OS TERRITÓRIOS-REDE

Transcrição

OS TERRITÓRIOS-REDE
OS TERRITÓRIOS-REDE
A INTELIGÊNCIA TERRITORIAL
DA 2.ª RURALIDADE
António Covas
Maria das Mercês Covas
OS TERRITÓRIOS-REDE
A INTELIGÊNCIA TERRITORIAL
DA 2.ª RURALIDADE
Edições Colibri
Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação
COVAS, António, 1953-
, e outro
Os territórios-rede : a inteligência territorial da 2ª ruralidade /
António Covas, Maria das Mercês Covas. – (Extra-colecção)
ISBN 978-989-689-423-8
I – COVAS, Maria das Mercês, 1954CDU 332
Título: Os territórios-rede.
A inteligência territorial da 2.ª ruralidade
Autores: António Covas e Maria das Mercês Covas
Editor: Fernando Mão de Ferro
Capa: Raquel Ferreira
Depósito legal n.º 378 208/14
Lisboa, Julho de 2014
Este livro está escrito de acordo com a antiga ortografia.
À nossa filha
ÍNDICE DE MATÉRIAS
Nota Prévia........................................................................................................ 15
Introdução geral: a construção social dos territórios-rede da 2ª ruralidade ............................................................................................................ 17
I Parte
UM NOVO CONTRATO SOCIAL
PARA OS TERRITÓRIOS-REDE DA 2.ª RURALIDADE
Introdução ......................................................................................................... 29
1. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade................... 30
1.1. O ciclo de vida dos territórios, dissolução e recreação de sentido........ 31
1.2. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade................. 32
1.3. A microgeoeconomia das baixas densidades ........................................ 36
2. Os territórios-rede, uma nova região cognitiva em formação................... 41
2.1. A natureza do policy-problem do território-rede .................................. 42
2.2. A transição cognitiva do território-zona para o território-rede............ 45
2.3. A tensão política e a violência simbólica do processo de transição......... 47
3. Multifuncionalidade e bens de mérito, a base do novo contrato
social........................................................................................................ 48
3.1. O contributo da teoria positiva da multifuncionalidade........................ 49
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Os territórios-rede
3.2. O contributo da teoria normativa da multifuncionalidade .................... 55
3.3. O contributo dos bens de mérito para um novo contrato social ............ 58
Conclusão .......................................................................................................... 66
II Parte
A BASE AGROECOLÓGICA DA 2.ª RURALIDADE:
A 3.ª REVOLUÇÃO VERDE (3.ª RV)
Introdução ......................................................................................................... 69
4. O contributo da teoria da modernização ecológica (2.ª Revolução
Verde) ........................................................................................................... 69
4.1. O capitalismo verde e as teses sobre a modernização ecológica........... 70
4.2. As principais críticas à teoria da modernização ecológica.................... 74
4.3. A revisão da teoria à luz do desenvolvimento sustentável.................... 78
5. A 3.ª revolução verde, a longa transição agroecossistémica .................... 86
5.1. As dúvidas herdadas acerca da transição biotecnológica..................... 86
5.2. A relevância da abordagem agroecológica e ecossistémica.................. 91
5.3. O processo de transição e conversão agroecológica e ecossistémica....... 96
6. Uma biopolítica da paisagem: o contributo do arquitecto Gonçalo
Ribeiro Telles (GRT)............................................................................ 102
6.1. A filosofia e a política da paisagem em GRT ...................................... 102
6.2. O universo conceptual e normativo em GRT ...................................... 109
6.3. O plano verde e a ecopolis da 2.ª ruralidade ....................................... 115
Conclusão ........................................................................................................ 127
António Covas e Maria das Mercês Covas
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III Parte
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE
DA 2.ª RURALIDADE (2.ª R)
Introdução ....................................................................................................... 129
7. A dinâmica territorial e a construção social dos territórios-rede
da 2.ª ruralidade................................................................................... 131
7.1. A reconsideração do “problema rural” ............................................... 131
7.2. O universo conceptual dos territórios-rede e a teoria social .............. 138
7.3. Um quadro analítico, topologia e tipologia dos territórios-rede ......... 147
8. A cooperação territorial e funcional e a governança dos territórios-rede............................................................................................. 153
8.1. Os territórios lentos e a cooperação multiterritorial
e multifuncional .................................................................................. 154
8.2 Os campos de força no mundo rural
e a formação dos território-rede .......................................................... 168
8.3 Uma teoria do actor-rede para uma governança dedicada................. 179
9. A construção social de um território-rede para a Dieta Mediterrânica .................................................................................................... 185
9.1. A microgeoeconomia territorial, Querença e as suas réplicas............. 185
9.2. A Dieta Mediterrânica, uma apelação territorial de prestígio ............. 198
9.3 A construção social de um território-rede
para Dieta Mediterrânica..................................................................... 206
Conclusão ........................................................................................................ 217
Conclusões Gerais e Finais............................................................................. 219
LISTA DE ABREVIATURAS / ACRÓNIMOS / SIGLAS
1.ª R – 1.ª Ruralidade
2.ª R – 2.ª Ruralidade
3R – Reduzir, Reciclar, Reutilizar
1.ª RV – 1.ª Revolução Verde
2.ª RV – 2.ª Revolução Verde
3.ª RV – 3.ª Revolução Verde
AECT – Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial
BD – Baixa Densidade
BNT – Bens Não Transaccionáveis
BVS – Bolsa de Valores Sociais
CEE – Comunidade Económica Europeia
CEP – Convenção Europeia da Paisagem
CV – Corredores Verdes
DM – Dieta Mediterrânica
DS – Desenvolvimento Sustentável
EEM – Estrutura Ecológica Municipal
EEF – Estrutura Ecológica Fundamental
EEI – Estrutura Ecológica
EFTA – European Free Trade Association
(Associação Europeia de Comércio Livre)
EN – Estrada Nacional
EPC – Estrutura de Paisagem Cultural
ERPVA – Estrutura Regional de Protecção e Valorização Ambiental
GAL – Grupo de Acção Local
GAL/PAL – Grupo de Acção Local/ Programa de Acção Local
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Os territórios-rede
GD – Governança Dedicada (sentido idêntico a Institucionalidade
Dedicada – ID)
GRT – Gonçalo Ribeiro Teles
