília, 2009. 5 Invasão de suas terras, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. 6 18 dos 192 indígenas vitimas de suicídio faziam parte povo Guarani Kaiowá. 7 Secretaria Especial de Políticas Promoção da Igualdade Racial. Disponível em <www.presidencia.gov.br. 209 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) final de 2010 era de 57 titulações. O número divulgado é ínfimo ante a existência de mais de 300 comunidades em 24 estados brasileiros e ainda é inexpressivo, se considerarmos que no mesmo período (2003-2010) o estado do Pará emitiu 26 títulos deterras quilombolas, o Maranhão 19, o Piauí 5 e o de São Paulo 3 títulos.” (RAINHA e LOPES, 2010, p. 92). Os últimos anos têm sido marcados por uma ofensiva orquestrada pela grande mídia, obedecendo a interesses de setores ligados à expansão do capital no campo, contra a luta pelos direitos das comunidades quilombolas. Reportagens seguidas, divulgadas a nível nacional, impuserem mudanças nos procedimentos e a paralisação dos processos de reconhecimento de seus territórios (CPT, 2007, p. 107). A situação não tem sido diferente também para outras categorias de camponeses como posseiros, assentados, sem terras, ribeirinhos, entre outros. Segundo os dados da CPT, em 2009 dos 528 conflitos registrados, 257 envolveram comunidades tradicionais e 173 envolveram famílias sem-terra. Desse modo, como foi evidenciado, os dados comprovam a gravidade da violência no campo e apontam as variadas formas de violação dos direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no Brasil. A violência sempre fez parte da estratégia dos proprietários e empresários rurais na tentativa de afastar os trabalhadores rurais do acesso aos diretos básicos de sua sobrevivência. A terra é um deles. Não obstante, essa realidade que perdura a séculos, nos últimos anos, percebe-se que coadunam, talvez muito mais do que em épocas anteriores, velhas e novas práticas de atores na violação dos direitos humanos no campo. Práticas de velhos latifundiários como contratação de jagunços e pistoleiros na defesa de suas propriedades são hoje evidenciadas por grandes grupos econômicos na Amazônia. São proprietários defensores da modernidade, da competitividade e da negociação, no entanto não abrem mão da violência na defesa de suas propriedades e da prática do trabalho escravo. Inúmeros trabalhadores continuam sendo ameaçados, espancados, assassinados, expulsos de suas terras e escravizados. São empresários, nacionais e estrangeiros, que controlam a expansão das variadas frentes do capital no campo e sustentam o atual modelo de desenvolvimento em curso no país. Entre essas principais frentes estão: 1) Frente dos que controlam os monocultivos, principalmente da soja, da cana de açúcar e do eucalipto. A monocultura da soja já ocupa 22 milhões de hectares no Brasil. 1,2 milhões de hectares de pastagem na Amazônia foram convertidos 210 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas em plantação de soja até o ano de 2004. Apenas no Mato Grosso a área plantada teve aumento de 9,5% nas safras de 2006/07 a 2007/08. Já a cana-de-açúcar, até o ano de 2007, possuía uma área plantada de 7,8 milhões de hectares. Em 2008, a área plantada pulou para 9,0 milhões de hectares. 64,7% da expansão da cana ocorreu em área de pastagem.8 O crescimento das monoculturas aprofunda o processo de concentração da terra e da renda nas mãos de poucos e provoca a desterritorialização de indígenas, ribeirinhos, posseiros, quilombolas, etc. e vem acompanhado do aumento da exploração do trabalho e do trabalho escravo. Em 2008, 46% dos trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel de fiscalização, do Ministério do Trabalho e Emprego, eram escravizados nas plantações de cana-de-açúcar. 2) Frente da pecuária. Com a expansão das monoculturas sobre áreas de pastagem, o gado vai sendo levado para as regiões de floresta. O Norte já concentra quase 40% do rebanho do país. 96% do crescimento do rebanho nacional verificado entre 2003 a 2006, ocorreu na Amazônia. O crescimento do rebanho bovino, em Rondônia, foi de 120% entre 2003 a 2006. No Pará foi de 111% no mesmo período.9 A atividade é a principal responsável pelo desmatamento acelerado na Amazônia e pelos flagrantes crimes ambientais e, também, pelos assassinatos de trabalhadores rurais e emprego de mão de obra escrava. Em 2009, 42% dos trabalhadores resgatados foram encontrados nas fazendas de gado. 3) Frente da Mineração: atualmente, embora se possa constatar que a exploração minerária esteja espalhada por vários Estados, é na Amazônia que essa prática tem sido mais intensa e de efeitos trágicos às comunidades camponesas em quatro grandes pólos: “Amapá” com a exploração de bauxita, manganês, caulim e ouro; “Oeste do Pará” com a extração da bauxita; “Carajás”, com a exploração de ferro, manganês, cobre, níquel e ouro; e “Paragominas” com a retirada de bauxita e caulim. A maior responsável por esse processo é Companhia Vale do Rio Doce, a Vale. É visível que a Amazônia tem um 8 CONAB e Repórter Brasil, 2008. 9 Folha de São Paulo, 2008 e Amigos da Terra, 2008. 211 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) peso significativo na atividade de extração e transformação mineral realizada em território brasileiro, considerando a ocorrência na região de diversos minerais que influenciam na balança comercial do país, sendo o Pará o segundo maior Estado exportador de minérios. A situação dos minérios mais extraídos na Amazônia é esta: em primeiro lugar, o ferro, que em 2008, respondeu por 35,2% do total nacional. Em segundo lugar, a alumina (bauxita) com 17,6%, em terceiro, o alumínio com 15,1% e em quarto, o cobre com 11,3%. (PEREIRA et al, 2008). A expansão da atividade mineraria tem provocado, além de danos ambientais, violações de direitos de populações locais. Em Oriximiná (PA), a Mineração Rio Norte (MRN) que explora as reservas de bauxita nesse município, provocou degradação do meio ambiente com os rejeitos da mineração a partir da emissão de partículas sólidas e material estéril, como argila, bauxita fina e areia. O maior desastre foi causado no lago do Batata. As populações locais, formadas em sua maioria por camponeses e ribeirinhos foram alijadas de seus direitos sobre as áreas de castanhais que ficam ao norte da Floresta Nacional de Sacará-Taquera, onde a mineradora está situada. A Vale tem trazido sérios prejuízos às comunidades de quilombolas de Jambuaçú e outras comunidades dos municípios de Acará e Mojú com a construção de 180 quilômetros de mineroduto (transporte de bauxita) e linhas de transmissão de energia elétrica. Não só a produção agrícola foi prejudicada, mas vilas e povoados foram impactados diretamente pelos empreendimentos. Em 2003, a mineradora Canico do Brasil, empresa canadense, proprietária dos direitos minerários do projeto de extração de níquel nas serras do Onça e do Puma, no município de Ourilândia do Norte, sul do Pará, expulsou 82 famílias através de compra ilegal dos lotes nos projetos de assentamentos Campos Altos e Tucumã, danificou reservas florestais, contaminou os igarapés e desestruturou a comunidade com os serviços de pesquisas. Em 2006, a Vale adquiriu o controle do projeto e continuou causando danos ambientais, econômicos e sociais e inviabilizando a vida de centenas de famílias assentadas que ainda resistem nos referidos assentamentos. Agora essa empresa pleiteia a expulsão de mais 93 famílias assentadas. Desse modo, tanto velhos latifundiários, que sempre utilizaram da lei do gatilho e da pistolagem para garantir seus interesses e eliminar aqueles que os contrariem, quanto os setores ditos modernos do agronegócio e 212 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas grandes empresas do capital privado com empreendimentos na área rural, historicamente, tem se beneficiado da impunidade para acobertar os crimes praticados, seja contra as pessoas ou ao meio ambiente. A título de exemplo, no Estado do Pará, onde se concentra praticamente 2/3 dos assassinatos no campo no campo no Brasil10, apenas um nmadante de crime se encontra preso em razão de condenação. Nesse estado e em outros, a impunidade é a regra para oscasosde crimes no campo e funciona como uma espécie de “licença para matar.” Dentre os quarenta municípios que compõem as regiões sul e sudeste do Pará, onde concentra maioria absoluta dos crimes, apenas seis (Rio Maria, Curionópolis, Parauapebas, Eldorado do Carajás, Rondon do Pará e Marabá), não possuem taxa de 100% de impunidade em relação aos assassinatos de trabalhadores rurais nos últimos trinta e sete anos (1971-2009). Uma cidade como Xinguara, com mais de 80 assassinatos de trabalhadores rurais nesse período, ainda não teve nenhum crime definitivamente julgado. Isso representa uma taxa de impunidade de 100%. Os municípios de São Geraldo do Araguaia, São Félix do Xingu com mais de 50 assassinatos cada, no mesmo período, há idêntica taxa de impunidade. Esse quadro, portanto, não pode ser relacionado aos problemas de ordem estrutural (falta de recursos humanos e financeiros), que alega o judiciário, mas, advêm de uma relação promiscua de determinadas autoridades do judiciário e do governo com os grupos que comandam os crimes. Exemplo de impunidade e parcialidade do Poder Judiciário se deu no julgamento dos acusados pelo massacre de Eldorado. Após a anulação do primeiro julgamento, em que os comandantes da operação foram escandalosamente absolvidos, o júri teve que ser anulado e o juiz que presidia o processo afastado. Surpreendentemente, todos os 12 juízes da capital se negaram a presidir o processo, alegando razões de foro íntimo. A juíza, que ao final acabou aceitando a condução do processo, teve que se afastar do caso três dias antes do julgamento devido seu comportamento, declaradamente tendencioso, em favor dos militares. Já passados 15 anos do massacre não há um sequer preso em razão dos assassinatos. Os dois comandantes da operação, únicos condenados, aguardam em liberdade o julgamento de recurso de suas sentenças pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em relação aos crimes praticados por outros setores do capital (mineradoras, guseiras, etc.) com empreendimentos no campo, a regra tem sido a 10 Dados da CPT do Pará informam que foram mais de 800 assassinados nos últimos 40 anos. 213 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) mesma. Muito raramente são processados ou sofre alguma condenação por crimes praticados contra pessoas e ao meio ambiente. Grilagem, desmatamento ilegal, invasão de terras indígenas, poluição de rios e igarapés, etc., são todos crimes com penas elevadas, no entanto, seus infratores escapam ilesos em quase totalidade dos casos. O discurso do progresso, da modernidade e do desenvolvimento acoberta os crimes e ofuscam os olhos dos responsáveis pela aplicação da lei. No centro de toda essa expansão está a terra, cada vez mais concentrada, mas também, reivindicada pelos camponeses como território de enfrentamento à expansão devastadora do capital. Como o Estado brasileiro, tem se negado a garantir esse direito àqueles que o reclamam, por estar historicamente comprometido com as oligarquias rurais, os movimentos sociais rurais, comunidades camponesas e indígenas, tem chamado para si a responsabilidade de forçar o governo a reconhecer esse direito. Isso tem sido feito, através de muita luta e muito sangue. A estratégia dos movimentos sociais e das populações camponeses tem sido a de promover a ocupação dos latifúndios improdutivos que não cumprem com a função social e que são de interesse do agronegócio, exigir a demarcação de terras indígenas, terras de quilombolas, ribeirinhos, demarcação de áreas de proteção ambiental, reservas extrativistas, entre outros, como forma legítima de defesa de seus territórios e pressão, para forçar o governo a cumprir com o que determina a Constituição Federal. Os avanços, no entanto, têm provocado uma reação violenta, principalmente, dos novos atores que, concentram as terras, tem grande poder econômico e fortes influencias sobre os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e do Ministério Público. As novas (e algumas já velhas) formas de violação dos direitos dos camponeses tem sido em vários sentidos: 1)Contratação de Empresas de Segurança para impedir as ocupações. Embora o uso da pistolagem e das milícias privadas, por parte dos latifundiários, ainda continue sendo a principal causa das ameaças, das expulsões violentas e dos assassinatos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais que lutam pelo direito à terra, principalmente, nas regiões de fronteira da Amazônia,11 é crescente a contratação das empresas de segurança, por setores ligados ao agronegócio 11 De acordo com os dados do Caderno de Conflitos no Campo da CPT, são mais de 400 assassinatos nos últimos 10 anos e mais de 4.000 famílias expulsas por ação violenta de pistoleiros e milícias entre os anos de 2006 a 2008. 214 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas da cana, da soja, do eucalipto, da pecuária, etc., como meio de impedir ou expulsar trabalhadores das ocupações. É uma nova estratégia que tem como objetivo privatizar a segurança e legalizar as ações violentas cometidas contra os trabalhadores. Por trás da suposta legalidade das empresas, estão vários crimes: muitos pistoleiros são incorporados aos grupos dos seguranças contratados, no momento das ações criminosas contra os trabalhadores; muitas armas utilizadas pelos seguranças não possuem porte legal e as empresas, além de não terem qualquer preparo para lidar com problemas sociais - pois seus funcionários são treinados para enfrentar quadrilhas em transporte de valores, fazer segurança de bancos, empresas, etc. – muitas delas atuam de forma irregular ou na ilegalidade. No Pará, o grupo Santa Bárbara, do conhecido banqueiro Daniel Dantas, maior proprietário de fazendas e de gado do Estado,12 contratou empresas de seguranças para vigiar suas fazendas contra ocupações dos movimentos sociais. Nos meses de abril e maio de 2008, os seguranças das empresas Marca e Atalaia, abriram fogo contra dois grupos de sem terra, ligados ao MST, nas fazendas Espírito Santo e Maria Bonita, ferindo gravemente, 12 trabalhadores. As investigações feitas pelas polícias federal e civil do Estado, concluíram que: a empresa Atalaia não tinha autorização para atuar no Estado do Pará e nas ações criminosas contra os trabalhadores, usaram armas não autorizadas e pistoleiros atuaram junto com os seguranças. 2) Imposição de medidas “legais” repressivas e de restrição de direitos. Essa estratégia, se intensificou a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), com o objetivo de interromper as crescentes lutas dos movimentos sociais do campo e desconstruir o direito dos trabalhadores à terra, já assegurados em Lei, em consequência de lutas históricas da categoria. Nos dois mandatos do então presidente FHC, o Governo Federal lançou uma série de medidas que vinham na contramão dos direitos já assegura12 Em menos de 3 anos o grupo comprou mais de 50 fazendas nas regiões sul e sudeste do Estado, acumulando uma área, aproximada, de 600 mil hectares de terra. 215 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) dos pelos trabalhadores. A principal delas foi: a Medida Provisória - MP - nº 2.183/56, que alterou a Lei nº 8.629/93,13 que normatiza o processo de desapropriação de imóveis para a reforma agrária. Com a alteração, o INCRA ficou impedido de ingressar nos imóveis para fazer as vistorias para avaliar a produtividade do imóvel e, nos casos de improdutividade ou descumprimento da função social (conforme prevê o artigo 186 da CF/88), desapropriá-lo para o devido assentamento de famílias sem terra. Consta ainda das alterações impostas pela Medida Provisória (MP), a exclusão dos trabalhadores, que forem identificados nas ações, do programa de reforma agrária, além das penalidades impostas pela legislação penal. A MP foi convertida em Lei já no governo Lula, o qual não se opôs aos interesses da bancada ruralista na aprovação da medida. Em nível de Congresso Nacional, a ofensiva tem sido coordenada pela bancada ruralista, em várias frentes, dentre elas: a criação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da terra e da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs. As duas CPIs foram articuladas pela bancada ruralista no congresso, com objetivos bem definidos. A primeira visava criar obstáculos para a aprovação de leis favoráveis à reforma agrária no congresso, propor a criação de novas leis que impedissem a organização dos movimentos sociais no processo de ocupação de latifúndios, adotando penalidades mais graves dos casos na esfera criminal. A segunda, teve como objetivo desarticular as organizações de sustentação financeira dos movimentos e de comercialização de sua produção, impedindo-as de terem acesso aos recursos públicos. No caso da CPMI, o relatório paralelo apresentado pelos parlamentares da bancada ruralista, propôs a alteração da legislação no sentido de classificar a ocupação de terras como ato terrorista, entre outros. 3) A criminalização dos movimentos sociais. A trincheira principal de articulação das forças do latifúndio na estratégia de criminalização passa pela a atuação do Poder Judiciário, tradicional aliado desse setor, do Ministério Público e das polícias. Na área cível, todas as garantias constitucionais ligadas aos direitos fundamentais individuais e coletivos, a obrigatoriedade do cumprimento da função social da 13 Parágrafo 6º do Artigo 2º da Lei 8.629/93: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa e quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.” 216 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas propriedade não são levadas em conta quando, em pauta, estão as ações possessórias. A Lei Maior é desconsiderada em nome da proteção ao direito absoluto de propriedade. É na área do direito penal que, de fato, se estrutura com maior força, o processo de criminalização. Na luta justa dos Movimentos Sociais, típica de uma sociedade democrática, são imputados aos trabalhadores um rol de crimes: formação de quadrilha, esbulho, cárcere privado, roubo, furto, desobediência, incitação ao crime, resistência, etc. com o único objetivo de cercear-lhes o direito à terra e proteger o latifúndio. Baseado neste fundamento é decidida a prisão e instauradas ações penais e a condenação de dezenas de trabalhadores a cada ano nesse país. Mesmo lidando com o direito positivo, historicamente construído para proteger o patrimônio das elites, em muitos casos, as decisões vão além dos parâmetros do positivismo jurídico, expressando uma visão ideológica classista e preconceituosa de quem é responsável pela administração da justiça. A criminalização é, justamente, transformar a luta dos movimentos sociais organizados por um direito, em prática de crime. Essa prática ocorre de forma mais intensa nas instâncias de primeiro grau do Poder Judiciário e do Ministério Público e é adotada, na maioria das vezes, desconsiderando completamente o estabelecido na Constituição e na legislação infraconstitucional, bem como, nas decisões de instâncias dos tribunais superiores.14 Em 2008, a criminalização dos movimentos sociais do campo e de suas lideranças se propagou pelo Brasil. No Pará, o autor deste depoimento e o Ex-coordenador regional da FETAGRI, Raimundo Nonato Santos da Silva, foram condenados a uma pena de 2 anos e 5 meses de prisão. A motivação principal usada para condená-los foi o fato de terem, assessorado (no caso do Advogado) e organizado os trabalhadores (no caso do sindicalista) em uma ocupação do INCRA para negociar benefícios para famílias acampadas e assentadas no sudeste do Pará; Em Alagoas, ex-coordenadores do Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL), Valdemir Augustinho de Sousa e Ivandeje Maria de Sousa, foram condenados a 24 anos de prisão, por terem coordenado a ocupação da Usina Conceição do Peixe por cerca de 300 trabalhadores rurais sem terra; Em Santa Catarina, Néri Fabris, do MST, foi condenado a 2 14 “Movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático...” (STJ, 6ª Turma, HC 5.574/SP, Rel. Min. Juiz Vicente Cernicchiaro, DJU 18 ago.1997, in RT 747/608). 217 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) anos de prisão por coordenar um acampamento de sem terras às margens de uma rodovia daquele estado, no Município de Gaspar. O juiz acatou o argumento do Ministério Público de que o líder do MST era “profissional de invasão”. Mas, o que mais provou indignação em 2008, foi a ação de um grupo de procuradores do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que, à revelia do disposto na Constituição Federal, propôs a dissolução do MST e a decretação de sua ilegalidade. Propôs ainda a dissolução de acampamentos, o fechamento de todas as escolas em assentamentos do MST, alegando que as crianças estavam aprendendo lições ideológicas segundo o pensamento do Movimento. A ação do Ministério Público gaúcho afronta a Constituição na medida que seu artigo 5º, garante a liberdade de associação, de reunião e de locomoção; Em 2008, dezenas de trabalhadores rurais sem terra e lideranças foram indiciados ou denunciados criminalmente, com base na Lei de Segurança Nacional. Um entulho autoritário da época da ditadura, cuja inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo em seus julgados. Outra frente de atuação do poder judiciário no processo de criminalização é a de atingir o que resta de patrimônio dos movimentos sociais e de suas lideranças. E tudo isso, para defender o patrimônio de quem concentra a terra, o dinheiro e o poder. Neste sentido são impostas multas milionárias às organizações e aos trabalhadores, através das ações possessórias, por ocupação ou ameaça de ocupação de latifúndios, estradas, órgãos públicos, etc. O objetivo é inviabilizar financeiramente os movimentos sociais e suas lideranças. Em 2008, três lideranças: Eurival Martins Carvalho, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Raimundo Benigno e Luiz Salomé, do Movimento dos Trabalhadores da Mineração (MTM), foram condenadas, pelo juiz federal de Marabá, ao pagamento de uma multa milionária no valor de R$ 5.200.000,00 (cinco milhões e duzentos mil reais), devido a terem coordenado um acampamento de trabalhadores sem terra e garimpeiros que ocupou a Estrada de Ferro Carajás, usada pela Vale, no município de Parauapebas (PA). O argumento usado pelo juiz para justificar a condenação foi devido eles serem lideranças. O juiz, em sua decisão, assim afirmou: os réus lideraram diversas pessoas na invasão da estrada de ferro e, por esta razão, devem responder pela totalidade dos danos causados e arcar com a multa imposta caso a turbação ocorresse. A conclusão do juiz contraria, portanto, o próprio Código Civil que, nesses casos, estabelece que a multa é pessoal, ou seja, deveria sem imposta a cada um dos milhares de trabalhadores que participaram da mobilização. 218 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Os relativos avanços conseguidos nas instâncias superiores do Judiciário não tem sido suficiente para barrar o processo de criminalização, em curso, contra os movimentos sociais do campo e da cidade. Isto devido o lugar social dos integrantes do Poder Judiciário e do papel histórico dessa instância de poder na manutenção dos privilégios das oligarquias rurais desse país. Alguns fatores devem ser considerados para que se entenda esse excessivo conservadorismo do Judiciário brasileiro. Um aspecto é o histórico individualismo presente na prática da maioria dos magistrados, que se traduz pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos da coletividade. O que prevalece é o mercado, onde as relações sociais e econômicas são travadas; outro aspecto é o formalismo na visão de mundo, ou seja, o apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e impessoais, não estando preparados técnica e doutrinariamente para compreender os aspectos subjetivos dos pleitos a eles submetidos. Enfrentam dificuldades para interpretar e aplicar novos conceitos de textos legais típicos da evolução das conquistas sociais, principalmente os que estabelecem direito coletivos. Somam-se as esses aspectos, as ligações históricas que sempre teve o Poder Judiciário com a classe dominante e o papel que o Órgão cumpre garantindo os interesses dos mais abastados em detrimento dos mais pobres. Uma crítica bastante contundente, e verdadeira, é feita ao Poder Judiciário por Boaventura de Sousa Santos, em artigo citado por Jacques Távora Alfonsin, no livro, A Questão Agrária e a Justiça: Segundo Jacques Távora Alfonsin, Nesse contexto, Boaventura de Sousa Santos critica duramente a atuação do Judiciário nos chamados países periféricos, e soma sua voz aos muitos que clamam por uma presença mais eficaz das disposições constitucionais, no julgamento das ações que são submetidas ao seu julgamento. (...) A distância entre a Constituição e o direito ordinário é, nesses países, enorme e os tribunais têm sido tíbios em tentar encurtá-la. Os fatores desta tibieza são muitos e variam de país para país. Entre eles podemos contar sem qualquer ordem de precedência: o conservadorismo dos magistrados, incubados em Faculdades de Direito anquilosadas, dominadas por concepções retrógradas da relação entre direito e sociedade; o desempenho rotinizado assente na justiça retributiva, politicamente hostil à justiça distributiva e tecnicamente despreparada para ela; uma cultura jurídica ‘cínica’ que não leva a sério a garantia dos direitos, caldeada em largos períodos de convivência ou cumplicidade com maciças violações dos direitos 219 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) constitucionalmente consagrados, inclinada a ver neles simples declarações programáticas mais ou menos utópicas; uma organização judiciária deficiente, com carência enorme tanto em recursos técnicos e materiais; um Poder Judiciário tutelado por um Poder Executivo, hostil à garantia dos direitos ou sem meios orçamentários para levar a cabo; a ausência de opinião pública forte e de movimentos sociais organizados para a defesa dos direitos; um direito processual civil hostil e antiquado (Alfonsín, 2000, pp. 220-221). De fato, esse é um retrato fiel da atuação do Poder Judiciário brasileiro, com raras exceções. As ocupações de terras resultam de um grave problema social, oriundo da injusta distribuição de renda que provocou um crescente empobrecimento e marginalização da maioria da população brasileira. Não se trata de um simples conflito entre particulares. Portanto, tem que ser tratadas como questão social, objeto de políticas e não de polícia. Banidos do campo, sem terra, sem emprego e sem moradia, é quase inevitável o destino dessa população: a morte, seja por fome, doenças ou bala, prostituição, alcoolismo ou drogas. Vale considerar, enfim, que, apesar desses posicionamentos refletirem importantes setores do pensamento jurídico nacional, prevalece na mídia, de modo esmagador e quase unívoco, a ideia oposta, como se fosse unânime a opinião dos juristas em favor da tese da ilegalidade das ocupações de terras e da criminalização dos trabalhadores rurais como observa Frei Betto: O processo de criminalização dos trabalhadores rurais tem causado prejuízos incalculáveis à vida e à luta dos movimentos sociais camponeses. Trata-se de uma ofensiva das oligarquias brasileiras com o objetivo de frear a luta histórica dos trabalhadores pelo direito à terra. É uma das formas de violência do latifúndio e seus aliados na luta de classe que se estabeleceu no campo brasileiro. Apesar desses entraves, os camponeses prosseguem na luta, para fazer valer esse direito, como se diz popularmente, “na lei ou na marra”. 4) O papel dos meios de comunicação. Toda essa política de desconstrução dos direitos dos trabalhadores e de criminalização dos movimentos e lideranças encontra fortes aliados nos grandes meios de comunicação. Na maioria dos estados, os que controlam o capital no campo são também proprietários das empresas de comunicação, portanto, divulgam apenas o que lhes interessam. E quando não são proprietários exercem influências fortíssimas sobre as mesmas em razão do poder econômico e político que possuem. 220 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas No Brasil os meios de comunicação, de modo geral, se comportam mais como empresa de comunicação do que com imprensa de verdade. Publicam geralmente notícias de quem, de certa forma, as compram antecipadamente ou concordam ideologicamente, nesses casos, nem o princípio básico de ouvir os dois lados da notícia é respeitado. As informações são manipuladas para responder aos interesses dos que detêm o poder econômico. Os movimentos sociais e as populações camponesas que fazem o enfrentamento com os setores do capital no campo enfrentam um processo violento de calúnia e difamação por parte dos meios de comunicação. O objetivo é sempre deslegitimar os direitos conquistados pelos trabalhadores, desconstruir suas lutas e isolá-los do conjunto da sociedade, fragilizar suas organizações e, dessa forma, garantir os interesses daqueles que controlam as terras e as riquezas. Nos últimos anos, presenciamos inúmeras reportagens, dos principais veículos de comunicação do país que expressam bem essa estratégia. Houve uma campanha orquestrada por setores da imprensa contra comunidades quilombolas em vários estados15 no sentido de questionar sua própria identidade, manipular a opinião pública e criar condições favoráveis à derrubada do Decreto 4.887/03, que estabeleceu o princípio do autor-reconhecimento para a demarcação de suas terras. O MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Via Campesina também tem sido vítimas de reportagens tendenciosas orquestradas pela mídia, com maior intensidade, nos Estados do Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Em Altamira, no Pará, a atuação do bispo Dom Erwin ao lado dos índios e contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, fez despertar uma campanha violenta de parte da mídia contra o religioso, culminando inclusive em ameaças de morte contra sua pessoa. Mesma agressividade e violência enfrentaram as organizações indígenas, o CIMI, ONGs e as igrejas que sustentaram a luta pela demarcação das terras indígenas nos diversos estados. Essa ofensiva, de parte da mídia, visa sempre proteger os interesses de fazendeiros, madeireiros, mineradoras, sojicultores, usineiros, dentre outros. No atual governo, os setores que comandam a expansão das frentes do capital no meio rural e sustentam o atual modelo de desenvolvimento para o campo, estão cada vez mais fortalecidos. Além de manterem em curso a 15 Comunidade de Acauã, município de Poço Branco (RN); comunidade Machadinho, Paracatu (MG); comunidade São Francisco do Paraguassu, Cachoeira (BA). 221 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) política de desconstrução de direitos já conquistados,16 de perseguição e criminalização dos movimentos sociais e das populações camponesas, estão conseguindo impor na pauta do Congresso, inúmeros projetos que tem como objetivo, aumentar o controle e a concentração da terra, se apropriarem das riquezas do solo e subsolo, eliminar obstáculos que possam comprometer essa expansão e apropriação. Entre as principais medidas estão: o Projeto de Lei (PL) que reduz a reserva legal na Amazônia de 80 para 50%; o PL 6.424/05 que permite o reflorestamento na Amazônia com espécies exóticas (visa livrar os proprietários de reflorestar as áreas devastadas ilegalmente com espécies nativas e, com isso, abrir caminho para expandirem as monoculturas do eucalipto, palma, etc.); O PL que propõe diminuir a faixa de fronteira do país de 150 para 50 km, permitindo assim, as empresas estrangeiras a adquirirem terras até esse limite; A regularização das terras griladas na Amazônia através da aprovação da MP 458 (já sancionada pelo presidente da República); o PL 1610/96 com o objetivo de regulamentar o art. 231 da Constituição Federal, permitindo dessa forma, a exploração mineraria em terras indígenas; a retirada do Maranhão, do Tocantins e do Mato Grosso da área denominada Amazônia Legal, para que não seja necessário obedecer a leis mais restritivas de preservação do meio ambiente, etc. Muitas são as pressões do capital e, maioria delas, direcionadas para a Amazônia onde existem ainda muitas riquezas em água, terra, madeira, biodiversidade e minerais. Essas e outras medidas visam abrir caminho para a expansão da soja, da cana, da pecuária, do eucalipto, da mineração, etc. Os impactos sobre a natureza e as populações que ali residem são incalculáveis. Consequentemente aumentarão os conflitos e as violações dos direitos dos camponeses e indígenas. O atual governo, que aderiu incondicionalmente a esse modelo econômico e se aliou politicamente a esses setores, tem feito sua parte, no sentido de usar o dinheiro público para o investimento em grandes obras respondendo aos interesses do capital, em detrimento do direito dos camponeses. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está em sintonia perfeita com as frentes de expansão do capital no campo, centrando seus investimentos na 16 O partido Democratas ajuizou uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN), em junho de 2004, contra o Decreto 4.887/03 que regulamenta a demarcação de terras Quilombolas; Desde 1991/92 tramitam na Câmara dos Deputados proposições legislativas que visam dispor sobre uma nova legislação indigenista, superando o atual Estatuto do Índio e a Lei nº6.001/73; o STF impôs 19 condições no processo que julgou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, que impactará os territórios indígenas. Um conjunto de outros projetos tramita no congresso e Ações no STF refletem a ofensiva contra a demarcação de terras indígenas. 222 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Amazônia na abertura de rodovias, na implantação de hidrovias, ferrovias, portos, aeroportos e na construção de barragens que possam estimular maiores investimentos do capital nacional e internacional. São projetos previstos para viabilizar o transporte de minério, grãos e madeira e, que implantados, causará sérios impactos negativos do ponto de vista ambiental, social e cultural. Calcula-se que no Brasil a área de influência das obras do PAC será de 2,5 milhões de Km2, atingindo 137 unidades de conservação, 107 terras indígenas e 484 áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade brasileira. Na Amazônia, 322 áreas entre as mais ricas em espécies estarão expostas a pressões antrópicas. A construção de barragens garante energia barata e subsidiada para mineradoras e outras atividades econômicas de grande porte; a abertura de novas estradas barateia o custo do escoamento de produtos: minérios, grãos, etanol, madeira, entre outros. Para a Amazônia, segundo o MAB, estão previstas as construções de 258 hidrelétricas. Por outro lado, a abertura de estradas tem viabilizado a expansão migratória, o aumento da grilagem e o desmatamento. É o que está acontecendo, por exemplo, com as rodovias BR- 364, BR-230, BR-319 e BR-163. O governo, por seu lado, não potencializou a atuação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, fragilizou a Legislação Ambiental com a Lei de Concessão de Florestas Públicas e a Medida Provisória 458, convertida em lei, que regulariza a grilagem de terras de até 1.500 hectares. Esta última resultará na transferência de terras públicas ou de posse tradicional para o agronegócio. É a MP da legalização do crime. A Lei de Concessão de Florestas Públicas que autoriza o uso de grandes áreas de florestas, por longos anos, em vista da exploração “sustentável” dos produtos madeireiros e não madeireiros pode provocar o aumento do desmatamento e dos conflitos: ela facilita a ocupação das terras por parte de empresas de capital nacional e estrangeiro e agiliza a obtenção de licença ambiental. Porém, a crônica dificuldade de fiscalização, por parte do poder público, pode causar ainda mais violência aos camponeses e povos indígenas na Amazônia. Assim, a política desenvolvimentista governamental, para a Amazônia, fortalece os grandes grupos econômicos e provoca a concentração da terra, a migração, o êxodo rural, o aumento dos conflitos e da violência e a degradação ambiental e das culturas de povos tradicionais e indígenas. Para garantir os acordos políticos com esses setores, o governo trata ainda de engavetar projetos e políticas de interesse dos movimentos sociais, dos 223 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) camponeses e indígenas. Excluiu a reforma agrária das prioridades de governo, não assumindo inclusive o Plano Nacional de Reforma Agrária; não assumiu compromisso com a campanha do limite da propriedade da terra; engavetou a proposta de mudanças nos índices de produtividade para as grandes propriedades; não priorizou a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438 que autoriza o confisco das propriedades onde fora flagrado crime de trabalho escravo; retrocedeu na efetivação do programa de demarcação e homologação das terras indígenas e territórios quilombolas, etc. Em síntese, podemos afirmar que, estamos frente a um cenário marcado por conflitos e violência constante no campo, resultando em violação de direitos humanos permanentes, com forte tendência de agravamento dessa situação frente à expansão do atual modelo de desenvolvimento, principalmente, em direção à Amazônia. A situação se mostra ainda mais preocupante na medida em que os movimentos sociais organizados passam por um processo de desaceleração das lutas e, consequentemente, da diminuição de sua capacidade de pressão para garantir seus direitos. Ainda mais preocupante é o cenário político, a tendência para os próximos anos é de um governo ainda mais aliado com os interesses do capital. Havendo dessa forma um fortalecimento da ofensiva contra os movimentos sociais, as populações camponesas e indígenas que os colocarão, certamente, em uma situação de maior vulnerabilidade em relação à defesa de seus direitos. O respeito aos direitos humanos no campo, passa necessariamente, pelo enfrentamento à concentração da terra e das riquezas, à luta contra a violência e a impunidade e pela defesa de outro modelo de desenvolvimento para o campo e para o país pautado não na racionalidade do capital, mas no respeito à dignidade da pessoa humana, à natureza e à cultura e aos modos de vida das populações camponesas e indígenas, sobretudo. Isso só será possível com o povo organizado e fazendo lutas. A conquista dos povos indígenas da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, é um exemplo desse processo. Referências ALFONSIN, Jacques Távora. A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília, 2008. CPT, Conflitos no Campo, no Brasil, 2007. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2007. 224 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas PEREIRA, Airton dos Reis et al. A exploração mineraria e suas consequências na Amazônia brasileira. Caderno de Conflitos, CPT, 2008, p.72-78. RAINHA, R. e LOPES, D. S. A titulação dos territórios quilombolas: uma breve leitura dos oito anos do governo Lula. In: Direitos humanos no Brasil 2010. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2010. PP. 87-93. RECH, Daniel. Ceris e Misereor. Direitos Humanos no Brasil Diagnóstico e Perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 225 III PERSPECTIVA DE TRABALHO E DIREITO Atuação do ministério público federal no combate ao crime de trabalho escravo no meio rural e políticas públicas para erradicar a escravidão contemporânea Neide M. C. Cardoso de Oliveira Introdução O Brasil assiste nos últimos anos à crescente mobilização da sociedade civil na luta pelos direitos das mais diversas minorias. Não obstante, há um universo de cidadãos carentes que continua ao desamparo e que estão, neste momento, submetidos ao regime de escravidão em nosso País. E é verdade que, com maior ou menor intensidade, o problema está em todos os Estados da Federação. Após o advento da Constituição de 1988, a par da atuação como fiscal da lei, o Ministério Público passou a atuar de forma mais efetiva como órgão agente. Diversas denúncias sobre crimes de trabalho escravo e crimes correlatos foram ou estão sendo propostas pelo Ministério Público Federal em todo o território nacional. As dificuldades no combate ao crime de trabalho escravo são imensas, seja pela morosidade do processo penal; seja pela até então recente indefinição sobre o juízo competente para o julgamento de tais crimes; pelas penas reduzidas; pelos entraves legislativos; seja, principalmente, pela ausência de uma política pública de reinserção dos trabalhadores, que libertos do trabalho escravo, a este retornam por falta de outra opção. A existência do trabalho escravo, independentemente de seu vulto estatístico, fere a consciência pública do País, por violar direitos humanos Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) fundamentais e privar milhares de pessoas da cidadania e da participação na vida nacional.1 1 Crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo O Código Penal de 1940, em seu Artigo 149: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo” previa ao infrator pena de reclusão, de dois anos a oito anos, o que permanecia como uma incógnita na nossa legislação penal diante da subjetividade com que este artigo era descrito, e dos doutrinadores que pouco redigiam sobre este assunto. Aliás, houve críticas, à época, dirigidas a este dispositivo penal – quando taxado de supérfluo por grande parte da doutrina, diante da suposta inexistência do delito de fato. Prado (2006, p. 323), em especial aos art. 121 a 183, afirma que: “Criticase a inserção de tipo desse gênero nos códigos modernos, alegando-se a ausência de fatos dessa natureza nas nações civilizadas hodiernas.” Costa e Silva (1962, p. 10) defende esse mesmo posicionamento. Todavia, tais autores na realidade desconheciam a verdade que se fazia e, infelizmente, que ainda se faz presente no interior do território nacional, em inúmeras fazendas, conforme mostram as reportagens publicadas respectivamente no jornal O Globo: Fazenda de cana tinha 1.108 com escravos (2007a, p. 12), Empresas ainda lucram com trabalho escravo (2007b, p. 13) e Trabalho escravo sem punição (2006, p.29), entre outras. A essência do delito de reduzir alguém a condição análoga à de escravo residia na sujeição de uma pessoa à outra, no domínio no sentido psicológico e físico. A liberdade do sujeito passivo é suprimida de fato, mesmo que permaneça como estado de direito. A relação que se estabelece entre os sujeitos do delito é análoga (semelhante) à de escravidão, pois visa tornar a pessoa totalmente submissa à vontade de outrem, como se escravo fosse. Não é também o simples encarceramento ou constrangimento que seriam crimes menos graves.2 Cuida-se de privação de liberdade em sua acepção mais ampla. O crime consiste em apoderar-se de um homem para reduzi-lo à condição de coisa, como servir-se de outrem, sem lhe reconhecer direito correlativo às suas prestações. Como exemplo, e quando se fala da escravidão 1 O trabalho escravo é de difícil mensuração estatística, entre outros motivos por se apresentar, frequentemente, como fato transitório (empreitada para desmatamento, limpeza de terras, colheita etc). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2005) no relatório Uma aliança global contra o Trabalho Forçado estima a existência de 25 mil trabalhadores nessa condição, concentrados preliminarmente na agricultura (80%) e na pecuária (17%). 2 Hungria (1958, p. 200) afirma, que: “Entre o agente e o sujeito passivo se estabelece uma relação tal, que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido, de fato, a um estado de passividade idêntica à do antigo cativeiro.” 230 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas contemporânea, ressalta-se ao que ocorre nos imóveis rurais do Brasil, onde como forma mais comum comparece a “servidão por dívida”. Esta amplitude conceitual, que vinha sendo suprida pela doutrina, foi substituída por uma enunciação exaustiva, explicitada pela alteração legislativa, promovida pela Lei 10.803 de 2003, que especificou a conduta, ao fechar o tipo penal, passando a exigir uma das seguintes condutas descritas por Prado (2006, p. 323), todas elas referentes à sujeição ou submissão de alguém a: a) trabalhos forçados, ou seja, a trabalhos ou serviços exigidos sob ameaça de alguma punição e/ou contra a sua vontade; b) jornada exaustiva, esgotante, além da que é considerada aceitável por qualquer ser humano. c) sujeição (submissão) a condições degradantes, em que se pode identificar péssimas condições de trabalho e de remuneração e, por fim, d) restrição (limitação), por qualquer meio, da locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, chamada servidão por dívida, consistente no aprisionamento do trabalhador por dívidas contraídas em decorrência do trabalho. O que se percebe é que, no meio rural, se unem as quatro figuras do tipo penal de forma a caracterizar o sistema de escravidão contemporânea, embora para isso não seja necessária a presença das quatro figuras juntas para a configuração deste delito. 1.1 Tratados internacionais O Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o crime de trabalho escravo no meio rural, a saber, a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura (1926)3 e as Convenções n. 29 (1930)4 e n. 105 (1957)5, estas duas últimas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Toda essa base normativa internacional encontra-se incorporada ao sistema jurídico brasileiro. 3 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 66, de 1965, ratificada pelo Brasil em 6 de junho de 1966 e promulgada pelo Decreto n. 58.563, de 1 de junho de 1966, com as emendas introduzidas pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956. Foi ratificada em 12 de setembro de 1958 pelo Decreto Legislativo n. 6, de 11 de junho de 1958. (Decreto de Promulgação n. 49.981, de 8 de setembro de 1959. 4 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 24, de 29 de maio de 1956, ratificada em 25 de abril de 1957 e promulgada pelo Decreto n. 41.721, de 25 de junho de 1957. 5 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 20, de 30 de abril de 1965, ratificada em 18 de julho de 1965 e promulgada pelo Decreto nº 58.822, de 14 de julho de 1966. 231 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 1.2 Da ação penal Para o Ministério Público Federal, o autor do crime é compreendido na pessoa do empregador final, o proprietário do imóvel rural, responsável pelo que acontece em seus domínios. Não podemos dissociar a figura do fazendeiro da responsabilidade criminal, quando ele se utiliza de um terceiro para fraudar a legislação trabalhista e submeter seus empregados à escravidão, com fins de lucro. É o que ocorre, em caso de o proprietário do imóvel rural contratar prepostos para se eximir de qualquer responsabilidade trabalhista. No entanto, como não se exclui a responsabilidade trabalhista, não se exclui também a criminal. Tanto o conhecimento, pelo fazendeiro, da situação degradante em que laboram os trabalhadores, como a falta de cumprimento dos direitos trabalhistas, mediante fraude6, podem ser esclarecidos pelos auditores fiscais do Trabalho, entre médicos, advogados e outros, na qualidade de testemunhas. Ninguém melhor que os próprios fiscais para explicar esses direitos e verificar como os trabalhadores foram enganados naquele caso concreto, porque estes agentes tiveram contato pessoal e ouviram as reclamações dos trabalhadores, e são os responsáveis pela lavratura dos autos de infração trabalhista. As declarações dos trabalhadores, reproduzidas nos formulários de verificação física, servem para confirmar a forma de fraude utilizada pelo empregador por meio de seus prepostos, que, ao contratá-los, os seduzem com promessas fantasiosas sobre salários e condições de trabalho. O depoimento das vítimas é importante, entretanto, a praxe demonstra ser de difícil consecução produzir a prova, já que o processo penal tramitará, por mais célere que seja, em data muito posterior (cerca de 2/3 anos) àquela em que o crime foi descoberto. As vítimas, como decorrência de sua condição social e por, normalmente, não serem oriundas do local em que o crime se consumou, dificilmente são localizadas e, muitas, por ocasião do processo, já se encontram submetidas à nova situação de trabalho escravo. O relatório da fiscalização é instruído com os formulários de verificação física, que contêm: as declarações e assinaturas dos trabalhadores sobre todos os aspectos da relação trabalhista vivenciada no local de trabalho; fotos dos locais degradantes em que eles trabalham; e os autos de infração com a descrição das multas aplicadas. Constitui-se como prova documental no processo suficiente para confirmar a prática do crime de trabalho escravo e outros contra a organização do trabalho. 6 Art. 203: “Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho. Pena – detenção, de 1 (um) ano a 2 (dois) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.” 232 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas O inquérito é importante para instruir a denúncia, especialmente quando ocorre a prisão em flagrante de quem esteja submetendo os trabalhadores à escravidão, já que o crime é permanente. Junto com o relatório da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) corrobora a denúncia, que pode incluir outros crimes, como o porte de arma sem autorização, crimes ambientais etc. 1.3 Competência Entre os anos de 1999 e 2006, o maior problema jurídico no combate ao trabalho escravo junto ao Poder Judiciário girou em torno do questionamento sobre qual jurisdição criminal seria a mais competente para o seu processo e julgamento. Embora o Brasil seja signatário das Convenções 29 e 105 da OIT, que visam combater o trabalho escravo, quando ocorre, em áreas rurais, este delito não consegue alcançar repercussão internacional, prevista pelo art. 109, inc. V, da Constituição Federal (CF) para caracterizar a competência da Justiça Federal.7 Interpretação sistêmica e mesmo literal conduzem à competência da Justiça Federal todos os delitos contra a organização do trabalho, conforme o art. 109, inc. VI, da Constituição8 Federal, motivo pelo qual, enquanto não era prevista literalmente a competência da Justiça Federal para o julgamento do crime de trabalho escravo, as denúncias incluíam na capitulação dos crimes contra a organização do trabalho (art. 197 a 207, todos do Código Penal - CP). No entanto, na esteira da Súmula 115, do extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR), anterior à CF/88, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu essa competência. Esse era o entendimento que vinha sendo seguido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e demais tribunais do país, no sentido de que os crimes contra a organização do trabalho somente eram de competência da Justiça Federal quando os delitos atingissem ao sistema de órgãos e instituições que preservassem, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores e não quando estes eram considerados individualmente. 7 “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). 8 “Art.109. Aos juízes federais compete processar e julgar: VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). 233 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Então, sempre que se pudesse determinar o número de trabalhadores atingidos pelos delitos contra a organização do trabalho, a competência era da Justiça Estadual, sob a alegação da ínfima estrutura da Justiça Federal para abarcar tais crimes. No caso do trabalho escravo, o crime é pluriofensivo e lesa, também, os princípios basilares que devem orientar o sistema do trabalho coletivamente, entre eles, o respeito à dignidade da pessoa humana. Não se trata, portanto, de mera lesão a direito individual do trabalhador explorado. Ainda que isoladamente considerado, já se via sólida doutrina e parte da jurisprudência no sentido de que, embora se tratasse de crime contra a liberdade individual, por sua natureza de atentado contra os direitos humanos, e em face dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil a esse respeito, o julgamento deste delito deveria ser de competência da Justiça Federal. Esse dilema chegou ao fim com a decisão do STF, em um Recurso Extraordinário (n. 398041/PA), julgado em 30 de junho de 2006, cujo Relator, Ministro Joaquim Barbosa, determinou o processamento e julgamento de crime de redução à condição análoga à de trabalho escravo pela Justiça Federal. Neste julgamento, o STF considerou que o crime previsto no art. 149, do Código Penal (CP) devia ser classificado como crime contra a organização do trabalho, inserindo-o na competência da Justiça Federal (art. 109, inc. VI, da CF). Esta decisão indicou o abandono da posição anterior do STF, que implicava um desarrazoado esvaziamento do art. 109 da CF, que define a competência da Justiça Federal, motivada, no passado, por uma visão utilitarista, que via na pequena interiorização da Justiça Federal um entrave à persecução penal. Se é certo que o artigo 149 do CP não se encontra no capítulo dos crimes contra a organização do trabalho, mais certo ainda é que, se não há como negar sua vinculação a tais tipos e, agora, com a redação restritiva do atual tipo, fica evidente a sua vinculação com as relações de trabalho. 2 Importância da fiscalização dos auditores do ministério do trabalho e emprego (mte) para a prova do crime O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), instituído pela Portaria n. 632 de 20 de junho de 1996, é coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho e Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego e constituído de sete equipes integradas por: auditores-fiscais do trabalho, delegados 234 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas e agentes da Polícia Federal (PF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e procuradores do Trabalho. Os auditores fiscais do Trabalho são nomeados como coordenadores regionais em localidades diferentes de sua lotação original, com o objetivo de impedir, ou pelo menos dificultar, a pressão ou ameaça que possam vir a sofrer, em razão da influência que possa exercer a pessoa física ou jurídica, que pratica este delito. O Grupo Móvel se constituiu em resposta à necessidade de se ter no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) um comando centralizado para: diagnosticar o problema do trabalho escravo; garantir a padronização dos procedimentos de supervisão direta dos casos fiscalizados; assegurar o sigilo absoluto na apuração de denúncias e garantir que a fiscalização local se visse livre das pressões e ameaças (VILELA, maio 2009).9 A finalidade precípua das operações é retirar os trabalhadores dos locais, em que estão sendo explorados, assegurar o recebimento das verbas devidas e, através de relatórios circunstanciados, acionar outros Poderes para as demais providências cabíveis (VILELA, maio 2009). No período compreendido entre 2007 e 2008, o Grupo Móvel realizou 270 operações (em 496 fazendas) que resultaram na libertação de 11.015 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo. Em até 05/2009, 40 operações foram executadas e 1.037 trabalhadores foram libertos (em 130 fazendas) (VILELA, 2009). O Pará é o estado que registra o maior número de violações no campo. Das 540 operações realizadas em 12 anos de existência do Grupo Móvel, 160 ocorreram no Pará. E, das 1.753 fazendas fiscalizadas neste período, 423 estão naquele Estado (O GLOBO, 22 set. 2007).10 Explicado o tipo penal, a atuação criminal do Ministério Público Federal (MPF), a competência do Poder Judiciário e a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), não se poderia esquecer do Poder Legislativo. As propostas legislativas, de cunho constitucional e infraconstitucional, e que ora estão em tramitação no Congresso Nacional, demonstram a preocupação do legislador brasileiro com o tema e este estudo vai se ater ao mais importante. 9 Relatório “A experiência do TEM e instituições no combate ao trabalho escravo contemporâneo”, da Secretaria da Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego MET, Ruth B. V. Vilela, atualizado em 04/05/2009. 10 Trecho de matéria publicada no jornal “O GLOBO”, caderno O PAÍS, sob a manchete “Fiscais denunciam pressão de senadores”, de 22 fev.2007, por Evandro Éboli. 235 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 3 Proposta de Emenda Constitucional n. 438 / 2001: PEC do trabalho escravo A Proposta de Emenda Constitucional n. 438/2001, conhecida como “PEC do Trabalho Escravo”, permitia ao governo expropriar (sem indenização), para fins de reforma agrária, terras onde fosse constatado o uso de trabalhadores em regime análogo à escravidão. Hoje, o governo pode desapropriar ressarcindo o proprietário pela perda do imóvel. A primeira e maior dificuldade que se coloca é decidir qual órgão será competente para afirmar que há exploração de trabalho escravo no local e que, portanto, tal gleba pode e deve ser expropriada. Os fazendeiros e, por conseguinte, a bancada ruralista, no Congresso Nacional não aceitam que tal decisão advenha da fiscalização do Ministério do Trabalho, sob a alegação de que aquele órgão estaria substituindo a atribuição só cabível ao Judiciário. Por outro lado, submeter a prova da existência do trabalho escravo à decisão judicial, transitada em julgado, seja da Justiça Federal ou Trabalhista, como requisito para a expropriação, seria frustrar a imediata eficácia pretendida pela proposta de emenda constitucional em questão. As entidades governamentais e as não governamentais, que atuam na erradicação da escravidão, defendem a aprovação dessa PEC que vem sendo considerada um ícone do combate à escravidão contemporânea, como resposta à impunidade ao trabalho escravo no Brasil, no momento em que o país busca o reconhecimento internacional como nação preocupada com as graves violações de direitos humanos e de crimes contra a humanidade. 4 Políticas públicas ou apenas políticas de governo? Não obstante os compromissos internacionais e constitucionais, a prática do trabalho escravo e, por conseguinte, a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana persiste e chega a ser intensa em certas regiões do País, sobretudo (porém, não exclusivamente), nas áreas de expansão agrícola, no chamado “arco do desmatamento,” na região amazônica. Não há um diagnóstico preciso sobre o número de pessoas que foram ou estão submetidas ao trabalho escravo. As estatísticas oficiais se referem apenas ao número de trabalhadores resgatados nas operações de fiscalização do MTE. 4.1 Políticas adotadas pelo Governo brasileiro no combate ao trabalho escravo Visando cumprir os compromissos internacionalmente assumidos, embora tardiamente, a eliminação do trabalho escravo transformou-se em prioridade nacional a partir de 1995, quando o Governo brasileiro reconhe236 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas ceu a existência deste delito no País, e criou pelo Decreto Presidencial nº 1.538, de 27 de junho de 1995, o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo (GERTRAF), dirigido pelo Ministério do Trabalho e Emprego,11 incumbido de realizar ações integradas de combate à escravidão, abrangendo aspectos trabalhistas, sociais, econômicos, ambientais e criminais. Instituiu, também, no âmbito do MTE, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, em 1996, apresentado anteriormente. No Ministério da Justiça foi criada, no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), por meio da Resolução n. 05, de 28 de janeiro de 2002, uma Comissão Especial para propor mecanismos que garantissem maior eficácia na prevenção e repressão à violência no campo e à exploração do trabalho escravo e infantil.12 Malgrado sua política neoliberal, o governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso lançou, em 13 de maio de 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), destinado a agir na prevenção e repressão do trabalho escravo, cujas tarefas foram ampliadas com o lançamento, em 13 de maio de 2002, do Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH II). A relevância que este tema assumiu para o Governo nos últimos anos, foi expressa ao estabelecer 10 (dez) metas entre as 518 integrantes do Programa. A Resolução do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (CODEFAT) n. 306, de 6 de novembro de 2002, estabeleceu a concessão de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado na condição análoga à escravidão, confirmada pela Lei 10.608/2003. Este benefício é concedido em 3 (três) parcelas, de um salário mínimo cada, aos resgatados que não possuam renda suficiente à sua sobrevivência e à de sua família, nem recebam benefício previdenciário de prestação continuada. O seguro-desemprego foi concedido a 9.193 trabalhadores de janeiro de 2003 a dezembro de 2006, o que representa 58 % do total de libertados no período. A relação segurados/ libertados tem crescido de forma acentuada, saltando de 16%, no primeiro ano, para 92,83%, em 2007 (VILELA, 2009). 11 Os integrantes eram: Ministérios da Justiça, da Previdência Social, do Meio Ambiente, da Agricultura, da Reforma Agrária e da Indústria e Comércio, além do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. 12 Os integrantes, entre membros e convidados, eram: Secretaria Nacional de Justiça (SNS); Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); Ministério Público Federal (MPF); Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC); Ministério Público do Trabalho (MPT); Associação dos Juízes Federais (AJUFE); Departamento de Polícia Federal (DPF); Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Centro pela Justiça e o Direito Internacional, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e Universidade de São Paulo (USP). 237 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Em 2003, o Governo lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, abrangendo 76 ações, que expressam e articulam os papéis dos entes públicos e da sociedade civil no enfrentamento do problema. No mesmo ano, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), um órgão colegiado, cuja função primordial é de monitorar a execução do Plano Nacional, integrado por ministros de várias pastas, entre eles, o do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e por até nove representantes de entidades não-governamentais que possuam atividades relevantes relacionados ao tema (Vilela, 2009). Considerado como a primeira ação nacional de prevenção, cabe citar o Projeto Escravo, nem Pensar! Coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), pela ONG Repórter Brasil e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem atuado desde 2004 nos estados do Maranhão, Piauí, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Bahia, visando diminuir o aliciamento de trabalhadores por meio da educação de crianças e adolescentes e capacitação de lideranças populares. Em 8 de março de 2004, o Governo Brasileiro foi pioneiro em reconhecer, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), a existência de um número estimado de 25 mil trabalhadores escravos no País. