Sem título - Faculdade Santa Marcelina

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Sem título - Faculdade Santa Marcelina
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Editorial
Quadragésima primeira edição do InterInter-Relações 3
Tadeu Morato Maciel
Artigos
A força social do ideal do livre mercado 5
Ricardo Luiz Cruz
SUMÁRIO
CriançasCrianças-soldado: o discurso liberal e os incentivos à violência 18
Giovanna Ayres Arantes de Paiva
Pós--colonialismo 28
A Ajuda Pública ao Desenvolvimento Portuguesa e o Pós
Gabriela Levy Dinkhuysen
Separatismo Político: o caso da Catalunha 40
Maria Amparo dos Santos Rosello
Estudos migratórios: breve discussão conceitual 56
Roberta de Morais Mazer
Relatórios
O movimento feminista egípcio 67
Isabella Nisimoto Sorio
Deslocamento de Populações no Século XXI 74
Maria Célia Caputo de Barros Serra e Wellington Bezerra de Souza
A Coordenação
Coordenação de Políticas para Migrantes da Prefeitura de São Paulo 80
Angélica Ribeiro, Gleison Lima, Jéssica Rodrigues, Lennon Sarau; Stephanie Ribeiro,
Vaneide Magalhães, Victor Pimentel
Os planos do governo equatoriano: incentivo ao retorno da população migrante 85
Karina Magalhães, Kenny Afolabi, Milena Ignácio, Tai Afolabi, Verônica Santos, Wellington
Souza
As experiências de Cooperação SulSul-Sul do Equador,
Equador, Uruguai e El Salvador: Propostas e Alternativas 90
Aline Yuri Hasegawa e Tadeu Morato Maciel
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Inter-Relações
ISSN: 1980-3702
Editoração:
Prof. Ms. Tadeu Morato Maciel.
Conselho editorial:
Prof. Dr. Clóvis Brigagão (IUPERJ-UCAM).
Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira (UNICAMP).
Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP).
Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues (UFABC).
Dr. Kjeld Jakobsen (Instituto Observatório Social).
Profª Dra. Meire Mathias (UEM).
Prof. Dr. Moisés da Silva Marques (FASM/FESP-SP).
Prof. Dr. Paulo-Edgar Resende [in memoriam] (PUC-SP).
Prof. Dr. Peter Demant (USP).
Prof. Dr. Rafael Duarte Villa (USP).
Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM).
Prof. Dr. Sergio Aguilar (UNESP).
Prof. Dr. Thiago Rodrigues (UFF).
Prof. Dr. Wagner de Melo Romão (UNICAMP).
Coordenação do curso de Relações Internacionais:
Profª. Ms. Rita do Val.
Direção:
Ir. Valéria de Araújo Carvalho.
Faculdade Santa Marcelina
(Campus Perdizes)
Rua Dr. Emílio Ríbas, 89.
Perdizes. São Paulo – SP.
CEP 05006-020.
Tel.: (55) (11) 3824-5800
E-mail: [email protected]
www.fasm.edu.br
“As opiniões expressas nos
artigos aqui publicados são de
inteira responsabilidade dos
autores, não refletindo,
necessariamente, as posições dos
editores e da Faculdade Santa
Marcelina”.
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Quadragésima primeira edição do Inter-Relações
No decorrer de aproximadamente 16 anos de existência, o curso de Relações Internacionais
da Faculdade Santa Marcelina (FASM) proporcionou aos estudantes, dentre outros elementos, uma
grande proximidade com experiências relacionadas à vida acadêmica. Destacam-se o Laboratório de
Análise Internacional (LAI) e as diversas linhas de pesquisa desenvolvidas nesse espaço, o
periódico eletrônico Inter-Relações, o Simpósio de América Latina e, por fim, a Semana de
Relações Internacionais.
Dando continuidade a esta veia acadêmica do curso de RI da FASM, entre o final de 2014 e
o início de 2015 foi estabelecida uma nova linha de pesquisa vinculada ao LAI, relacionada ao tema
dos Direitos Humanos. Em consonância com a parceria entre a FASM e a Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo, esta pesquisa busca efetuar, no primeiro
momento, um mapeamento quantitativo dos migrantes na cidade de São Paulo. Além da linha de
pesquisa de Segurança Internacional, em atividade desde 2013, e da recém-criada linha em Direitos
Humanos, há a expectativa do estabelecimento de uma terceira linha de pesquisa, relacionada a
questões de Economia Internacional. Diante desta dinâmica, permanece o intuito de manter o InterRelações como espaço substancial e profícuo de registro dos resultados das pesquisas realizadas no
âmbito do LAI, com especial participação do corpo discente do curso de Relações Internacionais.
Além disso, conserva-se a tradição do Inter-Relações de difundir os textos de pesquisadores,
professores e estudantes relacionados a diversas perspectivas teórico-metodológicas, produzidos a
partir de diferentes instituições acadêmicas, como é possível verificar nesta edição.
O primeiro artigo da quadragésima primeira edição deste periódico é uma excelente e gentil
contribuição do Prof. Ricardo Luiz Cruz (pós-doutorando junto ao PPGCSOC/UFMA e exprofessor da FASM). Esse texto traz uma importante reflexão sobre a força social ou legitimidade
da chamada ideologia do “livre mercado”. Tal reflexão tem como principal referencial uma
literatura sociológica crítica ao “neoliberalismo” enquanto o modo sistemático de expressão do
ideário do livre-mercado na atualidade. O segundo artigo desta edição, assinado pela pesquisadora
Giovanna Ayres Arantes de Paiva (Programa San Tiago Dantas), aborda a forma pela qual o
discurso liberal tradicionalmente concebe o papel da criança-soldado nos conflitos armados,
contrastando essa perspectiva com a abordagem dos autores David Keen e Mark Duffield sobre
violência. No terceiro artigo, a pesquisadora Gabriela Levy Dinkhuysen (vinculada ao Instituto
Universitário de Lisboa – ISCTE) analisa os percalços e incoerências da política de Ajuda Pública
ao Desenvolvimento (APD) de Portugal, propondo, através da perspectiva teórica do Póscolonialismo, um novo enquadramento teórico para a APD portuguesa. O quarto artigo, da
pesquisadora Maria Amparo dos Santos Rosello (Fundação Escola de Sociologia e Política –
FESP), busca dissipar a visão de separatismo condenável e, para tanto, avalia questões como o
direito de autodeterminação, o separatismo político e o direito de decisão a partir do processo
catalão de realização do referendo, consulta popular ou participação cidadã nos anos 2013-2014. O
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primeiro bloco desta edição é finalizado com o artigo da pesquisadora Roberta de Morais Mazer
(UFABC), o qual traz uma importante contribuição para a compreensão, revisão e problematização
de alguns conceitos relacionados aos processos migratórios. Este texto destaca a necessidade de
incorporação de novas dimensões explicativas em relação à questão da mobilidade populacional
contemporânea.
O segundo bloco desta edição é composto por uma série de relatórios produzidos, em sua
maioria, pelos estudantes de Relações Internacionais da FASM. O primeiro relatório, produzido
pela estudante Isabella Nisimoto Sorio (FASM), aborda o trajeto do movimento feminista egípcio,
buscando identificar a importância do islamismo na luta pelos direitos das mulheres. O segundo
relatório, escrito pela Profa. Maria Célia Caputo de Barros Serra e pelo estudante Wellington
Bezerra de Souza (ambos da FASM), aborda questões gerais sobre o deslocamento de populações
no século XXI, de forma justificar a criação da linha de pesquisa de direitos humanos da FASM,
além de reproduzir trechos de uma entrevista com o Cônsul-Geral do Equador, Luiz Vladimir
Vargas Anda, sobre migrantes equatorianos em São Paulo. O terceiro relatório versa sobre a
Coordenação de Políticas para Migrantes da Prefeitura de São Paulo e foi escrito pelos estudantes
da FASM Angélica Ribeiro, Gleison Lima, Jéssica Rodrigues, Lennon Sarau, Stephanie Ribeiro,
Vaneide Magalhães e Victor Pimentel. O quarto relatório aborda os planos do governo equatoriano
para incentivo ao retorno da população migrante daquele país, sendo produzido pelos estudantes
Karina Magalhães, Kenny Afolabi, Milena Ignácio, Tai Afolabi, Verônica Santos e Wellington
Souza. Esta edição é finalizada com o relatório da doutoranda Aline Yuri Hasegawa (Universidade
Federal do ABC – UFABC), no qual tive o prazer de participar, sobre a palestra do Prof. Bruno
Ayllón Pino no evento “As experiências de Cooperação Sul-Sul do Equador, Uruguai e El Salvador:
Propostas e Alternativas”, realizado em 29 de abril de 2015 na UFABC.
Desejo a todos uma ótima leitura!
Tadeu Morato Maciel
Editor do Inter-Relações
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A força social do ideal do livre mercado
O propósito deste texto
é refletir sobre a força social
ou legitimidade da chamada
ideologia do “livre mercado”,
ou seja, de um discurso ou
narrativa que encara a forma
ideal das trocas mercantis
como aquela em que os preços
das mercadorias se dão com
base nas suas ofertas e
demandas. Tal reflexão tem
como principal referencial
uma literatura sociológica
crítica ao “neoliberalismo”
enquanto o modo sistemático
de expressão do ideário do
livre-mercado nos dias de hoje.
Ricardo Luiz Cruz1
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 5 - 17
Palavras-chave: ideologia do
“livre mercado”; abordagem
sociológica; neoliberalismo.
Introdução
Diferentes estudiosos do capitalismo contemporâneo têm chamado atenção para as relações
de interdependência entre as elites políticas, econômicas e intelectuais como fatores cruciais por trás
da força do ideal do livre mercado como um referencial para as transações mercantis nos planos
nacional e internacional (BOURDIEU, 1998, 2001; FIORI, 1998, 1999, 2001, 2004, 2007; KLEIN,
1
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002), mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004) e doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2010). Desenvolve atualmente sua pesquisa de pós-doutorado junto ao PPGCSOC/UFMA e
cujo título é “A experiência social do trabalho sob a ótica das famílias dos agricultores de Chanchamayo (Junín/Peru) e
do Médio Mearim (Maranhão/Brasil)”.
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2008; OLIVEIRA, 2003). Essas análises são feitas, notadamente, com base num viés críticonormativo, na medida em que a hegemonia dessa ideologia lhes parece ir de encontro com a
construção de um Estado de bem-estar social. A perspectiva que pauta esses estudos é a da
sociedade nacional, encarada como sendo atravessada por relações de dominação de ordem interna
(entre suas elites e camadas populares) e externa (entre ela e outros Estados). O ideário do livre
mercado é visto nesses trabalhos como uma maneira das classes ou Estados dominantes legitimarem
suas posições de comando. Isso porque ele apresentaria seus interesses particulares como sendo dos
cidadãos de um modo geral.
Trata-se de uma ideologia que parece congregar uma série de noções caras às vertentes do
pensamento econômico denominadas de “neoclássicas”, em especial a do “indivíduo” como um
agente desprovido de vínculos ou laços sociais e orientado exclusivamente para a maximização de
suas “utilidades”. Esse ideal pode ser pensado não apenas como uma forma de legitimar uma
distribuição desigual dos recursos materiais num plano nacional ou internacional, mas também
enquanto uma naturalização de comportamentos avessos às normas sociais2. Não é sem razão que
Pierre Bourdieu (1998) vai definir o “neoliberalismo” como uma “utopia (em vias de realização) de
uma exploração sem limites”, haja vista o caso da “desregulamentação” do mercado de trabalho
como uma forma de criar um “ambiente econômico” supostamente ideal para os capitais privados3.
O objetivo do presente texto é mostrar, através de uma discussão apoiada numa literatura
sociológica sobre o “neoliberalismo”, como essa utopia liberal adquiriu uma ampla legitimidade por
meio das relações de interdependência entre as elites econômicas, políticas e intelectuais.
O contraponto aqui são as considerações de Michel Callon a respeito da “teoria econômica
neoclássica”, tal como aparecem na introdução que escreveu para o livro que editou, em 1998, sob o
título The Laws of the Markets. De acordo com esse sociólogo francês, a força dessa teoria, como
um referencial central na organização das transações mercantis no final do século XX, residiria,
especialmente, na sua capacidade de “formatar” essas transações de uma maneira que seus
participantes, ao final das trocas, não se vejam mais comprometidos entre si. Em outras palavras,
2
Como afirma Vladimir Safatle (2015): “O sujeito neoliberal é muito mais um agente calculador de custos e benefícios
do que um sujeito a quem se espera a conformação às normas sociais”.
3
O termo “neoliberalismo” é usado aqui sempre entre aspas, tendo em vista que se trata de uma categoria, em boa
medida, acusatória, ou seja, dificilmente alguém se diz adepto do “neoliberalismo”.
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ele parece explicar a força social dessa doutrina econômica com base nos seus efeitos, sem se
perguntar, entretanto, como ela se torna socialmente reconhecida como um modelo legítimo para a
construção ou a realização dos intercâmbios mercantis. Com base na literatura sociológica sobre o
“neoliberalismo”, aqui retratada, é possível dizer que a ampla legitimidade que a teoria neoclássica
alcançou, notadamente, ao longo das décadas de 1980 e 1990, se originou da confluência entre os
interesses dos grandes grupos econômicos com a valorização de seus patrimônios, os interesses dos
principais partidos com a conquista e a manutenção do poder político e os interesses de destacados
pesquisadores ou analistas com a propagação de suas ideias.
Mas antes de refletir sobre a força social do “neoliberalismo”, o presente texto chama a
atenção a respeito da “pré-história” ou das raízes desse modo sistemático de expressão do ideário do
livre-mercado nos dias de hoje. Tal reconstrução histórica tem como propósito apresentar o
movimento dialético por trás da força social desse ideário. Dito de outra maneira, sua legitimidade
tem sido maior ou menor ao longo do tempo – por exemplo, ela foi mais evidente nas décadas de
1980 e 1990 do que no período atual. Nesse sentido, sua vigência nos anos de 1980 e 1990 se
constitui num referencial privilegiado para se pensar as condições sociais de sua hegemonia ou
triunfo frente a outros paradigmas ou modelos para as trocas mercantis.
Antecedentes históricos do “neoliberalismo”
O ideário do livre mercado (ou do “mercado auto-regulado” ou, ainda, do “mercado
perfeito”) surgiu, de acordo com Karl Polanyi (2000), na Europa dos anos de 1820, quando passou a
“representar” o que o autor chama de “os três dogmas clássicos”: “o trabalho deveria encontrar seu
preço no mercado, a criação de dinheiro deveria sujeitar-se a um mecanismo automático, os bens
deveriam ser livres para fluir de país a país, sem empecilhos ou privilégio” (idem, p. 166). Segundo
ele, “não foi senão nos anos 1830 que o liberalismo econômico explodiu como uma cruzada
apaixonante, e o laissez-faire se tornou um credo militante” (idem, p. 168). O “credo liberal” serviu
de referencial para uma série de transformações na legislação inglesa, ocorridas a partir dessa
década, e as quais teriam tornado o dinheiro, a terra e o trabalho mercadorias cujos preços passaram
a ser regulados pelas suas ofertas e demandas.
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A década de 1830 foi o período no qual a burguesia suplantou, definitivamente, a
aristocracia como classe dominante na Inglaterra (HOBSBAWN, 2009). Karl Marx, por um lado,
havia chamado atenção para o fato de que essa mudança política veio acompanhada da difusão de
um pensamento econômico “vulgar” em detrimento da “economia política clássica”, ou seja, da
propagação de uma ideologia que procurava, sobretudo, legitimar a ordem capitalista vigente e,
sendo assim, distante de um “conhecimento científico” que apontasse para suas contradições4. Mas
ele vai enxergar na aplicação do ideário do livre mercado uma forma através da qual as contradições
do capitalismo podem se tornar mais explícitas, fazendo com que as vítimas desse sistema vejam
com mais clareza a necessidade de suplantá-lo por outro onde o progresso tecnológico seja
direcionado não mais para a acumulação privada, e sim para o livre desenvolvimento das
potencialidades de todos os seres humanos.
Em uma conferência pronunciada em 7 de janeiro de 1848 em Bruxelas, Karl Marx tratou
da grande vitória levada a efeito em 1846 pelos partidários do livre comércio, a saber, a
abolição das leis sobre os cereais na Inglaterra (Corn Laws). Os free-traders, apoiados
pelos capitães da indústria, procuraram obter a adesão popular estigmatizando os
privilégios da aristocracia latifundiária e prometendo aos trabalhadores das cidades e do
campo que a reforma resultaria em mil e uma maravilhas. “Pão barato, melhores salários,
eis o único objetivo pelo qual os defensores do livre-comércio gastaram milhões”, ironizou
o conferencista. Marx refutava as teorias econômicas segundo as quais a intensificação da
concorrência produzida pela liberdade do comércio não resultaria em diminuição dos
salários. E ele lembrava que, “no estado da sociedade atual”, o livre-comércio não é outra
coisa senão “a liberdade do capital”. No entanto, ele advertiu seu auditório que, ao fazer a
crítica da liberdade comercial, não tinha a “intenção de defender o sistema protecionista”,
que sustenta os interesses dos proprietários rurais. O livre-comércio, em contrapartida, pelo
fato de agravar a luta econômica, acelera a revolução social. E o orador concluiu: “Nesse
sentido revolucionário, senhores, eu voto a favor do livre-comércio”. (SCHWARTZ, 2014,
p.16).
Tanto Marx quanto Polanyi se colocavam do lado do que viam como uma reação de caráter
coletivo, popular e universal à pobreza material e existencial resultante da aplicação do ideário do
livre mercado. Para o primeiro, os protagonistas desse “contramovimento” seriam os trabalhadores
das grandes indústrias ou “proletariado’: uma classe social, segundo ele, desprovida de vínculos
substanciais e que, sendo assim, teria como particularidade possuir interesses universais. Já Polanyi
4
Ver Lowy (1987).
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enxerga nas relações ou laços interpessoais a força principal por trás do “movimento de
autoproteção social”, ou seja, da “reação da sociedade” contra sua destruição por conta da tentativa
- utópica, de acordo com ele - de concretização do ideal do livre-mercado. Em outras palavras, para
Marx seria uma comunidade ou associação transnacional, conduzida pelos trabalhadores industriais,
que iria entrar em choque com a aplicação dessa ideologia e para Polanyi esse papel fora
desempenhado pelas sociedades nacionais.
Segundo este último autor, um movimento generalizado contra o “credo liberal”,
capitaneado pelas “potências dominantes”, se deu a partir da crise iniciada no ano de 1929. De
acordo com Justin Fox (2010), “no ambiente intelectual mais amplo da década de 1930, o que ficara
desacreditado pelo grande crash e pela Depressão foi a ética pró-mercado do laissez-faire que a
antecedera” (idem, p. 36). Em 1936 é publicado A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda,
livro do economista britânico John M. Keynes, no qual seu autor defende a tese de que o nível de
emprego é determinado pelos gastos em dinheiro e não pelos preços do trabalho. Essa obra não é
apenas um sintoma de um desgaste do liberalismo econômico como também serviu de justificativa
para diversas medidas políticas contrárias a esse ideário, como é o caso, em especial, da maior
presença estatal na economia. O nome de Keynes esteve, inclusive, intimamente associado com a
relativamente rígida regulamentação dos fluxos financeiros internacionais que iria acompanhar o
capitalismo nas próximas décadas.
O “neoliberalismo”: da academia à economia e à política
Após a Segunda Guerra Mundial ocorreu, segundo Fox, o “renascimento” acadêmico da
“ideologia a favor do livre mercado” (idem). Ela ressurge, diz ele, intercalada com a difusão, nos
meios universitários norte-americanos, de uma teoria dos “mercados auto-regulados” como
realidades dotadas de uma racionalidade intrínseca. Tal teoria remonta, de acordo com Fox, às
ideias de Adam Smith, só que através da mediação da “teoria econômica neoclássica”, surgida no
século XIX, e a qual “via a economia como um estudo de pessoas racionais maximizando a
utilidade” (idem, p. 38). Trata-se, no entender desse autor, de uma tradição de pensamento
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notadamente dedutiva e que, ao longo do tempo, tem dividido o campo das ciências econômicas
norte-americanas com uma vertente denominada “institucionalista”5.
A “teoria dos mercados racionais” vai ganhar mais força ao longo dos anos 1960, através da
sua propagação pelos membros da chamada Escola de Chicago, isto é, do departamento de
economia da prestigiosa universidade situada nessa cidade. Contudo, aponta Fox, apesar de boa
parte do establishment das ciências econômicas ter, a partir da década seguinte, passado a contestar
essa teoria, nessa mesma época ela começa a “conquistar” o universo das finanças norte-americano.
Esse autor assinala que a “hipótese dos mercados racionais se fortaleceu e perdeu suas nuances”, ou
seja, passou cada vez mais a ser vista como uma descrição literal da realidade, ao migrar da
“Chicago da década de 1960 para Wall Street, Washington, e para as mesas de diretoria das
empresas americanas” (idem, p. 46). Essa hipótese, diz ele:
Era uma ideia poderosa, que ajudou a inspirar os primeiros fundos de índices, a abordagem
de investimento da chamada teoria das carteiras, as medidas de desempenho ajustadas aos
riscos que formam o negócio da administração de investimentos, a fé empresarial na
geração de valor para o acionista, a ascensão de derivativos e a abordagem liberal da
regulamentação dos mercados financeiros que dominaram os Estados Unidos a partir da
década de 1970. (idem).
A década de 1980 vai assistir a uma convergência entre os interesses ligados ao mundo
financeiro com as estratégias geopolíticas do governo de Ronald Reagan (1981-1989), no entender
de José Luis Fiori (2001), e para quem esta imbricação ou relação de interdependência entre os
planos econômicos e políticos dos EUA “permitiu a reconstrução mundial de uma finança privada e
desregulada que está no epicentro do fenômeno da chamada globalização” (idem, p. 65). Fiori
(1999, 2001), apoiado nas ideias de Polanyi, vê nas elites econômicas, políticas e intelectuais
ligadas às potências hegemônicas internacionais – a Inglaterra no século XIX e os Estados Unidos
nos séculos XX e XXI – as principais forças por trás da propagação do que ele chama de “credo
liberal” (do livre mercado). A difusão desse ideário, de acordo com esse autor, tem se colocado
como uma forma de criar uma economia mundial pautada pela “desregulamentação” e
“liberalização” dos mercados financeiros e, por conta disso, subordinada ao desenvolvimento
5
Os institucionalistas, por sua vez, privilegiariam o raciocínio indutivo.
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material da nação dominante, isto é, daquela que controla a moeda usada globalmente como reserva
de valor.
A capacidade de endividamento e o crédito dos Estados vitoriosos correm sempre na frente
da capacidade e dos créditos dos demais Estados concorrentes. No caso dos vitoriosos, sua
“dívida pública” pode crescer por cima do produto criado dentro do seu território nacional,
ao contrário das demais economias, mesmo das grandes potências que ficam prisioneiras de
uma capacidade de endividamento menor, restrita a sua zona limitada de influência
monetária e financeira. (FIORI, 2004, p. 31).