HEP-NEP – Human Exceptionalism Paradigm – New Environmental Paradigm
ICNF – Instituto para a Conservação da Natureza e Florestas
ID – Institucionalidade Dedicada (sentido idêntico a Governança
Dedicada – GD)
IEFP – Instituto de Emprego e Formação Profissional
IGP – Indicação Geográfica de Proveniência
INTERREG – Programa de Cooperação Transfronteiriça
IPCC – Intergovernamental Panel on Climate Change
IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social
ITI – Intervenções Territoriais Integradas
LEADER – Ligações Entre Acções de Desenvolvimento Rural
NUTS – Nomenclatura de Unidades Territoriais Estatísticas
(NUTS I; NUTS II; NUTS III)
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
OMC – Organização Mundial do Comércio
OGM – Organismos Geneticamente Modificados
PAC – Política Agrícola Comum
PAEF – Programa de assistência económica e financeira (da Troika)
PAL – Programa de Acção Local
PDM – Plano Director Municipal
PDM/EEM – Plano Director Municipal / Estrutura Ecológica Municipal
PP – Planos de Pormenor
PROT – Programa Regional de Ordenamento do Território
PROTAL – Programa de Ordenamento Regional do Algarve
PROT/ERPVA – Programa Regional de Ordenamento do Território /
Estrutura Regional de Protecção e Valorização Ambiental
QCA – Quadro Comunitário de Apoio
R – Ruralidade
RCV – Rede de Corredores Verdes
RV – Revolução Verde
SAL – Sistema Alimentar Local
António Covas e Maria das Mercês Covas
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SAF – Sistema Agro-Florestal
SC – Sistema(s) Cultural(ais)
SCS – Sistemas Culturais e Simbólicos
SGL/ID – Sistemas de Governança Local / Institucionalidade Dedicada
SIC – Sítio de Interesse Comunitário
SPL – Sistema Produtivo Local
SSC – Sistema Simbólico-Cultural
TAR – Teoria do Actor-Rede
TASA – Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais
TR – Território-Rede
ZIF – Zonas de Intervenção Florestal
ZPE – Zona de Protecção Especial
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UP – Unidades de Paisagem
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Os territórios-rede
ÍNDICES DAS FIGURAS
Figura n.º 1 – Paisagem global e sistema-paisagem
ÍNDICES DAS TABELAS
Tabela n.º 1 – Aproximação do quadro conceptual inovador (Middle level concepts) à construção social dos conceitos de Marsden (2004)
Tabela n.º 2 – Os modelos-padrão produtivista e sustentável
Tabela n.º 3 – A estratégia agroecológica
Tabela n.º 4 – Diferenças estruturais nos processos de transição e conversão
Tabela n.º 5 – A paisagem normativa do sistema-paisagem
Tabela n.º 6 – Territórios-rede e teoria social
Tabela n.º 7 – Quadro interpretativo do Projecto Querença e suas réplicas
NOTA PRÉVIA
Depois de A Grande Transição (Covas e Covas: 2011) e a A caminho
da 2.ª ruralidade (Covas e Covas: 2012) Os Territórios-rede é o terceiro
livro de uma trilogia sobre a construção social dos territórios rurais, muito
particularmente, a construção social dos territórios-rede e dos actores-rede.
A nossa tese é a de que os espaços privados de produção podem assumir
uma dupla faceta ou condição, isto é, podem tornar-se espaços comuns de
produção por via da cooperação territorial e, ao mesmo tempo, espaços
públicos de consumo por via do acesso e da visitação. Esta dupla faceta,
espaço comum de produção e espaço público de consumo, configura e delimita um território-rede e nele estão reunidas as condições mínimas para o
despertar de uma nova inteligência territorial e, também, para uma promissora economia de rede e visitação em espaço rural. O protagonista principal
deste território-rede em construção é, também ele, um actor em construção, o
actor-rede.
O livro é, igualmente, tributário de várias experiências recentes de
microgeoeconomia territorial, conduzidas entre 2011 e 2014, e algumas ainda em curso, que tiveram o seu projecto pioneiro na aldeia de Querença do
concelho de Loulé (denominado Projecto Querença) e que se replicou por
mais oito ensaios de intervenção territorial em projectos desenvolvidos por
diversos concelhos do país.
INTRODUÇÃO GERAL:
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE
DA 2.ª RURALIDADE
Pior do que ter uma má ideia é ter uma ideia feita.
Charles Péguy
O livro que agora se publica é o terceiro de uma trilogia sobre a Grande
Transição para a 2.ª Ruralidade. É um livro sobre a construção social dos territórios da 2.ª ruralidade, dos territórios-zona da 1.ª ruralidade aos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Nesta transição longa e paradigmática entre a 1.ª e a
2.ª ruralidades (Covas e Covas, 2011 e 2012) as grandes tendências pesadas
já aí estão: o inverno demográfico, as alterações climáticas e os grandes riscos, as deslocalizações repentinas das actividades económicas, a aceleração
disruptiva das dinâmicas territoriais, o regresso em força das vagas migratórias, a miniaturização do progresso tecnológico, a desvalorização estrutural
da força de trabalho, as crises agudas do sistema capitalista, os choques assimétricos sobre os níveis de procura interna nos mercados locais e regionais. No
plano territorial, e sobretudo ao nível local, estas tendências pesadas têm provocado impactos devastadores nos concelhos mais desprotegidos do interior do
país. Por isso, podemos dizer que os “territórios também se abatem”, sobretudo
os “territórios fixos” ou inertes ou imóveis do interior.
Estamos no segundo trimestre de 2014, no final do programa de assistência económica e financeira patrocinado pela TROIKA e no terceiro ano
consecutivo de recessão económica e social. O país tem parcelas crescentes
do seu território em estado de necessidade que mais parecem verdadeiros
“territórios em reclusão”. Referimo-nos a municípios inteiros sem actividade
económica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e,
sobretudo, sem um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.
Nestes territórios imóveis do interior prevalece a “lógica dos fixos e
delimitados” que, há muito, se confunde com a lógica associativa conven-
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Os territórios-rede
cional dos municípios, sendo a associação de municípios o único actor-rede
com algum significado neste “grande universo interior”. No contexto da
aplicação do programa de ajustamento económico e financeiro não surpreende, por isso, que a reforma do Estado e da sua organização político-administrativa voltem a estar na ordem do dia.
Ao mesmo tempo, a dinâmica global dos mercados põe em causa inúmeros “arranjos produtivos locais e regionais” do passado recente, construídos, muitas vezes, em circunstâncias de duvidosa sustentabilidade. Estes dois
vectores em conjunto – a reorganização político-administrativa do Estado e a
reestruturação das economias locais e regionais – chamam a nossa atenção
para uma grave implicação de natureza democrática: o contrato social dos
regimes demo-liberais já não assegura as condições de bem-estar em que
vivemos nas últimas décadas. Se focarmos a nossa atenção nas economias
locais e regionais dos velhos Estados-nação do sul da Europa somos imediatamente surpreendidos pela rapidez da desagregação e fragmentação territoriais operadas, razão pela qual somos confrontados com opções verdadeiramente dilemáticas sobre o que fazer em condições muito precárias e adversas
e com dotações de recursos muito exíguas.