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) criou, pela Portaria n. 540, de 15 de outubro de 2004, o Cadastro de Empregadores, formado por pessoas físicas e jurídicas autuadas pela fiscalização na prática de trabalho escravo. Conhecido como “Lista Suja”, este cadastro é atualizado semestralmente pelo MTE e encaminhado aos Ministérios da Fazenda, da Integração Nacional, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e à Secretaria Especial de Direitos Humanos, a fim de que cada instituição adote as medidas oportunas em seu âmbito de competência. A inclusão do nome do infrator no cadastro acontece somente após a conclusão do processo administrativo originário dos autos de infração lavrados no decorrer das inspeções. A exclusão depende da conduta do infrator, monitorada pela inspeção do trabalho, ao longo de dois anos. Não havendo, nesse período, reincidência, se pagas todas as multas (resultantes da ação fiscal) e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome é retirado do cadastro. Em sua última atualização datada de maio/2009, o cadastro relacionava 200 pessoas entre físicas e jurídicas.13 13 Informação veiculada em meio eletrônico. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/trab_escravo/ cadastro_trab_escravo.asp>. Acesso em: 4 jun. 2009. 238 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Um dos principais efeitos do cadastro é impedir o acesso de empregadores, que dele constam, às linhas de crédito e aos incentivos fiscais junto aos bancos oficiais e agências regionais de desenvolvimento. Uma decisão do Ministério da Integração Nacional impede que essas pessoas físicas e jurídicas, desde o final de 2004, tenham acesso aos recursos dos Fundos Constitucionais de Financiamento concedidos pelos Bancos do Brasil, da Amazônia e do Nordeste do Brasil. Em 13 de dezembro de 2005, o Governo Federal lançou a Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo, executada em parceria entre o MTE e a OIT - de formato de declaração de intenções assinada pela Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN) e visa orientar os associados a adotarem restrições cadastrais aos exploradores de trabalho escravo. Essa Campanha também promoveu a assinatura do Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para inclusão, dos trabalhadores resgatados, no Programa Bolsa Família. Segundo Ruth B. V. Vilela, atual Secretária de Inspeção do Trabalho, tal Acordo não funcionou efetivamente, pois as famílias de muitos trabalhadores resgatados já faziam parte do Programa Bolsa Família ou não puderam efetivamente ingressar neste Programa, por falta ou de algum documento ou de resolução de problema burocrático. Efetivamente, o Programa Bolsa Família, na prática, não contribuiu para a erradicação do trabalho escravo, como política de governo. Visando impulsionar o desenvolvimento de áreas afligidas pela miséria e pelo desemprego, o Governo Federal lançou a linha de crédito Terra para Liberdade, destinada a viabilizar o acesso à terra pelos trabalhadores resgatados e a apoiar seus projetos produtivos. O crédito pode atingir R$ 18.000,00 por tomador. Os trabalhadores resgatados de fazendas, onde seriam vítimas de trabalho escravo, serão o público prioritário de outros programas de crédito, como o Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF), gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. O mesmo MDA decidiu que financiaria, a partir de 2006, projetos de assistência técnica e capacitação de agricultores e familiares libertos, abrindo a estes possibilidades concretas de emancipação pela via da produção, do trabalho e da renda. No entanto, segundo informação da mesma Ruth Vilela, por falta de verba estes programas não foram implementados. Existe, ainda, segundo Ruth Vilela, projeto de oferta de cursos de qualificação profissional para os egressos do trabalho escravo ou para vítimas potenciais, mas sem previsão de verbas para sua implantação efetiva. 239 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Dentre todas as políticas de Governo descritas, o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo se destaca, como marco histórico mais importante. Este Plano atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos e reflete uma política “pública” permanente que deveria ser fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do trabalho escravo. No entanto, como esse órgão não foi criado, a fiscalização do Plano acaba ficando a cargo de entidades relacionadas ao tema, mas de forma pulverizada.14 Em mais uma atuação pontual do Governo, encontra-se, em estudo, o Projeto de Intermediação de Mão-de-Obra, que quando implantado será mais um importante passo no combate ao trabalho escravo. 4.2 Projeto de Intermediação de Mão-de-obra O Projeto piloto de intermediação de mão-de-obra rural executado no âmbito do sistema público de emprego, é uma aposta do Governo Federal visando prevenir a prática do trabalho escravo, nos Estados do Pará, Maranhão e Piauí. Por este projeto, os trabalhadores rurais serão orientados a se inscreverem nas agências públicas de empregos, onde as empresas também estarão cadastradas, e a intermediação entre a procura e a oferta de trabalho deverá ser realizada por essas agências. Esta política de Governo incide sobre o aliciamento, momento inicial de eventos que conduzem ao trabalho escravo. Ao proporcionar o encontro entre a demanda por mão-de-obra e a força de trabalho, a intermediação pública visa tornar desnecessária a figura do aliciador (popular “gato”) e fomentar a adoção de práticas trabalhistas de acordo com a lei. O trabalhador intermediado pelo sistema público terá previsibilidade sobre as condições de trabalho de sua futura ocupação e a certeza de que, a princípio, não será enganado. O empregador, por outro lado, terá à disposição, junto aos centros de intermediação, um meio de encontrar os trabalhadores que sua atividade produtiva demanda, de acordo com o perfil ocupacional desses. Em novembro de 2007, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) iniciou as primeiras providências para colocar em operação os serviços de intermediação e de acordo de cooperação com os estados do Maranhão, Pará e Piauí visando realizar um projeto piloto em 7 (sete) municípios desses estados. Mas já está em vigor, pela sociedade civil, por meio de uma 14 As metas do Plano e sua análise constam do Anexo ao Relatório Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI, da OIT, no site http://www.ilo.org/declaration. 240 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas organização não-governamental, o Projeto Carvão-Cidadão, bem similar ao que se propunha o Governo a implantar com o projeto de intermediação de mão-de-obra rural, não assinado até hoje. 4.3 Projeto Carvão-Cidadão O Instituto Carvão-Cidadão, uma organização não governamental, criada em setembro de 2005, reúne 14 (quatorze) empresas siderúrgicas dos estados do Pará e Maranhão e visa reinserir o trabalhador resgatado do trabalho escravo pela fiscalização do MTE em empregos nas siderúrgicas que integram o Instituto. De posse da relação dos trabalhadores resgatados enviada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Instituto Carvão-Cidadão começou enviando funcionários da às casas dos trabalhadores, oferecendo-lhes emprego naquelas siderúrgicas. Tal sistema funcionou, em parte de forma amadora, devido a falta de especialização e metodologia dos auditores de campo, entre 09/2005 a 09/2006, e apesar de só ter conseguido inserir cerca de 60 (sessenta) trabalhadores, provenientes de uma lista de 600 (seiscentos) enviada pelo MTE, e desses 60 (sessenta), apenas cerca de 6 (seis) se mantiveram trabalhando, esse resultado chamou a atenção da Organização Internacional do TrabalhoOIT. A OIT tem dado forte suporte às iniciativas brasileiras de implementação da legislação internacional e nacional para erradicar o trabalho escravo e começou a procurar patrocinadores para o projeto Carvão-Cidadão, a fim de aperfeiçoá-lo, expandir sua atuação e acompanhar a manutenção dos trabalhadores nas siderúrgicas. A OIT obteve a partir de 2007, o patrocínio da Embaixada da Alemanha o que a possibilitou (porque que a proposta é da OIT) estabelecer como meta a reinserção de 100 trabalhadores no mercado formal de trabalho no curso de um ano, e também a contratação de profissional especializado em recursos humanos como responsável pela abordagem, entrevista e triagem dos trabalhadores daquela lista. Pois, tal função quando realizada pelo auditor de campo, sem especialização, não obteve o êxito que se esperava, em face dos contratempos surgidos diante da falta de capacitação para tal trabalho (medo dos trabalhadores em receber o auditor; a desconfiança sobre o oferecimento de trabalho; a falta de compromisso do trabalhador após a contratação etc). 241 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Considerações finais A impunidade ainda é a principal mancha da política de combate ao trabalho escravo, apesar do crescimento das operações de repressão realizadas pelo Governo. A responsabilidade pela impunidade é, em parte, do Judiciário, que demorou cerca de 8 (oito) anos para decidir qual de suas jurisdições seria competente para o processo e julgamento do crime de trabalho escravo. Urge que os escravagistas sejam punidos com os rigores da lei, desde o pagamento de multas trabalhistas, prisões exemplares, expropriação. A atuação judiciária é sempre associada à impunidade, que se deve também às legislações penal e processual penal brasileiras, que preveem penas pequenas, a prescrição da pena e uma infinidade de recursos. Os criminosos mais abastados obtêm nas leis processuais instrumentos suficientes para impedir que qualquer processo chegue ao fim em menos de dez ou vinte anos, quando muitos crimes já prescreveram. A sociedade não tem sido educada em direitos humanos e, por isso, ignora a realidade de trabalho escravo, nega e protege-a sob o argumento de se tratar de costume, ou da melhor alternativa possível. Chega-se a afirmar que é melhor o trabalho sob qualquer condição do que a falta dele. A inclusão no mercado de trabalho do trabalhador proveniente da escravidão é urgente, bem como é necessário reconhecê-lo como cidadão, garantir-lhe os direitos básicos, por meio da alfabetização, da qualificação profissional, instituir políticas públicas de geração de renda com a fixação desse homem ao campo, proporcionando-lhe, e à família, assistência médica, odontológica, psicológica, escola adequada e digna para seus filhos, terra, transporte, crédito, assistência técnica, enfim, uma reforma agrária competente e real. Referências COSTA E SILVA, A. J. da. Plágio. In: Justitia, (Órgão da Procuradoria Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público), São Paulo, n. 39, p.10, 1962. EMPRESAS ainda lucram com trabalho escravo. O Globo, Rio de Janeiro, 13 maio 2007b. p. 12. FAZENDA de cana tinha 1.108 com escravos. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jul. 2007 a. p.12. FISCAIS denunciam pressões de senadores. O Globo, Rio de Janeiro, 22 de Jul. 2007. p. 10 242 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. VI. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Disponível em: <http://www.ilo.org/declaration>. Acesso em: 04 jun. 2009. RODRIGUES, Valderez Maria Monte. Uma chaga aberta. In: FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2003, Porto Alegre. Anais da Oficina sobre Trabalho Escravo, jan. 2003. TRABALHO escravo sem punição. O Globo, Rio de Janeiro, 21 set. 2006. p. 29. VILELA, Ruth B. A experiência do MTE e instituições parceiras no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Dia da Abolição, n. V, jun. 2009. 243 Tratados e convenções internacionais e seus reflexos (e inconsistências) no tratamento da escravidão pós-abolição Nanci Valadares de Carvalho “Nós ficamos agradecidos com o que os senhores já fizeram por nós, mas como as pessoas desta província parecem estar imbuídas dos princípios de igualdade e justiça, nós não podemos senão esperar que esta Assembléia, mais uma vez, levará em alta consideração o nosso deplorável caso, para nos dar aquele alívio maior a que como seres humanos, temos um direito natural”.1 1. A convenção de 1926 e a definição paradigmática da escravidão da pessoa humana O instituto da escravidão acompanhou, por muitos séculos na Antiguidade, a vida doméstica legal dos diferentes povos, entre os gregos e os romanos, encontrado nos textos sagrados na descrição do hebreu Moisés que conduziu seu povo à liberação da escravidão, ou segundo um retrato psicanalítico detalhado por Freud, o Moisés egípcio que juntou-se ao povo escravo para semear o monoteísmo em terra distante, livre do sistema escravagista. 1 Carta escrita por quatro escravos e, encabeçada por Peter Bestes, dirigida ao Presidente da Assembléia de Boston nos Estados Unidos da América em 20 de abril de 1773, com o pedido de libertação para voltarem à África. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Ainda hoje em alguns pontos do mundo, encontra-se em seus elementos arcaicos, quando na presença da submissão da mulher à família do marido, no incesto praticado no âmbito dos lares contra as crianças, na receptividade do inimigo derrotado em batalha ou conquista como servo, ou na recusa da igualdade essencial de algum grupo minoritário ou simplesmente vulnerável, a exemplo dos dalits, os Harijan, filhos de Deus, como os chamava Ghandi, grupo étnico excluído do sistema de castas do Hinduísmo, moldado de antemão para o emprego nas atividades que lidam com os restos da vida humana, como os detritos e a morte – ação de discriminação criminalizada na Índia secular, desde a Constituição de 1950, sob a inspiração do Primeiro Ministro da Justiça Bhimrao Ramji Ambedkar, ele mesmo do grupo de intocáveis. A Europa conheceu internamente o Feudalismo na Idade Média baseado num complexo sistema de vassalagem em cuja base situava-se a mão de obra servil. O pleno despertar dos Estados Centrais, condição dos empreendimentos que propiciaram as descobertas de novos mundos, junto à ciência e à tecnologia propulsionou a mercantil e universal escravidão dos africanos. Iniciada nos quatrocentos, representou um movimento que acompanhou o impulso da primeira mundialização, primeiramente pelo mercantilismo ibérico. Esse movimento, fortalecido posteriormente na ação ultramarina das Companhias das Índias Orientais (a Holandesa, a Francesa e a vitoriosa The British Indian Trading Company), passou incólume aos reclames das revoluções democráticas Americana e Francesa, esbarrando finalmente na dinâmica operativa requerida pela Revolução Industrial e seu apelo em favor do trabalho livre.2 Os motivos econômicos que fundamentaram a proibição da escravidão somavam-se à repulsa moral e ética suscitada pela novel consciência de que ninguém a ela fosse submetido, pois o sendo estaria perdendo a sua essência humana. As formas contemporâneas de escravidão ou servidão confundem-se com as remanescências de sistemas despóticos asiáticos, da exploração colonial nas Américas, e na Ásia, da dominação territorial na Europa e da escravidão doméstica sem fim mercantil no Continente Africano. Talvez essa ausência de distinção entre o residual e o novo confira uma das razões porque os acordos internacionais encontrem muita dificuldade e 2 Embora a noção de trabalho livre seja teoricamente controvertida, sua utilização aqui atende ao senso comum da interpretação histórica. Cabe notar a presença de traços mercantis na escravidão do Islã (CHEBEL, 2007). 246 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas sejam plenos de inconsistências, quando se trata da tipificação da escravidão e da servidão contemporâneas. Os mais importantes tratados internacionais com referência à escravidão situam-se temporalmente entre dois marcos, a Convenção de 1926 e o Protocolo de Palermo, de 2000, que se fincam, o primeiro, qual uma conjuração dos povos contra o próprio passado que encerrava os quatro séculos de escravidão mercantil dos africanos; e o segundo, que se demonstra como um libelo e uma precaução no período iniciado pela globalização. A consciência de ontem se elevava contra a indignidade da propriedade de uma pessoa sobre outra, transformando-a assim em coisa. A de hoje, se alça contra, principalmente, o horror da submissão de levas de imigrantes traficados para suprir o afã de lucro e lust a qualquer preço, de pessoas privadas que cumprem, indiretamente, o desígnio de competitividade dos países na nova arena internacional. Ainda mesmo em 18 de fevereiro de 1815 surge durante o Congresso de Viena a Declaração Relativa à Abolição Universal do Tráfico de Escravos então representando o primeiro de dezenas de atos e acordos internacionais que se fazem seguir contra a escravidão mercantil, que por séculos lastreou a expansão no novo mundo e a acumulação capitalista da Europa. Na data de 1919 é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), destinando-se a oferecer amparo ao trabalhador e proteção às condições de vínculo do emprego e da remuneração para a metade que permanecia capitalista depois da Revolução de 1917. Reconhecia-se também aqui uma mítica valorização do trabalhador assalariado, e mesmo algumas constituições nacionais, como a Mexicana de 1917 e a da República de Weimar de 1919, consagraram os direitos trabalhistas e a previdência social como uma preocupação permanente que deságua na Convenção sobre a Proteção do Salário, de n. 95, em 1949 e a Convenção n. 182, de 1999, sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil. A cada passo da organização internacional, conquistada pela Sociedade de Estados Nações, a regulação contra a escravidão avança, mas também retrocede. Durante o período demarcado pela Convenção de 1926 no marco da Liga das Nações e o Protocolo de Palermo, ato adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional e, na medida em que se iam denunciando novas situações de constrangimento impostas às pessoas, o conceito de escravidão viu-se amplamente modificado. Alguns novos caminhos foram descortinados ao largo, e em consequência surgem emendas, atos suplementares, declarações e protocolos dos organismos 247 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) internacionais que intentavam criar alternativas e possibilidades face aos contextos políticos que se vieram sucedendo. A Convenção Sobre a Escravatura proclamada pela Liga das Nações, assinada em Genebra em vinte e cinco de setembro de 1926, entrando em vigor em 9 de março de 1927 com o título Slavery, Servitude, Forced Labor and Similar Institutions and Practices, Convention of 1926 (LEAGE OF NATIONS, v. 60, p. 252) 3 define a escravidão como o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito à propriedade e o tráfico de escravos como aquele que compreende: todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim como em geral, todo ato de comércio ou de transporte de escravos Caberia então promover a abolição completa da escravidão e impedir e reprimir o tráfico de escravos onde ainda reinasse. O debate filosófico e prático entreaberto pela convenção inicial da Liga das Nações foi absorvido, juntamente com as edificações majestosas de Genebra, pela Organização das Nações Unidas (ONU), sua sucedânea. Perdura nos dias de hoje, em todas as regiões mundiais, resultando em número significativo de especificações legais nacionais e internacionais, secundado pela ação informada de um conjunto de organizações da sociedade civil que se dedicam a estudar e denunciar a permanência bárbara da escravidão, A Organização Internacional do Trabalho, que antecedeu a fundação da ONU, constitui-se hoje como uma agência deste sistema de segurança global e direitos humanos, ocupando-se do combate ao trabalho forçado (ou trabalho escravo contemporâneo, como o chamamos no Brasil) no plano internacional. Alguns atos, como a Convention Concerning Forced or Compulsory Labour de 28 de junho de 1930 (LEAGUE OF NATIONS,1932, P. 55) admitem diversas exceções à condenação tácita e absoluta à escravidão declinada pela Convenção de 1926. A intencionalidade da Convenção n. 29, de 1930 que foi ratificada pela quase totalidade dos estados partes, por cento e cinquenta e oito países, era deixar determinado que uma vez que uma relação de trabalho não houvesse sido compulsória, não caberia a aplicação de qualquer forma de sanção ao empregador. 3 Ver Introduction UN LDN. Historical Information Index Full-text search chapter XVIII. 248 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Mas os legisladores de vinte e seis pareciam tomados pela euforia da abolição universal, tanto quanto os legisladores de trinta que se limitavam e se enquadravam à situação de guerra que presidiu e presidiria a primeira metade do Século Breve. Data de 8 de junho de 1949 a Convenção Relativa à Proteção do Salário, a Convenção n. 95, na qual o Brasil se subscreve como Estado Membro e, como tal, apto a excluir algumas categorias da condição de assalariada, a exemplo do trabalho de pessoas condenadas pela Justiça e feitas prisioneiras. Em todos os outros casos, o trabalho assalariado nasce de contrato jurídico determinado. O afã desse permanente debate motivou a formação de três grupos de trabalhos pela própria ONU. São eles: o estudo de Mohamed Award datado de 1966, o de Benjamin Whitaker, de 1984, o Abolishing Slavery and its Contemporary Forms, de David Weissbrodt e a Anti-Slavery International, de 2002. Weissbrodt considera que tendo a Convenção de 1926 incluído todas as formas de escravidão, demonstrou-se insuficiente na indicação de procedimentos contra esse instituto no interior dos diversos países, ao deixar de criar um organismo próprio e responsável na prevenção,vigilância e punição dos atos ilegais. Assim, em 1949, o ECOSOC - Conselho Econômico e Social da ONU em geral dando voz aos organismos da Sociedade Civil, indicou o caminho para emenda de 1956. Tratava-se de delimitar com clareza os termos antes referidos de uma maneira geral. Pontuava-se o trabalho escravo doméstico, a escravidão por débito, a escravidão de mulheres na relação com o marido, pai ou outros parentes seus e do cônjuge, e de crianças supostamente adotadas, bem como a venda de meninas por dote, pagamento ou interesse na busca de vantagens ou compensações. Em seguida ocorre a convocação da Convenção Relativa à Abolição do Trabalho Forçado, pelo Conselho de Administração do Secretariado da OIT, reunida em Genebra, em 5 de junho de 1957, por ocasião da sua Quadragésima reunião. Aquela Convenção Suplementar Sobre a Abolição da Escravidão, o Tráfico de Escravos e as Instituições e Práticas Similares à Escravidão, a Convenção Suplementar de 1956 responsabilizou os Estados Membros pelo abandono e pela extirpação dessas práticas consideradas de estatuto servil. No documento E/AC. 43/L1 (UNITED NATIONS, 1956, p.82) são nomeadas e descritas as práticas de: 249 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) a) debt bondage, ou o vínculo de trabalho por dívida, o qual se apresente como estado ou condição pela qual em razão de uma dívida, exerça-se a cobrança da mesma pela prestação de serviços próprios ou de outrem, declinado pelo devedor, como forma de garantia de pagamento, especialmente quando o valor desses serviços não estiver razoavelmente estipulado, ou quando o tempo e a natureza desses serviços, não estiverem claramente estipulados para a plena liquidação da dívida; b) institutos ou práticas análogas à situação de escravidão, que se encontra na condição ou estado de um arrendatário, a quem por lei, costume ou acordo, se obriga a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa, ou a prestar serviço remunerado ou não, que seja determinado por outrem, sem que a primeira tenha a possibilidade de mudar sua condição; e c) todas as formas de alienação da mulher e da criança, inclusive no seio da família, quando postas a serviço do marido ou de seus parentes, ou quando se as considera como herança, em todos os casos, visando à exploração. A Convenção de 1926 e o Ato Suplementar de 1956 ainda que se constituam num claro libelo contra as diversas formas de escravidão, não conseguiram abarcar em sua totalidade os traços da escravidão contemporânea. O termo servidão foi evitado e equiparado às formas análogas à escravidão e às pessoas no estado servil. A Convenção de 1926 e o Ato Suplementar de 1956 não lograram incorporar a conceituação recomendada pelo Documento das Nações Unidas E/ CN/.4/Sub.2/1982/20 que define escravidão como o exercício de qualquer ou todas as formas de propriedade sobre outra pessoa, incluindo o tráfico. As formas tradicionais de servidão ou escravidão seguem acontecendo ainda hoje e junto a novas formas de exploração se classificam na seguinte tipologia segundo o Informe I (B) de 2005 da OIT4: - trabalho forçado imposto pelo Estado; – trabalho forçado imposto por agentes privados para fins sexuais; – trabalho forçado imposto por agentes privados com a finalidade de exploração econômica. O conceito mesmo de exploração resta em aberto no debate político e acadêmico contemporâneo. A inexistência da especificação desse delito nos 4 Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado, Informe Global em prosseguimento à declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho. OIT, 93ª. reunião, 2005. Ver também: OIT. Conferência Internacional do Trabalho, 89ª. Reunião, Genebra, 2001. Observar o informe de especialistas convocado pela União Européia sobre o trabalho forçado em 2003. 250 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas códigos penais de alguns países vem adicionar novos desafios, especialmente quando associados ao impacto da migração na presente fase da globalização. Pode-se afirmar que a exploração de apresenta sob a égide da legalidade. Aqui vão alguns exemplos: quando se trata do trabalho forçado pelo Estado, os governos do Tajaquistão e no Uzbequistão convocam campanhas de mobilização de estudantes para o trabalho nos algodoais sob pena de perda de matrícula nas universidades. O caso mais dramático de imposição pelo Estado encontra-se no Myanmar, antiga Birmânia, por meio da prática frequente do trabalho forçado à população pelo Estado, em geral pelo braço das Forças Armadas (OIT, 1988). A China admite a reabilitação de prisioneiros pelo trabalho, mas denega realizar a exploração econômica do produto resultante. Na Índia a utilização de mão de obra servil, comum no âmbito doméstico, penaliza principalmente as mulheres, além da servidão por dívida que se pode encontrar nas indústrias, entre os ladrilheiros, os pescadores, os entalhadores de pedras preciosas, os tecelãos e os trabalhadores no cortume, em geral arregimentados nas chamadas castas inferiores. O governo indiano tem-se mostrado consistentemente apto a investigar e impor sanções, sendo de sua autoria a pesquisa levada a efeito na Região do Rajastão, parte da Índia histórica dos Marajás, denunciando a servidão por dívida. Ali as minas constituem-se numa concessão estatal a pequenos empreendedores que empregam cerca de três milhões de pessoas. Quase cem por cento dos empregados são provenientes da scheduled castes e 93% deles se encontram, devido ao alto endividamento que contraíram com seus patrões, em estado de servidão.5 Contra essas e outras práticas os governantes da Índia 5 Mine Labour Protection Campaign: bonded labour in small scale mining, Jodhpur, Rajastan, India, citado no Informe I (B), nota 53. O governo da Índia por sugestão de uma comissão especialmente dedicada ao tema da discriminação, chamada Mandal Comission, instituiu em 1980 um “sistema de discriminação positiva” para os harijans (dalits ou intocáveis) e outros grupos atrasados enlistados – scheduled - de modo a preencher cotas de 50% nas instituições educacionais e nos empregos públicos. Além dos intocáveis, incluem-se no sistema de cotas na Índia também as tribos remanescentes e outros grupos em atraso relativo em proporção à população por eles representada na sociedade. Para o conjunto desses grupos mais indefinidos, a Suprema Corte estabeleceu uma cota total de 27%. Na Índia clássica,os dalits tinham as seguintes ocupações: os cándala, cremavam e carregam os cadáveres e eram algozes de criminosos condenados à morte. Somente poder-se-iam vestir com as roupas deixadas por esses mortos, ornarem-se apenas com apetrechos de ferro e comer em vasilhas quebradas. Depois havia os nisadas, que eram os caçadores—portanto, matavam. E os pescadores, chamados kaivartas e aqueles que trabalham curtume, tirando o couro de diferentes animais. Todos estavam supostos a viverem em colônias mal cheirosas e sujas em decorrência de sua própria ocupação. Os pukkusa são os limpadores de privadas e de chão. Ver (AL BASHAUM, 2004). Também os que fazem os cestos e as charretes pertencem a essas castas. Cantores, dançarinos e apresentadores de teatro de bonecos são também intocáveis e além do mais são nômades. Nunca recebem diretamente o dinheiro do seu pagamento, pois devem sempre cobrir a parte da mão que recebe o dinheiro ganho. Assim como recuam ao encontrar pessoas e não entram nas partes principais das casas onde prestam serviços. Todos são considerados almas poluídas pela poluição do que fazem, e sua presença carrega um sinal de má sorte, quebrando a corrente de qualquer rito que se celebre. Nos tempos antigos antes de entrarem nas vilas tinham que se anunciar batendo claquete. 251 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) tomam medidas como, por exemplo, a criação da Comissão Nacional de Direitos Humanos. O relatório da Aliança Global Contra o Trabalho Escravo, acima mencionado, aponta para cifras surpreendentes, pois 12.300.000 (doze milhões e trezentas mil) pessoas encontram-se nas situações de escravidão contemporânea em todo o mundo, sendo que 360.000 (trezentas e sessenta mil) nos países industrializados e 210.000 (duzentas e dez mil) nos países emergentes ou em vias de industrialização plena. Fica caracterizado que este mal parece pertencer a humanidade em geral, distribuindo-se por todos os tipos de países, indiferente à forte desigualdade na distribuição da riqueza no mundo. Ainda que a pobreza e o analfabetismo estejam correlacionados com a vulnerabilidade do trabalhador, a dominação de uns sobre outros parece surgir como uma variável independente. A pertinência do Protocolo de Palermo, assinado em 15 de Novembro de 2000, que compôs uma série de três atos adicionais à Convenção do Crime Organizado Transnacional, retrata a realidade última dos países industrializados isoladamente ou organizados em macro-regiões, como no caso da União Européia. Sendo incontáveis os casos de tráfico de pessoas das regiões mais pobres do globo, seja da distante China para o Reino Unido, ou dos poloneses para o resto da Europa, ou de mulheres russas transportadas sem destino pelas fronteiras mal delimitadas com a União, mas especialmente em razão do sequestro de crianças, com as finalidades mais torpes e desumanas, surge esse instrumento de combate, O Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e de Crianças, uma chamada, um alerta contra o crime contra a pessoa humana, quando a situação desvantajosa de alguns pretende ser explorada pela ilegalidade dos mais fortes e melhor informados. A assinatura e a ratificação do Protocolo de Palermo pelo Brasil não nos escusa da indiferença quanto à Convenção de Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, proclamada pelas Nações Unidas, em 1990. Respondendo aos desafios da globalização tanto quanto o tráfico, a imigração ilegal atinge-nos regionalmente em maior grau do que aquele. 2. Inconsistências paradigmáticas O trabalho forçado segundo a OIT engloba a escravidão contemporânea. Ao se constituir em abuso contra a pessoa humana, requerendo sua abolição e, embora sejam quase duzentas as resoluções da OIT que o restrinjam, ainda caracteriza a vida de muitas formas e em muitas partes, atingindo 252 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas adultos, de ambos os sexos e crianças menores de dezoito anos de idade. A Convenção pela Abolição do Trabalho Forçado de 1957, (UN, 1957, v. 320, p. 291) busca responder a esse desafio aos governos do mundo, mas somente responde à ação impositiva dos Estados. No que respeita a presença de trabalho forçado ou vinculado à dívida quando relativos a qualquer outra forma de analogia à escravidão no mundo contemporâneo, não se vê tratado por esta Convenção que, de certo modo (exclusão feita às críticas práticas e teóricas à apropriação do trabalho e ao instituto da mais valia e suas consequências no modo de vida), justamente deveria regular sobre o devido respeito ao trabalhador no campo da economia privada e não apenas em razão da ação estatal Observa-se mesmo que algumas lacunas da paradigmática Convenção de 1930 ficam expostas quando, por exemplo, o artigo 4 admite ainda que sob enormes restrições, o pagamento parcial do salário em gêneros; e no artigo 7, que em lugares inaccessíveis, o patronato possa manter lojas e prestar “economatos”: serviços estabelecidos pelos patrões. Também, sob a tutela da Autoridade Competente serão eventualmente permitidas a venda de produtos ou a prestação de serviços de moradia, transporte, acesso à comunicação e à eletricidade por meio de descontos no salário. O artigo 8 e o artigo 17 consente que quando o Estado Membro contiver vastas regiões, ou devido ao caráter disperso da população, poder-se-ia abrir exceções à aplicação da Convenção, sempre é claro, com o consentimento previsto da mencionada autoridade competente que isentasse certas empresas e certos trabalhos das boas condições cotidianas no caso em suas obrigações trabalhistas estivessem legalizadas e documentadas. Ora as condições de isolamento e rusticidade da vida permitem a afirmação que a selva amazônica funciona como um imã para o trabalho forçado (Informe I (B), 2005, p. 45). À atuação privada na exploração da mão de obra no plantio e na pecuária presentes nessa região, nos moldes de uma coerção de extrema violência, que tem vitimizado líderes ecologistas e comunitários, religiosos ou não, acrescenta-se o lucro fácil dos balcões de venda de suprimento, método certeiro para o prolongamento de um vínculo não voluntário a um trabalho, no mais das vezes, realizado em condições degradantes (SUTTON, 1994; REZENDE, 2008). Alguns autores admitem que a incompletude dos atos jurídicos internacionais se deva menos à insuficiência conceitual do que à própria natureza dinâmica das situações concretas da escravidão que aparecem nas diversas partes do mundo hoje. 253 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Bales e Robbins (2001) resumem a condição da escravidão contemporânea sempre que se encontrem em situações nas quais uma pessoa exerça um completo controle sobre outra, ou que se aproprie da força de trabalho de alguém ou quando a violência ou a ameaça seja empregada para se manter aquele estado de coisas. Nesses autores, uma situação de escravidão contemporânea somente se caracteriza pela presença do elemento da coação. A literatura brasileira, de há muito, aborda o tema da coação abusiva como o do discrime, a linha divisória, teórica e prática, no combate à escravidão contemporânea. Existiria o elemento da subalternização do trabalhador na ausência do isolamento da sua comunidade? As condições degradantes para o exercício do trabalho, alcançando crescente desumanização, poderiam ser vistas como uma forma de coação psicológica e moral? A coação caracterizar-se-ia apenas quando a violência contra o trabalhador se apropria dos recursos das armas e da força? A coação se exerce física, moral e psicológicamente, em ambientes que a favorecem pela distanciamento territorial e social, condena o trabalhador e a mulher a perderem ou a não reproduzirem laços afetivos, e seu espectro se faz ver pela imobilização da mão-de-obra (ESTERCI, 1994). Considere-se portanto que nos tratados paradigmáticos, a escravidão fica basicamente definida pela subjugação de uma pessoa a outra para cumprimento de finalidades da primeira em detrimento da liberdade da segunda. Os elementos de coação pelo agente ativo da relação escravagista somado à falta de informação ou ingenuidade, ou ausência de alternativas do sujeito da submissão, não parecem pertencer a esse enquadramento legal. 3. A declaração dos direitos humanos como ruptura paradigmática O Século XX foi o primeiro século a condenar a escravidão de uma pessoa por outra como um crime contra toda a humanidade, que dependendo da situação, pode ser tipificado como crime de guerra, como crime contra a humanidade se cometido por Estados ou seus agentes ou crime comum internacional quando resultado da ação de pessoas privadas. Que ninguém será mantido em escravidão ou servidão, que a escravidão e o tráfico de escravos sejam proibidos em todas as suas formas formula-se como uma norma geral que une o direito positivo e a consciência humana num mesmo ato jurídico internacional.Um libelo que contrasta com a caracterização positivista da condição de escravo ou estado de servidão como a de uma pessoa explorada por outra, excluindo-se da definição aquelas 254 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas condições de vulnerabilidade em que se encontra a pessoa humana, e que justamente geram as razões que antecedem as relações de assimetria e exploração; contrasta também com o clamor de que, quando se trata de compreender o fenômeno da escravidão contemporânea, já de difícil determinação nos casos concretos em que sucedam, o foco moral da questão não pode ser obliterado. No livro Ética, Fábio Comparato discorre sobre a pessoa humana esclarecendo que o uso desse termo se justifica, em decorrência da comparação com a pessoa divina no Cristianismo (COMPARATO, 2006, p.457). Sob a luz de suas reflexões que ligam Rousseau a Kant, filósofos da igualdade, há que se pensar na situação do escravo como uma anteposição à noção de pessoa humana. Pois a pessoa seria aquela que portasse uma racionalidade peculiar à espécie humana, segundo a qual se definiria por suas próprias finalidades. Na medida em que ao escravo se toma como um meio para concretizar objetivos que lhes sejam alheios ou não, quando a subjugação não deriva da autonomia da pessoa, resta negada, por princípio, a substância humana. A definição de pessoa implica nessa racionalidade substantiva pela qual a pessoa nasce dotada de razão, humanamente, indiferentemente da personalidade que venha a cumprir em sociedade, em função ou papel social. Na Carta das Nações Unidas, a marca do genocídio de milhões de judeus sob o holocausto nazi-fascista reflete-se como uma profissão de fé fundamental nos direitos humanos, na dignidade e no valor da pessoa humana, independente das diferenças de gênero, raça, origem social e escolha religiosa. À luz da psicanálise e das ciências sociais, a consideração ética não alcança incluir a ideia de processo em direção à plena formação da racionalidade própria da pessoa humana, à luz da psicanálise e das ciências sociais, permitindo-se conceber o pleno desenvolvimento de uma pessoa, por meio da instrução, da saúde, da participação, da informação, da comunicação e da associação, motivo das diversas assertivas das leis internacionais no campo dos direitos políticos, civis, econômicos e culturais, a partir de 1948. Em 1948, no Sistema Internacional, afirma-se o consenso sobre os Direitos Humanos Universais, agenda de uma convivência ainda em construção num mundo que se deseja melhor. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos se finda moralmente a escravidão A Declaração Universal dos Direitos Humanos -DUDH- foi proclamada na terceira sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU, reunida em Paris em 10 de dezembro de 1948 contando oito abstenções.Seguem-se nos vinte anos 255 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) desse consenso internacional do pós-guerra inúmeras celebrações. Primeiramente, depois em Viena, no dia 25 de junho de 1993, aconteceu a Segunda Conferência Mundial que antecedeu os cinquenta anos, reafirmados pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos lançados, outra vez na Assembléia Geral, no dia 16 de dezembro de 1998. Acrescentam-se algumas outras Resoluções esta DUDH: Resolução de 1997/44 em Genebra, 29 de fevereiro de 2000 (UN, 2000) e a Declaração e o Programa de Ação de Viena adotada na Conferência Mundial dos Direitos Humanos em 25 de junho de 1993 (Un, 1993, p. 908). Agora, uma pessoa sequestrada ou enganada, mediante falsas promessas ou duplicidade que envolvam a violação de sua liberdade ou segurança, passa a ser sujeito de direito internacional. Igualmente aquele que for maltratado, ou submetido a tratamento desumano e degradante torna-se apto a reclamar diretamente nas Cortes Internacionais e a obter um justo julgamento. Também a impossibilidade de definir por critério próprio seu local de residência e o impedimento de estar abrigado no seio de sua família constituem privação de direito. Em quase todos os casos de escravidão contemporânea, servidão ou trabalho forçado, alguns desses elementos podem ser encontrados, dificultando a classificação penal do abuso na intricada fábrica dos atos internacionais quando singularizados. Os centros de estudos em várias partes do mundo dentre os quais se inclui o Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPTEC) apontam inúmeros casos concretos contendo alguma ou muitas dessas violações. Rezende (2004) divisa na complexidade de fatores, encontrados nos numerosos casos pesquisados, os traços de ‘um sistema de subjugação e controle” no qual a rede de aliciamento parece surgir como um substituto funcional das sociedades escravagistas mercantis. Um sistema que incluiria na sua tecetura de ilusões e perplexidades, o encontro das subjetividades que se espreitam em posições de elevação distintas na corrente de um mesmo rio: dos agentes diretos da coação, gatos e fiscais ou pistoleiros, dos empreiteiros, gerentes de fazendas, trabalhadores e seus parentes, líderes sindicais, fazendeiros e empresas industriais proprietárias de terras. Com clareza, pode-se afirmar que no tempo histórico ou no tempo presente, todos os casos contêm violações dos direitos humanos das pessoas. Segundo Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda entre 1990 e 1997, e Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, nomeada pelo Secretário Geral, 256 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Sr. Kofi Annan em 1997, DUDH se distingue pelo atributo da criação de uma base comum para a compreensão dos direitos do homem (UN, 1998). Por esta magna declaração todos possuem o direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa. Ninguém deve ser mantido em escravidão ou servidão, formas que devem ficar para sempre abolidas. A tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante ficam abolidos e estigmatizados, pois em qualquer parte cada um deve ser reconhecido como uma pessoa em plena posse dos seus direitos. Estas prerrogativas sendo indivisíveis estabelecem a soma dos direitos políticos, econômicos, sociais e culturais. A escassez de riqueza, educação, informação e participação excluem a pessoa humana dos atributos do mundo contemporâneo. Os direitos humanos são também universais e representam uma síntese dos valores budistas, hinduístas, cristãos e judaicos, a definir o bem e a solidariedade na família humana e aplicam-se a qualquer pessoa, em qualquer parte. Ainda que Mary Robinson chame a atenção para o fato de que a DUDH se propõe como um farol iluminando o futuro de nossa espécie, distintamente das práticas de desigualdade e violência presentes na vida dos povos; fica impossível negar nesse mesmo mundo a indivisibilidade negativa da servidão com a discriminação; da escravidão com o crime ambiental e da exploração com a vulnerabilidade econômica. Este enfoque propugna uma mudança conceitual que supera as definições paradigmáticas contidas nos tratados sobre o trabalho forçado. Nem todos os países do mundo estão aptos a aceitar ainda hoje essa nova matriz de definição dos direitos humanos com as suas formalizações técnicas de aplicação concreta de reparações para uns e punições para outros. Ao compreender as especificações associadas aos pactos concernentes à DUDH que conjugam direitos e sistematizam punições para a efetiva aplicabilidade dos princípios gerais nela contidos, o Primeiro Ministro da Malásia, secundado por outros representantes presentes ao 30º Encontro da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) em Kuala Lampur, em 24 a 29 de julho de 1997, conclamou a necessidade da revisão daquela Magna Declaração. A base para tal o argumento foi de que a maioria dos países que compõe o Concerto Internacional permanecia sob o jugo colonial de alguns dos cinquenta e oito países presentes em Paris em 1948. Deixou o triste alerta para o fato de que os valores relativos à pessoa e à razão, cunhados em longos séculos pela história do Ocidente, não se coadunariam com a realidade comunitária e religiosa de muitos dos povos ora constituídos em estadosnação (BRANDÃO,1998,). 257 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) O certo no entanto, ao contrário de Pandora, é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos abre a caixa do bem, onde se enlista a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO em 1999, pela qual se reconheceu o Mar Comum, em Montego Bay, na Jamaica em 10 de dezembro de 1982. Este conteúdo está refletido na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981, que conclama o direito exclusivo de cada povo sobre seus recursos naturais. A forma mais atualizada dos princípios contidos na DUDH se apresenta na Declaração de Princípios sobre a Tolerância adotada pela 28ª ConferênciaGeral da UNESCO em 1995, em Paris. A tolerância passa a ser vista como norma positiva e jurídica que atinge pessoas e instituições que se obrigam a aceitação ativa das diferenças. A tolerância vem a ser a via ativa para a garantia dos Direitos Humanos, sustentáculo da Democracia, do Pluralismo e do Estado de Direito. A tolerância somente se rivaliza à discriminação e à injustiça social. “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e em todos os lugares deve ser reconhecido como pessoa perante a lei” - sem dúvida, espelha o artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem de 1789 que afirma: “as distinções sociais não podem senão ser fundadas na utilidade comum.” Considerações finais O Pacto de Westphalia ao ter iniciado a convivência regulada da vida dos povos, ao atribuir consistência a todos os atos bilaterais e multilaterais estabeleceu, desde sempre, que o sujeito de demandas seriam os governantes dos estados nacionais. Por todos esses séculos, a pessoa portadora ou não de uma cidadania, ou as organizações civis que são os porta-vozes de indivíduos e grupos na esfera internacional não teriam jurisdicidade própria, concedida somente àquela que se derivasse da nacionalidade e da representação internacional do estado de origem. A tipificação de qualquer abuso como a tortura, a posse de uma pessoa por outra e a exploração de seres vulneráveis no sistema internacional assumia-se como violação dos direitos individuais tratados caso a caso nos tribunais nacionais competentes. A Declaração Universal dos Direitos Humanos concebe que o indivíduo de qualquer país se assuma na arena internacional como parte, e que tenha voz, direito a juízo, sentença e opinião. 258 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Uma norma geral segundo a qual se deixam entrever o mundo e uma cidadania comum: a Terra Pátria de Edgar Morin e a governabilidade global em formação na Era do Direito. Nesse espaço, a escravidão contemporânea, mesmo que seja difícil de definir-se em cada caso em questão, não mais representa um crime contra uma pessoa ou um grupo de trabalhadores “dispensáveis”. A escravidão de cada um subscreve um crime contra toda a humanidade na medida em que: pela exploração, engano, abuso e crueldade, o fazer humano fica destituído de sua dignidade própria. Assim como no caso do genocídio, os casos contemporâneos de escravidão devem ser conduzidos aos tribunais internacionais, sempre que as autoridades nacionais, ou os acomodem ou se tornem indiferentes à sua reparação e à sua punição criminal dos responsáveis para além do resgate e da recompensa às vítimas quando liberadas O recurso ao alcance dos tribunais internacionais tem a competência de suprir a impossibilidade jurídica de aplicar o artigo 149 do Código Penal Brasileiro nos crimes que remetem às condições análogas à escravidão no emprego da mão-de-obra no Brasil (AUDI, 2006, p. 85). O empregador que cometesse o ato ilícito atentatório contra a liberdade pessoal teria que cumprir pena de até 8 (oito) anos de encarceramento. Porém em mais de trinta anos apenas 4 (quatro) casos foram levados à julgamento, e todos os outros permaneceram em relativa impunidade (ESTERCI; RESENDE, 2001, p. 205-220). Para alguns fazia-se mister a criminalização de certas práticas patronais como consequência de uma projetada reforma do Código Penal (CASTILHO, 2000). Um esforço assim visaria contornar o fato de que Justiça Federal com base na RE n. 90042 (o trabalho forçado então não caracterizaria um crime contra a organização do trabalho) remetia sistematicamente os casos em julgamento para à esfera da Justiça Comum Estadual, onde os culpados, devido ao poder local, em geral, permaneciam impunes. (CAMARGO DE MELO, 2003). Trilhando o caminho do meio, o Supremo Tribunal Federal, (tendo sido relator o Ministro Joaquim Barbosa, em 30 de novembro de 2006 entendeu, por maioria que o Recurso Extraordinário n. 398041 aplicado às condutas ilícitas de trabalho forçado, dever-se-ia enquadrar na categoria dos crimes contra a organização do trabalho. Considerou-se que a situação de trabalho análogo à escravidão conferia à vítima a titularidade do princípio da dignidade humana, eixo do Sistema Jurídico – Constitucional. Esta singular interpretação passou a remeter o julgamento dos casos de escravidão contemporânea à Justiça Federal, retirando-os da esfera da Justiça Comum. 259 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Essa inclusão, de um princípio compatível com a DUDH, tem possibilitado uma crescente mobilização do Ministério Público do Trabalho, juntamente aos antigos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel e de outras instâncias da autoridade pública—auditores fiscais, procuradores, polícias federais. Soma-se à densidade da ação oficial, a dedicação civil da Comissão Pastoral da Terra e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, de outras organizações nacionais e internacionais. Ainda que o escopo deste trabalho seja de natureza exploratória, cabe aqui uma indagação: em caso de intolerância interna qual o grau de determinação nacional da norma internacional? Os tratados e as convenções representam de fato o último recurso do apelo à Justiça? Aqui me refiro aos estudos de Hans Kelsen e à interpretação contrária presente no Brasil. Num certo sentido Kelsen teria tido a antevisão do nosso presente quando advogava a união essencial da norma jurídica, do local ao global. No entanto, o Supremo Tribunal Federal no Brasil se responsabilizou por algumas declarações que proclamaram “a inquestionável supremacia jurídica da ordem constitucional sobre as prescrições emergentes de qualquer tratado internacional...” (BORJA, 2006, p 12). Desta forma o Jurista Célio Borja advoga a supremacia da Constituição e do Controle Jurisdicional interno sobre os tratados e convenções internacionais. Tal posição parece fundamentar-se no princípio da reserva legal pelo qual o Parlamento contribuindo com a lei ordinária desponta como a fonte legítima em última instância na definição de crimes e penas. Esse mesmo Parlamento no Brasil que excede na representação de uma bancada ruralista expressiva sempre disposta à preservação dos direitos abstratos da classe de proprietários rurais no Brasil, hoje mais que nunca bastante responsável pelo agrobusiness e, por destino do Brasil na Nova Ordem Global, pelo crescimento do Produto Interno Bruto. Mais ainda quando Westphalia parece colocar-se entre parêntesis na quadra em que se insere a Guerra do Iraque (e para cuja desconstrução contase com todo o futuro do Governo Obama), espera-se a respeito do trabalho escravo contemporâneo, que a sociedade civil brasileira saiba inserir-se no mundo de hoje de forma audaz e criativa. Situando-se em consoância com a ética e o direito, agora unificados na nova norma geral dos direitos humanos, o Brasil deve seguir num sentido humano e universal, capaz de reconhecer sua face desigual e conjurar contra suas fraquezas. 260 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Referências AL BASHAM. The wonder that was India. Oxford: Picador, 2004. AUDI, Patricia. A escravidão não abolida. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Orgs.). Trabalho escravo contemporâneo, o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. BALES, Kevin; ROBBINS, Peter T. 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A tipificação humana vem do fato de pertencer à raça humana, ou seja, o homem é o único destinatário de direitos, que são inerentes à pessoa, caracterizados como inalienáveis e imprescindíveis. Assim, pode-se reclamar seu reconhecimento, respeito, tutela e promoção da parte de todos, e especialmente da autoridade nacional, o Estado (CARBONARI, [19]). Para que estes direitos humanos possam se realizar e serem reconhecidos dentro de um âmbito real, devemos ter em conta a democracia como forma de governo de um Estado. Nesse contexto, podemos dizer que o Estado cumpre um papel fundamental, visto que as autoridades devem, além de reconhecê-los - para que possa ser defendido -, colocá-los em prática, para que possam desenvolver-se em um ambiente próspero. E também, respeitados para que possam efetivamente proteger a dignidade humana. Por serem direitos universais, já que pertencem a todos os homens e mulheres, independentemente de seu tempo ou lugar2, garante-se a possibilidade de que diante de situações similares a solução seja sempre a mesma. Sua 1 Nesta obra, o autor traça uma linha de reflexões sobre o despertar da consciência social para os imperativos de proteção da pessoa humana e de reparação dos agravos contra esta perpetrados. Refere-se à tríade responsabilidade-perdão-justiça, como manifestação da consciência jurídica universal, esta última como fonte material de todo direito. Para uma melhor compreensão do tema de expansão dos regimes de proteção jurídica direitos humanos, ver também CANÇADO TRINDADE, 2006b. 2 Ver Declaração de Viena de 1993. Conferência Mundial de Direitos Humanos. A/CONF.157/23. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) internacionalização começou depois da segunda metade do século XX, através do desenvolvimento do direito internacional público, que veio a desenvolver estes direitos na arena internacional em fóruns internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e os tratados internacionais. Dentro do conjunto de assuntos direitos humanos, a escravidão e suas formas análogas foram os primeiros temas a despertar a atenção da comunidade internacional, visto que passaram de um modo de utilização do trabalho para um modo de exploração3. A escravidão se encontra tipificada como um crime contra a humanidade4. Diante dessa perspectiva, podemos observar que a escravidão contemporânea passou a ser um problema social que alcança níveis globais e cobra uma resposta adequada e coordenada para vir a alcançar resultados que venham a primar pelo respeito à dignidade humana. Neste presente estudo buscaremos verificar se o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) 5 é apresentado como uma resposta eficaz ao lamentável problema mundial do tráfico de seres humanos. Ou seja, buscaremos verificar se este plano corresponde a um resgate dos princípios de proteção direitos humanos, e se caracteriza como um mecanismo que prima pelo respeito aos direitos humanos. Para isso, faremos inicialmente uma breve contextualização do que vem a ser a escravidão contemporânea, na perspectiva de desrespeito aos direitos humanos, e analisaremos se os atores nacionais e internacionais oferecem resposta local como forma de combater um problema global. 1 Em plena era da globalização quando se ressalta tanto os direitos humanos, ainda pode se falar de escravidão? Depois da Segunda Guerra Mundial temos o estabelecimento dos direitos humanos no direito internacional decorrente da necessidade de se estabelecer documentos destinados à proteção do ser humano. Assim, podemos verificar a emergência desta temática em meados de século XX, através do desenvolvimento de muitos tratados e convenções internacionais. 3 Deste modo, a condição de escravo significa não dispor livremente de sua pessoa, com privação de seus movimentos, visto que este era considerado uma “coisa”, uma mercadoria, objeto e propriedade. Ver Finley, 1991; Saco, 1974. e Nabuco, 1998. 4 Conforme estabelecido pelo Estatuto de Roma de 1998 Parte II Art. 7. 5 DECRETO Lei N. 6.347/2008 - Aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP. 266 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Como um conjunto de princípios, direitos e deveres criados ao longo da historia6, os direitos humanos foram configurados por determinados acontecimentos e circunstancias que vieram a evidenciar a necessidade de um conjunto de valores que fossem comuns e viessem a proteger a dignidade de todos os Seres humanos, independente de sua condição social, política, religiosa, cultural, econômica, opção sexual, idade, etnia ou raça. Esses direitos conferem então a titularidade a todos os seres humanos, visto que são produto do desenvolvimento histórico da civilização e vem evoluindo juntamente com a mesma. Dentro da ordem social cumpre uma função determinada já que dão uma orientação necessária ao buscar salvaguardar direitos que formam parte de um bem comum dentro da sociedade, tendo como base a dignidade da pessoa e garantir o desenvolvimento necessário de todas elas. Seguindo esta busca por salvaguardar os direitos humanos, podemos observar que a definição de escravidão7 não foi, desde sua tipificação em 1926, substancialmente mudada. Manteve-se o conceito de propriedade, adicionado ao significado de privação de liberdade e uso para fins de lucro, no qual se exerce o controle absoluto sobre a vítima. Vale ressaltar que os elementos de controle e propriedade são essenciais para determinar existência ou não de escravidão. Tendo em conta que se trata de um processo que implica na violação sistemática de muitos direitos fundamentais - nos quais figuram como principais a privação do direito à liberdade e a segurança da pessoa8 temos neste contexto ausência do recebimento de um trato humano, tal como o direito a não ser submetido a práticas cruéis, inumanas ou degradantes. A complexidade e dinamismo do mundo contemporâneo evidenciam que, mesmo proibida, a escravidão segue existindo, e sendo cada vez mais diversificada e mascarada dentro da sociedade. Neste novo contexto, é possível alcançar mais lucro e menos gastos. Se fizermos um retrocesso ao tráfico negreiro de escravos, os encontramos aí como uma “mercadoria” cara e que gerava muito custo aos traficantes. 6 Por motivos que estão vinculados ao seu reconhecimento histórico, os direitos humanos podem ser classificados em diferentes formas, mas a classificação mais comum os separa em três gerações: 1ª - direitos. civis e políticos; 2ª - direitos. econômicos sociais e culturais; e, 3ª – direitos. da solidariedade. N.A. 7 A tipificação da escravidão internacionalmente aceita veio com a Convenção sobre a Escravidão de 1926, que foi considerada controvertida por parte da sociedade internacional por não especificar quais as práticas que podem ser consideradas escravidão, bem como estar em desacordo sobre as estratégias mais apropriadas para erradicá-la. O Convênio para Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição Alheia, de 1949, inseriu a questão do tráfico de pessoas e exploração sexual no marco da escravidão na Convenção Suplementaria sobre a Abolição da Escravidão, de 1956, o que vem a evidenciar a necessidade de ampliar a definição de escravidão existente. 8 Art. 9 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “$ 1… ninguém poderá ser privado de sua liberdade salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.” 267 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Muito do seu investimento era “desperdiçado” com a morte dos negros no transporte até as Américas. No atual contexto, temos uma grande oferta de “mercadoria” proveniente da exclusão social, que cai nas mãos das “máfias” que traficam pessoas que buscam melhorar sua qualidade de vida, sem compreender, na grande maioria dos casos, estão entregando sua liberdade e vida como produto a ser negociado, uma vez que estarão obrigadas a trabalhar, mediante ameaças psicológicas e/ou físicas. Serão convertidas em propriedade, compradas ou vendidas como propriedade de e por alguém que nega sua condição humana ao tratá-las como mercadoria9. 1.1 O Tráfico de Pessoas em seu Contexto Contemporâneo: a necessidade de salvaguardar os Direitos Humanos Desde princípios do século XX, o mundo vem presenciando o aumento de uma forma moderna de escravidão, tráfico de seres humanos, sendo o Tráfico de Pessoas a forma mais comumente difundida. Neste cenário, os traficantes contemporâneos violam massivamente os direitos humanos ao tratar a mulheres, crianças e homens como produtos básicos e ao explorar, comercializar e transportar através de fronteiras nacionais e transnacionais, como se fossem uma mercadoria ilegal, em similar a drogas e armas roubadas. Esse tipo de tráfico não relaciona somente a exploração sexual, mas também o abuso mediante o trabalho em condições semelhantes à escravidão e à servidão - tais como a prostituição forçada, a servidão doméstica, trabalho em fábricas e outros lugares com condições de exploração, assim como trabalhos agrícolas em regime de servidão-. Esses traficantes mantém suas vítimas submetidas através de dívidas que estas “têm” que pagar (a título de custo da viagem), confiscam seus passaportes (em geral o único documento que possuem ao viajar ao exterior), causam-lhes maus tratos físicos e psicológicos, assim como violações, torturas, e ameaças de deportação, além de ameaças aos seus familiares. Frequentemente, as vítimas se encontram isoladas do mundo exterior, já que desconhecem o idioma local, os costumes, e não têm documentos que as identifiquem. O Tráfico de Pessoas na atualidade pode ser considerado o equivalente moderno do tráfico de escravos do século XIX (Kevin Tessier, apud DOCONU: HR/PUB/02/, 2002, p. 19). Porém, no atual contexto contemporâneo, ele já não é “bem visto” (ou regulado) pelo Estado e comunidade interna9 “Para o antropólogo americano K. Bales (2000: 19-22), na escravidão contemporânea a pessoa é tratada como mercadoria, mesmo não havendo recibo, sendo ilegal e disfarçada”. Apud Figueira, 2004. p.41. 