Por um lado, aponta Fiori, existem aqueles países (como a Alemanha, o Japão e os Estados
Unidos durante o século XIX) que se industrializaram num grau ainda maior que a potência da
época, ao protegerem sua economia da concorrência externa e criarem um sistema de financiamento
interno. Esse movimento de “autoproteção” ou rompimento “com as regras liberais em nome de um
projeto nacional” (FIORI, 1998) teria se dado através de um pacto entre suas elites ao verem suas
integridades territoriais ou soberanias ameaçadas de fora para dentro. Tais ameaças não seriam
levadas em conta pelas elites da maioria dos países situados na “periferia do capitalismo”, e as quais
não colocariam como prioridade a associação da acumulação local de dinheiro e poder com o
“desenvolvimento” dessas sociedades como um todo. Segundo Fiori, a adesão dessas elites às
regras liberais da potência global (como a “desregulamentação” dos mercados de trabalho, de terra
e de capitais) só pode ser verdadeiramente contestada internamente caso o “povo” ao seu redor se
organize em torno de um “projeto nacional” autônomo – capaz, inclusive, de se associar com o
“projeto nacional” de outros países, haja vista a valorização que esse autor faz da “integração”
econômica e política do Brasil com seus vizinhos como uma estratégia de desenvolvimento.
Pierre Bourdieu (1998) também aponta para o fato de que o ideário do livre mercado
(identificado por ele como o “neoliberalismo”) “extrai sua força social da força político-econômica
daqueles cujos interesses ele exprime” e os quais esse autor vai utilizar como exemplo os
“acionistas, operadores financeiros, industriais, políticos conservadores ou social-democratas
convertidos às desistências apaziguadoras do laisser-faire” (idem, p. 138). Estaríamos, segundo ele,
diante da “universalização das características particulares de uma economia mergulhada numa
história e estrutura social particular, a dos Estados Unidos”, os quais “ocupam no campo econômico
mundial uma posição dominante que se deve ao fato de concentrarem um conjunto excepcional de
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vantagens competitivas” e que contam, por exemplo, “com a cumplicidade dos próprios europeus,
em uma lógica que não deixa de lembrar a da colonização” (BOURDIEU, 2001, p. 35). A
“unificação do campo econômico mundial” se dá, de acordo com esse cientista social francês, “pela
imposição do reino absoluto do livre comércio, da livre circulação do capital e do crescimento
orientado para a exportação”, e esse campo “se apresenta como um conjunto de subcampos
mundiais, cada um deles correspondentes a uma ‘industry’, entendida como um conjunto de
empresas em concorrência pela produção e a comercialização de uma categoria homogenia de
produtos”, sendo que “estes diferentes campos estão hoje estruturalmente submetidos ao campo
financeiro mundial” (idem, p. 109).
O ideal do “mercado auto-regulado” é visto por Bourdieu (1998) como um “discurso forte”
e “que só é tão forte e tão difícil de combater porque tem a favor de si todas as forças de um mundo
de relações de força” (conforme exemplificado anteriormente), um mundo que esse ideal “contribui
para fazer tal como é, sobretudo orientando as escolhas econômicas daqueles que dominam as
relações econômicas e”, continua esse sociólogo, “acrescentando assim a sua força própria,
propriamente simbólica, a essas relações de força” (idem, p. 137). Essa força simbólica da qual fala
o autor envolve, segundo ele, um “programa científico de conhecimento convertido em programa
político de ação” (idem). Tal programa científico está, como dito antes, associado à Escola de
Chicago e aos centros de pesquisa, dentro e fora dos Estados Unidos, identificados com sua linha de
pensamento (a teoria dos mercados racionais). Sua divulgação, por meio dos grandes canais de
comunicação, se daria, sobretudo, conforme assinala Bourdieu (2001), através de um “campo
jornalístico” submetido às pressões das forças econômicas e políticas dominantes.
De acordo com Naomi Klein (2008), para quem a aplicação do ideário do livre mercado tem
como principais beneficiários as grandes empresas multinacionais, “a enorme vantagem de ter os
interesses das corporações filtrados por instituições acadêmicas ou quase acadêmicas não só
garantiu doações para a Escola de Chicago”, diz ela, para logo em seguida ressaltar: “mas gerou a
rede global de entidades formadoras do pensamento de direita que abrigaria e alimentaria os
soldados contrarrevolucionários pelo mundo todo” (idem, p. 73). Em outras palavras, o dinheiro dos
grandes grupos econômicos – como é o caso, emblemático, do conglomerado global dirigido pelos
“irmãos Koch”, dos EUA – vem, em grande medida, sustentando as entidades responsáveis por um
discurso, pretensamente científico, em prol da aplicação de políticas orientadas pelo ideal do livre
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mercado. Algumas dessas entidades proveram “os programas políticos de Reagan ou Thatcher, ou,
depois deles, Clinton, Blair, Schröder ou Jospin” (Bourdieu, 2001, p. 41), ou seja, elaboraram as
diretrizes que pautaram a “desregulamentação” financeira e o “ataque” ao Estado de bem-estar
social, promovidos por muitos governos nos anos de 1980 e 1990, tendo em vista a criação de uma
economia supostamente ideal para os investimentos privados.
Assim como Bourdieu, Klein vê na ideologia do livre mercado características semelhantes
encontradas no marxismo outrora em voga dentro e fora dos meios universitários (o chamado,
pejorativamente, de “marxismo vulgar”)6. Para o primeiro, “como o marxismo em outros tempos,
com o qual, sob esse aspecto, ela tem muitos pontos comuns, essa utopia (“neoliberal” ou do livre
mercado) suscita uma crença formidável, a Free trade faith.” (BOURDIEU, 1998, p. 233). Porém,
afirma ele, essa crença não se dá “só entre aqueles que vivem materialmente dela, como os
financistas, os patrões de grandes empresas etc., mas também entre os que tiram dela sua razão de
viver”, e cita como exemplo “os altos funcionários e os políticos que sacralizam o poder dos
mercados em nome da eficiência econômica” (idem, p. 345). Klein (2008), por sua vez, enxerga no
ideário do livre mercado “a presença das mesmas qualidades que tornaram o marxismo tão
interessante para muitos outros jovens”, e as quais seriam, no entender desta autora canadense, uma
“simplicidade com a aparente completude lógica” e um “idealismo combinado com radicalismo”
(idem, p. 69).
Tal “aparente completude lógica” se apoia em pressuposições a respeito do comportamento
humano e cuja pretensa universalidade esconde, conforme dito antes, sua relação privilegiada com
uma sociedade específica: os Estados Unidos da América. Já seu radicalismo, por sua vez, não
deixa de ser, para além da sua retórica, conservador, ao reverter as conquistas dos movimentos
sociais (BOURDIEU, 2001). Essa “contrarrevolução” é normalmente conduzida sob a forma de um
alegado “choque” (de capitalismo) como uma espécie de remédio ou tratamento para um país “em
crise” (KLEIN, 2008). Os agentes responsáveis pela elaboração do receituário dessa “terapia”,
sejam eles funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou membros de um governo
6
Tanto Bourdieu quanto Klein de modo algum estão endossando, nesses textos, uma crítica às ideias de Karl Marx em
si, mas sim a certos usos sociais dessas ideias. Florestan Fernandes (1980), por exemplo, chama atenção para o caráter
indutivo da metodologia de Marx, algo bem distante da perspectiva “dedutivista” que costuma acompanhar a
vulgarização do seu pensamento.
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nacional, por exemplo, encontram nos seus diplomas de economistas a autoridade necessária para
legitimar “cientificamente” suas ações7. Entretanto, conforme também fora assinalado
anteriormente, no cerne de todo esse processo localizam-se os interesses financeiros e geopolíticos
norte-americanos.
Esses interesses encontraram na “crise da dívida” dos países latino-americanos, deflagrada
nos anos de 1980, um contexto privilegiado para “conquistarem” as elites econômicas e políticas
dessas nações (FIORI, 2001). Na década de 1990, afirma Fiori, “em troca da renegociação de suas
dívidas externas, as principais economias da região foram ‘readmitidas’ nos mercados financeiros
internacionais” e, ainda segundo esse autor, “a negociação da dívida envolveu a aceitação do novo
programa de reformas liberalizantes” (idem, p. 78). Em alguns países, como é o caso do Brasil e da
Argentina, o ímpeto dessas reformas teria diminuído ao longo do tempo, apesar, segundo Fiori, de
um “projeto liberal-internacionalizante” continuar gravitando em torno de suas elites. De qualquer
maneira, essas políticas não deixaram de causar profundas transformações, não só econômicas
como sociais, nessas nações, como é o caso do surgimento de um segmento da classe trabalhadora
brasileira, formado por sindicalistas responsáveis pela gestão dos ditos “fundos de pensão”, e os
quais veriam os rendimentos desses fundos crescerem com a aplicação de “políticas liberais” –
como a “desregulamentação” do mercado de trabalho e dos fluxos de investimento (OLIVEIRA,
2003). Suas posições sociais, privilegiadas num universo econômico dominado pelo campo das
finanças, estariam diretamente associadas ao fato de terem incorporado certas disposições
profissionais que lhes permitem agir com relativo sucesso nesse universo.
Considerações finais
Para além de saber se as duas primeiras décadas do século XXI terão assistido o ocaso ou
uma continuidade, em outros termos, de uma hegemonia do “neoliberalismo”, o que importa aqui,
para concluir a reflexão desenvolvida ao longo do texto, é ressaltar que a ampla força social ou
7
Estudos como o de Marie-France Garcia (2003) e o de Ricardo Cruz (2005), por exemplo, mostram, através de uma
perspectiva notadamente etnográfica, como a construção de um “mercado perfeito” ou “auto-regulado” é conduzida por
pessoas que se valem das suas ligações com as ciências econômicas para conferir uma espécie de neutralidade às suas
ações.
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legitimidade alcançada pelo ideário do livre mercado, durante os anos de 1980 e 1990, foi um
processo que teve origem nas relações de interdependência entre as elites econômicas, políticas e
intelectuais. Em outras palavras, ele não se originou nas camadas populares ou com base nas suas
alianças com as classes dominantes situadas dentro e fora de seus países. A falta de um
enraizamento popular, no interior do projeto ou modelo “neoliberal”, deve explicar, num maior ou
menor grau, a perda de legitimidade ou de influência desse paradigma, confirmando o caráter
antipopular do ideal do livre mercado apontado por Karl Marx, Karl Polanyi e os sociólogos críticos
do “neoliberalismo” citados neste texto.
Se a afirmação de Michel Callon (1998) de que “a economia está embebida na ciência
econômica e não na sociedade” (idem) parece, por um lado, chamar a atenção, de maneira retórica,
para a importância de se levar em conta, no estudo dos mercados, os “dispositivos sóciotecnológicos” de controle das trocas mercantis, por outro lado, ela acaba reduzindo os conflitos
sociais, em torno de um mercado, a “controvérsias” econômicas supostamente capazes de serem
contornadas com uma melhor adequação desses dispositivos aos interesses dos participantes desse
mercado. Dito de outro modo, Callon, ao separar a sociedade ou o social da economia e das teorias
econômicas, termina não analisando as relações de dominação por trás dos aparentes consensos
sobre as ideias que servem de referenciais para as transações mercantis.
Ele não vê que o destaque conferido à teoria neoclássica, no final do século XX, não pode
ser entendido sem considerar a perda de força dos movimentos populares durante os anos 1980 e
1990. Como aponta Oliveira (2003), “as forças do trabalho já não têm ‘força’ social, erodida pela
reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual e”, continua o autor, “‘força’ política, posto
que dificilmente tais mudanças na base técnico-material da produção deixariam de repercutir na
formação de classe” (idem, p. 145). Tais transformações produtivas parecem se colocar como causa
e consequência da força social do ideal do livre mercado, assim como o que Bourdieu (1998)
denomina de um “programa de destruição metódica dos coletivos” (idem)8. Contudo, a história nos
ensina que a união das elites em torno de um projeto político, econômico e intelectual que busca
reduzir o restante da população a sujeitos apartados socialmente uns dos outros é algo fadado ao
8
Tal “destruição metódica dos coletivos” envolveu, por exemplo, as atitudes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher
contra os sindicatos de seus respectivos países. .
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fracasso, por mais que ele possa obter uma ampla legitimidade durante um determinado período de
tempo.
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Graduação em Antropologia Social – UFRJ/MN, 2005.
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Diplomatique. Ano 7, Nº 83, junho de 2014, p. 16.
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Crianças-soldado: o discurso liberal e os incentivos à violência9
Neste artigo busca-se
entender a forma pela qual o
discurso
liberal
tradicionalmente concebe o
papel da criança nos conflitos
armados, contrastando essa
perspectiva com a abordagem
de David Keen e Mark Duffield
sobre a violência. Objetiva-se,
assim, promover uma reflexão
sobre um tema por vezes
negligenciado na segurança
internacional.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva10
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 18-27
Palavras-chave: conflitos armados; crianças-soldado; violência.
Introdução
Quando se fala na proteção de civis durante conflitos armados – principalmente os
intraestatais – destaca-se uma categoria específica em relação àqueles que são atingidos diretamente
pelos conflitos: as crianças, em especial as chamadas crianças-soldado. A definição de criançassoldado adotada comumente é aquela contida nos Princípios de Paris, que as define como “qualquer
pessoa com menos de 18 anos que é ou foi recrutada ou usada por uma força armada ou grupo
9
Uma versão prévia deste trabalho foi apresentada oralmente no 5º Simpósio de Pós-Graduação em Relações
Internacionais (SimpoRI) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2014. Agradeço as sugestões e
observações que contribuíram para o amadurecimento deste trabalho.
10
Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago
Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (UNESP). Membro do Observatório de Política Exterior e do Grupo de Estudos de Defesa e
Segurança Internacional (GEDES) desde 2010. Pesquisa a área de Paz, Defesa e Segurança Internacional, com ênfase
no recrutamento de crianças-soldado.
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armado em qualquer tipo de função, incluindo meninos e meninas usados como combatentes,
cozinheiros, espiões e escravos sexuais” (UNICEF, 2007, p. 7)11.
Nota-se uma postura mais alarmante sobre o emprego de crianças-soldado em conflitos
armados, tema que passou a ser incluído entre os assuntos que afetam a paz e a segurança
internacionais. O emprego de crianças por grupos paramilitares ou até mesmo por forças armadas
nacionais é enxergado como uma ameaça à própria segurança da criança que, ao participar
ativamente dos conflitos, priva-se dos seus direitos à educação, saúde e lazer.
Frequentemente, os casos de recrutamento de crianças-soldado são associados não só aos
conflitos internos que se desenrolam em diferentes continentes, mas também às condições políticas,
sociais e econômicas locais. Se, por um lado, muitas crianças seriam raptadas e forçadas a uniremse às partes beligerantes, por outro lado, algumas se alistariam de forma voluntária, como forma de
garantir a sobrevivência em um contexto no qual não há mais uma estrutura familiar e estatal capaz
de garantir apoio à criança e a seus direitos básicos (MACHEL, 1996).
Essas são algumas das características gerais traçadas quando se pensa na utilização de
crianças-soldado: a criança como vítima de um conflito que propaga a violência e como vítima de
um Estado que não tem condições de garantir o bem-estar da população. A criança-soldado é,
consequentemente, o objeto da segurança em análises que enfatizam a proteção do indivíduo,
principalmente da criança. Apesar de esses aspectos parecerem obrigatórios em um estudo sobre o
tema em questão, eles carregam em si concepções de um discurso liberal que pode obscurecer
alguns pontos também relevantes sobre o assunto, porém pouco explorados.
A intenção do presente texto é explicitar dois pontos: em primeiro lugar, como a partir de
um discurso liberal cria-se a imagem tradicionalmente associada à criança-soldado; em segundo
lugar, colocar em evidência questões não tão exploradas quando se trata das crianças-soldado, como
o recrutamento voluntário e os incentivos à violência oferecidos às crianças. Para isso, as análises
de Mark Duffield (2001; 2010) e David Keen (2000) serão úteis.
11
“Any person below 18 years of age who is or who has been recruited or used by an armed force or armed group in
any capacity, including but not limited to children, boys, and girls used as fighters, cooks, porters, messengers, spies or
for sexual purposes. It does not only refer to a child who is taking or has taken a direct part in hostilities” (UNICEF,
2007, p. 7).
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O discurso liberal e o recrutamento de crianças-soldado
Sobretudo a partir da década de 1990, assiste-se a uma onda de intervenções, principalmente
visando assegurar os valores liberais considerados universais e que devem ser garantidos em
qualquer parte do mundo, como as instituições e as práticas democráticas. Soma-se a isso o impulso
que a chamada “securitização” ganhou principalmente após o 11 de setembro, de forma a prevenir
riscos possíveis, não só advindos de ações terroristas, mas também riscos econômicos, ambientais e
societais (HIRST, 2014). Tudo isso contribui para a difusão das ideias liberais e do
internacionalismo liberal. Conforme destaca Hirst:
A premissa básica do internacionalismo liberal é que a paz e a segurança somente podem
estar asseguradas em um mundo dominado por democracias, no qual a institucionalidade
multilateral constitui instrumento central. Primeiramente, esta fórmula inspirou a criação da
Liga das Nações [...]. Logo, foi utilizada na Carta do Atlântico, que levou à fundação da
ONU em 1945 e à retomada com afinco em 1989, quando terminou a Guerra Fria. Com o
fim da Guerra Fria, o internacionalismo liberal experimentou novo impulso, que, por sua
vez, conduziu a dois desdobramentos paralelos. O primeiro – de natureza conceitual e
normativa – compreende a intervenção como um dever, especialmente frente a
determinados cenários que justificariam soberania encurtada e contida em nome de ação
externa salvadora. O segundo diz respeito à importância crescente das ações militares para
a eliminação dos focos de “ameaças à paz mundial”, que tanto seriam conduzidas
unilateralmente como por meio de mandatos multilaterais. Neste caso, o conceito de
ameaça internacional adquiriu sentido especialmente lasso, impreciso e muitas vezes
desproporcional. (HIRST, 2014, p. 10).
Nesse contexto, outra dimensão da soberania estatal ganha espaço: a “soberania
compartilhada”, que, segundo Hirst (2014), serviria para lidar com situações nas quais o exercício
da soberania convencional já “não funciona”. Isto é, os mandatos da ONU legitimariam a suspensão
da capacidade de um Estado de controlar sua situação interna, já que este seria supostamente
incapaz. Essas intervenções multidimensionais remetem a um intervencionismo “que se impunha
independentemente de particularidades e idiossincrasias de culturas políticas locais” (HIRST, 2014,
p. 15).
Essa responsabilidade de proteger carrega em si os princípios da Segurança Humana, ou
seja, de proteger o indivíduo de um Estado que não garante os direitos básicos (SLAUGHTER,
2011). Apesar de o debate sobre a Segurança Humana e a responsabilidade de proteger parecerem
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recentes, ambos guardam raízes no liberalismo clássico do século XVIII. Conforme Emma
Rothschild (1995) argumenta, a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, consistia nos direitos
de liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão, ou seja, eram condições do indivíduo,
um direito privado. Os princípios de segurança do final do século XX constituem, portanto, uma
retomada das políticas dos séculos XVIII e XIX. Os Direitos Humanos de 1948 estão também
contidos nos direitos americanos e na Revolução Francesa. Esses direitos começam com a
segurança do indivíduo, uma segurança que garanta o livre usufruto da propriedade, o direito de
participação política e que o indivíduo não será perturbado pela violência. Porém, esses ideais
serviram para legitimar intervenções em outros Estados, em nome da defesa da segurança.
O problema dessa série de intervenções é querer disseminar um modo único de tratar os
conflitos e reconstruir Estados. Esse modo liberal de intervenção utiliza as lentes da Segurança
Humana, percebendo a criança somente como a vítima do conflito e obscurece as particularidades
dos contextos em que elas estão inseridas. Por isso, cabe agora analisar outros fatores importantes
quando se trata das crianças-soldado, que vão além da ótica liberal.
Princípios universais e incentivos à violência
Apesar da construção desse discurso que pode ser visto em documentos oficiais da ONU e
nas atividades de algumas ONGs, há outros fatores que podem ser levados em consideração quando
se trata das crianças em conflitos armados, mas que não são tão frequentemente citados. Duas
perspectivas nos ajudarão a expor essa análise. Primeiramente, a discussão que o autor Mark
Duffield (2010) traz sobre a universalidade do liberalismo no processo de reconstrução de um
Estado e, posteriormente, a abordagem de David Keen (2000) sobre os incentivos à violência.
Criticando justamente as noções do liberalismo já vistas anteriormente, Duffield contraargumenta a universalidade dessas categorias liberais. Uma característica do liberalismo é
justamente sua tendência de ver nos povos não ocidentais a falta de requisitos necessários para uma
existência adequada. Para suprir essa inadequação, o desenvolvimento aparece como uma forma de
fornecer a solução para esses povos na forma de uma tutela moral. Duffield (2010, p. 61) alega que
“Através do apoio e da educação fornecida externamente, o desenvolvimento promete transformar
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uma vida inadequada em uma vida plena” (tradução nossa)12. Portanto, o desenvolvimento também
seria uma forma de governar o outro na medida em que muda comportamentos e atitudes e impõe
uma solução considerada adequada. Por isso, o desenvolvimento tem funcionado como uma
tecnologia liberal da segurança.
O autor ainda argumenta que, ao ditar o modelo de desenvolvimento que deve ser seguido,
as agências da ONU e as ONGs não objetivam levar para esses lugares que passam por conflitos os
mesmos níveis de desenvolvimento e proteção social que desfrutam, por exemplo, países mais
desenvolvidos. Pelo contrário, Duffield defende que, através das noções de sustentabilidade,
necessidades básicas e de Segurança Humana, a maneira liberal de desenvolvimento funciona para
reproduzir e manter a divisão entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Em suma, o objetivo
seria manter as desigualdades de desenvolvimento e prover somente aquele desenvolvimento
mínimo para conter as populações mais pobres em seus respectivos países, evitando assim, ondas
migratórias para países mais desenvolvidos. Seria uma política então de contenção, a fim de conter
as populações nos países menos desenvolvidos, evitando que tragam problemas relacionados ao
subdesenvolvimento para as áreas mais desenvolvidas.
Ademais, Duffield (2001) critica o modo de resolução dos conflitos que se foca, geralmente,
somente no Estado em que o conflito ocorre, e não na rede de relações que envolve determinado
conflito. Nesse ponto, é necessário ressaltar a concepção que o autor apresenta de “guerras em rede”
(network wars) (2001, p. 21), no sentido em que os atores estatais e não-estatais formam uma rede
de relações que mantêm e perpetua a guerra. Portanto, não haveria como acabar com um conflito
apenas com medidas dentro de determinado Estado. O mais eficaz seria romper essa rede de
relações transnacionais que financia e fortalece o conflito. Porém, isso demandaria desmantelar
atividades econômicas em outros países, inclusive naqueles que enviam ajuda humanitária para o
local do conflito ou aqueles que têm peso importante nas decisões da ONU.
Já David Keen (2000) traz uma importante contribuição ao romper com a ideia de que o
conflito armado é necessariamente uma “quebra” ou “colapso” da ordem vigente, e que os conflitos
consistiriam em uma interrupção do processo do desenvolvimento. Keen defende que a guerra não
seria irracional, como uma guerra de todos contra todos, em seu estilo mais selvagem. A guerra
12
“Through externally provided support and education, development promises to make incomplete life full and
wholesome” (DUFFIELD, 2010, p. 61).