Já não há dúvidas de que muitas regiões nacionais ficarão à margem dos
processos de transnacionalização da economia global. Mas mesmo essa marginalidade relativa precisa de ser gerida adequadamente, pois, mais uma vez,
é muito elevado o seu custo de oportunidade e são cada vez mais escassos os
recursos que podemos afectar a essas regiões em dificuldades. É neste
movimento de recentragem do papel do Estado-administração em Portugal –
entre um ciclo que se fecha, o da despesa e distribuição, e um ciclo que se
abre, o da eficiência, produtividade e resultados – que faz sentido o apelo às
abordagens territorialistas de inspiração e extracção muito diversas.
Mas nada está garantido à partida. Por um lado, tudo ou quase tudo gira
ainda à volta do Estado e dos seus territórios-zona hierárquicos, corporativos
e clientelares, quantas vezes institucionalizados por via dos sistemas de
incentivos e das preferências que eles contêm. Por outro lado, aumenta a
pressão sobre a chamada “economia real” e, por maioria de razão, sobre as
pequenas economias locais e regionais, quer pela lógica anárquica e impessoal dos mercados, quer pela “desalavancagem” imposta pelo sistema bancário, ele próprio com sérios problemas de capitalização financeira.
No contexto que enunciámos, a vida não fica fácil para a implantação
do que, neste livro, denominamos de territórios-rede. À partida, porém, nada
nos impede de criar uma associação virtuosa entre empreendimentos turísticos, grupos empresariais, parques e reservas naturais, comunidades piscatórias, instituições do ensino superior, centros de investigação, escolas profissionais agrícolas, associações empresariais e de desenvolvimento local,
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cooperativas e suas federações, autarquias e suas associações, clubes de produtores e de consumidores, superfícies comerciais e suas associações, meios
de comunicação social, etc. A este propósito, aliás, é, no mínimo, surpreendente que tantos actores se tenham ignorado durante tanto tempo acerca de
problemas e projectos que eles nunca anteciparam e conheceram como comuns, apesar de serem vizinhos geográficos e habitarem o mesmo chão
comum territorial durante as últimas décadas. Pelos vistos este chão comum
foi pouco inspirador, pois tudo ou quase tudo foi entregue à hierarquia acolhedora do Estado e à anarquia madura do mercado e muito pouco à sociedade
civil e à sua auto-organização na construção social dos mesmos territórios.
Esta acumulação desordenada de territórios particulares, privados e
públicos, que são geograficamente contíguos é um paradoxo digno do nosso
tempo, uma vez que é elevada a probabilidade de, neste caso, o todo ser muito menor do que a soma das partes. É sobre estes paradoxos, e por causa
deles, que terá lugar a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade.
Com efeito, são eles que, pelo seu paroxismo, permitirão aos diferentes grupos sociais construir diferentes versões do território, logo, também, a sua
multiterritorialidade e, esperamos, uma transterritorialidade inteligente. Para
ir ao encontro de tal complexidade, é necessário fomentar a associação virtuosa desses territórios particulares e formar um território-rede que promova
novas centralidades, funcionalidades, racionalidades e personalidades, missão de que se incumbirá o pivot do território-rede, o actor-rede. Os territórios-rede são, em tese, mais policontextuais, heterárquicos e cooperativos, e
aparentemente mais prometedores, mas têm quase tudo por demonstrar e não
existem regras universais válidas para todos os casos.
E no entanto.
Da mesma forma que os mercados se constituem cada vez mais num
“objecto de construção social” por parte de produtores e consumidores
explicitamente interessados em fazer deles “mercados reflexivos”, isto é,
mercados cognitivos que aprendem pela participação de todos os seus operadores, quando se densificam, diferenciam e auto-regulam, também os territórios se podem constituir em “objectos de construção social”, em territórios reflexivos e cognitivos que cooperam e se auto-organizam para recuperar e recriar os seus capitais essenciais, muitos deles esquecidos e abandonados, fixando para si próprios uma nova estrutura de objectivos e oportunidades.
Senão, vejamos.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território-rede
cujo lugar central é um Parque Natural ou um Sítio da Reserva Natura 2000
tendo em vista o ordenamento e a promoção de um Sistema Produtivo Local
(SPL) apoiado no Parque e sustentado pela criação de uma Indicação Geo-
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Os territórios-rede
gráfica de Proveniência (IGP), tudo isto em conjunto com as aldeias do Parque e os contributos do Instituto para a Conservação da Natureza e Florestas
(ICNF), a Escola Politécnica mais próxima e o “clube de produtores do parque” criado para o efeito.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território-rede
intermunicipal correspondente ao nível NUTS III ou, em alternativa, de uma
unidade territorial de um Programa Regional de Ordenamento do Território
(PROT), desenhando nesse território um projecto comum de Sistema Alimentar Local (SAL) em bancos de solos intermunicipais orientados, por
exemplo, para os desempregados de longa duração desses municípios, em
estreita colaboração com a associação de empresários e a escola superior
agrária mais próxima.
Podemos, por exemplo, reconfigurar o território periurbano de um ou
dois municípios geograficamente contíguos e delimitar um “Parque Agroecológico Intermunicipal” de fins múltiplos, uma espécie de centro comercial
em espaço rural, que junte a produção, a conservação e a recreação, em colaboração com a Escola Superior Agrária mais próxima, a associação de agricultores e os diferentes “clubes” criados para o efeito.
Podemos, por exemplo, reconfigurar o território-rede de uma ou mais
Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) tendo em vista criar uma economia
agro-florestal mais pujante e mais diversificada, em colaboração com as
aldeias serranas respectivas, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), a Escola Politécnica mais próxima e as associações de proprietários e caçadores que integram as ZIF.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território-rede de
uma ou mais cooperativas agrícolas e agro-industriais geograficamente contíguas tendo em vista melhorar e aprofundar as suas relações de integração e
as suas cadeias de valor regionais, inovando e recriando o seu cabaz de produtos sob a forma de terroir ou “apelação de origem”, em colaboração com a
Universidade ou Politécnico mais próximo e as associações e grupos empresariais respectivos.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território de uma
amenidade natural e paisagística, por exemplo, uma zona termal associada
ou integrada numa área de paisagem protegida para efeitos de aproveitamento turístico e turismo rural, desenhando e ensaiando, para o efeito, o modelo
de sustentabilidade mais apropriado, em colaboração com o grupo termal, as
câmaras municipais, o ICNF, a Universidade ou o Politécnico mais próximos
e a associação de agricultores e empresários local.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território-rede
abrangido por um empreendimento hidroagrícola de fins múltiplos tendo em
vista criar uma economia regional mais poderosa e diversificada e que seja,
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ao mesmo tempo, uma experiência-piloto de incubação empresarial e formação
de jovens empreendedores em colaboração com as associações locais, a instituição de ensino superior mais próxima e a administração local e regional.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia do território de um
Parque Industrial ou Empresarial tendo em vista valorizar a economia do
parque através da criação de serviços comuns que podem ser oferecidos por
uma espécie de condomínio do parque em colaboração com a associação
empresarial local e a escola superior mais próximas.