268 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas cional. Vem sendo condenado em função da emergência dos princípios de direitos humanos, que faz com que a escravidão (e suas formas análogas) seja vislumbrada como um ultraje a toda ordem, uma vez que a liberdade e dignidade da pessoa são usurpadas. Por conseguinte, cabe ao Estado proteger e salvaguardar o patrimônio individual de cada um, que por sua vez faz parte de um patrimônio coletivo, responsável pela manutenção de uma ordem social que prima pelo bem comum, respeito à liberdade, à dignidade, aos direitos e aos deveres. O aumento dos fluxos migratórios em nível mundial faz com que seja cada vez mais difícil controlar e vigiar o tráfico de pessoas. Existe a grande dificuldade de visibilizar esta violação aos direitos humanos, tornando o problema cada vez mais complexo, visto que em muitos dos casos as vítimas são camufladas em meio a uma massa de turistas. Pelo alcance transnacional do Tráfico de Pessoas, a alternativa de combate mais eficaz será aquela que soma os esforços nacionais ao internacional, por meio da cooperação internacional, de modo a defender o interesse comum, salvaguardar a dignidade humana. De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual e comercial no Brasil (2002, PESTRAF, LEAL) pode se perceber iniciativas coordenadas entre governos, organismos internacionais, organizações da sociedade civil e universidades, objetivando esclarecer distintos aspectos do tráfico de pessoas, como a identificação de rotas, causas, o papel da exclusão social, questões de gênero, os conflitos internacionais que geram uma grande massa de seres humanos fragilizados por distintas situações e que se tornam “presas fáceis” para as redes de tráfico e exploração sexual. Dentro desta configuração, o debate acerca do tráfico se encontra conduzido a partir de uma perspectiva de direitos, em que os países e organismos promovam “uma mudança de paradigma na atenção individual e coletiva no combate ao fenômeno, e na atenção às vítimas do tráfico, da violência do trabalho escravo, e de outras formas de violação dos direitos humanos.” (LEAL, PESTRAF, p. 29). Nas primeiras décadas do século XX os instrumentos internacionais10 relativos ao tráfico de pessoas estavam centrados em condenar os atos que 10 “Estos instrumentos eran el Acuerdo Internacional para asegurar una protección eficaz contra el tráfico criminal denom)inado trata de blancas, de 18 de mayo de 1904, entró en vigor en 18/07/1905, League of Nations Trety Series, vol. 1, pág. 83; o Convenio internacional para la represión de la Trata de brancas, de 4 de mayo de 1910, United Nations Treaty Series, vol. 98,p. 101; el Convenio internacional para la represión de la trata de mujeres y niños, de 30 de septiembre de 1921, League of Nations Treaty Series, vol. 9, p.415 (entró en vigor para cada país en la fecha de su ratificación o adhesión); y el Convenio Internacional para la represión de la trata de mujeres mayores de edad, de 11 de octubre de 1933. La Sociedad de las Naciones elaboró en 1937 un nuevo proyecto de convenio, pero no fue aprobado.” HR/PUB/02/4, op. cit. p. 20. 269 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) envolvessem o transporte ilegal de mulheres e crianças através de fronteiras internacionais com fins de prostituição. A Convenção sobre Escravidão de 192611, apesar de ser marco jurídico internacional sobre a Escravidão, no tocante ao Tráfico não apresenta nenhuma definição inovadora ou qualquer traço que venha a merecer destaque a este presente estudo. Já a Convenção para Repressão do Tráfico de Pessoas e Lenocínio12 de 1949, conseguiu promover a unificação dos instrumentos jurídicos anteriores e definir como delito a exploração da prostituição13 ao ressaltar a não importância do consentimento da vítima e também, o fato de não ser necessário cruzar fronteiras para ser caracterizado como tráfico de pessoas. Ainda, obriga os estados membros a adotarem os meios necessários para proteger as vítimas e a ajustarem suas legislações internas14. Uma das fortes limitações deste Convênio foi vincular o tráfico à prostituição, restringindo assim a exploração do trabalho apenas à esfera sexual15. Observamos que o a Convenção de 1949 busca valorizar a dignidade do ser humano, como o bem afetado pelo tráfico. Já que este, coloca em ameaça o bem-estar tanto do individuo, como da família e da sociedade. A Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura de 195616 tampouco traz um avanço conceitual ao tema do tráfico, ela segue condenando o tráfico de escravos como um delito e exige aos estados que fomentem um intercâmbio de medidas para combatê-la. 11 “todo ato de captura, aquisição ou disposição de uma pessoa com intenção de submetê-la à escravidão; (...) cessão por venda ou troca de uma pessoa, adquirida com intenção de vendê-la ou trocá-la, e em geral, todo ato de comércio ou de transporte de escravo”. Convenção sobre a Escravidão de 1926, parágrafo 2 do artigo Primeiro. 12 A versão consultada para o presente foi a versão em espanhol: Convenio para la represión de la trata de personas y de la explotación de la prostitución ajena, 1949. Adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua resolução 317 (IV), de 2 de dezembro de 1949. Entrada em vigor: 25 de julho de 1951. Este foi ratificado pelo Governo brasileiro em 05/10/1951 e promulgada pelo decreto nº 46.981, de 08/10/1959. 13 “Las Partes en el presente Convenio se comprometen a castigar a toda persona que, para satisfacer las pasiones de otra: 1) Concertare la prostitución de otra persona, aun con el consentimiento de tal persona; 2) Explotare la prostitución de otra persona, aun con el consentimiento de tal persona.” Art. 1. 1. do Convenio para la Represión de la trata de 1949. 14 Art. 17 15 DOC-NU: E/CN.4/2000/68 (2000), parágrafo 13 – Informe da Sra. COOMARASWAMY, Radhika (Relatório especial sobre a violência contra a mulher, com inclusão de suas causas e consequências, sobre a trata de mulheres, a migração de mulheres e a violência contra a mulher, apresentado conforme a resolução 1997/44 da Comissão de Direitos Humanos). 16 Do original em Español: Convención Suplementaria sobre la Abolición de la Esclavitud, la Trata de esclavos y las instituciones y prácticas Análogas a la Esclavitud. Adotada por una Conferencia de Plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social na sua resolução 608 (XXI), de 30/04/1956. Em Genebra 07/09/1956, com entrada em vigor: 30/04/1957. Ratificada pelo Brasil, mediante o Decreto Nº 58.563, de 01/06/1966. 270 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Em virtude da necessidade de ampliar a definição do tráfico, de forma que englobasse também as formas de captação e o movimento transfronteiriço de pessoas com a finalidade de exploração, foi elaborada uma resolução da ONU17 que condena estas práticas. Com o objetivo de promover a cooperação entre os Estados para o combate conjunto do tráfico como um crime de caráter transnacional foi realizada uma série de estudos que resultou em instrumento jurídico de combate ao crime internacional organizado: a Convenção das Nações Unidas contra a Delinquência Organizada Transnacional18. Esta vem a representar um importante passo no combate ao crime organizado internacional, já que os países se comprometeram a prestar assistência mútua entre os Estados partes estabelecendo medidas práticas que facilitem a cooperação judicial19, investigações conjuntas20, técnicas especiais de investigação21 políticas públicas de controle, vigilância, apoio e combate aos delitos tipificados em seu artigo primeiro. Para Gallanger esta decisao representa a primeira tentativa séria por parte da comunidade internacional de utilizar as armas do direito internacional em sua batalha contra a delinquência organizada transnacional (DOC-ONU: HR/PUB/02/. 2002, p. 23). Podemos observar que a Convenção de Palermo oferece um enfoque verdadeiramente global e confere a base jurídica internacional para o combate ao crime organizado. Oferece também incentivo aos Estados a adotarem internamente mecanismos necessários para que este tipo de crime seja 17 A/RES749/166 de 24 de febrero de 1995: “el movimiento ilícito y clandestino de personas a través de las fronteras nacionales o internacionales, principalmente de países en desarrollo y algunos países con economías en transición, con el fin último de forzar a mujeres y niñas a situaciones de opresión y exploración sexual o económica, en beneficio de proxenetas, tratantes y bandas criminales organizadas, así como otras actividades ilícitas relacionadas con la trata de mujeres, por ejemplo, el trabajo doméstico forzado, los matrimonios falsos, los empleos clandestinos y las adopciones fraudulentas”. (Preámbulo 5) (94ª sesión plenaria 23/12/1994). 18 A Convenção das Nações Unidas contra a Delinquência Organizada Transnacional, também conhecida como Convenção de Palermo, foi suplementada por três protocolos: Protocolo para Prevenir, Eliminar e Castigar o Tráfico de Pessoas, especialmente mulheres e crianças; Protocolo contra o Contrabando de Imigrantes por terra, ar e mar; y, Protocolo contra fabricação ilegal e o trafico de armas de fogo, incluso peças, acessórios e munições. Foi realizada em Palermo, Itália, em 2000. Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 15 de Novembro de 2000, mediante a Resolução: A/RES/55/25. Tal convenção foi ratificada pelo Brasil, foi promulgada por meio do Decreto 5.015 de 12 de Março de 2004. 19 Conforme determina o art. 18 “Os Estados prestarão a mais ampla assistência judicial recíproca a respeito das investigações, processos e atuações judiciais relacionadas com os delitos compreendidos na presente Convenção.” 20 Art. 19 “... as investigações conjuntas poderão ser realizadas mediante acordos concertados caso a caso. Os Estados Parte participantes velarão para que a soberania do Estado Parte, em cujo território haja sido efetuada a investigação seja plenamente respeitada”. 21 Art. 20 “… a utilização de outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou de outra índole e as operações encobertas, pelas suas autoridades competentes em seu território com objeto de combater eficazmente a delinquência organizada.” 271 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) combatido eficazmente. Exemplo disto é a afirmação que são os “mínimos obrigatórios aos Estados partes” 22. Desta Convenção surge o Protocolo para Prevenir, Eliminar, Castigar o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças – Protocolo de Palermo. 1.2 Protocolo de Palermo: Uma ferramenta para salvaguardar os direitos humanos no tráfico de Pessoas O Protocolo de Palermo surge como uma necessidade de resposta frente aos novos desafios e metas que se apresentam no mundo globalizado, bem como às complexidades da vida contemporânea. Com a assinatura e ratificação deste Protocolo, a comunidade internacional se direciona a assegurar que o crime do tráfico de pessoas seja reconhecido universalmente. Segundo Raymond (2002, p. 491) este Protocolo instaura uma linguagem e uma legislação global para definir o tráfico de pessoas. Os Governos que o assinaram concordam que o tráfico de pessoas é um grave problema internacional e não é o mesmo que introduzir imigrantes ilegalmente23. Na comunidade internacional considera-se que o Protocolo de Palermo expressa uma opinião moderna e progressista abafada, e manifesta também, a realidade um tanto escondida do crime de tráfico. Ele engloba todas as formas do movimento documentado e não-documentado de pessoas através ou dentro das fronteiras, por qualquer meio cujo objetivo seja a exploração. O Protocolo de Palermo pretende tipificar o crime do tráfico de pessoas por meio da clara definição do que vem ser esta prática24. Visa o estabelecimento de uma legislação global para o tema, por meio de uma harmonização entre as legislações nacionais, regionais e internacionais 25. Busca promover a assistência às vitimas26, a prevenção27, e os intercâmbios de informação entre países28. 22 Para este assunto, Sandro Calvani, representante da Oficina de las Naciones Unidas Contra la Droga y el Delito (UNODC), Bogotá Colombia, faz um comentário pormenorizado sobre a Convención de las Naciones Unidas Contra la Delincuencia Organizada Transnacional. http://www.sandrocalvani.com/ speech/Conv.%20Palermo.pdf) 23 A partir deste Protocolo definiu-se trafficking como tráfico com fins de exploração seja para fins sexuais, laborais ou trabalhos forçados e smuggling para tráfico ilegal de pessoas, tal como se pode observar no art. 3 do Protocolo de Palermo. Para maiores comentários, ver Gallagher, 2001, p. 25-27. 24 Cf. Art. 3 25 Art. 2, 4, 5, 7 e 8 26 Art. 6 27 Art. 9 28 Art. 10 272 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Neste Protocolo, pode se perceber a extensão da busca da defesa dos direitos humanos, ao concertar a proteção e assistência às vitimas, com os recursos da prevenção, perseguição, repressão e cooperação judicial com vistas a salvaguardar os direitos da pessoa humana. O referido Protocolo, define o tráfico como: a) A captação, transporte, translado, recepção de pessoas, recorrendo a ameaça ao uso da força ou outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma situação de vulnerabilidade ou a concessão ou recepção de pagos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, com fins de exploração. Essa exploração incluirá, como mínimo, a exploração da prostituição alheia ou outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou as praticas análogas a escravidão, a servidão ou a extração de órgãos; b) o consentimento dado pela vítima da trata de pessoas a toda forma de exploração que se tenha a intenção de realizar (...) não se terá em conta quando haja recorrido a qualquer dos meios enunciados neste apartado; e c) a captação, o transporte, o translado, a acolhida o a recepção de uma criança com fins de exploração se considerará “tráfico de pessoas” incluso quando não se recorra a nenhum dos meios enunciados no apartado a) do presente artigo.29 Deste modo, a definição do tráfico contém três elementos30 separados que se interrelacionam, já que é uma ação que assentada na captação, transporte, acolhida/recepção de pessoas. Utiliza-se da ameaça31, da força ou de outras formas de coação, do rapto, da fraude, e do engano, do abuso de poder ou de uma situação de vulnerabilidade, bem como da concessão ou da recepção de pagos ou de benefícios, para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra. Tem como fim a exploração, incluindo, no mínimo, a exploração da prostituição alheia ou outras formas 29 Cf. Art. 3 do Protocolo de Palermo – DOC. UN - A/RES/55/25. 30 “1. Captación, transporte, traslado, acogida o recepción de personas; 2. Uso de la amenaza; 3.Fines de explotación” CEPAL, 2003. p. 46. A mesma questão é destacada em: DOC-ONU: HR/PUB/02/. op. cit. p. 23. 31 Idem: “El segundo elemento de esta definición establece una asociación entre el Protocolo sobre la trata y los instrumentos internacionales anteriores relativos a la esclavitud, por cuanto entre los medios mencionados figuran la amenaza o el uso de la fuerza u otras formas de coacción La definición de situaciones de abuso en el Protocolo sobre la trata va más allá de los medios de control y coacción mencionados en las convenciones sobre la esclavitud para incluir el engaño y el abuso de poder y la vulnerabilidad.” 273 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou suas práticas análogas, assim como a servidão ou a extração de órgãos. Segundo a tipificação do Protocolo de Palermo, o tráfico de pessoas se encontra configurado sob dois aspectos: o material, mediante condições objetivas tais como o recrutamento, pagamentos ou benefícios de transporte e alojamento de pessoas; e o subjetivo (formas de coação), com a sedução, submissão, escravidão. Estes dois, somados aos indicadores macro-sociais, podem ajudar a compreender as várias dimensões existentes no tráfico de seres humanos e as razões que determinam sua resistência. Essa estrutura de exploração é retroalimentada devido à demanda existente nos países de destino por “novidade no mercado sexual”, por necessidade de “mercadoria exótica fresca”, abusando-se, assim, da situação de vulnerabilidade (pouca ou nenhuma chance de ascensão social, desemprego, pouco qualificação profissional, etc.) a que estão submetidas muitas mulheres em seus países de origem. O Protocolo de Palermo confere às pessoas traficadas, sejam mulheres, crianças ou homens, a denominação de vítimas e não delinquentes. Todas estas ficam protegidas pelo Protocolo, sendo seu consentimento ao tráfico um fator irrelevante, já que a exploração é o elemento chave no processo de tráfico32. Deste modo, temos a visão da vítima como sujeito portador de direitos, e nessa trabalhando a perspectiva dos direitos humanos, na qual se afirma a garantia dos direitos humanos fundamentais como o princípio orientador da explicação e do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial. Tem-se então uma visão inclusiva e baseada nos princípios fundamentais que advogam que todas as vítimas sejam protegidas. Raymond (2001) declara que devemos fazer uma interpretação responsável do Protocolo para que o ele possa ser efetivamente utilizado como suporte para as novas legislações sobre o tema, seja em nível nacional, regional ou internacional. Assinala também que é preciso separar a questão do tráfico da prostituição33, ainda que exista uma relação direta entre eles. Outro ponto interessante e a questão de penalizar aos compradores, “mudar o comportamento masculino”, com políticas de igualdade de gênero, meios 32 “Do ponto de vista jurídico, a pessoa traficada para fins de exploração sexual é vítima, ou seja, sujeito passivo do ilícito penal e/ou pessoa contra quem se comete o crime ou contravenção. A dimensão social, por seu lado, tenta desgarrar esta percepção vitimizadora, a fim de não reforçar a ideia de submissão e de ênfases no lado apenas subjetivo e moralista da questão” (PESTRAF, 2002, p. 46). 33 Neste ponto incide que é necessário voltar a incluir a prostituição nas agendas políticas e combater a tendência a legalizar/regular a prostituição como trabalho. 274 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas educativos e culturais, através de uma legislação que penalize os homens pelo delito de exploração sexual. Para Jesus (2003, p. 9)34 um dos principais aspectos sugeridos pelo Protocolo é a referência aos inumeráveis e separados abusos cometidos durante o curso do tráfico, bem como a concessão de garantias às vítimas que elas não sejam tratadas como criminosas. Enfatiza o tráfico de crianças e o considera um capítulo separado, dentro do foco conferido à Convenção sobre os direitos das crianças35 e seus protocolos opcionais. Aponta, ainda, que o trabalho forçado e outras práticas similares de escravidão devem todos ser englobados dentro do conceito de tráfico. Já para Leal (2002, p.44), esta tipificação jurídica feita no Protocolo comprova sua orientação limitada, uma vez que este se encontra caracterizado pelo uso da violência, pelo abuso de autoridade e pela coação. Deste modo, Não se permite uma descrição mais detalhada das pressões estruturais e das estratégias de ação subjetivas inerentes ao fenômeno. É muito genérico, preso ao texto da violência criminal e fora de lugar de uma analise macro-social e cultural do fenômeno. Para essa autora trata-se de uma definição ampla que não leva em consideração a idade e o sexo. Segundo seu posicionamento, para um incremento da tipificação do tráfico seria necessário definir a exploração sexual comercial como: “... uma violência sexual que se realiza nas relações de produção e mercado (consumo, oferta e excedente) através da venda dos serviços sexuais das crianças e adolescentes pelas redes de comercialização do sexo, por pais ou similares, ou por via do trabalho autônomo. Esta prática é determinada não apenas pela violência estrutural (plano de fundo), como pela violência social e interpessoal. É o resultado, também, das transformações ocorridas nos sistemas de valores arbitrados nas relações sociais, especialmente o patriarcalismo, o racismo, e a separação social, antíteses da ideia de emancipação das liberdades econômico/culturais e das sexualidades humanas” De acordo com o Informe da Guarda Civil Espanhola, de 2003/2004, a complexidade do fenômeno do tráfico de pessoas se deve ao fato de referirse a condutas criminais heterogêneas que têm como objetivo comum a exploração de pessoas em suas distintas formas se destacam: prostituição, 34 Esses possíveis abusos sofridos pelas vítimas também se encontram destacados em: OIT, Trafico de pessoas para fins de exploração sexual, Brasília, 2006, p. 61. 35 Adotada pela AG/NU em 20/11/1989, ratificada pelo Brasil em 21/11/1991. 275 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) exploração laboral, adoção ilegal, venda de crianças, pornografia infantil ou trafico de órgãos. (ESPAÑA, Informe Criminológico Tráfico de Seres Humanos, 2003/2004, p. 3). Entretanto, podemos observar que essa definição fica sujeita a críticas por traduzir tipificação muito genérica para ao Tráfico, por estar mais “presa ao texto da violência criminosa e fora de lugar em uma analise macro-social e cultural do fenômeno” (Leal, 2002, p. 44). Também o referido Protocolo falha em não definir quais são as formas consideradas coercitivas, ou o que se considera por “uma situação de vulnerabilidade”, de “a exploração sexual dos outros” e “outras formas de exploração sexual” (PISCITELLI, 2004, p. 7). Apesar de que o Protocolo tenha a devida representatividade na arena internacional, ainda não se encontra totalmente incorporado às normas internacionais de direitos humanos, de modo a garantir a todas as pessoas traficadas o acesso a justiça e serviços de assistência básica (albergue temporal, serviço médico-psicológico e alimentação). É válido ressaltar a notável atuação de muitos países na busca pela prestação serviços de assistência legal e proteção temporária às vitimas. Também, merece devido destaque a atuação de outros atores, como as Organizações não Governamentais (ONGs) que são os atores que têm relevante papel por estarem diretamente em contato com a vítima e garantir-lhes os serviços de assistência legal, social, econômica, psicológica e sanitária. Também atuando, tanto no âmbito da prevenção quanto na articulação dos Estados, temos as organizações internacionais que buscam funcionar como interlocutores e, em alguns casos, como agentes de promoção da política que o Estado deve desenvolve. Nestas duas esferas comparecem articulação da OIT como interlocutor entre a sociedade e o Estado, e da ONU, por meio do UNDOC, como agente dos mecanismos internacionais de promoção dos direitos humanos, ambos organismos convidando os Estados a harmonizar suas legislações e a se cooperarem internacionalmente de modo que venham a erradicar todas formas de Escravidão e a promover a defesa da dignidade humana. Diante do contexto apresentado sobre Tráfico de Pessoas, podemos perceber que houve avanços conceituais significativos, tanto em nível internacional quanto em nível nacional, estes últimos fundamentados na busca de estruturas internas que possibilitaram internalizar os mecanismos internacionais. Todavia, faltam ainda mecanismos e ações mais contundentes, no campo da repressão, da visibilização do tráfico como crime e, de prestação de assistência às vitimas. 276 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Em muitos países (EUA, Itália, Bélgica, França, Espanha, Suécia), o Tráfico de Pessoas foi reconhecido como delito e violação grave dos direitos humanos. Foram ratificados convenções e protocolos internacionais e, ainda assim, o Tráfico de Pessoas, nestas localidades, segue crescendo. Para Skrobanek, Boonpakdi e Janthakeero (1997), algumas das razões pelas quais as legislações nacionais ou internacionais não são eficazes no combate ao tráfico de mulheres, porque as leis não são aplicadas aos beneficiários e traficantes, não se atacando, assim, diretamente a demanda e as vítimas. A situação de clandestinidade (ou ilegalidade) em que se encontra a maioria dessas mulheres também dificulta a investigação porque as mulheres vítimas não delatam seus maltratadores. A esta situação, acrescenta-se o fato de que as prostitutas não são consideradas merecedoras de credibilidade pelos tribunais, mesmo quando depõem frente aos acusados, em acareações ou não. Tais situações também são reconhecidas pela PESTRAF. O Protocolo de Palermo reconhece a necessidade de que a proteção dos direitos humanos e a ajuda prestada às vítimas sejam frutos da integração entre as políticas de prevenção, perseguição e punição aos traficantes, mediante uma cooperação judicial efetiva. Afinal, é sabido que quando aliciadas e sujeitas a um regime de exploração em outro país, as vítimas dificilmente conseguem sair do circulo mafioso que se encontram. Urge que os estados e demais entidades envolvidas no combate ao tráfico busquem salvaguardar a proteção e conferir um tratamento devido às vitimas36. Neste sentido, podemos observar a articulação do Estado brasileiro tanto provocando o debate dentro da sociedade civil, quanto articulando com outros atores internacionais (a exemplo do Escritorio das Naçoes Unidas Sobre Drogas e Crime -UNODC e da OIT) e também capacitando profissionais para o enfrentamento deste problema. 36 A OIT assinala como padrões mínimos de proteção e tratamento das vitimas: principio da nãodiscriminação; segurança e tratamento justo; acesso à justiça – observar os direitos das vítimas que são violados; direito à propositura de ações civis, indenizações; estatuto de residente e, saúde e outros serviços. Organização Internacional do Trabalho, 2006. p 41. 277 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 2 Legislação brasileira: lacunas para o crime? O Brasil foi um dos 120 países que assinaram a Convenção e o Protocolo de Palermo. Ambos foram assinados em 2000 e ratificados em 200437. Essas ratificações significam que o País vem adaptando sua legislação interna e promovendo políticas públicas no sentido do combate ao crime organizado, e consequentemente ao tráfico de pessoas, práticas de escravidão e suas formas análogas. A exemplo disto comparecem as sucessivas alterações sofridas pelo Código Penal de 194038 e sua reforma em 2005, especialmente no que diz respeito ao tráfico39 internacional de pessoas. Até a aprovação da Lei n. 11.106, de março de 2005, somente considerava a mulher como sujeito passivo. A assinatura de tratados internacionais e multilaterais, e a consequente incorporação destes ao ordenamento jurídico fez com que a regulação normativo-jurídica do sobre o tráfico de seres humanos seja restringida a fins de exploração sexual, à prostituição. Isso significa que a legislação atual revela necessidade de sofrer profundas modificações, especialmente no que diz respeito às medidas jurídicas efetivas de proteção do traficado e de responsabilização do traficante. Explicando, artigo 231 do CP brasileiro, define o tráfico internacional de pessoas quando: Promover, intermediar ou facilitar a entrada, em território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro. 40 O Art. 131 do CP foi alterado por meio da Lei n.11.106 de 200541, ampliando a definição para todos os gêneros e idades e, acrescentado o Art. 131-A que caracteriza o tráfico interno de pessoas. 37 Foi Promulgado no Brasil, através do Decreto nº 5.017, de 12 de Março de 2004. Sobre a incorporação de normas jurídicas internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro, ver PIOVESAN, 2002 e CANÇADO TRINDADE, 1996. 38 O Tráfico Internacional encontra-se tipificado no ordenamento jurídico brasileiro desde a edição do Código Penal Republicano, de 1890, em seu art. 278, como a seguir: Induzir mulheres, seja abusando de sua debilidade ou miséria, seja provocando-lhe o constrangimento por intimidações ou ameaças a se utilizar no tráfico da prostituição. Do CP de 1890 ao de 1940, podemos observar que a legislação brasileira continuou a restringir a tutela penal ao sexo feminino. Com a modificação do art. 231 do CP de 1930, mediante a Lei n. 11. 106, de 28 de março de 2005, o tráfico deixa de ser restrito às mulheres, alcançando qualquer pessoa, seguindo as orientações do Protocolo de Palermo. 39 O CP brasileiro utiliza o termo tráfico para fazer referencia a qualquer tipo de translado de pessoas. Somente a partir de maiores debates e discussões de políticas públicas em 2006 começou a utilizar tráfico para fazer referência à exploração sexual. 40 Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005 que altera os arts. 231 (entre outros) e acrescenta o art. 231-A (do tráfico interno de pessoas). 41 “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”. LEI Nº 11.106, DE 28 DE MARÇO DE 2005 Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. 278 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Desse modo, ampliou a tipificação para todas as pessoas, mas continuou restrito em relação à questão do exercício da prostituição. Para Wiecko (2006, p 1-6), no Código Penal Brasileiro existem três situações em que o trânsito de pessoas se encontra tipificado: 1- nos términos do art. 231 do CP promover e facilitar42 a entrada ou saída de pessoas no território brasileiro constitui tráfico no caso de ter como objetivo a prostituição, e, a pena consiste em privação de liberdade (3 a 8 anos) – Tendo como objetivo o lucro, também se aplicará multa; 2 – com base no art. 207 do CP, o recrutamento ilegal de trabalhadores constitui fraude, está dominado como agenciamento (o ato de recrutar a mulher com objetivo de exploração) para fins de emigração, e tem como punição a condenação de privação de liberdade (1 a 3 anos), podendo ser substituída por pena restritiva de direitos; 3 – situações tipificadas no art. 245 do CP, referentes ao menor, que neste presente estudo não se configura como objeto de análise. No tráfico de pessoas se encontra mais de um sujeito do delito (Noronha, 1986, p. 275), pois entre o recrutamento, tramitação de documentos necessários para a viagem e sua realização (as vezes como acompanhante, outras como subsidiando o bilhete e outros custos), recepção, alojamento e colocação nos prostíbulos para a exploração, as vítimas do tráfico contatam com mais de um agente criminal. Segundo a legislação brasileira, no seu art. 29 do CP, a participação em qualquer de uma dessas etapas implica na culpabilidade, que envolverá algum nível de participação no tráfico. Para a doutrina, as formas ilícitas de obter o consentimento de uma pessoa também são delitivas, embora os abusos de situação de vulnerabilidade, pressão psicológica e corrupção no âmbito privado não estejam nela contempladas. O crime do Trafico de Pessoas deve ser praticado intencionalmente e de forma a obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material. Acrescenta-se a isso a obrigação de considerar como agravantes das infrações estabelecidas as circunstâncias que coloquem em perigo ou ameacem pôr em perigo a vida e a segurança dos emigrantes; bem como culminem ao tratamento desumano ou degradante deles, incluindo exploração. (WIECKO, 2006, p. 8). Jesus (2003, p.101) considera o tráfico de mulheres um crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa, sem distinção de gênero), instantâneo (se consuma com a entrada ou saída da mulher do território nacional, 42 “Promover: significa causar, diligenciar para que se realize. Enquanto Facilitar: tornar mais fácil, auxiliando, ajudando ou desenvolvendo”. JESUS, 2003, p. 89. 279 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) sem continuidade temporal definida), e pluri-subsistente (pois são necessários vários atos do sujeito para sua configuração de condenação. Por seu caráter extraterritorial, nos términos do § 2º do art. 7 do Código Penal, se encontra fixado, exigindo para a aplicação a lei brasileira o concurso das seguintes condições: a) entrar o agente em território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não haver sido o agente não condenado no estrangeiro ou não ter ali cumprido a condena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro, ou por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável (JESUS, 2003, p. 106). No atual contexto, pode-se perceber que a legislação brasileira vem passando por algumas modificações objetivando tanto tutelar a dignidade do ser humano (WIEKO, 2006, p. 11), quanto harmonizar-se com o Protocolo de Palermo. Porém, ainda se faz necessário construir um tipo básico para o tráfico de pessoas e os tipos derivados, conforme a finalidade da exploração e não conforme os sujeitos passivos. Esta solução vem sendo elaborada pelos legisladores mediante a criação de um capítulo específico que abarque os crimes contra a dignidade da pessoa humana43. Diante do exposto, podemos perceber a carência de uma legislação “mais dura”, mais repressiva, com penas mais pesadas, que venham a incluir, além da reclusão de no mínimo cinco anos, um valor significativo de multa a ser pago à vítima do tráfico como reparação, e o confisco de bens sob investigação jurídica por prática de crime organizado internacional.44 Percebe-se, também, a falta de harmonização com o Protocolo de Palermo - principal referência internacional sobre o Tráfico - que recomenda levar em consideração os movimentos de pessoas que usam a coerção ou engano e que exploram ou violam os direitos humanos da pessoa envolvida no processo do tráfico. Neste sentido destacamos que no Tráfico de Pessoas o objeto de tutela jurídica é a moral pública sexual. O traficante é o sujeito ativo, e a condição moral da vítima não é relevante. A promoção ou facilita- 43 Ver Anteprojeto de 1992 de Reforma da Parte Especial do Código Penal. A proposta classificava como crimes contra a dignidade da pessoa humana os crimes relativos ao estado de escravidão; os crimes em matéria de prostituição; os crimes de comércio do corpo humano de pessoa viva, entre outros. Do mesmo modo aponta Leal (2002) sobre a necessidade do mudar o sentido que o restringe a prostituição, para o de exploração sexual, e do conceito restritivo de coação ou ameaça para o conceito mais amplo de abuso, que gera a situação de vulnerabilidade da pessoa traficada, cabendo aos estados a proteção das vítimas. PESTRAF, 2002, p 187. 44 As penas na Itália variam de 8 a 20 anos, e também está prevista a multa. Na Bélgica também o período vária de 5 – 15 anos. Já na Áustria, pode ir até 10 anos (nos casos de tráfico com fins de exploração). (DOC-ONU: HR/PUB/02 - Op. cit. p. 90 –93). Na Espanha são estabelecidas penas de 2 a 4 anos (Cf. Art. 188, CP Español). 280 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas ção da entrada ou saída da vítima são motivos suficientes para configurar a existência do tráfico, não existindo a forma culposa do tráfico, ou seja, por negligência, imperícia ou imprudência, podendo o Ministério Público suscitar uma Ação Penal Pública. Ainda que a mulher consinta em seu deslocamento para exercício da prostituição, deve-se reprimir a prática do tráfico sexual, mesmo com a anuência desta, já que a vitima não tem real noção sobre as condições a que estará submetida para o exercício do seu trabalho, e a isto denomina-se fraude. Recomenda ainda, não reduzir o Tráfico à exploração sexual mas considerar vítima qualquer pessoa que esteja sob uma situação vulnerável, submetida à escravidão ou a práticas análogas. 2.1 O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos: Prima pelo respeito aos Direitos Humanos? A reação brasileira de combate ao Tráfico de Pessoas é uma ação conjunta formada de um lado, pela parte governamental, composta por um grupo de trabalho interministerial45 e, por outro, pela representação de outros atores importantes, formados pela sociedade civil, seja através de ONGs, especialistas, ou mesmo pela colaboração de organismos internacionais, como a OIT e o UNDOC. Por meio do Decreto nº 5.948 de 26 de outubro de 2006 foi aprovada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e também instituído o grupo interministerial formado por 14 órgãos federais, cujo objetivo era o estabelecimento de princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas 46, com vistas à aplicação dos conceitos do Protocolo de Palermo. Com essa política, a tipificação do Tráfico de Pessoas não sofre alterações legais em comparação com os documentos já internacionalmente aceitos. Os princípios e diretrizes dispostos em seu Capítulo II também respeitam os preceitos de dignidade da pessoa, a não discriminação por gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça, religião, situação geográfica ou outro status. Também visa garantir proteção e assistência integral às vitimas, promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos, 45 Conforme o Decreto Lei 5.948 de 26/10/2006: “Art. 3o O Grupo de Trabalho será integrado por um representante, titular e suplente, de cada órgão a seguir indicado: I - Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; II - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República; III - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; IV - Casa Civil da Presidência da República; V - Ministério da Justiça; VI - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; VII - Ministério da Saúde; VIII - Ministério do Trabalho e Emprego; IX - Ministério do Desenvolvimento Agrário; X - Ministério da Educação; XI - Ministério das Relações Exteriores; XII - Ministério do Turismo; XIII - Ministério da Cultura; e XIV - Advocacia-Geral da União.” 46 Art. 1º do Decreto n. 5948 de 26 de outubro de 2006. 281 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos e enfatiza a necessidade de atuação em rede. Com o objetivo de constituir uma norma de conduta, as diretrizes47 desta política, formatam ações que incentivam programas de cooperação, de articulação local e global de distintos atores que compõem as operações internacionais, de assistência devida às vitimas e sua reinserção social, de incentivo à formação e capacitação de profissionais para a prevenção e repressão ao tráfico de pessoas. Na Seção III, são definidas medidas de prevenção48, repressão49 e atendimento às vítimas50. Desse modo, observamos a preocupação em cobrir os três eixos de combate ao tráfico de pessoas, tal como já ocorre na arena internacional. Dando seguimento ao combate ao tráfico de seres humanos, foi elaborado o PNETP, que visa pôr em prática as diretrizes, políticas e ações devidas para implementação, no cenário nacional, das medidas necessárias para atuar de forma efetiva no combate ao Tráfico de Pessoas. Este Plano, tal como definido pelo próprio Ministério da Justiça, é fruto de um trabalho que vem amadurecendo há alguns anos no âmbito do governamental e da sociedade brasileira e culmina com a realização da Política Nacional de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em junho de 2006 com vistas a “servir de ferramenta para um enfrentamento mais efetivo ao tráfico de pessoas no Brasil”. (PNETP, p.6). Desse modo, o Plano Nacional resultou de debates, realizados desde o fim de 2006 até 2007, que contaram com a participação de instituições do Estado e entidades da sociedade civil, tal como define o Decreto nº 6.347 de 08 de janeiro de 2008, o PNETP como um todo deve ser executado no prazo de dois anos. Seu objetivo é combater todas as formas de Tráfico de Pessoas, independente de seus fins, seja trabalho escravo ou exploração sexual ou laboral. Porém, para o presente estudo nos limitamos aos elementos relativos ao Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual, o tráfico de mulheres51. 47 Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Seção II, Art. 4 48 Idem, art. 5º 49 Ibidem, art. 6º 50 Ibidem, art. 7º 51 É válido ressaltar que entre os alvos do Plano está a criação de centros públicos de intermediação de mão-de-obra rural, para evitar o aliciamento de trabalhadores por gatos (contratadores de serviço a mando de fazendeiros) nas cidades com alta incidência do problema. Também estão previstos estudos para identificar a dimensão e a natureza do aliciamento e de outras formas de tráfico de pessoas. 282 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Diante do exposto, percebemos que num primeiro momento o PNETP, pretende colocar em prática os acordos internacionais a respeito do tema do Tráfico, com formas específicas de atuação, buscando visibilizar o crime para assim diminuir a vulnerabilidade das vítimas. Ao mesmo tempo, a realização de debates evidencia a preocupação e a necessidade de adequar a legislação nacional à normativa internacional. Foi instituído o Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do Plano, sendo uma espécie de comissão formada por membros de distintas instâncias governamentais52, além de membros da sociedade civil, conforme disposto no referido Decreto nº 6.34753. Esse Grupo tem a função de definir as linhas de trabalho para que o Estado possa intervir de forma mais concreta e inter-setorialmente (PNETP, 2008, p. 1-2). Este Plano apresentado à sociedade brasileira e internacional no ano de 2008 possui prazo de execução determinado para dois anos54. Todavia, ainda é muito cedo para fazer uma análise de seus impactos no cenário brasileiro. Contudo, podemos perceber como foi preliminarmente exposto, que se trata de um projeto ambicioso, que visa a atacar os três âmbitos do tráfico (Prevenção, Repressão e Assistência) podendo contribuir de forma muito positiva no combate eficaz dessa mancha social. Com a Política Nacional e o PNETP, o governo brasileiro busca produzir internamente a harmonização da legislação com as exigências internacionais de combate ao Tráfico de Pessoas e proteção dos direitos humanos. Tal como vimos anteriormente, este processo se encontra em fase inicial de debate e reforça a opinião de que a legislação brasileira ainda necessita de mudanças, que segundo as prioridades da PNETP serão encaminhadas ao Grupo de especialistas, para estudar posturas mais incisivas quanto às penas e contra as “máfias” e redes de agenciamento. Observa-se, também, que com a delimitação das prioridades se conhecem as lacunas existentes para o combate mais forte ao Tráfico de Pessoas e a busca de acordos de cooperação entre os países amplia o espaço para a 52 Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do PNETP, instituído no âmbito do Ministério da Justiça, é constituído pelos seguintes órgãos: Ministério da Justiça, que o coordena; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ministério da Saúde; Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Educação; Ministério das Relações Exteriores; Ministério do Turismo; Ministério da Cultura; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da Republica; e Advocacia-Geral da União. PNETP, p. 18 53 Decreto Lei nº 6.347 de 08/01/2008 - Além de aprovar o PNETP, também institui Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano 54 O Presente artigo foi escrito em Outubro de 2008, momento em que todavía no se conhece os impactos do Plano, resultados que seram apresentados pela Coordenaçao do mesmo somente ao final do seu prazo de execuçao em 2010. 283 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) repressão ao crime e expõe a necessidade de garantir a proteção às vítimas. Trata-se de um plano muito discutido, bem elaborado e alicerçado, que necessita mecanismos eficazes para que seja bem executado55. Carece cobrar maior atenção ao problema, pois o mesmo engloba várias questões existentes dentro da sociedade, além do que há que se levar em consideração que o PNETP tem o desafio de estruturar o sistema nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, o qual por sua vez engloba parcerias tanto a nível governamental (governos estaduais e municipais e distintos setores do Governo Federal), quanto o nível da sociedade civil (seja através de instituições internacionais (como o caso da OIT e UNODC, como das ONGs). Vale destacar que o PNETP entra como parte do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)56, atuando propulsor à incorporação do tema de Tráfico de Pessoas nas políticas estaduais e tentará facilitar a criação de núcleos específicos que atuarão conforme prioridades locais próprias e diferenciadas. Considerações finais A partir da Convenção sobre a Escravidão de 1926, a comunidade internacional se organizou para elaborar normas que viessem garantir inicialmente a proteção às vítimas de exploração do trabalho, e posteriormente, em 1949, salvaguardar os direitos das vítimas do Tráfico. Em sequência, no ano de 2000 foi elaborado no seio das Nações Unidas o Protocolo de Palermo que é parte do Convênio contra o crime organizado, que veio a proporcionar a primeira tipificação internacionalmente reconhecida para o Tráfico de Pessoas. Cada Estado do sistema das Nações Unidas assumiu o compromisso de garantir em seu domínio a defesa dos direitos e da dignidade do ser humano. 55 Para a especialista Marina de Oliveira em tráfico de pessoas do UNODC, o PNETP é um avanço importante, pois “embora o Brasil ainda não tenha uma adaptação completa legislativa do Protocolo da ONU contra o tráfico de pessoas, o plano permite o trabalho integrado em prevenção, repressão e proteção às vítimas, ainda que algumas questões não sejam respaldadas na legislação”. Para Marina Oliveira, “o plano também facilita a integração dos projetos do governo com organizações internacionais dentro do marco estratégico do plano, o que permite ações integradas e mai efetivas”. Disponível em: (http://www. unodc.org/brazil/pt/ungift_portuguese_plano.html) 56 Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) marca uma iniciativa inédita no enfrentamento à criminalidade no país. O projeto articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública. (www.mj.gov.br). 284 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas No Brasil foram empreendidos esforços a nível nacional para a interpretação do Protocolo de Palermo e sua consequente aplicação no cenário nacional o que resultou na proposta da Política e do PNETP. Vale reiterar que tal como se apresenta, foi um trabalho coordenado pelo Governo, no qual se encontram envolvidos quatorze órgãos públicos, com a colaboração do UNDOC e da OIT como atores importantes neste cenário, representando os organismos internacionais, bem como a intensa participação da sociedade civil, seja através de especialistas no tema, seja por meio da colaboração de distintas organizações não governamentais. Esta ação coordenada busca resultados pontuais, como o entendimento do Tráfico como um problema social, e delito pelo qual os direitos das vítimas são violados. Defende a necessidade de assistir as vitimas e trabalhar pela repressão que leve à penalização dos traficantes, como modo de impedir que este crime continue crescendo. Diante do contexto apresentado, se pode observar que na luta global contra o Tráfico de Seres Humanos mostra-se imprescindível a ratificação do Protocolo de Palermo, afirmando-se que o tráfico de pessoas não é somente uma forma de migração forçada, mas uma violação dos direitos humanos e um crime transnacional que os Estados têm o dever de combater de forma a respeitar as leis e conferir proteção às vitimas. Ainda que existam avanços conceituais significativos dos instrumentos de direito internacional, os mecanismos criados para a proteção dos direitos humanos das vítimas do Tráfico ainda são insuficientes. Deste modo, é necessário que os Estados sigam revendo suas legislações internas, objetivando cumprir e aplicar os compromissos adquiridos ao ratificar o Protocolo de Palermo e, também, supervisionar as normas de operação das instituições responsáveis por sua aplicação. Percebe-se a necessidade do compromisso de assumir as políticas públicas que diminuam a vulnerabilidade das vitimas, bem como aplicar as normas de direitos humanos já existentes. Nota-se ainda, a falta de cooperação nos distintos níveis para que o combate seja mais efetivo. Neste sentido, vale ressaltar a importância das normas de “boas práticas”, ou seja, usar internamente mecanismos desenvolvidos com sucesso em outros países, ou mesmo em situações similares. A luta pela garantia dos direitos fundamentais do ser humano se dá pela necessidade de preservação da dignidade da pessoa. De acordo com este preceito, o Estado deve mobilizar-se para a criação de mecanismos e medidas necessárias para proteção de todo o ser humano que se encontra sob sua jurisdição. Neste sentido, pode-se observar que no decorrer dos 285 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) tempos, vários foram os instrumentos de proteção dos direitos humanos criados e postos em prática no cenário internacional no sentido de proteger a dignidade inerente a pessoa humana. Mas se o Estado não atua ativamente na promoção e proteção destes direitos o crime organizado encontra as lacunas perfeitas para sua atuação. Diante deste contexto, podemos observar que o PNETP é uma tentativa de conciliar internamente a orientação internacional de combate ao tráfico de pessoas, conferindo atenção aos três eixos necessários: prevenção, assistência e repressão, evidenciando que o tráfico não é um ato isolado, devendo, portanto, ser enfrentado como tal. Assim, percebe-se o porquê da articulação de distintos órgãos para o combate a esse crime. O PNETP é um ponto de partida, de onde poderemos assentar bases eficazes para conscientizar a sociedade do problema, bem como prevenir, reprimir e conferir devida assistência à vítima, como fim de salvaguardar os direitos humanos. Referências CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto (Editor). A incorporação das normas internacionais de proteção dos Direitos Humanos no Direito brasileiro. IIDH. CICV. ACNUER. CUE, 1996. ______. Responsabilidad, perdón, justicia como manifestaciones de la conciencia jurídica universal.. Revista Estudios Sócio-Jurídicos, Vol. 8, Nº. 1, 2006a. ______.A Humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006b. CARBONARI, Paulo César. Direitos Humanos no Brasil: Uma leitura enfocada e em perspectiva de situação. Disponível: (http://nepceam.universidadevirtual.br/course/view.php?id=3). Acesso em 25/07/2008. FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da Própria Sombra. 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Plano Nacional de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas. 288 IV MIGRAÇÃO E TRABALHO Mecanização do corte de cana crua e políticas públicas compensatórias: indo direto ao ponto Introdução Francisco Alves É digno e não é verdade cortar cana e quebrar é uma barbaridade trabalho que o homem faz por pura necessidade....” 1 A discussão sobre a mecanização do corte de cana tende a ocorrer, com maior ênfase, em dois momentos: quando o Complexo Agroindustrial Canavieiro – CAI - Brasileiro entra numa fase expansiva, ou quando a sociedade exige ações contra os danos sociais e ambientais causados pela atividade. Neste momento, em que o Complexo Agroindustrial Canavieiro atravessa mais uma de suas muitas fases expansivas, a discussão sobre a mecanização completa do corte de cana voltou à agenda. Há dois fatores novos e articulados nesta discussão, neste momento, além, é claro, do grande aumento da produção de cana, de açúcar e de álcool. O primeiro, é a repercussão na imprensa nacional e internacional das péssimas condições de trabalho dos cortadores de cana; o segundo, é a possibilidade do álcool vir a tornar-se uma nova commodity do complexo, com isto, os países, potenciais importadores de 1 Pedro Costa, repentista e poeta popular do Piauí, citado por Novaes, J.R.; Alves, F. (2007). Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) álcool brasileiro, estão condicionando as suas compras a que o CAI demonstre boas práticas sociais, trabalhistas e ambientais2, na produção de álcool. No início da década de 1970, quando o CAI Canavieiro passava por uma outra fase de expansão, antes do Proálcool, os usineiros iniciaram a mecanização do corte. Esta iniciativa foi dos usineiros, sem consulta à sociedade, e se deu em decorrência da possibilidade de vir a faltar braços para a colheita de cana. Naquele momento, a economia brasileira atravessava uma fase expansiva, chamada de Milagre Econômico, na qual houve forte aumento dos empregos urbano/industriais. Os usineiros temiam, naquela oportunidade, pela falta de força-de-trabalho, ou que viessem a concorrer pagando salários urbano/industriais a cortadores de cana. Naquele momento, a mecanização total não se deu, porque a dinâmica populacional, com a expulsão de trabalhadores da agricultura de subsistência no Vale do Jequitinhonha e outras regiões do país, resolveu o problema da possibilidade de falta de força de trabalho (MORAES SILVA, 2000; ALVES, 1991). As máquinas desenvolvidas e adquiridas, naquela oportunidade, transformaram-se em máquinas de vitrine, usadas apenas para ameaçar os trabalhadores no início da safra, e pressionar os salários para baixo (GRAZIANO DA SILVA, 1981). No final da década de 1980 as usinas empreenderam novo processo de mecanização do corte de cana. Naquele momento, a mecanização foi a resposta patronal às greves dos cortadores, que se iniciaram em Guariba, em 1984 e levaram a que os trabalhadores tivessem conquistas salariais e trabalhistas (ALVES, 1991). Na década de 90, logo após a Conferência Rio 92, há, novamente, a retomada da discussão sobre a necessidade de mecanização do corte de cana. A diferença deste momento em relação aos dois momentos anteriores (1970 e 1980) é que a discussão foi posta por iniciativa da sociedade, através de Associações Ambientalistas e dos Promotores Públicos, reivindicando o fim da queimada de cana, devido a seus efeitos deletérios sobre o meio ambiente, à saúde dos trabalhadores e da população em geral. Os usineiros, em defesa da permanência da queima, impuseram, como verdade absoluta, que o fim da queimada de cana só poderia ocorrer com a mecanização do corte, isto é, com a substituição de trabalhadores por máquinas. 2 Na última visita da Chanceler Alemã ao Brasil, em junho de 2008, ela deixou claro, falando não apenas em nome da Alemanha, mas da Comunidade Européia, que a inclusão do álcool brasileiro à matriz energética alemã e européia, depende dos produtores demonstrarem que não há exploração de trabalho escravo e infantil e que não há plantação de cana na Amazônia. 294 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Naquele período, o CAI Canavieiro passava por um momento econômico difícil, provocado por um conjunto de acontecimentos, como a crise de abastecimento do álcool e a abertura comercial, que serão detalhados na segunda seção deste trabalho. O que importa destacar aqui é que na década de 90 os usineiros é que foram pressionados pela sociedade e responderam à pressão ameaçando com o risco do desemprego de milhares de trabalhadores. Portanto, é a partir de 1990 que os usineiros juntaram duas questões que estavam separadas: uma era a necessidade de acabar com a queima de cana, que era reivindicado pela sociedade, a outra era a mecanização do corte de cana crua com ameaça de desemprego. A partir de 2004, a discussão sobre mecanização voltou à agenda. Para a sociedade, a reivindicação era pela necessidade de eliminação das queimadas e pela melhoria das condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana. Para os empresários, a mecanização se comportava como uma alternativa para aumentar as exportações de álcool. Ou seja, as exportações de álcool brasileiro para se expandirem, dependiam do CAI demonstrar para os importadores internacionais que a produção deste ”biocombustível”3 não agride ao meio ambiente e não degrada as condições de trabalho dos trabalhadores, porque a parcela de trabalhadores mais atingida pelas péssimas condições de trabalho, a dos cortadores de cana, deixaria de existir, pela mecanização. Os inúmeros casos documentados de abusos sobre os trabalhadores, que vão desde a contratação em condições análogas a escravo, até às mortes por excesso de trabalho, colocavam os usineiros diante do seguinte dilema: ou de se melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores ou de não se conseguir exportar álcool. Para resolver este dilema, os usineiros optaram por adotar a mecanização completa do corte. A questão que precisa ser respondida pela sociedade é: Como deverá se dar a expansão do Complexo Agroindustrial Canavieiro, de forma a preservar e melhorar as condições de vida dos trabalhadores e o meio ambiente? Ou seja, a sociedade deve decidir se aceita esta forma de expansão predatória às condições de trabalho e ao meio ambiente, ou se impõe condições para a expansão da canavicultura? 3 Biocombustível está com aspas porque é necessário datar este termo. Este termo passa a ser usado no Brasil após a visita do Presidente dos EUA, em março de 2007. A partir desta data o álcool passa a ser etanol e combustíveis renováveis passam a ser chamados de biocombustíveis. Esta nova denominação tem um forte apelo de marketing, pois une bio, que significa vida, com combustível, energia, opondo este aos chamados combustíveis fósseis, que derivam de matéria orgânica morta. 295 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Para os usineiros, a expansão da produção e do mercado externo podem ser conseguidas apenas com a erradicação do corte manual, eliminando milhares de postos de trabalho, e com a consecução de certificações sociais e ambientais, que atestem que o álcool está sendo produzido em condições sociais e ambientais justas e sustentáveis. Mas será que, na sociedade brasileira, as certificações são garantias de desenvolvimento sustentável? O objetivo deste trabalho é mostrar que não adianta a mera substituição de trabalho vivo por máquinas para melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores e as condições ambientais das regiões canavieiras. Este trabalho defende a posição que, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, o corte manual de cana deve ser eliminado. Porém, a sociedade não pode ficar inerte a esta decisão, de trocar trabalhadores por máquinas. A sociedade precisa apresentar suas propostas de como esta substituição deverá se processar. Neste sentido, este trabalho apresenta um elenco de propostas de políticas públicas compensatórias, que objetivam impor condições à ampliação do complexo e à mecanização do corte de cana. Essas políticas públicas devem compensar a perda de postos de trabalho e, ao mesmo tempo, atuar para a melhoria não só das condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana, como também para a melhoria e preservação do meio ambiente. Na perspectiva aqui apresentada, que difere da perspectivas patronal, o ritmo da mecanização deve ser igual ao ritmo da adoção das políticas públicas compensatórias. Além disto, propomos que, enquanto as políticas públicas não se materializem em ações, sejam implementadas, imediatamente, novas relações de trabalho, que tenham como eixo fundamental: o fim da terceirização; a adoção do controle da produção pelos trabalhadores, através da quadra fechada e o fim do pagamento por produção. Consideramos que a mecanização total do corte de cana deve ser implementada, porque não cabe à sociedade a defesa e a preservação de subempregos. A sociedade deve se mobilizar pela criação de novos e bons empregos, que promovam a melhoria das condições de trabalho, o respeito aos direitos humanos e preservem o meio ambiente. O trabalho no corte de cana é uma atividade penosa, que aleija e mata trabalhadores, como diz o poeta popular:...”dizem que todo trabalho Este trabalho está dividido em quatro partes, além desta introdução. Na seção 1, discutimos a evolução recente do Complexo Agroindustrial Canavieiro, e apresentamos as origens e causas desta fase expansiva e como se colocam os desafios a esta expansão. 296 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Na seção 2, A Modernização Perversa, apresentamos os elementos componentes do processo de mecanização do corte de cana, como parte do que aqui chamamos de modernização perversa, porque as novas tecnologias de produto de processo ao serem implementadas, preservam e aprofundam a exploração do trabalho. Na seção 3, Processo de Trabalho, veremos as características do processo de trabalho no corte de cana e a forma como o mesmo interage com o valor da força de trabalho, porque é esta integração entre o processo de trabalho e a forma de pagamento que subsidiam as propostas de políticas públicas. Na seção 4, apresentamos as propostas de políticas públicas compensatórias, que se postas em prática, acreditamos, criarão novas formas de trabalho e renda, que compensarão as perdas de postos de trabalho impostos pela mecanização. Nesta seção apresentamos também, propostas de mudanças imediatas nas relações de trabalho, que têm por objetivo a melhoria das condições de trabalho, enquanto a mecanização completa não se processa. 1 Evolução econômica recente do complexo agroindustrial canavieiro Na presente seção faremos um breve retrospecto da evolução do Complexo Agroindustrial Canavieiro, com ênfase na fase atual, que se inicia em 2002. A realização deste retrospecto não só permitirá a avaliação dos rumos tomados pelo Complexo, no que tange à qualidade das relações de trabalho, como também justificar as propostas de políticas públicas aqui apresentadas, com base nas relações de trabalho levantadas. A inversão em novas tecnologias de processo e de produto tiveram importância no dinamismo do Complexo Agroindustrial Canavieiro, porém, a combinação destas com as tecnologias de organização do trabalho, permitiram enorme crescimento da produtividade do trabalho pelo aumento da intensidade do trabalho. Como resultado dessa situação, temos o comprometimento da saúde dos trabalhadores. Na década de 1990, dois fatores diminuíram o ritmo de expansão do CAI Canavieiro: o PROÁLCOOL, perde a credibilidade, provocada pelo desabastecimento de álcool nas bombas; e o Estado, promoveu a abertura comercial e a desregulamentação parcial do CAI Canavieiro. A partir dessa nova realidade, as empresas do CAI adotaram um conjunto de modificações que vão desde a mudança da base técnico produtiva, conseguida pela introdução de novas tecnologias de processo e produto, até a área organizacional da produção e do trabalho. 297 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A saída parcial do Estado, através do fim do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) em 1990, e do fim da fixação dos preços da cana praticadas por este instituto, transferiu a concorrência para o interior do próprio CAI. Com esta medida, a adoção e o ritmo do progresso técnico passaram a ser o carro chefe para o estabelecimento dos ganhos diferenciais de produtividade entre as usinas (ALVES; ASSUMPÇÃO, 2005). A partir de 2002, o CAI Canavieiro entra em grande dinamismo em seu processo de crescimento, o que faz lembrar o período áureo do PROÁLCOOL (1974-1983). Ao contrário do PROÁLCOOl, o CAI Canavieiro não recebeu subsídios diretos e exclusivos do Estado, e foi tema de amplo debate entre diferentes setores da sociedade. Vale a ressalva que, embora não havendo subsídios diretos e exclusivos ao setor, os investimentos em novas unidades produtivas de açúcar e álcool são financiados pelo BNDES, portanto, gozam de taxas de juros inferiores às praticadas no mercado e têm elevado prazo de carência. A diferença é que os investimentos, no período do Proálcool, vinham de recursos oriundos do tesouro e eram exclusivos ao CAI canavieiro. Hoje, os recursos são do BNDES captados em várias fontes4, dentre elas o tesouro, e estão disponíveis para qualquer setor de atividade. O mercado externo para o açúcar e para o álcool, desempenha papel importante para o crescimento do CAI Canavieiro, e o mercado interno contribui com as crescentes vendas de carros Flex Fluel. No plano externo, devido as questões decorrentes do aquecimento global, o álcool, agora chamado de etanol, é incentivado para reduzir a queima de combustíveis fósseis. Nesta medida, o etanol passa ser a nova commodity do Complexo Agroindustrial canavieiro e tem sua produção incentivada. Para atender a esta demanda, está havendo a retomada de investimentos, tanto na parte agrícola, quanto na parte industrial. Até 2009 serão instaladas 89 novas destilarias/usinas, sendo 38 no oeste paulista. Há a expectativa que o Brasil venha a produzir 100 bilhões de litros de álcool a partir de 2025, praticamente quadruplicando a produção atual, que está na casa dos 20 bilhões de litros. 