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pode ser, para esse autor, a possibilidade de emergência de um sistema alternativo de poder e
proteção. Essa perspectiva decorre da concepção de violência que o autor traz. A violência pode ser
entendida de dois modos: “top-down”, ou seja, a mobilização da violência por grupos dominantes
como políticos e empresários, por motivos econômicos ou políticos, e “bottom-up” que se refere à
violência praticada por civis comuns ou soldados do baixo escalão, como uma solução para seus
próprios problemas. Esse envolvimento com a violência pode servir para funções econômicas,
psicológicas e de segurança. Mais do que isso, a violência pode ser um fim em si mesma, visto que
se engajar em abusos e crimes traz recompensas imediatas. Assim, a violência é o fim e a guerra é
apenas um meio para se chegar a esse fim.
A participação em grupos armados durante um conflito, por exemplo, pode ser entendida
nesse tipo de violência, ou seja, pode ser uma forma de proteção, de vingança ou mesmo de defesa.
Para aqueles que implementam a violência, ela serve a interesses que se prolongam no tempo à
medida que a violência também se prolonga. Nesse sentido, pode haver vantagens para
determinadas partes beligerantes em manter um conflito armado e não mais em vencê-lo. Algumas
dessas vantagens seriam o uso da violência contra os civis; o controle do comércio local; a
exploração do trabalho em favor de uma das partes beligerantes (até mesmo a escravidão ou formas
análogas a ela); o acesso à terra, água e recursos naturais; benefícios extraídos do envio de ajuda
humanitária; e o saque de civis.
Mas em que medida as abordagens de Duffield (2001; 2010) e Keen (2000) ajudam a
entender o caso das crianças-soldado? Apesar de existir uma legislação que protege as crianças
durante um conflito armado (como o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da
Criança relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, de 2002) é difícil impedir seu
recrutamento apenas com base em documentos. As ações da ONU e de algumas ONGs tendem a
tratar o assunto procurando uma solução universal para o tema, que estaria contida nos princípios
liberais. Entretanto, ao tratar o emprego de crianças-soldado a partir de princípios considerados
universais, pode-se obscurecer as particularidades de cada conflito, e são essas particularidades, por
vezes ignoradas, que nos levam a entender o porquê do recrutamento. Especificidades culturais e a
imagem que cada sociedade tem da criança e da infância podem interferir no processo de
reintegração à vida civil de uma criança-soldado e em como essa criança se enxerga no grupo
militar em que foi incorporada.
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Além disso, considerar o recrutamento de crianças-soldado como um problema de segurança
internacional como a ONU faz, focando-se nos aspectos da Segurança Humana, ou seja, na proteção
individual da criança, seria uma forma de desviar a atenção de outros aspectos relevantes, como o
modo pelo qual os grupos armados são financiados, qual a relação dos demais países com um
Estado cujas forças armadas nacionais recrutam crianças, quais as relações comerciais desse Estado
com outros países, porque recrutam crianças-soldado, se o grupo armado age internacionalmente,
etc. Não se deve esquecer que, enquanto os grupos continuarem sendo financiados e não se romper
essa rede de relações, eles continuarão empregando crianças. Desse modo, enquanto ainda houver
incentivos à violência e enquanto a utilização de crianças em conflitos armados for lucrativa e
cômoda, será difícil interrompê-la.
O recrutamento de crianças-soldado em conflitos armados, em suas diferentes formas, deve
ser visto não só como a vitimização da criança forçada a se engajar em grupos armados que as
sequestram ou as obrigam a trabalhar, mas também como uma possibilidade de terem proteção e
segurança. Ou seja, em determinados contextos, participar ativamente de um conflito como uma
criança-soldado é um incentivo à violência e uma forma da própria criança, juntamente aos grupos
ou forças armadas, estabelecer recompensas imediatas através da violência, pois as crianças-soldado
uma vez recrutadas podem ser levadas a participar do crime e dos benefícios do crime, percebendo
como eles trazem vantagens como uma espécie de licença para roubar, explorar o trabalho, explorar
civis e espalhar o medo.
É verdade que tratar o emprego de crianças-soldado como um problema de segurança
internacional, que contraria toda a legislação já estabelecida sobre o assunto e os princípios liberais,
chama mais atenção e confere mais urgência para a resolução desse assunto. Não obstante, buscar
uma fórmula universal para lidar com o tema impede enxergar as particularidades dos conflitos que
utilizam as crianças-soldado.
Considerações finais
Conforme visto, as constantes violações contra civis durante conflitos armados e o
aprofundamento dos estudos sobre segurança contribuíram para a maior relevância do tema das
crianças-soldado. O desenvolvimento dos estudos de segurança também contribuiu para ver a
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questão de outra forma, haja vista a abordagem da segurança como um tema multissetorial, a qual
explicita que os temas da agenda de segurança não são estritamente militares, mas podem envolver
uma pluralidade de questões, dependendo da forma como são interpretados em determinado
contexto sócio-histórico. Essa perspectiva iniciou-se quando Buzan, Wilde e Waever (1998), na
década de 1980, introduziram a ideia de que o setor militar é apenas mais um setor dos estudos de
segurança, que incluem também os setores ambiental, econômico, societal e político. A partir disso,
há um entendimento de que a agenda de segurança não envolve questões apenas militares, mas
também questões que extrapolam a lógica estadocêntrica.
Os estudos sobre Segurança Humana, conforme já citado, os quais se baseiam na ideia de
que as ameaças aos indivíduos estão mudando e intensificando-se, aborda a tradição
humanocêntrica, ou seja, enfatizando as condições necessárias para que os indivíduos tenham
segurança. Trata-se de enxergar os impactos locais e globais dos conflitos em variados âmbitos
como econômico, da alimentação, da saúde, do ambiente, pessoal, comunitário e político.
Desse modo, com as atenções da sociedade internacional – acadêmicos, organizações não
governamentais, organizações internacionais – voltadas para a segurança do indivíduo,
principalmente dos civis em contexto de guerra, aliado à imagem já construída da infância e da
criança, reforça a postura da ONU que, em seu relatório, afirma:
O envolvimento sistemático do Conselho de Segurança sobre a questão de crianças e
conflitos armados representa um elemento-chave da estratégia de defesa do Escritório do
Representante Especial. Com seis resoluções do Conselho de Segurança dedicadas
especificamente à questão das crianças e os conflitos armados desde 1999, a questão está
agora firmemente na agenda do Conselho, em que se reconhece que ela representa uma
ameaça legítima para a paz e a segurança internacionais (ONU, 2005, p. 4, tradução
nossa).13
Legitimando tal prática como uma ameaça à Segurança Internacional e aproveitando-se dos
estudos de Segurança multissetorial, a Organização abre precedentes para tomar medidas
13
“The systematic engagement of the Security Council on the issue of children and armed conflict represents a key
element of the advocacy strategy of the Office of the Special Representative. With six Security Council resolutions
dedicated specifically to the issue of children and armed conflict since 1999, the issue is now firmly on the agenda of
the Council, where it is recognized that it presents a legitimate threat to international peace and security” (ONU, 2005,
p. 4).
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extraordinárias de proporção internacional contra o emprego de crianças em conflitos armados.
Porém, os desafios que as Nações Unidas enfrentam consistem em estabelecer perguntas além
daquelas guiadas puramente por princípios liberais e ir mais além, questionando porque os Estados
ou grupos armados dentro dos Estados empregam crianças-soldado; quais funções essas crianças
desempenham no conflito; quais as relações políticas e econômicas das partes beligerantes com
outros setores da sociedade; o que faz determinado conflito ser lucrativo e prolongar-se no tempo.
Afinal, ao dizer que a utilização de crianças-soldado é uma ameaça à paz e à Segurança
Internacional, pressupõe-se que os inimigos seriam as partes beligerantes que empregam tais
crianças. Para combater o inimigo, é fundamental conhecê-lo. Portanto, as perguntas que devem ser
feitas vão além da estigmatização dos chamados “Estados falidos” e de Estados não democráticos.
Não menos importante, também é necessário questionar qual a concepção de “infância” que
cada sociedade (principalmente as não ocidentais) possui. No caso das crianças-soldado, a infância
é o valor a ser protegido e que pode até justificar uma intervenção, haja vista que já existe uma
ampla legislação em defesa das crianças em conflitos armados e uma intervenção desse tipo ou a
manutenção de uma intervenção em nome da defesa da infância e dos direitos básicos da criança
dificilmente seria deslegitimada pela sociedade internacional e opinião pública. Porém, uma visão
desse tipo ignora que, quando já inserida em uma situação de conflito, a criança encontra incentivos
nas formas de violência que perpetuam sua atuação em determinado grupo, rompendo a análise
tradicional da criança como a vítima, pois nessas situações, uma criança na linha de batalha
constitui, ela mesma, uma ameaça real para a vida de outros civis.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
A Ajuda Pública ao Desenvolvimento Portuguesa e o Pós-colonialismo14
O argumento inicial deste
texto se relaciona ao fato da
cooperação portuguesa ter uma
grande dificuldade em produzir
um
discurso
coerente
e
estruturado. Há a obstrução de
lógicas de desenvolvimento locais
pela falta de substrato teórico da
sua abordagem e pela sua
fragilidade
institucional.
O
objetivo central é propor um novo
enquadramento teórico, baseado
na teoria Pós-colonialista das
Relações Internacionais, para
melhorar a eficácia da Ajuda
Pública
ao
Desenvolvimento
(APD) portuguesa e torná-la mais
justa para os países que dela são
beneficiários.
Gabriela Levy Dinkhuysen15
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / 28-39
Palavras-chave: Ajuda Pública ao
Desenvolvimento, Portugal, Póscolonialismo.
Introdução
Atualmente a Política de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) portuguesa, apesar de
sucessivos avanços, é ainda altamente descoordenada e dispersa entre diversos atores. Por haver
14
Este texto foi produzido no âmbito do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra e visa analisar a política de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) portuguesa através da perspectiva
teórica do Pós-colonialismo.
15
Mestranda em Estudos do Desenvolvimento pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) e graduada em Relações
Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
uma falta de direcionamento central há um fenômeno, considerado único no mundo, que é uma
grande diversidade ministerial no quadro da cooperação externa e de APD (CAD, 2010, p. 54). Isto
é, há uma abundância de atores que promovem políticas de cooperação internacional o que, em
conjunto com a falta de direcionamento político e de enquadramento teórico, contribui,
inevitavelmente, para um quadro de desperdícios e sobreposição de projetos (CAD, 2010, p. 56).
A falta de enquadramento teórico da cooperação transparece também na linguagem que é
usada nesse contexto. As propostas, diretivas e análises da ação externa portuguesa ainda são
marcadas, bem como de outras ex-potências coloniais (STIRRAT, 1997, p. 70), por uma linguagem
pouco cuidada, e que pode ainda hoje ser vista como colonial16. Também se evidencia, na forma
como são tratados os países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) no âmbito da APD,
uma abordagem que ignora todo um passado histórico e acaba por ter, também, uma visão
marcadamente colonial (PEIXOTO, 2010, p. 16).
Por outro lado, essa diversidade ministerial não é uma coisa nova, pelo contrário, foi logo
com a última onda de descolonização dos territórios ultramarinos, em 1974, que a descoordenação
se mostrou um problema para as políticas de cooperação portuguesas. Segundo João Gomes
Cravinho (2004, p. 49), essa característica é um reflexo direto das realocações que foram feitas dos
funcionários públicos com responsabilidades administrativas nas ex-colônias. Ele argumenta
também que muito, do inicio da cooperação portuguesa, foi baseado em promover e proteger os
interesses dos portugueses nas ex-colônias, fazendo uso desses funcionários que ocupavam lá
cargos administrativos e que foram realocados para o Estado português: ele chama a esse fenômeno
de “livre iniciativa institucional” (2004, p. 51). Cravinho argumenta ainda que:
Caricaturizando (...), podemos dicir que a xénese da cooperación portuguesa está
fortemente ligada a un proceso de apropiación descoordinada de recursos públicos por parte
dalgúns funcionarios, co obxectivo de levar a cabo actividades cuxa xustificación se
encontra no plano da relación afectiva que eses funcionarios nutrían con África.
(CRAVINHO, 2004, p. 52).
Foi apenas no início da década de 1980 que os acordos oficiais de cooperação para o
desenvolvimento foram sendo organizados sistematicamente, dentro de um quadro relativamente
16
Termos que são usados sem nenhum enquadramento teórico como “Comunidade local”, “população local”,
contribuem para a construção de uma imagem que diferencia entre “nós” e os “outros” (COOK, 2001, p. 21).
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
unificador (CRAVINHO, 2004, p. 50). Com o tempo as ações foram estruturadas de maneira a
responder e a promover uma série de regras e objetivos comuns. Hoje é possível afirmar que a
cooperação portuguesa deu um salto qualitativo, reconhecendo suas próprias limitações e
procurando agir de acordo com diretivas internacionais do Comitê de Apoio ao Desenvolvimento da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (CAD-OCDE)17. No entanto,
apesar dos avanços, a APD portuguesa continua sem um direcionamento teórico e sofre, ainda, de
uma debilidade institucional, o que acaba por permitir a discricionariedade dos atores nas políticas
desta área.
Pode-se dizer que a APD portuguesa ainda retêm um caráter passional que adquiriu no início
da sua história. Por essas razões, deve haver uma nova forma de pensar a cooperação para que ela
seja mais profissionalizada e possa ser mais eficaz em seus projetos, respeitando, em primeiro lugar,
os interesses dos países chamados de beneficiários. Para que estes objetivos sejam conquistados,
será aqui proposta uma nova abordagem, alicerçada na teoria pós-colonialista e, tendo por base, os
autores já referidos.
Esta análise tem por referência estudos já realizados sobre a influência e os resquícios do
poder colonial nos países subdesenvolvidos, bem como sobre as suas novas formas. Escobar (1995)
construiu a ligação entre imperialismo e o desenvolvimento promovido pelos países desenvolvidos
através da teoria pós-desenvolvimentista. Da mesma forma, Cook (2001) e Vashee (1995) mostramnos a forte influência dos países desenvolvidos na administração e no fornecimento de APD. Dipesh
Chakrabarty (1992), Gayatri Chakravorty Spivak (1988), Edward Said (1975) e Siba Grovogui
(2010) falam sobre a teoria pós-colonialista e as respostas que esta dá aos problemas atuais.
O Pós-colonialismo
A preocupação central do discurso pós-colonial é em alterar as perspectivas das teorias
políticas e de Relações Internacionais. Por isso há, em primeiro lugar, um reconhecimento de que as
teorias que são hoje mais utilizadas e constantemente citadas têm uma perspectiva que está situada
no tempo e espaço. Isto é, corresponde e, por vezes, reifica determinados interesses de um
17
Como ficou reconhecido na última análise do CAD em Portugal (2010, p. 11).
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determinado grupo social de região e contexto específicos (NAYAK; SELBIN, 2010, p. 2-3).
Através dessa constatação, é possível perceber que existe, efetivamente, uma separação entre
aqueles que criam conhecimento e são ouvidos (as antigas metrópoles, o norte global ou ocidente18),
e aqueles sobre os quais o conhecimento é aplicado (antigas colônias, ou o sul global) (SANTOS,
2011, p. 30). Há, portanto, um desfasamento entre sujeito e objeto da teoria, o qual é causado
essencialmente porque o conhecimento acerca do Sul/Periferia global era produzido por pensadores,
filósofos e teóricos da metrópole colonial ou Norte/Ocidente (GROVOGUI, 2010, p. 247). E para
além de ser produzido por um certo grupo sobre outro, esse conhecimento era e ainda é produzido
sem nem sequer ter em conta as experiências nativas, hierarquizando desde aí a informação.
The knowledge resulting from ‘observations’ of and about ‘natives’ was neither constitutively
native knowledge nor based on native concerns. Finally, imperial knowledge was not
universally accessible to natives. Not even the most dedicated metropolitan observers could
make up for the political and economic processes that left vast majorities of colonial
populations in abject poverty and illiteracy. (GROVOGUI, 2010, p. 250).
Em um de seus textos mais difundidos, Dipesh Chakrabarty (1992, p. 2) fala da necessidade
dos historiadores do, até então, chamado Terceiro Mundo se remeterem constantemente às obras
europeias, enquanto que, por sua vez, os historiadores europeus não sentem a necessidade de
reciprocar. Esse fenômeno mostra novamente a hierarquização do conhecimento, posicionando o
europeu, suposto conhecimento teórico e universal, por cima do resto, visto como conhecimento
prático, inaplicável em outros contextos. Esta hierarquização leva à conclusão de que todo o
conhecimento deve derivar do europeu (CHAKRABARTY, 1992, p. 3), bem como todos os
resultados devem convergir para o mesmo lugar, visto que somente esse sistema é passível de ser
universalizado. Sendo assim, todo o resto do conhecimento deve ser apagado ou confinado à
classificação de superstição. Através desse discurso, em pouco tempo, histórias foram apagadas,
tradições medicinais foram rebaixadas a crendices e destituídas de valor, e muito do conhecimento
tradicional autóctone foi classificado como primitivo. Esse desfasamento entre sujeito e objeto
serviu também como uma reafirmação das teorias vindas do Norte e, como se fosse a confirmação
18
Fundada por Immanuel Wallerstein (1974), a teoria do Sistema Mundo Capitalista distingue entre países do Norte
global, que concentram os centros de poder, e do sul periférico, que obedecem/respondem ao centro e dificilmente
conseguem se desvincular desta relação, que é fundamentalmente de dependência.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
de uma profecia, motivou a perseguição, a utilização indiscriminada de vidas humanas, a
exterminação de sociedades inteiras e a desqualificação de culturas milenares em nome da
construção de sociedades ditas civilizadas19. Muitas dessas violências foram fruto direto ou indireto
de um discurso aparentemente despretensioso e ingênuo.
Edward Said argumenta em sua obra que esse discurso aparentemente desinteressado e
ingênuo contem um complexo aparato de manutenção da dominação do Norte (DADDOW, 2013, p.
235). Na sua obra Said analisa o Oriente e os mecanismos pelos quais este foi definido por oposição
ao ocidente e, por isso, representaria tudo aquilo que o segundo não era. Said (1975, p. 42) mostra
como essa exotização e monopolização do discurso sobre o outro perpetua, também na mentalidade
do próprio colonizado, o colonialismo e ainda vai para muito além da dominação colonial efetiva.
Ele explica que o conjunto de ideias orientalistas
(...) explained the behavior of Orientals; they supplied Orientals with a mentality, a
genealogy, an atmosphere; most important, they allowed Europeans to deal with and even
to see Orientals as a phenomenon possessing regular characteristics. But like any set of
durable ideas, Orientalist notions influenced the people who were called Orientals as well
as those called Occidental, European, or Western (…). If the essence of Orientalism is the
ineradicable distinction between Western superiority and Oriental inferiority, then we must
be prepared to note how in its development and subsequent history Orientalism deepened
and even hardened the distinction. (SAID, 1975, p. 42).
Gayatri Spivak chamou à essa monopolização do discurso e definição do outro de violência
epistêmica (1988, p. 281). No entanto, o objetivo destes autores não é propor uma nova história ou
uma mais bem contada, mas sim compreender as raízes e construções que estão subjacentes na
história oficial.
Através desta nova perspectiva será possível questionar o 'velho' conhecimento e produzir
num novo com base em novas fontes, fazendo justiça àqueles que nunca foram ouvidos. O Póscolonialismo se mostra especialmente útil para questionar e alterar as perspectivas de países como
Portugal que, como será argumentado a seguir, ainda mantêm um discurso marcadamente colonial
em relação às suas antigas colônias e, consequentemente, continua por produzir desigualdades e
injustiças utilizando esse tipo de discurso na sua política de Apoio ao Desenvolvimento.
19
Sobre algumas das violências coloniais ver Eduardo Galeano (2011).
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
A Cooperação Portuguesa Hoje
Este ano (2014) foi lançado o documento Novo Conceito Estratégico da Cooperação
Portuguesa. Este surge como uma tentativa de reorganizar as prioridades, os atores e as ferramentas
de que Portugal dispõe para sistematizar todas as iniciativas no âmbito da ajuda e da cooperação
para o desenvolvimento. Este documento é um novo passo para uma maior centralização
governamental e, consequentemente, maior coerência e eficácia para a cooperação portuguesa. No
entanto, há ainda um longo caminho a percorrer para superar alguns obstáculos, como a fragilidade
da estrutura institucional dos órgãos de cooperação portugueses, a ausência de enquadramento
teórico dessas iniciativas e, fruto das anteriores, a falta de diferenciação entre os efeitos e objetivos
do investimento público do privado. Neste texto serão analisados os dois primeiros e as implicações
destes na concretização das ações de cooperação para o desenvolvimento.
- Fragilidade Institucional
Devido à sua curta e conturbada história, a cooperação portuguesa ainda não conseguiu
atingir um nível institucional estável. Houve, desde o início, a já referida diversidade ministerial, a
qual, até hoje, o governo não conseguiu centralizar. Essa grande descoordenação impede Portugal
de alcançar patamares de excelência na sua ajuda. A fragilidade pode ser verificada na quantidade
de mudanças institucionais estruturais que ocorreram em um período de apenas vinte anos. Desde
1994 foram criadas ou reformuladas seis instituições de cooperação para o desenvolvimento20.
Muitas vezes as reformas foram encaradas com grande motivação, mas logo voltavam a
estagnar e geravam um sentimento de resignação (CRAVINHO, 2004, p. 54). Essas constantes idas
e vindas na visão estratégica da cooperação portuguesa mostram a clara falta de solidez desses
órgãos, ficando, assim, sujeitos à discricionariedade dos atores e à falta de profissionalismo dos
mesmos21. No documento do IPAD sobre a cooperação portuguesa de 1996 a 2010, o Presidente do
20
ICP, FCE, APAD, IPAD, SOFID, Camões I.P. (IPAD, 2011)
Por exemplo a desarticulação de pontos importantes na cooperação com a entrada de Manuela Franco como Ministra
dos negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (CRAVINHO, 2004, p. 65).
21
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organismo explicita que o instituto não pretende fazer juízos de valor e, tampouco, constranger a
ação dos ministérios como atores individuais da cooperação (CORREIA, 2011, p. 19), tornando
latente, desde aí, a fraqueza do organismo central como coordenador efetivo e colocando entraves à
vontade de tornar a cooperação portuguesa mais coesa e eficaz. A situação é ainda mais complicada
se verificarmos que, efetivamente, muitos ministérios agiam à revelia uns dos outros, impedindo
uma utilização eficaz dos recursos (CAD, 2010, p. 56). Em contrapartida, no prefácio do novo
conceito estratégico para a APD, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da
Cooperação, Luís de Campos Ferreira, reconhece o problema e afirma o compromisso do Estado em
resolvê-lo. No entanto, ao olhar de forma mais aprofundada para o conceito, é possível perceber que
esta será uma das questões centrais mais difíceis de responder.