Podemos, por exemplo, reconfigurar a economia de um território ou
zona turística com o objectivo de diversificar e diferenciar a sua oferta turística para a época baixa, reunindo, para o efeito, a participação dos actores
locais, um ou mais grupos turísticos e uma instituição de ensino superior
tendo em vista desencadear uma acção colectiva inovadora e criativa de produto e serviço turístico para aquela época específica e/ou grupos-alvo específicos.
Podemos, finalmente, usar a apelação “Dieta Mediterrânica, Património
Imaterial da UNESCO” para reconfigurar a economia da região algarvia, em
especial as sub-regiões do barrocal e serra, através de uma abordagem agroecológica e socioecológica da sua agricultura familiar, em simultâneo com a
sua integração em cadeias de valor e “produtos estruturados” que verticalizem as várias dimensões da economia regional, da economia agrária à economia da saúde e alimentação e da economia da cultura à economia do
turismo.
A simples enunciação destes exemplos, entre muitos outros, revela dois
traços principais: em primeiro lugar, sublinha a importância da cooperação
entre territórios e do capital social que lhes corresponde, em segundo lugar,
mostra como a “construção social de um território de qualidade” é uma tarefa de grande exigência e complexidade, uma vez que não podemos prescrever os ingredientes do normativismo, colhidos algures, como solução geral
para todos os casos.
A tese central deste livro é a de que os espaços particulares de produção
e conservação podem assumir uma dupla faceta ou condição, isto é, podem
tornar-se espaços comuns de produção e conservação por via da cooperação
territorial e, ao mesmo tempo, espaços públicos de consumo e recreação por
via do acesso e da visitação. Esta dupla faceta, espaço comum de produção e
conservação e espaço público de consumo e recreação, configura e delimita
um território-rede e nele estão reunidas as condições mínimas para o despertar de uma nova inteligência territorial e, também, para uma promissora
economia de rede e visitação em espaço rural. O protagonista principal deste território-rede em construção é, também ele, um actor em construção, o
actor-rede.
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Os territórios-rede
O que queremos reafirmar é que a compressão espaço-tempo em que
estamos mergulhados obriga os nossos territórios mais convencionais, sejam
mais institucionais ou mais particulares, a olhar de dentro para fora e a buscar na cooperação territorial, mais próxima e/ou mais longínqua, na vizinhança ou na rede, as soluções que já não são capazes de encontrar dentro de
portas. As suas alianças serão muito variadas e vão desde as associações tradicionais com os seus pares até alianças muito heterogéneas com agentes e
entidades que não faziam, até agora, parte da sua rede habitual de relações. É
a este processo heterodoxo de construção de novos relacionamentos e conectividades, a esta nova inteligência territorial, que aqui denominamos de construção de uma região cognitiva.
Em todos os casos, a delimitação do território de partida e a escolha dos
parceiros para o efeito irão dizer-nos qual será a dotação inicial de recursos
territoriais, onde se inclui o capital social disponível que o território-rede e o
actor-rede estarão em condições de mobilizar. A dinâmica deste território-rede-cognitivo assenta em dois conceitos operativos: em primeiro lugar, um
conceito-rede-interno, a “cooperatividade” (Covas e Covas, 2011 e 2012)
entre os parceiros e o grupo de missão constituído para o efeito, em segundo
lugar, um conceito-rede-externo, a “coopetitividade” entre o território-rede e
os promotores externos, de tal modo que a “produção conjunta de internalidades e externalidades positivas” seja disseminada pelo território-rede e territórios adjacentes.
Estamos agora em condições de formular as nossas perguntas de partida, no quadro daquilo que já designámos por “paradoxo da vizinhança”
(Covas e Covas, 2011 e 2012): o que fazer para desencadear e instigar o
potencial de cooperação que está imanente nas relações de vizinhança e
proximidade, o qual, devidamente promovido, poderia servir para resolver
muitos problemas críticos de organização e acção colectiva territoriais no
sentido da criação de bens comuns para todos?
Esta pergunta de partida tem um corolário lógico: como transformar
os territórios vizinhos num actor-rede que seja capaz de consolidar a base
cooperativa da sua configuração territorial (a sua cooperatividade e internalidades positivas) e, do mesmo passo, de alargar a base operativa (a sua
coopetitividade e externalidades positivas) da sua produção conjunta de bens
e serviços de mérito e reputação?
Para ilustrar a complexidade da operação e o potencial de cooperação
contidos nas relações de proximidade e vizinhança territoriais do território-rede basta evocar, aqui e agora, a recente decisão da UNESCO de Dezembro de 2013 de inscrever a “Dieta Mediterrânica” na lista do património
imaterial da humanidade:
António Covas e Maria das Mercês Covas
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A dieta mediterrânica envolve uma série de competências, conhecimentos,
rituais, símbolos e tradições ligadas às colheitas, à safra, à pesca, à pecuária, à conservação, processamento, confecção e, em particular, à partilha e
ao consumo dos alimentos. Comer em conjunto é a base da identidade cultural e da sobrevivência das comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo. É um momento de convívio social e de comunicação, de afirmação e
renovação da identidade de uma família, grupo ou comunidade (Jornal
PÚBLICO de 04/12/2013).
Ou ainda,
com esta inscrição Portugal assume particulares responsabilidades na defesa das culturas locais, a obrigação de realizar inventários e de participar
no “Plano de Salvaguarda” com os outros Estados e comunidades representativas. A inscrição cria boas oportunidades para um maior dinamismo
na protecção e divulgação dos produtos tradicionais, espécies autóctones e
paisagens culturais, para a promoção de estilos de vida saudável e turismo
cultural (Jornal PÚBLICO de 22/12/2013).
Nesta declaração está contida toda a complexidade da 2.ª ruralidade e a
filosofia que deve inspirar o novo contrato social com o mundo rural. De resto, a criação de um território-rede para a promoção da Dieta Mediterrânica
será um desafio de grande monta para a região do Algarve nos próximos
anos.