4 A principal fonte de recursos do BNDES e a que tem mais baixo custo de captação é o Fundo de Amparo aos Trabalhadores (FAT), que tem como fonte principal os recursos do PIS e do PASEP, portanto, pertencem, em última instância, aos trabalhadores. O que não se entende é o seguinte: se os recursos são do BNDES e se pertencem aos trabalhadores; pois são oriundos de um fundo pertencente aos trabalhadores, por que o banco não impõe rígidas normas sociais e ambientais que reduzam o enorme passivo social e ambiental do CAI canavieiro? 298 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas 2 A modernização perversa A denominação desta fase como Modernização Perversa se deve ao fato dela modificar a base técnica de produção sem alterar o essencial das relações de trabalho. A forma de contratação de trabalhadores por tempo determinado, a prevalência de pagamento por produção, elevada informalidade, a terceirização são a herança das relações de trabalho do período anterior. A forma de contratação dos trabalhadores combinada com o pagamento por produção, que levam, como veremos a seguir, ao aumento de horas de trabalho, com consequência para a saúde culminando em mortes por excesso de trabalho. As inovações tecnológicas no processamento agroindustrial se deram na direção da automação total com a introdução dos Sistemas Digitais de Controle Distribuídos (SDCD). Isto provocou o aumento da produtividade do trabalho industrial e o aumento da integração dos processos gerenciais e logísticos (ASSUMPÇÃO, 2001). Na área agrícola, as mudanças tecnológicas e organizacionais mais nítidas são marcadas pelas seguintes características: aumento da intensidade do trabalho, maior rigor na seleção de trabalhadores, logística de integração agricultura/indústria; mecanização do plantio e do corte de cana e terceirização de atividades. 2.1 A mecanização do corte a passos lentos Após o ciclo de greves, iniciado em Guariba em 1984, as usinas implementaram um vigoroso processo de mecanização do corte de cana queimada (ALVES, 1991). Este processo introduziu máquinas colheitadeiras, operadas por um pequeno conjunto de homens, substituíram, a um só tempo, o trabalho dos cortadores de cana e de operadores de máquinas carregadeiras (guinchos). A mecanização da colheita de cana, que inicialmente se deu com cana queimada e em decorrência do crescimento do poder de barganha dos trabalhadores, com as greves, foi empregada pelos empresários, no final dos anos 80 e início da década de 1990, com canas queimadas. A luta contra a queima de cana mobilizou, e ainda mobiliza, um amplo conjunto de organizações da sociedade civil (ONGs ambientalistas, promotores públicos, vereadores e outras organizações sociais). Mesmo com esta ampla mobilização não logrou o fim das queimadas de cana. Porém, provocou a celebração de um pacto, em 1998, chamado Acordo dos Bandeirantes5. Este acordo (protocolo de intenções de adesão voluntária), firmado 5 Acordo dos Bandeirantes foi o nome dado ao acordo selado entre o Governador do Estado de São Paulo, Mário Covas, Representantes das usinas do Estado, Representantes dos fornecedores de cana e representantes dos trabalhadores, em 1988, no Palácio dos Bandeirantes, que acordava o fim da queima de cana em todo o Estado de São Paulo para 2006. 299 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) no Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do Governador do Estado de São Paulo, previa o fim da queima de cana, para 2006, portanto, 8 anos após a sua celebração. Este tempo, foi estipulado para que, de um lado, as unidades produtivas promovessem a aquisição das máquinas e adequassem seus sistemas de corte a esta nova modalidade (ALVES,1995). De outro lado, este tempo considerava a necessidade de criação de alternativas de trabalho e renda para os trabalhadores, que seriam desempregados com a mecanização do corte e com a consequente substituição do trabalho manual. Porém, naquela oportunidade também não foram determinadas políticas públicas compensatórias. Posteriormente, os deputados estaduais de São Paulo julgaram que a mecanização do corte era tão relevante, para o Estado, pois envolvia os interesses de um setor importante da economia que deveria ser objeto de uma lei específica e não de um mero acordo de cavalheiros. Como resultado foi elaborada a lei de 2004, e a queima da cana foi estendida para 2034. Porém, esta legislação não definiu políticas públicas compensatórias. Em 2007, após a visita do Presidente dos Estados Unidos, José Serra, Governador de São Paulo, celebrou um novo acordo com a UNICA (entidade de representação dos usineiros de São Paulo), abreviando o fim da queima para 2015, para as áreas mecanizáveis e para 2020, para as áreas não mecanizáveis. Agora, novamente, o fim da queima é objeto de um acordo (Protocolo de Intenções, com adesão voluntária) e, como o anterior, não tem força de lei. Isto significa dizer, que não necessariamente será cumprido daqui a 8 anos6. Porém, não há, no que tange ao emprego, nenhum movimento, do governo do Estado e dos empresários, no sentido de gerar políticas públicas compensatórias às perdas de emprego prenunciadas pela mecanização. Os empresários, através da UNICA, juntamente com a FERAESP estabeleceram, em 2007, um Protocolo de Intenções, com adesão voluntária, para qualificação de trabalhadores desempregados (JANK, M.; NEVES, E., 2008). Porém, este protocolo não detalha o número de trabalhadores que serão qualificados, frente ao número dos que serão demitidos e nem o que deverá ocorrer com os trabalhadores que não serão qualificados. O Protocolo faz menção apenas à quantidade de novos empregados que serão gerados com a mecanização. 6 É interessante perceber, que tanto o acordo de 1998, quanto o de 2007 estabeleceram 8 anos como prazo para a mecanização e fim da queima para as áreas mecanizáveis. 300 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas É necessário ter claro que a sociedade reivindica o fim da queima e os trabalhadores reivindicam a melhoria de suas condições de vida e trabalho, principalmente através do cumprimento da legislação trabalhista. A iniciativa de juntar o fim da queima de cana com o corte mecanizado é uma iniciativa patronal. Isto é, na perspectiva dos usineiros, só é possível o fim da queima de cana, se for adotada a mecanização, devido ao aumento de custos ocasionados pela necessidade de aumentar os gastos com salários. Para entendermos este binômio criado pelos usineiros; fim da queima de cana e mecanização, é necessário termos claro o momento político em que isto se dá: início da década de 1990. Neste período, os trabalhadores assalariados rurais ainda detinham algum poder de barganha, capaz de impedir a implantação do corte manual de cana crua. Isto porque, os trabalhadores recusaram ver seu trabalho aumentado sem o aumento da remuneração. O corte de cana pode ser crua, sem queimar, ou em 7 ruas. No corte em 7 ruas os trabalhadores trabalham mais e ganham menos, porque têm que andar mais 3 metros lateralmente e cortar duas linhas a mais. No corte de cana crua, um cortador corta, no máximo, 4 toneladas de cana por dia (66 metros)7, ao passo que, com cana queimada, corta 12 toneladas por dia (mais ou menos 200 metros de cana). Para sairmos deste binômio, imposto pelos empresários, é necessário termos claro que, embora o corte manual de cana gere trabalho e renda, é uma atividade penosa, que compromete a saúde e a vida dos trabalhadores, portanto, não deve ser preservado. A sociedade tem que promover em suas ações a criação de bons empregos; que remunerem bem os trabalhadores e permitam-lhes desfrutar de condições de vida dignas e cidadãs. O processo de trabalho no corte de cana é, na palavra dos trabalhadores: “... trabalho ruim, que encurta a vida.... Cortar cana não é trabalho de gente, é trabalho de bicho... Só corto cana porque não tenho outra coisa pra fazer... ... se não cortar cana, morro de fome...”8 Vejamos a seguir, como o processo de trabalho de corte manual de cana é lesivo à saúde dos trabalhadores e causa de mortes por excesso de trabalho. 7 Esta complicada transformação de tonelada em metro será explicada mais adiante. 8 A primeira vez que ouvi estas frases foi em Guariba, em 1988, quando fazia uma pesquisa sobre a mecanização do corte de cana, foi dita por um trabalhador cortador de cana, hoje assentado. Depois, ao longo destes mais de 20 anos, ouvi esta frase, com pequenas diferenças, pronunciada por outros trabalhadores. 301 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 3 Processo de trabalho O Quadro 1 mostra que, ao longo da década de 1990, embora tenha havido redução do número de trabalhadores empregados, o trabalho manual do corte de cana não apenas não foi plenamente substituído pelas máquinas, como houve um forte aumento da produtividade do trabalho no corte e uma gritante piora na qualidade de trabalho (o que será mostrado a seguir). ANOS 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 TOTAL PNAD 625,16 645,78 451,08 455,44 450,13 415,09 451,36 448,88 494,08 519,52 Com Carteira 396,05 409,98 294,36 302,06 342,99 270,20 310,94 309,00 343,67 378,38 PNAD Sem Carteira 229,11 235,80 156,72 153,38 107,14 144,89 140,42 139,88 150,41 141,14 RAIS CNAE 1.139 Formais (31/12) 146,91 134,14 144,83 159,23 147,44 144,94 133,29 147,34 149,79 155,24 Total * 380,29 329,10 360,21 378,79 356,99 400,32 367,62 382,68 388,14 414,67 Quadro 1 - Cana-de-açúcar: evolução do nº de empregados formais e informais no Brasil (mil) Fonte: DELGADO; SANTANA (2008). O processo de produção da cana, mesmo com a mecanização, permaneceu ainda com características de produção extensiva. Nesta, o aumento da produção de cana, e consequentemente de açúcar e de álcool no Brasil exige aumento da área plantada com cana e esta depende por sua vez, de um lado, da existência de terras disponíveis a serem incorporadas pela cultura e, de outro, da disponibilidade de força-de-trabalho. A disponibilidade de força-de-trabalho é, no caso brasileiro, resolvida pelo contínuo processo de expulsão de pequenos produtores de suas regiões de origem pela ocupação destas terras pela agricultura comercial do agronegócio. A expansão do agronegócio para novas áreas, leva a que os pequenos produtores percam suas terras e as áreas de florestas, que são destruídas pelo agronegócio. A expulsão provocada pelo agronegócio é o primeiro elemento para a migração, o segundo elemento é a decisão de para onde migrar. Esta é decidida pela concentração do Capital demandante de força-de-trabalho (MARX, 1975). Outra decisão será como se dará esta migração. Isto é, se esta dar-se-á 302 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas de forma permanente ou de forma pendular. Esta decisão dependerá das condições da demanda de força-de-trabalho nas regiões de destino e das condições de permanência da família nas regiões canavieiras de origem. No caso da cana, como a demanda por força de trabalho é sazonal; mais concentrada na safra, isto faz com que a maior parte dos migrantes optem pela migração sazonal, especialmente os homens jovens (ALVES, 2007). A fase de colheita da cana-de-açúcar é composta em três atividades: corte; carregamento e transporte. Na maioria das usinas brasileiras a mecanização incidiu primeiro sobre as duas últimas etapas. O corte de cana consiste no trabalhador cortar toda a cana de um retângulo que só tem previamente definida a sua largura (seis metros), e de comprimento a ser definido pela capacidade de trabalho de corte de cada trabalhador e medido pelo apontador no final da jornada de trabalho. Este retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito e está contido no retângulo maior que é o talhão9. Além do corte, o trabalhador tem que realizar as seguintes atividades: i) limpeza da cana, com a eliminação da palha que ainda permanece na cana, mesmo depois de queimada; ii) retirada da ponteira; iii)transporte da cana cortada para a linha central do eito e; iv)arrumação da cana depositada na terceira linha, na forma de esteira ou em montes separados um do outro por 1 metro de distância. Pelo demonstrado acima, verifica-se que o trabalhador é contratado para cortar a cana contida em um retângulo, o eito, e é pago de acordo com a produção realizada, isto é, a quantidade de cana existente neste eito, porém, medido em metros lineares. Como é um retângulo, com largura e comprimento, ele deveria ser medido em metros quadrados (largura multiplicada pelo comprimento)10 e não em metros lineares. A medição do eito em metros 9 Talhão é a área onde é plantada a cana e esta é delimitada pelos carreadores, ou vias, onde trafegam os caminhões e as máquinas agrícolas. Em geral os talhões são retangulares, porque esta forma possibilita o melhor tráfego das máquinas e caminhões, mas dependendo das condições do terreno estes podem ser trapézios, losangos ou um outro polígono qualquer. 10 Pagamento por metro quadrado é fartamente utilizado em setores de produção que trabalham com área, tais como construção civil, nestas, a medida do trabalho é a área construída e os trabalhadores são remunerados pelo valor do metro quadrado. Na agricultura, inclusive, o metro quadrado é utilizado para vários pagamentos, tais como: pagamento para atividades mecanizadas; pagamento de arrendamento de terra. Portanto não há justificativas plausíveis para a não utilização do metro quadrado como medida da produção no corte de cana.. 303 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) lineares é feita através de um compasso, com 2 metros de raio. O comprimento aí apurado é multiplicado pelo valor do metro. Porém, esse valor só será conhecido pelo trabalhador quando este recebe o hollerit, no final do mês, após a transformação do valor da tonelada em valor do metro. Para a transformação do valor da tonelada em valor do metro linear11 é realizado um complexo conjunto de operações matemáticas, que só podem ser explicados se o objetivo for o de enganar os trabalhadores. Esta complexa operação se dá desta forma: 1º são colhidas canas de três pontos do talhão, que devem representar toda a diversidade de canas existentes; 2º esta cana colhida destes três pontos é medida em metros e deve ter o mesmo comprimento, para não afetar a média; 3º um caminhão, chamado de campeão, é enchido com a cana colhida destes três pontos; 4º o caminhão é pesado na balança da usina; 5º depois de aferido o peso do caminhão que transportou esta amostra, este peso é dividido pela quantidade de metros de cana que foram colhidas em 1º., obtendo-se desta divisão a quantidade de quilos de cana contidas em um metro; 6º divide-se o valor da tonelada de cana por mil e obtém-se o valor do quilo de cana em Reais; 7º multiplica-se o valor obtido em 6º. (valor do quilo de cana em Reais) pelo valor obtido em 5º (quantidade de quilos de cana contida em um metro), obtém-se assim o valor do metro de cana em Reais. Verifica-se, desta forma, que o pagamento por produção praticado na cana é completamente diferente do pagamento por produção ainda efetuado em outros setores de produção, tais como indústria, comércio e serviços, que pagam por peça e o valor desta é previamente conhecido pelos trabalhadores antes da realização do trabalho. Esta complexidade de cálculos, absolutamente incompreensível pelos trabalhadores, reveste, com uma aura falsamente científica, um procedimento lesivo aos trabalhadores. 11 No Estado de São Paulo desde a Greve de Leme de 1986 ficou convencionado o pagamento dos trabalhadores por preço da tonelada de cana convertido em preço do metro de cana. Esta conversão é feita através de um método de amostragem utilizando-se um caminhão de carregamento de cana, que é chamado de campeão. Este caminhão depois de enchido com cana de três pontos do talhão é pesado na usina e a partir desta pesagem converte-se o valor da tonelada em valor do metro. 304 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Em apenas um sindicato no Estado de São Paulo, o Sindicato dos Empregados Rurais de Cosmópolis, o sistema de conversão de valor da tonelada de cana para valor do metro linear é realizado através do método do talhão fechado. Neste sistema o sindicato fiscaliza e participa da conversão, porque conseguiu: i) instalar um computador próprio junto a balança da usina; ii) o fornecimento pelas usinas dos mapas dos talhões, porque assim é possível conhecer a quantidade de metros de cada talhão; iii)que os caminhões transportem para pesagem, cana de um único talhão por viagem; iv)que a usina divulgue pela manhã, no início do corte o valor do metro de cana e; v) que a usina pague os trabalhadores pelo valor mais alto; pelo valor anunciado pela manhã, ou pelo valor definido após pesagem de toda a cana do talhão (NOVAES, 2007). Segundo o SER de Cosmópolis, a introdução do talhão fechado significou um aumento de cerca de 30% na remuneração dos trabalhadores (NOVAES, 2007). Há outras usinas em São Paulo que declaram praticar o talhão fechado. Mas, nestas o talhão fechado não é fiscalizado pelos trabalhadores e, desta forma, a possibilidade de roubo permanece. Embora o sistema de pagamento dos trabalhadores pelo método do talhão fechado, com controle dos trabalhadores, tal como empregado pelo SER de Cosmópolis, seja mais avançado para coibir o roubo no pagamento dos trabalhadores, ele continua sendo um sistema de pagamento por produção. Sendo um sistema de pagamento por produção ele mantém o os mecanismos de pressão sobre os trabalhadores. O pagamento por produção que está na causa das mortes por excesso de trabalho (ALVES, 2006, 2007 e 2008). Portanto, a melhoria das condições de trabalho dos cortadores de cana, impõe a eliminação do pagamento por produção. 4 Propostas de políticas públicas As políticas públicas para a melhoria das condições de trabalho do corte de cana devem apontar, como dissemos, para o desenvolvimento sustentável12 e para isto será necessário: 12 Adota-se aqui os três pressupostos básicos do desenvolvimento sustentável: viabilidade econômica da produção; preservação e melhoria das condições ambientais e a melhoria das condições de vida e trabalho dos trabalhadores e da população em geral, submetidos ao critério transgeracionalidade. 305 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) a) o fim da queima de cana; e a b) completa mecanização do corte de cana crua. Estas duas medidas, porém, contam com a oposição de sindicatos de trabalhadores e de usineiros. A mecanização sempre foi um problema para os sindicatos dos trabalhadores, na medida em que esta reduz postos de trabalho e, os reduzindo, reduz o poder de barganha e reduz a arrecadação, que ainda se baseia, fundamentalmente, na contribuição confederativa. Do lado dos usineiros a supressão da queima através da mecanização, além de envolver novos custos, ainda não está tecnicamente completamente resolvida. Existem problemas, tais como: a ainda reduzida longevidade do canavial quando submetido ao corte mecânico, a ocorrência de novas pragas e o não aproveitamento da palha para geração de energia elétrica, que retardam a mecanização. Esses problemas técnicos elevam os custos da produção mecanizada e, quando comparada com a forma de trabalho manual, de elevada produtividade e baixa remuneração, fazem com que usineiros e fornecedores prefiram o corte manual. Sugestão: rever este parágrafo para melhor compreensão da mensagem Isto significa que, embora baseados em argumentos diferenciados, parte dos sindicatos de trabalhadores, quanto parte dos usineiros, opõem-se à mecanização. Porém, como o fim da queima e a mecanização são reivindicações do conjunto da sociedade, baseada na necessidade de apontar para o desenvolvimento sustentável, a implementação destas duas medidas necessitará de negociações. Estas para ocorrerem, deverão contar com a participação de todos os envolvidos: o conjunto da sociedade, os sindicatos de trabalhadores, os usineiros e o Estado. A participação do Estado, no Brasil, é questionada, por dois motivos: o primeiro, é que o Estado, nos três seus níveis e nos seus poderes, é bastante permeável aos interesses do agronegócio. O segundo motivo é a respeito do nível em que o Estado deverá estar representado (se Federal, estadual ou municipal) Isto porque questões relacionadas à emprego e ao meio ambiente, têm maior impacto a nível local e regional do que a nível federal. O que tem que se colocar em foco, para o estabelecimento de políticas públicas compensatórias de empregos que foram diminuídos com o processo de mecanização é o ritmo da mecanização, que deverá se dar no mesmo ritmo com o da criação de novos postos de trabalho. A adequação dos ritmos entre a adoção de novas tecnologias e o estabelecimento de políticas públicas compensatórias aos empregos perdidos é um dos resultados fundamentais do processo de negociação. 306 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Do lado dos empresários, é necessário um tempo para a adoção do fim da queima de cana, porque a mecanização requer a introdução de um novo sistema de corte. Este novo sistema é composto por máquinas e trabalhadores qualificados para esta operação. Do lado dos sindicatos de trabalhadores, é necessário que a eliminação de postos de trabalho pela mecanização se dê no mesmo ritmo da criação de novos empregos, o que requer tempo necessário para qualificação do trabalhador e seu re-emprego. No Estado de São Paulo existem, aproximadamente, entre 180.000 e 250.000 trabalhadores cortando cana13, sendo que deste total, aproximadamente 70%14, são migrantes pendulares. O grande número de migrantes temporários faz reduzir o contingente de trabalhadores que necessitarão de políticas compensatórias, estimado entre 54.000 e 75.000 trabalhadores. Para os migrantes pendulares que querem permanecer em suas regiões de origem, o fundamental é que haja nestas regiões outras políticas públicas. Estas devem contemplar inevitavelmente a Reforma Agrária porque a impossibilidade de acesso à terra e o processo de expulsão que estão na causa da expulsão e da emigração pendular. Também Serão necessárias, nas regiões de origem, outras políticas públicas compensatórias, que assegurem os meios para que os trabalhadores se sustentem com a agricultura familiar. Mas estas políticas deverão ser localmente e regionalmente pensadas e negociadas entre os atores sociais e não cabem neste texto, cujo foco é a proposição de políticas públicas compensatórias em São Paulo. 4.1 Políticas públicas compensatórias em São Paulo 1 qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que estes ocupem os novos postos de trabalho gerados pela mecanização; 2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho e renda para os trabalhadores desempregados pela mecanização. 13 Não há números precisos sobre a quantidade de trabalhadores na atividade de corte de cana. Para isto seria necessário que as empresas fornecessem tais dados, porque a captação de informações sobre trabalhadores temporários e migrantes é imprecisa pelos instrumentos de pesquisas existentes. Do lado dos empresários só há a divulgação de dados sobre o número de trabalhadores formais, como existe uma elevada terceirização e uma elevada informalidade na contratação destes trabalhadores, estes dados são parciais. 14 A quantidade de migrantes e, dentre estes os pendulares, isto é, aqueles que vêem para safra e retornam na entre-safra, é calculada em 70% pelo Serviço da Pastoral do Migrante de Guariba. 307 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 4.1.1 Justificativas e viabilidade 1 - qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que estes ocupem os novos postos de trabalho gerados pela mecanização. As usinas alocam suas máquinas colheitadeiras em frentes de corte mecanizado. Estas frentes de corte são áreas próximas, onde toda a cana está apta ser cortada mecanicamente numa mesma época (semana ou mês). Nestas frentes de corte estão concentradas todas as máquinas colheitadeiras e as demais máquinas, que lhes dão apoio. Em cada frente de corte mecanizado são alocados conjuntos de 4 ou 5 máquinas colheitadeiras e um outro conjunto de máquinas e equipamentos, que lhes dão apoio. Este outro conjunto é composto de: • caminhão oficina, responsável pelo conserto de todas as máquinas operantes na frente de trabalho, conduzido por um motorista, e que trabalha com um mecânico qualificado e mais dois ajudantes; • caminhão comboio, que faz o abastecimento de óleo combustível e óleo lubrificante em todas as máquinas da frente; • caminhão pipa, que tem que estar sempre presente, quando se opera com cana crua, onde a presença de palha aumenta o risco de incêndios; • trator de esteira, que auxilia as colheitadeiras em terrenos com risco de atoleiros e; • veículo de ligação campo/usina, responsável pelo suprimento do campo com peças e pneus sobressalentes. Para a operação de todas estas máquinas são necessários, cerca de, 66 trabalhadores diretos15 por frente de corte. Considerando que a produção de cana em São Paulo atingirá 516.000.000 toneladas e 6.000.000 de hectares na safra 2009/2010, a mecanização completa requererá 1.194 máquinas. Como cada grupo de 4 máquinas gera 66 empregos diretos, esta mecanização gerará 78.800 novos postos de trabalho. Como a mecanização em São Paulo, segundo a UNICA, atingirá nesta safra a 50% da cana colhida, logo, os novos postos de trabalho gerados pela mecanização exigirão 39.400. 15 Este cálculo se baseia em jornada de trabalho de 6 horas diárias como determina a Constituição de 1988, para empresas que operam diuturnamente, e na necessidade de trabalhadores adicionais para suprir as pausas e afastamento de trabalhadores com isto cria-se a necessidade de:: 20 operadores de colheitadeiras; 20 mecânicos e auxiliares; 10 operadores de caminhões comboios; 10 operadores de caminhões pipa e 6 operadores de trator esteira, além de operadores que operam veículos leves, que transportam peças e material sobressalente às máquinas operadoras de cada frente de corte. 308 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Considerando a Política Pública 1 (Qualificação dos trabalhadores desempregados pela mecanização), esta deverá significar dotá-los de habilidades técnico-cognitivas e práticas. A qualificação em habilidades técnicocognitivas passa pela escolaridade (mínima de 8 anos ou equivalente). Parte dos trabalhadores já detêm esta escolaridade, porque uma das políticas públicas que deu certo nas décadas de 80 e 90 foi a da massificação do ensino. Porém, outra parcela de trabalhadores ainda não detêm esta escolaridade e a política de qualificação aqui proposta deverá assegurá-la. Essa qualificação de trabalhadores em habilidades técnico-cognitivas poderá ser objeto de parcerias entre usinas, onde estes trabalhadores estão empregados, e instituições de ensino público próximas. As habilidades práticas requerem a qualificação destes trabalhadores nos locais de trabalho, tanto nas usinas, demandantes destes trabalhadores, quanto nas fábricas produtoras de tais equipamentos e interessadas nas suas vendas. Tanto para a qualificação técnico-cognitiva quanto para a qualificação prática para o trabalho poderão ser proporcionadas através de parcerias entre usinas, instituições de ensino e empresas fornecedoras de máquinas agrícolas. Para isto, será necessário o estabelecimento de negociações entre estas empresas e instituições que disponibilizem financiamentos. O financiamento para a qualificação profissional deverá ter duas finalidades: a primeira, para permitir a liberação do trabalho aos cortadores de cana para que estes possam se qualificar, porque é impossível cortar 12 toneladas de cana durante o dia e estudar durante a noite. A segunda finalidade, para arcar com os custos advindos do processo de qualificação, como aquisição de materiais, equipamentos e investimentos em recursos humanos. A questão do financiamento será, obviamente, um calcanhar de Aquiles desta política pública. As entidades patronais atribuem ao Estado o dever da qualificação e o Estado e os sindicatos atribuem este ônus às usinas. O Estado e os sindicatos defendem, que os recursos do Programa de Assistência Social (PAS)16 sejam usados para este fim. As usinas não aceitam, porque contestam a existência do PAS, embora a lei continue em vigor e não seja cumprida. Desta forma, o pagamento pela qualificação deverá ser objeto de negociações entre sociedade, Estado e Usinas. 16 PAS - Programa de Ação Social, existente em lei desde 1937, que determina a aplicação de 1% do faturamento em cana e açúcar e 2% do álcool. 309 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho e renda para os trabalhadores desempregados pela mecanização Esta política pública compensatória destina-se a geração de trabalho e renda para os trabalhadores desempregados, que não serão admitidos nos empregos gerados pela mecanização do corte da cana. Esta política objetiva destinar as áreas que não poderão permanecer ocupadas com cana, após a mecanização, ou para a produção de produtos alimentares em propriedades familiares, ou para a conversão destas áreas em reservas ecológicas de proteção permanente. O Estado de São Paulo terá 6 milhões de hectares de cana plantados, na safra 2009/2010, porém, segundo esta política, terá de deixar de utilizar, aproximadamente, 20% de toda esta área. Isto porque, 20% da terra hoje ocupada com cana em São Paulo, segundo o IEA (Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo) está em áreas impróprias à mecanização, devido a: declividade superior a 12%; existência de acidentes pedológicos (buracos, pedras e vossorocas) e existência de limitações à regularidade e comprimento dos talhões, impostas por cercas, cursos d’água etc.17 Desta forma, 1 milhão de hectares hoje ocupados com cana serão liberados para outros usos. Uma parte destas áreas liberadas deverão ser utilizadas para assentamentos de reforma agrária para os trabalhadores que perderam seus empregos na colheita de cana. Em um milhão de hectares é possível o assentamento de 30.000 famílias (considerando um módulo rural médio de 30 hectares). Em um lote deste tamanho cria-se, pelo menos, 2,5 empregos diretos, o que poderá gerar 75.000 novos postos de trabalho. O aumento da produção de cana no Estado de São Paulo está pondo em risco a segurança alimentar estadual, porque grande parte dos alimentos aqui consumidos estão vindo de regiões mais distantes. Desta forma, urge que as áreas de assentamento rural sejam direcionadas para a produção de alimentos e não para converterem-se em novas áreas produtores de cana, como, infelizmente, vem ocorrendo em alguns assentamentos de São Paulo. A conversão de áreas de assentamento em áreas de produção de cana está acontecendo devido a carência de instrumentos de políticas públicas agrícolas para pequenas propriedades familiares assentadas pela Reforma 17 Para o corte mecanizado é necessário, além de baixa declividade e eliminação de acidentes pedológicos, que os talhões sejam longos e retangulares, para evitar excesso de manobras das máquinas, o que eleva o gasto com combustível e necessidade de manutenção. 310 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Agrária. Desta forma, é necessário que as áreas de cana destinadas a assentamentos sejam amparadas por políticas agrícolas para a pequena produção familiar de alimentos. Políticas Públicas para a produção familiar de assentamentos produtores de alimentos: • políticas de incentivo à agroindustrialização de produtos alimentares; • políticas de incentivos a compras institucionais de prefeituras e governos estaduais e mesmo federal dos produtos alimentares produzidos pela produção familiar; • políticas para a venda direta regional, evitando-se a elevada intermediação; • política de crédito específica para produtos alimentares; • política de qualificação profissional para converter cortadores de cana em produtores familiares de alimentos seguros. Desta forma, a política de conversão de terras desocupadas pela cana em assentamentos rurais de reforma agrária resolve, a um só tempo, dois dos problemas apontados acima: a geração de postos de trabalho e a insegurança alimentar paulista. Em algumas regiões de São Paulo, com baixa cobertura de mata nativa e com elevados problemas hídricos resultantes do desmatamento, poderão preferir converter estas áreas desocupadas pela cana em reservas ecológicas de proteção permanente, através da restauração da mata nativa. A recomposição ambiental, dependendo da forma de manejo, também pode criar novos postos de trabalho, tais como: coleta e produção de mudas de árvores nativas; replantio destas mudas e na manutenção desta vegetação. Ou seja, a destinação das áreas liberadas pela cana em áreas de reservas ecológicas não é incompatível com a de geração de trabalho e renda. O que é necessário é que a sociedade decida localmente o que vai fazer com as áreas, que não mais serão ocupadas com cana. O destino que estas áreas terão, deverão ser socialmente e localmente decididos, de forma a gerar trabalho e renda, segurança alimentar e recomposição ambiental. Tanto a utilização destas áreas em assentamentos de produtores de alimentos, quanto em reservas ecológicas são destinações legítimas, não excludentes. Em relação ao uso do solo, a Constituição Federal já assegura aos municípios a prerrogativa de legislarem sobre isto, porém, este direito constitucional ainda não é usufruído pelos municípios brasileiros, que, no máximo, 311 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) apenas regulamentam o uso do solo urbano. Acreditamos, que a sociedade, tomando para si a tarefa de destinar o uso social para áreas desocupadas com cana, crie a prática de vir a decidir sobre o uso do solo rural, determinando os usos agrícolas e não agrícolas necessários ao desenvolvimento sustentável de sua área não urbana. 4.1.2 Síntese das propostas de políticas públicas compensatórias 1 qualificação de trabalhadores cortadores de cana, para que estes ocupem os novos postos de trabalho gerados pela mecanização; 2 destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho e renda para os trabalhadores desempregados pela mecanização. Como desdobramento de 1 (qualificação de trabalhadores cortadores de cana) propõe-se: a) o estabelecimento de fóruns de discussão e negociação locais e estaduais visando: adequar o ritmo da mecanização à qualificação e determinar a distribuição de responsabilidades pela qualificação; b) elaboração de um Plano Estadual de Qualificação Profissional de Cortadores de Cana. Como desdobramento de 2 (destinação das áreas desocupadas pela cana para projetos de trabalho e renda), propõe-se: 1) a localização das áreas, em cada município, que não poderão ser ocupadas com cana, devido a problemas técnicos e de uso do solo; 2) criação de fóruns sociais, com a participação do Estado (nível municipal e estadual), dos sindicatos de trabalhadores, dos movimentos de luta pela terra, de entidades de defesa do meio ambiente, de usinas e fornecedores de cana, objetivando determinar as possibilidades de reconversão destas terras e das formas de financiamento para estes usos e; 3) elaboração do Plano de Reconversão Produtiva de áreas de cana em outros usos, com elaboração de Política de Qualificação dos Trabalhadores cortadores de cana em gestores e produtores de reservas ecológicas locais. 312 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas 4.2 Adoção de medidas imediatas para mudança das relações de trabalho em regiões canavieiras O fim da queima com a total mecanização do corte só ocorrerá se usineiros e fornecedores de cana aderirem ao protocolo de intenções do Governo estadual. Neste, o fim da queima e a mecanização se dará em 2014, nas áreas mecanizáveis, e em 2020, nas não mecanizáveis. Dado este intervalo de tempo, propomos que se iniciem as políticas propostas em 1 e 2 e, se adote de imediato o que se segue, visando a introdução de uma nova Política de Relação de Trabalho: I – Fim das terceirizações com o contrato direto de trabalho, sem intermediários, entre usinas/fornecedores de cana com os trabalhadores; II - Introdução do controle da produção com base na quadra fechada, sob controle dos trabalhadores; III – Fim do pagamento por produção, com a introdução do pagamento de salário fixo, baseado em horas trabalhadas para todas as atividades agrícolas e não agrícolas do Complexo Agroindustrial Canavieiro. As medidas I e II podem ser adotadas imediatamente, mas a III, o fim do pagamento por produção, necessita ser negociada entre as partes, sindicatos e usinas. Além disto, o fim do pagamento por produção dispensará a introdução da quadra fechada, porque a quadra fechada embora menos sujeita a roubo, continua sendo forma de pagamento por produção e será eliminada pela terceira medida. O fim do pagamento por produção significa a substituição desta cruel relação de trabalho, por uma relação na qual os trabalhadores sejam remunerados pelo tempo dedicado ao trabalho. O objetivo da mudança nas relações de trabalho é impedir a continuidade de um processo que aleija e mata os seus trabalhadores. Isto só poderá acontecer, quando cessarem os mecanismos de super-exploração dos trabalhadores e nesta direção é que se justifica os três itens colocados acima: fim da terceirização, implantação do talhão fechado e fim do pagamento por produção. Conclusão Acreditamos que é crucial que a sociedade aproveite esta fase expansiva do Complexo para apresentar suas propostas na direção do desenvolvimento sustentável. Nos momentos de expansão, em que está havendo crescimento 313 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) dos lucros, a obtenção de conquistas são mais frequentes do que nos períodos de recessão. Desta forma, a sociedade não pode deixar que a expansão da canavicultura seja decidida apenas pelos empresários, é necessário que as demandas sociais sejam apresentadas e sejam implementadas, porque senão teremos um novo ciclo de expansão igual aos anteriores, que provocaram aumento dos passivos sociais e ambientais. Referências ALVES, F. Modernização da agricultura e sindicalismo: as lutas dos trabalhadores assalariados rurais na região canavieira de Ribeirão Preto. 1991, 270 f. Tese (Doutorado)- Universidade de Campinas, IE/UNICAMP, Campinas, 1991. ALVES, F. O corte de cana crua: talvez haja luz no meio da fumaça. Teoria e Pesquisa: revista do Departamento de Ciências Sociais/UFSCar, São Carlos, n. 12-13, p. 17-28, jan./jul. 1995. ALVES, F.; NOVAES, J.; RICCI, R. 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In: XX Simpósio de Gestão da Inovação Tecnológica, 1998. São Paulo. Anais. São Paulo: [s. n.], 1998. CD-ROM. ALVES, F. Processo de trabalho e danos à saúde dos cortadores de cana. Interface (Ed. Português), v. 3, p. 21-27, 2008 FERREIRA, L, GONZAGA, M.; DONATELLI, S. Análise coletiva do trabalho dos cortadores de cana da região de Araraquara. São Paulo: Fundacentro, 1996. 314 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas GRAZIANO DA SILVA, J. Progresso técnico e relações de trabalho na lavoura canavieira. São Paulo: Hucitec, 1981. MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. NOVAES, J. Modernização, relações de trabalho e poder: um estudo das transformações na agroindústria canavieira no Nordeste. 1993. 280 f. Tese (Doutorado)- Universidade de Campinas, Campinas, 1993. NOVAES, J.; ALVES, F. (orgs.) No eito da cana: exploração do trabalho e luta por direitos na região de Ribeirão Preto. São Carlos: Rima, 2003. NOVAES, J. (2007). Quadra Fechada. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, IE, 2007. 1 DVD (VHS). SILVA, M. A. M. Errantes do fim do século. Araraquara: EdUNESP, 2000 315 Acre, desenvolvimentismo e reservas extrativistas Introdução Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior O Estado do Acre localiza-se no extremo ocidental da Amazônia brasileira e faz fronteira com a Bolívia e o Peru. Na segunda metade do séc. XIX, foi ocupado por brasileiros e, na primeira década do séc. XX, incorporado definitivamente ao território nacional do Brasil. A Região Amazônica é cada vez mais representada como internacionalmente estratégica, pois abriga a maior floresta tropical do mundo e é alvo de interesses relativos, por um lado, à exploração de seus recursos naturais, incluindo a extraordinária biodiversidade, e, por outro, à manutenção do ameaçado equilíbrio ambiental do planeta. Do final do século XIX até meados do século XX, a principal forma de ocupação econômica da Amazônia brasileira foi a empresa seringalista, destinada à produção de borracha natural, a partir da extração do látex da Havea brasilienses (popularmente conhecida como seringueira). A empresa seringalista, ao mesmo tempo em que propiciou um modo de apropriação de riquezas florestais de baixo impacto ambiental, pois pressupunha a manutenção da floresta em pé para extração do látex, afirmou-se a partir de um modo de exploração da mão-de-obra que pode ser percebido como uma das modalidades contemporâneas de trabalho escravo1. 1 A manutenção no mundo contemporâneo de formas de exploração da mão-de-obra que podem ser interpretadas como trabalho escravo, em suas várias modalidades e diferentes denominações (escravidão, servidão, trabalho escravo, redução de pessoas a condições análogas à de escravo, trabalho escravo por dívida, semi-servidão, trabalho forçado) é estudada por uma série de estudiosos. No Brasil, podemos destacar Esterci (1994), Martins (1994), Figueira (2004), dentre outros. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A produção da borracha na Amazônia, desde seus primórdios, aconteceu a partir do já bastante estudado sistema de aviamento (ALMEIDA, 1992; CUNHA, 1946 e 1994; PAULA, 1991; TOCANTINS, 1979, v.I), que, em linhas gerais consistia na manutenção da dependência do produtor direto, no caso o seringueiro, através do fornecimento, a crédito, de bens de consumo e instrumentos de trabalho. “O seringueiro ficava obrigado a vender sua produção ao barracão do seringalista (dono do seringal) que lhe aviava (fornecia) as mercadorias de que necessitava” (DUARTE, 1987, p.19, grifo do autor). Assim, o seringueiro encontrava-se, via de regra, preso por dívidas que, dificilmente, eram saldadas, pois a elas sempre eram acrescentadas novas fontes de débitos, graças à manipulação do peso da borracha e das contas relativas às despesas no barracão, tornando a produção sempre insuficiente para suprir as dívidas já empenhadas. Para garantir o sistema, os seringueiros eram mantidos sob estrita vigilância, através de capangas contratados para este fim, e severamente castigados ou mortos, nas tentativas de fuga ou de burla do estabelecido (SANT’ANA JÚNIOR, 2004). A empresa seringalista brasileira, desde a década de 1910, passou por várias crises, consequentes da concorrência internacional e, gradativamente, foi perdendo importância na economia nacional. No último meio século, a Amazônia tem sido marcada por políticas de desenvolvimento regional e ambientais – às vezes complementares, quase sempre contraditórias entre si – implementadas pelas várias instâncias do Estado, em aliança ou não com o capital privado; com apoio técnico e financeiro ou não de grandes agências internacionais de cooperação; contando ou não com a participação de movimentos sociais e sindicais e de organizações não-governamentais. O centro de nossa atenção, neste artigo, está em um modelo de Unidade de Conservação, as Reservas Extrativistas, que surgiram com o movimento socioambiental originado no Acre, como forma de enfretamento ao modelo de desenvolvimento concebido pelos governos ditatoriais implantados no Brasil a partir de 1964. O modelo de desenvolvimento ditatorial pode ser associado ao desenvolvimentismo, pois se pautava pela intervenção estatal na economia, visando garantir a industrialização do país, concebida como condição para o crescimento econômico (MANTEGA, 1984). Para a Amazônia brasileira, este modelo de desenvolvimento previa, principalmente, sua integração à dinâmica econômica que se afirmava no país, através de grandes projetos de desenvolvimento destinados à exploração mineral, florestal, agrícola e pecuária, visando ampliar a pauta de 318 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas exportações brasileiras e garantir matéria-prima e alimentos para a expansão da indústria que acontecia, prioritariamente, no sudeste do país. No caso específico do Acre, graças à sua proximidade do Peru e à possibilidade de construção de estradas que ligassem o estado aos portos do Oceano Pacífico, no correr da década de 1970, o projeto era de pecuarização da economia local (até então centrada no extrativismo da borracha e da castanha), com vistas à derrubada de florestas para instalação de grandes fazendas de gado bovino (SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Neste artigo, buscamos, então, recuperar a trajetória de criação e constituição das duas primeiras experiências de Reserva Extrativista criadas no Estado do Acre, a Reserva Extrativista do Alto Juruá e a Reserva Extrativista Chico Mendes, procurando percebê-las como fruto da luta histórica de resistência do movimento dos seringueiros, de um lado, ao sistema de aviamento e seus desdobramentos e, de outro, ao modelo de desenvolvimento baseado na pecuarização. 1 O Vale do Rio Acre e o Vale do Juruá Os Vales dos Rios Juruá e Acre, apesar de comporem o mesmo Estado da Federação, são marcados por significativas diferenças ambientais, históricas e sociais. Uma diferença ambiental relevante e com consequências imediatas nas atividades extrativistas, é a pequena quantidade de castanheiras no Vale do Juruá, o que faz com que a apropriação de produtos da floresta seja, prioritariamente, através do corte das seringueiras para extração do látex. É importante destacar também o fato geográfico de que os rios Juruá e Purus (o rio Acre é afluente deste rio) correm paralelos e vão desaguar no rio Amazonas, já no estado do Amazonas. Esta característica geográfica sempre foi determinante para a dificuldade de comunicação entre as duas regiões e um relativo isolamento mútuo. No início do século XX, uma viagem entre Rio Branco (capital do Acre), localizada nas margens do rio Acre, e Cruzeiro do Sul, localizada nas margens do rio Juruá, poderia chegar a 2 meses de duração e, no período das secas, quando a navegabilidade dos rios diminui, tornava-se praticamente impossível. Este elemento geográfico foi significativo na constituição de histórias diferenciadas entre as duas regiões do Estado. A partir da década de 1960, outro interveniente histórico tornou-se relevante: as posições político-ideológicas da Igreja Católica Apostólica Romana passam a ser bastante distintas. No Vale do Rio Acre, na Prelazia de Cruzeiro do Sul, com marcante presença de padres franciscanos de ori319 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) gem alemã, foi mantida uma linha pastoral que, nos confrontos internos da Igreja Católica, passou a ser reconhecida como conservadora. Já no Vale do Rio Acre, na Prelazia de Rio Branco, constatava-se a crescente influência de uma orientação pastoral identificada com o que viria a ser chamada de corrente progressista da Igreja, associada à, então em formação, Teologia da Libertação. 1.1 O Vale do Rio Acre A Igreja no Vale do Rio Acre, na década de 1970, se caracteriza pelo estímulo à formação de Comunidades Eclesiais de Base, com forte ênfase na organização e atuação partidária e sindical de seus membros. Desta forma, há uma nítida aproximação de padres, freiras e agentes pastorais com os núcleos de resistência de seringueiros à exploração da mão-de-obra no sistema de aviamento2 e, principalmente, às ameaças de expulsão da floresta advindas com a nascente perspectiva de pecuarização do Acre (PAULA, 1991; ALMEIDA, 1992; SANT’ANA JÚNIOR, 2004). É também no Vale do Rio Acre que se inicia a expansão das Rodovias, marca típica dos Planos de Integração Nacional (PIN), implementados a partir do final dos anos 1960, pelo regime ditatorial. A BR 317, que liga o Brasil ao Peru, segue paralela ao Rio Acre, ligando as sedes dos municípios de Rio Branco, Senador Guiomard, Capixaba, Xapuri, Epitaciolândia, Brasiléia e Assis Brasil. Já a BR 364, cujo trajeto final liga as cidades de Rio Branco e Cruzeiro do Sul, é marcada por dificuldades operacionais decorrentes do grande número de rios que deve atravessar e da ausência de pedras no entorno de seu trajeto para confecção do asfalto e de sua base. Tem boa parte de seu percurso ainda sem asfaltamento, tornando-se trafegável somente no período das secas. Desta forma, as estradas que efetivamente ligam o Acre ao restante do país e que, desde a sua construção lograram produzir um grande interesse em empreendimentos pecuários, chegaram primeiro ao Vale do Rio Acre e, nesta região, provocaram processos de desmatamento, com consequentes expulsão de seringueiros da floresta e conflitos sociais daí resultantes. Os desmatamentos e expulsão de seringueiros estavam diretamente relacionados com o projeto do Governo Federal, encampado pelo Governo 2 Como a empresa seringalista, desde o final da Segunda Grande Guerra (1939), gradativamente, perdia sua importância econômica, no Vale do Rio Acre, principalmente, o controle sobre a mão-de-obra seringueira passou por processos relaxamento, o que permitiu uma autonomização crescente dos seringueiros e o estabelecimento de um modo de vida próprio, ampliando a resistência ao sistema de aviamento (SANT’ANA JÚNIOR, 2004). 320 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas do Estado do Acre, de pecuarizar a economia acreana. Houve uma intensa campanha de divulgação no centro-sul do país que estimulava a compra de terras e incentivava o investimento na pecuária, a partir de slogans como “Amazônia: uma terra sem homens para homens sem terra” ou “Produza no Acre e exporte pelo Pacífico”, slogan esse que associava terras baratas, incentivos fiscais e a construção de estradas que ligariam a Amazônia ocidental aos portos peruanos do Oceano Pacífico. A chegada dos primeiros fazendeiros vindos de outras regiões, denominados localmente (independentemente de sua origem) de “paulistas”, e as consequentes derrubadas de trechos da floresta, chamadas de “limpeza de áreas”, para implantação de pastagens redundaram em amplos processos de expulsão de seringueiros que sobreviviam nas e daquelas florestas. A “limpeza de área” implicava, então, em retirar árvores, animais e pessoas. Todo este processo gerou movimentos de resistência por parte dos seringueiros e resultou em intensos e prolongados conflitos pelo controle e uso de territórios. Perguntado sobre estes conflitos, Osmarino Amâncio, líder seringueiro, referindo-se ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia e ao movimento de resistência às derrubadas de floresta realizado pelos seringueiros, comandado inicialmente por este Sindicato e denominado “empate”, lembra que “foi fundado o Sindicato em 1975 e o primeiro empate se deu em 1976. No Seringal Carmem, que tem uma história muito bonita, esse empate começou com 16 famílias e terminou com 92. Então, teve uma adesão. E o que foi mais importante é que o empate durou dois meses de conflito, de enfrentamento, trincheiras dos dois lados. Enfrentouse o exército, polícia, tudo e foi vitorioso. Então, isso foi assim como um querosene que pingou e espalhou, porque aí virou... deu uma infecção de empate na Amazônia, no Acre, principalmente, porque aí foi exportado os empates pra Boca do Acre, pra Assis Brasil, Xapuri. Aí eles não podiam mais vencer, porque a resistência começou em Brasiléia, já organizada. Porque antes a resistência era desorganizada. Mas aí, com os sindicatos, o sindicato só organizou essa resistência” (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 5 ago. 1999). Estes conflitos, com os empates, assumiram um contorno local e o nome dado a esta modalidade de resistência foi criado por seus próprios agentes, mais precisamente, segundo Osmarino Amâncio, pelo Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, Wilson Pinheiro, líder sindical que viria a ser assassinado em 1980. 321 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Foi o Wilson Pinheiro quem surgiu com a ideia do empate... O quê que era o empate? Empatar significa: nós, para sobreviver aqui na floresta, nós não precisamos desmatar, nos não precisamos fazer o desmatamento. Mas, também, se eles desmatarem nós não temos como ficar aqui, porque o que nós sabemos fazer é cortar seringa, quebrar castanha, trabalhar no extrativismo. Ninguém está adaptado à agricultura. Então, vamos empatar: nem nós derrubamos nem eles derrubam, então está empate. Nós não derrubamos, mas eles também não derrubam. Só que para nós era uma vitória, porque se a floresta ficasse em pé, nós sobrevivíamos (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 05 ago. 1999). Nos conflitos resultantes da resistência à expulsão e contra a derrubada da floresta, os seringueiros contaram com o apoio da Igreja Católica e com a presença da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), através de seu delegado sindical, João Maia, que foi deslocado para o Acre com a missão de contribuir para a organização de sindicatos de trabalhadores rurais e, posteriormente, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Acre – FETACRE. Entre 1975 e 1977 foram fundados sindicatos nos sete municípios que, então, existiam no Acre (PAULA, 1991; SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Concomitantemente à constituição do movimento sindical e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), aconteceu a discussão sobre a criação do que viria a ser o Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo Osmarino Amâncio, “tanto fazia o cara ser da Igreja, como ser do PT, como ser do sindicato, na hora de discutir estavam ali as mesmas pessoas. Então, quando fazia uma reunião, para não perder tempo, fazia logo as reuniões do sindicato, do partido e da Igreja” (Entrevista realizada em 4 ago. 1999). No PT, além dos militantes ligados à Igreja Católica, podemos destacar a presença de militantes vinculados a grupos e partidos clandestinos, que se abrigavam sob sua legenda. Dentre estes, no Acre, o Partido Revolucionário Comunista (PRC) teve bastante influência e contou entre seus membros com Chico Mendes e Marina Silva, por exemplo. Toda esta mobilização política e social era mais expressiva no Vale do Rio Acre, tendo os municípios de Brasiléia e Xapuri, que estavam na rota de expansão da BR 317, como principais centros das lutas dos seringueiros. O movimento de seringueiros, ao insurgir-se contra os desmatamentos demandados para implantação da pecuária extensiva, buscava garantir a manutenção das condições da reprodução social e econômica da categoria. A luta contra os desmatamentos, mesmo que inicialmente de forma não inten322 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas cional, acabou constituindo-se em um apelo forte de preservação ambiental, o que redundou numa aproximação cada vez maior com os movimentos ambientalistas que se fortaleciam em todo o mundo na década de 1970. Este movimento contou com muitos aliados e aspectos conjunturais favoráveis, conseguindo um nível bastante significativo de organização, de capacidade propositiva, de articulação com outras forças sociais e de obtenção de resultados. Os seringueiros ampliaram a eficácia de seu movimento quando passaram a incorporar, em meados dos anos 1980, o discurso ambientalista, para justificar suas lutas e como instrumento de consolidação de alianças políticas para além da Região Amazônica, articulando seus interesses particulares e locais com características universais e mobilizações globais. Os “empates” tornaram-se emblemáticos para a defesa da floresta e, na busca de ampliar suas alianças e conseguir apoio externo para suas reivindicações, o movimento dos seringueiros do Vale do Acre passou a incorporar a questão ambiental no cerne da justificação de suas posições na luta travada na região. Segundo Osmarino Amâncio: quando esse movimento surgiu, agente não sabia o que era essa história de ecologia, essa história de defender o meio ambiente. Aí nós descobrimos que os ambientalistas e os ecologistas estavam querendo uma coisa, porque eles explicavam pra gente que se a mata fosse desmatada ia aumentar a temperatura, o que eles chamam de efeito estufa. Tinha uma camada de gelo acumulada não sei onde e se o efeito estufa aumentasse a camada de gelo ia se dissolver e as cidades na beira-mar iam ficar debaixo d’água, iam sumir, o mar ia subir 12 a 14 metros, o sol... tinha um buraco na camada de ozônio. A gente nem sabia o que diabo era isso, essas coisas. Eles vinham falando essas coisas e a gente mandava depois eles trocarem em miúdo, pra gente, o que que era isso... Então esse pessoal veio e, aí, a gente passou a ir descobrindo que eles eram os aliados importantes. Porque a nossa briga aqui era pela reforma agrária. Agente queria o direito de ficar na terra (Entrevista realizada pelo autor do artigoem 05 ago. 1999). O modelo de desenvolvimento econômico proposto para o Acre a partir dos governos ditatoriais enfrentou uma oposição que, ao aliar-se com o crescente movimento ambientalista, assumiu um caráter cada vez mais propositivo e começou a elaborar alternativas de desenvolvimento que incluíssem o extrativismo, a qualidade de vida dos extrativistas, bem como, a preservação ambiental. É possível perceber que uma crescente 323 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) “ambientalização do conflito social”, pois, houve: “uma interiorização das diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”. Essa incorporação e essa naturalização de uma nova questão pública poderiam ser notadas pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial.” (LEITE LOPES, 2004, p. 17). A partir desta organização interna e do conjunto de apoios obtidos junto a movimentos e personalidades de outras regiões do país e do mundo, foi possível realizar o I Encontro Nacional de Seringueiros, realizado em 1985, em Brasília. Este encontro decidiu pela criação do Conselho Nacional dos Seringueiros e teve, entre seus resultados, a elaboração da proposta de criação das reservas extrativistas3. 1.2 O Vale do Juruá Já na região do Vale do Juruá, o atraso na abertura de grandes estradas fez com que a especulação imobiliária em torno das terras só chegasse posteriormente. Assim, o processo de pecuarização da economia ainda não é verificável no final da década de 1970 e durante a década de 1980; o sistema de aviamento continua existindo; e, como não há aqui a chegada de fazendeiros do sul (“paulistas”), os velhos “patrões”, como eram chamados os seringalistas, permanecem no controle da maior parte das terras ou mantêm prepostos ou arrendatários, também denominados de “patrões”. A economia do Vale do Juruá continuava sendo dominantemente marcada pela extração da borracha e pela persistência de práticas de exploração da mão-de-obra semelhantes ao modelo dos seringais implantados no final do século XIX. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, não era possível manter mais o sistema de aviamento em sua integralidade, pois a perversidade do sistema já havia sido por demais denunciada e as condições de manutenção da exclusividade da compra de mercadorias necessárias para a sobrevivência dos seringueiros no interior da floresta e da venda borracha no barracão do “patrão”, já não mais existiam. Apesar disso, mesmo não havendo exclusivi- 3 As reservas extrativistas, posteriormente, tornaram-se uma categoria de unidade de conservação ambiental prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), do Ministério do Meio Ambiente, criado pela Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2.000. O SNUC prevê dois grupos de unidade de conservação: Unidades de Proteção Integral (“preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais” – BRASIL, 2000, p. 13) e Unidades de Uso Sustentável (“compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais” – BRASIL, 2000, p. 13). Compondo o segundo grupo, a Reserva Extrativista é definida, no SNUC, como sendo: “(...) uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (BRASIL, 2000, p. 17). 324 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas dade de negociação, ainda era muito comum a prática do endividamento dos seringueiros, mantida através da conta desigual entre o que ele consumia (mercadorias) e o que ele vendia (borracha e demais produtos florestais) para o seringalista. Numa região com fraca presença de órgãos fiscalizadores do Estado, com dificuldades na difusão de informações e forte controle social e político exercido pelos seringalistas, a exploração da mão-obra dos seringueiros persistia através da cobrança da “renda”. Como lembra Franco (1994), a capacidade dos patrões de fornecer as mercadorias diminuiu, em função da crise da borracha, mas continuavam a cobrar renda de terras, das quais em muitos casos, nem detinham a posse cartorial. Isto é confirmado por Francisco Barbosa de Melo (Chico Ginu), Coordenador do Conselho Nacional dos Seringueiros no Vale do Juruá e líder seringueiro naquela região desde os anos 1980: a cobrança da renda, que não era uma lei, era uma espécie de acordo que tinha sido feito com os mateiros4 e depois foi tomando força de lei... As pessoas que tinham título de terra, como umas empresas que cobravam a renda no valor de 70.000 hectares de terra que era ocupado pelos seringueiros, sendo que documentado, com título definitivo eles só teriam 30.000 hectares. Isso aconteceu muito. Os seringueiros foram muito usados, com a cobrança de renda em terras da união, 60 a 90 quilos de borracha por estrada5 (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006). No Vale do Juruá, os conflitos envolvendo seringueiros, no final da década de 1970 e início da década de 1980, portanto, aconteciam majoritariamente em função da persistência das práticas típicas do sistema de aviamento e/ ou pela cobrança de renda por parte dos seringalistas. Naquela região, a cobrança de renda sem uma contrapartida em termos de assistência, provocou cisões nos acordos tácitos que garantiam a legitimidade daquela forma de dominação. Esta seria, então, a expressão mais visível do conflito no qual estavam envolvidos os seringueiros do Vale do Juruá. Em 1976, foi criado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul (SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Este Sindicato, inicialmente, buscou organizar a resistência ao pagamento da renda. No entanto, gradativamente 4 Especializado em abrir estradas de seringas (trilhas abertas na floresta ligando várias seringueiras) e distribuí-las para os seringueiros. 5 Cada seringueiro explora, em média, três estradas de seringa. Normalmente, no verão, período de poucas chuvas, cada estrada de seringa é percorrida de três em três dias, para o corte e colheita do látex. A renda era cobrada anualmente e correspondia a aproximadamente um terço da produção. 