Para além disto, o contexto da economia portuguesa é pouco favorável. Portugal encontra-se
sob um Programa de Ajustamento Estrutural imposto por uma conjunção de instituições, o que
levou à perda de sua capacidade de decisão plena sobre seus orçamentos. Essa incapacidade
configura-se como um problema real para os órgãos de cooperação e terá de ser superada através de
outras iniciativas. Para isso, o maior esforço deve ser no sentido de definir claramente os objetivos
da cooperação e melhorar as formas de avaliação dos projetos. Apenas assim poderá haver uma
coordenação efetiva do organismo central, identificando áreas de atuação e circunscrevendo os
atores adequados a cada uma delas. Essa resposta está diretamente associada com a outra questão
central, que é a falta de um discurso coerente em termos teóricos nas propostas e avaliações
portuguesas.
- Ausência de enquadramento teórico
Para melhor compreender as implicações deste problema, é útil observar o questionamento
feito por Grovogui (2010, p. 251) sobre algumas considerações teóricas de Immanuel Kant. Será
que os imperativos categóricos kantianos podem ser uma resposta completa para a criação de uma
moral universal se ele nem sequer faz referência ou questiona uma instituição tão poderosa e
profundamente enraizada na sua sociedade contemporânea como a escravidão? Da mesma forma,
poucas tentativas foram feitas no sentido de questionar a atuação portuguesa do passado para
repensar a atuação presente. Torna-se, portanto, extremamente problemático manter um discurso
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sem compreender as implicações reais de se aplicar uma moral e ética universais que não foram
questionadas. A mera continuação da política de cooperação desde a época salazarista obscurece as
raízes da moral portuguesa na sua ajuda e facilita, assim, um discurso de moral neutral, universal e
inquestionável. Até mesmo o ponto de viragem da história portuguesa com as ex-colônias, a guerra
colonial, permanece axiomático, causando assim uma duplicidade de histórias, aquela contada pelo
ponto de vista da metrópole e a contada pela perspectiva das colônias libertas.
De modo geral a abordagem portuguesa da guerra “colonial” está embebida numa recusa do
reconhecimento de outras memórias sobre este conflito e numa falta de problematização
dos conteúdos, das razões e dos projetos políticos ali envolvidos. Situação que parece
reproduzir a ausência de uma verdadeira confrontação com o fenômeno colonial, isto é, o
fato de que, em termos epistêmicos, Portugal nunca problematizou o que foi realmente a
colonização. Pelo contrário, conservou, no essencial, uma leitura que justifica e não desafia
a história ocidental da colonização. Na maioria das vezes a intervenção colonial é vista
pelos portugueses como uma experiência positiva, de bons resultados. Sua essência, a
violência de negar ao outro o direito de ser percebido como igual, é silenciada e relegada ao
esquecimento. (PEIXOTO, 2010, p. 17).
Por outro lado, esta falta de questionamentos não só atrapalha a APD portuguesa como
também pode vir a ser contraproducente. Portugal fornece muito da sua ajuda com
condicionalidades, ou seja, grande parte dos chamados receptores das ações tem de dar
contrapartidas diretamente ao Estado português. Isto mostra uma forma de neo-colonialismo, como
argumenta Manuel da Rocha (2004, p. 210) sobre o caso de Angola:
Na verdade, o conjunto das suas exportações e importações representou praticamente 60%
do respectivo Produto Interno Bruto em 1999, o que revela um continente africano voltado
para fora, dirigindo-se a maior parte das suas exportações e provindo o grosso das suas
importações principalmente da Europa. Esta geografia dos fluxos comerciais denuncia que
os modelos coloniais de extroversão económica ainda não foram ultrapassados e que
poderão mesmo estar reforçados por modalidades implícitas de neocolonialismo económico
moderno, veiculadas pela ajuda pública ao desenvolvimento, que normalmente é
condicionada e sujeita a uma série de regras e critérios, cujas consequências finais são o
aumento das exportações dos países doadores e o regresso aos países de origem de mais de
80% da ajuda concedida. (ROCHA, 2004, p. 210).
Isto reflete claramente o que Grovogui (2010, p. 256) chamou de um aumento do défice
democrático. O grande paradoxo, ele argumenta, é que as preocupações humanitárias passaram a ser
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
um novo disfarce para um velho discurso de dominação.
Para além do risco de se utilizar o discurso humanitário como disfarce para a dominação
política, o Estado português reafirmou, no novo documento sobre a sua estratégia de ajuda, o apoio
a atuação de empresas nesta área (Governo de Portugal, 2014, p. 30), demonstrando haver ainda
hoje o que Cravinho (2004, p. 60) chamou de “tradicional confusão entre internacionalização e
cooperação”. No novo discurso o que se sobressai é a importância do mercado, a necessidade de
internacionalização e de crescimento econômico e a forte atuação dos atores privados sempre que
possível (Governo de Portugal, 2014, p. 32). Esse discurso é perigoso não tanto pelos seus
instrumentos, mas pelos seus fins. Há poucas referências à importância da responsabilidade no
mercado e esta abordagem do desenvolvimento pode resvalar para uma avaliação errônea dos
efeitos da ajuda. Um país pode se tornar mais estável e de economia mais aberta sem
necessariamente haver um avanço qualitativo na vida da sua população. Esta pode ser a imagem de
uma nova forma de imperialismo, não mais baseado na dominação total e coerciva, mas sim na
dependência do mercado.
As propostas Pós-Coloniais
Não basta, portanto, que o Estado português forneça uma ajuda condicionada e que este
pense ser a mais adequada para o contexto africano, é preciso democratizar verdadeiramente e
permitir que haja amplas discussões, especialmente com os beneficiários. É preciso dar voz àqueles
que não a têm e nunca tiveram. É preciso abandonar o caráter hierárquico, paternalista e neocolonial
que o apoio ao desenvolvimento assumiu desde o principio. Esta visão considera a Europa como o
fim do contínuum atraso-progresso. Termos como 'países menos desenvolvidos', 'subdesenvolvidos',
'em desenvolvimento' estabelecem essa hierarquia e fortalecem a ideia de um continuum evolutivo,
cujo fim, onde a Europa está situada, é a representação máxima do progresso e da modernidade
(CHAKRABARTY, 1992, p. 3).
Ao fornecer APD sem sequer dar visibilidade aos seus resultados e aos interesses de quem a
propôs, estamos confinando o outro ao que nós (ocidente) achamos que é melhor, da mesma forma
como a linguagem que é usada nos documentos portugueses o faz. O termo cooperação é apenas
ilustrativo, uma vez que dentro desses documentos os termos usados passam a ser beneficiários,
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receptores, etc. transformando o outro em mero ouvinte do processo. Converte o outro em ator
passivo, destituído de vontade e de opinião, e leva a concluir que não há proposições locais e nem
desejos, sendo portanto possível apenas exportar um modelo pré-definido, tanto para um país
africano quanto para qualquer outro, tendo sempre como ponto de referência a Europa. A construção
que a Europa fez, como descrito por Edward Said, com o oriente, Portugal fez com suas excolônias.
O pós-colonialismo assume aqui o papel de mediador entre discursos dominantes e
discursos periféricos. O objetivo não é negar tudo que está para trás, mas sim de abrir espaços de
discussão que permitam vozes dissonantes.
Considerações Finais
Depois de analisado o novo documento organizador da estratégia portuguesa de cooperação
para o desenvolvimento, é possível afirmar que ela permanece ainda com grandes problemas ao
nível da sua definição e de seu planejamento. A falta de uma perspectiva teórica e de um órgão
centralizador das ações dificulta a coesão e acarreta outros problemas, como a falta de capacidade
para cumprir com os pontos assentes internacionalmente sobre a efetividade da ajuda e da
cooperação. Para além disso, a falta de coesão põe em risco todos os avanços já feitos por Portugal
em matéria de cooperação, o que pode levar a um retrocesso das ações e das parcerias já
estabelecidas. A falta de definição teórica dificulta também a renovação do discurso e a percepção
completa dos efeitos da APD.
Assim sendo, a teoria pós colonialista pode servir de ponte entre o conhecimento da
metrópole e o das ex-colônias, criando sinergias culturais e identitárias para que seja possível
superar o legado de exclusão, exploração e dominação de um grupo social sobre outro
(GROVOGUI, 2010, p. 264). É, portanto, de extrema importância operacionalizar o Novo Conceito
Estratégico tendo em conta essas dificuldades, para poder caminhar rumo a uma verdadeira
coerência da cooperação portuguesa, construindo, aos poucos, uma nova narrativa mais justa,
acessível, transparente e democrática. Para concluir, Peixoto (2010, p. 17), ao fazer referência sobre
as construções históricas entre Portugal e Angola, reafirma:
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Para escrever esta parte (e outras) de sua história os angolanos necessitam de fontes
coloniais. Para reescrever sua história a partir de uma perspectiva pós-colonial os
portugueses precisam aprender a valorizar as fontes produzidas pelos angolanos. Como
chegar ao diálogo com estas outras narrativas é o grande desafio que os portugueses têm
por enfrentar.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Separatismo Político: o caso da Catalunha
O objetivo deste artigo é
dissipar a visão de separatismo
condenável. Para tanto, estuda o
direito de autodeterminação, o
separatismo político e o direito
de decisão a partir do processo
catalão
de
realização
do
referendo, consulta popular ou
participação cidadã nos anos
2013-2014. A nação política
catalã pretende a legitimação,
livre e democrática, da maioria
sobre
o
desejo
de
sua
comunidade enquanto o Estado
espanhol opõe-se a qualquer
forma de participação cidadã
sobre o contorno de suas
fronteiras. A solução ainda está
longe de qualquer via possível.
Maria Amparo dos Santos Rosello22
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 40-55
Palavras-chave:
Catalunha;
autodeterminação; direito de
decisão; separatismo político.
Introdução
Este artigo versa sobre o movimento separatista catalão; especificamente, sobre o processo
de realização do referendo, consulta popular ou participação cidadã em defesa do direito de decisão
nos anos 2013-2014. A Catalunha deseja o direito de autodeterminação a partir da legitimação, livre
e democrática, da maioria; porém, o Estado espanhol opõe-se a qualquer forma de participação
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Graduanda em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Graduada
em Magistério pela Escola Americana e Colégio Mackenzie e professora particular de Língua e Literatura Inglesa.
Possui extensões universitárias em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP) e Universitat de Barcelona (UB) e
História pelo Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR). Possui experiência na área de Representação e
Processamento da Linguagem, com ênfase em Alfabetização.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
cidadã sobre o assunto alegando (1) a soberania do Estado espanhol referir-se ao todo, (2) a
Catalunha, sendo parte do todo, não ser sujeito político soberano e (3) a territorialidade do Estado
espanhol estar reafirmada na constituição a partir do vocábulo 'indivisível'.
Com a formação e o endurecimento dos Estados modernos, o contorno das fronteiras
sobrepôs-se aos desejos das comunidades. Com a territorialização progressiva do poder, o território
passou a ser a propriedade mais absolutamente inalienável; a fronteira, o bem mais incondicional; e
o Estado, o valor moral mais absoluto. Mesmo havendo o predomínio da democracia na Espanha, e
apesar dos resultados da participação cidadã no dia 9 de Novembro de 2014, a possibilidade de
criação de um referendo condutor de uma eventual secessão e cooperação ainda está longe de
qualquer via possível.
Como, no presente, qualquer movimento independentista é visto como separatismo,
condenável a priori, o objetivo deste artigo é dissipar esta visão. O catalão, por exemplo, busca
reabilitar um direito, e não criar um. O separatismo pode aproximar-nos de uma comunidade
internacional plural ou, pelo menos, mais minimamente plural.
O direito de autodeterminação
De acordo com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (EUA), os
Quatorze Pontos de Woodrow Wilson, a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e a
Resolução A/RES/545 (VI) da Assembleia Geral, o direito de autodeterminação é aplicável à
entidade coletiva povo (em inglês: people). Contudo, no momento de uma possível aplicação, qual a
delimitação desta categoria?
Segundo Mira (2005), há duas vias essenciais para esta delimitação: a via anglo-francesa e a
via alemã. Na anglo-francesa, o vocábulo povo somou diferentes significados durante a história:
conjunto de cidadãos, gentes, nação (a partir dos séculos XVI e XVII), comunidade nacional e
Estado (a partir do século XVIII). Já na alemã, o vocábulo povo ainda permanece ligado à terra,
costumes e origens:
pela teoria extraída de Rousseau, e mais ou menos aplicada na Revolução, a identidade é
clara, e se mantém até a atualidade: a nação é “pessoa jurídica constituída em assembleia
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por indivíduos que compõem o Estado” (Dicionário Robert). (…) Para Hegel, por exemplo
– e é o máximo exemplo –, uma “nação” e um [povo] Volk são mais ou menos a mesma
coisa, enquanto um estado (Staat) é um conceito totalmente diferente: em Filosofia da
História, afirma bem claramente que “os povos podem ter levado uma longa vida sem
estado...”, e também que “sabemos que, das nações..., poucas formam um estado” (MIRA,
2005, p. 86-87, trad. do autor).
Até a década de 1990, compreendia-se o direito de autodeterminação como direito de
descolonização e direito dos Estados. Por exemplo, na leitura de Fábio Comparato sobre o Pacto
internacional sobre direitos civis e políticos (1966):
[o] direito à autodeterminação dos povos, consagrado logo na abertura do Pacto, diz
respeito, em primeiro lugar, à independência dos povos coloniais. Refere-se, também, em
segundo lugar, à soberania de cada Estado independente sobre as riquezas e recursos
naturais que se encontram em seu território (COMPARATO, 2013, p. 298).
Depois da década de 1990, entende-se por autodeterminação “o direito de grupos nacionais
coesos ('povos') de escolher a sua forma de organização política e a sua relação com outros grupos”
(BROWNLIE, 2008, p. 580 apud BORGEN, 2010, p. 1004, trad. do autor) e se assume a aspiração
ao direito de ser como grupo de gente; porém, não como grupo sobre um território.
Um exemplo de aplicação ineficaz do direito de autodeterminação foi o caso de Biafra, em
1967, no qual a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a Grã-Bretanha apoiaram a
Nigéria, os EUA, mesmo apoiando Biafra, alinharam-se com a Grã-Bretanha, e a França apoiou
Biafra. A ONU não se posicionou e a Organização da Unidade Africana condenou a independência,
qualificando-a como tentativa de balcanização. Não obstante, como reflete Chukwerneka Ojukwu,
antigo governador militar do leste da Nigéria:
[d]urante um tempo, houve guerras intermináveis na Europa, incessantes conflitos, até os
velhos impérios europeus serem desmantelados, até os Bálcãs, serem Balcanizados –
depois, chegou a paz... A Europa encontrou a paz a partir da Balcanização, por que não a
África a partir da Biafranização? (apud OKORONKWO, 2002, p. 115, trad. do autor).
Assim, na atualidade, o direito de autodeterminação fica dividido em: (1) direito de
autodeterminação das colônias, ou o direito de uma colônia tornar-se um Estado soberano; (2)
direito de autodeterminação dos Estados, ou o direito de um Estado exercer externamente a sua
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soberania; e (3) direito de autodeterminação das comunidades, ou o direito de uma comunidade
buscar direitos minoritários dentro de um Estado (CRAWFORD, 2006 apud BORGEN, 2010) – por
exemplo, direito de falar uma língua, de praticar uma cultura e de participar na política comunitária.
Segundo Borgen (2010), “[o] diabo mora nos detalhes” (BORGEN, 2010, p. 1033, trad. do autor):
desde o fim do contexto das descolonizações, a discussão deslocou-se da retórica do direito de
autodeterminação para a linguagem técnica da organização/implementação dos direitos de
autodeterminação pelas comunidades (ex. “qual o alcance dos direitos linguísticos dentro da UE
(Ibid., p. 1032, trad. do autor)” ou “como as práticas culturais podem ser reguladas” (Ibid., loc. cit.,
trad. do autor)).
No dicionário de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, no verbete
autodeterminação, “a capacidade que populações suficientemente definidas etnica [sic] e
culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para
escolher a forma de Governo” (AUTODETERMINAÇÃO, 2009, p. 70), dois aspectos são
considerados: um de ordem externa, referente ao “direito de um povo não ser submetido à soberania
de outro Estado contra sua vontade e de se separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito
(Ibid., loc. cit.)”; e outro de ordem interna, referente ao “direito de cada povo escolher a forma de
Governo de sua preferência” (Ibid., loc. cit.). No mesmo dicionário, povo refere-se, no início do
verbete, ao latim populus e, no final, à visão política nacional, sinônimo de Estado e nação.
O problema em questão neste artigo, de ordem externa, é totalmente diverso ao conceito de
etnicidade, pois envolve um território considerado próprio e uma autonomia política formal. Na
sociedade moderna, etnicidade é o efeito de uma interação, não a tendência à independência. Ou,
como exemplifica e esclarece Joan Mira, em Crítica da nação pura (1984):
[o]s porto-riquenhos, em Nova York, supõem um problema étnico, mas em Porto Rico
supõem um problema nacional. Suponho que a diferença seja clara. No Reino da Espanha,
os ciganos representam conflitos 'étnicos' mas os bascos representam um conflito nacional.
No mundo, os judeus podem formar grupos étnicos; em Israel, são uma nação (MIRA,
2005, p. 61-62, trad. do autor).
O termo região também não é inapropriado. Apesar de sua generalização, algumas entidades
sub-Estatais são nações. O termo apropriado é nação sem Estado. As nações sem Estado com
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problemas de direitos minoritários baseiam-se no Vienna Convention on State Succession in Respect
to Treaties, e há, extraoficialmente, a rede Regions with Legislative power (REGLEG) e a European
Free Alliance (EFA) mas nem a convenção nem estas redes pertencem ao recorte deste artigo, por
tratarem de direito minoritários – e não majoritários.
Como o caso da Catalunha envolve um território considerado próprio e um problema de
direitos majoritários, tomaremos o conceito de povo como equivalente ao de nação política; e o
conceito de nação política como definido por Kenneth Minogue (1967): o conjunto daqueles quem
compartilham a percepção de uma falta de poder; como definido por Mira (2005): grupo possuidor
de, ou aspirante ao, poder político suficiente para garantir a própria preservação como grupo; ou
como definido por Water Sulzbach (1943): grupo desejoso de soberania e de Estado próprio.
Também, partiremos da premissa segundo a qual “toda nação política está separada ou é
‘separatista’” (MIRA, 2005, p. 122).
Nem todo separatismo reclama a independência política total, mas todo separatismo
percebe-se, e quer ser percebido, como um todo separado; quer ser percebido não pela identidade do
outro, mas sim pela sua própria identidade.
O Separatismo Político
O separatismo político surge com a formação dos Estados modernos (SEPARATISMO,
2010, p. 1145) e toma forma conforme o Estado cresce e endurece; conforme realiza a sua ação
hegemônica e a progressiva territorialização do poder sob uma nação sem Estado. O separatismo é
um braço de ferro no qual competem duas forças: de um lado, a força da nação sem Estado para
afirmar uma identidade básica de pertencimento e, de outro, a força do Estado para afirmar o seu
espaço de poder.
As aportações de duas correntes teóricas, o liberalismo e a escola austríaca, contêm chaves
interpretativas desta luta de braço. A partir de dois paradigmas diferentes, o hobbesiano e o
althusiano, manifesta-se a visão negativa ou positiva do separatismo. Com a generalização do
paradigma hobbesiano, o direito de autodeterminação do Estado tende a ser percebido como
patriotismo admirável, enquanto o desejo de independência política e econômica de uma nação sem
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Estado tende a ser visto como uma tentativa de quebra do Estado até o ponto de ser tachado de
separatismo, condenável a priori.
O paradigma hobbesiano regula a visão de Estado como contrato prévio, necessário para
estabelecer uma sociedade justa. Antes da integração, a nação sem Estado teria cedido de forma
permanente e irrevogável a sua condição de sujeito político soberano ao Estado em questão. Dois
conceitos em jogo são o de justiça e democracia constitucional. A justiça seria distributiva e a
democracia constitucional justa.
O Estado constitucional e democrático, única forma de organização política capaz de
garantir e proteger os direitos humanos, seria necessariamente considerado justo, pois cada
indivíduo, através do seu véu de ignorância original, teria escolhido participar do mesmo a partir do
hipotético contrato assinado para, desta forma, garantir a igualdade dos direitos político-sociais
fundamentais para todos os membros da sociedade e minimizar as desigualdades econômico-sociais
resultantes (RAWLS, 1999 apud KREPTUL, 2004).
Já no paradigma althusiano, diferentemente do paradigma hobbesiano, a condição de sujeito
político soberano é conservada. A ordem política é concebida federativamente e o governo
pluralizadamente. A condição de sujeito político soberano é compartilhada pelas múltiplas unidades
sociais; inclusive, pela unidade menor, a família (KREPTUL, 2004).
Em cada nível desta consociação multinível, as unidades menores constituem as unidades
maiores. Em cada nível, o governo está sujeito ao consentimento e à solidariedade social.
Desta forma, o termo “consociação” expressa a essência da tentativa de [Johannes]
Althusius melhor do que o termo associação pois este pode ser confundido com a noção
pluralista, moderna e liberal de associacionismo baseado no pertencimento individualizado
e voluntário. Um indivíduo pode associar-se ou se desassociar com facilidade mas uma
unidade pertence à comunidade de forma muito mais comprometida (mesmo que exista o
direito último de resistência e secessão, como Althusius especialmente enfatiza fazendo
referência à Revolta Holandesa (HUEGLIN, 1997, p. 150 apud KREPTUL, 2004, p. 43,
trad. do autor).
Política (em inglês: politics) é substantivo plural. Assim, na concepção althusiana, como o
Estado não é a autoridade última de justiça e democracia constitucional, a opção de secessão é
legítima e viável (KREPTUL, 2004). O consentimento é algo “contínuo e passível de ser retirado a
qualquer hora. Qualquer das unidades sociais, dispondo de meios para tal, pode legalmente
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secessionar-se da unidade social maior à qual delegara autoridade” (LIVINGSTON, 1998, p. 39
apud KREPTUL, 2004, p. 43).
Enquanto a corrente teórica do liberalismo privilegia a fronteira sobre os habitantes, a
corrente teórica da escola austríaca privilegia os habitantes sobre a fronteira. Para o liberalismo, as
fronteiras, ou os Estados, são valores morais absolutos, bens incondicionais. Ou, como reflete Mira
(2005), sobre a territorialização progressiva do poder:
toda fronteira transforma-se logo em sagrada, infinitamente mais sagrada do que as pessoas
que nela vivem (pessoas que se supõe tem de se sacrificar sem discussão, morrer se for
preciso, para a preservação da linha-fronteira, porque o território é mais “patrimônio
nacional” do que as próprias pessoas que compõem a nação, a propriedade mais
absolutamente inalienável. Parece que os estados podem suportar a perda de gente, nunca
de terra. Nem um palmo. Imaginar o próprio mapa reduzido em um pedacinho por
pequenino que seja, provoca brutais descargas de adrenalina. Imaginar a própria
comunidade nacional reduzida em milhares ou milhões de cidadãos (pela migração, por
exemplo) não provoca nada, ou somente vagas lamentações. Os estados existem para
convencer e obrigar as pessoas ao sacrifício extremo pela fronteira. Os exércitos e as
fábricas de armamento encontram nela a sua última razão moral (MIRA, 2005, p. 66-67,
trad. do autor).