Uma parte significativa deste potencial de cooperação residirá na forma
como os territórios-zona do poder autárquico convencional evoluírem em
direcção aos territórios-rede do poder local do próximo futuro. Para isso, é
necessário que o poder local deixe de se confundir com o poder autárquico,
como aconteceu até aqui. Até agora, o poder local em Portugal caía na área
de influência do poder autárquico, isto é, não havia praticamente sociedade
política local fora da sua área de influência. No próximo futuro, a sociedade
civil local irá separar-se gradualmente do poder autárquico e criar uma
sociedade política local distinta do poder autárquico que, entretanto, continuará a perder a relevância que assumiu no passado recente. Ou seja, o poder
autárquico vai contrair e o poder local vai dilatar.
Doravante, é provável que o poder autárquico, tal como o conhecemos
hoje, esteja de tal modo limitado nos seus recursos e capacidades que não
terá outra solução que não seja federar-se para cima e descentralizar-se para
baixo. Para cima, no sentido de uma autarquia de grau superior, com mais
músculo, recursos e acção estratégica, para baixo, no sentido de uma delegação e contratualização de muitas missões e tarefas às organizações da sociedade civil local que se constituirão gradualmente para esse efeito.
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Os territórios-rede
Estamos a falar de uma maior interacção entre a democracia represemtativa e a democracia participativa local. Todavia, a maioria dessa delegação/contratualização de missões e tarefas estará ainda por reinventar no
âmbito do que serão os futuros “territórios inteligentes municipais”. Ao
mesmo tempo que a democracia participativa adquire novas formas organizativas e modelos de acção cooperativa, aumentará, do mesmo passo, a
accountability municipal e o contencioso de responsabilidade será uma rotina absolutamente estabelecida.
Acresce que, esta dupla evolução para cima e para baixo alterará radicalmente a estrutura orgânico-funcional de uma câmara municipal. Por um lado, o
front office municipal será gradualmente reduzido pois dará lugar aos balcões
virtuais em tudo o que diga respeito a tarefas estandardizadas, por outro, o
back office ocupar-se-á de missões muito diferentes das actuais em tudo o que
diga respeito a projectos de desenvolvimento territorial e acções colectivas
inovadoras no âmbito da futura autarquia federativa de 2.º nível. No próximo
futuro, os territórios municipais estarão de tal modo limitados nos seus recursos e na sua acção que existe o risco elevado de se converterem em territórios
de reclusão e “municípios-lar”, espelhos de um irreversível definhamento
sociodemográfico que já hoje se observa. Por isso, se quisermos conhecer a
verdadeira face da democracia participativa no futuro próximo, os territórios
municipais terão de se transmutar em verdadeiros actores sociais, coligados
com outros actores sociais na concepção e realização de territórios-rede e de
uma nova produção conjunta de bens de mérito e reputação.
Esta mudança profunda nas missões e tarefas da autarquia de 2.º grau e
dos municípios que a integram obrigará não apenas a mudar o quadro dos
seus colaboradores como a estabelecer um novo padrão de relacionamento
com as instituições de ensino superior, as associações empresariais, outras
estruturas associativas e a administração pública regional.
Neste contexto fortemente cognitivo onde todos estão obrigados a
aprender, a abordagem da teoria das convenções e da teoria das redes pode
ajudar à configuração de um território-rede para o novo ciclo, em especial
para a arquitectura socioeconómica daqueles concelhos e municípios com
uma população reduzida e intermitente, mais móvel e mais ausente, em que é
preciso trabalhar, simultaneamente, em muitas áreas de intervenção. Uma
convenção de desenvolvimento territorial pode, por exemplo, ser desenhada
para promover o lado virtuoso da baixa densidade e trabalhar com mercados
de gama e de nicho conectados com populações virtuais e mercados à distância. Falamos, por exemplo, dos mercados da saudade ou da “força dos laços
fracos” de Granovetter (2011) e, em todos os casos, de uma economia de
eventos e visitação apoiada em actividades criativas e culturais que combinam bem com os mercados turísticos de gama e nicho.
António Covas e Maria das Mercês Covas
25
Em resumo, num momento em que, em Portugal, o “país interior” está a
ser desmantelado e abandonado queremos ainda acreditar que é possível
mobilizar “valores e recursos de baixo custo” que inspirem um novo contrato
social orientado para a construção dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Esta
2.ª ruralidade assentará numa base agroecológica e socioecológica que pode
ajudar a “revolucionar” a agricultura familiar em Portugal e as pequenas economias locais e rurais do interior do país, se, para tanto, formos capazes de
construir novas multiterritorialidades, novas formas de acção colectiva e “actores-rede dedicados” que saibam gerar esse efeito virtuoso nos territórios.
O país acaba de experimentar uma cura de austeridade de três anos, que
ainda permanecerá nos próximos tempos, e o Estado-administração está
exausto. Todos sentimos essa fadiga na nossa vida quotidiana. É, mesmo,
muito provável que ele queira retirar-se de muitas áreas onde tinha intervenção directa até agora. Não o fará de ânimo leve porque durante muito tempo,
e ainda hoje, foi capturado pelos poderes corporativos, formais e informais,
organizados nos planos nacional, regional e local. O Estado-administração
não se auto-reformará ou, então, fará um exercício proclamatório inconsequente como foi aquele a que assistimos com a divulgação recente do Relatório sobre a reforma do Estado.
É imperioso insistirmos neste ponto nevrálgico. A transição dos territórios-zona para os territórios-rede é uma tarefa de longo alcance que só acontecerá se mergulhar fundo num caldo de cultura inspirado pelos princípios da
democracia participativa e contratual onde os conceitos da ordem velha político-administrativa de cariz hierárquico, autoritário e unilateral darão lugar,
pouco a pouco, aos conceitos da ordem nova, aqueles que podem ser reportados a uma nova reconfiguração do território, desta vez mais heterárquica,
comunicativa, policêntrica e policontextual da sociedade aberta. Nesta nova
arquitectura societal residirão, seguramente, as áreas de maior inovação do
futuro Estado-administração, um Estado-procurador dos interesses, comuns e
públicos, dos cidadãos.
Gostaríamos, por isso, de terminar esta introdução com uma referência
final ao “factor associativo”, condição sine qua non para levar a bom termo
os territórios-rede e a sua refrescante inteligência territorial. Tudo leva a crer
que a próxima fase do sistema capitalista, pelo menos nas economias maduras da Europa Continental, se caracterizará por taxas de crescimento económico anémicas, baixas taxas de emprego e altas taxas de desemprego estrutural, acompanhadas por um agravamento correlativo das assimetrias regionais
e territoriais (já hoje isso acontece).