325 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) os “patrões” conseguiram “comprar” os Delegados Sindicais através da sublocação da cobrança da renda. Segundo Chico Ginu: “Os seringalista tiveram muita ousadia, que era de comprar os delegados sindicais. Quando eu assumi nos anos 806, mas quando foi em 85 e 86 eu estava sozinho, pois eles compraram os outros delegados todos, ou pelo contrário, eles tinham se vendido, que é como se chamava na época, aos patrões. Se comprava um delegado, normalmente oferecendo emprego de cobrador de renda. Então, por várias vezes, eles tentaram me comprar da seguinte forma: naquela época, daria em torno de 60 a 90 toneladas de borracha, só de renda, eu ganharia em torno de 15%, se eu recebesse a renda como delegado sindical, eu receberia em torno de 15% do valor. A mesma coisa eram as contas, os débitos. Então, eles passavam a tentar me convencer com isso. A gente assina aqui e se tu for no seringal e dizer que o pessoal deve pagar a renda, então nós te damos tantas toneladas de borracha (Entrevista realizada pelo auto do artigo em 9 nov. 2006). A cooptação da grande maioria dos Delegados Sindicais por parte dos “patrões” enfraqueceu o movimento de resistência dos seringueiros e desacreditou o Sindicato. O Conselho Nacional dos Seringueiros decidiu, então, que deveria apoiar mais firmemente a organização da resistência dos seringueiros no Alto Juruá. Segundo Chico Ginu: Em 1988 chegou o Conselho Nacional dos Seringueiros. Em 1987, eu tive algumas reuniões com o Mauro Almeida7 no interior dos seringais e ele já me falava do Conselho Nacional dos Seringueiros e já falava também nas reservas extrativistas, um tipo de reforma agrária dos seringueiros, que tinha sido uma coisa criada pelo idealista Chico Mendes. Aí o Chico Mendes pega o Macedo8 e bota o Macedo para ir para o Juruá para trabalhar a proposta. Nessa época o Macedo cruza com o Mauro e o Mauro me indica para o Macedo como o Delegado Sindical que estava lá trabalhando. Eu não conhecia o Macedo, eu já tinha ouvido falar do Macedo por rádio, porque ele trabalhava na FUNAI nessa época, com comunidades indígena, e daí, eu pego uma mensagem pelo rádio, do Macedo, para encontrar com ele no Bajé. Eu digo: ‘eu não conheço esse cara, mas eu vou encontrar’. Tive que viajar 6 Chico Ginu se refere ao período em que foi eleito Delegado Sindical no Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul. 7 Mauro Almeida é acreano e professor e pesquisador da UNICAMP. Sua tese de doutorado foi sobre os seringueiros do Alto Juruá e vem atuando como assessor do Conselho Nacional de Seringueiros, desde sua criação, com especial atenção ao movimento de seringueiros no Alto Juruá. 8 Antonio Luiz Batista de Macedo, atuou como indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e participou do processo de implantação do Conselho Nacional dos Seringueiros no Vale do Rio Juruá, tendo sido o primeiro Coordenador daquela regional. 326 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas um dia por dentro dos rios alagados para poder encontrar. Daí nós começamos os trabalhos com as comunidades (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006). Com a presença de Antonio Macedo e o envolvimento de Chico Ginu, foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros/Vale do Juruá (CNS/VJ), que era uma regional do Conselho Nacional. Esta regional buscou articular o que havia de resistência dos seringueiros e, em 1989, foi criada a primeira associação de seringueiros, a Associação dos Seringueiros e Agricultores da Bacia do Rio Tejo. Esta Associação conseguiu articular um financiamento do BNDES para criação de micro-cooperativa, que pudesse garantir o fornecimento de mercadorias para os seringueiros no interior da floresta e, desta forma, criar alternativas ao controle que os “patrões” ainda exerciam sobre os seringueiros9. A criação da Cooperativa era um passo rumo ao objetivo assumido pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, que era a criação das Reservas Extrativistas. Segundo Chico Ginu, “nesse período de 89, nós já trabalhávamos totalmente com o propósito de criação da Reserva Extrativista” (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006). 1.3 O processo de criação das Resex Chico Mendes e Alto Juruá Enfrentamentos constantes, conflitos, “empates”, mortes e perseguições intensas, levaram os seringueiros à re-significar sua identidade, então ligada ao empreendimento seringalista decadente e, portanto, desvalorizada. Procuram, então, relacioná-la, cada vez mais, com a defesa da floresta, apresentando-se como “guardiões da floresta” (ESTEVES, 1999, p. 231-238), de forma que permitiu uma rápida articulação com movimentos ambientalistas e sociais locais, nacionais e internacionais. A crescente ambientalização dos conflitos sociais (LEITE LOPES, 2004) provocou a emergência de novas práticas e conceitos nestes mesmos movimentos, permitindo o surgimento do que hoje vem sendo chamado de socioambientalismo. Os movimentos sociais no Estado do Acre assumiram um forte papel na consolidação do socioambientalismo, como movimento, e atuaram como protagonistas na construção de uma modalidade de Unidade de Conservação que se constituiu em uma novidade jurídica, que é a Reserva Extrativista. 9 Para uma análise detalhada do processo de criação desta cooperativa, dos passos dados e dos problemas surgidos, ver Franco (1994). 327 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Em 1985, no I Encontro Nacional dos Seringueiros, a proposta de criação das Reservas Extrativistas, que já vinha sendo discutida nos encontros de base preparatórios, foi aprovada como uma das principais reivindicações dos extrativistas ali presentes.10 A ideia era que, semelhantemente às Reservas Indígenas, os extrativistas deveriam lutar para que o Estado brasileiro criasse uma modalidade de legalização da ocupação de território que mantivesse a propriedade da terra no Estado, mas fosse dada a concessão do direito de uso às associações de extrativistas e estas manteriam sua forma tradicional de uso do território. Assim, seria implantado um novo modelo de reforma agrária: “a reforma agrária do seringueiro”. Este modelo se distingue das formas usuais de reforma agrária por não contemplar a distribuição de lotes individuais ou familiares de terras, além de incluir o compromisso dos membros das associações beneficiadas com a prestação de serviços ambientais, garantidos através de planos de manejo dos recursos naturais, a serem definidos coletivamente. Além disso, o órgão federal encarregado de gerir o processo não seria o INCRA, mas o IBAMA, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. A proposta de reforma agrária do seringueiro é um mecanismo resultante da ambientalização da luta pela permanência na terra e pela garantia de acesso aos recursos naturais. A primeira Reserva Extrativista do país foi a Reserva Extrativista do Alto Juruá, criada em 23 de janeiro de 1990, pelo Decreto Presidencial nº 98.863, abrangendo uma área de 506.186 ha, no recém emancipado município de Marechal Thaumaturgo, desmembrado do município de Cruzeiro do Sul. Chico Ginú, referindo-se a esta reserva afirma: “foi nos anos 90, ela foi criada. Foi um trabalho muito difícil, que foi tentar desenhar um modelo de reforma agrária para os seringueiros com características ambientais, ninguém tinha... Então, ali não foi feita nenhuma consulta pública, não foi feita nenhuma reunião comunitária, não foi feito nenhum trabalho preparatório, como a lei obriga que seja feito hoje. Então, foi feita uma coisa assim, porque, ou fazia daquele jeito ou então não saía. Porque não tinha nenhuma modalidade de reservas extrativistas. Daí, foi quando começou (Entrevista realizada pelo autor do artigo em 9 nov. 2006). No dia 12 de março de 1990, portanto, no mesmo ano da anterior, foi criada, pelo Decreto Presidencial nº 99.144, a Reserva Extrativista Chico 10 Apesar de ser denominado de Encontro Nacional dos Seringueiros, participaram do evento outras categorias de extrativistas como quebradeiras de coco do babaçu, pescadores artesanais, ribeirinhos. 328 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Mendes, no Vale do Rio Acre, abrangendo 970.570 ha dos municípios de Xapuri, Brasiléia e Assis Brasil. As primeiras Reservas Extrativistas (RESEX) foram criadas em um momento em que o país passava pelo encerramento do processo de transição dos governos ditatoriais para governos eleitos diretamente pelo voto popular. O primeiro presidente eleito após a ditadura de 1964, Fernando Collor de Melo, assumiu como diretriz de seu governo a orientação conhecida geralmente como neoliberal e que prevê o enxugamento do tamanho do Estado, a redução de sua intervenção na economia e das políticas públicas. Houve um incentivo inicial à constituição das Reservas Extrativistas, em boa parte assegurado pelo processo de preparação da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD)11, prevista para ser realizada entre 3 e 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, o que fazia com que o Governo brasileiro, como anfitrião de evento tão importante, tivesse que apresentar resultados significativos em termos de iniciativas de defesa ambiental. Mas, com o passar do tempo, predominou a concepção de que o Estado deveria assumir um papel cada vez menos ativo na sociedade e de que, com relação à garantia de qualidade de vida e de condições de produção econômica no interior das Reservas Extrativistas, aos extrativistas restaria a alternativa de buscar criar as condições de sua própria sobrevivência, aprendendo a lidar com o mercado (experiências não existente anteriormente, pois as relações comerciais feitas com o mundo externo aos seringais se davam por mediação dos seringalistas, do barracão). Hoje, enfrentam os desafios próprios de qualquer iniciativa inovadora, buscando garantir as condições para sua consolidação (PINTON E AUBERTIN, 1997, p. 268-283; FRANCO, 1996, p. 50). 2 As Resex e os desafios contemporâneos: o modelo desenvolvimentista não morreu e as ameaças da incorporação ao mercado Os desafios de sobrevivência, num mundo hegemonizado pelo mercado e em situação de monetarização crescente da vida12, fazem com que as pessoas se tornem mais dependentes do acesso ao dinheiro, para garantir sua sobrevivência. A falta de apoio estatal, tanto no âmbito da fiscalização 11 Também conhecida pelos nomes ECO-92, Rio-92, Cúpula ou Cimeira da Terra. 12 Isto é, a sobrevivência individual e familiar torna-se cada vez mais dependente do acesso à moeda, forçando as pessoas e grupos sociais a se dedicarem cada vez mais à produção de valores de troca, sobrando cada vez menos tempo para a produção para o próprio uso (sobre valores de uso e de troca, ver MARX, 1983). 329 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) quanto do apoio às práticas produtivas, remete os extrativistas localizados em reservas à sua própria sorte. Segundo Chico Ginu: “Não existe nenhuma política pública adequada às populações tradicionais, que venha a possibilitar que as pessoas encontrem entre eles mecanismos de sustentabilidade econômica e social e ambiental, que evite, que possa prevenir a aceleramento do desmatamento, provoque ação ao meio ambiente e que, acima de tudo, venha a garantir uma vida digna para quem está dentro da mata.” (Entrevista realizada em 9 nov. 2006). A constituição das Reservas Extrativistas não é garantia definitiva de que a conservação ambiental será efetiva em suas áreas de implantação. A recente retomada do poder de investimento do Estado brasileiro, redunda em retomada, também, de projetos desenvolvimentistas concebidos no período ditatorial e relativos à construção de infra-estrutura (principalmente estradas e hidroelétricas) para garantir as condições de implementação de grandes projetos econômicos no país e, em especial, na Amazônia. Retoma-se a perspectiva de integração da Amazônia à dinâmica capitalista. No caso do Acre, há uma ênfase na extração de madeira e na pecuária. O momento político é outro. Indubitavelmente, há considerável ampliação das possibilidades de conservação ambiental, com a constituição, nos últimos anos, do Sistema Nacional de Nacional do Meio Ambiente e de um número considerável de Reservas Indígenas e demais Unidades de Conservação. No entanto, o efeito objetivo parece não mudar, pois os índices de desmatamentos não diminuem de forma expressiva e não se verifica uma alteração expressiva nos modelos de apropriação de territórios e de suas riquezas naturais, carregados por fortes impactos ambientais e sociais. Com a crescente monetarização da vida, em boa parte das situações, o grande devastador não tem mais uma cara visível, como era o caso dos “paulistas” e do apoio que recebiam nas políticas públicas, no final da década de 1970 no Vale do Acre. O devastador, hoje, está disfarçado em práticas cotidianas, movidas por motivos simples e imediatos, que permitem transferir, sempre, a outrem (quase sempre um homem genérico, sem cara e sem corpo: “o Homem está destruindo a natureza” (GONÇALVES, 2005) a responsabilidade pela devastação. Assim, não se coloca em questão o modo de vida. Há uma lógica que não permite enfrentar efetivamente as causas do problema. Por parte das populações locais, principalmente da crescente população urbana, a demanda por desenvolvimento e modernização é cada vez maior e legitima ações modernizadoras governamentais e da iniciativa privada. 330 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Estas ações, normalmente, implicam em concentração de renda e degradação ambiental. As Reservas Extrativistas, aqui estudadas, têm sofrido um processo crescente de pecuarização por dentro, na medida em que há forte oscilação dos preços da borracha, da castanha e outros produtos da extração. Não tendo garantidas outras possibilidades de ganho financeiro, os extrativistas passam, gradativamente, a investir na criação de gado bovino. É comum ouvir, entre os seringueiros, que a criação de algumas cabeças de gado seria uma espécie de constituição de uma poupança para o enfrentamento de necessidades imediatas de dinheiro, pois há grande facilidade de transformação do gado em papel moeda: é só colocar no varadouro13 e levar para cidade que se obtém o dinheiro necessário e/ou desejado. Daí crescente a solicitação, por parte dos seringueiros, da ampliação das áreas de desmate no interior das Reservas, com vistas à ampliação da criação de gado. Segundo Rosildo Rodrigues de Freitas, então Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia: “Nós temos exemplo aqui de várias comunidades que estão com sua colocação inteirinha e têm dificuldade até para tomar o café da manhã. Já outros que desmataram a área deles inteirinha, eles têm o carro na porta, eles têm o seu crédito, eles têm o seu filho estudando lá fora. Isso dá uma contradição muito grande e às vezes isso está chamando o próprio produtor a pensar desta forma: “eu não tenho nada ainda porque não desmatei minha floresta, mas até quando vou poder continuar a fazer isso?” Isso a gente ouve todo dia. Isso eu ouço todo dia aqui na minha mesa”. (Entrevista realizada em 18/08/2004). Em função desta situação, Rosildo afirma ainda que: “Nossos parceiros hoje estão dentro do Governo e o Governo tem suas leis que têm que ser cumpridas e, aí, se limita na burocracia das leis do Estado, do país e às vezes as entidades não têm como romper, porque estão desmobilizadas e com isso nós temos sofrido muitos fracassos nesta questão da preservação ambiental, da organização social. E se nós não tivermos uma política voltada para esta questão, a Reserva Chico Mendes vai estar ameaçada e, daqui a dez anos, nós não vamos ter mais a Reserva (Entrevista realizada em 18 ago. 2004). 13 Caminhos abertos no interior da floresta. 331 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Conclusão A discussão atual sobre as Reservas Extrativistas não pode passar ao largo de uma discussão sobre o papel do Estado na consolidação destas reservas enquanto espaço de garantia da convivência entre produção e conservação ambiental. Tanto na fiscalização das práticas produtivas e das ações de agentes sociais externos às reservas, quanto no incentivo e suporte a práticas produtivas não degradantes e na remuneração por serviços ambientais, o Estado não pode se ausentar, sob pena de colocar em risco a viabilização das Reservas Extrativistas. Estes territórios não podem ser submetidos às leis do mercado, pois o mercado moderno, centrado no lucro individual e imediato, não é e, por esta característica, não pode ser uma instância a ser acionada para garantia da conservação. Por outro lado, a simples culpabilização das populações extrativistas não corresponde a uma leitura sociológica séria dos processos sociais nos quais estão inseridas. A monetarização da vida, o crescente apelo a novas formas de consumo, a ampliação das necessidades relativas à educação e à saúde, aliados à expansão da demanda por recursos naturais e de incorporação de novos territórios às práticas produtivas necessárias à ampliação do consumo pressionam fortemente estas populações a alterarem sua forma de viver e produzir, ameaçando formas tradicionais de organização da produção e, consequentemente, a conservação ambiental Referências ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. 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As rodovias federais abertas na Amazônia funcionam como corredores migratórios, estimulando a busca dessas áreas e, também do trabalho dito não qualificado do peão no desmate, formação e roço de pastos, construção de cercas entre outras atividades. Esses trabalhadores, como já está fartamente demonstrado pela literatura, vivem em situação de pobreza, ou com renda de dois dólares ou menos por dia, situação que atinge boa parte da população trabalhadora do atual mundo globalizado segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí demonstrou-se que: 71% dos trabalhadores daquele estado tinham renda familiar de menos de 1 salário mínimo; 93% dos que migram são homens; 51,7% são analfabetos ou possuem o primeiro nível do ensino fundamental; 90,8% migram para o trabalho temporário e apenas 23% declararam ter migrado para trabalhar uma única vez, entre 1999 e 2004. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A grande motivação para a saída é a necessidade de dinheiro para sustentar a família (43,3%), ou a falta de trabalho no local (52,2%). Os destinos mais visados são os Estados do Centro-Oeste (55,6%) e as atividades realizadas estão em grande parte ligadas ao meio rural (83,9%), sendo que a cana-de-açúcar, no caso desses trabalhadores comparece como grande atrativo (64%). Um dado que chama a atenção é que 31,9% dos entrevistados declararam migrar mediante o pagamento de um adiantamento do gato, um forte indicador de aliciamento, primeiro passo para enredar o trabalhador na teia do trabalho escravo contemporâneo (CPT/PI; FETAG/PI; PASTORAL DO MIGRANTE/PI; DRT/PI, [2004]). São os “redundantes”, na expressão de Bauman (2005, p. 20), pessoas de quem o mundo moderno deixou de precisar, força de trabalho de baixo padrão. Ao contrário do exército de reserva de mão-de-obra, com quem o capitalismo contava para uma possível inserção, os redundantes são o refugo, sobrevivem dos “benefícios” destinados pelos Governos. “Nenhum objeto é ‘refugo’ por suas qualidades intrínsecas, e nenhum pode tornar-se refugo mediante sua lógica interna. É recebendo o papel de refugo nos projetos humanos que os objetos materiais, sejam eles humanos ou inumanos, adquirem todas as qualidades misteriosas, aterrorizantes, assustadoras e repulsivas relacionadas acima (BAUMAN, 2005, p. 32). Seria ingenuidade pensar que essa condição é mera construção teórica, que essas pessoas a desconhecem. Conhecem e expressam suas opiniões e análises quando nos dispomos a ouvi-las. Seus relatos falam de um mundo de carências profundas, de violências em múltiplas faces, mas longe de serem vítimas, aprenderam a viver nessa estreita fronteira que os separa do mundo. Nosso mundo, com sua organização específica, traçou normas, leis. Estas constroem espaços circunscritos e por extensão, dão existência à margem, o lugar dos excluídos. Em contato com uma dessas pessoas, conversamos sobre sua vida, seu trabalho, partilhamos da memória do mundo visto por ele, marcado por violências cotidianas, estratégias de sobrevivência aprendidas no contato com os desafios diários, relatos de enfrentamentos que valorizam a coragem e a força. Ele expõe de modo simples, como trabalhadores se tornam peões rodados. No seu caso, tornou-se um sem terra, agrupou-se a outros acampados em área de conflito no Araguaia. Mas sua reflexão sobre como ocorreu 336 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas essa passagem e suas consequências é singular por sua compreensão acerca da degradação da pessoa e dos efeitos disso: “A roupa vai acabando, a dignidade da pessoa vai acabando, a vergonha, a pessoa quando entra no Sem Terra a primeira vez, tem vergonha de carrega uma cesta, um homem forte, às veis, que nem nóis aqui com uma cesta do governo, quantas criança com fome, um que mereceria comer como no Nordeste ou como numa favela. Um Sem Terra forte carregando uma cesta e o Governo Federal pagano isso, é uma vergonha. [e logo em seguida arremata]... é mais fácil o homem virá um Sem Terra do que um Sem Terra virá homem...”1 Quando se torna um rodado, um peão sem rumo, que migra de empreita em empreita, vivendo em pensões peoneiras ou mesmo em praças ou ruas à espera do gato, o trabalhador atravessa a fronteira da dignidade humana e se expõe a toda sorte de exploração. Desconsiderado socialmente, usado em sua capacidade de trabalho, o que mostra de si aos outros é a força e a valentia dentro do grupo, sem o que não consegue sobreviver. Esconde-se na bebida, na droga, na falta de cuidados com seu corpo, na atitude agressiva para com aqueles que teimam em lhe dirigir o olhar. Quando conseguimos ouvi-lo que se rompe o disfarce e aparece a pessoa e sua história: Eu to aqui há um ano e oito méis sem vê meu filho, minha mulher, minha filha, tá vivendo de favor. Não tá de favor porque minha família tá mais ou menos no Rio Grande do Sul, mas eu voltá prá lá desse jeito com o saco nas costa? Volto não [...] Meu filho tá com 15 anos, fazendo técnico agrícola, 2º ano [...] Não. Não volto [...] Não. Depois que sai, não. É melhor não saí, fica em grupo ou (pausa)...depois que sai e voltá com problema, não. Pode ser de difícil compreensão que uma pessoa que tenha uma vida organizada, mesmo que marcada pela necessidade econômica, abra mão disso por orgulho, mas essa explicação aparece com frequência entre esses trabalhadores. Uma vez migrados, eles relutam em voltar para suas casas e para o convívio de seus familiares, quando a viagem não deu o resultado esperado, mesmo que a responsabilidade pelo insucesso não lhe caiba. Se o endividamento na empreita consumiu seu salário, se a fatalidade de uma malária o atingiu e o obrigou a gastos maiores, qualquer que seja a razão, é frequente ouvir em seus relatos que sem o dinheiro buscado, não voltam. 1 Depoimento colhido no Centro de Pastoral para o Migrante em Cuiabá, da Arquidiocese de Cuiabá, em 30 mar. 2007. 337 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Preferem rumar para outra empreita na expectativa de que dessa vez consigam juntar algum recurso. Bastante lúcida é sua percepção sobre os locais nos quais terão chances de trabalho. Sabem que nas áreas já abertas, mecanizadas, os espaços profissionais estão tomados. Sabem que, mesmo enfrentando as situações descritas acima, a fronteira é o lugar aonde ainda têm espaço: No Sul hoje, com o que eu sei fazê, eu não me arriscava. Eu não trabalho mais lá. Não tenho mais mercado de trabalho. E aqui eu tenho. [...] Aqui o meu trabalho eu já não posso mais fazê isso, mas no Pará eu posso, no Amazonas eu posso, no Acre, prá lá, prá qualquer lugar aonde tá difícil. Onde tá a malária, aonde tá o pistolêro, onde tá o gato, onde tá o povo é aonde o peão vai achá o serviço, porque o que é especializado não vai querê tá nesse meio. Então vai essas pessoas menos capacitada. Por isso que o pessoal diz: - mas vem do Maranhão. Aquilo tudo é gente de coragem. Que o que não tem coragem de estabilizá não vem. Vem aquele que tá com problema lá no Piauí, no Maranhão, no Tocantins, então êle vem pra cá prá enfrentá a vida e a maioria não volta. Por algum motivo uns morre. Outros fica com vergonha de voltá, que êle acha que veio prá ganhá um dinherão, acaba não ganhando nada e cada vez vai tocando a cara mais prá frente que nunca mais volta. E nunca ninguém sabe dele. Nunca mais dá notícia.2 íntese da situação dos trabalhadores migrantes nessas áreas de fronteira mostra que estão ali não por opção, mas por imposição. Os estudos da CPT do Piauí demonstram claramente que a maioria (95,5%), dos que viajam assim fazem por falta de alternativa financeira e destes, 56% viajam com grupos de trabalhadores contratados por empresas ou aliciados por empreiteiros. Muitos caem nesse círculo das migrações, outros migram para cidades maiores em busca de trabalho e há ainda os que retornam para seus Estados para migrar no próximo ano. A grande Cuiabá possui um grande cinturão de pobreza à sua volta a saber que 41% da população de Várzea Grande (MT), município desta região com pouco mais de 200 mil habitantes, está na condição de miséria, 25% da população do Estado vive com R$ 80,00 por mês ou menos. (MATO GROSSO TEM..., 2002). As taxas de abandono do ensino fundamental chegam a 29%, famílias desestruturadas vivem em barracos feitos com pedaços de madeira. Alguns 2 Depoimento colhido no Centro de Pastoral para o Migrante em Cuiabá, Arquidiocese de Cuiabá, em 30 mar. 2007. 338 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas vão para o trabalho diário nas propriedades rurais do entorno metropolitano recebendo R$ 6,00 por dia de trabalho na capina (DRUMOND, 2002, p. 6). Esta periferia, onde vivem centenas de milhares de pessoas com histórias de vida como as já narradas, é o ponto de confluência da ineficácia do poder público com a ação incontrolada das forças do mercado. Ali viceja a cidade clandestina na qual uma gama de soluções alternativas substitui a ausência deliberada do Estado. As “gambiarras” substituem a rede elétrica e o fornecimento de água, a arquitetura da invasão constrói a não-casa, o perueiro dirige o não-ônibus (MOURA, 2000, p. 202). Ali é o espaço do nãocidadão. A convivência entre desiguais acabou por gerar um inconformismo verbal e um conformismo prático. Uma sociedade que se quer moderna e uma modernidade que prescinde daqueles que a constroem. Vivemos como os habitantes de Leônia, uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino (1990). Ansiamos cotidianamente pelo novo de descartar na mesma proporção o antigo, que odiamos, que gostaríamos que não existisse, mas para que isso fosse possível, seria preciso que ele nunca tivesse sido produzido. Desenvolvemos planos, políticas, projetos (re)pensando o futuro. Nascem fadados ao fracasso enquanto rejeitarmos o passado e não mudarmos nossa forma de pensar o presente. Esses trabalhadores, desconsiderados socialmente, ficam à mercê da superexploração das “pessoas de bem”, e submetidos aos caprichos do empreiteiro. Nas áreas de trabalho, são facilmente surpreendidos pela mata. Se os dados oficiais são trágicos ainda nestes primeiros anos do séc. XXI, as narrativas tendem ao fantástico quando falam de paus que pulam, galhos que caem inesperadamente da alta copa das árvores, troncos que dançam, ou coiceiam. É como se a natureza resistisse empreendendo uma luta corpo a corpo, procurando derrotar seus adversários. As histórias de vida dessas pessoas passam, invariavelmente, por seguidas migrações, desrespeito aos direitos mais fundamentais do ser humano e abandono por parte do poder público. Dona Alice e Seo Hilário são casos exemplares. Nascidos na Bahia, migraram rumo ao Sul em busca de trabalho no campo e melhores condições de vida. “Iludiram a gente com toda aquela bobagem. Falaram até que a gente ia rastelar dinheiro debaixo dos pés de café.” No interior de São Paulo, foram submetidos ao trabalho escravo na lavoura por quase doze meses, cinco dos quais trabalharam sem receber nenhuma alimentação: “comia mamão cozido e sem sal, porque não tinha”. Hoje, aos 78 anos, Dona Alice conta uma longa rota de migração que inclui passagem pelo garimpo, onde uma de suas filhas desapareceu, até a chegada 339 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) à periferia de Cuiabá. Vive com um salário mínimo, aposentadoria de Seo Hilário (PIMENTEL, 2001). Em Alta Floresta, ainda no ano de 2007 foi possível encontrar pela cidade, entre os dias 5 e 10 de cada mês, trabalhadores trazidos pelos gerentes ou capatazes das fazendas para fazerem compras ou frequentarem bordéis. Esse é também o período do mês em que os pontos de chapa ficam mais frequentados à espera da contratação, da empreita. As empresas entretanto, já não estão mais utilizando essa mão de obra na própria região. A frente de trabalho está depois da fronteira estadual com o Pará a pouco mais de 35km em linha reta ou 65km de estrada de chão. É comum as contratações por gatos prestando serviços para empresas agropecuárias, os hotéis peoneiros, o sistema de caderneta e o pagamento com vales. As informações coletadas nos levaram à existência de contratos de prestação de serviços temporário feito entre o trabalhador e a empresa que são enviados para um escritório de contabilidade e mantidos em gaveta. Em caso de complicações, como por exemplo, acidente de trabalho, o contrato assinado serve para dar cobertura ao empregador. Vale a pena chamar a atenção para esta situação de exploração da mãode-obra migrante, e de peões rodados no Mato Grosso ainda que Conhecidos centros receptores de trabalhadores, dentre estes Nobres ou Sorriso, já não mais assim atuam. Agora, a linha divisória dessa fronteira de exploração e migração corta o norte de Mato Grosso e chega às terras do Meio no Pará. Nestas áreas da fronteira amazônica, a modernização proporcionou mais que o desenvolvimento do agrobusiness; gerou a acumulação e a concentração de determinada riqueza, que alija os empregadores de responsabilidades trabalhistas de modo diretamente proporcional ao de seu avanço. Os números fantásticos da produtividade da soja matogrossense, a riqueza dos garimpos, o potencial madeireiro, têm em seu avesso a promoção de acentuada desigualdade social. Um grande contingente de migrados foram reduzidos à condição de excluídos e outros tantos continuam a chegar atraídos pela ilusão do Eldorado. Isso porque a fronteira construída em nome da modernidade, símbolo do avanço da frente de expansão do capital faz uso indiscriminado de relações de trabalho excludentes. Há no Brasil, um triste histórico de arbitrariedades cometidas contra os trabalhadores rurais. Mais de 50% das mortes do ano de 2002 estão em áreas consideradas de fronteiras - Maranhão, Pará e Mato Grosso –53,74% (CAVALCANTI, 2002, p. 63). Nestas áreas, os conflitos políticos, as disputas legais, reivindicações básicas, transformam-se com frequência em assassina340 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas tos e outros crimes contra a pessoa. No Brasil, entre 1985 e 2001 morreram no campo 1.237 pessoas.3 Somente em 2006 foram registradas 207 ameaças de morte, 72 tentativas e 36 assassinatos (ALMEIDA, 2006) Em relação ao trabalho escravo, os números oficiais do Ministério do Trabalho Emprego relativos a 2006 indicam que do total de 3.075 trabalhadores libertados no Brasil, 376 estavam em Mato Grosso. Em 2008, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) do Mato Grosso/ MT registrou 154 trabalhadores resgatados até julho. Nessas áreas o processo de tornar natural a violência e o desconhecimento ou descrença no poder do estado, se fazem presentes. A isto somase o fato de que os poucos representantes do poder público nesses locais, com honrosas exceções, ou sentem-se impotentes para fazerem frente às situações que se lhes apresentam ou assumem a função de reafirmadores dessa conduta. Uma senhora que havia sido dona de um bordel, quando procurada para conversar sobre um fato particular com o qual havíamos tido contato em outros depoimentos, responde-nos com narrativa de cotidiano de vida familiar e de muito trabalho. Se houve tráfico humano, se ela esteve envolvida, por mais que as evidências exteriores nos permitam constatá-las, em sua memória, sua vida aparece marcada por outras cores. O mesmo ocorre quando o assunto é exploração do trabalho dos peões. Hoje os discursos sobre direitos trabalhistas, a legalidade, estão incorporados e fluem com facilidade em qualquer conversa com empreiteiros ou proprietários rurais, mesmo que as operações do Grupo Móvel continuem a encontrar todos os problemas trabalhistas aqui tratados. No Brasil, Os principais traços encontrados na relação trabalhista de exploração de trabalho são: predominância de uso pelo setor privado, no setor primário; endividamento induzido como método de coação; precariedade da situação jurídica de milhões de pessoas expressa no Brasil pela falta de certidão de nascimento; ausência de leis mais eficientes para coibir e punir tais crimes. Nessas áreas de fronteira, são outras as estruturas de poder que se articulam, outras as redes de solidariedade, que muitas vezes fazem um trabalho extremamente importante, pois representam o fio de esperança para milhares de pessoas marginalizadas, mas estão constituídas em uma fragilidade 3 472 pessoas no Pará (38,15%), 107 no Maranhão (8,64%), 89 na Bahia (7,19%), 86 no Mato Grosso (6,95%), 68 em Minas Gerais (5,49%). Os dados são da Comissão Pastoral da Terra. 341 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) impressionante apoiadas na ação individual, em iniciativas abnegadas, uma luta de Davi contra Golias. As esferas do público e do privado se confundem. Não raro o primeiro, apropriado por grupos dominantes, serve aos interesses do segundo. Quando não, podem ocorrer conflitos entre diferentes esferas do poder público em razão das pessoas investidas de autoridade assumirem posições divergentes no quadro político local. No mês de fevereiro de 2006, o Grupo Móvel de Fiscalização composto por vários órgãos do Governo Federal, entrou na fazenda Zankara, município de Nova Lacerda para averiguar a exploração de trabalhadores e foi recebido a tiros por policiais militares, alguns à paisana, chamados pelo fazendeiro para defender sua propriedade. As redes de conivência à exploração do trabalho desses homens e mulheres migrantes têm podido contar, em alguns casos, com representantes do Estado, colocando os poucos órgãos que deveriam ser canais de viabilização dos direitos do cidadão, a serviço da manutenção de uma ordem peculiar, que naturaliza a violência. A concentração do poder político local nas mãos de poucas pessoas, geralmente associado ao poder econômico, se constitui no principal elemento dessa rede de conivência que assenta a exploração de homens e mulheres, invade áreas indígenas para a exploração de madeira e minério ou mesmo para a ocupação de terras, que se defende das ameaças utilizando-se dos recursos à mão na preservação de seus interesses. Em 1986 teve uma invasão de terra numa fazenda grande aqui pro lado de Fontanillas [...] a polícia judiou deles uma barbaridade [...] no dia que pegaram um ônibus que tava chegando cheio de gente para grilar mais terra [na verdade, a expressão “grilo” aparece aqui empregada para fazer menção à ocupação, apossamento e não no sentido acadêmico...] botaram dentro de um curral e surra cedo e surra de tarde e tava chegando mais ônibus, inclusive tem um padre [...] padre João [nome fictício] levou uma surra tão grande quase morreu. Eu como médico examinei e fiz uma descrição, um laudo, e tinha caroço e hematoma no corpo inteiro [...] a polícia parou o ônibus [...] ai já faz aquele corredor e o cara desce ali é soco na orelha e pontapé na bunda. Ai diz que chegou um cara, diz que era um mundo dum cara e na hora que ele foi descer ele fez uma cara feia, o manda chuva da polícia falou “esse tem cara de limão. Traz lá meia dúzia de limão pra ele”. Correram lá num pé de limão rosa, deram uns cascudos nele, fizeram ele descer, pegaram o limão, abriram esfregavam bem na terra assim e fala “come meu compadre” e o cara “nham, nham, nham”, com casca e tudo, com terra, com limão, “gostou?” e se 342 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas fizer cara feia ainda leva uns tabefes [...] diz que o bicho comeu meia dúzia de limão [gargalhada] e ia pro curral e ficava lá ajoelhado [rindo bastante] aqui tem um cara, não vou nem falar o nome dele [risos] é um cara aqui que acharam que ele tinha cara de cantor. Então perto do curral tinha uma árvore bem alta, diz que passaram a mão numa metralhadora, “sobe lá na árvore” [gritando] “mas como eu vou subir lá?” “Sobe seu desgraçado!” e “pá!” [som de tiro] e o cara subiu na árvore, virou um macaco e subiu lá. “e agora você não me para de cantar, se parar leva bala” diz que o cara cantou Fuscão Preto lá um bom tempo. Até uma hora a polícia deu uma bobeira e ele enfiou o pé no mato [...] descalço, diz que ele ficou sumido mais de semana no meio da mata, parece que ele ficou meio alterado [...] tudo machucado, tudo desgraçado e meio tantan, mas hoje ele já melhorou um pouco.4 O entrevistado, um representante do poder local narra em tom de “batepapo” um episódio permeado de irregularidades. Em sua fala as surras, o curral, a tortura, aparecem como naturalizadas. A violência policial aparece banalizada. Aos torturados nada além da constatação do merecido castigo. Ele, médico da cidade, atendeu pessoalmente a algumas das vítimas daquela ação. Foi testemunha ocular dos seus efeitos. O padre não contou com a complacência dos seus algozes. Foi surrado duramente. A expressão “quase morreu” utilizada no depoimento não é simplesmente um artifício retórico, mas remete à pequena distância entre deixar viver ou não quem quer que se coloque entre aquela elite local e seu projeto de ocupação. Essas redes de conivência são também compostas por pequenos comerciantes, donos de pensões que fornecem a alimentação para os trabalhadores, donos de hotéis que os alojam mesmo durante o período de desemprego, donos de bordéis, donos de empresas clandestinas de transporte que trazem os trabalhadores dos estados do nordeste para o Mato Grosso, disfarçadas de empresas de turismo ou de fretamento, cooperativas de trabalhadores. Estivemos em uma dessas empresas clandestinas na cidade de Sorriso. Nesse caso, o transporte se dava entre cidades do Maranhão e aquele local. Os proprietários cobravam pela viagem a metade do preço praticado pelas empresas de transporte rodoviário credenciadas. O prédio do terminal clandestino não tem nada de discreto. Um grande salão com fachada amarela e um enorme letreiro Maranhão-Sorriso a cem metros da BR-163 que corta a cidade. Segundo os entrevistados houve tempos de trazerem duzentos trabalhadores por semana e não atenderem a demanda. 4 Depoimento, Castanheira, 2003. 343 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) As redes de resistência local à exploração do trabalho apresentam natureza das mais variadas, a saber: a Igreja Católica representada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista e Missionário (CIMI), o Centro de Pastoral do Migrante, e comparecem como referência de proteção e apoio para trabalhadores migrantes e marginalizados. Os sindicatos de trabalhadores rurais nem sempre compõem essa rede de resistência, mas há importantes representações dessas entidades no interior, em Confresa, por exemplo, onde a presidente da entidade luta contra a exploração do trabalho compulsório e pela regulamentação do trabalho do migrante. Alguns representantes dos poderes públicos são referências nas suas áreas de atuação para inibir práticas até então comuns, mas ilegais. Encontramos na região de Apiacás o Promotor Público Estadual que assumiu a defesa de menores, peões, assentados e passou a contar com a ajuda de professores, membros do Conselho Tutelar da Infância e da Juventude e se tornou uma referência para as denúncias dos crimes. A região carrega uma marca do garimpo que foi muito forte em toda aquela área, que são os crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes e a prostituição infantil. Para muitos dos representantes da Igreja Católica destes locais, calar diante de tais situações aberrantes seria coonestá-las. O que tornou esses casos mais graves na Amazônia foi o fato de que os atingidos não tinham opções ou alternativas para reagir. Os canais de denúncia e as autoridades competentes, estavam muitas vezes a vários dias de viagem a pé, por entre picadões, e nem sempre alcançá-los era promessa de sucesso. A Igreja Católica, as Associações de Pequenos Produtores Rurais, os Sindicatos de Trabalhadores, entre outras organizações, apresentam-se como espaços horizontalizados (SANTOS, 1998, p. 15), opostos, portanto aos espaços verticalizados produzidos pela mundialização, que tornam as fronteiras fluídas e vulneráveis às influências sociais e econômicas exógenas. Em Mato Grosso, a constituição do Fórum Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo em 2004 deu impulso a essa causa de exploração de trabalho e culminou na aprovação dos decretos nº 985 de 7 de dezembro de 2007, que criou a Comissão Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE) e nº 1.545 de 29 de agosto de 2008 que aprovou o Plano de Ação para a Erradicação do Trabalho Escravo para o Estado de Mato Grosso, avaliado pelos grupos da sociedade civil organizada, como importantes avanços nesse diálogo com o governo de Mato Grosso. O argumento de que o cumprimento da lei provocará o desemprego desses trabalhadores é falacioso. As tarefas nas quais é empregada essa 344 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas mão-de-obra não são perenes. O desmatamento é atividade já descartada em muitas das regiões do Estado; a catação de raízes já está sendo suprimida pelo uso de equipamentos desenvolvidos para esse fim, e nos parece que mesmo no corte de cana, uma atividade que historicamente fez uso da mão de obra sazonal, responsável pelas duas maiores ações de dos Grupos Móveis de Fiscalização (Mato Grosso, Confresa em 2005, 1 008 trabalhadores e Pará, Ulianópolis, em 2007, 1 064 trabalhadores), está caminhando para a mecanização. Não será o cumprimento da lei que promoverá o desemprego desses trabalhadores, mas é a própria dinâmica do desenvolvimento do capital que levará a substituição paulatina da mão de obra manual pela máquina. Outro equívoco é falar da necessidade da reinserção social desse contingente, pela simples razão de que eles nunca estiveram inseridos. Participam de nossa sociedade de modo marginal, mão-de-obra barata. O paradoxo do desenvolvimento econômico é que essa dinâmica é parteira de uma concepção retrógrada de progresso. No mundo contemporâneo a industrialização trouxe o desenvolvimento para não mais que um terço da população: “Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB e da riqueza dos países menos desenvolvidos para que se aproximem mais dos países desenvolvidos, é fácil mostrar que tal objetivo é uma miragem [...] se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB para assegurar mais bem-estar às populações [...] é fácil mostrar que hoje o bem-estar não depende tanto do nível de riqueza quanto da distribuição da riqueza. Em vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao desenvolvimento.” (SANTOS, 2000, p. 28). (Grifos nossos). Daí, em Mato Grosso, Governo e Sociedade Civil começam a tratar de outra agenda, a do acesso ao Trabalho Decente, porque a criação de novos empregos devem estar associada à promoção de vida digna. O Centro-Oeste têm crescido em ritmo chinês enquanto o Brasil mantém índices africanos, mas esse sucesso econômico só terá valia se vier acompanhado de desenvolvimento humano, equidade e trabalho decente. Há muito mais para ser dito e muitos (e bastante divergentes) são os argumentos acerca do tema em pauta. Pensamos ser correto o argumento de que apenas uma pequena parcela dos trabalhadores migrantes é atingida por essa relação, mas é inegável, assustadora e vergonhosa sua (re)existência. 345 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Referências AMEIDA, Alfredo W. B. Terra e território: a dimensão étnica e ambiental dos conflitos agrários. In: Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no campo no Brasil 2006. Goiânia: CPT Nacional, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia das Letras, 1990. CAVALCANTI, Klester. Viúvas da terra. Os caminhos da Terra, São Paulo, ano 11, n.127, p.56-63, nov. 2002. CPT/PI; FETAG/PI; Pastoral do Migrante e DRT/PI. Campanha de prevenção ao trabalho escravo e combate ao aliciamento de trabalhadores no Piauí. Mimeo., [nov. 2004]. DRUMOND, Ana. Bolsão no Jardim Esmeralda. A Gazeta, Cuiabá, 14 abr. 2002. Caderno B. p. 6. MOURA, Rosa. Cinco séculos de desigualdades na apropriação do solo urbano. In: SOUZA, Álvaro, SOUZA, Edson, MAGNONI Jr., Lourenço (Orgs.). Paisagem, território e região: em busca da identidade. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000. PIMENTEL, Carla. Desrespeito à lei são comuns no Brasil. A Gazeta, Cuiabá, 25 jun. 2001. Caderno B, p. 1. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Milton. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M.A.A.; SILVIERA, M.L. (Orgs.). Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1998. 346 Depoimento Uma situação vivida por um imigrante de 1931 Mitiko Yanaga Une O ano de 2008 foi o ano do centenário da imigração japonesa no Brasil. Diversas comemorações aconteceram em diferentes partes do território brasileiro culminadas com a chegada no Brasil do Príncipe herdeiro do trono japonês: Sua Majestade Naruhito. Ele visitou várias cidades. Todos queriam ver o Príncipe. Afinal, mesmo no Japão é difícil ver um membro da família imperial devido o protocolo de sua segurança. Afinal, existem motivos para comemorações? A imigração japonesa nos primórdios foi bem recebida? Pode-se falar em sucesso? Todas as indagações exigem uma reflexão. Exigem repensar a imigração japonesa. Okubaro (2006) fala do tratamento discriminatório dispensado aos imigrantes no navio Kasato Maru pelo capitão Stevens e sua tripulação. Isto porque apesar da bandeira japonesa, o Kasato Maru era capitaneado por um inglês. Descreve a ridicularização a que os imigrantes foram expostos diante da obrigatoriedade de eles vestirem trajes ocidentais adquiridos em algum bazar beneficente quando da sua chegada no porto de Santos. Fala ainda da seleção dos imigrantes na Hospedaria dos Imigrantes pelos representantes dos fazendeiros como se eles fossem gado em alguma feira agropecuária. Repensando a questão, do ponto de vista de vista deste representante, os referidos imigrantes, na verdade, eram meros “braços” para tocar os afazeres da fazenda. Hoje se fala em homens-dia para tocar qualquer trabalho. Mudou o vocabulário e mudou a forma de entender o trabalhador. É preciso lembrar que eles chegaram ao Brasil apenas vinte anos após a promulgação da Lei Áurea. Época em que se admitia que todo trabalhador rural não diferia do escravo. O tratamento dispensado a eles deveria ser idêntico. Entretanto, esses imigrantes precisavam receber uma remuneração. A remuneração era o diferencial. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Vinte e três anos depois, quando o meu pai, Takeki Yanaga, então com 18 anos de idade, veio como imigrante trabalhar em uma fazenda de café, ele passou e também presenciou várias situações constrangedoras.Antes disso, gostaria de expor a real situação dele. Meu pai descende de uma família de produtores rurais na zona rural da cidade de Kurume, na Província de Fukuoka na ilha de Kyushu. Era o segundo filho varão. Na época, todo primogênito ficava com a herança das terras. Ao segundo filho homem cabia receber educação além do curso primário para seguir uma carreira profissional intelectual. Ao terceiro e quarto filhos do sexo masculino cabiam um dote para procurar uma profissão na cidade, geralmente no comércio ou ingressar na carreira militar. Meu pai concluiu o curso ginasial em 1930 em um famoso colégio de Kurume. Enquanto estudante pretendia seguir carreira universitária. Como não havia universidade em Kurume, teria então que ir para Tokyo. Enquanto alimentava este sonho, certa vez viu que seu pai estava pagando o ginásio com arroz e não com moeda corrente. Percebendo então que a família era pobre, candidatou-se a uma bolsa de estudos em Tókio. Não ganhou. Então, tentou a carreira militar na marinha. Não foi aceito. Decidiu então, desanimado, que viria para o Brasil. A família foi contra. Ele prometeu que voltaria rico e ajudaria os pais. Jurou. Era a propaganda veiculada no Japão. Seus amigos de colégio foram contra. Um deles foi a favor. Era o Imamurasan, o amigo aventureiro. Imamura-san decidiu acompanhar Yanaga. E foram juntos para a primeira parte da grande aventura. Ambos saíram pela primeira vez da modesta Kurume para a principal ilha do arquipélago nipônico: a de Honshu, onde está situada a capital, Tokyo, rumo ao porto de Kobe. Chegaram antes à Osaka, onde Imamura-san tinha uma tia e ali pernoitaram gratuitamente. A última noite de todos juntos foi uma imensa despedida. Imamura-san pediu uma garrafa de sake ao tio e juntos ingeriram álcool pela primeira vez. No Japão, menores de vinte anos de idade não podem ingerir álcool. Alcoolizados se puseram a cantar e com os braços no ombro um do outro. Cantaram músicas infantis, o hino do famoso Colégio Meizen e o Miyotookai, hino que enaltece as conquistas militares japonesas pelas ruas de Osaka. Yanaga se despediu ali do amigo dizendo que ele voltaria do Brasil vencedor com uma imensa fortuna e ajudaria o amigo. Seus pais deram uma ajuda financeira para os primeiros tempos no Brasil e ele embarcou rumo ao Brasil no navio La Plata Maru com 18 anos. Chegou a Santos no dia 29 de agosto de 1931 sendo responsável por ele mesmo. A primeira aventura em terras santistas foi comprar banana. A banana era fruta extremamente cara no Japão. Comprou uma porção. Comeu até enjoar. Realizou um sonho. No momento seguinte não precisou ser escolhido como gado. Tinha destino certo: Ourinhos. Era uma fazenda de café. Foi de trem com outros companheiros que ele conheceu no navio. Ao chegar na fazenda, inicia sua vida de colono. 350 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Como solteiro, tem de preparar sua própria refeição e lavar suas roupas. O sino toca anunciando a hora de início do trabalho no cafezal. Logo depois vinha o capataz fazer a inspeção em cada casa para ver se todos haviam saído para as lides. Os colonos eram chamados pelos prenomes. Prenome? TAKEKI! Que abuso! Que desconsideração! No Japão sempre foi falta de respeito alguém chamar outra pessoa pelo prenome. Usa-se o sobrenome. E ainda o termo “san” equivalente ao “senhor” ou “senhora”. Para as crianças se usa pospor ao nome os termos diminutivos “chan” ou “kun”, este ultimo é exclusivo para meninos. Ser chamado pelo prenome ainda é uma honraria dada aos muito íntimos seguido naturalmente pelo respeitoso “san”. Amigos de família, primos, irmãos e pais estão neste rol. Para os demais ainda constitui uma ofensa. Foi o primeiro grande choque cultural. Observou-se, ao longo dos dias, que os dorminhocos, os doentes ou as mães com filhos menores eram os retardatários. Para estes, havia a ameaça do chicote. Muitos homens com pena das suas esposas se colocavam na frente e apanhavam no lugar das esposas. As ordens eram passadas na demonstração e na mímica. Nem sempre era fácil entender. Também nem sempre havia interprete. No trabalho rural, havia a competição com os italianos. Estes eram ágeis e pareciam adaptados à rotina. A alimentação era vendida no barracão. Eram itens estranhos para os japoneses como feijão, fubá, banha, carne seca e bacalhau entre outros. Os colonos não tinham noção de preço pois desconheciam os artigos. As ordens eram para adquirir no barracão. Além disso, eles não tinham liberdade para irem ao comércio local. O fazendeiro, ou o capataz, tinham a favor deles o fato de esses colonos não entenderem o português e com isso não se arriscarem nas saídas. Meses mais tarde inicia o verão brasileiro. O calor tropical era insuportável. Era um verão extremamente longo e chuvoso. Todos os dias pareciam iguais. Sempre muito quentes. Não houve cerimônia de ano novo e nem comidas típicas. Um shoogatsu (ano novo) quente! Quente e sem neve e sem roupas típicas! Foi uma entrada do ano de 1932 bastante dolorosa. Havia trabalho o ano inteiro. As estações do ano, excetuados os meses de junho a setembro que variavam de frescos a frios, todos os demais eram iguais. O jovem Yanaga observou que não havia perspectivas de mudança. Não haveria como enriquecer e voltar vitorioso para gabar junto aos seus pais e amigos. Seria sempre pobre. Era preciso encarar a realidade. A realidade era ser colono pobre e acatar as ordens do capataz e a ameaça do chicote. Escrevia para os pais e amigos falando de um Brasil ideal enaltecendo o país para não deixar os pais preocupados. A verdade era dita apenas para Imamura-san. Acostumou-se lentamente com as comidas. A carne seca era suportável, mas o bacalhau, não. Verduras? Não havia. Observando os arredores passou a comer folhas de algumas árvores. A grande felicidade era poder comer arroz. Alguns colonos provenientes de províncias mais pobres tinham, no Japão, a batata doce como alimento principal. Um companheiro de viagem, também 351 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) solteiro, trabalhava feliz e dizia todo orgulhoso que podia comer arroz todos os dias e ainda duas vezes ao dia. E, não só em dias de festa. Ele provinha da ilha de Shikoku. Shikoku é a menor das quatro ilhas do arquipélago nipônico e se localiza a leste da de Honshu onde fica a capital, Tokyo. Esse companheiro dizia: O Brasil é um país fabuloso. Sinto-me feliz por poder comer arroz. Enquanto estava feliz elogiando o Brasil, chegaram ambos capinando no sol a pino embaixo de uma árvore onde havia um tronco seco caído. O companheiro, enxugando o suor foi se refrescar ao abrigo da árvore e sentou-se no dito tronco. Uma cobra também havia tido a mesma ideia e sem cerimônia, picou o rapaz. Yanaga levou um susto e gritou. Vieram outros colonos. Eles não sabiam o que fazer. Desconheciam os animais perigosos do Brasil. Veio o capataz. E nada foi feito. Eles perderam um companheiro no vigor da saúde e com vinte e três anos de idade. E, principalmente elogiando o Brasil. Yanaga se questionou se haveria razão para tamanho elogio após a morte do companheiro picado pela cobra. O Brasil era um país perigoso, foi a sua conclusão. A grande lição do fato foi a de nunca deve se sentar em tronco de árvore e de sempre olhar cuidadosamente o chão até mesmo o lugar em que se está capinando. As cobras podem surgir de lugares em que menos se espera. A partir de então todos passam a fazer vigilância nas casas, a verificar onde andam as crianças. Cuidado com a cobra! Era o alerta. Junto com o alerta, surgem nos corações dos imigrantes as primeiras grandes decepções. E passam a avaliar como estavam vivendo o dia-a-dia. E o que haviam deixado para trás lá no longínquo Japão que pertencia a um passado muito distante. Yanaga passou lentamente a gostar de comer carne. Sua mãe, budista, jamais admitiu, em casa, o consumo de carne bem como de peixe. Proteína animal para ela, era o ovo. Certa vez, enquanto preparavam a terra viram um pequeno animal que sumiu num buraco na terra. Eles ficaram com medo. Depois do incidente com a cobra, qualquer bicho metia medo. O capataz explicou, através de gestos, que era um tatu. O tatu podia ser comido. Os rapazes se puseram, depois do expediente a caçar o tatu. Era um animal pequeno, mas era carne. E nada. No outro dia, enquanto trabalhavam a terra pegaram o tatu. Não podiam matá-lo naquele momento pois tinham de trabalhar. Então pegaram um tambor e cobriram o tatu. De tarde, depois do trabalho, já antegozando a comida da nova carne foram pegar o tatu. Embaixo do tambor havia apenas um buraco. Foram ludibriados pelo tatu. Eles desconheciam que o tatu cavava túneis com a maior facilidade. E lá se foi a comida e veio uma nova lição: O tatu é hábil em cavar túneis. Estes foram os primeiros contatos com a fauna brasileira. Foram experiências frustrantes que se tornaram lendas entre os colonos. Mais um ano se foi sem perspectivas de ascensão econômica e junto com ela a ascensão social. Ter estudado no famoso colégio Meizen, que era o seu grande diferencial, não dizia nada mesmo entre os patrícios pois eles não haviam estado em Kurume e muito menos ainda para a autoridade de todos os dias: o capataz. 352 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Um belo dia, em 1933, no lugar do capataz, o fiscal era o filho do fazendeiro. Ele tem um olho nos colonos e outro no caderno. Yanaga observa que o rapaz está muito tenso. Yanaga vai ver o que o fiscal está fazendo e o porque de tanto uso da borracha. Para seu espanto, o rapaz está nervoso resolvendo problemas de matemática. Para quem havia estudado 11 anos no Japão, não havia dificuldade. Tentou falar em inglês com o rapaz. Não houve comunicação. Yanaga pegou então o caderno e resolveu as questões. O rapaz ficou boquiaberto. Um imigrante entendido em matemática era algo impensável!. No outro dia, ele veio com outras questões. Foram resolvidas. E assim sucessivamente. Eles se entendiam num inglês sofrível. O rapaz, através de gestos, convidou Yanaga para ir para São Paulo e continuar os estudos. Foi o que Yanaga entendeu. Ficou feliz com o convite, mas também receoso. Os amigos foram consultados. Eles disseram não. Na fazenda onde todos estavam juntos, eles poderiam formar um bloco e se autoprotegerem do chicote e da prisão que por ventura viesse a ocorrer, mas Yanaga sozinho e ainda bem afastado ficaria muito vulnerável à vontade do filho do fazendeiro ou de outros elementos da família. Afinal, eles não entendiam o português o suficiente para se aventurarem sozinhos mundo a fora. E Yanaga continuou na fazenda. E no trabalho braçal. O trabalho era pesado para aquele ex-estudante. À noite havia o cachorro solto para evitar que os colonos saíssem das casas até mesmo para as necessidades fisiológicas, mas o objetivo era não permitir a fuga dos colonos. As despesas no barracão eram sempre altas. O item sabão era muito caro. Salário não havia. Yanaga pensou numa solução de fuga. Afinal, estavam vivendo uma situação de trabalho escravo. Escravo no sentido do cerceamento da liberdade, do direito de ir-e-vir, de não poder adoecer e da ameaça constante do chicote mais do que a exploração do barracão e do dinheiro que não via. Era um cárcere privado. Pior situação era a dos chefes de família. Eles tinham esposa e filhos sob sua responsabilidade. Tinham de trabalhar bastante, muitas vezes tinham de comer menos para sobrar mais para os pequenos, não podiam adoecer e também não queriam apanhar do capataz na frente dos pequenos. Teriam de ficar na fazenda até serem liberados. Liberados após cumprirem todas as exigências. Enterrarem suas mágoas na bebida não resolvia. O dinheiro não chegava para tanto. Além do mais, foram educados no Japão no sentido de que o menor de vinte anos não podia ingerir bebida alcoólica. A noite, após o jantar, restava deitar ao luar e cantar relembrando as músicas folclóricas para não chorar já que a solidão era muito grande. Quando reuniam vários rapazes, cada um contava vantagens dos seus tempos japoneses. Falavam dos pais, do tipo de vida que haviam levado. E, o pior, quase todos eles tinham a firme convicção de que o retorno ao Japão seria pouco provável, mas não impossível. Era preciso não fazer despesas. Yanaga agradecia aos céus por ser solteiro. Por ninguém depender econômica e moralmente dele. Era dono do seu destino. 353 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Descobriu, ao acaso, conversando com colonos de diferentes levas que havia um lugar chamado Bastos, no Estado de São Paulo, um patrício que acolhia, no seu sítio, todos os colonos que estavam sendo explorados. Então, ele escreveu para o patrício que se chamava Seiji Shimoide e pediu não só a guarida, mas também como chegar de Ourinhos até Bastos. Um belo dia chegou a resposta. Shimoide-san desconhecia os meandros das estradas de ferro e teve de descobrir dentro do seu mundo nipônico quem os conhecia. Yanaga não tinha coragem de empreender a longa fuga sozinho. Convidou um amigo e juntos se preparam para a empreitada. Tinham de planejar cada passo daí para frente. Tudo no maior sigilo. Ninguém deveria saber. Nem mesmo os demais colonos. Caso o capataz desejasse arguir alguém, não haveria dedo duro. O primeiro passo era angariar a confiança do capataz. Decidiram que começariam a trabalhar mais dedicadamente. O segundo passo foi encerrar as tarefas do dia a qualquer preço no mesmo dia. Fizesse calor ou chovesse. Mesmo quando tocava o sino eles continuavam a realizar suas tarefas. O capataz vinha buscá-los. Eles teimavam em continuar trabalhando. O capataz ficava junto para testemunhar. Dias e dias seguidos eles trabalharam. Certo dia, o capataz decidiu se afastar deixando-os trabalhando. Eles concluíram suas tarefas. Foram gradativamente ganhando a confiança do capataz. No final de quase dois meses, o capataz ia embora e confiava na volta dos dois rapazes. No dia seguinte, ele conferia a tarefa. Estava realizada. Ganharam finalmente a confiança irrestrita. Esperaram uma noite de lua nova para a grande fuga. Estaria tudo escuro. Era difícil vê-los. Foram levando durante uns três dias, na hora do almoço, suas coisas para o meio do mato no caminho da estação. Nessa bagagem, Yanaga levava com muito carinho, um elefante esculpido em madeira que havia comprado em Colombo, numa das paradas do navio, na sua travessia rumo ao Brasil. Era um tesouro. Era o presente que adquira para si mesmo. Cada vez que ele se sentira só, havia acariciado o mimo e dizia: “nós dois estamos longe das nossas terras. Eu, por opção e você foi trazido por mim. Sinto-me responsável por você.” Era o amigo confidente, o companheiro. Afinal, Yanaga estava com apenas dezoito anos, e toda a bravata dele de que se manteria só e enriqueceria parecia ter sucumbido nesses quase dois anos de trabalho braçal no cafezal. Ele nunca comentou a distância entre o cafezal e a estação. Pelos relatos, é de supor que fosse de cerca de umas duas horas de caminhada. Compraram os bilhetes pois as instruções recebidas informavam os horários noturnos dos trens. E assim, munidos de coragem com um tremendo medo de serem descobertos ficaram trabalhando arduamente até quase a hora de o trem chegar. Pegaram suas bagagens e foram para a estação, para a liberdade. Esta sensação de liberdade, eles sentiram quando o trem chegou e eles entraram no trem. O medo deles era chegar alguém da fazenda e reconhecê-los. Na ocasião, não havia telefone para comunicação rápida. Este só chegou anos mais tarde. 354 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Que alívio na hora que o trem partiu! A primeira parte da viagem terminava na Estação da Luz. Ambos os fujões desconheciam como baldear. Falar em japonês era gritar no vazio da multidão. Yanaga, por falar inglês se pôs a gritar: Help me, please. Help me, please. Help me, please. E o tempo passava. E ninguém oferecia ajuda. E eles não falavam português. Já estava quase na hora de tomar o outro trem. E eles não podiam perdê-lo. Se perdessem a passagem, não teriam recursos financeiros para comprar novo bilhete. Suavam frio. E Yanaga gritava e gritava. Depois de uns trinta berros finalmente apareceu alguém oferecendo ajuda. E eles conseguiram tomar o trem e chegaram a Tupã. Daí, numa jardineira por uma estrada de terra poeirenta rumaram para Bastos. Da sede de Bastos não foi difícil encontrar o sítio de Shimoide-san. Foram recebidos com muitos sorrisos, canecas de água tiradas de um poço e palavras de boas vindas. Fatos estes que deram a eles a certeza de que estavam finalmente em liberdade e ali começava a vida de imigrante no Brasil. Muitos anos depois, Yanaga gostava de relembrar a façanha da fuga e sempre colocou o mérito do sucesso da viagem à confiança ilimitada que o companheiro depositou nele. Tamanha confiança só poderia gerar nele a necessidade de não falhar. Era o mês de maio de 1934. Referência OKUBARO, Jorge. J. O súdito: Banzai Massateru! São Paulo: Terceiro Nome, 2006. 