Por aproximar-se do paradigma althusiano e por reconhecer a existência de unidades sociais
independentes, contrapeso ao poder coercitivo e monopolístico do Estado, a maior parte dos
pensadores filiados à escola austríaca está a favor do direito de secessão. Para Ludwig von Mises
(1985), prócer do liberalismo econômico total, o Estado ocupa-se apenas do direito de propriedade
privada e, portanto, o direito de escolha da forma de governo pertence aos cidadãos e o direito de
secessão pertence a uma parte dos cidadãos. Portanto,
[s]e uma república democrática acredita que as suas fronteiras atuais... já não correspondem
aos desejos políticos do povo, as mesmas devem ser modificadas pacificamente e
adequadas aos resultados da vontade do povo expressa em referendo (MISES, 1985, p. 108
apud KREPTUL, 2004, p. 56, trad. do autor).
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O Desejo do Direito de Decisão
A comunidade catalã não possui o direito de autodeterminação dos Estados, mas o busca a
partir do desejo do direito de decisão. Um exemplo: as eleições do dia 25 de Novembro de 2012, a
partir das quais se formou a presente legislatura do parlamento, de composição independentista:
54,9% de obediência catalã, representando o direito ao Estado próprio, e 9,6% representando o
direito ao referendo.
Outros exemplos: Manifestações. A manifestação do dia 10 de Julho de 2010, quando
1.500.000 pessoas (segundo estimativa da Òmniun Cultural, organizadora da manifestação) saíram
às ruas de Barcelona com o lema “Somos uma nação. Nós decidimos”. A manifestação do dia 11 de
Setembro de 2012, quando 2.000.000 de pessoas (segundo estimativa da Assemblea Nacional
Catalana, organizadora da manifestação) saíram às ruas de Barcelona com o lema “Catalunha, novo
estado da Europa”. O concerto libertário do dia 29 de Julho de 2013, quando 90.000 pessoas (aforo
máximo) utilizaram a linguagem musical no estádio Camp Nou do Futbol Club Barcelona para
reclamar liberdade com o lema “2014: Nós decidimos”. A cadeia humana do dia 11 de Setembro de
2013, às 17h14, quando aproximadamente 1.600.000 pessoas (segundo estimativa da Assemblea
Nacional Catalana) cobriram de braços dados quatrocentos quilômetros de norte a sul da Catalunha
com o lema “Rumo à independência”. O mosaico humano do dia 11 de Setembro de 2014, quando
aproximadamente 1.800.000 pessoas (segundo estimativa da Guàrdia Urbana, corpo policial
municipal) formaram a letra V, de via (de vontade, votar e/ou vitória) em duas avenidas principais
de Barcelona.
Mais exemplos: A resolução parlamentar do dia 27 de Setembro de 2012, quando ficou
reconhecida a necessidade de um referendo para determinar livre e democraticamente o futuro
coletivo catalão. A resolução parlamentar do dia 23 de Janeiro de 2013, quando foi declarada a
soberania do povo da Catalunha.
Um último exemplo, objeto deste artigo: A forma de participação cidadã do dia 9 de
Novembro de 2014, quando todos os maiores de dezesseis anos com nacionalidade de qualquer
Estado e residência na Catalunha, assim como os catalães residentes no exterior, estavam chamados
a votar. Esta participação cidadã, resultado do pacto de governabilidade catalão para garantir a
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estabilidade parlamentária do governo catalão, foi composta de duas perguntas: “Você quer que a
Catalunha seja um Estado?” e “Em caso afirmativo, você quer que este Estado seja independente?”.
Considerando os valores fundamentais da União Europeia (UE), a defesa política e social do
processo catalão pelo direito de decisão é perfeitamente lícita, pois: (1) o direito de decisão tem
amplo apoio social constatável; por exemplo, a partir da composição da atual legislatura no
parlamento; (2) a realização do referendo, consulta popular ou outra forma de participação cidadã
são propostas como instrumento democrático direto a fim de conhecer a vontade dos cidadãos sobre
a possibilidade da Catalunha vir a ser, ou não, um Estado independente; (3) a realização da
participação cidadã no dia 9 de Novembro de 2014 foi considerada um êxito pelos observadores
internacionais; (4) o processo originou-se em um território com condição de comunidade nacional;
(5) não se pretende efeitos próprios do exercício do direito de autodeterminação, ou seja, não se
supõe a modificação da Constituição Espanhola (CE) a partir dos resultados da participação cidadã,
mas da obrigação política de negociar de boa fé para tentar chegar a um acordo; (6) as instituições
impulsoras oferecem acordo com o Estado para a realização do referendo, consulta popular ou
participação cidadã e (7) não existe proibição clara, inequívoca e não salvável na CE.
Segundo o Tratado da União Europeia (TUE), os valores fundamentais dos Estados
membros são: respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito
e respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.
Todos estes valores fundamentais devem ser respeitados em uma fórmula de compromisso a partir
da qual nenhum seja excluído.
O descumprimento destes valores não pode ser considerado 'assunto interno' dos Estados
membros nem justificado a partir da noção de soberania, pois a aplicação destes valores é exigível
tanto na relação exterior como na relação interior. A UE deve respeitar as funções dos Estados
membros (TUE, Art. 4) – entre elas, a de garantir a própria integridade territorial – mas não deve
aceitar a atuação contra os valores fundamentais (TUE, Art. 2), requisito de ingresso e
pertencimento (BAYONA, 2014).
Contudo, o Estado espanhol utilizou o princípio de constitucionalismo e a justificativa do
Estado de direito para obstaculizar o processo catalão; negligenciando os valores de respeito pela
liberdade (ex. liberdade de expressão), democracia e os direitos do Homem, incluindo os direitos
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das pessoas pertencentes a minorias (ex. direito de participação). Vejamos os principais
acontecimentos dos anos 2013-2014:
a) o parlamento catalão aprovou a declaração de soberania e do direito de decisão do povo. O
Tribunal Constitucional (TC) da Espanha recusou-a.
b) o presidente do governo catalão anunciou o referendo com duas perguntas. O presidente do
governo espanhol afirmou a ilegalidade do referendo, consulta popular ou qualquer outra forma de
participação cidadã.
c) o parlamento catalão aprovou pedir ao congresso espanhol poderes para convocar o referendo. O
congresso espanhol recusou o pedido.
d) a Comissão de Assuntos Institucionais do parlamento catalão aprovou a proposta de lei de
consultas populares não referendarias e outras formas de participação cidadã. O congresso espanhol
recusou-a.
e) Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), partido de obediência catalã, segunda força
parlamentaria catalã, localizada na oposição, defendeu a desobediência civil.
f) a cidadania catalã formou o mosaico humano com a letra V.
g) o parlamento catalão aprovou o apoio à consulta popular.
h) o parlamento catalão aprovou a lei de consultas populares não referendarias e outras formas de
participação cidadã.
i) o presidente do governo catalão assinou o decreto de convocatória da consulta popular. O
presidente do governo espanhol recorreu ante o TC. O TC suspendeu a consulta popular.
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j) o governo catalão apresentou alegações contra a suspensão.
k) o presidente do governo catalão e os presidentes dos partidos de obediência catalã decidiram
manter a consulta popular.
l) o presidente do governo catalão informou aos partidos de obediência catalã a não possibilidade de
realização da consulta popular nos termos do decreto de convocatória. ERC apostou pela declaração
unilateral de independência.
m) o presidente do governo catalão anunciou a forma de participação cidadã.
n) a cidadania (110.000 pessoas segundo estimativa da Guàrdia Urbana) afirmou o seu impulso à
participação, mas reclamou eleições plebiscitárias – ou seja, eleições para a constituição de um
novo parlamento catalão a partir do voto de confiança em uma lista única – em um prazo de três
meses. O governo espanhol pediu parecer sobre uma possível impugnação da participação cidadã ao
Conselho de Estado. A Comissão Permanente do Conselho de Estado ditou parecer favorável à
impugnação da participação cidadã. O governo espanhol impugnou a participação cidadã ante o TC.
O TC suspendeu a participação cidadã.
o) o presidente do governo catalão deu instruções aos serviços jurídicos do governo para estudar
ações contra o governo espanhol.
p) o presidente do governo catalão decidiu apoiar a participação cidadã. O TC manteve a suspensão
da participação cidadã.
q) o governo catalão manteve a campanha institucional informativa e a lista dos pontos de votação.
A delegada do governo espanhol na Catalunha enviou cartas à administração do governo catalão e
às administrações locais sobre a suspensão da participação cidadã.
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r) o presidente do Pacto pelo Direito a Decidir, formado por entidades civis, cívicas, culturais,
econômicas, sindicais, empresariais e partidos políticos assim como governo, cidadania e
administrações locais, reafirmou o apoio do governo catalão, mas sublinhou a execução ser apenas
voluntária e cidadã.
s) o governo catalão apresentou recurso de súplica ante o TC.
Os valores fundamentais da UE não são valores abstratos, mas sim centrais para o modelo,
plural, da sociedade europeia, e estão sendo postos à prova pelo processo catalão do direito de
decisão. Segundo Bayona (2014), as expressões catalãs são democráticas, claras e inequívocas,
além de promovidas a partir de um movimento pacífico e reivindicativo, enquanto as expressões do
Estado espanhol são negativas e rotundas, argumentadas e fundamentadas em uma interpretação
rígida e formal da legalidade constitucional.
A partir da ótica da escola austríaca, nada além de um referendo seria necessário; porém, a
nação catalã sem Estado encontra-se, hoje, e a partir da ótica do liberalismo, ante a
‘inconstitucionalidade’ de um referendo e a condenação de seu desejo de direito de decisão. Para
alguns, se o governo espanhol bloqueou a possibilidade de realização deste referendo, o governo
catalão deveria ter avançado. Deveria ter não só desobedecido a lei espanhola, mas aproveitado a
oportunidade para obedecer a lei catalã, na qual o referendo, a consulta popular e outras formas de
participação cidadã estão amparadas.
Como a CE, fundamentada na “indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e
indivisível de todos os espanhóis”, não permite a secessão, tem-se submetido a discussão do caso
catalão à opinião do TC, quem, lógica e reiteradamente, tem opinado a favor do governo espanhol e
contra o governo catalão. Este procedimento serve ao propósito de reafirmar a legalidade ou a
ilegalidade das posições: uma sentença judicial de ‘inconstitucionalidade’ é um forte instrumento de
controle do poder do governo, mas, da mesma forma, um veredito de ‘constitucionalidade’ é uma
arma para promover uma maior aceitação pública do poder do governo (ROTHBARD, 1978 apud
KREPTUL, 2004).
Com esta ação, de submissão da discussão ao TC, o governo espanhol tem utilizado o poder
de opinião do judiciário para legitimar a crença segundo a qual o separatismo político catalão,
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processo do direito de decisão, inclusive, é inconstitucional, em uma tentativa de angariar, para si,
mais suporte nacional e internacional. O valor de respeito ao Estado de direito permite sim
questionar a secessão unilateral, mas não a legalidade e legitimidade do início e desenvolvimento
deste processo (BAYONA, 2014).
Uma minoria pode fazer propostas e se expressar sobre as propostas da maioria, pois a
democracia tem importância não somente como resultado, mas como procedimento. Mesmo a
Catalunha não tendo direito ao direito de autodeterminação dos Estados, poder-se-ia encontrar
caminhos jurídicos para garantir a gestão civilizada e democrática da reivindicação; especialmente,
quando a CE prevê tanto a possibilidade de convocação de referendos sobre questões de especial
transcendência política como o direito de participação política direta.
Considerações Finais
Considerando a ilegalidade imposta e a falta de efeitos jurídicos, a participação cidadã no
processo do direito de decisão foi um êxito. As dificuldades foram várias além das já citadas (ex. o
número de colégios eleitorais, as pressões comunicativas, o orçamento publicitário, etc.), mas,
mesmo assim, 2.305.290 cidadãos mobilizaram-se. 1.861.753 dos votos (80,76%) foram SIM/SIM.
O conjunto daqueles que compartilham a percepção de uma falta de poder, seja uma falta de poder
em relação ao pacto fiscal, à legislação ou à nacionalidade.
Os votantes do SIM optaram pela responsabilidade pessoal, assim como 232.182 (10,07%)
que votaram SIM/NÃO, 22.466 (0,97%) que votaram SIM/BRANCO e 71.131 (3,09%) que
votaram NULO. Contudo, 104.772 (4,54%) optaram pelo NÃO; quando a mensagem de quem era a
favor do NÃO foi insistente – é “[p]roibido votar, em nome da democracia” e foi repetida por
Mariano Rajoy, presidente do governo espanhol, Soraya Sáenz de Santamaría, porta-voz do
governo espanhol, Pedro Sánchez, secretário geral do Partido Socialista Obrero Español (PSOE),
Alícia Sánchez-Camacho, presidente do Partido Popular Català (PPC), Alberto Rivera, presidente
de Ciutadans, e outros.
É durante a defesa da dignidade como aspecto essencial da vida humana quando se adquire a
cultura política da participação e da horizontalidade nas relações de poder (DIEZ, 2013). Na
Catalunha, esta defesa vem de longa data. Por exemplo, apesar do feudalismo ter sido profundo, os
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agricultores puderam comprar a sua liberdade já no séc. XV. Esta revolta, única insurreição agrícola
na Idade Média, possibilitou a primeira abolição da servidão no continente europeu, formulada em
forma de lei. Passo essencial para a revolução social, para os agricultores começarem a participar do
pacto com a autoridade central e poderem tratar a nobreza de igual para igual.
No caso catalão, é urgente a atuação da UE como mediadora ou conciliadora externa, pois
não há acordo entre as partes. Lembrando o descumprimento de seus valores não poder ser
considerado ‘assunto interno’ nem justificado a partir da noção de soberania. Contudo, e apesar de a
UE ser a definidora-chave de normas sobre o direito de autodeterminação na Europa, dificilmente, o
estabelecimento de tais normas baseia-se em opiniões jurídicas (BORGEN, 2010) e necessita da
unanimidade dos Estados membros – estes também com problemas internos de autodeterminação.
Veja-se, por exemplo, o caso de Kôsovo, que não tem o reconhecimento da Espanha.
A existência política de um Estado é independente do seu reconhecimento pelos demais
Estados, mas o reconhecimento da soberania ou o ingresso na UE não pode ser pressuposto por
nenhuma comunidade secessionista: a secessão tira a nação sem Estado da mesa de discussão e a
reduz a pedinte (Ibid.). Por esta razão, pela vontade de legitimação por parte da maioria – além da
própria filosofia política catalã, a Catalunha não pretende, a priori, criar uma nova legalidade
declarando a independência unilateralmente, mas, apenas, realizar um referendo dentro da ordem
legal.
Se o direito de autodeterminação não é reconhecido pela constituição da maioria de Estados
e algumas inclusive reafirmam a sua territorialidade utilizando vocábulos como indivisível,
inalienável e inviolável (KREPTUL, 2003), em 1500, a Europa contava com quinhentas entidades
políticas. Esta é uma das razões pelas quais, para se compreender o desejo de autodeterminação
externa, em qualquer instância, é indispensável a compreensão da história local assim como o saber
das pessoas e grupo envolvidos (BORGEN, 2010).
O único poder alternativo e efetivo no marco de uma democracia constitucional para limitar
o poder de um Estado é o direito dos indivíduos ao direito de secessão (ROTHBARD, 1998;
HOPPE, 2001 apud KREPTUL, 2010). Mesmo sem referendo, quando mais de 2.000.000 de
pessoas optam pela participação, pelo voto como forma de responsabilidade pessoal ou
desobediência civil, o reclamo pelo direito de decidir parece ser amplo, relevante e presente. Os
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resultados, dependendo do olhar, podem ter sido um 'êxito total' ou um 'simulacro estéril' mas,
indubitavelmente, foram uma pretensão simbólica.
Pretensão simbólica de resolução de conflito. De diálogo. De aproximação, histórica, da
pluralidade. De exercício: “como os estados e outros grupos podem causar o menor dano possível
um ao outro?” (HURRELL, 2007, p. 4, trad. do autor).
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Estudos migratórios: breve discussão conceitual
A partir do cenário da
globalização, novas modalidades
migratórias exigem a revisão de
alguns paradigmas usados até
então para o estudo e análise dos
fluxos que observamos ao redor
do globo, bem como a
incorporação
de
novas
dimensões explicativas. Esse
artigo volta-se, então, para a
discussão de alguns conceitos em
busca de sua problematização e
compreensão da mobilidade
populacional contemporânea.
Roberta de Morais Mazer23
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 56-66
Palavras-chave:
migração,
conceito, mobilidade.
Introdução
A partir de meados da década de 1980, no contexto da globalização e reestruturação
produtiva que geraram diversas mudanças econômicas, sociais políticas, demográficas e culturais,
os fluxos migratórios globais24 sofrem alterações, que são, também, consequências do
aperfeiçoamento dos meios de comunicação e transporte; a difusão das imagens de um determinado
23
Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (Programa Interdisciplinar em Ciências
Humanas e Sociais). Bacharel em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia e Sociologia, pela Universidade
Federal de São Carlos, onde foi pesquisadora bolsista do CNPq e desenvolveu trabalhos sobre e/imigração e refúgio na
área de Antropologia.
24
“O contexto, o significado, os volumes, os fluxos, as redes e outras dimensões importantes, no contexto interno e
internacional, passavam a ser completamente distintos de tudo o que, sob a mesma rubrica, sucedera no passado”
(PATARRA, 2005).
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estilo de vida, algo que veio a influenciar padrões de consumo em diversas áreas pelo globo; o
aumento das lógicas de mobilidade e de fluxos em um mundo globalizado; a necessidade de
multiplicar estratégias frente a crises e a adaptação a condições de entrada, estadia ou acesso a
mercados de trabalho sempre flutuantes.
No caso dos deslocamentos de/para o Brasil também podemos observar mudanças: os
censos nacionais passam a apontar para a existência de mais brasileiros fora do que estrangeiros
dentro do país25. No país, por volta da década de 1970, e principalmente durante a década de 1980,
o caráter atrativo da imigração ultramar já apresentava sinais de declínio (PATARRA, 2005). Nesse
momento, ao pensar nos fluxos migratórios, deve-se levar em conta as lógicas de circulação de
capital, de mercadorias e de ideias que acompanham a migração em si mesma (FARET, 2010).
Estudos sobre migração realizados a partir desse momento histórico apontavam para as
significativas alterações dos fluxos migratórios analisados, e é a partir disso que observamos
consideráveis esforços por parte desses pesquisadores que buscavam compreender as novas
características dos processos migratórios e suas repercussões em termos de categorias e conceitos.
As reconfigurações das migrações em relação a origens, destinos, duração, grupos que migram,
documentação, etc., exigiram a revisão de tipologias – migrações internacionais, temporárias,
sazonais, de retorno, rurais, entre outras – e perspectivas teóricas (MENEZES, 2012).
Esse artigo volta-se, então, para a discussão de alguns conceitos em busca de sua
problematização e compreensão da mobilidade populacional contemporânea.
Por que partir
Em geral, migrar representa um rompimento com um quotidiano conhecido em troca de um
novo espaço geográfico, social e cultural, um novo emprego e, algumas vezes, uma nova profissão.
Essa decisão afeta não apenas aquele que parte, mas também sua família nuclear e ampliada,
25
“Ao longo do século 20, pôde-se verificar um forte declínio em sua [dos estrangeiros] participação no total da
população, considerando-se o total de estrangeiros residentes no país nos levantamentos censitários - o chamado
"estoque de imigrantes". Nas últimas décadas do século, eles atingiam um total de 912 mil em 1980, decrescendo para
767.781 (0,52% da população total do país) em 1991, e 651.226 (0,38%) em 2000. Na verdade, grande parte desse
contingente é formada pelos sobreviventes dos grandes fluxos das etapas anteriores” (PATARRA, 2005).
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descendentes e dependentes. Isso faz com que a escolha de migrar não seja individual, e sim
coletiva.
As motivações econômicas geralmente são encontradas entre pessoas oriundas de países
mais pobres ou menos desenvolvidos e classes sociais desfavorecidas. Entre elas geralmente estão a
falta ou insegurança de emprego; insuficiência de recursos naturais; baixas expectativas em relação
a um futuro promissor para si e seus descendentes. Esses movimentos migratórios são classificados
como emigração econômica, mas raramente os migrantes possuem apenas um único tipo de
motivação (ROCHA-TRINDADE, 1995).
A emigração política envolve desajustes entre um sistema político e sua aceitação por seus
cidadãos. Quando essas situações atingem determinado grau de gravidade, por exemplo o risco de
perder a vida, a comunidade internacional tende a reconhecer o status de exilado político àqueles
que o solicitam (idem).
Os motivos étnicos, considerando-se étnico como ascendência comum, vêm à tona quando,
por qualquer motivo, a inclusão de minorias étnicas e culturais em sociedades maioritárias de
origens diferentes, como língua, religião, organização social, código de valores, entre outros, acaba
por motivar o menor grupo a mudar de país (idem).
O conceito de refugiado, de acordo com a Convenção de Genebra, aplica-se a pessoas que
possuem temores de ser perseguida por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertença a
determinado grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora de seu país de nacionalidade e não
possa, por isso, valer-se da proteção do mesmo. A lei brasileira considera, ainda, como refugiado(a)
toda pessoa que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos é obrigada a deixar seu
local de origem.
A emigração de especialistas envolve o recrutamento de determinados perfis profissionais
disponíveis em um país e em reduzido número em outro. Geralmente esse fenômeno é conhecido
como braindrain. Esse tipo de movimento só pode ser considerado como um fluxo migratório
quando envolve um número significativo de pessoas que possuem expectativas de se estabelecer
definitivamente no local de destino ou com duração indeterminada (ROCHA-TRINDADE, 1995).
Várias outras situações podem gerar fluxos migratórios, como determinados grupos de
idosos que procuram outros países em busca de determinadas características climáticas e sociais ou
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estudantes que visam obter qualificação, especialmente de ensino superior e pós-graduação, em
outros locais (idem).
Emigração, Imigração e Migração
O termo emigrar denota a saída de alguém do país ao qual pertence por nacionalidade.
Assim, ele significa deixar a terra própria, por qualquer motivo que anime tal ato. Aqueles que
emigram são, portanto, denominados emigrantes. Ao considerarmos o outro lado geográfico da
emigração, o lado receptor que foi visto como destino no momento da partida, vemos pessoas
chegando. Ali os mesmos atores são considerados imigrantes, e, então, seu movimento denominamo
imigração. Os mesmos indivíduos são, constantemente, emigrantes e imigrantes simultaneamente
(ROCHA-TRINDADE, 1995).
Os fluxos de pessoas podem ser resultados de características conjunturais, como
características geográficas, políticas, econômicas, sociais, culturais, ou, ainda, apresentar caráter
estrutural. Em outros períodos históricos, os países de origem e destino se apresentavam “distantes”
um do outro, resultado dos meios de transporte utilizados e, também, tínhamos, principalmente na
América, uma política de fixação para povoamento de todos aqueles que chegavam. Por isso nesse
período as emigrações eram continuadas por imigrações, sendo difícil a possibilidade de que a
estadia no destino fosse entrecortada por pequenos períodos de retorno ao local de origem (idem).