26
Os territórios-rede
Quer dizer, iremos assistir à desvalorização estrutural do factor trabalho,
nas remunerações e nos direitos sociais adquiridos, e à desconsolidação territorial dos mercados de trabalho e emprego que, doravante, se concentrarão nas
grandes áreas metropolitanas e num número reduzido de pólos de crescimento.
Fora destas áreas e pólos de crescimento haverá uma rarefacção crescente de
postos de trabalho e, portanto, uma desterritorialização das economias locais
com um impacto muito forte sobre a estrutura sociodemográfica e socioeconómica da grande maioria dos concelhos do interior do país.
Neste contexto tão hostil, os movimentos sociais e o associativismo de
todas as naturezas, tanto do lado da oferta como do lado da procura, terão de
fazer o seu trabalho de casa e, doravante, deixarem de ser complacentes e
cúmplices para passarem a ser implacáveis e exigentes com as várias administrações públicas e/ou corporativas. É o tempo de uma nova radicalidade,
“da ética e do cuidado”, é o tempo de a função de accountability ser levada
até às últimas consequências, seja perante a administração pública ou perante
as corporações e grupos empresariais, é o tempo de um outro interesse
comum, de um outro espaço público, de uma outra acção colectiva. Os territórios-rede e os actores-rede são, neste enunciado, uma promessa de futuro.
O livro que agora se apresenta é composto por três partes e nove capítulos. Na I Parte tratamos do novo contrato social da 2.ª ruralidade, se quisermos, da policontextualização favorável à ocorrência dos territórios-rede da
2.ª ruralidade. No capítulo 1 começamos por abordar, numa perspectiva quase doutrinária, aquilo que designamos como “declaração de princípios do
movimento da segunda ruralidade”, um decálogo de princípios que, julgamos, resume bem os fundamentos essenciais do nosso “labor construtivista”.
No capítulo 2, elaboramos um pouco mais sobre a transição dos territórios-zona para os territórios-rede, de acordo com a hermenêutica própria da
noção de região cognitiva, isto é, de uma região que pela sua auto-organização é capaz de reflectir, aprender e crescer.
No capítulo 3 regressamos aos conceitos e às temáticas da multifuncionalidade e dos bens de mérito e reputação para esclarecer e justificar quais os
atributos que gostaríamos de reconhecer nos bens e serviços produzidos por
uma sociedade participativa e contratual, o caldo de cultura onde germinará a
região cognitiva e a formação dos territórios-rede da 2.ª ruralidade.
Na segunda Parte abordamos a base agroecológica e agroecossistémica
da 2.ª ruralidade que aqui designamos como o advento da 3.ª revolução verde. No capítulo 4 abordamos o contributo da teoria da modernização ecológica que na literatura especializada é denominado de 2.ª revolução verde,
numa lógica e num registo de “modernização reflexiva” levada a cabo no
“interior do sistema dominante”.
António Covas e Maria das Mercês Covas
27
No capítulo 5 fazemos uma viagem exploratória até à “transição agroecológica e socioecológica” que aqui consideramos como o núcleo base da
futura revolução agro-ecossistémica ou 3.ª revolução verde.
No capítulo 6 fazemos uma digressão filosófica ao universo paisagístico
do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) através de uma revisitação breve a alguns dos seus conceitos mais emblemáticos como são os de paisagem
global, cidade-região e plano verde, que são os conceitos centrais para a
estruturação do campo da região cognitiva da 2.ª ruralidade.
Na III Parte abordamos a construção social dos territórios-rede da
2.ª ruralidade, a partir da reconstituição do capital social dos territórios, em
primeira instância pela mobilização e conjugação de “valores e recursos de
baixo custo” como são a cooperação, o associativismo, a solidariedade e a
responsabilidade social e ambiental.
No capítulo 7 fazemos uma descrição da “nova ordem” em formação,
acompanhada de uma reflexão sobre o universo conceptual dos territórios-rede no quadro mais geral da teoria social e elencamos uma série de exemplos possíveis de territórios-rede, sob a forma de uma primeira tipologia
exploratória, de onde ressalta, sobretudo, a variedade multiterritorial e o
potencial de inovação e cooperação organizacional que neles se podem
observar e promover.
No capítulo 8 tomamos as virtualidades dessa variedade multiterritorial
e multifuncional como activos territoriais de primeira linha, confrontamo-las
com os campos de forças que correm hoje no mundo rural e terminamos com
uma teoria-prática do actor-rede enquanto operador nuclear da governança
dos territórios-rede.
Finalmente, no capítulo 9, ensaiamos a construção de um território-rede
que está, por enquanto, apenas virtualmente implícito na apelação Dieta
Mediterrânica que nos foi conferida pela UNESCO e, através de um pequeno
ensaio, procuramos averiguar até que ponto uma denominação de prestígio
outorgada por uma organização internacional tem força suficiente para mobilizar o capital social de uma parte importante da região do Algarve numa
outra direcção, nomeadamente, tendo em vista a diversificação do modelo de
negócio prevalecente na região. Para introduzir o capítulo 9 tiramos partido e
benefício de uma experiência prática de microgeoeconomia territorial que
ocorreu entre 2011 e 2014, e ainda em curso, e que envolveu um projecto pioneiro de intervenção territorial, o Projecto Querença, assim como diversas
replicações que tiveram lugar em vários concelhos do país e rematamos com
uma delimitação exploratória de um território-rede para a Dieta Mediterrânica.
I PARTE
UM NOVO CONTRATO SOCIAL PARA OS
TERRITÓRIOS-REDE DA 2.ª RURALIDADE
Introdução
Em Portugal, a construção social dos territórios rurais tem sido determinada e fortemente condicionada pela implantação territorial das estruturas político-administrativas, seja no âmbito dos planos directores municipais e das
políticas públicas locais, seja no quadro da política regional e do programa
operacional de cada região NUTS II ou, finalmente, no âmbito do plano de
desenvolvimento rural, grupos de acção local e respectivas unidades de gestão
territoriais. Em quase todos os casos, há uma presença, mais visível ou mais
dissimulada, dos aparelhos político-ideológicos e das estruturas político-partidárias, pois, como sabemos, as circunscrições eleitorais passam por esses
dois níveis de recrutamento. Não admira, portanto, que uma parte importante
dos recursos públicos para o mundo rural passe por aqui.
Isto quer dizer que outros critérios, com outras referências, por exemplo, as “regiões naturais” reportadas a unidades de paisagem ou as “regiões
virtuais” reportadas a certas tipologias de rede e inteligência territorial ou,
ainda, “regiões funcionais” reportadas a certos tipos de aglomeração económica e sistemas produtivos locais, acabam por ser relegadas para plano
secundário. Já para não falar das “regiões administrativas”. Estamos, portanto, no país dos “territórios-zona”.