355 V ECONOMIA E RELAÇÕES DE TRABALHO Nuevos estándares internacionales, flexibilidad laboral y elementos de trabajo esclavo en la horticultura de exportación en México Introducción Boris Marañón-Pimentel Este documento tiene por finalidad animar el debate sobre el carácter cada vez más complejo que van asumiendo las relaciones laborales en esta etapa de desregulación creciente del trabajo y destrucción de la ciudadanía, a partir del análisis de los mercados de trabajo en la agricultura mexicana de exportación en México, en los que coexisten relaciones laborales entre trabajo y capital que se diferencian entre sí por el grado en que se cumplen los derechos humanos y laborales básicos. Desde este punto de vista es posible distinguir varios segmentos de empresas por la forma en que se estructuran los aspectos medulares de las relaciones laborales, destacando uno de los agrupamientos por asemejarse al trabajo forzado, entendido según la Organización Internacional del Trabajo - OIT (2005) como toda forma de trabajo no voluntario impuesto bajo la amenaza de una sanción. Para este fin, es importante recuperar la noción de nueva heterogeneidad histórico-estructural, planteada por Quijano (1999), según la cual el movimiento de las sociedades latinoamericanas no sigue una pauta unilineal acorde a lo registrado en la experiencia histórica europea de modo que no Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) se puede esperar un proceso de desarrollo capitalista que conduzca a un creciente proceso de asalariamiento; por el contrario, se constata la coexistencia de diversas relaciones sociales de producción, donde la relación capital-trabajo si bien es predominante, no es única ni homogénea. De este modo es posible advertir otras relaciones sociales, entre ellas la producción campesina y la producción artesanal, al mismo tiempo que se puede constatar la existencia de relaciones capital-trabajo variadas, algunas de ellas como parte de un proceso acabado de asalariamiento con trabajo estable, otras como expresión de procesos truncos de asalariamiento acompañados de un manejo desregulado y flexible de la mano de obra, hasta llegar a relaciones de servidumbre y esclavitud. En este contexto, el objetivo del artículo es abrir el debate sobre la mayor complejidad existente respecto del análisis de las relaciones laborales, pues ya no se trata sólo de la pérdida de empleos asalariados con cierta estabilidad y prestaciones y por consiguiente de la extensión de las situaciones de trabajo precario. En la actualidad es importante incorporar, además, el surgimiento de modalidades laborales no estructuradas, no como situaciones “atípicas”, sino como un rasgo histórico estructural de nuestras sociedades, más allá del curso modernizador que se podría esperar a partir de una mirada evolucionista y dualista, de modo que junto al trabajo asalariado, en diferentes modalidades de precariedad, pueden existir, y de hecho, existen, otras relaciones sociales, entre ellas prácticas que podrían asemejarse al trabajo esclavo. Es importante resaltar que estas realidades laborales en la horticultura de exportación siguen vigentes en un contexto en que, al nivel internacional, se difunden nuevos estándares tanto laborales como de sanidad como la Responsabilidad Social Empresarial y la Inocuidad Alimentaria, respectivamente, los que en términos discursivos significarían una mejora sustancial en las relaciones laborales y son necesarios para legitimar socialmente la oferta de hortalizas en los mercados mundiales. El documento está estructurado en tres partes. La primera discute la estructuración de los mercados de trabajo; la segunda analiza cómo dos nuevos estándares internacionales, la responsabilidad social empresarial y la inocuidad alimentaria, tienen escasos impactos sobre los mercados de trabajo no estructurados, precarios y sujetos a una precariedad absoluta, específicamente para el caso de Sinaloa, un estado ubicado en el noroeste de México y que se caracteriza por ser el principal productor y exportador de hortalizas del país. Al mismo tiempo se reflexiona sobre la existencia de 360 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas elementos de trabajo esclavo. Finalmente, se plantean algunas conclusiones. La investigación se realizó con base en entrevistas a diferentes actores, como parte de un estudio más amplio en curso, sobre aspectos laborales en la horticultura de exportación. 1 La estructuración de los mercados de trabajo: del trabajo estructurado al trabajo esclavo Con el cambio del modelo de desarrollo agrícola “hacia afuera”, a partir de los ochenta, en América Latina, ha venido expandiéndose la llamada Agroexportación no Tradicional, la cual incluye una gama variada de productos nuevos y otros viejos que se ofertan según los estándares de calidad del mercado internacional, entre ellos las frutas, hortalizas y flores (RAYNOLDS, 1994; MARAÑÓN, 2004)1. Esta estrategia basada en el principio de las ventajas comparativas registra impactos positivos y negativos. Los primeros son principalmente de tipo económico y tecnológico, pues se registra un fuerte estímulo al cambio técnico en campo, poscosecha, empaque y cadena de distribución física internacional; así como un crecimiento importante en el valor y volumen de las exportaciones y la vinculación a exigentes mercados internacionales en materia de calidad y oportunidad. Los segundos son de carácter social y ambiental, pues por un lado, existe una concentración de los beneficios en grandes empresas, transnacionales y nacionales, ya que los cultivos son intensivos en tecnología y crédito, barreras de entrada para la pequeña agricultura, con ciertas excepciones, como el caso de Guatemala; al mismo tiempo existe un consenso respecto a la precariedad de los empleos generados por esta actividad (THRUPP, 1995, 1999; SCHWENTESSIUS; GÓMEZ, 2000; MARAÑÓN, 2002a), por otro lado, se ha criticado el efecto negativo sobre los recursos naturales (agua y tierra) y sobre la salud de los asalariados del uso intensivo de agroquímicos (SEEFÓ, 1995; MARAÑÓN, 2002a; THRUPP, 1995). Se han realizado diversos estudios respecto de los aspectos laborales en la agricultura de exportación latinoamericana destacando los procesos de segmentación por sexo, tipo de contrato; de precarización, de exigencia de realización de diversas tareas (MURMIS, 1993; LARA, 1998; BENENCIA; QUARANTA, 1996; CAVALCANTI; BENDINI, 2001; MARAÑÓN,1993; MARAÑÓN, 2004), la utilización de mecanismos de reclutamiento y control de 1 Existen diferentes factores de tipo político, económico, social y cultural, internacionales y nacionales, que han contribuido a esta nueva modalidad de flujos agrícolas internacionales. Al respecto puede verse Teubal (2001); Thrupp (1995; 1999; Marañón (2004). 361 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) la mano de obra, como el enganche (MARAÑÓN, 2002b). No obstante, las nociones de flexibilización, desregulación y precarización utilizadas en los últimos tres lustros en el ámbito académico, no parecen calificar ni describir adecuadamente situaciones extremas de abusos, explotación y violencia que se están dando a conocer respecto de trabajadores, no sólo agrícolas, en diversos países latinoamericanos y diferentes cultivos, como ocurriría en Argentina (con los migrantes bolivianos que trabajan como medieros en la producción de hortalizas y los jornaleros en la producción de ajos); en los que se evidencia una ausencia total de derechos laborales (salarios ínfimos, extensas jornadas de trabajo sin pago de horas extras, pago al destajo, carencia de prestaciones básicas). Todo lo anterior que podría ser calificado de trabajo degradante, no sería suficiente para utilizar la categoría de trabajo esclavo, la cual tendría su lugar indiscutible en situaciones en que el empleador maneja de manera discrecional las relaciones de trabajo y además el trabajador no tiene libertad para dejar el trabajo que desempeña debido al endeudamiento inducido, a la amenaza de violencia física, a la retención de los documentos de identidad y de los pagos, como sucede en la producción de caña de azúcar en Brasil (NOVAES, 2007). Por estas razones, el análisis de las relaciones laborales en la agricultura debe incorporar estas situaciones extremas, estableciendo puentes y cortes entre lo que sería el trabajo precario, degradante y el trabajo esclavo. Una manera de analizar esta problemática es el enfoque de la estructuración de los mercados de trabajo, desde el empleo estable y formal, hasta el trabajo esclavo pasando por diversas modalidades desreguladas de empleo. En este sentido es necesario presentar tres categorías: mercado de trabajo estructurado, mercado de trabajo no estructurado y trabajo esclavo, teniendo como punto de partida la existencia de mercados parciales, es decir de relaciones laborales desiguales, segmentados, entre distintos grupos, entre los cuales la movilidad laboral es reducida o nula y los salarios tienden más a la dispersión que a la igualación; pues no existe un mercado singular, sino más bien, una multiplicidad de mercados parciales o segmentos entre los cuales existen relaciones laborales desiguales de carácter duradero y estable, producida y reproducida constantemente por el proceso del mercado de trabajo (SENGENBERGER, 1988, p. 346)2. Los mercados parciales tienden a cierto grado de estructuración, al tejer un conjunto de normas formales observadas con regularidad por los 2 Para una discusión amplia sobre la estructuración de los mercados de trabajo puede verse Marañón, 2004. 362 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas empresarios y por los trabajadores en su trato mutuo y que pueden ser establecidas mediante una ley, un acuerdo o por la empresa. Las normas tienen como función básica regular la contratación y las condiciones de empleo: salarios, horas, cambios, asignación de tareas, etc, y su principales efectos consisten en limitar el arbitrio del empleador en el trato con sus trabajadores y en aportar cierta seguridad y regularidad en el manejo del personal, suministrando “normas estándar” para llevar a cabo los complicados procedimientos de contratación y mantenimiento de una fuerza laboral (PHELPS, 1964, p. 55-56). 1. 1 Mercados de trabajo no estructurados y estructurados El modelo neoclásico de funcionamiento del mercado de trabajo, signado por una movilidad sin restricciones y por salarios que tienden a igualarse, ha sido denominado por Fisher (1953) como un mercado de trabajo no estructurado, con base en su estudio de la cosecha californiana, ya que existían empleos pocos seguros, reducidas posibilidades de mejoría y débiles lazos que vincularan al trabajador con el puesto de trabajo (vínculos comunitarios, antigüedad, pensiones, entre otros), y una desprotección desde el punto de vista de la negociación colectiva y legal. Fisher planteaba que los mercados no estructurados se caracterizaban por 1) inexistencia de sindicatos con sus prácticas usuales de antigüedad, preferencia de empleo y otras limitaciones en el acceso al mercado de trabajo; 2) inexistencia de relaciones personales entre empleadores y asalariados que impedían establecer obligaciones informales y el desarrollo de formas de tenencia moral de los puestos de trabajo; 3) empleo productivo mayormente no calificado, y cuando la división del trabajo fuera necesaria, no debía basarse en la jerarquía o calificación; 4) forma de pago por unidad de producto (peso o volumen) y no por unidad de tiempo; 5) proceso de trabajo poco mecanizado (FISHER, 1953, p.7-9). En función del grado de estructuración Kerr (1985, p.50) plantea la existencia de dos tipos de mercado de trabajo: el no estructurado y el estructurado. En el primero, sostiene el autor, no hay otro vínculo entre el trabajador y el empleado que el salario, ningún trabajador tiene derecho alguno sobre un empleo, y ningún empresario tiene derecho a retener a trabajador alguno. En el segundo hay una clara preferencia entre el mercado interno (la planta, el grupo de oficios) y el mercado externo de trabajo. Las preferencias pueden estar basadas en un criterio (prejuicios, méritos, igualdad de oportunidades, antigüedad) ó en una combinación de ellos. El mercado externo es definido como los grupos de trabajadores activos o 363 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) pasivos disponibles para nuevos puestos de trabajo, situados dentro de un espacio geográfico y ocupacional y por los puertos de entrada que les están abiertos. Kerr añade que la estructura “entra en el mercado” cuando se da un tratamiento distinto a los que están “dentro” y los que están “fuera” y afirma que cuanto más estructurado sea el mercado laboral, más precisas serán las reglas de asignación dentro del mercado interno, menores los puertos de entrada y más rígidos los requisitos de admisión; y además precisa que las normas institucionales no suelen introducir la estructura en el mercado, pues con frecuencia esta surge de las preferencias de los trabajadores y empresarios, aunque la refuerzan de manera uniforme. Una característica central de los mercados no estructurados es la precariedad de los empleos. Según Sánchez y Cano (1998), la precariedad se define en oposición a la relación laboral habitual, al empleo estándar, asociado con la formalización jurídica de la relación laboral individual y con un conjunto de derechos laborales y sociales (SÁNCHEZ; CANO, 1998, p. 226); y presentaría cuatro dimensiones a) incertidumbre sobre la continuidad en el trabajo (trabajos temporales e inciertos); b) insuficiencia de ingresos salariales sobre todo si está vinculada a la pobreza y a una inserción social insegura, porque impide al trabajador planificar su futuro según los niveles de vida socialmente aceptados; c) existencia de condiciones de trabajo inferiores a la norma: jornada laboral (duración, distribución, horas extraordinarias, vacaciones), organización del trabajo (ritmos de trabajo, asignación de funciones, polivalencia), adquisición de calificaciones en el puesto de trabajo, promoción dentro de la empresa, salud laboral (protección y compensación de riesgos) y participación en la acción sindical; d) insuficiencia de protección social, pues esta representa un importante elemento de reducción de la incertidumbre, destacando particularmente los sistemas de prestaciones sociales y las normas reguladoras de las relaciones laborales, que reducen algunos riesgos asociados a la organización capitalista del trabajo (discriminación laboral, discrecionalidad empresarial) y compensan otros de difícil reducción (paro, jubilación) (SÁNCHEZ; CANO, 1988, p. 229-230). Por tanto, los elementos básicos que comportaría la relación estándar de empleo son: 1) estabilidad en el empleo; 2) promoción en el puesto de trabajo y 3) protección social. Los autores (p. 227) proponen tres modelos a partir de la presencia y combinación de las dimensiones de precariedad en relaciones laborales concretas, que por sus características, arrojan consecuencias diferentes sobre las condiciones de vida y laborales de los trabajadores: a) precariedad absoluta, definida por la inestabilidad en 364 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas el empleo (trabajos temporales, con una tarea o fecha de duración determinados, subcontratación-relación triangular de empleo-, trabajo clandestino); b) precariedad larvada, vinculadas con empleos formalmente típicos pero que resultan precarios, debido a la incertidumbre sobre la continuidad en el empleo o a la imposibilidad de adquirir una formación y una promoción; c) precariedad marginal; los cuasitrabajos, definidos fundamentalmente por la insuficiencia continuada de los salarios a causa de la corta duración de la actividad laboral. Son empleos que no permiten vivir, ni en los casos extremos, reconocer como trabajador- en el sentido socialmente habitual- a quien las desarrolla (trabajos a tiempo parcial que suponen pocas horas de trabajo a la semana) (SÁNCHEZ; CANO, 1998, p. 232-236). 1.2 El trabajo forzoso-esclavo En el extremo de las variantes de relaciones de trabajo se puede ubicar el trabajo esclavo, el mismo que no tiene un significado semejante a relaciones de trabajo con salarios bajos o condiciones de trabajo precarias o degradantes en las que no existen derechos laborales. En su primer convenio relativo a este tema (Convenio sobre el trabajo forzoso, 1930, núm. 29), la OIT define el trabajo forzoso a los efectos del derecho internacional como todo trabajo o servicio exigido a un individuo bajo la amenaza de una pena cualquiera y para el cual dicho individuo no se ofrece voluntariamente (artículo 2, 1), éste se lleva a cabo de forma involuntaria; la pena no tiene por qué ser necesariamente una sanción penal, sino puede consistir en una pérdida de derechos y privilegios (OIT, 2005). El trabajo forzoso constituye una grave violación de los derechos humanos y una restricción de la libertad personal, según la definición contenida en los convenios de la OIT relativos a este tema y en otros instrumentos internacionales conexos relativos a la esclavitud, a las prácticas análogas a la esclavitud, a la servidumbre por deudas y a la condición de siervo (OIT, 2005). Con el objetivo de plantear una imagen clara de lo que significa el trabajo forzoso, la OIT ha desarrollado algunos criterios básicos para la determinación de situaciones de dicha índole, planteando dos dimensiones, la primera referida a la ausencia de consentimiento y la segunda, a la amenaza de pena (Ver recuadro No. 1). De este modo, el trabajo esclavo es una situación de pérdida de libertad del trabajador, debido a diversos factores, entre ellos, el endeudamiento inducido, retención de documentos, presencia de guardias armados (REZENDE FIGUEIRA, 2004). En la legislación penal de Brasil, se sostiene que la reducción de alguien a la condición análoga de esclavo, sig365 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) nifica tratar de someterlo a trabajos forzados o a una jornada prolongada, querer sujetarlo a condiciones degradantes de trabajo, querer restringir, por cualquier medio, su movilidad, en razón de una deuda contraída con el empleador (ESTERCI, 1994). Son evidentes las diferencias entre las relaciones laborales estructuradas, las no estructuradas y las vinculadas al trabajo esclavo. En las primeras existe estabilidad en el empleo y reconocimiento de derechos humanos y laborales. En las segundas, la precariedad es el signo más relevante, lo que se traduce en inestabilidad en el empleo y en la carencia de derechos laborales y de algunos derechos humanos relativos al trabajo (discriminación, trabajo infantil, ausencia de sindicalización y negociación colectiva). En la tercera, existe precariedad en cuando al empleo, a las condiciones de trabajo, pero lo fundamental es la restricción a la libertad personal a través de diversos mecanismos. Al mismo tiempo, es clara la diferencia entre empleo estructurado y el no estructurado pues este último se caracteriza por la precariedad y puede alcanzar el calificativo de degradante por la ausencia de prestaciones, de condiciones dignas de trabajo, y en general por la inexistencia de derechos laborales. Sin embargo, hay una línea muy relevante, aunque delgada y tenue, entre el empleo precario que puede denominarse degradante y el trabajo esclavo: la conculcación de la libertad del trabajador y su sometimiento a la plena discrecionalidad plena del empleador. A) Ausencia de consentimiento (o falta de voluntad) para realizar el trabajo Inicio de la situación de trabajo forzoso. • Nacimiento en la esclavitud o en la servidumbre o ascendencia esclava o servil. • Rapto o secuestro físico. • Venta de una persona a otra. • Confinamiento físico en el lugar de trabajo. • Coacción psicológica, orden de trabajar acompañada de una amenaza creíble de pena en caso de incumplimiento. • Endeudamiento inducido (mediante la falsificación de cuentas, el aumento exagerado de los precios, la reducción del valor de los bienes o servicios producidos o el cobro de intereses excesivos). 366 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas • Engaño o falsas promesas sobre el tipo y las condiciones del trabajo. • Retención e impago de salarios. • Retención de documentos de identidad u otros efectos personales de valor. B) Amenaza de pena (medios para mantener a alguien en una situación de trabajo forzoso) • • • • • • • • • • • Presencia real o amenaza creíble de: Violencia física o sexual (Amenaza de) represalias sobrenaturales Encarcelación u otro confinamiento físico. Penas financieras Denuncia ante las autoridades (policía, autoridades de inmigración, etc.) y deportación Despido del puesto de trabajo, exclusión de empleos futuros Supresión de derechos o privilegios Privación de alimento, cobijo u otras necesidades Cambio a condiciones laborales todavía peores Pérdida de condición social. Recuadro1- Elementos del trabajo forzoso Fuente: OIT (2005). Por esta razón, es importante tener claridad sobre cómo calificar situaciones laborales indignas, de sobreexplotación incuestionable, pues puede, como se hace en el periodismo de investigación, plantearse la denominación de esclavitud moderna, hacia prácticas laborales de extrema precariedad, degradantes, con fuertes presiones para incrementar la productividad, pero que no significan la conculcación de la libertad del trabajador. Sin embargo, también se utiliza la categoría de trabajo esclavo para señalar situaciones de explotación sin límites y ausencia de humanidad, pues determinadas relações de exploração son de tal modo ultrajantes que la escravidão passou a denunciar a desigualdad no limite da desumanização; especie de metáfora do inaceitável, expressão de un sentimento de indignação que, afortunadamente, sob esta forma afeta segmentos mais amplos do que obviamente envolvidos en luta pelos direitos. (ESTERCI, 1994, p. 44-45, apud REZENDE FIGUEIRA, 2004), o en Argentina donde existen 367 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Talleres textiles con empleados bolivianos, extensión horaria en comercios minoristas y en supermercados, condiciones precarias en call centers y en la construcción, subcontratación y tercerización en medianas y grandes industrias, precariedad en fileteros de pescado y en el sector agrícola. Desde una posición moral se lo denomina “trabajo esclavo”. Pero todos esos casos son de sobreexplotación, organización de las relaciones laborales que busca ganancias extraordinarias3. En América Latina, según un estudio de la OIT (2005) 1.3 millones de personas (el 10.7 % del total mundial) se encuentran bajo condiciones de esclavitud, principalmente en Brasil, Perú, Paraguay y México, realizando actividades productivas agrícolas en las regiones alejadas de la Amazonía, donde la presencia del Estado es débil y donde se recurre al endeudamiento inducido (OIT, 2005), situación que está documentada para el caso brasileño en las cadenas productivas de alcohol, soya, algodón, carne bovina, carbón vegetal y café (SAKAMOTO, 2007). Sin embargo, también podría estar presente en centros urbanos importantes, donde se han presentado denuncias respecto a la esclavitud de migrantes bolivianos que laboran en talleres textiles, como Sao Paulo, en Brasil4, y Buenos Aires, Argentina (LOTO, 2007). Con excepción de Brasil5, no parece existir en el resto de América Latina, un conjunto sistemático de investigaciones que traten de dar cuenta de este gravísimo problema en el caso de la agricultura. Moraes (apud LARA, 2008), habla de la existencia de trabajo esclavo en las fábricas de procesamiento de cana de azúcar en Riberão Petro (São Paulo), la principal región en el mundo productora de etanol, donde operan quinientas empresas (entre ellas las transnacionales Cargill, Global Foods y USIAN) y los trabajadores sometidos a fuertes presiones para cumplir y/o superar la productividad exigida, ya que el pago es por tarea. Los jornaleros quedan sometidos a 3 Ver http://www.lafogata.org/06arg/arg5/arg_21-7.htm 4 Río de Janeiro. Más de 200.000 bolivianos trabajan ilegalmente y en condiciones de semi-esclavitud en talleres clandestinos de São Paulo, a pesar de la posibilidad de regularización ofrecida hace dos años, Según el presidente de la Asociación Nacional de Extranjeros e Inmigrantes de Brasil (ANEIB), “tan sólo 18.000” bolivianos “aprovecharon la oportunidad” de legalizar su situación en los últimos dos años. Este número “dobla” al de trabajadores bolivianos en situación regular reconocidos por el gobierno del estado de Sao Paulo, explicó a Efe el presidente de la (ANEIB), Grover Calderón. Calderón afirmó que estos inmigrantes trabajan hasta 18 horas diarias para recibir, “en los mejores casos”, un salario “menor al mínimo vital” y, en los peores, tan sólo un lugar donde dormir y algo de comida. El representante de la asociación de inmigrantes subrayó que estos talleres están controlados por brasileños, coreanos y otros bolivianos que, con la explotación de estas personas, consiguen ropa a precios “muy baratos” por lo que, con sus ventas, se lucran a costa de los derechos de sus trabajadores (30/01/2008). http://www.soitu. es/soitu/2008/01/30/info/1201732990_556015.html 5 En Brasil hay un conjunto de agrupaciones dedicadas al estudio de este problema, destacando el Grupo de Pesquisa del Trabajo Esclavo Contemporáneo (GPTEC), en la Universidad Federal de Río de Janeiro, al mismo tiempo que se ha aprobado una legislación para criminalizar este tipo de prácticas laborales. 368 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas condiciones degradantes y a trabajo esclavo, ya que no pueden salir de las faziendas debido a la imposibilidad de pagar las deudas contraídas con los contratistas, pieza fundamental en las relaciones laborales precarias, degradantes y esclavistas. 1.3 Los mercados de trabajo no estructurados en la horticultura de exportación en Sinaloa, México En México, a consecuencia del ajuste estructural impulsado desde los ochenta, la exportación de frutas y hortalizas ocupa un lugar importante en la utilización de recursos productivos y en la generación de divisas. Anualmente se exportan más de 4.5 mil millones de dólares de frutas y hortalizas, en su mayoría al mercado estadounidense, y estos envíos externos constituyen más de la mitad del valor exportado por el sector alimentario mexicano. En general, la agricultura mexicana presenta mercados de trabajo que, de acuerdo a su grado de estructuración, pueden ser considerados no estructurados y en una situación de precariedad absoluta, es decir, con inestabilidad en el empleo, la insuficiencia de ingresos, pésimas condiciones de trabajo, falta de acceso a la seguridad social y ausencia de organización independiente. Sólo una escasa proporción de trabajadores se ubica en mercados estructurados, situación que remite a una situación opuesta a la del trabajo decente6. Por su parte, Sinaloa es el centro hortícola exportador más importante del país, no sólo por la escala de utilización de recursos productivos, principalmente tierra, mano de obra y agua, sino también por producir con tecnologías muy sofisticadas que permiten alcanzar los estándares de calidad exigidos por el mercado estadounidense. La importancia de Sinaloa se evidencia en que en las últimas dos décadas y media aportó la mitad de la producción física total nacional de hortalizas a nivel nacional, y también la mitad del valor de la producción, siendo las principales hortalizas el tomate, pepino, berenjena chile, entre otras. Entre 1997 y 2007, el estado exportó en promedio el 39.7% de la producción total de hortalizas, con un valor promedio anual de 626.71 millones de dólares (SANDOVAL, 2007). La fuerte presencia sinaloense en los mercados internacionales hortícolas, se explica, según Maya (2004), porque las empresas exportadoras iniciaron en los noventa un proceso de reestructuración productiva para mantenerse en los mercados internacionales combinando cinco estrategias 6 Ver Lara, 2008, para una discusión sobre el trabajo decente en la agricultura moderno-empresarial mexicana. 369 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) para mantenerse competitivas: a) especialización productiva; b) innovación constante en términos tecnológicos y organizativos, c) inocuidad alimentaria, d) desarrollo de canales de comercialización eficientes, y e) política social7.. Estas iniciativas, económicamente exitosas, se mantienen en constante revisión y cambio debido a las exigencias que a los empresarios plantea el carácter monopsónico de la cadena hortícola, el mismo que lleva a los compradores –grandes cadenas de supermercados- a una constante búsqueda por nuevas fuentes de oferta en diversos países subdesarrollados, agudizándose la competencia con la consiguiente reducción de los márgenes de ganancia (COOK, 2001 apud SANDOVAL, 2007). La actividad hortícola exportadora sinaloense se asienta en la utilización de 30,000 ha. de cultivo bajo riego, en la temporada otoño-invierno, y en el empleo de alrededor de 200,000 jornaleros8, los mismos que son de variada procedencia indígena y reclutados principalmente en las regiones pobres del sur del país, a través de enganchadores que articulan las relaciones entre jornaleros y empresarios, contribuyen a la existencia de mercados de trabajo no estructurados y a situaciones de trato degradante a los jornaleros (MARAÑÓN, 2002b y 2004). Respecto de las relaciones laborales, en el escenario hortícola sinaloense se ha registra una relación capital-trabajo caracterizada por la precariedad, la desprotección de los jornaleros, mayormente indígenas, quienes tienen condiciones de trabajo y vida degradantes, por la presencia de trabajo infantil, problemas con los enganchadores, ausencia de servicios básicos en los campamentos, dificultades para organizarse de manera independiente, bajos salarios (LARA, 1998; DE GRAMMONT; LARA, 2000; POSADA, 2003; MARAÑÓN, 2002b; DÍAZ, 2004). Estos mercados de trabajo están segmentados por criterios de sexo, raza y calificación, siendo importante sostener que la estructuración y no estructuración se pueden hallar de modo simultáneo en una misma empresa (trabajo estable, gradaciones de trabajo precario y trabajo estable). La escasa estructuración es en si misma una construcción social y política, pues la existencia de estos mercados “competitivos” no sólo es el producto de la eliminación o atenuación de las restricciones a la venta de 7 Sobre esta problemática también puede verse Avendaño y Schwentesius, 2005 y Grammont, 1999. 8 El universo de jornaleros agrícolas en los valles hortícolas sinaloenses en impreciso, por la dificultad para realizar estimaciones cuantitativas dadas su gran movilidad geográfica. El Programa Atención a los Jornaleros Agrícolas (PAJA) sostenía que en 2000 existían unos 200,000 jornaleros migrantes. Cuatro años después, a partir de los diagnósticos situacionales de los jornaleros agrícolas, tenía una estimación mucho menor, de 112,000 trabajadores. En 2008 la mencionada institución sostuvo que la población trabajadora ascendía a 190,000 personas. 370 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas mano de obra, sino de un proceso notable de coordinación entre el Estado y los productores, primero, a través del debilitamiento de los sindicatos independientes; y segundo, por medio del acuerdo negociado, a mediados de la década del ochenta, entre la organización de los productores y la Central de Trabajadores de México, de corte corporativo y clientelar, para que ésta se convirtiera en el intermediario laboral para el reclutamiento de los jornaleros en los estados pobres del sur.9 De este modo, el funcionamiento de los mercados no estructurados en Sinaloa, se apoya en una compleja arquitectura económica y social, ya que la organización de los empresarios, con el apoyo del Estado, opera y sostiene la desorganización del mercado laboral en perjuicio de los jornaleros (KRIPPNER, 2001). En este sentido, sigue vigente el pacto histórico entre los empresarios sinaloenses y el Estado, destacado por Mares (1991), que daba a los primeros el control de los sindicatos y, por tanto, del manejo de las relaciones laborales de manera discrecional, a cambio de la generación de empleos y de divisas, mientras el Estado se encargaría de proveer de infraestructura de riego y otros incentivos a través de diversos instrumentos de política económica. 2 Los nuevos estándares internacionales: la responsabilidad social empresarial y la inocuidad alimentaria En la última década dos factores de procedencia internacional podrían ser significativos con el fin de construir relaciones laborales menos inequitativa y contribuir a la estructuración de los mercados de trabajo en la horticultura de exportación. Se trata de la Responsabilidad Social Empresarial y de la Inocuidad Alimentaria. ¿Contribuyen estos dos estándares a la edificación de otro modelo productivo basado en un control de la mano de obra menos precario? ¿Mejoran los jornaleros su capacidad organizativa, de negociación de modo que su intervención en la configuración de las relaciones laborales tiene alguna significación? ¿Se debilitan las prácticas de segmentación sexual-racial y según calificación? ¿Se debilitan los mecanismos de discriminación de los trabajadores? En suma ¿la introducción de los nuevos estándares disminuye las prácticas de minorización de la fuerza de trabajo indígena? ¿ cuestiona la colonialidad del poder, es decir, la edificación de un sistema de control del trabajo conformado por diversas relaciones sociales de producción basado en la clasificación jerárquica de los trabajadores, según el criterio de raza10? 9 Respecto a las formas de reclutamiento de mano de obra ver Marañón (2002b). 10 Ver Quijano, 2000, sobre la colonialidad del poder. 371 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) La Responsabilidad Social Empresarial es un discurso con distintos orígenes, significados y fundamentos, esgrimido de modo principal por organismos multilaterales (especialmente la Organización de Naciones Unidas), gobiernos y organizaciones empresariales, que sostiene como común denominador la búsqueda del desarrollo sostenible, mejorando los actuales desequilibrios sociales, políticos, económicos y ambientales profundizados por el proceso de internacionalización del capital. La propuesta se caracteriza por promover la realización de diversas acciones basadas en la voluntariedad, definidas sin la participación efectiva de los sectores sociales involucrados, especialmente los asalariados. Dichas iniciativas tampoco son objeto de monitoreos independientes y no existen sanciones en caso de incumplimiento. De este modo, es una propuesta que en esencia trataría de legitimar el accionar empresarial, sin cambios fundamentales en su desempeño, en este caso, en las relaciones de trabajo (Marañón, 2009). En México, esta iniciativa es impulsada por el Centro Mexicano para la Filantropía (CEMEFI) y la Alianza para la Responsabilidad Social Empresarial (ALIARSE). CEMEFI, una asociación civil sin fines de lucro, mientras que ALIARSE es la unión de algunas de las más importantes organizaciones empresariales del país (Coparmex, Consejo Coordinador Empresarial, CONCAMIN, Confederación Unión Social de Empresarios de México, Aval e Impulsa) comprometidas e interesadas en promover la responsabilidad social en México. Ambas organizaciones crearon en 2001 un Distintivo ESR, a partir de un proceso voluntario de autoevaluación que es validado por un comité de especialistas representantes de las principales instituciones conformantes de ALIARSE. Para obtener el Distintivo ESR, las empresas tienen que alcanzar los estándares establecidos y sustentar los 120 indicadores marcados en la convocatoria, en las cuatro áreas básicas de la Responsabilidad Social Empresarial: Calidad de vida en la empresa, Vinculación con la comunidad, Ética empresarial y Cuidado y preservación del medio ambiente. La certificación empezó en 2001, con 17 empresas, cantidad que creció a 357 en 2008. Entre las empresas certificadas se encuentran algunas de carácter transnacional como Coca Cola, Walmart, Grupo Financiero BBVA Bancomer, Grupo Financiero Serfín-Santander, Grupo Modelo, Mc Donald´s de México, Grupo Industrial Lala, Bonafont, Cementos Mexicanos, Ford Motor Company México, Teléfonos de México y General Electric México (www. cemefi.org.mx). Se ha destacado que las empresas mexicanas y CEMEFI a) tienen una concepción autoritaria de la RSE, pues es una iniciativa construida, ejecutada 372 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas y evaluada sólo por sectores empresariales sin que estén representados los trabajadores ni las organizaciones no gubernamentales; b) una orientación filantrópica, pues sus acciones se caracterizan por no enfocarse en aspectos centrales de su relación con sus trabajadores; c) el distintivo ESR se otorga a partir de la evaluación de los documentos que las empresas presentan a CEMEFI, sin que éste realice visitas de monitoreo in situ y recabe los puntos de vista de los trabajadores (MARAÑÓN, 2006, 2009). Por su parte, la Inocuidad Alimentaria es un estándar que ha tomado importancia en el flujo internacional de productos alimentarios, ya que se exige los alimentos estén libres de riesgos de contaminación física, química y biológica. Los antecedentes de remontan a fines de los setenta, cuando en el marco de las negociaciones comerciales multilaterales se firmó el acuerdo sobre Barreras Técnicas al Comercio (BTC). Luego se estableció un acuerdo sanitario y fitosanitario que sienta las reglas básicas y estándares para la inocuidad alimentaria y la salud animal y vegetal, y permite a los países establecer sus estándares propios, pero establece que las regulaciones deben tener bases científicas11. Tradicionalmente, eran las agencias gubernamentales las responsables por el monitoreo los estándares de inocuidad alimentaria y los atributos de calidad de los alimentos. Sin embargo, la conformación del sistema global alimentario, la consolidación de la etapa minorista y el crecimiento de estándares minoristas, la gestión de esta actividad está siendo encargada a certificadores de tercera parte. De este modo, la Certificación de Tercera Parte (CTP) es un mecanismo regulatorio tanto en la esfera pública como privada de las cadenas alimentarias, ya que los minoristas exigen que sus proveedores sean certificados a través de criterios de acceso, evaluación de la sanidad y calidad basados en conjuntos particulares de estándares y de métodos de cumplimiento. La certificación provee certeza de un producto a las partes interesadas al suministrar información acerca de la fruta u hortaliza y de su proceso de producción. La especificidad de la CTP es su proclamada independencia de los otros participantes, entre ellos, los productores y los minoristas; así como su tecnocientificidad, objetividad y transparencia, con el objetivo de incrementar la confianza y legitimidad entre sus clientes. (HANAKATA et al, 2005). 11 Los grados y estándares consisten en un conjunto de especificaciones técnicas, términos, definiciones y principios de clasificación y etiquetado; incluyen reglas de medición establecidas o reguladas por la autoridad (estándares) y sistemas de clasificación basados en atributos cuantificables (grados). Ambos pueden referirse a productos o procesos relativos a calidad (apariencia, limpieza, sabor, etc.), seguridad (ausencia de residuos de pesticidas en los productos, o libres de hormonas o de presencia bacteriana), autenticidad (denominación de origen o el uso de un proceso tradicional, y bondad del proceso productivo, respecto a la salud y seguridad del trabajador o de la contaminación ambiental. (AVENDAÑO et al, 2004). 373 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) En 1998, el gobierno de Estados Unidos estableció una ley respecto de la inocuidad alimentaria, encargando a la Federal Drug Administration (FDA) como la institución responsable y otorgándole facultades para prevenir la distribución de alimentos importados, inseguros mediante el aseguramiento de los mismos, hasta ser revisados por ella misma. La FDA estableció regulaciones a los laboratorios privados para la toma y análisis de muestras de alimentos importados, exigiendo a los proveedores de alimentos el cumplimiento de las Buenas Prácticas Agrícolas (BPA) y a las Buenas Prácticas de Empaque (BPE), especificadas en la Guía para reducir al mínimo el riesgo microbiano en los alimentos en el caso de frutas y vegetales frescos. [Avendaño et al, 2004]. El cumplimiento de estas prácticas es indispensable, pues el consumo de frutas y hortalizas frescas producidas sin BPA ha sido asociado con brotes de infecciones intestinales y enfermedades crónicas. En México, el proceso de certificación se caracteriza por su unilateralidad, pues son los supermercados estadounidenses, como ejes dominantes de la cadena de producción internacional (GEREFFI, 2001) los que definen los contenidos de la misma, y esta función se delega a una empresa privada internacional. En el ámbito interno, en respuesta a las exigencias de los mercados internacionales en materia de inocuidad alimentaria, el Estado, ha establecido ciertas normas que establecen los estándares que deben cumplir en materia de uso de plaguicidas, de higiene de los trabajadores del campo y empaque. Por tanto, en el caso de las hortalizas de exportación, los actores centrales son las cadenas de supermercados, la certificadora privada internacional y la Secretaría de Agricultura, Ganadería, Desarrollo Rural, Pesca y Alimentación (SAGARPA). En este proceso no participan otros sectores de interés, entre ellos sindicatos de jornaleros y organizaciones no gubernamentales. El foco de esta certificación es la minimización de los riesgos para la salud de los productos exportados, y no hay referencia alguna al tipo de relaciones de trabajo en los lugares de producción de hortalizas ni una firme exigencia de erradicación del trabajo infantil. Respecto de los trabajadores se despliegan ciertos procedimientos para el cuidado del aseo personal de los jornaleros y que estos observen ciertas prácticas de higiene12. 12 Para mayores detalles sobre aplicación de la inocuidad alimentaria en México ver Avendaño et al (2004) y en relación a su impacto en las relaciones laborales ver Marañón 2006 y 2009. 374 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas 2.1 Impactos de los estándares en las relaciones laborales En este apartado se compara el desempeño laboral de las empresas socialmente responsables, las que, además, están certificadas en materia de seguridad alimentaria, con las prácticas laborales comunes en la horticultura de exportación sinaloense. Diez de las setenta empresas hortícolas exportadoras han obtenido el reconocimiento de Empresas Socialmente Responsables (ESR) y han sido reconocidas por sus Buenas Prácticas Agrícolas y Buenas Prácticas de Manufactura. Este subconjunto de empresas controla alrededor de 4,500 has (20%) de la superficie total dedicada a la horticultura de exportación y 30,000 jornaleros (15%) de la mano de obra asalariada total. La comparación entre ambos universos sugiere que las relaciones laborales en las empresas socialmente responsables no son muy distintas de las que caracterizan a las empresas sinaloenses. Dicho de otro modo, la condición de socialmente responsable no supone una modificación significativa en las relaciones laborales que pueda contribuir a un mayor bienestar de los jornaleros. Las coincidencias más importantes entre ambos grupos se registran respecto al incumplimiento de disposiciones legales en cuanto al empleo temporal, sin contrato firmado, con jornadas de trabajo que se prolongan más allá de las ocho horas, pago a destajo, y ausencia de organizaciones sindicales independientes y de contrato colectivo. Los jornaleros trabajan en la temporada de invierno, entre tres y seis meses, cuando la oferta interna de hortalizas en la zona este de Estados Unidos se reduce por razones climáticas; el concurso de los jornaleros es, por tanto, temporal, sin previa firma de contrato, con pagos que se realizan de acuerdo al esfuerzo físico (tarea en el campo y destajo en el empaque) y obligan al trabajador a laborar entre 12 y 16 horas diarias, considerando el tiempo de desplazamiento de los albergues a los campos (Ver cuadro 1). Todas ellas, además, tienen prácticas discriminatorias respecto de los trabajadores en función, en primer lugar de la raza y luego del sexo, segmentando los mercados de trabajo, además, bajo la óptica de la calificación. Así, los indígenas tienen, en general, trabajo en el campo, ganando por tareas, los mestizos, en los empaques y en labores jerárquicamente más elevadas. Esta arquitectura sociolaboral, se funda, pues, en la colonialidad del poder. Las diferencias se refieren a que las empresas con la distinción de socialmente responsables si tienen a sus trabajadores registrados en el Seguro Social, no contratan mano de obra infantil y sí reconocen los pagos 375 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de finiquito y reparto de utilidades. En ambos grupos se acepta el pago del séptimo día (descanso). Con relación al acceso al seguro social por parte de los jornaleros, existe un grave problema, pues en el país, la mayoría de ellos no tiene cobertura médica, previsional, de accidentes de trabajo, maternidad, entre otras. Una sintética revisión histórica muestra el desinterés del Estado en velar por la aprobación y cumplimiento de este derecho vital para los jornaleros, ya que los empresarios, muy organizados y con claras influencias en la esfera política, se han resistido a pagar las cuotas establecidas por diversas reformas a la Ley del Seguro Social y no han incrementado de manera significativa el número de trabajadores que gozan de este derecho (GUERRA OCHOA, 1998). Hasta 1996, las empresas agrícolas sólo pagaban sus cuotas en relación a la prima de enfermedades y maternidad para los trabajadores estacionales del campo. En dicho año hubo una reforma a la Ley del Seguro Social y los trabajadores del campo fueron asimilados al régimen general de ley, de modo que se obligó a las empresas a cotizar por enfermedad, maternidad, retiro, cesantía en edad avanzada y vejez, guardería y otros conceptos más. Los empresarios sostuvieron que las cuotas resultantes eran muy elevadas y que el Seguro Social no prestaba servicios de calidad, así que en 1998 por decreto presidencial se estableció un subsidio para apoyar por un periodo de 6 años, una fracción de los pagos al seguro social por parte de los empresarios. No obstante, al término del período, en 2004, los empresarios, especialmente los del noroeste, presentaron un recurso de amparo sosteniendo que el monto establecido era muy costoso y que el Seguro Social no proporcionaba un servicio de calidad, pues no tenía infraestructura, no proveía medicinas, no pagaba las horas extras a los profesionales de la salud y no tenía guarderías. En 2005 se dio otra reforma y se introdujo la subrogación, es decir la devolución por parte del IMSS de los gastos realizados en infraestructura médica y guarderías, y también un descuento del 20% en la base de cálculo del bono de productividad, ya que la mayoría de los jornaleros trabaja al destajo, y se dispuso una base de cotización equivalente a 2.1 salarios mínimos vitales (sm). Sin embargo, los empresarios sostuvieron que la contribución al IMSS seguía siendo muy elevada, a lo que se sumaba la cuota que debía pagarse al INFONAVIT. Se inició, entonces, otro proceso de renegociación, con participación del Seguro Social y la presidencia de la república por considerar que la reforma no era beneficiosa para los empresarios, así que se buscó una nueva que permitiera la viabilidad económica de las empresas. De este modo, en diciembre de 2005 se publicó otro decreto presidencial que aprobó una cuota fija equivalente 376 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas a 1.68 sm. Misma que se renovó en enero de 2007 con vigencia hasta enero de 2010, junto con otros beneficios administrativos (presentación mensual de altas y bajas y de movimientos salariales). No obstante, para los empresarios la contribución actual sigue siendo muy costosa, pues se ha elevado de 2.59 pesos en 1996 hasta 20 pesos actualmente. Lo óptimo para ellos, sería pagar 10 pesos y otros 4 pesos más por el INFONAVIT. En Sinaloa, la práctica común es que las empresas no registren a sus trabajadores en el Seguro Social, sin embargo, las empresas reconocidas como socialmente responsables sí lo hacen. Tomando en cuenta el universo de trabajadores en las empresas socialmente responsables, sólo el 30% del total de jornaleros tendría acceso a la seguridad social y a sus múltiples beneficios. Otro aspecto que diferencia a los dos conjuntos de empresas el problema del trabajo infantil, situación de primer orden en la agricultura mexicana13 habiéndose hecho poco para evitar que, cada año, los niños jornaleros realicen labores pesadas, para ayudar al magro ingreso familiar, dejando de lado su pequeño mundo y la escuela. En Sinaloa, según la UNICEF, en 2005 la población infantil trabajadora llegaba a 5,000 personas, pero esta cantidad parece muy conservadora, pues de acuerdo a la Dirección de Trabajo y Previsión Social del gobierno del estado, en 2007 se registró una población de 12,00014, mientras que desde el lado académico se estima que la cantidad real es de 20,000 niños15. En 2007, comenzó el programa Monarca, destinado a estimular, a través del otorgamiento de una despensa, el alejamiento de los niños de los campos de cultivo y su asistencia a la escuela. Sin embargo, el programa no ha tenido el impacto esperado porque, por un lado, los padres de los niños jornaleros, como parte de una racionalidad que trata de alcanzar en cada temporada los mayores ingresos monetarios posibles para ahorrar dinero y financiar el retorno a los lugares de origen y también la producción agrícola de subsistencia, prefieren que los niños trabajen, ya que, además, los niveles salariales, para el tipo de labor que realizan, son muy reducidos. Por otro lado, las empresa, con algunas excepciones, entre ellas las calificadas como socialmente responsables, dado lo intensivo en 13 El Instituto Nacional de Geografía e Informática (INEGI), estimó en 2002 que anualmente trabajaban en el país 3.3 millones de niños, menores de 14 años, estableciendo que cerca de un tercio de ellos recibía algún pago por su desempeño. Esta significativa cantidad de niños en el trabajo tiene su explicación en el alto nivel de pobreza y desigualdad en el país. En el ramo agrícola, se estimó que habían 300,000 niños jornaleros asalariados. Ver Inegi (2004). 14 Ver La Jornada, 17 de julio de 2007. 15 Entrevista con la especialista en empleo agrícola, Dra. Maria Teresa Guerra Ochoa, investigadora de la Universidad Autónoma de Sinaloa, 15/01/09, en Culiacán. 377 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) mano de obra de la actividad hortícola, emplean a los niños por su destreza y agilidad, tratando, además, de recuperar los gastos realizados en el traslado desde sus lugares de origen y el hospedaje brindado durante toda la temporada. Al mismo tiempo, el suministro del servicio educativo para los niños migrantes se torna complejo porque no hay correspondencia entre el ciclo agrícola y el calendario escolar, la cobertura educativa alcanza apenas a una quinta parte de la población y, además, en los campamentos con la infraestructura correspondiente, las clases, en general, no se dan de acuerdo al grado de cada niño, sino que estos son agrupados en aulas de primaría y secundaria, con contenidos dictados en español, sin considerar que ellos son bilingües, e impartidos por instituciones que tienen programas distintos (SCHMELKES, 2006; INZUNZA; GONZÁLEZ, 2008). Condiciones de trabajo No hay cumplimiento por ninguna empresa Práctica común Práctica de ESR • Empleo permanente No No • Jornada 8 horas No No • • • Contrato firmado No Organización sindical independiente, contrato colectivo Vacaciones Sí hay cumplimiento por parte de ESR • Seguro social No No No Si No • Días de descanso Sí • • Participación en utilidades No Finiquito. No Si No al trabajo infantil Pago horas extras No No • • No No Si Si Si Si Cuadro 1- México: Derechos laborales establecidos en la Ley Federal del Trabajo, según su cumplimiento en la horticultura de exportación sinaloense Fuente: Elaboración propia a partir de entrevistas realizadas con empresarios, dirigentes sindicales, académicos, jornaleros agrícolas y funcionarios gubernamentales, en Sinaloa durante 2006-2008. Las diferencias más claras entre el empresario promedio y los empresarios socialmente responsables estarían en la política social, especialmente en las condiciones de vida (infraestructura social) y en cuanto al reconocimiento de los gastos de traslado y al libre tránsito de los jornaleros. En el aspecto específico de condiciones de vida existe una situación muy grave para los jornaleros en la mayoría de las empresas hortícolas sinaloenses, asunto que ha sido materia de 378 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas reclamos por parte de los jornaleros, de segmentos de la sociedad sinaloense y de la Comisión Estatal de Derechos Humanos de Sinaloa (CEDHS). En general, los jornaleros viven en pésimas condiciones en los campamentos de las empresas hortícolas (Lara, 1996; Guerra Ochoa, 1998). Se trata, en general de campamentos en los que hay serias deficiencias en materia de vivienda, salud y educación. En cuanto a vivienda, aunque propiamente no existen tales, sino espacios construidos precariamente, muy reducidos que propician el hacinameinto, con poca ventilación y con materiales inadecuados, sin que exista disponibilidad de agua potable. Tampoco existen guarderías con infraestructura y atención adecuados. En materia de salud, la atención médica puede ser muy variable en calidad, ya que puede no haber acceso a medicamentos gratuitos y en ciertos campamentos las empresas se niegan a brindar a los jornaleros enfermos atención especializada (Cuadro 2). De este modo, en 2005, el Presidente de la CEDHS sostenía que sólo el 27% de los 160 campos agrícolas cubrían condiciones aceptables, añadiendo que en coordinación con los agricultores, la Comisión que él presidía estaba certificando las instalaciones de estos campos y encontró que, donde había las guarderías estaban en malas condiciones, con construcciones de lámina galvanizada donde la temperatura se elevaba 5 grados, lo cual agravaba las de por sí altas temperaturas de Sinaloa16. Obligaciones especiales para los trabajadores del campo. Viviendas en buen estado, higiénicas, con espacio adecuado. Agua potable y drenaje Medicamentos y material de curación para primeros auxilios. Asistencia médica y medicamentos gratuitamente. Educación. Gastos de traslado, ida y vuelta. Permitir libre tránsito de trabajadores (en campos y campamentos). Fomentar la creación de cooperativas de consumo entre trabajadores Cumplimiento Todas las empresas 1)Reconocidas como ESR + +++ + +++ + +++ + + + + + +++ +++ +++ +++ +++ Cuadro 2 - México: Obligaciones especiales para los trabajadores del campo establecidas por la Ley Federal del Trabajo, según su cumplimiento en la horticultura de exportación sinaloense. Fuente: Elaboración propia a partir de entrevistas realizadas con empresarios, dirigentes sindicales, académicos, jornaleros agrícolas y funcionarios gubernamentales, en Sinaloa, 2007-2009. 16 Ver “Contratan a miles de menores en campos agrícolas de Sinaloa”, Boletín de Prensa N° 68/20052005 México, D.F a 12 de julio de 2005 http://www.cdhdf.org.mx/index.php?id=bol6805. 379 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) En esta materia, las empresas socialmente responsables han desarrollado un importante esfuerzo para modificar sustancialmente las condiciones de vida de los jornaleros, con apoyo del Programa de Atención a Jornaleros Agrícolas (PAJA)17, introduciendo diversos servicios, entre ellos, vivienda, educación, salud y guardería, así como sanitarios móviles para las horas de trabajo. Las empresas socialmente responsables han tomado estas iniciativas para responder a las exigencias de los mercados internacionales y desarrollar una imagen mejor ante la sociedad [MARAÑÓN, 2009; 2006]. Otro segmento de empresas está preocupado por mejorar la calidad de sus servicios y, finalmente, hay un tercer agrupamiento, no cuantificado conformado por propietarios que no estuvieron interesados siquiera en ser beneficiarios de los apoyos dados por el PAJA para el desarrollo de infraestructura social, donde las condiciones de vida son realmente pésimas. De manera recurrente han surgido conflictos entre los jornaleros y empresarios por incumplimiento de promesas que estos últimos realizan a través de los contratistas en el momento de la contratación, así como por malos tratos. Los conflictos más importantes giran en torno a las condiciones bajo las cuales prestan sus servicios: la duración de la jornada laboral, el monto del salario, la cobertura de los gastos de traslado, la duración mínima del tiempo que deben permanecer trabajando. Igualmente, en relación a los servicios médicos que son suministrados y las prestaciones en casos de accidente o enfermedad, en otros. Sobre todos estos asuntos, en general, no hay prácticas institucionalizadas y muchas veces los empresarios deciden, de manera arbitraria, qué y como deben ser cumplidos los compromisos acordados con los jornaleros, como es característico de los mercados no estructurados o desregulados. Esto ha dado lugar a la existencia de abusos y violaciones a los derechos humanos de los jornaleros, de manera corriente, situación se agravaba por la escasa intervención de las autoridades laborales tanto federales como estatales, de manera consistente con la construcción social y política de los mercados no estructurados. 17 El PAJA es una iniciativa de la Secretaría de Desarrollo Social que tiene por objetivo contribuir al mejoramiento de las condiciones de vida y trabajo de los jornaleros agrícolas a través de procesos de promoción y de coordinación entre diferentes niveles de gobierno y de concertación social con productores y organizaciones sociales. Al mismo tiempo, el Paja reúne aportes financieros de los gobiernos federal y estatal y de los propios productores para realizar obras de infraestructura social. Este programa ha contribuido, en los últimos años, a mejorar las condiciones de vida de los jornaleros en Sinaloa, al promover la construcción de viviendas y la introducción de servicios de agua potable, salud, educación y recreación. No obstante, a partir de la actual administración federal su importancia ha ido en franco descenso, ya que el gobierno actual tiene un enfoque diferente, centrado en el modelo de activos, respecto de la atención a los grupos pobres y vulnerables. 380 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas En Sinaloa, a principios de este decenio, se sostenía que había un incumplimiento de la Declaración Universal de los Derecho Humanos, que se hacía evidente en la manera en que vivían los jornaleros agrícolas, ya que habían violaciones sistemáticas de sus derechos en materia de salud, de vivienda, de educación para los niños migrantes los mismos que laboraban jornadas extenuantes, de seguridad en el transporte y en el trabajo cotidiano, del disfrute de vacaciones y el pago de utilidades (GIL RAMÍREZ; GASTELUM SOTO, 2000; REYES GARZÓN, 2000). Estos problemas contribuyeron a una mayor presencia de la CEDHS, la misma que legalmente tiene facultades para emitir recomendaciones a instituciones públicas cuando se comprueba una violación de los derechos humanos. En esta orientación, en 2003, la Comisión signó un acuerdo con su par de Oaxaca, con el objeto de promover el desarrollo de la cultura y el respeto de los derechos humanos de los jornaleros agrícolas migrantes procedentes de dicho estado sureño, de modo que se estableciera un padrón de migrantes con datos básicos de procedencia y llegada (nombre, domicilio, teléfono de la persona que contrata y de la empresa en la que laborarán), definición por escrito de las condiciones de trabajo (salario, duración de jornada, gastos de traslado, atención médica, condiciones de vida; educación para los niños migrantes)18. Posteriormente se han firmado acuerdos con las comisiones de Guerrero e Hidalgo. En virtud de tales convenios se han realizado inspecciones físicas a los campamentos y se han emitido quejas contra funcionarios públicos por actos u omisiones presuntamente violatorios de derechos humanos de jornaleros agrícolas, en materia laboral, educativa (CDHS, 2005, y entrevista con funcionaria en enero 2009). El análisis realizado muestra con claridad que en la horticultura de exportación, la mayoría de los jornaleros tiene empleos no estructurados, característicos de la precariedad absoluta (incertidumbre, insuficiencia de ingresos, condiciones de trabajo por debajo de la norma y falta de acceso a la seguridad social). Sí se ve desde el punto de vista del cumplimiento de derechos humanos laborales fundamentales, todas las empresas tiene prácticas discriminatorias (por sexo, raza) y no permiten la organización independiente y la negociación colectiva de los trabajadores. La mayoría de ellas utiliza el trabajo infantil. Muchas incumplen las obligaciones legales respecto a dotar de condiciones dignas de vivienda, salud y educación a 18 Ver Convenio de colaboración entre las Comisiones de Derechos Humanos de los estados de Sinaloa y Oaxaca, http://www.cedhsinaloa.org.mx/CEDH/pdfConvenios/Oaxaca.pdf 381 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) los trabajadores. Así, en 2008, según información de la Confederación de Asociaciones de Agricultores del Estado de Sinaloa (CAADES), el 60% de los campos tenía consultorios y el 25% algún tipo de guardería, que puede no adaptarse a las exigencias que plantea el Seguro Social, pero cumple con la función básica No obstante, el análisis de las estructuras del mercado de trabajo no concluye aún, pues si se tienen en cuenta la noción de heterogeneidad estructural, y no una concepción evolucionista y dualista del derrotero de la sociedad mexicana, otras relaciones laborales “atípicas”, como el trabajo esclavo se suman a las no estructuradas o precarias. Existen denuncias en la agricultura de situaciones de explotación descarnada, en ausencia de derechos laborales, de engaños a los jornaleros por parte de contratistas, de pésimas condiciones de vida y trabajo que son calificadas en la noticias periodísticas como de “esclavitud moderna”, de “retorno a la época de la esclavitud”, de “esclavitud disimulada”, para referirse a la situación de los niños jornaleros que laboran anualmente en Nayarit, en el café, caña de azúcar y tabaco; de los jornaleros en San Quintín, Baja California; de los trabajadores de Hidalgo que van a trabajar a Sinaloa, Nayarit, Sonora y son engañados por los contratistas respecto a los pagos, jornadas, condiciones de vida y, además, retenidos y maltratados por los empresarios19. Si se aplica rigurosamente la definición de trabajo esclavo, lo definitivo es, como ya se ha mencionado, la restricción a la movilidad personal, a dejar libremente el trabajo que se está realizando. Sin embargo, existen otros elementos que coadyuvan a la situación de trabajo esclavo, entre ellos, como ha sido establecido por la OIT, la retención o impago de salarios, la retención de documentos, el endeudamiento inducido, y el incumplimiento de acuerdos en el momento de la contratación (salarios, prestaciones, condiciones de vida), así como un conjunto de amenazas (despido, violencia física, supresión de derechos). En la agricultura mexicana y en algunos casos de la hortifruticultura de exportación se conocen en general, problemas entre empresas y jornaleros que tocan los puntos antes mencionados. En Sinaloa, es muy común el endeudamiento inducido, a cargo del contratista, situación que puede llevar, en algunos casos limitar la movilidad de los jornalero, también se dan situaciones de retención o impago de salarios, y en general, el incumpli19 http://www.comfia.info/noticias/43889.html 382 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas miento de acuerdos entre empresarios y jornaleros sobre temas salariales, contractuales, prestaciones, atención médica (Cuadro 3). Motivo a) Pago de traslado Trabajadores del campo agrícola “La Primavera”, Agrícola Nueva Yamal solicitan apoyo para que quede asentado ante esta Comisión que teme represalias de la parte patronal o de cualquier trabajador, dígase mayordomos o encargados Trabajadores del campo “Primavera 21”, en la curva de Villa Juárez, Navalato apoyo para trasladarse a su lugar de origen Son trabajadores del campo agrícola “San Emilio” piden se les apoye para lograr que el patrón les cumpla para regresar a su lugar de origen Son trabajadores de La empresa agrícola San Emilio, concluyó su contrato son 36 personas, regresar a Veracruz e Hidalgo Trabajadores del Empaque 5 Hermanos, apoyo para trasladarse a su estado de origen Campo Agrícola Pune “Epsa” Son personas que desean regresar a su lugar de origen, que laboran en el Campo Agrícola el Pony Tienen varios años laborando y ellos pagaron el camión de venida, quieren que les paguen el flete de ida y venida y una semana trabajada Apoyo para regresar a su estado de origen, “Agrícola Pony” Rancho Viejo; Campo agrícola que está a la entrada de Pericos, encargados Timoteo, desde el jueves les están prometiendo trasladarlos b) Retención o impago de salarios. Les adeudan tres días y medio en la Agrícola “Nueva Yamal”, en razón de que abandonaron su lugar de trabajo, actualmente laboran en la Agrícola Tricar, de Daniel Cárdenas Cevallos en el campo “El porvenir” Lupita Rivera, señaló que el patrón quedó de liquidarles el día martes 23 de enero, sin haberlo cumplido, solicita los apoyen para indagar porqué no les han pagado Trabajadores del Campo “Patricia”, Trabaja en Agrícola Epsa, S.A. de C.V., y no lê han pagado Del Campo Agustina Ramírez, Campo Rosy Apoyo para que les paguen las 4 semanas laboradas c) Jornada de trabajo y tipo de pago Jornalero del campo “Santa Fe”, cerca de “La 20”, por PRINSA El ingeniero pretende que trabajen de las 6 de la mañana a las 5 de la tarde, por un salario mínimo d) Atención médica Trae documento en El que se señala que la agraviada necesita ser operada del oído, en el “Hospital General” y el patrón no se hace cargo de esos gastos Solicita apoyo ya que estas personas, que son menores de edad, no han surtido ninguna receta, son trabajadores de Agrícola VIG Produce de Navolato El 24 de febrero, ingresó niña de 1 año 2 meses, con tos, bronquitis, el doctor Martínez confirmó que la niña traía complicaciones en un pulmón, mismo que fue operado Jornaleros en Villa Juárez, Navalato, procedente de Tlapa, Guerrero, solicita apoyo para que dejen salir del hospital a su esposa ya que carece de los recursos para liquidar la cuenta Trabajador del Campo Batán –sordomudo-, necesita atención médica en el fémur, esta en la cama 512 del Hospital Civil e) Sanitários Jornaleros agrícolas que laboran en el Campo “Agrícola de Costa Rica”, propietario Alfredo Escobosa, quien no cuentan con espacios para realizar sus necesidades fisiológicas, son diez personas, desde las 6 de la mañana a las 6 de la tarde, son cuatro o cinco personas, un operador y vigilantes Cuadro 3 - Algunos reclamos presentados por jornaleros ante la Comisión de Derechos Humanos de Sinaloa, 2008. Fuente: Comisión de Derechos Humanos del Estado de Sinaloa. 