Movimentos migratórios de tempos presentes, no entanto, contam com meios de transporte
frequentes, rápidos e de custos moderados, o que torna possível visitas frequentes à origem. A partir
desse momento observamos movimentos pendulares, cíclicos, entradas e saídas regulares, fazendo
com que os períodos de ausência fossem reduzidos e existisse contato constante via internet. Essas
novas características fazem com que os conceitos emigrante e imigrante passassem a ter pouca
distinção entre si, bem como as noções de origem e destino.
As noções de origem e destino, conquanto inportantes para as classificações das migrações,
apresentam limitações para compreender tipos de migrantes que se deslocam
permanentemente, como é o caso dos trabalhadores migrantes safristas, dos migrantes em
grandes projetos ou construção civil ou outras trajetórias migratórias individuais ou de
famílias marcadas por deslocamentos diversos, como é o caso dos brasiguaios; dos
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migrantes que se dirigiram para a fronteira agrícola do Paraná, Mato Grosso, Rondônia nas
décadas de 1960 a 1980. (MENEZES, 2012, p. 25).
Portanto, contemporaneamente, o termo migrante tem sido mais utilizado, pois ele expressa
a percepção que o indivíduo que se desloca tem de sua condição, ao invés da percepção dos
indivíduos que observam. Assim, o migrante passa a ser tido como a pessoa que se desloca de um
local para outro e possuidor de múltiplas identidades (PAIVA, 2013).
Migração interna
Esse conceito visa dar conta das migrações que acontecem dentro das fronteiras de um
mesmo Estado, seja ela em busca da fixação definitiva em outro local ou temporária, com
características de recorrência regular. Sendo assim, não serão classificadas dessa maneira os
deslocamentos que não envolvem mudança de residência, como deslocamentos diários ou semanais
entre local de trabalho e local de residência (ROCHA-TRINDADE, 1995).
As migrações internas sazonais ou estacionais são aquelas que se repetem ciclicamente,
geralmente com periodicidade anual, e acontecem em resposta a ofertas temporárias de trabalho
fora de suas regiões de residência.
Um caso singular de migração é o das populações sem domicílio fixo e que se deslocam
diversas vezes ao longo do tempo, habitando residências que se tornam igualmente móveis e
exercem atividades remuneradas compatíveis com tal situação. Podemos citar como exemplo
comunidades de etnia cigana, feirantes e vendedores ambulantes e artistas circenses (idem).
Ilegal, irregular ou indocumentado?
O termo ilegal refere-se a situação jurídica do migrante ao entrar em outro Estado. No
entanto, esse termo carrega uma conotação negativa e depreciativa da condição do indivíduo, como
se o ato de migrar em si fosse algo ilícito, sendo que o direito de migrar é um direito humano.
Sendo assim, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores
Migrantes e de seus Familiares, da Organização das Nações Unidas (ONU), definiu que aqueles que
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não “foram autorizados a ingressar, permanecer e exercer uma atividade remunerada no Estado de
emprego, ao abrigo da legislação desse Estado e das convenções internacionais de que esse Estado
seja Parte” (ONU, 2003, art. 5°) são denominados como migrantes indocumentados ou em situação
irregular.
Fixação e retorno
Assim como as noções de i/emigrante, as ideias de fixação, retorno e desenraizamento têm
sido revistas. Observando brevemente os estudos sobre migração feitos até então, e através de
estudos realizados nos Estados Unidos com grupos de caribenhos, haitianos e filipinos, GlickSchiller, Basch e Blanc-Szanton (1995) percebem que comumente os imigrantes são vistos como
pessoas que abandonaram definitivamente seus locais de origem, rompendo com antigos hábitos e
padrões e se comprometendo com o aprendizado de uma nova língua e cultura. Sob essa
perspectiva, o migrante pode ser rapidamente assimilado ou aculturado pela sociedade de destino,
obscurecendo ligações com seu lar, seu local de origem e familiares.
Ao contrário das pesquisas que revisam, as autoras concluem que os migrantes mantêm
diversas ligações entre local de destino e de origem. Assim, eles passam a ser chamados de
transmigrantes: pessoas que mantém relações familiares, econômicas, sociais, organizacionais,
religiosas e políticas com seu espaço natal, colocando em relação espaços locais e globais. A visão
dos migrantes como assimilados pela sociedade receptora levou a uma perspectiva que os
classificava como temporários ou permanentes. Para as autoras, essas categorias não levam em
consideração que as relações com a sociedade local e a de origem são mantidas concomitantemente.
Essas conexões permitiram aos imigrantes, durante seus anos no exterior, ter seus filhos
criados por um parente em casa, continuar como atores em decisões familiares importantes,
visitar em intervalos regulares, a comprar propriedades e construir casas e negócios em seus
países de origem, mesmo que eles tenham comprado casas e criado negócios nos países em
que se estabeleceram.26 (GLICK-SCHILLER, BASCH E BLANC-SZATON, 1995, p. 53).
26
Livre tradução da citação: These connections have enabled immigrants during their years abroad to have children
cared for by kin at home, to continue as actors in key Family decisions, to visit at regular intervals, and to purchase
property and build homes and businesses in their countries of origin, even as they bought homes and created businesses
in their countries of settlement.
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Para Dutra (2013), o transnacionalismo se define como o processo através do qual os
migrantes criam campos sociais que atravessam as fronteiras de suas nações, por meio de atividades
quotidianas sociais, econômicas, culturais e políticas. A isso podemos acrescentar os
desenvolvimentos tecnológicos que observamos nas últimas décadas, que tornaram mais fácil ao
migrante estar em conexão com diversos locais.
Embora essas pessoas possam ter uma vida marcada pela constante mobilidade, sempre há
uma localidade que se mostra como referência de fixação, geralmente um espaço onde se encontram
amigos e parentes. Esses locais de pertencimento contêm não apenas a memória, mas também as
redes de parentesco, amizade e vizinhança. No entanto, cada um desses pontos faz parte da
construção da identidade do migrante, ele “constitui-se nas tensões e ambiguidades de várias
categorias e diversos espaços sociais” (MENEZES, 2012, p. 26). Assim, a mobilidade dessas
pessoas não representa o desenraizamento e desagregação familiar, mas, sim, a constante
resignificação das redes de relações sociais.
Migrações definitivas e temporárias
Os movimentos migratórios que são, a princípio, limitados no tempo são geralmente
considerados como temporários, como as migrações sazonais, de safra, entre outras. Já a fixação,
que apresenta caráter permanente, mostra que o migrante não mais encara o retorno ao seu local de
origem como uma opção (ROCHA-TRINDADE, 1995).
Sobre a duração das migrações, Martins (1986) escreve:
Se em termos demográficos, a duração – o temporário – é essencial para o estudo das
migrações temporárias, em termos sociológicos o essencial é a percepção de ausência. É
temporário, na verdade, aquele migrante que se considera a si mesmo “fora de casa”, “fora
do lugar”, ausente, mesmo quando, em termos demográficos, tenha migrado definitivmente.
É aquele que se considera fora do seu lugar, fora de “suas” relações sociais, e que, no
limite, não se considera dentro mesmo quando está. Se a ausência é o núcleo da consciência
do migrante temporário, é porque ele não cumpriu e não encerrou o processo de migração,
com seus dois momentos extremos e excludentes, a dessocialização, nas relações sociais de
origem, e a ressocialização, nas relações sociais de “adoção”. Ele se mantém, pois, na
duplicidade de duas socializações, de duas estruturas de relações sociais diversas entre si.
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Ele vive a marginalidade de duas situações sociais. É sempre o outro, o objeto e não o
sujeito. É sempre o que vai voltar a ser e não o que é. A demora desse reencontro define a
migração temporária. (MARTINS, 1986, p. 49).
Nesse excerto o autor propõe que o foco para a definição da migração, em temporária ou
não, seja o sujeito da ação e a forma como cada indivíduo subjetivamente percebe sua experiência
entre os diferentes locais que se desloca. Aqui o autor destaca a importância do sentimento de
ausência para a delimitação da migração entre temporária ou definitiva, e não o tempo de
permanência longe.
O retorno ou regresso ao ponto de origem mostra-se como uma opção ao migrante no
momento em que esse acredita ter atingido totalmente seus objetivos, que as condições se alteraram
de maneira que a volta se apresenta como necessária ou a constatação do insucesso irremediável. De
acordo com Abdelmalek Sayad (1998), o momento do retorno expressa diversas contradições e
ambiguidades existentes na condição de ser migrante.
Esse é um dos numerosos paradoxos da imigração: ausente onde está presente e presente
onde está ausente. Duplamente presente – efetivamente aqui e ficticiamente lá – e
duplamente ausente – ficticiamente aqui e efetivamente lá – o imigrantes teria uma vida
dupla, que ultrapassa e que é diversa da oposição tradicional entre vida pública e vida
íntima: uma vida presente, banal, cotidiana, vida que pesa e enreda, vida segunda, ao
mesmo tempo cronológica e essencialmente secundária; uma vida ausente, figurada ou
imaginada, rememorada, uma vida que foi primeira cronologicamente e que permaneceu
primeira, essencial, efetiva e efetivamente, e que, sem dúvida, voltará a sê-lo um dia
(SAYAD, 1998, p. 20).
A migração, então, teria uma dupla contradição: o sujeito já não sabe se vive um estado
provisório que se prolonga indefinidamente ou, ao contrário, se se trata de um estado duradouro
vivido com o constante sentimento de provisoriedade. Tanto a sociedade de origem quanto a de
destino e o próprio migrante viveriam, portanto, com a ilusão coletiva da existência de um estado
nem provisório e nem permanente; uma condição que ora é provisória, com a condição de que possa
durar indefinidamente, ora definitiva, desde que nunca seja anunciada como tal. Por isso ao longo
de todo o tempo o migrante mantém viva em si a esperança do retorno, pois ele é “naturalmente o
desejo e o sonho de todos os imigrantes, é como recuperar a visão, a luz que falta ao cego, mas,
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como cego, eles sabem que esta é uma operação impossível. Só lhes resta, então, refugiarem-se
numa intranquila nostalgia ou saudade da terra (SAYAD, 1998, p. 12)”.
Considerações Finais
Flores (2010), em uma crítica à visão de que migrantes são pessoas que se deslocam entre
ponto de origem e de destino, afirma que “a migração se transformou em um fenômeno de
mobilidade” (p. 7), focando a análise na capacidade dos migrantes de circular e, assim, produzir
territórios e identidades. Estudos similares buscaram deslocar alguns conceitos que se mostram
rígidos para permitir a compreensão desses fenômenos e que ignoravam a heterogeneidade presente
entre essas pessoas, atores e fatores envolvidos nesse processo, intensidade dos fluxos migratórios,
espaços envolvidos, entre outros.
De forma similar, Patarra (2006) afirma que
As novas modalidades migratórias demandam, no cenário da globalização, a necessidade de
reavaliação dos paradigmas para o conhecimento e o entendimento das migrações
internacionais no mundo, e a incorporação de novas dimensões explicativas torna-se
imprescindível, assim como a própria definição do fenômeno migratório deve ser revista
(p.7).
Classificar as migrações como temporárias, definitivas ou de retorno, considerando a fluidez
existente entre esses tipos e a circularidade existente entre fronteiras nacionais, apresenta
dificuldades. Além disso, denominar um espaço como “local de residência” apenas a partir do
tempo de moradia pode ser ambíguo, já que não considera a subjetividade do agente. “Na literatura
recente, enfatiza-se que é difícil separar o que é migração temporária do que é migração definitiva,
tornando-se necessário estudar espaços onde circulam os indivíduos e situá-los na família ou na
rede de relações sociais (MENEZES, 2012, p. 34)”.
Algumas das tipologias usadas para analisar fluxos migratórios se mostraram extremamente
fixas e rígidas, o que exige maior esforço dos pesquisadores no sentido de questioná-las, revisá-las e
ajustá-las para compreender as especificidades envolvidas em cada um desses movimentos. As
formas de mobilidade se mostram difusas em diferentes espaços e tempos, e se apresentam como
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
estratégias de realização de um projeto de vida individual, familiar e social, exigindo categorias de
análise que deem conta de suas diversas faces.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Relatório: O movimento feminista egípcio27
Isabella Nisimoto Sorio28
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 67-73
Pode-se dizer que o movimento feminista tradicional, antes de fazer parte do debate
contemporâneo de Relações Internacionais, passou por algumas fases e gerações, as quais
discutiram temas como a luta por uma inclusão social e cidadã mais efetiva, a conquista do sufrágio
universal e a participação das mulheres no espaço político. Embora diversos desses movimentos
estejam ligados a sociedades ocidentais, isso não significa que essa temática esteve fora das agendas
dos movimentos feministas em outros lugares do mundo (NOGUEIRA; MESSARI, 2005).
Como se sabe, existe um senso comum quando se fala das mulheres muçulmanas em geral,
pois a imagem que a maioria das pessoas possui é de uma total submissão diante dos homens e que
isso está diretamente ligado à religião. A respeito disso, muitos se esquecem do fato de que não
apenas as muçulmanas, mas também as mulheres ocidentais e de quaisquer outras regiões e
religiões podem sofrer tais discriminações e violências.
Deve-se levar em conta que o conceito de liberdade feminina para as muçulmanas muitas
vezes está ligado à religião, a uma realidade mais complexa do que aparenta ser. Assim, a
identidade feminina varia de acordo com o local onde essas mulheres se encontram, a cultura na
qual estão inseridas, e, também, outros elementos determinantes no convívio social, tais como:
classe social, nível de educação formal, grau de autonomia financeira, etc.
O movimento feminista islâmico é considerado um movimento desterritorializado, pois não
possui um país-sede, nem uma origem definida. A partir dos anos 1980, começaram a surgir
movimentos feministas ligados à religião muçulmana,29 que visavam à reinterpretação das fontes
27
Este texto foi produzido a partir das análises realizadas no âmbito da linha de pesquisa sobre Segurança Internacional
do curso de Relações Internacionais da FASM, atualmente coordenada pela Profa. Eliana Vieira de Godoy e pela Profa.
Mônica Razuk.
28
Estudante do 7º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
29
O islamismo é uma religião monoteísta com origem no ano de 622, fundada pelo profeta Maomé. Durante o período
de sua constituição a região da Península Arábica se via em meio ao caos, com guerras e muita pobreza. Quando se
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religiosas do Islã. Estes dialogavam com os movimentos feministas tradicionais e levavam em
consideração alguns elementos característicos da modernização ocidental.
Segundo Badran (2002), o termo ‘feminismo’ foi cunhado no final dos anos 1880, por
Hubertine Auclert, em seu jornal La Citoyenne, com a intenção de criticar a predominância e
dominância masculina, além do intuito de reivindicar os direitos e emancipações prometidas
durante Revolução Francesa. Entretanto, foi somente em 1910 que a palavra foi usada na Inglaterra
e, posteriormente, nos Estados Unidos. Já nos anos 1920 o termo foi usado no Egito, tanto em
francês (féminisme) quanto em árabe (nisa’iyya).
Para tratar do feminismo egípcio, especificamente, é possível adotar como ponto de inflexão
a participação das mulheres na Revolução de 1919. Esta revolução ocorreu também no Sudão e fez
frente à ocupação e dominação inglesa na região. Relacionado a esse processo, houve o subsequente
aumento do ativismo feminista, diretamente ligado ao caso de Huda Shaírawi (AL-ALI, 2002),
conhecida por ter intensificado o movimento feminista no Egito, a partir de um episódio em que ela
tira o véu em uma estação de trem do Cairo.
Segundo Anushay Hossein (2013), a luta de Huda Shaarawi pelos direitos das mulheres foi
muito além desse episódio. Essa ativista, que foi criada em uma família rica e que seguia
rigorosamente os moldes da sociedade egípcia, relata em seu livro Harem Years: The Memoirs of an
Egyptian Feminist, de 1987, o seu incomodo em ter uma vida reclusa, em uma sociedade patriarcal.
Huda Shaarawi apresentou o seguinte desabafo:
Fiquei deprimida e comecei a negligenciar os meus estudos, odiando ser uma menina,
porque isso me impedia de ter a educação que eu procurava. Mais tarde, sendo uma mulher,
isso se tornou uma barreira entre mim e a liberdade pela qual eu aspirava. (SHAARAWI,
1986 apud HOSSEIN, 2013).
A Egyptian Feminist Union (EFU) foi criada por Shaarawi em 1923, apresentando em sua
agenda a busca pelos direitos políticos para as mulheres e, também, a mudança na legislação,
principalmente sobre os tópicos relacionados ao divórcio e à poligamia.
iniciaram as revelações que formariam o Alcorão, Maomé e seu pequeno grupo foram perseguidos e tiveram de fugir de
Meca para Medina, chamado de Hégira.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Percebe-se, então, o desejo de romper com o modelo familiar da elite egípcia e de criar um
núcleo familiar monogâmico. Essa organização é vista como a primeira etapa da expansão efetiva
do feminismo egípcio, o qual não era perceptível até aquele momento. Entre esse período e os dias
atuais, pode-se destacar as seguintes etapas do feminismo egípcio:
(1) o feminismo liberal radical, de 1920 a 1940, representado por feministas muçulmanas
inspiradas nos modelos francês e estadunidense; (2) o feminismo populista, de 1940 a 1950,
representado, em especial, por feministas de formação marxista; (3) o feminismo sexual, de
1950 a 1970, representado principalmente pela médica egípcia Nawal el Saadawi e (4) o
feminismo ressurgente dos anos 1980. (Badran, 2009, pp. 120-133 apud LIMA, 2012, p.5).
Os movimentos feministas seculares voltaram a atuar de forma mais evidente por intermédio
da Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes (AWSA), criada por Nawal el Saadawi, no
Cairo em 1985. Graças à sua eficiente ação o movimento se expandiu para comunidades árabes em
outros locais do mundo, como Estados Unidos e Europa (LIMA, 2014).
[...] o que significa para uma mulher muçulmana ser liberta? Para uma mulher muçulmana
ser liberta, é ter todos os direitos e obrigações dadas a ela no Alcorão. O que significa isso?
Bem, isso significa que há coisas no Alcorão que homens e mulheres podem fazer, como o
envolvimento no trabalho. Ambos podem trabalhar. Será que uma mulher tem que
trabalhar? Não, se ela quer trabalhar, ela pode. Eles são iguais? Eu acho que é errado falar
de igualdade, porque, como eu disse, o Alcorão se engaja em ações afirmativas em favor
das mulheres, o que eu poderia dizer que é ‘justo’. E há coisas que as mulheres
muçulmanas querem fazer, que o Alcorão restringe. Mas eu não olho para a igualdade de
forma mecânica, automática. Se as mulheres optam por não trabalhar e se sustentar, elas
deveriam ter direito a serem apoiadas por seu marido e as famílias também. E é isso que
reserva o Alcorão para as mulheres (AL-HIBRI, 2002, p. 1, tradução nossa apud LIMA,
2014, p. 8).
De acordo com o Alcorão, homens e mulheres são iguais diante dos olhos de Alá, e ele
espera a fidelidade de ambos e os premiará igualitariamente. No entanto, o que se vê, na realidade, é
o oposto disso. Acredita-se que, devido ao fato de apenas homens interpretarem o Alcorão, isso
interfere na forma como é compreendida a posição da mulher na sociedade islâmica. Para realizar
um contraponto entre o que está colocado no Livro Sagrado dos muçulmanos, especificamente
sobre as mulheres, e o que é colocado no Novo Testamento, serão citados trechos de ambos a
seguir.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Quanto aos muçulmanos e às muçulmanas, aos fiéis e às fiéis, [...] aos jejuadores e às
jejuadoras, aos recatados e às recatadas, aos que se recordam muito de Deus e às que se
recordam d'Ele, saibam que Deus lhes tem destinado a indulgência e uma magnífica
recompensa. Não é dado ao fiel, nem à fiel, agir conforme seu arbítrio, quando Deus e o
Seu Mensageiro é que decidem o assunto. (33ª Surata, Al Ahzab, versículo 35 e 36).
Harmonizai-vos com elas; pois se a menosprezardes, podereis estar depreciando um ser que
Deus dotou de muitas virtudes. (4ª Surata, An Nissá, versículo 19).
Sede submissos uns aos outros, no temor de Cristo. As mulheres o sejam aos maridos,
como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo também é a cabeça da
Igreja, seu Corpo, do qual ele é Salvador. Por outro lado, como a Igreja se submete a Cristo,
que as mulheres também se submetam, em tudo, a seus maridos. (Novo Testamento,
Efésios 5: 21-24).
Diante do exposto, pode-se notar que, mesmo sem ser algo divulgado e evidenciado, o
trecho retirado do Novo Testamento mostra que não apenas a religião muçulmana apresenta
discursos que podem ser considerados retrógrados e discriminatórios. Em muitos outros aspectos,
considera-se o Alcorão o mais inclusivo e igualitário em relação às outras religiões monoteístas judaísmo e cristianismo.
Outra questão importante para se esclarecer é que não existe apenas um tipo de feminismo,
mas sim muitas vertentes distintas, que se enquadram à necessidade de cada grupo, localidade e
contexto social. Porém, segundo Lamrabet (2010), existem algumas concepções gerais, como a luta
pela emancipação feminina, pela dignidade e pela igualdade. Quanto ao feminismo árabe, que se
perpetua atualmente, é devido ressaltar que este possui grande influência da luta dos movimentos
nacionalistas em favor da descolonização da região.
Considerações finais
A partir da modernização e da chamada globalização, toda a sociedade se viu obrigada a
realizar mudanças em suas estruturas tradicionais, assim como foram necessárias mudanças nos
âmbitos político, econômico, social e até religioso. A sociedade egípcia e os muçulmanos da região
não estiveram imunes a esse processo, vendo-se diante de uma onda de reinvindicações durante os
anos 2000, no governo de Hosni Mubarak. Este presidente realizou mudanças no Código Civil e foi
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
fortemente pressionado a rever diversas obrigatoriedades e direitos, dentre eles o direito das
mulheres de ir e vir sem precisar da companhia de um homem da família. Porém esta solicitação
não obteve êxito, devido à pressão das alas mais conservadoras do país (MONTEIRO, 2012).
Não obstante, é possível perceber o reconhecimento da participação e da dimensão dos
movimentos feministas no Egito. Mais recentemente, com a Primavera Árabe, houve intensa
movimentação das mulheres na Praça Tahir, porém, pouco divulgada pela mídia. Este fato remete
também à Revolução de 1919, na qual as mulheres cortaram as linhas telegráficas e sabotaram os
trens, durante os protestos para conseguir a independência da Grã-Bretanha.
Estima-se que pelo menos 20% das multidões que lotaram a Praça Tahrir naquela primeira
semana eram mulheres, que também participaram em grande número dos protestos no porto
mediterrâneo de Alexandria. O celebrado álbum no Facebook de Leil Zahra Mortada sobre
a participação das mulheres na revolução egípcia sugere como essa mobilização foi
diversificada e poderosa. (COLE; COLE, 2011).
Asmaa Mahfouz foi a responsável por postar um vídeo pela internet convocando as
mulheres a participarem junto ao restante dos manifestantes nos protestes da Primavera Árabe. Ela
conseguiu convencer uma grande quantidade delas, demonstrando que para que o país se tornasse
uma democracia de verdade deve-se incluir o direito das mulheres (HOSSAIN, 2013).