Assim sendo, estamos, portanto, num país bipolar em que a administração central é grande demais para resolver os pequenos problemas e a administração local é pequena demais para resolver os grandes problemas. Infelizmente, é à volta desses dois níveis de administração que gira a maior parte
das políticas públicas, pois é também aí que se monta a “girândola político-
30
Os territórios-rede
-eleitoral” e se estabelecem as “casas político-partidárias”. A ruralidade, em
sentido amplo, é um parente pobre deste país dual. Por um lado, tem uma
baixa expressão eleitoral, o que lhe retira competitividade política, por outro
apresenta reduzidos efeitos de aglomeração económica o que, na retórica
dominante, significa que tem uma baixa competitividade económica. Este
facto, porém, não impede o mundo rural de continuar a ser um excelente
reservatório de mais-valias, agrárias, imobiliárias e urbanísticas, o que, à
evidência, parece convir a uma certa “inércia do sistema”.
A I Parte visa estabelecer as bases político-doutrinárias do contrato
social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. O primeiro capítulo trata da
“declaração de princípios” de um suposto movimento da 2.ª ruralidade. O
segundo capítulo aborda os territórios-rede como uma região cognitiva em
construção. Finalmente, o terceiro capítulo trata da multifuncionalidade
agrorural e dos bens de mérito como conceitos constituintes e instituintes de
um novo contrato social da 2.ª ruralidade.
1. A declaração de princípios do movimento da 2.ª ruralidade
A construção da chamada agricultura convencional acompanha os grandes ciclos de transformação social do capitalismo contemporâneo. Falamos
de industrialismo, urbanismo, grande distribuição alimentar, conservacionismo, higienismo e segurança alimentar, recreacionismo e lazer, ecossistemismo, financeirização e sociedade da informação e do conhecimento. Em
pano de fundo, assistimos ao processo de découpling agro-alimentar-territorial, isto é, à separação, ao alongamento e à artificialização das cadeias alimentares que se tornam mais energetívoras, mais bioquímicas, mais biotecnológicas e mais desterritorializadas.
Hoje, é possível descrever as características-padrão da chamada agricultura convencional ou agricultura de commodities com relativa segurança:
agressividade nos mercados globais, intemporalidade das produções, mais
higiene e segurança alimentar, mais contingência e risco, mais custos de
formalidade e contexto, maior volatilidade dos investimentos, maior capitalização dos empreendimentos, maior verticalização das cadeias agro-industriais-alimentares, mais e melhor interprofissionalismo. O contravalor
da fase actual do capitalismo contemporâneo tem pelo menos duas faces: em
primeiro lugar, a diversidade e a pluralidade de formas de agricultura como
manifestação de uma contra-racionalidade territorial, em segundo lugar, a
microgeoeconomia das baixas densidades como uma manifestação de resiliência dos microterritórios. Em ambos os casos, a força imanente dos territórios e a resiliência das gentes como resposta a uma putativa morte anunciada.
António Covas e Maria das Mercês Covas
31
1.1. O ciclo de vida dos territórios, dissolução e recriação de sentido
A fase actual do capitalismo procede por compressão. A compressão
das dimensões espaço-tempo marca o ciclo de vida dos territórios como se
houvesse apenas duas classes de territórios, os rápidos e os lentos. Devido à
aceleração das dinâmicas territoriais motivada pela velocidade e expansão
dos mercados de commodities, os ciclos de vida de muitos territórios são
dramaticamente encurtados e muitos estão à beira de viver um verdadeiro
estado de necessidade e reclusão. Em consequência, vivemos, hoje, um
movimento permanente de dissolução e recreação de sentido, de espaço
recebido, vivido e transmitido, em que o espaço é uma sucessão interminável
de formas e conteúdos, produzidos e reproduzidos continuadamente. Entre
os factores que contribuem para essa dissolução e recreação de sentido, num
perpétuo movimento de desterritorialização e reterritorialização, contam-se:
– A crescente artificialização das cadeias agro-alimentares que provoca
descontinuação nas fileiras verticais de produção e consumo;
– A crescente marginalização de solos agrícolas, o abandono e concentração da propriedade mas, também, o aumento da economia informal e o
risco de incêndio;
– A crescente mobilidade dos factores que contraria e impede um correcto
ordenamento do território, a terra em primeiro lugar;
– A crescente volatilidade de capitais e investimentos que põe em causa
os valores naturais e o sistema-paisagem;
– A investigação dominante que responde, tantas vezes, às necessidades
dos grandes laboratórios para obter resultados imediatos e que, por isso,
nem sempre acautela a “velocidade” de regeneração dos recursos naturais;
– A incultura sobre os recursos identitários e simbólicos de um território
que danifica a estrutura de oportunidades desse território e de que a
turistificação excessiva é apenas um exemplo;
– O excesso de zelo regulamentar e administrativo face às micro e pequenas empresas e o “excesso de distracção” face às múltiplas formas de
concorrência imperfeita e seus “projectos especiais” que acabam por
destruir território e pequenos negócios;
– A inércia conservadora das instituições de ensino que não actualizaram
a sua missão face às necessidades de intervenção urgente nas economias
locais e regionais.
Como se pode observar, é a velocidade que impõe o ritmo da dissolução e recriação de sentido aos territórios. Apesar de todas estas dificuldades
32
Os territórios-rede
e oportunidades, ou talvez por causa delas, continuamos a acreditar que o
campo das possibilidades do mundo rural não se reduziu e que, ao contrário, a polissemia dos territórios será cada vez mais tributária da aleatoriedade da natureza, por um lado, e da liberdade humana, por outro, e que
estas duas “contingências” podem ser muito úteis ao desenho e à gestão de
sistemas territoriais complexos e inteligentes (Covas e Covas, 2012) no próximo futuro.