383 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) La restricción a la movilidad personal es difícil de documentar y, no es una práctica extendida, sino circunscrita a ciertas empresas que tienen un manejo arbitrario de las relaciones laborales y no tienen reparos en transgredir las normas legales correspondientes. Existe cierta relación entre la restricción a la movilidad y la intención de los empresarios de evitar que los jornaleros se vayan del campo antes de cumplir los tres meses acordados de trabajo, de acuerdo a la planificación realizada respecto de los requerimientos de mano de obra. Por esta razón, en algunos campamentos, sobre todo de noche, se restringe la salida de los trabajadores, argumentando, no sin razón, medidas de seguridad. Una práctica, poco extendida, pero recurrente, es la retención de pagos por parte del contratista, el mismo que se hace responsable ante el patrón de un grupo de jornaleros, y recibe el dinero correspondiente a ellos durante toda la temporada y, una vez de regreso en la zona de expulsión, les paga descontándoles previamente los gastos que él ha efectuado en alimentación, hospedaje y transporte. En general, el contratista les da al principio un enganche de 500 pesos, pero al final se queda con por lo menos la mitad del salario del trabajador. En los campamentos los jornaleros son obligados a comprar en tiendas de raya. En casos como estos, la presencia de los contratistas, no sólo es un elemento de desestructuración del mercado laboral y del incumplimiento de los acuerdos pactados que conduce a la precariedad absoluta, al trabajo degradante, el mismo que puede cambiar cualitativamente, a la situación de trabajo esclavo, considerando los elementos ya mencionados. Sin embargo, es importante mencionar que en la mayoría de empresas, especialmente las socialmente responsables, el desempeño de los contratistas está más ceñido a políticas de recursos humanos que buscan crear lazos más firmes con los trabajadores con el fin de mejorar el ambiente de trabajo, disminuir la rotación y mejorar la productividad. Conclusiones - En esta ponencia se planteó la necesidad de abrir la mirada sobre la mayor complejidad que va tomando la configuración de las relaciones laborales en la agricultura de exportación, para poder describir y calificar prácticas laborales que van más allá de lo que se conoce como trabajo precario, degradante y pueden dibujar los contornos del trabajo esclavo. - En este sentido, puede ser pertinente una mirada desde el enfoque de la estructuración de los mercados de trabajo que establezca puentes y cortes 384 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas entre los mercados de trabajo estructurados, no estructurados y el trabajo esclavo, analizado la forma en que nuevos estándares internacionales, la responsabilidad social empresarial y la inocuidad alimentaria impactan en las relaciones laborales, en el caso concreto de la horticultura de exportación sinaloense. Sin embargo, estas iniciativas tienen un escaso impacto sobre las relaciones laborales, por la forma vertical y excluyente en que se conciben, ejecutan y evalúan. - Las relaciones laborales en la horticultura de exportación, se pueden caracterizar por constituir mercados de trabajo no estructurados, con una precariedad absoluta que conduce a una violación cotidiana de los derechos humanos laborales fundamentales y a la explotación descarnada de los jornaleros. Los mercados no estructurados no funcionan de manera espontánea, regidos por las fuerzas del mercado, sino a partir de una construcción social y política que ha supuesto una alianza entre los empresarios y el Estado para impedir la organización de los trabajadores y un acuerdo con las centrales corporativas de trabajadores para el suministro de mano de obra. - La diferencia entre las empresas socialmente responsables y las otras, no radica en el tipo de empleo (temporal), en su formalidad (sin contrato), en el tipo de pago (tarea y destajo) ni en la extensión de la jornada de trabajo (entre 12 y 16 horas diarias). Las empresas socialmente responsables no utilizan mano de obra infantil y en el pago del seguro social para los jornaleros. Ellas, además, han desarrollado, con importante apoyo gubernamental, una significativa infraestructura social (vivienda, educación, salud) para los jornaleros. - Existen, en algunas empresas, sobre todo aquellas en las que el control de la mano de obra es despótico y arbitrario, ciertas prácticas que tienen ingredientes del trabajo esclavo, como la retención de los pagos, restricciones a la libre movilidad de los trabajadores por endeudamiento. Destaca, además, la actividad de contratistas que manejan cuadrillas, a quienes se les da un adelanto y se les paga, al final de la temporada, ya de vuelta en los pueblos de origen, descontándoles, de manera arbitraria, los costos del transporte, alimentación y hospedaje. Estos son algunos indicios respecto de un problema, delicado por su naturaleza, que requiere una mayor investigación de campo. - La presencia de las empresas reconocidas como socialmente responsables, en suma no conducen a un nuevo modelo productivo basado en un control de la mano de obra menos precarios, que fortalezca la capacidad organizativa y negociación de los trabajadores, permita una mayor movilidad 385 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) vertical sexual-racial y basada en la calificación. Por el contrario, más allá del discurso de la nueva cultura laboral que busca una mejor calificación y bienestar de la mano de obra, la responsabilidad social empresarial sigue basándose en la minorización de la mano de obra, en su estigmatización, para desvalorizarla y fragmentarla. En este sentido, la responsabilidad social empresarial en la horticultura de exportación basa su legitimidad en la colonialidad del poder, en la utilización de la mano de obra indígena a partir de una superioridad jerárquica racial, y en una visión paternalista según la cual los trabajadores indígenas viven mucho mejor en Sinaloa que en sus empobrecidos lugares de origen. Bibliografía AVENDAÑO, Belem; SCHWENTESIUS, Rita; LUGO, Sonia. Nuevos instrumentos de la política alimentaria: la inocuidad alimentaria. Reporte de investigación, Texcoco: CIESTAAM, UACH, n. 70, p. 165-192, 2004. AVENDAÑO, Belem; SCHWENTESIUS, Rita. Factores de competitividad en la producción y exportación de hortalizas: el caso del valle de Mexicali, B.C., México. Problemas del Desarrollo, México, v. 36, n. 140, p. 165-192, ene./mar. 2005. BENENCIA, Roberto, QUARANTA, Germán. Producción de frescos de exportación y desarrollo del capitalismo en América Latina. el caso de Argentina. Áreas, Murcia, v. 22, 2002. 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Nesse sentido, o trabalho escravo contemporâneo não é simplesmente um resquício de práticas anacrônicas que sobrevivem dentro de um contexto moderno, mas uma reinvenção destas, a forma mais degradante de exploração da força de trabalho e negação de direitos que opera nos locais e momentos em que o modo de produção se expande. Para analisar como ocorre esse processo, primeiro é preciso compreender as variáveis que influenciam na formação do lucro do produtor rural, como o aumento da produtividade do trabalho gerado pela acumulação capitalista e sua consequente tendência de redução de preços. Em seguida, 20 Este artigo contém parte da tese de doutorado em Ciência Política do autor, defendida na Universidade de São Paulo em junho de 2007. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) discutir como realidades aparentemente exteriores ao capitalismo são fundamentais para o desenvolvimento do modo de produção, que delas se alimenta para sobreviver. Analisa-se, então, como a acumulação primitiva se imbrica na reprodução ampliada do capital em empreendimentos que estão em regiões ou situações de expansão tornando-se ferramenta de capitalização e concorrência. 1 Tendência de aumento da produtividade A utilização de trabalho escravo está relacionada à busca de lucro pelo produtor rural ou extrativista, como será visto adiante. Mas, se para isso ele subverte regras do capitalismo dentro de sua propriedade, como o contrato de trabalho e a relação de assalariamento, por outro lado, é obrigado a aceitar imposições ao se relacionar com o mercado, ou seja, quando comercializa mercadorias. Está sujeito a aceitar os mesmos preços pagos aos seus concorrentes e em condições semelhantes. Esses elementos externos contribuem para definir o comportamento interno, não só de quem usa mão-de-obra escrava, como também de todos os que baseiam sua produção em formas contratuais de trabalho. O preço de mercado é um desses elementos. O equilíbrio entre o preço almejado por aqueles que ofertam e o preço almejado por aqueles que demandam pode ser alcançado através de negociações individuais e coletivas entre compradores e vendedores ou por meio de mercados organizados, como as bolsas de mercadorias, em que commodities1 são comercializadas (MARQUES E MELLO, 1999, p. 30-31). Nesse caso, essas mercadorias são vendidas por um preço de mercado, ou seja, um valor de referência que pode ser adotado mundialmente, definido, grosso modo, pela relação entre a quantidade de produto à disposição dos consumidores e a necessidade desses consumidores por esse produto. Por consumidor, vale considerar não apenas o consumidor final, mas principalmente, os consumidores diretos – indústrias de transformação, tradings e demais setores que utilizam essas mercadorias como insumo de seu processo de produção. Devido à sua força e ao seu poder dentro das cadeias produtivas em que atuam, esses intermediários têm grande influência na decisão de quanto pagarão por um produto, considerando a necessidade de crescimento de sua taxa de lucro e as limitações dadas pela renda disponível dos seus clientes. 1 Consideram-se commodities como produtos agropecuários que não possuem diferenciação, ou sejam que passaram por um processo de padronização para facilitar a sua comercialização mundial. Algodão, arroz, boi gordo, cacau, café, açúcar, milho, soja, suco de laranja são alguns exemplos de commodities comercializados em bolsas de mercadorias. 392 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas O mercado “ideal” é aquele em que nem compradores nem vendedores têm condições de, individualmente, influenciar nos preços de compra ou de venda. Essa definição assume um grande número de vendedores e de compradores negociando produtos não diferenciados. Sabemos que esta é uma condição impossível de ocorrer na prática, daí nos contentamos com situações “de concorrência”, em que os quatro maiores compradores ou vendedores detêm menos do que 75% do mercado (C4<75%) e o poder esteja igualmente distribuído. Por outro lado, situações em que o mercado esteja concentrado nas mãos de poucos vendedores ou de poucos compradores favorecem a união dos mesmos para a imposição de preços de venda ou de compra, respectivamente, desvantajosos para os demais setores do mercado onde atuam. (MARQUES E MELLO, 1999, p. 32). É possível discordar do “contentamento” de Marques e Mello, haja vista que a detenção de 75% do mercado por um pequeno grupo de quatro empresas, na prática, tende a se configurar como um oligopólio. No caso da soja, três grandes companhias multinacionais controlam 60% de todo o financiamento da produção do grão no Brasil e, portanto, sua comercialização interna e externa – ADM, Bunge e Cargill. Juntas, também controlam 80% da capacidade de processamento de derivados (farelo e óleo) na Europa. (GREENPEACE, 2006, p.17). Nesse contexto, a grande quantidade de produtores individuais tem pouca capacidade de controlar o mercado, tomando o preço comum determinado pelas empresas compradoras. Vale também considerar que muitos desses produtores tornam-se dependentes dessas empresas porque têm sua produção financiada por elas – recebem recursos antecipadamente para o plantio, além de sementes e fertilizantes, cujo pagamento é feito na forma de grãos após a colheita da safra,2 sob preços definidos previamente, em um “equilíbrio” que, de acordo com as reclamações das associações de produtores rurais, é mais favorável ao comprador do que ao vendedor. Ainda tendo a soja como exemplo, pode-se analisar quais variáveis operam na formação de seus preços: “Observou-se que a formação de preços da soja em nível mundial começa em Roterdã [porto holandês, principal porta de entrada da soja na Europa], refletindo-se para a Bolsa de Futuros de Chicago (CBOT). De lá, deriva-se a demanda pelo produto brasileiro, o qual recebe um ágio ou deságio e deduzem-se os custos de frete, seguros e outros, chegando-se ao preço no porto de Paranaguá. Desse preço no 2 Informação retirada da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), em fevereiro de 2007. 393 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) porto, são deduzidos custos de impostos, de transportes, de seguros e outros, obtendo-se o preço no local da fábrica. De lá, deduzem-se novamente os fretes, despesas operacionais e outros custos, chegando-se a formação da base de preço no local da produção rural, que, com a concorrência em cada região, formará o preço final a ser oferecido ao produtor (MARQUES E MELLO, 1999, p. 39-40). 3 Há outros elementos nesse processo que dependem da relação entre o momento da safra brasileira com a safra norte-americana – maior produtor mundial. Quando a soja dos Estados Unidos entra no mercado, a exportação brasileira diminui devido à concorrência (e consequente redução no preço pago no mercado externo devido à quantidade disponível) e o grão brasileiro é destinado às indústrias de esmagamento para produção de óleo e farelo instaladas no país. Esses subprodutos serão consumidos internamente ou exportados (ANÁLISE EDITORIAL, 2006, p. 205) 4 Nesse período, o preço pago ao produtor é formado internamente, com base na relação oferta/ demanda com a indústria. Outro elemento a ser considerado é a elasticidade-preço da demanda. Uma diminuição no preço de um determinado produto pode aumentar a sua procura de forma elástica, ou seja, não proporcional, porque tende a inserir um maior número de consumidores dentro de um mercado que, até então, estava à margem de seu poder aquisitivo. Cada produto em cada país e região possui um perfil de elasticidade diferente. Por fim, esse processo de definição de preço é complexo e contínuo, com variáveis previsíveis (como sazonalidades e ciclos) e imprevisíveis (como quebra de safras) que implicam no aumento ou na redução do valor pago ao produtor. Analisando séries históricas de preços de commodities é possível constatar que há uma trajetória de queda de valores. O desenvolvimento tecnológico, ou seja, o aumento da produtividade através do crescimento do capital constante, é o principal fator que influencia nesse processo, que também conta com as diferentes taxas de crescimento na relação oferta/ demanda. As tendências de longo prazo são um instrumento útil, pois possibilitam analisar o mercado de preços sem os sobressaltos de curto prazo decorrentes da sazonalidade ou dos ciclos de crescimento, apogeu e declínio de determinados produtos. 3 Os autores indicam um esquema que mostra a formação de preços na fazenda: Chicago+- prêmio = FOB estivado – custos de internalização – custos de armazenamento – frete interno – quebra de peso – risco, juros etc. – benefícios de arbitragem financeira ou venda de performance de exportação +- outras variáveis (poder da indústria na região, condições locais de oferta e demanda) = preço local na fazenda. 4 Os itens mais vendidos nas exportações são: soja em grãos (56%), farelo de soja (30%), óleo de soja em bruto (11%) e óleo de soja refinado (3%). 394 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Os gráficos de tendência a seguir foram produzidos com base em dados sobre os preços pagos para três commodities: arroba boi gordo (região Noroeste do Estado de São Paulo), saca 60 kg de soja (Estado de São Paulo) e arroba de algodão em caroço (Estado de São Paulo), representando cerca de 30 anos de evolução de preços. Eles foram escolhidos por serem os três produtos com maior incidência dentre as propriedades rurais que utilizaram mão-de-obra análoga à de escravo na amostra escolhida pela pesquisa de campo do autor. Os dados foram encomendados pelo autor da pesquisa ao Instituto FNP5, com valores corrigidos monetariamente e deflacionados, tendo como fator multiplicador o mesmo índice inflacionário acumulado e o mês de janeiro de 2007 como referência para essa atualização. Com isso, foi possível proceder com uma comparação histórica de preços e a identificação da curva de tendência. Para a produção dos gráficos de evolução e tendência, foram inseridos os valores mês a mês.6 A curva em azul representa a evolução de preços e a curva em preto a evolução da tendência dos preços.7 Analisou-se a correlação entre as três curvas de preços das séries históricas para verificar se o padrão de similaridade entre as tendências não seriam originadas apenas da taxa de deflação pela qual a série de preços foi submetida. As três correlações encontradas foram diferentes (Algodão e soja, 88,17%; Algodão e boi, 65,80%; Boi e soja, 68,04%), o que mostra que a tendência é real e não uma consequência da atualização de preços. Para o boi gordo, a série histórica inicia-se em janeiro de 1977 e segue até janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP foram o Instituto de Economia Agrícola (IEA) e o próprio IFNP. 5 6 Instituto localizado em São Paulo (SP) e especializado em estatísticas agropecuárias. No Anexo, estão as tabelas com todos os preços. 7 Os gráficos foram produzidos com a ajuda do programa Excel/Microsoft Office. Agradeço ao jornalista e economista Thiago Guimarães que ajudou-me na construção desses gráficos e na análise da tendência. 395 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Evolução histórica do preço do boi gordo em São Paulo (jan 1977-jan 2007) 300 250 Valor atualizado (R$) 200 150 100 50 /0 7 /0 5 /0 6 ja n ja n /0 4 ja n /0 2 /0 3 ja n ja n /0 1 ja n /9 9 /0 0 ja n ja n /9 8 ja n /9 6 /9 7 ja n ja n /9 5 ja n /9 3 /9 2 /9 4 ja n ja n ja n /9 1 ja n /8 9 /9 0 ja n ja n /8 8 ja n /8 6 /8 7 ja n ja n /8 5 ja n /8 3 /8 4 ja n ja n /8 2 ja n /8 0 /8 1 ja n ja n /7 9 ja n /7 8 ja n ja n ja n /7 7 0 Tempo Gráfico 1 - Evolução histórica do preço do boi gordo em São Paulo em jan. 1977 - jan. 2007 Fonte: Instituto FNP); Instituto de Economia Agrícola (IEA). Para a soja, a série histórica inicia-se em janeiro de 1976 e segue até janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP foram a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o próprio IFNP. Evolução histórica do preço da saca de 60kg de soja em São Paulo (jan 1976-jan 2007) 180 160 Valor atualizado (R$) 140 120 100 80 60 40 20 jan/07 jan/06 jan/05 jan/04 jan/03 jan/02 jan/01 jan/00 jan/99 jan/98 jan/97 jan/96 jan/95 jan/94 jan/93 jan/92 jan/91 jan/90 jan/89 jan/88 jan/87 jan/86 jan/85 jan/84 jan/83 jan/82 jan/81 jan/80 jan/79 jan/78 jan/77 jan/76 0 Tempo Gráfico 2 – Evolução histórica do preço da saca de 60 kg de soja em São Paulo em jan.1976 – jan. 2007 396 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Fonte: Instituto FNP; Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Para o algodão, a série histórica inicia-se em janeiro de 1976 e segue até janeiro de 2007, último dado disponível. As fontes utilizadas pelo IFNP foram a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e o Instituto de Economia Agrícola (IEA). Evolução histórica do preço do algodão em caroço em São Paulo (jan 1976-jan 2007) 90 80 Valor atualizado (R$) 70 60 50 40 30 20 10 jan/07 jan/06 jan/05 jan/04 jan/03 jan/02 jan/01 jan/00 jan/99 jan/98 jan/97 jan/96 jan/95 jan/94 jan/93 jan/92 jan/91 jan/90 jan/89 jan/88 jan/87 jan/86 jan/85 jan/84 jan/83 jan/82 jan/81 jan/80 jan/79 jan/78 jan/77 jan/76 0 Tempo Gráfico 3 – Evolução histórica do preço do algodão em caroço em São Paulo em jan. 1976 – jan. 2007 Fonte: Instituto IFNP; Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB); Instituto de Economia Agrícola (IEA). Nos três casos, houve amplitudes maiores nas variações de preços dos primeiros 20 anos e o que, parece ser, uma suavização do processo de declínio de preços nos últimos dez anos. Tomando novamente a soja como exemplo, vale ressaltar que, ao contrário do que repete exaustivamente o senso comum, o preço da soja vem caindo como as demais commodities e não aumentando. O que houve, aparentemente, foi um ciclo de crescimento dos preços entre a década de 90 e o início desta, estimulando os produtores rurais a avançarem suas lavouras sobre áreas do Cerrado e da Amazônia. Para o Quadro 1 abaixo, não se faz necessária a curva de tendência para perceber o aumento da área plantada, ou seja, a ampliação de empreendimentos já existentes e o desenvolvimento de novos, além da produtividade por hectare. Um crescimento, portanto, em duas frentes diferentes que fez saltar a produção de soja no Brasil, contribuindo para o aumento da oferta mundial e, portanto, para o declínio nos preços. 397 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Ano-safra Área plantada (mil hectares) Produção (mil ton) Produtividade (kg/hectere) 1982/83 8.412,0 14.532,9 1.728 1984/85 10.074,0 18.211,5 1.808 1986/87 9.221,7 1983/84 1985/86 9.162,9 9.644,4 1987/88 10.706,6 1989/90 11.551,4 1988/89 1990/91 1991/92 11.678,7 1997/98 1998/99 1999/00 2000/01 2001/02 2002/03 2003/04 2004/05 2005/06 18.127,0 23.929,2 20.101,3 15.394,5 9.582,2 1994/95 1996/97 17.071,5 9.742,5 10.717,0 1995/96 13.207,5 12.252,8 1992/93 1993/94 15.340,5 19.418,6 23.042,0 11.501,7 25.059,1 25.934,1 10.663,2 23.189,7 11.381,3 26.160,0 13.175,9 31.356,0 12.995,0 30.765,0 13.508,0 32.345,0 13.687,0 37.221,0 15.456,0 41.400,0 18.481,0 52.031,0 21.275,0 49.770,0 23.301,0 51.451,0 22.145,0 58.175,0 1.674 1.369 1.861 1.966 1.953 1.740 1.580 2.027 2.150 2.179 2.221 2.175 2.299 2.380 2.367 2.395 2.719 2.679 2.815 2.339 2.208 2.627 Quadro 1 - Evolução da área plantada, da produção e produtividade no Brasil 1982-2006 Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB); Associação Nacional dos Exportadores de Cereais O exemplo da soja pode ser aplicado às demais mercadorias. Essa diminuição do preço da matéria-prima está diretamente relacionada ao aumento de produtividade do trabalho e, portanto, do aumento da composição orgâ398 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas nica do capital, que cresce em proporção desigual entre o capital constante e o capital variável, ou seja, entre o investimento em meios de produção e o montante despedido para a massa salarial. Produtividade esta que se apresenta através de mecanização de atividades, utilização de insumos químicos, aplicação de novas técnicas de produção e no aprimoramento genético do produto vivo. O volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles incorporada expressa a crescente produtividade do trabalho. O acréscimo desta última aparece, portanto, no decréscimo da massa de trabalho proporcionalmente à massa de meios de produção movimentados por ela ou no decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com os fatores objetivos. (...) Com a crescente produtividade do trabalho, não apenas se eleva o volume dos meios de produção por ele utilizados, mas cai o valor deles em comparação com o seu volume. Seu valor se eleva pois de modo absoluto, mas não só proporcionalmente ao seu volume. O crescimento da diferença entre capital constante e capital variável é, por isso, muito menor que o da diferença entre a massa dos meios de produção em que o capital constante é convertido e a massa da força de trabalho em que converte o capital variável. A primeira diferença cresce com a última, mas em grau menor. (MARX,1985, v. 2, p. 194-195). Uma quantidade sempre crescente de meios de produção pode ser acionada por uma quantidade relativa cada vez menor de força de trabalho. Como consequência, um número maior de mercadorias agrícolas pode ser produzida com a mesma quantidade de horas de trabalho. Um aumento da oferta de mercadorias produzidas com o mesmo custo de produção por um capitalista individual pode levá-lo a oferecer um preço mais competitivo para atrair clientes ou reter um lucro. Vale lembrar que, na prática, o seu lucro não é obtido através da comercialização dos produtos, mas com a apropriação da mais-valia obtida da diferença não acrescentada dessa produtividade ao salário dos seus empregados, ou seja, de horas trabalhadas sem remuneração. A comercialização é apenas a realização dessa mais-valia em dinheiro. Se ele foi o pioneiro na implantação dessa inovação em produtividade, isso vai lhe garantir uma vantagem até que o desenvolvimento tecnológico e social que ele utilizou possa ser reproduzido pelos demais capitalistas. O capitalista que aplica o modo de produção aperfeiçoado apropria-se portanto de maior parte da jornada de trabalho para o mais-trabalho do que os demais capitalistas do mesmo ramo. Ele faz individualmente o que o capital, na produção da mais-valia relativa, faz em conjunto. 399 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Mas, por outro lado, aquela mais-valia extra desaparece tão logo se generaliza o novo processo de produção, pois com isso a diferença entre o valor individual das mercadorias produzidas mais baratas e seu valor social se desvanece. A mesma lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, que se fez sentir ao capitalista com o novo método na forma de ter que vender sua mercadoria abaixo de seu valor social, impele seus competidores, como lei coercitiva da concorrência, a aplicar o novo modo de produção.” (MARX,1988, v. 1, p. 241). Para Marx, há um impulso imanente e constante do capital no sentido de aumentar a capacidade produtiva do trabalho para baratear a mercadoria. E com a redução do custo das mercadorias de maneira global através da repetição dos mesmos processos em outros setores – principalmente aqueles relativos à manutenção social e biológica da mão-de-obra – há o barateamento do próprio custo do trabalhador. É importante ressaltar que os produtos agrícolas identificados nas cadeias de comercialização das fazendas que utilizaram mão-de-obra análoga à escrava da amostra deste artigo são aqueles direta ou indiretamente necessários para a reprodução social do trabalhador: carne bovina (alimentação), soja (usada, principalmente, como óleo e farelo de ração para gado - alimentação), algodão (vestuário), etanol (transporte), pimentado-reino (usado na indústria frigorífica – alimentação), café (alimentação) e carvão (produção de aço para bens de consumo). Não por acaso produtos que estão entre as principais demandas dos centros capitalistas nacional e internacional e cuja área de produção está em expansão no país. O valor absoluto da mercadoria é, em princípio, indiferente ao capitalista que a produz. Só lhe interessa a mais-valia contida nela e realizável na venda. A realização da mais-valia implica, por si mesma, a reposição do valor adiantado. Uma vez que a mais-valia relativa cresce na razão direta do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, enquanto o valor das mercadorias cai na razão inversa desse mesmo desenvolvimento, sendo, portanto, o mesmo processo idêntico que barateia as mercadorias e eleva a mais-valia contida nelas, fica solucionado o mistério de que o capitalista, para quem importa apenas a produção de valor de troca, tenta constantemente reduzir o valor de troca das mercadorias. (MARX,1988, v. 1, p. 242). Individualmente, se o comprador comercial ou industrial dessas matérias-primas puder reter a vantagem com o baixo preço obtido do produtor rural, seja por razões de monopólio de mercado, seja por razões de dominação econômica e comercial de seu fornecedor ou outras aqui não descritas, e os demais compradores não tiverem o mesmo sucesso, pode-se considerar um aumento no seu ganho através dessa operação. 400 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Em Marx, a taxa de lucro (aqui assumida como L) manifesta-se através da relação da mais-valia (m) com o capital global adiantado (C) (MARX, 1985, v. 2, p.116) que, por sua vez, decompõe-se em capital constante (c) e capital variável (v), ou (c+v). Dependendo do custo da matéria-prima, um dos componentes do capital constante, a taxa de lucro pode variar positiva ou negativamente. Tendo como referência uma situação em que a mais-valia é de 100 unidades de valor e o capital total de 1000, sendo que o c=600 e v=400, temos uma taxa de lucro8 de 10%. Caso o preço do insumo de produção caia por uma diferença (d) de 200 unidades, temos: L = m/(C-d) = 100/(1000-200) ou = m/[(c-d)+v] = 100/[(600-200)+400] = 12,5% (>10%) Porém, se o preço da matéria-prima tiver uma alta de 200 unidades: L = m/(C+d) = 100/(1000+200) ou = m/[(c+d)+v] = 100/[(600+200)+400] = 8,33% (<10%) Ou seja, a diminuição no preço da matéria-prima pode garantir um aumento na taxa de lucro dos compradores de produtos agrícolas – pelo menos individualmente, em um período de tempo até que essa redução se generalize. No caso das tradings internacionais de soja, ou seja, um ambiente de baixa competitividade, o oligopólio atua semelhantemente como um ator individual, garantindo para elas parte dessa redução no custo da matéria-prima. 2 Acumulação capitalista e acumulação primitiva Há duas formas de acumulação de capital: através de sua reprodução ou de sua acumulação primitiva. Apenas a força de trabalho gera valor, uma vez que a matéria-prima pura entra e sai do processo produtivo valendo o mesmo que antes. Na primeira forma, a mais-valia obtida do mais-trabalho, não remunerado, é reinvestida nos componentes constante e variável do capital. Essa mais-valia pode crescer por meio do prolongamento da jornada de trabalho (absoluta) ou, e aqui está a chave da acumulação capitalista, pela 8 Agradeço a contribuição do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP), que sugeriu o uso dessa relação. 401 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) redução do tempo de trabalho e da mudança da proporcionalidade entre os dois componentes do capital (relativa) (MARX, 1988, v. 1, p.239). De acordo com Marx, a acumulação primitiva historicamente não é resultado do modo de produção capitalista, mas sim seu ponto de partida, o processo histórico de separação entre o produtor e o seu modo de produção, que leva a acumulação de recursos de produção nas mãos do capitalista. Nesse momento há um processo de “libertação” do trabalhador, que, forçosamente, está livre da posse de meios de produção e, portanto, livre para poder vender sua força de trabalho, garantindo ao capital a força motriz para o seu ciclo de reprodução. (MARX, 1985, v. 2, p. 261-262). Seguindo a mesma lógica, a acumulação primitiva também inclui a pilhagem de recursos naturais e de trabalho, com formas de exploração que não garantem a reprodução social e biológica do indivíduo. Contudo, na prática, há processos de acumulação do capital que seguem a lógica da acumulação primitiva, que atua em regiões de implantação do modo de produção, e da reprodução ampliada, que tende a operar em locais onde a força de trabalho é negociada de forma contratual. Em alguns empreendimentos, principalmente os que estão em regiões ou situações de franja do sistema, onde a modernização dos métodos de produção ou das relações de trabalho está em andamento ou foi concluída de maneira incompleta, a reprodução ampliada e a acumulação primitiva podem coexistir. Durante um período de tempo para capitalizar mais rapidamente o empreendimento ou de forma estrutural, como método de produção. A exploração de formas não-contratuais, incluindo formas contemporâneas de escravidão, é uma característica-chave dessas situações. Antes de entrar na análise de como isso pode ocorrer, deve-se entender o papel desenvolvido por essas regiões e situações para o próprio modo de produção, tanto para a realização de mais-valia dos produtos dos centros capitalistas quanto para a obtenção de matérias-primas a preços progressivamente mais baixos. Uma das maiores críticas de Luxemburg à estrutura de reprodução ampliada de Marx foi a ausência de uma saída para a realização da mais-valia, considerando as relações comerciais entre os departamentos de bens de consumo e de bens de produção em uma sociedade capitalista. Considerando apenas as propostas presentes em O Capital, a conta simplesmente não fecha.9 9 Como não é o objetivo principal deste texto, preferiu-se não trazer à discussão as fórmulas da reprodução ampliada de Marx e as provenientes da crítica de Luxemburg. Mas elas podem ser encontradas ao final do livro segundo em O Capital (O Processo de Circulação do Capital), quanto em A Acumulação do Capital, de 11. 402 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas É impossível que a parte capitalizável da mais-valia venha a realizar-se pelos próprios operários e capitalistas. A realização de mais-valia para fins de acumulação em uma sociedade composta só por operários e capitalistas é, portanto, um problema sem solução. A realização da mais-valia exige como primeira condição um círculo de compradores fora da sociedade capitalista. Referimo-nos a compradores, não a consumidores. A realização da mais-valia não nos indica nada, previamente, sobre a forma material dessa mais-valia. O aspecto decisivo é que a mais-valia não pode ser realizada nem por operários, nem por capitalistas, mas por camadas sociais [grifo do autor] ou sociedades que por si não produzam pelo modo capitalista. É, pois, possível imaginar dois casos distintos. A produção capitalista fornece meios de consumo acima das próprias necessidades (ou seja, as dos operários e as dos capitalistas), cujos compradores pertencem às camadas ou países não-capitalistas. (LUXEMBURG,1984, v. 2, p.19-20). Por “camadas sociais” entende-se que não se trata apenas de sociedades inteiras, mas de parcelas dessas sociedades. Cerca de um século separa a época em que Luxemburg escreveu esse texto e hoje, período em que o capitalismo fortaleceu sua hegemonia. Mas seus limites continuam não obedecendo fronteiras políticas e, devido a isso, comportamentos de “franja” podem ser encontrados mesmo na Europa e nos Estados Unidos, com o trabalho forçado realizado em fazendas por imigrantes africanos e latino-americanos, respectivamente. A produção capitalista necessita de regiões não-capitalistas para se desenvolver e, em função de sua natureza e forma de existência, não admite limitações.10 Isso não é apenas uma situação localizada na evolução histórica do capital, mas condição para a sua própria existência. Como discutido anteriormente, uma das formas mais importantes para elevar a taxa de lucro do capital individual é através da tendência de barateamento dos elementos do capital constante. Para o aumento contínuo da produtividade do trabalho, que eleva a taxa de mais-valia, é necessária a utilização sem restrições de todos os elementos que a natureza coloca à disposição. Uma das condições prévias indispensáveis ao processo de acumulação, no referente a sua elasticidade e sua capacidade súbita de ampliação, é a rápida inclusão de novos territórios de matérias-primas, de proporções ilimitadas, a fim de poder enfrentar tanto as vicissitudes e interrupções eventuais no abastecimento de matérias-primas por parte dos antigos fornecedores, quanto as ampliações súbitas das necessidades sociais (LUXEMBURG,1984, v. 2, p.24). 10 Ibidem, p. 23. 403 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Em um curto espaço de tempo, de acordo com a sinalização de demanda pelos centros capitalistas nacionais e globais, os empreendimentos em regiões de franja do sistema são capazes de se expandir sobre áreas, na maioria das vezes, ocupadas por populações que vivem sob um modo de produção não-capitalista. Em questão de anos, surgem grandes fazendas de gado, lavouras de soja, algodão e cana-de-açúcar, entre outras culturas, na Amazônia e no Cerrado, produzindo matéria-prima e gêneros alimentícios para a indústria e o comércio, onde antes viviam populações indígenas, posseiros e comunidades quilombolas. Nessa expansão, coexistem tecnologia de ponta, vendida e financiada pelos mesmos capitalistas nacionais e globais, e formas não-contratuais de trabalho. O que parece contraditório na verdade expressa um processo fundamental para o desenvolvimento desses empreendimentos, acelerando sua capitalização e garantindo a capacidade de concorrência em um contexto em que, apesar de escondidos no meio da fronteira agrícola, eles estão conectados pelo comércio ao sistema global. É somente o capital dotado dos respectivos meios técnicos que consegue executar a mágica de criar revoluções tão maravilhosas em tão curto espaço de tempo. Somente em solo pré-capitalista, de relações sociais mais primitivas, é que o capital consegue exercer tamanha influência sobre as forças produtivas materiais e humanas, a ponto de criar tais prodígios. (LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 24). Luxemburg cita como exemplo o crescimento do consumo mundial de borracha entre os séculos 19 e 20, cuja base econômica de produção era fornecida por sistemas primitivos de exploração que o capital europeu praticava em colônias africanas e no continente americano. Sistemas que, segundo ela, representavam formas diversas de escravatura e trabalho servil: Assim, existem, entre cada período produtivo (em que a mais-valia é produzida) e a acumulação que o sucede (em que a mais-valia é capitalizada), duas transações distintas, ou seja, a transformação da mais-valia em sua forma pura de valor e a realização e a transformação dessa forma pura de valor em forma produtiva de capital, transações que ocorrem entre a produção capitalista e o mundo não-capitalista que a circunda. Sob ambos os pontos de vista, pois, da realização da mais-valia, bem como da obtenção dos elementos do capital constante, o comércio mundial é por princípio uma condição histórica de existência do capitalismo. Comércio este que, nas condições concretas existentes, é, por natureza, uma troca que se verifica entre as formas de produção capitalista e as não-capitalistas (LUXEMBURG,1984, v. 2, p.24-25). 404 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Não se trata apenas do comércio internacional, mas também do comércio entre diferentes modos de produção de um mesmo país, quando este apresentar camadas sociais inseridas dentro do modo de produção e outras que estão em processo de inserção ou que tiveram sua inserção mal-realizada e, portanto, incompleta. Do ponto de vista da produção capitalista, há mercados internos e externos. O primeiro é o próprio mercado capitalista, em que essa produção consome seus produtos e gera seus elementos de produção. O segundo é o meio social não-capitalista que compra seus produtos e lhes fornece força de trabalho e matéria-prima (LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 29). Podem haver trocas entre diferentes países dentro do mercado capitalista e trocas entre regiões dentro de um mesmo país que se configurem relações de mercado externo, entre modos de produção capitalistas e outros não. Contudo, à medida que esse processo de assimilação avança, as realidades não-capitalistas passam paulatinamente a ser parte integrante do modo de produção, ou seja, transformam-se de mercado externo para interno: Se o capitalismo, portanto, vive de formas econômicas não-capitalistas, vive, a bem dizer, e mais exatamente, da ruína dessas formas. Necessitando obrigatoriamente do meio não-capitalista para a acumulação, dele carece como meio nutriente, à custa do qual a acumulação se realiza por absorção. Considerada, historicamente, a acumulação de capital é o processo de troca de elementos que se realiza entre os modos de produção capitalistas e os não-capitalistas. Sem esses modos a acumulação de capital não pode efetuar-se. Sob esse prisma, ela consiste na mutilação e assimilação dos mesmos, e daí resulta que nem a acumulação do capital não pode existir sem as formações não-capitalistas, nem permite que essas sobrevivam a seu lado. Somente com a constante destruição progressiva dessas formações é que surgem as condições de existência da acumulação de capital. ((LUXEMBURG,1984, v. 2, p. 63). Luxemburg considera que há, aqui, um impasse. Com o fim de modos de produção não-capitalistas para realização da mais-valia e fornecimento de matérias-primas, o modo de produção invariavelmente entraria em declínio – declínio causado por sua própria característica de acumulação de capital através da reprodução ampliada e da destruição de modos de produção diferentes. Em outras palavras, à medida que o animal se alimenta, ele cresce e necessita de mais alimento. Mas este é escasso e a voracidade do próprio animal é apenas um catalisador do processo que o levará a um colapso. Frente à adaptabilidade que vem demonstrando o capitalismo, podese encarar com desconfiança o destino a que a autora condena esse modo 405 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de produção. Mesmo considerando o processo histórico, é difícil prever quando aconteceria o seu autocolapso.11 Contudo, a realidade tem comprovado que enquanto há relativa paz, prosperidade e igualdade dentro dos centros capitalistas, encobrindo os já conhecidos problemas causados pela acumulação, na periferia do sistema, onde o capital se choca com formas não-capitalistas, violência, fraude, repressão e pilhagem são feitas de forma aberta.12 Como na expansão da fronteira agrícola da Amazônia e do Cerrado brasileiros. O que mostra que ela estava correta em afirmar que estas são características dessa expansão e não suas consequências imponderáveis e indesejáveis. E que as relações sociais e econômicas que operam dentro dos centros capitalistas estão interligadas organicamente com as relações das franjas do sistema. 2.1 Acumulação primitiva constante O trabalho escravo contemporâneo não é um resquício de modos de produção pré-capitalistas que serão extintos com o desenvolvimento do modo de produção, mas um mecanismo utilizado racionalmente por empreendimentos para viabilizar a acumulação nas situações e ambientes de expansão do capital. A super exploração do trabalho, da qual a escravidão é a forma mais degradante, é deliberadamente utilizada em determinadas circunstâncias como parte integrante do modo de produção capitalista. Sem ela, empreendimentos mais atrasados em áreas de expansão, não teriam a mesma capacidade de concorrer com sucesso na economia globalizada. Por conseguinte, o crescimento da oferta de produtos agropecuários no mercado seria mais lento, o que reduziria o ritmo de queda dos preços das matérias-primas em escala global, prejudicando o comércio e a indústria. Como pode ser visto a seguir, seria contrário ao interesse do modo de produção a erradicação dessas formas não contratuais de trabalho. Pelo contrário, ele as absorve e recria sua função quando estas possuem características que podem beneficiá-lo. Todo o capital busca a taxa de lucro médio para continuar sendo viável, não importando qual a sua composição orgânica. De acordo com Martins 11 Há uma discussão recente apontando que esse colapso ocorreria através da escassez de matéria-prima ou da reação do meio ambiente ao processo de desenvolvimento capitalista. 12 Inclui, por exemplo, as condições como são feitos os empréstimos e financiamentos a produtores dessas regiões, a política de ocupação de fronteiras agrícolas e o apoio ou envolvimento em conflitos armados pelo controle de recursos naturais. 406 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas (2002), essa taxa, expressão da reprodução capitalista que se traduz como cálculo racional, é regulada por cima, pelos empreendimentos que possuem uma composição orgânica alta. Por propriedades rurais com crescente produtividade do trabalho.13 Em outras palavras, quem produz mais por menos, com um progressivamente menor custo da força de trabalho diante de um progressivamente maior perfil tecnológico, força a concorrência a adotar o mesmo método de produção – o que demanda investimento.14 Porém, há ambientes ou situações de expansão do capital em que não é viável ou desejável fazer tal investimento. A escassez de recursos, a marginalidade do setor econômico em que a propriedade está inserida ou da atividade dentro da fazenda que necessita de investimento, a canalização do capital para outras áreas do empreendimento por questões estratégicas, a busca por lucros maiores estão entre os elementos que atuam na manutenção de uma composição orgânica baixa do capital.15 A alternativa, nesse caso, é reduzir custos: aumentar a mais-valia absoluta através da exploração de mão-de-obra de forma degradante e diminuir os recursos voltados à sobrevivência do trabalhador. Dessa forma, deprime-se a participação da parte variável na composição do capital ao invés de aumentar a parte constante, como seria esperado num processo de reprodução ampliada. Emula-se uma composição orgânica alta, uma composição moderna do capital, possibilitando alcançar a taxa de lucro média e manter a competitividade. 13 Este texto não irá entrar na discussão dos limites que podem atingir o capital constante e variável. Antunes (1999, p. 119-120) faz um longa discussão sobre a articulação do trabalho vivo com o trabalho morto como condição para que o processo produtivo do capital se mantenha “Exatamente porque o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de criação de valores, ele deve aumentar a utilização e a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração de sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido. A diminuição do tempo físico de trabalho, bem como a redução do trabalho manual direto, articulado com a ampliação do trabalho qualificado, multifuncional, dotado de maior dimensão intelectual, permite constatar que a tese segundo a qual o capital não tem mais interesse em explorar o trabalho abstrato acaba por converter a tendência pela redução do trabalho vivo e ampliação do trabalho morto na extinção do primeiro, o que é algo completamente diferente. E, ao mesmo tempo em que desenvolve as tendências acima, o capital recorre cada vez mais às formas precarizadas e intensificadas de exploração do trabalho, que se torna ainda mais fundamental para a realização de seu ciclo reprodutivo num mundo onde a competitividade é a garantia de sobrevivência das empresas capitalistas”. (ANTUNES, 1999 p. 119-120). 14 O custo desse investimento varia de acordo com países e regiões. A importação e a adaptação de técnicas e equipamentos é um custo a mais dos países periféricos em comparação aos países centrais. No Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem garantido o desenvolvimento do conhecimento agrário para o país, reduzindo os custos de investimento na produção. 15 Em entrevista, Sílvio Crestana, diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), discutiu a expansão agropecuária do ponto de vista ambiental. Como formas não contratuais de trabalho são, muitas vezes, utilizados para essa expansão: “O grande jogo é aproveitar os 50 milhões de hectares de pastagens pouco produtivas que temos. Nos próximos 30 anos, para atender toda a demanda – e será necessária a produção de 100 bilhões de litros de biodiesel -, precisaremos de 40 milhões de hectares. Temos tecnologia para esse salto sem problemas. A questão pega no investimento. Para recuperar 20 milhões de hectares pouco produtivos são necessários R$ 40 bilhões. Ainda é mais barato derrubar floresta”. (GERAQUE, 2006). 407 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) A acumulação do capital através da reprodução ampliada deveria acontecer em contextos onde há relações sociais reguladas pelo princípio de igualdade jurídica e de liberdade. Ou seja, condições em que é possível estabelecer contratos de compra e venda de força de trabalho, através de relações de assalariamento, que podem ser rescindidos. Mas nos casos extremos de redução do capital variável, a remuneração passa a ser insuficiente para a reprodução social ou, na pior das hipóteses, biológica do trabalhador. Há casos em que o trabalhador é obrigado a obter sua própria alimentação a partir da caça e construir seu próprio alojamento com folhas de palmeiras: Os peões, que haviam sido aliciados para derrubar a mata e limpar o pasto, estavam submetidos a condições degradantes. Em certos poços, a água – utilizada para beber, lavar roupa, tomar banho e preparar a comida – exibia uma coloração escura, além de exalar um odor fétido. Os trabalhadores estavam em barracas cobertas de lona ou palma de babaçu, amontoados em redes, onde conviviam adultos, mulheres e crianças. Carne só de caça, quando alguém conseguia acertar um tatu, uma paca ou um macaco. Enquanto isso, mais de 3.000 cabeças de gado pastavam na fazenda, que possui cerca de 7,5 mil hectares de terra – parte dela não regularizada. O proprietário, Aloísio Alves de Souza, afirmou que tem outra fazenda na região, com mais 1.500 hectares e outras 800 rezes. “Tem vez que a gente passa mais de mês sem carne”, lembra Charles Monteiro, que prestava serviço há oito anos na fazenda (SAKAMOTO, 2003, http://reporterbrasil.org.br/ exibe.php?id=204). Nos casos de trabalho análogo ao escravo, a pessoa perde a liberdade de rescisão contratual e fica impedida de se desligar do patrão até que termine o serviço ou que não seja mais necessária:16 Nos setores periféricos das economias subdesenvolvidas, que tendem à baixa composição orgânica do capital, a acumulação primitiva do capital tende a se tornar um componente de acumulação originária constante. Isto é, no sentido de que é lenta a superação da acumulação originária por outras formas de acumulação do capital, não necessariamente muito avançadas. A forma da acumulação originária pode ser outra, mas sua função permanece, recria-se nos setores e territórios em que o capital se expande de modo insuficiente, onde a expansão 16 Xavier Plassat, da Coordenação da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra, estima que o serviço dos trabalhadores em situação análoga à de escravo dura, em média, três meses nas fazendas. 408 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas capitalista significa criar as condições de reprodução ampliada do capital a partir de relações não-capitalistas de produção. É nesse plano que tem lugar o reaparecimento da escravidão ou a recriação de formas não-contratuais de emprego da força de trabalho. (MARTINS, 2002, p.154- 155). Amin vê processo similar ao descrito por Martins. No setor agropecuário do continente africano a depreciação da força de trabalho também atua com o objetivo de aumentar a competitividade. O problema não é restrito à expansão do capital no Brasil, mas ocorre de forma global, como havia alertado Luxemburg (1984), em todas as regiões de franja do sistema. Este tipo de dominação do capital sobre a agricultura não é especialmente adiantado, embora seja altamente rentável já que, apesar dos fracos níveis de produtividade que mantêm, as remunerações pelo trabalho são tão baixas que os preços permanecem competitivos. Aí está o segredo do atraso da “revolução verde” na África tropical. Esta rentabilidade é obtida ao preço da pilhagem do solo, do desflorestamento, de formações de desertos, da laterização que um dia a seca revela. A rentabilidade é obtida, também, ao preço de uma remuneração inferior ao valor da força de trabalho, que acaba sendo inutilizada – como demonstram o alto índice de mortalidade, a desnutrição e a fome, devidas ao retrocesso das produções agrícolas, êxodo rural etc. (AMIN, 1977, p. 38). A função da acumulação originária é recriada nesses ambientes e situações para contribuir com o processo de reprodução ampliada. Ela deixa de ser apenas o capital inicial necessário ao desenvolvimento do processo de reprodução e torna-se um elemento concomitante a ele. A essa pilhagem como elemento do capitalismo, Martins dá o nome de reprodução ampliada anômala do capital (MARTINS, 2002, p. 155). Como analisa Vergopoulos: A acumulação primitiva é (...) a “referência às exterioridades” de toda espécie. Não é uma lógica interna à reprodução que se encarrega disso, mas sim uma lógica externa às “leis” econômicas, isto é, a lógica que assegura condições prévias externas da reprodução. Se nos abstrairmos enfim, ainda que por um instante, dos processos extra-econômicos, o sistema atual do capital não deveria funcionar: desmoronaria (...). A acumulação primitiva não pertence apenas à pré-história, ou à história do capitalismo, mas é também um pressuposto indispensável à recondução cotidiana atual do sistema. Isto é ainda mais válido para o que diz respeito à reprodução ampliada do sistema, até mesmo seu crescimento (VERGOPOULOS, apud AMIN, 1977, p. 46). 409 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Há condições sociais “externas” ao modo de produção que facilitam a disponibilização de mão-de-obra para essa acumulação primitiva constante. Em verdade, elas são consequências do próprio sistema, como o crescimento do exército de reserva de mão-de-obra devido à progressiva redução da participação da parte variável na composição do capital, simultâneo ao aumento populacional. Ou o processo de grilagem e expulsão de posseiros e de outras populações tradicionais de suas terras na região de fronteira agrícola amazônica – frequente durante o regime militar nas décadas de 70 e 80 e que se mantém ainda hoje – que serviram tanto para aumentar o contingente de mão-de-obra para o campo e as cidades, quanto para ampliar o capital constante dos empresários: O modus operandi do sistema é de negação-redução dos elementos que lhe são exteriores. É precisamente a exterioridade desses elementos que estimula o movimento do sistema. A negação dessa exterioridade pelo sistema não se dá no sentido da liquidação, mas no sentido de uma disputa interminável entre a redução da exterioridade e sua constituição ampliada. É preciso que a exterioridade seja real para que a redução seja verdadeira. Eis porque o capital assegura sua reprodução “exteriorizando” e “marginalizando” um número de elementos sempre crescentes. É uma condição para que o movimento de redução impulsione cada vez mais (VERGOPOULOS, apud AMIN, 1977, p. 46). Isso gera um excedente populacional alijado de meios de produção e emprego, diminuindo o valor de mercado a ser pago por um serviço. Os trabalhadores são impelidos a aceitar a oferta de serviço do gato, mesmo não recebendo garantias de que as promessas dadas no momento do recrutamento serão cumpridas. Baseado nesse contexto de fragilidade social, criado pelo próprio modo de produção, o capitalista pode utilizar mão-de-obra necessária pagando o montante que desejar, que pode tender a zero no caso do trabalho análogo ao escravo. Esse processo de acumulação capitalista baseado em formas não-capitalistas de produção opera no momento de expansão do sistema, em que este consome formas exteriores para crescer, depois as introduz no capital e continua seu avanço. Essas formas de inserção não são automáticas, mas sim um processo que varia em tempo e intensidade de acordo com o tipo do empreendimento e seu grau anterior de modernização.17 Podem ser divididos em três situações: 17 Considerando que a composição orgânica do capital tende a ficar mais alta com o tempo, Martins afirma que ela impõe um limite social ao uso de formas contratuais de força de trabalho. Dessa forma, nem todas as atividades econômicas e nem todos os momentos do processo de produção poderiam ser desempenhados dentro de relações contratuais de trabalho. Martins,2002, p.159. 410 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas a) Há atividades que, por motivos técnicos, continuam excessivamente dependentes de trabalho manual, seja porque não é possível a mecanização da atividade, seja porque a utilização de mão-de-obra demanda menor investimento inicial. Nos casos registrados de escravidão contemporânea, temos como exemplo desmatamento, limpeza de antigas áreas abandonadas, mudança de ramo de atividade econômica, entre outras situações prévias que dizem respeito à preparação de terreno para a introdução de empreendimentos agropecuários ou extrativistas. A força de trabalho é utilizada para derrubada de mata nativa, construção de cercas, plantação de pastos, produção de carvão vegetal, catação de raízes para o cultivo da soja e do algodão. Esses empreendimentos são capazes de gerar recursos já no momento de sua abertura. Um exemplo são os pecuaristas proprietários de terras na região de influência do Pólo Carajás, no Pará, que têm produzido carvão vegetal a partir do desmatamento realizado para a implantação ou ampliação de pastagem.18 O carvão é vendido para usinas siderúrgicas no Maranhão e Pará para a produção de ferro-gusa, matéria-prima do aço, exportado principalmente aos Estados Unidos, conforme demonstra pesquisa de campo. O terreno fica limpo para a plantação de pastos e os recursos obtidos da venda no mercado de carvão são usados para construir infra-estrutura ou comprar gado. Nesses casos, as duas etapas, de carvoejamento19 e de introdução da pecuária, têm sido realizados por trabalho análogo ao de escravo. É clara a participação da acumulação primitiva no processo. Há um gasto mínimo com a manutenção da mão-de-obra, superexplorada, enquanto a economia gerada pode ser utilizada para viabilizar a concorrência ou aumentar o capital constante. Nesse caso, o ganho com a produção tem 18 De acordo com a atualização da lista suja de 12 de março de 2007, 12 das 167 propriedades rurais relacionadas estavam nessa situação. 19 Vale ressaltar que boa parte desse carvão vegetal produzido é ilegal, com corte de áreas de floresta que, por lei, deveriam ser preservadas. “De acordo com estudos realizados pelo historiador Maurílio de Abreu Monteiro, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), o desmatamento não-autorizado fornece 57,5% da madeira que alimenta os fornos das carvoarias. Monteiro pesquisa a produção carvoeira desde o final da década de 80, quando as primeiras indústrias se instalaram nessa região sob a influência do projeto Grande Carajás. Ele afirma que o aumento da demanda pelo ferro-gusa e a competição entre os fornecedores de carvão favorecem a exploração do trabalho escravo nas carvoarias. Segundo o professor da UFPA, a produção de 3,5 milhões de toneladas de carvão vegetal, consumida pelo setor siderúrgico brasileiro, requer um volume de 22,2 milhões de metros cúbicos (m³) em toras de madeira. Esse valor é muito superior ao volume autorizado (9,4 milhões de m³) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a extração no Maranhão e Pará. Esses estados são produtores de carvão contam com usinas siderúrgicas abastecidas com o minério de ferro da Serra dos Carajás. Ou seja, os mais de 12 milhões restantes são fruto da exploração ilegal.” Camargo (2006, http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=622). 