Diante disso, pode-se concluir que os movimentos feministas no Egito conseguiram ao
longo de anos de luta alguns avanços relevantes e uma dimensão que os possibilitou até mesmo o
debate de suas agendas internacionalmente. A luta pelo direito das mulheres é ainda muito
importante no século XXI. Sabe-se que não é um tema exclusivo de um tipo de feminismo inserido
em um determinado contexto, mas algo que é buscado diariamente por diversos movimentos
feministas ao redor do mundo, levando sempre em conta as particularidades de cada lugar.
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Relatório: Deslocamento de Populações no Século XXI30
Maria Célia Caputo de Barros Serra31
Wellington Bezerra de Souza32
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 74-79
“À medida que a Europa vai fortificando as suas fronteiras, fechando-as cada vez mais à
entrada de imigrantes, o tráfico ilegal de pessoas vai-se também tornando cada vez mais
comum. Ao criminalizar a imigração, a Europa não só vira as costas a um sério problema
moral como acaba por atingir mais profundamente quantos desesperam por fugir dos
respectivos países, contribuindo ao mesmo tempo para aumentar os já enormes lucros dos
traficantes responsáveis por essa atividade. (...) qual o preço que a Europa está a pagar por
estas políticas, que têm tanto de míope como de insustentável?” (SASSEN, Saskia. In:
Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 64, dezembro 2002, p. 41-54)
A flexibilização da economia, acentuada a partir da década de 1990, trouxe novos desafios à
questão da migração mundial. O deslocamento de grandes grupos em busca de melhores condições
de vida não é um fenômeno exclusivo do capitalismo e da economia flexibilizada do século XXI.
Se, por um lado, aumentou o número de profissionais altamente especializados que prestam
serviços num mundo sem fronteiras, por outro, as fronteiras são endurecidas para aqueles que
fogem de crises econômicas, guerras civis e catástrofes naturais. Essa é uma particularidade que
diferencia os deslocamentos atuais dos demais. A globalização defende o fim das fronteiras para o
capital e para as mercadorias, mas os Estados Nacionais ainda restringem o acesso de populações
consideradas “indesejadas”. O motivo recorrente é a crise econômica. Quando um país de economia
forte sofre uma retração econômico-financeira, uma das primeiras atitudes midiáticas frente à
população nacional é imputar a culpa ao “outro”, ao estrangeiro. Os Estados Unidos ergueram uma
30
Este relatório foi produzido a partir dos debates realizados no âmbito da Linha de Pesquisa de “Direitos Humanos”
(Mapeamento dos Migrantes na Cidade de São Paulo) do Laboratório de Análise Internacional (LAI) da Faculdade
Santa Marcelina (FASM).
31
Professora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina, onde atua como pesquisadora na Linha
de Pesquisa de “Direitos Humanos” do Laboratório de Análise Internacional (LAI). Possui graduação em História pela
Universidade de São Paulo (1985), graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1998), graduação em
Geografia pela Universidade de São Paulo (2013) e mestrado em Direito pela Universidade de São Paulo (2002). É
sócia-proprietária do GRUPO DE HUMANIDADES - curso online, preparatório para o concurso do IRBr.br.
32
Estudante do 3º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
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fronteira física onde passam os migrantes mexicanos, o governo inglês discute no parlamento leis
que criminalizem a migração, a Itália impede que navios de migrantes atraquem em seus portos, a
França possuiu uma política de duas faces: integração do migrante mais antigo e proibição de novos
fluxos. São atitudes que favorecem a ação inescrupulosa dos “coiotes”, alimentam o tráfico ilegal de
pessoas e agridem os Tratados de Direitos Humanos.
O fechamento das fronteiras europeias e a dificuldade de migração para os Estados Unidos
provocaram um aumento do fluxo de migrantes para o Brasil. Vivenciamos uma nova situação,
acolhendo pessoas da África e Ásia, em novos fluxos provocados por guerras civis e situações
econômico-sociais insustentáveis. Recebemos pessoas que antes dirigiam-se para as ex-metrópoles
europeias.
Historicamente, no processo de descolonização política, as metrópoles europeias
mantiveram investimentos e empresas privadas nos países “independentes”, assinaram acordos
comerciais para compra dos produtos locais e facilitaram o envio de estudantes para as
universidades europeias. Quando a guerra civil e/ou a crise econômica chega a esses jovens
Estados, os seus nacionais buscam asilo nas ex-metrópoles. O motivo da preferência é a língua e,
lógico, o motivo de fundo sempre é a ligação econômica colônia-metrópole, que não foi rompida
com a independência política formal. É mais fácil para o migrante escolher um país cuja língua ele
já conhece, cujos hábitos culturais ele vivenciou em seu próprio país.
O Brasil recebe fluxos tradicionais, como dos bolivianos. Eles constituem a maioria dos
migrantes na cidade de São Paulo. Esse fluxo cresce desde o Regime Militar. Nesse período os
militares brasileiros apoiaram a ascensão ao poder de Hugo Banzer Suárez e, desde então, os
investimentos – públicos e privados – do Brasil na Bolívia cresceram. O fato dos dois países
fazerem fronteiras é mais um fator para que o Brasil seja escolhido como país de destino da
migração boliviana. Nesse caso, a língua não é uma barreira. Estabelecido o primeiro fluxo
migratório e a fixação dos migrantes em São Paulo, cria-se um vínculo que alimenta o fluxo através
das décadas: parentes e amigos oferecem suporte para os recém-chegados e, enquanto a Bolívia não
for capaz de oferecer condições de vida a toda a sua população, a migração continuará. Infelizmente
os empregos oferecidos pelo mercado em São Paulo são precários e a maioria desses nacionais
bolivianos vive em situação de miséria e exploração. Permanecem no Brasil porque a situação na
Bolívia é pior. As remessas que enviam para seus parentes que permaneceram representam uma
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fonte de capitais para o próprio governo boliviano (quando essas remessas ocorrem por vias
bancárias), alimentando um círculo vicioso de exploração do trabalho no país de origem e no país
de destino da corrente migratória.
No século XXI, o Brasil tornou-se destino de um grupo sem vínculos econômicos e
culturais: os haitianos. O vínculo com o Haiti data de 2004, quando o Brasil assumiu o comando da
MINUSTAH e auxiliou a reconstrução do país. Desde então o governo brasileiro ofereceu um
status jurídico específico para os haitianos que migrassem para o Brasil. O fluxo aumentou
exponencialmente nos últimos anos e, apesar das facilidades de entrada no país, a ação dos coiotes
cresceu conjuntamente à migração. A ABIN estima em 38 mil o número de haitianos que entraram
no país de forma irregular. Esse grupo não conta com redes de apoio, como no caso dos bolivianos,
e chegam num curto intervalo de tempo e em grande número. Encontram um país que não tem
infraestrutura eficaz e possuiu ações públicas divergentes com relação à recepção dos migrantes em
situação de risco. Parte deles usa o Brasil como rota alternativa de entrada na França, via Guiana.
O fechamento das fronteiras europeias desviou para o Brasil, no século XXI, os sírios
muçulmanos.33 Assim como o Líbano, a Síria era parte do território francês desde o Acordo de
Syks-Picot, de 1917. Desde a Guerra do Líbano de 1976, quando a maioria política era consttituída
por maronitas, cresceu o número de muçulmanos migrantes. Esse novo fenômeno histórico reflete
na migração para o Brasil: aqueles libaneses que escolhem o Brasil são, em sua maioria, católicos,
pois migram apoiados pelas redes de migração familiares, mas os sírios, que fazem parte de um
novo fluxo, são muçulmanos. Segundo as estimativas – mais uma vez contamos apenas com
especulações – a migração de muçulmanos cresceu em relação à dos católicos entre aqueles
migrantes provenientes do Oriente Médio. Sempre que analisamos os novos deslocamentos de
população, no século XXI, fica muito claro que esses deslocamentos são provocados por questões
geopolíticas, que extravasam as questões nacionais, e que a escolha do destino também envolve
elementos mais amplos. Essas dinâmicas estão umbilicalmente vinculadas à mundialização da
economia e à ação da “Tríade”34 que domina a economia global.
33
Nosso vínculo migratório era com o Líbano. Essa corrente surgiu no contexto da I Guerra Mundial e com o fim do
Império Turco Otomano. Em sua maioria católicos, estabeleceram-se no Brasil a partir de 1920. Na década de 1970
tivemos mais uma corrente por conta da guerra no Líbano (e a terceira na segunda guerra do Líbano). Nessa última
corrente migratória aumentou o número de muçulmanos e o destino preferido é Foz do Iguaçu.
34
Estados Unidos, União Europeia e Japão.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Nesse contexto mais amplo, de interconexões geopolíticas e econômicas, cresce também o
fluxo de migrantes anglófilos e francófonos, como nigerianos, senegaleses e congoleses, que
escolhem o Brasil como país de destino.35
Se, por um lado, não existe no Brasil uma política migratória – nem de acolhimento nem de
proibição –, por outro, também não existe uma metodologia uniforme no registro das entradas
regulares no país. A Polícia Federal possuiu o maior número de registros, mas não possuiu uma
atualização dos mesmos, por exemplo, com a anotação daqueles que saíram do país ou faleceram.
Há a necessidade de ampliação dos recursos de tecnologias de informação que promovam essa
atualização de forma mais automática, oferecendo às autoridades governamentais e à sociedade
números que não sejam apenas estimativas. São necessárias políticas públicas voltadas para o
acolhimento dos migrantes. O primeiro passo para uma política responsável é conhecer o número de
migrantes, localização, e, a partir desses dados, oferecer possibilidades de inserção profissional e
social no Brasil.
Dentro da linha de pesquisa “Direitos Humanos”, desenvolvemos, desde março de 2015, um
projeto de mapeamento dos migrantes no Município de São Paulo. À primeira vista pode ser muito
pouco, mas esse pouco é muito representativo. São Paulo é uma cidade global e, por isso, atrai o
maior fluxo de migrantes, que vem em busca de oportunidades na própria cidade ou a usa como
ponto de passagem para outro local de fixação. Apesar de haver uma estimativa do número de
migrantes (algo em torno de 350.000) em São Paulo, não temos um conhecimento mais
pormenorizado sobre as expectativas dos mesmos: se querem permanecer, se trarão os familiares, se
desejam ir para outro lugar do país, se o Brasil é um ponto de passagem para furar o endurecimento
das políticas migratórias dos países mais ricos, etc.
A partir de dados fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Município
de São Paulo, os alunos da linha de pesquisa analisam, uniformizam e filtram os dados de cada
instituição governamental, além de construírem gráficos que possibilitam a visualização sintética da
situação dos migrantes residentes no município. O produto final será o mapa da cidade de São
Paulo, com a distribuição da população migrante por bairros.
35
Não sabemos se o Brasil é escolhido como país de destino ou apenas país de passagem, para furar as barreiras das
economias mais ricas.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Paralelamente, os alunos, através de trabalho de campo, conversam com comunidades de
migrantes e seus representantes, visando uma segunda etapa do trabalho, mais qualitativa, que
responderia às questões sobre as expectativas dos migrantes em relação à cidade de São Paulo.
Principal pergunta: irão fixar residência definitiva na cidade?
Por fim, como exemplo do trabalho realizado no âmbito da linha de pesquisa da FASM,
segue o relato do estudante Wellington Bezerra de Souza, a partir da entrevista realizada com o
Cônsul-Geral do Equador em São Paulo, Sr. Luiz Vladimir Vargas Anda.
Atualmente, no estado de São Paulo, segundo dados do consulado equatoriano, existem
cerca de 1.751 mil imigrantes regulares, sendo 60% do sexo masculino e 40% do sexo feminino.
Grande parte desses imigrantes é de origem indígena e vieram para o Brasil após 1999, por conta da
crise financeira que o Equador passava na época. A maioria desses imigrantes vive na região central
do estado, trabalhando na confecção de roupas, não sendo observado pelo consulado nenhum tipo
de trabalho escravo. Parte dessa população se encontra nos bairros do Brás e da Mooca.
Em 1999, quando rebeldes invadiram o Congresso e ocuparem o aeroporto internacional da
capital, Quito, aproximadamente 2 milhões de equatorianos saíram do país, grande parte com
destino ao Brasil. Naquela época não havia uma representação consular em São Paulo, fazendo com
que os imigrantes procurassem órgãos da prefeitura e do estado, com o intuito de solicitarem
refúgio e retirarem documentos, como o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE). O consulado do
Equador em São Paulo foi inaugurado em 2010, pouco tempo após a crise que ainda afetava o país.
Para o Cônsul Luiz Vladimir Vargas Anda, o presidente do país, Rafael Correa, inaugurou
uma nova fase, instaurando políticas de desenvolvimento e de comprometimento com seus
cidadãos. Ele também teria investido em uma política educacional para mudar a visão internacional
do país, criando universidades e dando bolsa de estudos, inclusive para aqueles que estão fora do
país de origem, em acordo com grandes universidades particulares do estado de São Paulo. O
governo equatoriano oferece bolsas de estudo para seus nacionais, sendo grande parte na área da
saúde (medicina, odontologia, enfermagem, etc.), criando, assim, os “planes y programas de
retorno”, que têm como objetivo dar uma atenção e integração para o migrante que estava em outro
país, ou até mesmo aqueles que ainda se encontram em outros países. Seguem alguns exemplos de
programas criados pelo Equador nos últimos anos:
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
- SECAP – “Servicio Ecuatoriano de Capacitacíon Profesional”: este programa tem como
objetivo oferecer cursos técnicos e capacitação profissional para os migrantes através de
plataformas on-line e presenciais.
- Bolsa Emprego – “Bolsa de Empleo”: tem como objetivo buscar empregos em setores
públicos ou privados para os migrantes que já são qualificados.
IESS – “Instituto Ecuatoriano de Seguridad Social”: um seguro social para os migrantes que
se encontram em outros países; somente para maiores de 18 anos.
“Servicio de Salud Pública”: o imigrante que retorna ao país tem direito ao serviço de saúde
pública do país, lembrando que o mesmo tem que estar filiado ao seguro social.
“Voy por ti”: programa voltado aos equatorianos que estão fora do país, de preferência
médicos já formados, que são incentivados a voltarem para o Equador e integrarem-se ao sistema de
saúde pública do país.
“Bono de la vivenda para la persona migrante y su família”: benefício dado ao imigrante que
retorna de um país que tem acordo com a política de retorno do Equador, oferecendo moradia de
qualidade para o imigrante que retornou e sua família.
Mesmo tendo pouco tempo de atuação em São Paulo, o consulado acompanha e oferece
suporte para os migrantes equatoriano, participando de feiras e ajudando com moradia aqueles que
chegam ao país sem condições financeiras. Atualmente, alguns desses migrantes moram na Avenida
Rio Branco. Apesar do alto índice de migrantes que vieram para o país entre os anos de 1999 e
2010, dados mostram que, a partir de 2014, grande parte deles foram registrados no sistema do
consulado.
A partir da entrevista concedida pelo Cônsul Luiz Vladimir Vargas Anda (e de sua palestra
na FASM, em 25 de maio de 2015), observamos uma política pública ímpar na América Latina, que
visa ao regresso de nacionais saídos do país por questões econômicas e financeiras. É uma política
de pagamento de uma dívida do Equador com os seus nacionais. O país oferece condições para a
volta de população e, ao mesmo tempo, busca dar suporte àqueles que ainda se encontram no Brasil.
Políticas públicas de acolhimento dos migrantes no país de chegada, somadas a políticas para o
retorno dos nacionais aos seus países de origem, são ações essenciais para o combate, com eficácia,
do tráfico de pessoas e a eliminação dos “coiotes”.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Relatório: A Coordenação de Políticas para Migrantes da Prefeitura de São
Paulo36
Angélica Ribeiro, Gleison Lima, Jéssica Rodrigues, Lennon Sarau,
Stephanie Ribeiro, Vaneide Magalhães, Victor Pimentel37
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 80-84
No dia 25/05 ocorreu a edição de 2015 do Simpósio da América Latina do curso de
Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM), o qual versou sobre o tema
“Migrações e Políticas Públicas”. Este relatório expõe alguns elementos da apresentação feita por
Camila Baraldi, Coordenadora-Adjunta de Políticas para Migrantes (CPMig) da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da cidade de São Paulo. No início da
referida palestra foi apresentado um panorama geral da migração contemporânea no Brasil, com
destaque para a análise sobre as principais nacionalidades e motivações relacionadas ao processo
migratório para o país.
Verificou-se que há uma grande incidência de imigrantes advindos de outros países latinoamericanos, tais como Bolívia, Peru e Paraguai. Grande parte migra em busca de trabalho e,
majoritariamente, é empregada na indústria têxtil. Essas pessoas normalmente encontram um
cenário muito adverso no Brasil, onde são utilizadas como mão de obra barata em tarefas que não
demandam alto grau de especialização. Embora alguns imigrantes tivessem uma profissão em seu
país de origem, ao chegarem ao Brasil apenas encontram a possibilidade de atuarem em trabalhos
precários, com jornadas extenuantes, maiores do que a legislação local permite e que muitos
cidadãos nacionais não aceitariam fazer.
Normalmente essas pessoas possuem uma visão muito otimista do Brasil antes do
processo de migração. Contudo, ao chegarem ao país, as diversas dificuldades burocráticas
envolvidas no processo de integração acabam por diminuir as expectativas iniciais. A dificuldade
36
Este relatório foi produzido a partir do trabalho final para a disciplina Teoria das Relações Internacionais, lecionada
pelo Prof. Tadeu Morato Maciel. As informações contidas na primeira parte do relatório estão relacionadas com a
apresentação de Camila Baraldi, Coordenadora-Adjunta de Políticas para Migrantes da Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania (SMDHC) da cidade de São Paulo.
37
Estudantes do 3º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
para que o estrangeiro consiga os documentos necessários para conseguir algum trabalho e a
urgência em obter alguma renda faz com que optem pelo trabalho sem registro. Entretanto,
destaca-se que a questão da exploração da mão de obra imigrante não é um problema exclusivo
do Brasil, o que justifica a urgência na ampliação dos debates sobre este tema tanto em âmbito
nacional quanto internacional.
Os imigrantes africanos são, em sua maioria, solicitantes de refúgio, como é o caso dos
cidadãos congoleses, os quais enfrentam os efeitos de um embate sangrento entre governo e
oposição. Todavia, também há o exemplo dos senegaleses e bengalis, que geralmente não são
considerados casos de refúgio, pois imigrariam por questões econômicas.
Desde 2010 foi observado um aumento massivo da imigração de haitianos, visto que até
outubro de 2014 este fluxo já somava mais de 39.000 pessoas. Além das dificuldades geradas
pelas históricas instabilidades políticas e intervenções internacionais, destaca-se como elemento
motivador para o processo de migração os efeitos devastadores do terremoto que assolou o país
em 2010, piorando as condições de vida que já eram bastante precárias. Majoritariamente, esses
imigrantes não são reconhecidos como refugiados, uma vez que não se enquadrariam na definição
brasileira de refúgio, baseada na Convenção de Genebra (1951) e na Declaração de Cartagena
(1984), ambas sintetizadas na Lei nº 9.474/97. Os haitianos são classificados no Brasil como
imigrantes sob caráter humanitário e, portanto, recebem um visto humanitário que lhes garante a
permanência no país.
Os sírios já são a quarta população com maior número de solicitações de refúgio no
Brasil, devido à crescente violência no país causada por conflitos entre representantes do governo
do presidente Bashar al-Assad e as forças rebeldes. Por fim, também se verifica a migração de um
crescente número de jovens europeus em busca de trabalho no Brasil, especialmente após os
efeitos da crise econômica internacional de 2008. Embora não sejam solicitantes de refúgio ou
advenham de cenários tão desfavoráveis como as populações de nacionalidades latino-americanas
e africanas, tal grupo também encontra dificuldades de integração no Brasil, inclusive no
processo de inserção no mercado de trabalho.
Camila Baraldi também destaca que São Paulo é a cidade brasileira que mais recebe
imigrantes. Nesse sentido, foi observada, por parte da prefeitura, a necessidade de criação de
políticas que melhorassem as condições dos estrangeiros residentes na cidade. Essas políticas
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
devem difundir o conhecimento, tanto para instituições públicas quanto para os próprios
imigrantes, de que estes últimos também são cidadãos de direito, assegurando, assim, que estes
compartilhem dos mesmos direitos que os cidadãos paulistanos.
Muitos
direitos
assegurados
aos imigrantes pela Constituição Federal de 1988 lhes são negados por desconhecimento ou
falhas jurídicas, principalmente porque o Estatuto do Estrangeiro não está em conformidade com
a Constituição, uma vez que este entrou em vigor no ano de 1980, isto é, oito anos antes da
promulgação da norma máxima do direito interno. Entretanto, já está em votação no Congresso o
Anteprojeto da Lei de Migrações, com o objetivo de substituir o Estatuto do Estrangeiro e
adequar as políticas para imigrantes com a realidade brasileira.
No âmbito municipal, foram pensadas medidas para a inserção mais efetiva dos
imigrantes na sociedade paulistana. Exemplo disso são os projetos desenvolvidos pela
Coordenação de Políticas para Migrantes, em articulação com outras secretarias da cidade. Dentre
eles estão a Campanha de Conscientização e Combate à Xenofobia; o Curso de Português para
Migrantes (em um primeiro momento destinado apenas aos imigrantes de países francófonos),
com apoio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC); a
regularização e o apoio às feiras culturais típicas de cada país; além do desenvolvimento do
Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI) como forma do governo local assumir
uma postura de reconhecimento do estrangeiro.
A principal proposta deste último projeto é amenizar as dificuldades com que se deparam
os imigrantes em relação à moradia, idioma e trabalho. Dentre essas questões entende-se que a
moradia aparece como um elemento central, pois as casas de abrigo não possuem espaço
suficiente para acolher todos os imigrantes que chegam diariamente na cidade. Ainda que,
atualmente, haja locais como a Casa do Migrante e o Arsenal da Esperança, a capacidade de
abrigo destas instituições é muito menor do que a real demanda, tendo os imigrantes que competir
com moradores de rua em abrigos públicos.
A língua portuguesa, ainda que pareça um obstáculo a ser superado, não se mostra de fato
uma barreira intransponível. Claro que o domínio da língua portuguesa é essencial na hora de
buscar um emprego, porém, nos últimos anos foram criados diversos cursos de português para
refugiados, especialmente em universidades e ONG’s. Além disso, em um primeiro momento, a
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Polícia Federal, junto de órgãos públicos especializados em imigração, devem ter entre seus
trabalhadores pessoas capacitadas para realizar o atendimento em outras línguas.
Uma vez solucionados esses primeiros desafios, segue-se a terceira fase, que é conseguir
um emprego. A dificuldade em conquistar uma vaga se dá já no momento de montar um
currículo, pois este deve conter endereço e ser redigido em português. Também há problemas
com a documentação e a tradução de diplomas, que muitas das vezes não têm validade em
território brasileiro.
Se a questão não for tratada com a seriedade e cautela devidas, a falta de oportunidades
pode levar os imigrantes à criminalidade. A ausência de assistência do Estado resulta, muitas
vezes, na necessidade de encontrar algum meio de subsistência que esteja vinculado a alguma
situação ilegal, o que gera resultados negativos à sociedade como um todo. Em consequência, a
garantia de direitos civis equiparáveis aos de cidadãos nacionais mostra-se como positiva tanto
em termos humanitários quanto econômicos, pois a eficiência da destinação de recursos para
processos de integração mais eficientes evita gastos futuros com ações paliativas.
Panorama Nacional da Imigração
Em complemento à fala de Camila Baraldi, destaca-se que desde os anos 2000 houve um
crescimento significativo do número de imigrantes em território brasileiro. Por esta razão, o
governo passou a dar mais atenção a essa questão. Dentre diversas motivações que determinam
os movimentos migratórios para o país, também é possível considerar a ascensão econômica do
Brasil no decorrer dos anos 2000 como um elemento importante. Entre 2002 e 2012, por
exemplo, o Brasil registrou um crescimento de 86,7% no número de estrangeiros que migraram
para o país.
Diante deste cenário, o Governo Federal tem investido nos órgãos responsáveis pela
regularização de políticas migratórias para que aqueles que vêm ao país possam ter uma boa
qualidade de vida. Um exemplo disto é o esforço para a redução da burocracia e para a melhoria
do atendimento aos estrangeiros nas repartições públicas.
Entre 2010 e 2014 o aumento das solicitações de refúgio atingiu cerca de 1.240%,
passando de 150 deferimentos para 2.032 até outubro de 2014. Neste quadriênio, a população de
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
refugiados no país cresceu 82%, passando de aproximadamente 4.000 pessoas para 7.289,
obviamente sem levar em conta a população de imigrantes haitianos sob o regime de visto
humanitário.
Desde a época da abolição da escravidão o Brasil tem políticas consideradas “abertas” à
imigração, sendo razoavelmente fácil conseguir cidadania brasileira, seja por casamento, por
tempo de estadia no país (dois anos de forma regular) ou por processo através das embaixadas,
ainda que os mesmos sejam lentos devido à falta de estrutura organizacional. Atualmente, o país
é o vigésimo nono em número de imigrantes no mundo, com aproximadamente 1.328.000
estrangeiros em situação regular (1,814% da população nacional). Esses números são muito mais
elevados quando são considerados os imigrantes que vivem irregularmente no país. Apesar da
estrutura deficitária, o Brasil continua sendo um destino frequente para alguns grupos de
imigrantes, seja pela facilidade de ingresso ao país, seja pela pluralidade de culturas, ou até
mesmo pela recente ascensão do país no cenário internacional.
Referências Bibliográficas
ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dados sobre refúgio no Brasil.
Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/dados-sobre-refugio-nobrasil/>. Acesso em: 28 mai. 2015.
G1 BRASIL. Numero de imigrantes cresceu 86,7% em dez anos no Brasil diz IBGE. Disponível
em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/numero-de-imigrantes-cresceu-867-em-dez-anosno-brasil-diz-ibge.html>. Acesso em: 28 mai. 2015.
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ONU, Organização das Nações Unidas. International Migration 2006. Disponível em:
<http://www.un.org/esa/population/publications/2006Migration_Chart/2006IttMig_chart.htm>
Acesso em: 28 mai. 2015.
PLANEJA SAMPA. Meta 65. Disponível em: <http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/metas/
meta/65/>. Acesso em: 28 mai. 2015.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Relatório: Os planos do governo equatoriano: incentivo ao retorno da população
migrante38
Karina Magalhães, Kenny Afolabi, Milena Ignácio,
Tai Afolabi, Verônica Santos e Wellington Souza 39
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 85-89
Introdução
No início da década de 1990, os países da América Latina sofreram uma intensa crise
econômica, como um reflexo das dificuldades enfrentadas no decorrer da década de 1980. O
Equador foi uma das nações mais afetadas. Os bancos fecharam e as poupanças – que eram o
principal meio de sobrevivência de mais da metade da população – foram congeladas. Houve um
panorama composto, dentre outros elementos, por restrições de investimentos, demissões em larga
escala e saída significativa de profissionais extremamente importantes para a dinâmica econômica
do país. Sem perspectiva de um futuro melhor, uma parte relevante da população se lançou rumo ao
desafio de encontrar um trabalho no exterior. Essas atividades profissionais normalmente
caracterizam-se por jornadas de trabalho extenuantes e salários baixos (se comparados aos
trabalhadores que não são migrantes), vinculados a atividades que a população local evitava
desempenhar. O Cônsul Geral do Equador em São Paulo, Luis Wladimir Vargas Anda, em palestra
realizada no Simpósio “Migrações e Políticas Públicas na América Latina”, na Faculdade Santa
Marcelina, afirmou que nesse período a má gestão governamental fez com que os ganhos
relacionados ao principal produto de exportação, o petróleo, não pudessem ser revertidos em ganhos
para a economia do país. Diante deste cenário, o Cônsul destacou que as remessas dos profissionais
que saíram do país foram de extrema importância para a economia do país. Parte da população
migrante, inclusive, conseguiu levar as poupanças não congeladas para o exterior, investiu e ainda
38
Este relatório foi produzido a partir do trabalho final para a disciplina Teoria das Relações Internacionais, lecionada
pelo Prof. Tadeu Morato Maciel. As informações contidas no relatório estão relacionadas com a apresentação do Cônsul
Geral do Equador em São Paulo, Luis Wladimir Vargas Anda, em palestra realizada no Simpósio “Migrações e
Políticas Públicas na América Latina”, na Faculdade Santa Marcelina.
39
Estudantes do 3º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
conseguiu enviar de volta parte dos lucros obtidos, tornando essas remessas essenciais para a
sustentação do país.
A partir do ano 2000 essa situação foi considerada de forma mais efetiva como um
problema, fazendo com que o governo passasse a pensar em alternativas que evitassem a saída dos
profissionais do país. Em 2007, com a ascensão do governo de Rafael Correa, um plano
governamental foi criado para recuperar e fazer crescer a economia; porém, alguns temas muito
importantes não foram previstos na lei, gerando a necessidade de emendas constitucionais para
torná-lo funcional. O ponto essencial das novas reflexões e ações do governo equatoriano era o
entendimento de que uma constituição não deveria ser feita “de cima para baixo” (como ocorreu
anteriormente, em decorrência de intervenções militares), mas que ela deve considerar a opinião do
povo. Em consequência, em 2008, pela primeira vez em muitos anos, o povo foi consultado para a
criação de uma nova constituição, o que resultou na reformulação da concepção de
desenvolvimento nacional (mais voltado ao bem-estar social) e no estabelecimento ou adequação
das instituições estatais para a consecução deste objetivo. A partir deste contexto, o Ministério das
Relações Exteriores do Equador foi incumbido do objetivo de trazer de volta esses imigrantes
espalhados pelo mundo e, para isso, em conjunto com os demais ministérios, criou uma Secretaria
Nacional de Imigrantes e planos que estimularam o retorno dessa parcela da população.
O Plano de Retorno
Para o Cônsul Luis Wladimir Vargas Anda, a principal mudança que deveria ser instaurada
versava sobre a potencialização da economia equatoriana. Com a dinamização econômica do país,
os profissionais teriam o estímulo e o interesse de, voluntariamente, retornar ao país de origem.
Destacam-se as seguintes ações em relação a esse processo:
1.
Mudanças no serviço nacional de alfândega – Servicio Nacional de Aduana del Ecuador
Foi estabelecido o plano Servicio Nacional de Aduana del Ecuador, por meio do qual passou
a existir maior facilidade no transporte de equipamentos e máquinas dos cidadãos no exterior, sem
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nenhum imposto na entrada ao país. Anteriormente, por conta de altas taxas alfandegárias, muitos
equatorianos não tinham interesse em retornar com seus bens adquiridos no exterior.
2.
Planos do Ministério da Saúde – Ecuador saludable, vuelvo por ti
O maior número dos profissionais que migraram eram médicos, que buscaram países onde
podiam trabalhar em sua área de atuação – por exemplo, o Chile. Aqueles que foram para países nos
quais não podiam exercer a medicina acabaram tendo que desempenhar outros serviços. Por isso, o
Ministério de Saúde fez um plano que garante vagas nos postos de saúde, nos hospitais e em todo o
sistema público de saúde, para que, ao retornar, esses médicos possam trabalhar. Essa mudança foi
possível porque o governo realizou a construção de 17 hospitais, sendo que há mais cinco em
construção, com previsão de término até o final de 2015. O Ministério da Saúde também trouxe
alguns médicos de Cuba para que pudessem treinar os profissionais equatorianos que não estavam
trabalhando na área por muito tempo.
O mesmo plano também estimula a volta dos cidadãos que tiverem filhos com enfermidades
graves em geral. Para isso, foram oferecidos diversos incentivos, tais como bolsas de estudo,
habitações e empregos para as famílias. Dentro desta iniciativa também constava a elaboração do
plano de ingresso de pessoas com deficiências no mercado de trabalho. Enquanto no ano de 2007
existiam apenas 50 pessoas com deficiências trabalhando no país inteiro. Com a realização deste
plano, mais de 45 mil pessoas já estão no mercado de trabalho, com carteiras profissionais
assinadas, resultando no maior índice de toda a América Latina. Segundo o Cônsul Luis Wladimir
Vargas Anda, a realização deste plano apenas foi possível por causa da atuação do ex-vicepresidente (que é portador de deficiência física), o qual foi convidado pela ONU, após o seu
mandato, para elaborar um projeto de inclusão das pessoas com deficiências em nível global.
3.
Plano do Ministério da Agricultura – Plan Terra y otros servicios
O Ministério da Agricultura elaborou o Plan Terra y otros servicios, como forma de facilitar
a produção agrícola do país. Os incentivos do governo equatoriano vão desde o oferecimento de
terras e equipamentos de trabalho até a capacitação das pessoas com interesse em se dedicar à
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atividade agrícola. Também houve a formalização de um grupo de agroprodutores, com objetivo de
exportar os produtos excedentes.
4.
Ministério da Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação – Plano de Estudos no
Exterior e Retorno de Professores
O governo atual no Equador considera que o seu principal foco é a educação. Segundo o
Cônsul Luis Wladimir Vargas Anda, o governo atual entende que mesmo que surja um cenário no
qual haja situações de dificuldades em qualquer setor da economia, o foco na educação e os
investimentos nessa área não serão interrompidos. Por conta disso, o governo elaborou alguns
planos para priorizá-la.
O governo ampliou as formas de acesso e financiamentos para que os estudantes possam
frequentar faculdades no exterior. Os primeiros colocados na prova de acesso possuem melhores
possibilidades no processo de escolha do local de destino e do curso a ser realizado. Grande parte
dos estudantes conta com bolsas completas de transporte, acomodação e habitação. Ao final do
período de estudos, esses estudantes devem retornar ao país, para colaboraram com conhecimento e
oferecerem serviços na construção e crescimento do país. Na América latina, o Equador tem o
maior índice de estudantes nas melhores universidades do mundo. A primeira turma que se formou
no exterior retornou ao país em 2014 e todos esses alunos já estão integrados no mercado de
trabalho.
O segundo plano do mesmo Ministério é relacionado ao retorno dos professores para o
Equador. Um dos elementos essenciais deste processo foi a construção de quatro universidades
federais. Anteriormente, não existia o ingresso de todos os alunos de colégio nas universidades do
governo. Atualmente, existe a garantia de que todos que completarem o nível secundário poderão
ingressar em um ensino superior de qualidade.
Em nome da garantia de um ensino de extrema qualidade foram fechadas 18 universidades
chamadas "faculdades de garagem" – por conta da facilidade de se obter um diploma mediante
pagamento. Deve-se destacar que está previsto na lei que outras oportunidades fossem oferecidas
aos estudantes destas faculdades. Também é preciso destacar que os professores são a categoria
mais bem paga em todo Equador. Em meio ao chamado plano de retorno dos professores, o governo
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realizou a construção de uma universidade de docentes, com objetivo de capacitar tanto os
profissionais que haviam deixado o país quanto aqueles que querem iniciar sua capacitação para
ingressarem nessa profissão.
Considerações Finais
Para o Cônsul Luis Wladimir Vargas Anda, a criação dos planos mencionados acima pode
ser vista como um meio encontrado pelo governo para pagar a “divida moral” com os três milhões
de equatorianos que se viram obrigados a sair do país em busca de melhores condições de vida.
Somente uma pequena parte desta população ainda não voltou ao país, os quais não precisam
remeter recursos para a manutenção de suas famílias no Equador. Por conta da crise na Europa,
além dos equatorianos que retornaram ao país, destaca-se o grande número de europeus que
chegaram ao país latino-americano em busca de emprego. O Cônsul também ressaltou que o Brasil
não foi o destino (de imigração) dos equatorianos. No Brasil inteiro não existem mais do que quatro
mil equatorianos. Em São Paulo, especificamente, não há mais do que mil equatorianos, com a
maioria sendo indígenas (60% dos que moram no estado são músicos e grande parte do restante são
artesãos). Conclui-se que o investimento maciço em infraestrutura, educação, saúde, etc. resultou na
diminuição drástica do êxodo da população equatoriana. Segundo o Cônsul, o governo continua
trabalhando na criação de novos planos e na melhoria dos já existentes, para trazer cada vez mais os
equatorianos de volta à pátria.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015
Relatório: As experiências de Cooperação Sul-Sul do Equador, Uruguai e El
Salvador: Propostas e Alternativas40
Aline Yuri Hasegawa41
Tadeu Morato Maciel42
Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 90-93
Em 29/04/2015, ocorreu, na Universidade Federal do ABC (campus São Bernardo do
Campo), a palestra “As experiências de Cooperação Sul-Sul do Equador, Uruguai e El Salvador:
Propostas e Alternativas”, proferida pelo Prof. Dr. Bruno Ayllón Pino (atualmente pesquisador e
docente do Projeto PROMETEO, da Secretaria de Educação Superior, Inovação, Ciência e
Tecnologia da República do Equador). Nesta palestra também houve a participação do Prof. Dr.
Giorgio Romano Schutte (Coordenador do Bacharelado em Relações Internacionais e Professor do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC) e do Prof. Ms. Tadeu
Morato Maciel (Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da
UFABC e Professor do curso de Relações Internacionais da FASM). A mediação do evento foi
realizada pelo Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues (Professor do curso de Relações Internacionais e
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC).
Tendo em vista as atuais características e dificuldades que permeiam a cooperação
internacional para o desenvolvimento, idealizada, especialmente, no âmbito da Organização para a
40
Este relatório foi produzido a partir da palestra “As experiências de Cooperação Sul-Sul do Equador, Uruguai e El
Salvador: Propostas e Alternativas”, realizada em 29/04/2015 na Universidade Federal do ABC (campus São Bernardo
do Campo).
41
Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC (2014). Mestre em Sociologia pelo PPGS/UFSCar. Possui
graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com habilitação em Antropologia
(2009) e Sociologia (2008). Pesquisadora do Laboratório de Cartografia do CERES-IFCH/UNICAMP e do Grupo de
Estudos MITRA (2014). Integra também, desde 2008, o Laboratório-Escola Xavante de produção e edição de vídeos e
imagens em Software Livre Wederã Lab.
42
Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Professor do curso de graduação em
Relações Internacionais na Faculdade Santa Marcelina (FASM) e pesquisador do Grupo de Análise e Prevenção de
Conflitos (GAPCON-UCAM). Graduado em Relações Internacionais pela FASM e mestre em Ciências Sociais
(Relações Internacionais) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui extensão universitária
em Cooperação Internacional ao Desenvolvimento pelo NUPRI-USP e em Cooperação Sul-Sul e Triangular na América
Latina pela Universidade Complutense de Madri.
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Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o debate realizado na UFABC43 buscou
destacar as possíveis alternativas oferecidas por países latino-americanos (especificamente Uruguai,
El Salvador e Equador) para as práticas de cooperação internacional. Mais especificamente, foram
discutidas as contribuições desses países para a Cooperação Sul-Sul como forma de intercâmbios
mais horizontais de conhecimentos, experiências e políticas públicas entre os países do Sul.
Inicialmente, Bruno Ayllón destacou a importância do 60º aniversário da Conferência de
Bandung, realizada em 1955, a qual elevou a um novo patamar as discussões dos países do Sul em
prol de uma reestruturação das relações internacionais que beneficiasse os países mais pobres.
Nesse sentido, após 6 décadas da sua realização, Ayllón ressalta a importância em refletirmos sobre
os reflexos da Conferência de Bandung nas práticas atuais de cooperação para o desenvolvimento.
A partir dessa reflexão inicial, foram destacados alguns elementos que caracterizariam as
dificuldades recentes da cooperação internacional para o desenvolvimento. A partir de uma reflexão
focada no caso do Equador, Ayllón aponta alguns desafios teóricos e práticos para a cooperação
internacional no âmbito latino-americano.
Antes de analisar a experiência equatoriana de cooperação internacional, Ayllón relembra
que, em geral, as pesquisas e reflexões sobre Cooperação Sul-Sul se concentram nas práticas de
cooperação realizadas pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), fazendo com que
esses países, considerados emergentes, sejam vistos como representantes das propostas de
Cooperação Sul-Sul. Isto acaba por transmitir uma visão distorcida da diversidade e das
divergências de concepções que conformam a Cooperação Sul-Sul. Apesar de ficarem em segundo
plano, deve haver uma atenção mais efetiva em relação às experiências de cooperação de países
menores (como é o caso do Equador), pois essas ações estariam, inclusive, mais distantes das
práticas de Cooperação Sul-Sul que ainda recebem muitas das críticas direcionadas à Cooperação
Norte-Sul.
A hipótese do autor, a qual está sendo verificada especialmente a partir do caso
equatoriano, é a de que os pequenos países latino-americanos, ao buscarem conjuntamente a
resolução de desafios para o desenvolvimento, forjam identidades compartilhadas pelo esforço
43
Após agradecer o convite para participação no evento, o Prof. Bruno Ayllón iniciou sua intervenção ressaltando a
importância da UFABC, destacando os debates produzidos no âmbito da universidade e a sua posição estratégica, na
região do ABC paulista.
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comum, o que leva à interdependência e à reciprocidade. Neste sentido, ele cita, por exemplo, a
falta de sintonia entre alguns agentes de cooperação de países emergentes e de países menores ou
mais pobres. Ayllón prossegue sua intervenção esclarecendo por que escolheu o Equador, Uruguai e
El Salvador para seu estudo. Neste sentido, ele aponta algumas peculiaridades que marcam os três,
conjuntamente: são projetos encabeçados por governos de esquerda com certo êxito; representam
parte da diversidade latino-americana; apresentam escala geográfica semelhante em relação a temas
como população, mercados e territórios; apresentam fortes avanços na redução da pobreza e da
desigualdade; são pouco dependentes da cooperação relacionada aos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio oferecida pela OCDE; apresentam políticas externas pouco ambiciosas, nas quais a
Cooperação Sul-Sul se consolida como um instrumento de desenvolvimento regional e de inserção
internacional; são membros ativos em blocos regionais; avançaram na consolidação de instituições
para a Cooperação Sul-Sul (tanto na recebida quanto na oferecida); elaboraram catálogos e
documentos relacionados às capacidades e aos sistemas de informação em Cooperação Sul-Sul;
buscam ampliar as opções de cooperação descentralizada (realizada pelos entes subnacionais);
buscam atentar para a questão de gênero, ao possibilitarem que algumas agências e instituições
voltadas à cooperação sejam dirigidas por mulheres. Segundo Ayllón, a Cooperação Sul-Sul
realizada por esses países é genuína, direta, próxima, rápida, singela, articulada e aposta no
fortalecimento institucional.
Ao comentar sobre o processo de transformação política no Equador a partir de meados da
década de 2000, durante o governo do presidente Rafael Correa, Ayllón destaca a influência da
concepção do Buen Vivir (que Bruno Ayllón traduz como “vida em plenitude”) sobre a cooperação
internacional recebida e oferecida pelo país. O Buen Vivir se constitui como uma construção
ontológica indígena, dos povos tradicionais do Equador, que orienta e organiza as novas prioridades
do processo de desenvolvimento equatoriano, a partir de elementos inseridos no próprio texto da
Constituição do país (por meio da chamada Revolução Cidadã). Nesta concepção, evidencia-se a
busca por uma qualidade de vida mais efetiva, a partir das prioridades definidas pela população
local. Objetiva-se uma relação mais sustentável com a natureza, uma concepção de
desenvolvimento que não seja linear ou evolucionista, e a descolonização dos saberes (opondo-se à
racionalidade da ciência moderna), dentre outros elementos.
Segundo Ayllón, são comuns as críticas sobre a ausência de aplicação prática da concepção
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de Buen Vivir nas ações de Cooperação Sul-Sul do Equador.44 Assim, as contradições entre a
política governamental e a retórica do Buen Vivir também estariam presentes no âmbito da
cooperação internacional daquele país. Todavia, tanto Bruno Ayllón quanto Tadeu Maciel
destacaram que solicitar uma aplicação prática imediata desta concepção nas práticas de cooperação
seria uma crítica parcial e superficial, que desconsidera o objetivo de estabelecer o Buen Vivir como
mudança cultural e política de amplo alcance, que busca alterar todas as políticas e instituições do
Equador.
Apesar da quantidade limitada de projetos de Cooperação Sul-Sul realizados pelo Equador,
Ayllón entende que o paradigma do Buen Vivir como norte da cooperação realizada pelo país pode
gerar novas perspectivas e alternativas para o sistema internacional de cooperação, ao apresentar
novas possibilidades políticas, econômicas sociais e culturais permeando as ações de cooperação.
Assim, Ayllón afirma estar interessado em olhar para outras experiências de cooperação, sem a
intenção de considerá-las melhores ou piores, mas diferentes. Desse modo, ele afirma que não é
mais possível falarmos em Cooperação Sul-Sul, no singular, mas sim em Cooperações Sul-Sul, no
plural, devido às diferenciações das relações e da diversidade do grau de desenvolvimento existente
entre os países que integram o chamado Sul Global.
Por fim, ao tecer alguns comentários sobre a Cooperação Sul-Sul brasileira, Bruno Ayllón
afirma que é preciso questionar os anseios e as possibilidades da cooperação brasileira. Nesse
sentido, Giorgio Romano destaca as dificuldades geradas pela falta de um marco regulatório,
fazendo com que a cooperação esteja muito esparsa, dificultando, inclusive, o trabalho de
quantificação da cooperação internacional realizada pelas instituições brasileiras. Neste sentido,
Tadeu Maciel afirmou que para que a Cooperação Sul-Sul brasileira se efetive como uma política
pública de médio e longo prazos, há a necessidade de se atentar para desafios diversos e de grande
escopo, tais como as dificuldades de orçamento, a falta de um quadro permanente de pessoal na
Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e a ausência de um marco jurídico e regulatório.
44
Sobre um detalhamento dos projetos e das críticas que permeiam a cooperação internacional equatoriana, indica-se o
texto: AYLLÓN, Bruno (2014). “Revolución ciudadana y Buen Vivir: desafíos de la Cooperación Sur-Sur de Ecuador”,
en ÁLVAREZ, F.; CHAVERO, P.; OLLER, M. (Coords.): Amawta, seminarios de investigación, Tomo I, Quito,
Editorial IAEN, pp. 75-105. (ISBN: 978-9942-950-41-3). Disponível em: <http://editorial.iaen.edu.ec/wpcontent/uploads/2014/10/Amawta.pdf>.
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