411 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) sido repassado a algumas usinas20 que aceitam essa mercadoria mesmo com irregularidades.21 Ao utilizar mão-de-obra escrava e desmatamento ilegal, o carvão gera ganhos ao carvoeiro e competitividade às indústrias. Há técnicas já desenvolvidas para a sua produção obedecendo a normas ambientais e trabalhistas, mas elas requerem um alto custo de implantação. O menos danoso seria a conversão da matriz energética para o carvão vegetal produzido através de silvicultura, e não de corte de mata nativa.22 A Associação das Siderúrgicas de Carajás já conta com 14 usinas e há planos de expansão, devido à procura internacional pelo produto.23 A conversão da matriz demandaria a redução do ritmo de crescimento do setor e no investimento em modernização de tecnologia, e não em ampliação da produção, o que as usinas não parecem dispostas a fazer no curto prazo. 20 A pesquisa de campo do autor constatou casos em que os preços de venda aplicados pelos empreendimentos que utilizaram trabalho escravo contemporâneo eram menores que os de mercado, mas apenas no caso da cana-de-açúcar e do carvão vegetal que não estão inseridos em mercado de commodities como os outros produtos analisados. Um exemplo é a Destilaria Gameleira, produtora de etanol, flagrada pela equipe de fiscalização do governo federal empregando esse tipo de mão-de-obra em sua lavoura de cana-de-açúcar no município de Confresa, Nordeste do Estado do Mato Grosso. Em entrevista ao autor, um diretor (cujo nome foi resguardado) de uma importante distribuidora nacional de combustíveis identificada na rede de comercialização da usina, o preço cobrado pela destilaria era vantajoso se comparado ao de seus concorrentes. Situações semelhantes ocorrem com a comercialização do carvão vegetal obtido através do trabalho análogo ao escravo e do desrespeito à legislação ambiental em carvoarias no Maranhão e Pará. No início de 2007, cerca de 300 carvoarias estavam descredenciadas pela Associação das Siderúrgicas dos Carajás (Asica) devido à utilização de mão-de-obra análoga à escrava. De acordo com o diretor do Instituto Carvão Cidadão, braço social da Asica, André Câncio, carvoarias descredenciadas estavam revendendo o material para outras terceiros credenciados que juntavam a ele sua própria produção e revendiam as siderúrgicas. Isso, é claro, mostra que o carvão estava sendo comercializado pelas carvoarias descredenciadas a um valor menor ainda que o preço já abaixo de mercado que costumavam cobrar – o que significa mais exploração do trabalhador e do meio ambiente. 21 Em 2004, foi fundado o Instituto Carvão Cidadão, ligado à Associação das Siderúrgicas dos Carajás (Asica), com o objetivo de desenvolver práticas de responsabilidade social na área trabalhista. As indústrias localizadas no Maranhão, devido à sua antiguidade, estão à frente das similares no lado paraense. Estas, de acordo com os relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, têm mais carvoarias irregulares como fornecedores. Vale ressaltar que o Pará Oriental ainda possui uma grande quantidade de mata nativa a ser derrubada, enquanto o Maranhão não. A situação das usinas pode ser lida nos relatórios do Instituto Carvão Cidadão no site www.carvaociadadao.org.br 22 De acordo com Maurílio Monteiro: “O preço do gusa é regulado pelo preço da sucata nos EUA. A oscilação é grande e desaconselha-se o investimento a longo prazo, como é o caso da silvicultura. O melhor é mudar a base energética, substituindo o carvão vegetal por gás natural. A tecnologia já é usada, é mais eficiente e mais barata. Ou melhor, o carvão hoje é mais barato porque existe transferência dos recursos, mas se fosse feito como deveria ser, com silvicultura e tudo regulamentado, os gastos com gás natural seriam menores. Se hoje o carvão é mais barato para as siderúrgicas, para a sociedade fica mais caro porque está destruindo parcelas da floresta. Essa opção não tem contribuído para desenvolver de forma economicamente sustentável a região. Os empresários deveriam tomar essa atitude e discutir alternativas para as fontes de energia.” (Camargo, 2006, http://reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=622). 23 Segundo a Asica, as suas 14 empresas associadas respondem atualmente por mais de 60% da exportação brasileira de ferro-gusa, correspondente a cerca de 3,6 milhões de toneladas anuais, e a US$ 2 bilhões em divisas. 412 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas b) Outra situação é encontrada em empreendimentos já implantados, mas que estão expandindo sua área, como as propriedades rurais em funcionamento e que crescem em superfície cultivável a partir da derrubada de mata nativa, limpeza de antigas áreas abandonadas, mudanças de ramo de atividade econômica, entre outros contextos. Nesse caso, o trabalho escravo contemporâneo adota a função de ser o motor de expansão em empreendimentos consolidados. Empregadores utilizam tecnologia de ponta em uma área da produção, enquanto depreciam a mão-de-obra em outra. O grupo móvel de fiscalização do governo federal encontrou 54 trabalhadores em condições análogas à de escravo na fazenda Peruano, em Eldorado dos Carajás, Sudeste do Pará, em dezembro de 2001. Eles trabalhavam em atividades de ampliação da infra-estrutura e do pasto dessa fazenda que produz gado e é considerada modelo no desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial e comercialização de embriões. O proprietário é um dos maiores criadores da raça nelore do estado.24 Esse não é o único caso: a pesquisa de campo traz diversos exemplos de fazendas de soja e algodão, que utilizam tecnologia de ponta na parte da produção de grãos e fibras, enquanto a preparação de solo e ampliação de área é feita de forma arcaica, com baixo investimento. Em operação de fiscalização iniciada no dia 20 de novembro [de 2003], foram libertados 22 trabalhadores que estavam em situação de escravidão na fazenda Entre Rios, de arroz e soja, a 125 quilômetros do município de Sinop, Norte do Estado de Mato Grosso. A ação foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. Algumas pessoas não eram pagas há meses, recebendo apenas comida e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam famílias inteiras em redes. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa. Inicialmente, 40 pessoas haviam sido contratadas para a empreitada. Mas como não suportavam as duras condições impostas, muitos fugiram antes de a fiscalização chegar. O proprietário, Manoel Barbosa Lopes Júnior, do grupo Rota-Oeste Veículos, representante da empresa Scania, durante a operação de fiscalização tentou convencer os peões a voltarem para a Entre Rios, afirmando que precisava dessa mão-de-obra para o serviço. Porém, apesar das alternativas oferecidas de contratação por ele, os trabalhadores negaram-se a retornar. Teriam medo de Clóvis, gerente da fazenda, de seu comportamento violento 24 O autor participou dessa ação de libertação, em dezembro de 2001, em Marabá (PA). 413 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) e das constantes ameaças de espancamento. Segundo os auditores do Ministério do Trabalho e Emprego, os trabalhadores também eram constantemente ameaçados pelos dois “gatos” da fazenda que, assim como o gerente, andavam armados. De acordo com Valderez Monte, auditora fiscal e coordenadora da operação, os trabalhadores sempre ouviam dizer do gerente que “maranhense tem que apanhar mesmo de facão”. Depois que motosserras tombam a floresta na região, levas de trabalhadores percorrem a área desmatada para arrancar tocos de árvores e raízes, limpando o terreno para receber a soja ou o arroz. Na Entre Rios, uma grávida de quatro meses foi encontrada nessa tarefa. A maior parte dos libertados são do Maranhão, trazidos de lá por Chiquinho, o “gato” preso na ação (SAKAMOTO, 2003, http:// reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=208). Dois modos de produção atuam de forma complementar e simultânea. O modo arcaico serve ao moderno para garantir uma expansão do capital (terras e benfeitorias). Mas sem que seja necessário capitalizar grandes montantes de mais-valia provenientes da parte moderna, garantindo que ela mantenha sua competitividade no mercado enquanto cresce. Essa expansão poderia ocorrer dentro da reprodução ampliada, mas devido às condições descritas anteriormente, o proprietário rural toma uma decisão racional e opta por esse caminho, mantendo uma área com alta produtividade, e outra com baixa. Em outras palavras, após depreciar o seu capital variável, superexplorando a massa de trabalhadores sazonais ou não-especializados e considerando que o capitalista possui uma determinada etapa da produção operando de forma atrasada25, enquanto a outra se mantém sob relações capitalistas, pode-se utilizar essa economia para ganhar capacidade de concorrência (garantindo que o preço da mercadoria esteja nos patamares de mercado) e reinvestir a mais-valia obtida no processo. Com isso, o produtor pode aumentar seu capital constante e mesmo sua força de trabalho para manter-se competitivo ou acumular recursos para investir e operar de forma plenamente capitalista. c) O mesmo vale para empreendimentos em situação de transição cristalizada, ou seja, cujo processo de modernização é muito lento ou estagnou-se. Podem ser incluídos o plantio e a colheita de lavouras como café, cana-de-açúcar, pimenta-do-reino, frutas, arroz, tomate ou atividades de extração vegetal. 25 A utilização do corte manual da cana-de-açúcar ao invés de colheitadeiras enquanto o restante do empreendimento funciona com tecnologia de ponta, como na produção de açúcar, álcool e energia elétrica, é um dos exemplos mais recorrentes. 414 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Encontra-se trabalho escravo contemporâneo não apenas em atividades em área de expansão agropecuária, mas também em empreendimentos cuja modernização foi incompleta26, em comparação com o restante do setor. Em outras palavras, o desenvolvimento capitalista de uma propriedade rural pode ter se estagnado e, sem aumento da produtividade do trabalho, ela deprecia o capital variável para continuar operando de forma viável. Nas regiões de fronteira agrícola encontra-se a maior incidência de trabalho escravo, mas esse tipo de exploração não está restrito à Amazônia ou ao Cerrado. A ideia de fronteira não é apenas geográfica, da mesma forma que não o são os conceitos de centro e periferia. Eles referem-se também ao grau de implantação ou de consolidação do sistema e das relações hegemônicas que se estabelecem entre diferentes níveis. Vale lembrar que o capital não se desenvolve de forma universal, mas em “ilhas”27, de acordo com as singularidades de cada região ou momento histórico. Por isso, não é de se estranhar que empreendimentos com modernização incompleta utilizem mão-de-obra análoga à de escravo, como nas lavouras de cana-de-açúcar em Campos dos Goytacazes28, Estado do Rio de Janeiro, ou em fazendas de extração de resina, no interior de São Paulo.29 Esses dois momentos se chocam ou se completam devido à sua proximidade física. Durante uma ação de fiscalização em uma fazenda do Mato Grosso, os auditores fiscais do trabalho presenciaram aviões pulverizarem o campo com agrotóxicos enquanto os catadores de raízes ainda estavam na área, deixando-os cobertos de veneno.30 Em empreendimentos pecuaristas, os vaqueiros recebem do proprietário da fazenda e do gerente ou preposto tratamento melhor que os peões, muitas 26 Velho afirma que: “Um dos aspectos principais de uma ‘transição’ ao capitalismo é a chamada acumulação primitiva. Historicamente a sua principal fonte tem sido o campo e as áreas sujeitas a um ‘colonialismo interno’. Para os países que não têm possibilidades propriamente colonialistas são essas fontes praticamente as únicas. Se a ‘transição’ tende a cristalizar-se, então deveríamos esperar que o mesmo aconteça com a acumulação primitiva. Aparentemente, esse foi o caso no Brasil e (...) o campesinato e a fronteira parecem estar ganhando um papel novo e crescente nesse processo contínuo de acumulação primitiva.” (VELHO,1979, p.173). 27 “No Brasil, a fronteira não é uma linha ou um limite, ou um avanço da civilização, ou um processo unilateral ou unilinear. Devemos na verdade falar não de uma fronteira, mas de experiências, transações e mutações de fronteira múltiplas e complexas (...) A ocupação ocorreu e ainda ocorre em um padrão de arquipélago.” (MORSE, 1967 apud VELHO 1979, p. 114). 28 Duas usinas do município entraram na lista suja devido a trabalho escravo contemporâneo encontrado em suas lavouras de cana-de-açúcar: a Companhia Açucareira Usina Barcelo (com 35 trabalhadores libertados) e a Companhia Açucareira Usina Cupin (com 73). 29 A Rezil Comércio e Exportação Ltda., em Iaras (SP), entrou na “lista suja” devido a 76 trabalhadores encontrados em condições análogas à de escravo na extração de resina de pinus em sua propriedade Estação Experimental de Águas de Santa Bárbara. 30 Entrevista com Marinalva Dantas, coordenadora de grupo móvel de fiscalização. 415 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) vezes com contratos de trabalho. Isso se deve ao fato de serem profissionais especializados e depositários de confiança por parte do proprietário (uma vez que deles depende o investimento do capital). Em diversas ocasiões, o grupo móvel de fiscalização encontrou vaqueiros atuando na vigilância dos trabalhadores recrutados para o trato do pasto, evitando que fugissem até o fim do serviço. A utilização de formas extremas de exploração da força de trabalho, em que os custos com a manutenção da mão-de-obra são insuficientes para a reprodução social ou biológica do indivíduo, é restrita a uma parcela pequena da população economicamente ativa.31 Como exposto anteriormente, a incidência de trabalho análogo ao escravo tem sido pequena comparada com o universo de trabalhadores rurais. Com isso, ele não é capaz, diretamente, de reduzir os preços de produtos em nível nacional e internacional, mas sim os custos individuais de capitalistas, quando estes vendem commodities, ou seja, mercadorias com um padrão e preço comum.32 Porém, por ser um instrumento de redução individual de custos, ele contribui com a viabilização da implantação de novos empreendimentos e, portanto, facilitando a expansão agropecuária sobre áreas não inseridas no modo de produção. Mais áreas de produção significam aumento da oferta de mercadorias. Retoma-se Luxemburg (1984) para afirmar que trabalho escravo tende a continuar existindo enquanto houver áreas ou situações de inserção no sistema. A acumulação primitiva, adotada como instrumento de capitalização, foi usada em larga escala na Amazônia para a implantação de fazendas durante o período da ditadura militar, como afirma Ianni.33 E não foi devido a uma suposta ausência estatal que essa forma a exploração teve condições de se desenvolver,34 pelo contrário, é a ação direta de um Estado cúmplice ou conivente que permite e incentiva esse laissez-faire no campo. 31 E nem poderia ser diferente, caso contrário colocaria em risco o próprio sistema, dependente da acumulação de capital através da força de trabalho, e da realização da mais-valia pelos trabalhadores. 32 O aço e o ferro-gusa são commodities. O carvão vegetal não. 33 Ianni, ao analisar a expansão capitalista sobre Amazônia na ditadura militar, afirma: “Está em curso o desenvolvimento das relações capitalistas de produção no campo, juntamente com a acumulação primitiva, como processo estrutural. Enquanto isso, expandem-se as propriedades e os negócios de grileitos, latifundiários e empresários nacionais e estrangeiros. A Amazônia é reintegrada no subsistema econômico brasileiro, amplamente determinado pelo imperialismo.” (IANNI,1986, p. 248). 34 “Pessoas e instituições envolvidas nessas providências humanitárias, urgente e necessárias, atuam geralmente na suposição de que a prática da escravidão nos dias de hoje resulta de um desvio de conduta em relação aos princípios que a lei e a moral estabelecem. Essa interpretação seria compreensível se o recurso ao trabalho escravo fosse apenas uma exceção ocasional no funcionamento deste ou daquele estabelecimento agrícola ou industrial. No entanto, são claras as evidências de que o revigoramento e a manutenção do trabalho escravo estão integrados na própria lógica essencial de funcionamento do sistema econômico moderno e atual”. (MARTINS, 2002, p.154). 416 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Historicamente, esses empreendimentos têm conseguido recursos por intermédio das esferas de governos35 federal, estaduais e municipais para garantir um nível de capital constante que permite a sua atuação no mercado. As placas de financiamento da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do Banco da Amazônia (BASA),36 expostas na porteira das fazendas, provam que o Estado se faz presente na fronteira agrícola para o capital, através de incentivos fiscais, isenção de impostos, taxas e subsídios e infra-estrutura para os produtores rurais, e que há uma política pública apoiando aquelas práticas. Além disso, deve-se considerar que a produção originada de empreendimentos que usam trabalho escravo contemporâneo, somada a de outros que utilizam outras formas não-contratuais de trabalho em regiões e situações de expansão agrícola, faz com que aumente a oferta geral dos produtos. E diminua o seu preço internacionalmente. Ou seja, a escravidão contemporânea é um componente de um processo maior, que traz ganhos diretos ao produtor rural e indiretos ao mercado. Há uma demanda para essa diminuição por parte da indústria e do comércio, que operam para forçar os preços para baixo. Uma dessas pressões é realizada, por exemplo, pela rede Wal-Mart – maior empregador do setor privado e o maior detentor de mercado no varejo dos Estados Unidos. A rede também opera no Brasil e, junto com outras grandes redes, como Carrefour e Pão de Açúcar, foi identificada no passado como pertencente à cadeia de comercialização de fazendas que utilizaram mão-de-obra análoga à de escravo.37 Independentemente de quem ganhe, o prejuízo será sempre do trabalhador. Escravos contemporâneos e trabalhadores assalariados, elementos antigos e novos, convivem dentro do capitalismo de forma complementar e para o bem deste. Marx afirmava que o “morto apodera-se do vivo”. Com 35 Há também financiamento da produção pelo próprio mercado, ou seja, por atores financeiros e produtivos do capital nacional e internacional. Isso extrapola o tema deste artigo, mas é importante essa observação uma vez que, nesses casos, a expansão agrava, através do endividamento, a dependência do produtor ao capital. 36 Os proprietários rurais que são relacionados no cadastro de empregadores que utilizaram mão-de-obra escrava, a “lista suja”, não têm acesso a novos créditos e financiamentos públicos do Banco do Brasil, Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Banco da Amazônia (BASA), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de acordo com a portaria nº 1150, de 18 de novembro de 2003 do Ministério da Integração Nacional (que vedou o acesso aos fundos constitucionais de financiamento), do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, assinado por parte dessas instituições e por outras orientações do governo federal. Porém, os empreendimentos que foram encontrados com irregularidades mas ainda estão fora dessa relação, obtém o crédito. 37 “Sua estratégia de preços baixos, que se tornou dominante a ponto de forçar outras lojas a seguirem seu exemplo mesmo que não concorram diretamente com ele, desempenha papel fundamental em manter baixa a inflação do país; a pressão incansável por preços cada vez mais baixos que o grupo [Wal-Mart] exerce sobre seus fornecedores se tornou um dos principais propulsores para a exportação de empregos industriais dos EUA a China ou a outros locais.” (MEYER, 2006, p. 7). O original foi publicado na New Statesman. 417 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) base em mais de um século de experiência capitalista, com a manutenção de antigas práticas dentro do sistema, constata-se que não são apenas as velhas formas que se inserem nas novas, mas as novas recorrem às velhas. Se é verdadeiro que o “morto apodera-se do vivo”, o inverso também é verdadeiro, ou seja, “o vivo também se apodera do morto” (VERGOPOULOS, apud AMIN, 1977, p. 47). Conclusão Ao longo deste artigo, procurou-se demonstrar como a utilização de formas não-contratuais de mão-de-obra, especialmente de trabalho escravo contemporâneo, não é resquício de modos de produção pré-capitalistas que sobreviveram provisòriamente à introdução do capitalismo, mas sim um instrumento utilizado pelo próprio modo de produção para facilitar a acumulação em seu processo de expansão. Esse mecanismo garante competitividade aos produtores rurais de regiões e situações de expansão agrícola, o que contribui para o aumento da oferta de mercadorias e, portanto, a redução de sua cotação no mercado internacional – favorecendo comércio e indústria. Considerando que a produtividade do trabalho é alta e tende a aumentar constantemente, elevando a composição orgânica do capital e, consequentemente, a mais-valia relativa, as propriedades rurais mais atrasadas do ponto de vista tecnológico tendem a compensar essa diferença através da redução da participação do capital variável no capital total, emulando uma taxa alta de composição orgânica. Outras se aproveitam dessa alternativa não para gerar capacidade de concorrência, mas para capitalizar-se durante um período de tempo ou aumentar sua margem de lucro. Não é um desvio, portanto, e sim mais uma aparente contradição do capital que utiliza formas que parecem negar a sua própria natureza, ignorando assalariamento e o contrato social estabelecido entre tomadores e vendedores de força de trabalho. Essa aparente contradição não afeta o sistema devido à forma de sua incidência. É fundamental entender que há uma gradação da exploração do trabalhador. A escravidão contemporânea, a faceta mais degradante dessa exploração, é utilizada por uma pequena parcela de produtores, enquanto a incidência quantitativa de outras formas não-contratuais cresce à medida que se aproximam das características das formas contratuais de trabalho. É claro que se a agricultura brasileira fosse baseada em mão-de-obra cativa haveria sérias consequências para o próprio sistema, pois não haveria classe 418 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas trabalhadora para a realização da mais-valia das mercadorias, impossibilitando a acumulação. Por isso o trabalho escravo se enquadra como um mecanismo possível, que beneficia e não prejudica o sistema. Não se superexplora o trabalhador apenas por um desvio de conduta do capitalista, pois, se assim fosse, teríamos que considerar que a sua conduta ideal do empresário é a de constante valorização do trabalhador, quando, em verdade, ela atua na retenção do valor cada vez maior produzido por este sem a justa remuneração. A superexploração e o trabalho escravo estão vinculados a um cálculo racional realizado pelo empregador, buscando uma lógica da acumulação. O aparato repressivo que atua no combate à impunidade decorrente da utilização desse tipo de mão-de-obra e mesmo de outras formas não-contratuais de trabalho funciona, dessa forma, de maneira localizada e pontual, mas nunca sistemicamente. Por mais que haja uma parte do Estado deslocada para essa função, será maior ainda a pressão interna e externa pelo aumento da produtividade, forçando fazendeiros, mesmo aqueles não-capitalizados, a acompanhar o setor e sua taxa de lucro média caso queiram continuar existindo. No vetor resultante entre, de um lado, a expansão a qualquer custo da produção agropecuária e, de outro, o processo de regularização do trabalho, tem prevalecido o sentido da primeira força. Erradicar o trabalho escravo contemporâneo passa por uma mudança estrutural. Dado o nível de domínio do capital sobre a sociedade e a falta de perspectivas de uma alteração no panorama em um horizonte visível de eventos, é necessário adotar uma postura pragmática. Há a possibilidade de atenuar o problema, diminuindo a incidência de trabalho escravo e mesmo de formas não-contratuais de trabalho, através de alterações no modo de produção e na sua forma de expansão. Não é o objetivo deste artigo analisar as políticas de erradicação do trabalho escravo, mas para ter sucesso elas precisam atingir de forma inequívoca a base econômica dessa estrutura. A distribuição de terra não é a panacéia para o problema da exploração do trabalho no país. Mas ela representa a mais importante mudança nessa estrutura e no modelo de expansão do modo de produção no campo brasileiro. A socialização, pelo menos parcial, dos meios de produção no campo significaria um pesado golpe no capital que, direta ou indiretamente, se aproveita do exército reserva de mão-de-obra disponível para superexplorá-las. Uma reforma agrária não representaria o fim da transformação de seres humanos em instrumentos descartáveis de trabalho. Mas seria um sinal de que não precisaríamos esperar que a expansão do capital absorvesse todas 419 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) as realidades externas a ele, fechando por fim a última fronteira agrícola do planeta e levando a um colapso do sistema. O processo histórico tem seu curso, mas a classe trabalhadora pode intervir nessa marcha aparentemente inexorável, libertando-se do capital e produzindo seu próprio destino. Referências AMIN, Samir; VERGOPOULOS, Kostas. A questão agrária e o capitalismo. 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Toma-se aqui a análise, a partir da totalidade social de um momento histórico do capitalismo, configurado num contexto de “crise do capital em crise”3, no qual se objetiva retomar as taxas de lucros do pós-guerra, pela via do projeto neoliberal, trazendo como alternativa a reestruturação produtiva, a financeirização do capital e a contra-reforma do Estado, por meio de reformas liberalizantes, orientadas para o mercado. 1 Este trabalho refere-se à minha Dissertação de Mestrado, intitulada: O fetiche da ‘Responsabilidade Social’: a falácia de uma ‘nova consciência’, defendida em março de 2008, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/ESS/UFRJ). 2 O termo “unidade de produção” é o utilizado pelo banco de dados do grupo de pesquisa (GPTEC - Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo) do qual fiz parte, para a identificação destes empreendimentos que utilizam o trabalho “escravo”, pois nem sempre são fazendas, podem ser carvoarias, usinas, etc. 3 Mészáros (2009) identifica, de “crise do capital em crise”, o atual contexto com a eclosão da “bolha” financeira nos EUA, em setembro de 2008, com a quebra da Lehman Brothers. É importante entendermos essa nomeação que o filósofo húngaro concede a situação atual da ordem burguesa, devido ao já existente contexto de crise hegemônica do capital - deflagrada no início dos anos 1970. E afirma que “(...) essa grave crise é estrutural precisamente porque não pode ser superada nem com os muitos trilhões das operações de resgate dos Estados capitalistas. Ao contrário, aprofunda-se de maneira combinada ao fracasso comprovado de medidas paliativas sob a forma de aventureirismo militar em escala inimaginável e faz com que o perigo de autodestruição da humanidade seja ainda maior do que antes. Perigo esse que se multiplica conforme as formas e instrumentos tradicionais de controle à disposição do status quo fracassam em sua missão”. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) 1 Trabalho escravo por dívida O processo de pesquisa realizado sobre o “Trabalho escravo por dívida” nos permitiu uma breve análise da temática a partir dos fundamentos da crítica da economia política. Permitindo-nos entender que, a base do atraso da sociedade brasileira é a propriedade territorial capitalista, pois conforme Martins (1994), a propriedade fundiária capitalista é responsável pela paralisação das transformações históricas no presente, o que permite reconhecer estruturas sociais do passado na atualidade, havendo uma articulação do progresso, em que o novo seja um desdobramento do velho. Pretendemos aqui demonstrar, ainda que brevemente, o “trabalho escravo”, enfocando a convivência do “moderno” com o “arcaico” no agronegócio, onde é o “palco” de tal retrocesso nas relações trabalhistas, conforme Iamamoto (2001). 4 As desigualdades que presidem o processo de desenvolvimento do país têm sido uma de suas particularidades históricas. O ‘moderno’ se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando nossa herança histórica patrimonialista ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo tempo, transformando-as no contexto de mundialização do capital sob a hegemonia financeira. (...) A atual inserção do país de uma economia dita ‘emergente’ em um mercado mundializado, carrega a história de sua formação social, imprimindo um caráter peculiar à organização da produção, às relações entre o Estado e a sociedade, atingindo a formação do universo político-cultural das classes, grupos e indivíduos sociais. (IAMAMOTO, 2001, p. 101-102). Podemos considerar o “trabalho escravo por dívida” como o “arcaico”, que convive com a alta tecnologia, “moderno”, inscrito ou não5 sob os parâmetros da reestruturação produtiva na agropecuária, dentro da sociedade do capital, que pressupõe a existência do trabalho “livre” para seu desenvolvimento e acumulação. Entende-se que o capital tanto elimina relações sociais e produtivas que impeçam sua reprodução ampliada, quanto incorpora a ela aquelas persistentes relações que ainda não possam ser substituídas, recriando-as em seu processo de reprodução. (MARTINS, 1994, p.6). 4 Pesquisa realizada no período da graduação em Serviço Social para o Trabalho de Conclusão de Curso, sob o título O trabalho sob a ótica burguesa: do trabalho escravo a reestruturação produtiva, 2005. 5 É importante ressaltar que não são todos os setores produtivos que sofreram as modificações da reestruturação produtiva, como a siderurgia, a prospecção e refino de petróleo, cimenteiras, construção civil, aqueles que não podem expandir territorialmente o processo produtivo. 428 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas No processo da formação da sociedade brasileira houve, desde seu tempo colonial, uma extrema concentração fundiária, que expropriou um enorme contingente de pessoas, tornando-as trabalhadoras assalariadas, ou peões6. Esses peões, consequentemente, integram o “exército de reserva” (MARX, 1984), algo inerente e necessário à acumulação capitalista. Essa condição obriga os peões a aceitarem qualquer proposta de emprego para sustentarem suas famílias, pois as alternativas que surgem, para essa população, são empregos temporários de baixíssimos salários onde facilmente ocorre a superexploração. A partir da década de 1990, a reestruturação produtiva desencadeou uma redução dos níveis de emprego, com a inovação tecnológica, e a desregulamentação das relações de trabalho, promovendo a precarização do trabalho e a superexploração, que se exacerba no cenário em que o trabalho escravo se repõe. Essa realidade, necessária a este momento histórico da acumulação do capital, prejudicou ainda mais as condições de sobrevivência desses peões. Marx (1984, p. 203) refere-se ao sobretrabalho dos trabalhadores empregados, que aumenta “as fileiras de sua reserva”, ao mesmo tempo em que, essa última, obriga à primeira “ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital”. Situação semelhante ocorre no sul do Pará: esses peões, que são conhecidos também como peões de trecho 7 saem de seus locais de origem, onde há uma extrema abundância de força de trabalho e escassez de emprego, à procura de ocupação para sustentar a si e suas famílias, percorrendo o Norte do país. Conferimos que para o desenvolvimento do processo produtivo, o sistema do capital necessita alcançar a propriedade da terra, expressa através da renda fundiária capitalista, para expandir o mercado interno, a partir da expropriação dos camponeses, transformando-os em trabalhadores “livres” de seus meios de produção e “livres” para vender sua força de trabalho ou morrer de fome. 6 Rezende Figueira (2004, p. 18) identifica o peão, como “trabalhador rural em atividade braçal, levado para empreendimentos agropecuários na Amazônia, onde deve executar trabalhos pesados, de baixa qualificação profissional, em geral sob coerção. O termo é também utilizado para identificar as pessoas em atividades de desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas, aliciadas pelo fazendeiro, empreiteiro ou por um seu preposto”. 7 Trabalhador fora de seu lugar de origem, desligado das antigas relações familiares sem construir novas, trabalha sucessivamente em fazendas atrelado a um ou diversos empreiteiros. Entre uma empreita e outra cria débitos em pensões e cabarés, mantendo-se preso à rede de endividamento e ao trabalho coercitivo. Em geral é analfabeto, sem qualificação profissional e tem problemas de alcoolismo. É também chamado de peão rodado. (REZENDE FIGUEIRA, 2004, p. 18). 429 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Com a reestruturação produtiva, os trabalhadores passaram a se submeter com mais intensidade a qualquer ditame do capital para manter seu emprego, assim intensificando sua produtividade, tornando-se multifuncionais e polivalentes, aceitando qualquer proposta, que consequentemente gera um aumento do “exército de reserva”. Podemos identificar atualmente que o agronegócio8 adquiriu extrema importância político-econômica no favorecimento do superávit primário nacional, e é onde se encontra a maior incidência do “trabalho escravo por dívida”. Assim, os trabalhadores são convocados sazonalmente, nesse regime de “escravidão por dívida”, principalmente no corte da cana-de-açúcar, na colheita de café e da semente de capim para a formação ou manutenção de pastos. O uso desse tipo de “trabalho escravo por dívida” em setores primordialmente agropecuários9, voltados para o mercado interno e para a exportação, fez-nos entender que mecanismos da acumulação primitiva podem estender-se pelo interior do processo da reprodução do capital, na atualidade, permitindo a convivência do chamado trabalho “livre” com o “trabalho escravo”. Diante desse processo, entendemos que o “trabalho escravo por dívida” é um elemento funcional ao processo de acumulação capitalista, uma vez que a ordem burguesa não é só compatível com o trabalho “livre”, pois em diversas situações prefere o uso de uma força de trabalho não livre. Porém, é importante reconhecer que o “trabalho escravo por dívida” apresenta-se de modo diferente em relação ao modelo escravista clássico, pois esse estava no centro da economia, era legalizado e justificado ideologicamente. Esse tipo de “trabalho escravo contemporâneo” se for eliminado não inviabilizará o modo de produção capitalista. Nessas regiões onde o capital combina elementos “arcaicos” e ”modernos” em seu processo de reprodução, percebe-se que as circunstâncias regionais, sociais, políticas, históricas e culturais favoreceram tal ambiguidade10. 8 Trinta anos depois do início do PROÁLCOOL, o Brasil vive agora uma nova expansão dos canaviais com o objetivo de oferecer, em grande escala, o combustível alternativo. O plantio avança além das áreas tradicionais, do interior paulista e do Nordeste, e espalha-se pelos cerrados. A nova escalada não é um movimento comandado pelo governo, como a ocorrida no final da década de 70, quando o Brasil encontrou no álcool a solução para enfrentar o aumento abrupto dos preços do petróleo que importava. A corrida para ampliar unidades e construir novas usinas é movida por decisões da iniciativa privada, convicta de que o álcool terá, a partir de agora, um papel cada vez mais importante como combustível, no Brasil e no mundo. 9 Este tipo de trabalho é utilizado também nos setores de serviços, como o caso da Telemar (Campos/RJ) e de bolivianos “escravizados” por confecções terceiras da C&A (São Paulo). 10 Porisso constata-se a maior incidência de “trabalho escravo” no Sul do Pará. 430 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas O trabalho sob a ótica burguesa e os rumos que toma o modo da produção capitalista para manter sua acumulação, a partir da análise do uso do “trabalho escravo por dívida” e da inovação tecnológica, presente tanto nas indústrias quanto na agropecuária – permite-nos entender que esse processo, a combinação de elementos “arcaicos” e “modernos”, é algo inerente à ordem burguesa. 1.1 A (ir)responsabilidade social das empresas É notório perceber que estamos inseridos num momento histórico de reversão conservadora – a refuncionalização da servidão, otimizada mediante a precarização das relações de trabalho, imposta pela reestruturação do capital -, em que a égide neoliberal propõe uma redefinição do papel do Estado. Uma contra-reforma do Estado, que transfere para o setor privado atividades que possam ser controladas pelo mercado, como exemplo, as empresas estatais e as políticas sociais comercializáveis; outra forma é a descentralização para o setor público não-estatal, de serviços que não envolvem o exercício do poder do Estado, mas devem ser subsidiados por ele. Trata-se da produção de serviços competitivos ou não exclusivos do Estado, estabelecendo-se parcerias com a sociedade civil para o financiamento e controle social de sua execução (BEHRING, 2003). O Estado reduz a prestação direta de serviços sociais, mantendo-se como regulador e provedor, consiste na passagem de um suposto “setor” rígido, burocrático e ineficiente para um “setor” flexível, de administração gerencial e eficiente - o “Terceiro Setor”, como afirmam os neoliberais: A “reforma” do Estado, tal como está sendo conduzida, é a versão brasileira de uma estratégia de inserção passiva (FIORI, 200, p. 37 apud Behring, 2003) e a qualquer custo na dinâmica internacional e representa uma escolha político-econômica, não um caminho natural diante dos imperativos econômicos. Uma escolha, bem ao estilo de condução das classes dominantes brasileiras ao longo da história, mas com diferenças significativas: esta opção implicou, por exemplo, uma forte destruição dos avanços, mesmo que limitados, sobretudo se vistos pela ótica do trabalho, dos processos de modernização conservadora que marcaram a história do Brasil, (...). O que a meu ver, não permite caracterizar o processo em curso como modernização conservadora, mas como uma contra-reforma, que mantém a condução conservadora e moderniza apenas pela ponta - a exemplo a telefonia. Esse último aspecto demarca uma perda total de sentido 431 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) de nacionalidade e um componente destrutivo não visto nos saltos para a frente promovidos em períodos anteriores (BEHRING, 2003, p. 197-198). A partir dessa refuncionalização do Estado (essa contra-reforma), constatamos a legitimação e regulamentação do “Terceiro Setor” para a execução de políticas públicas sociais, por meio de uma parceria entre Estado, Organizações Não Governamentais - ONG’S e entidades filantrópicas para a implementação das políticas, que se combina com o serviço voluntário, o qual se desprofissionaliza e despolitiza a intervenção nessas áreas, remetendo-as ao mundo da solidariedade mútua, da realização do bem-comum, por intermédio de um trabalho voluntário não-remunerado -, isso se trata de um verdadeiro retrocesso histórico em relação aos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora. Conforme Behring (2003), atualmente existe uma nova arquitetura institucional, na qual o cidadão de direitos se torna cidadão-cliente, consumidor de serviços de organizações, cujo comportamento se pauta por uma perspectiva empresarial, com a apresentação de resultados. Diversos autores afirmam a necessidade de refuncionalizar o Estado à égide neoliberal, o qual entendemos que tem como um de seus objetivos ideológico-político: a desresponsabilização do Estado frente às sequelas da “questão social”, que promove uma refilantropização e despolitização dessa, transferindo a responsabilidade para o chamado “Terceiro Setor”, para o mercado e para a sociedade civil, via uma premissa de solidariedade e parceria. Os apologetas do capital afirmam a necessidade de privatizar e minimizar as atribuições do Estado, de forma que “os cidadãos e as organizações privadas devam assumir a responsabilidade pessoal pelo seu bem-estar e pelo futuro da sociedade” (ROCKEFELLER apud PFEIFFER, 2001, p. 49). Rockefeller considera essa uma nova forma de lidar com os “quase intratáveis” problemas sociais com que o país se defronta. Assim, para ele, diversas empresas brasileiras e estrangeiras devem atuar nos campos da cultura, saúde, educação com o objetivo de tentar resolver os problemas sociais, até então reconhecidos como de responsabilidade exclusiva do governo. E justifica que, para a construção de um país democrático e próspero, é necessário o desenvolvimento de um: mecanismo estabilizador de um sistema democrático, uma terceira maneira de expressar e satisfazer necessidades, de agir e de alcançar objetivos, sem ter que enfrentar a rigidez e as ineficiências da burocracia governamental ou de ter que esperar as reações do mercado (ROCKEFELLER apud PFEIFFER, 2001, p. 50). 432 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Destarte, declara-se a necessidade de fortalecer um “Terceiro Setor”, que assuma a responsabilidade do Estado no trato das sequelas da “questão social”, pois essa possibilidade, segundo o autor, além de ser a “base financeira indispensável à filantropia” parte também da iniciativa pessoal e do envolvimento de um número incontável de pessoas, grupos e organizações comunitárias a grandes movimentos de massa, cujos objetivos são os de reformar a sociedade e abordar questões que afetem a qualidade de vida. Refere-se, também, ao “Terceiro Setor” como a “reinvenção do Estado e do mercado, a resolução de problemas de interesse comum”, um “setor” mais “democrático, transparente e eficiente” do que o Estado tido como corrupto, burocrático e ineficiente no atendimento às expressões da “questão social”. Porém, podemos identificar a partir desse pressuposto: a despolitização da “questão social”, uma vez que essas ações desenvolvidas pelas ONG (ou “Terceiro Setor”) assumem essas demandas a partir de valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua, substituindo os valores de solidariedade social, universalidade e direito dos serviços sociais (MONTAÑO, 2002). Aqui cabe discutir o interesse dessas empresas terem o título de responsabilidade social11, e aclarar como está ocorrendo a conformação desse novo “paradigma” empresarial de “Responsabilidade Social”, que na verdade sabemos que seu objetivo é otimizar os lucros a partir desse marketing social e/ou de obter privilégios concedidos pelos órgãos governamentais (parcerias público-privado), consequente primordialmente, dessa contra-reforma do Estado configurada pelo projeto neoliberal. A falácia inicia-se com as explicações dos empresários ao afirmarem que suas ações resultam de comportamentos empresariais inspirados na doutrina da responsabilidade social da empresa, especificamente, nas premissas de que as responsabilidades da empresa devem ir além do círculo dos acionistas e das prescrições legais, e que devem orientar-se pela ética e adequar-se às demandas sociais num dado ambiente sócio-econômico, seja para garantir sua sobrevivência e rentabilidade a médio e longo prazos, ou porque essas são responsabilidades de empresas “cidadãs”, de empresas que têm direitos específicos e obrigações correspondentes, de empresas que devem se interessar por problemas comunitários e contribuir para a sua solução. 11 O objetivo aqui se trata de aclarar a funcionalidade da “responsabilidade social” empresarial em corporações envolvidas com o trabalho escravo em sua cadeia produtiva. 433 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Alguns autores como Pfeiffer (2001) sugerem que tais ações traduzem uma nova forma de filantropia empresarial - uma filantropia que não se baseia em doações sem expectativa de retorno, mas em programas que buscam colaborar concretamente para a solução de prementes problemas sociais, pelo fato das empresas considerarem que o bem-estar dos negócios depende de tal solução. Sabemos que essas são estratégias de marketing institucional das empresas, ou seja, em estratégias para preservar e/ou melhorar a sua imagem, na sociedade que vem questionando a sua utilidade social, a sua contribuição para o bem comum. E que esse novo “paradigma” empresarial é parte do projeto neoliberal, que caminha na direção de indicar a possibilidade das ações empresariais resultarem de inovação no âmbito da política social. Essa inovação consistiria no estabelecimento de novas relações entre o Governo, o “setor privado lucrativo” e o “setor privado não-lucrativo” na produção e distribuição de bens e serviços sociais. Associam ainda que essas ações empresariais são importantes na busca de soluções para o agravamento da violência nas cidades, que vem ameaçando a liberdade de ir e vir dos empresários bem como o sucesso de investimentos econômicos. Esse novo comportamento empresarial é condição básica para mantê-las no mercado globalizado, aumentando sua competitividade, que contribui no alcance de um sucesso econômico sustentável em longo prazo. Em poucas palavras, para os empresários, a “Responsabilidade Social” é o fator diferencial que ajuda a construir e a consolidar a marca. “Com certeza, as empresas, com atitudes responsáveis se tornam mais lucrativas, porque conquistam a fidelidade do consumidor e maior motivação dos colaboradores.” (GRAJEW apud PEREIRA, 2001, p.57). Por trás desse novo “paradigma empresarial”, está o que nos referimos anteriormente, a reforma neoliberal do Estado, que desresponsabiliza esse do trato das sequelas da “questão social”12, passando para o mercado as políticas que possam ser mercantilizadas e aquelas que não, são direcionadas para o “Terceiro Setor”. 12 Entende-se por “questão social”, como problemas sócio-econômicos, culturais, políticos advindos da relação de exploração do trabalho pelo capital, no momento em que a classe trabalhadora deixa de ser “classe em si” para se tornar “classe para si”, havendo embate político entre as classes antagônicas. (NETTO, 1999). 434 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas Cabe aqui ressaltar, que as formas de regulação13 do capital, típicas do Estado Keynesiano –, são incompatíveis com o momento atual do sistema capitalista. Todas as relações de reprodução da ordem capitalista, para que ela permaneça, devem, neste atual momento histórico do capital, serem livres de certas regulações14. Em outros termos, deve haver uma desregulamentação dos mercados e uma contra-reforma do Estado, que privatize e desnacionalize setores estratégicos da economia, além da retirada sistemática de direitos e garantias da classe trabalhadora promovida pela política neoliberal (que tem cumprido o papel político e ideológico desse padrão de acumulação). Na verdade o que o grande burguês e seus executivos desejam e pretendem, em face da crise contemporânea da ordem do capital, é: erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente democrática de controle do movimento do capital. O que desejam e pretendem não é ‘reduzir a intervenção do Estado’, mas encontrar as condições ótimas (hoje só possíveis com o estreitamento das instituições democráticas) para direcioná-la segundo seus particulares interesses de classe. (NETTO, 2001, p. 81). Entretanto, nessa mesma lógica neoliberal, setores progressistas15 da sociedade pressionam o sistema, incentivando e/ou criando órgãos e mecanismos reguladores/fiscalizadores do sistema produtivo em prol dos direitos humanos e da questão ambiental: nenhum desses problemas pode ser resolvido sem modalidades de controle social cuja racionalidade transcenda aquela que é inerente ao capital; esses problemas só podem ser equacionados e solucionados, sem a reiteração de vetores barbarizantes, mediante intervenções cuja estratégia supere compulsoriamente as requisições específicas da lógica de acumulação e valorização sem a qual o movimento do capital 13 O Estado Keynesiano, de caráter interventor, foi um modo de regulação do sistema, que “decorre primariamente, (...), da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor extra-econômico para assegurar seus objetivos estritamente econômicos. O eixo da idade do monopólio é direcionado para garantir os superlucros dos monopólios – e, para tanto como poder político e econômico, o Estado desempenha uma multiplicidade de funções” (NETTO, 2005, p. 25). No entanto, prevalecem alguns mecanismos de regulação necessários para a acumulação capitalista (para os ciclos do movimento de rotação do capital), mecanismos que não impedem suas crises cíclicas, mas reduzem os seus impactos. Tais como a intervenção seletiva e sistemática do Estado, que teve início na fase monopólica do capital; o protecionismo de alguns mercados, créditos a serviços dos monopólios, subsídios diretos e indiretos; planejamento e investimentos estatais diretos na garantia das altas taxas de lucro; e por sua vez, a indústria bélica. 14 Basta-nos, para se ter uma percepção profunda dos riscos que isso representa, que toda e qualquer forma de proteção ambiental (quando existem) são desrespeitadas, lembremos que o imperialismo norte-americano não é sequer signatário do tratado de Quioto (que também não representa alteração da relação destrutiva que o atual sistema metabólico tem com a natureza). 15 Muitos movimentos sociais, atualmente atrelados a Oganizações Não Governamentais - ONG e financiados por grandes corporações acreditam na possibilidade da construção de um capitalismo mais humano, o que sabemos ser inviável, ainda mais neste momento histórico de rearticulação do capital. 435 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) é impensável. Curta e grosseiramente: no marco da ordem burguesa, esses problemas tendem a cronificar-se, a receber pseudo-soluções ou soluções de altíssimo custo sócio-humano, porque “o capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis.” (NETTO, 2001, p. 46). Dessa forma, podemos analisar certas peculiaridades dessa “Responsabilidade Social” das empresas, que, muitas vezes, se caracteriza por uma contradição formal, em certos setores. Isso porque temos diversos exemplos de corporações que possuem o selo ou certificado16 de empresa socialmente responsável, mas em sua cadeia produtiva estão envolvidas com o “trabalho escravo por dívida”, trabalho infantil, entre outras irregularidades17. No entanto, essas ocorrências aparentemente contraditórias estão inseridas num contexto de nova configuração do modo de produção capitalista, modelo da “acumulação flexível” (HARVEY, 2004), no qual há uma extrema precarização das relações de trabalho e flexibilização das relações de produção, como as terceirizações. Nessas constatamos a exacerbação da exploração da força de trabalho e como as grandes indústrias, constantemente, conforme a esse novo padrão, terceirizam sua produção, frequentemente são denunciadas a exploração de formas ultrajantes de trabalho. Esses empresários diminuem os custos trabalhistas e ignoram os direitos humanos para embolsar posições nesse cenário de grande concorrência. Os intermediários da cadeia produtiva e exportadores nem sempre têm consciência desse crime. Sob o ponto de vista legal, esses intermediários, varejistas e exportadores não possuem responsabilidade pelos seus fornecedores. Além disso, esses grandes latifundiários e empresários que utilizam “trabalho escravo” possuem um grande respaldo político. Como a bancada ruralista, que no Congresso Nacional, consegue travar o andamento dos pro16 O balanço social é um demonstrativo publicado anualmente pela empresa reunindo um conjunto de informações sobre os projetos, benefícios e ações sociais dirigidas aos empregados, investidores, analistas de mercado, acionistas e à comunidade. É também um instrumento estratégico para avaliar e multiplicar o exercício da responsabilidade social corporativa. A SA8000 é uma norma que visa aprimorar o bem estar e as boas condições de trabalho bem como o desenvolvimento de um sistema de verificação que garanta a contínua conformidade com os padrões estabelecidos pela norma. A norma SA8000 apresenta-se como um sistema de auditoria similar ao ISO 9000, que atualmente é apresentado por mais de 300.000 empresas em todo o mundo. Seus requisitos são baseados nas normas internacionais de direitos humanos e nas convenções da Organização Internacional do Trabalho -OIT. 17 Existem diversas grandes corporações com “Responsabilidade Social” ou que possuem o selo ou certificado de empresa “socialmente responsável”, mas em sua cadeia produtiva ou no produto final existem algumas irregularidades como o “trabalho escravo por dívida”, o trabalho infantil, a redução salarial e dos direitos trabalhistas, a degradação ambiental, a maquiagem de produtos entre outras coisas que não condizem com a “ética e a moral dos padrões mínimos de conduta”. Tudo isso se apresenta de forma aparentemente contraditória, meramente formal, porque sabemos que o discurso da “Responsabilidade Social” é também de legitimação. 436 Olhares Sobre a Escravidão Contemporânea: novas contribuições críticas jetos de leis fundamentais, como a proposta de emenda constitucional18 que prevê o confisco das terras em que o “trabalho escravo” for encontrado. A “ilusão jurídica”19 é algo inerente à sociedade do capital, o que favorece esses inúmeros empresários na violação das leis em prol da acumulação, e por isso temos várias figuras políticas20 envolvidas com esse crime. Existem ainda diversas iniciativas ou projetos de ONG’S em parceria com órgãos supranacionais (como a OIT), que visam a erradicação do trabalho escravo, a partir de selos sociais, ou como a lista do Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo21 lançado em maio de 2005, na qual 84 empresas são signatárias22, sendo que 9 dessas estavam envolvidas com o trabalho escravo em sua cadeia produtiva. Contraditoriamente ao que se propõe essa lista, que é o comprometimento dessas grandes empresas se comprometerem com a sua cadeia produtiva. O Pacto foi construído com a inclusão de medidas como: restrições comerciais e financeiras às empresas e/ou pessoas que fizerem uso de condições de trabalho caracterizadas como escravidão; regularização das relações trabalhistas nas cadeias produtivas; apoio às ações de informação aos trabalhadores mais vulneráveis ao aliciamento; treinamento e aperfeiçoamento profissional de trabalhadores libertados; monitoramento das iniciativas adotadas e avaliação da aplicação das medidas em um ano. Porém, permanecem as denúncias sobre a violação às leis trabalhistas, formas análoga a de escravo. 18 A Proposta de Emenda Constitucional 438/2001 estabelece nova redação ao art. 243 da Constituição Federal “pena de perdimento de gleba onde for constatada a exploração de trabalho escravo, revertendo a área a projetos de reforma agrária” (REZENDE FIGUEIRA, 2004, p. 47). 19 Verifique em Mészaros (1993, p. 204-206). 20 No Rio de Janeiro, por exemplo, o presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro - ALERJ, Jorge Sayed Picciani, está em processo de julgamento porque, em junho de 2003, uma ação de um grupo móvel de fiscalização libertou 39 trabalhadores de sua fazenda, no estado do Mato Grosso. Outro exemplo foi o senador João Ribeiro (PFL-TO), condenado pela Vara do Trabalho do município de Redenção, sul do Pará, por aliciar 38 trabalhadores rurais e sujeitá-los à condição de escravos em sua fazenda, chamada Ouro Verde, localizada no município de Piçarra, no mesmo estado. 21 O Instituto Ethos, OIT e o Governo Brasileiro deram inicio ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que para os empresários distingue-se das ações governamentais por representar o esforço voluntário das empresas e demais entidades signatárias para dignificar, formalizar e modernizar as relações de trabalho em todos os segmentos econômicos no Brasil. 22 Última atualização da lista das empresas que compõe o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo foi em 26 de maio de 2006. 437 Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) Considerações finais Partimos da premissa de que essa aparente contradição do nosso objeto de estudo, ou seja, esse “título” de “responsabilidade social” com a cadeia produtiva de diversas empresas simultâneo com a superexploração da força de trabalho, seja consequente dessa nova configuração da flexibilização como um todo do processo produtivo e também é claro, decorre das particularidades do capitalismo brasileiro como esse se desenvolveu e se configurou, o que permite entendermos essa incorporação de relações sociais arcaicas23 com a inovação tecnológica. Esses capitalistas ignoram os direitos trabalhistas para embolsar posições nesse cenário de grande concorrência. É um contexto, que favorece integralmente o capital, uma intervenção estatal que financia a reprodução do capital, mas não financia a reprodução da força de trabalho – ou como afirma Netto (1999): um Estado máximo para o capital e mínimo para o social, favorecidos com a desregulamentação trabalhista e social. A contemporaneidade está revestida em contra-reformas, desregulamentações, como foi remetido anteriormente é a reversão conservadora e a regressão neoliberal que subjuga cada vez mais o trabalho ao capital. O processo dessa pesquisa nos permitiu uma análise da temática a partir dos fundamentos da crítica da economia política e do método marxista. Observamos algumas dificuldades quanto ao desvelamento do objeto de estudo, devido às densas mediações que engendram a realidade social para ultrapassar a aparência do real e apreender em sua concretude o objeto de nossa pesquisa, a partir de diversas abstrações. Assim, afirmamos que a “Responsabilidade Social” aparece como uma estratégia24 para encobrir irregularidades que são necessárias e inerentes à lógica da acumulação capitalista, com funcionalidade econômica, político-ideológica, cultural e social no atual contexto de restauração do capital. Destarte, conferimos que o capital, em sua relação de exploração, degrada o sujeito real da produção, fazendo com que o trabalhador reconheça outro sujeito acima de si mesmo. Para obter a submissão do trabalhador no processo produtivo, o capital necessita de suas personificações, com a finalidade de impor e mediar seus imperativos objetivos, a partir de sua (ir)racionalidade. 23 E podemos verificar que as relações sociais são atravessadas pelo compadrio, pelo favor e pelo clientelismo. E o que verificamos é que a assistência social vem se apresentando como espaço propício à ocorrência de práticas assistencialistas e clientelistas, servindo também ao fisiologismo e à formação de redutos eleitorais. Assim personalizam-se as relações com os subalternos, não reconhecendo o direito desses e ainda esperando a lealdade pelos serviços recebidos. 24 Na conclusão da nossa pesquisa de Mestrado identificamos a funcionalidade político-ideológica e econômica do mote “Responsabilidade Social” das empresas, em que se tenta consensualizar que é possível uma “reforma ético-moral” do capitalismo deixando intocada a sua estrutura econômica, além de amenizar o impacto social das irregularidades dessas empresas com “Responsabilidade Social”. 438 Referências BEHRING, E. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. HARVEY, D. A. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 13. Ed. São Paulo: Loyola, 2004. IAMAMOTO, M. Trabalho e indivíduo social. São Paulo: Cortez, 2001. MARTINS, J. S. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil. Tempo Social. Revista de Sociologia USP. v. 6, n. 1-2, 1994. MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril, 1984. MÉSZAROS, I. Desenvolvimentos capitalistas e “direitos do homem”. In: Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Ed. Ensaios, 1993. MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. NETTO, J. P. A construção do projeto ético-político contemporâneo. IN: Capacitação em Serviço Social e Política Social. Brasília: Cead/ABEPSS/CFESS, 1999. (Módulo 1) PEREIRA, C. F. de J. Captação de recursos. Fund raiting. Conhecendo melhor porque as pessoas contribuem. São Paulo: Mackenzie, 2001. PFEIFFER,C. Por que as empresas privadas investem em projetos sociais e urbanos no Rio de Janeiro?. Rio de Janeiro: Agora da Ilha, 2001. REZENDE FIGUEIRA, R. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Os autores Adonia Antunes Prado: professora da Faculdade de Educação e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alessandra Gomes Mendes: socióloga, mestre em Extensão Rural e Professora Assistente da Faculdade Pitágoras de Belo Horizonte/MG. Antonio Alves de Almeida: professor universitário; doutorando em História pela PUC/SP e pesquisador das questões agrárias, especialmente movimentos populares, trabalho escravo e direitos humanos no Brasil contemporâneo. Benedito Lima: auditor Fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego e mestre em Ergonomia. Boris Marañon: professor pesquisador do Instituto de Investigaciones Económicas (IIEc)-UNAM-México. Francisco Alves: professor Associado do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar. Gladyson S. B. Pereira: mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Horácio Antunes de Sant´Anna Júnior: professor do Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) e Sustentabilidade de Ecossistemas (PGCSE) e Coordenador do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e pesquisador vinculado ao GPTEC. Jaqueline Gomes de Jesus: mestre e doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília e militante em direitos humanos e psicólogo atuando no Serviço Público Federal. Ricardo Rezende Figueira Adonia Antunes Prado (Orgs.) José Batista Afonso: advogado e agente da Comissão Pastoral da Terra, em Marabá, Sudeste do Pará. José Damião de Lima Trindade: procurador do Estado em São Paulo e autor de História Social dos Direitos Humanos (Editora Peirópolis, São Paulo). Leonardo Sakamoto: doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo; jornalista, coordenador geral da ONG Repórter Brasil e membro da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Marcela Soares Silva: professora Assistente do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/ESS/UFRJ). Marcelo Gonçalves Campos: auditor Fiscal do Trabalho e Assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Maria Antonieta Vieira: antropóloga, pesquisadora vinculada ao GPTEC. Mitiko Yanaga Une: geógrafa pela USP, mestre em ciências pela Tokyo Kyoiku Daigaku (fundida nos anos de 1970 para compor a Universidade de Tsukuba) e geógrafa aposentada do IBGE onde trabalhou na área de meio ambiente. Nanci Valadares de Carvalho: Ph. D em Ciência Política e Política Internacional pela New York University; mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Chicago, com Pós-Doutorado na Universidade de São Paulo e na Universidade de Colônia; autora de diversos livros e artigos, dentre os quais se destaca “Autogestão, O Nascimento das Ongs, Editora Brasiliense,1983 e 1996. Neide M. C. Cardoso de Oliveira: procuradora da República, bacharel em Direito pela UERJ e Pós-graduada em Direitos Humanos-Relações de Trabalho, pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Regina Bruno: socióloga; professora do CPDA-UFRRJ e pesquisadora vinculada ao GPTEC. Ricardo Rezende Figueira: antropólogo, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e coordenador do GPTEC. Vitale Joanoni Neto: historiador, professor da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisador vinculado ao GPTEC. Waldimeiry Corrêa da Silva: doutoranda em Direito Internacional pela Universidad de Sevilla-España, pesquisadora vinculada ao GPTEC e bolsista da AECID (Becas-Mae). 442