Os sistemas territoriais são complexos de vida, história e geografia, resilientes à homogeneização do mundo-plano, onde ainda é possível descortinar
uma inteligência territorial remanescente e onde ainda se respira o espírito e
o génio dos lugares, mesmo em áreas de baixa densidade onde os “lugares
também se abatem”. Os sistemas territoriais são, por outro lado, pequenos
laboratórios de construção de novas territorialidades onde, lentamente, se
recupera o capital natural e o capital social e se desperta a inteligência territorial adormecida dos lugares. Trata-se, se quisermos, de uma biopolítica do
território, isto é, de respeitar e instigar a pluralidade e a diversidade das formas de vida do mundo rural. Embora ainda timidamente, as características de
“uma outra ruralidade” também já se anunciam:
– O resgate das “agriculturas de época”, que é, também, o resgate das
agriculturas de proximidade e da denominada “agricultura acompanhada pela comunidade”;
– O resgate das “agriculturas alternativas”, de diferentes lógicas e sistemas de agricultura, cujos protagonistas são muito diferenciados, e que
vão desde a agricultura biológica até uma tipologia muito variada que
inclui a protecção integrada e a produção integrada, a permacultura e
outras “agriculturas naturais”;
– O resgate das “agriculturas urbanas”, desde a pequena horta social até
às formas mais sofisticadas de agricultura vertical;
– A diversificação das formas de agricultura multifuncional, na linha de
um certo metabolismo e organicismo dos territórios, é uma corrente de
ar fresco na teoria do desenvolvimento rural e, também, um contributo
decisivo para o desenvolvimento do conceito de região cognitiva;
– A modernização ecológica dos sistemas especializados de agricultura
convencional e a transição de alguns agrossistemas em direcção aos princípios fundadores da agroecologia é, também, uma resposta à diversidade
das condições e dos valores naturais e, mais uma vez, um contributo interessante para o reconhecimento do conceito de região cognitiva;
– O reconhecimento por parte da nova PAC pós-2013 de uma economia
dos ecossistemas e dos serviços ecossistémicos, onde se inclui uma
nova geração de bens públicos rurais, tais como infraestruturas verdes,
António Covas e Maria das Mercês Covas
33
corredores ecológicos, equipamentos agroecológicos e ecossistémicos e
pagamentos por serviços de mérito prestados, é mais uma revelação da
biopolítica que informa a região cognitiva;
– O reconhecimento de outros formatos socioinstitucionais, com fundamento na nova sociologia económica e na nova economia institucional,
como são a economia dos contratos, das convenções, dos clubes e das
formas de governança e institucionalidade dedicadas, assim como o
lugar central da nova estratificação socioecológica e o papel nuclear dos
actores-rede no quadro dos futuros territórios-rede;
– Finalmente, o novo contrato social com o mundo rural dará um lugar
destacado ao sistema-paisagem, à cidade-região e à estrutura ecológica
local tendo em vista um planeamento de base regional onde fazem sentido conceitos como plano verde, reserva estratégica alimentar e mercados de proximidade.
Na mesma linha de raciocínio, de permanente dissolução e recriação de
sentido dos territórios, estará a inibição ou o receio que sentirmos em enfrentar as alternativas ao modelo dominante de agricultura, em ir à redescoberta,
sem quaisquer medos, da nossa exclusão e contra-racionalidade. Se formos
capazes de assumir esta contra-racionalidade, iremos, também, redescobrir
muitos sistemas territoriais em espaços geográficos que já considerávamos
“não-lugares” (Augé, 1992), pois mesmo nos espaços mais críticos da baixa
densidade há uma razão orgânica e virtuosa e um “génio dos lugares” que
podem irromper a qualquer momento, se forem devidamente instigados.
Já conhecemos os quatro elementos que estruturam um sistema territorial: as unidades de paisagem (UP), os sistemas produtivos locais (SPL), os
sistemas socioculturais (SC) e os sistemas de governança local ou institucionalidade dedicada (SGL/ID) (Covas e Covas, 2012: 25). Sabemos, também,
que é muito difícil fazer coincidir, no mesmo espaço-tempo, estes quatro
subsistemas territoriais. Não obstante, só podemos acreditar que os sistemas
territoriais da alter e da contra-racionalidade, ao acolher geografias e territorialidades muito diversas e pouco comuns, irão enriquecer a “biopolítica” de
qualquer território e, portanto, alargar imenso o seu campo de possibilidades.
Dito isto, na doutrina da 2.ª ruralidade a pluralidade de racionalidades territoriais é uma espécie de imperativo categórico e é sobre elas que se construirá a inteligência territorial dos futuros territórios-rede, uma vez que as economias internas e externas que se formam em seu redor (economies of scope)
constituem activos inestimáveis para a rede colaborativa desses territórios.
Chegados aqui, com a informação de que já dispomos, julgamos estar
em condições de enunciar a declaração de princípios da 2.ª ruralidade que
são, também, os princípios estruturantes do novo contrato social que a socie-
34
Os territórios-rede
dade portuguesa estará ou não disponível para subscrever com o mundo rural
português.
1.2. A Declaração de Princípios do Movimento da 2.ª Ruralidade
(2.ªR)
Não podemos afirmar que há um movimento da 2.ª ruralidade, essa afirmação não seria verdadeira. Um movimento supõe uma organização acreditada
e um plano de acção com um mínimo de notoriedade. Nada disso acontece, há,
apenas, sinais prometedores, uns, inquietantes, outros promissores. Todavia, no
plano doutrinário, e à luz dos grandes problemas globais que afectam a nossa
civilização e a nossa cultura, há uma estruturação do pensamento que se encaminha, cada vez mais, para uma “biopolítica da vida”, É sobre este imperativo
de uma “biopolítica da vida” que repousa esta declaração de princípios da 2.ª
ruralidade que informará, estamos seguros disso, a construção social dos futuros territórios-rede. Vejamos, então, essa declaração de princípios.
Declaração de Princípios do movimento da 2.ª ruralidade (2.ªR)
1. A 2.ª R assentará numa “economia dos sistemas territoriais”, isto é, uma
geografia de sistemas territoriais complexos, de geometria variável,
compostos de unidades de paisagem (UP), sistemas produtivos locais
(SPL), sistemas culturais e simbólicos (SCS) e sistemas de governança
local ou institucionalidade dedicada (SGL/ID) e na “produção conjunta
de bens de mérito” que esses sistemas forem capazes de criar e promover como sua prova de vida;
2. A 2.ª R assentará numa “biopolítica da vida” que promoverá a ligação
umbilical entre as ciências da natureza (o capital natural) e as ciências
sociais (o capital social), numa abordagem cada vez mais próxima de
uma biociência e de uma bioética;
3. A 2.ª R assumirá os princípios biogeográfico e socioecológico por via
dos conceitos directores de sistema-paisagem, cidade-região e estrutura
ecológica municipal tendo em vista criar contextos, imagens e representações e contínuos socioecológicos favoráveis à integração e articulação
de áreas urbanas, áreas rurais e áreas naturais;
4. A 2.ª R assentará num continuum de fusão entre a ecologia e a cultura,
de tal modo que seja possível criar uma grande variedade de sistemas
António Covas e Maria das Mercês Covas
35
territoriais e paisagísticos, cada vez mais autónomos, auto-regulados e
inovadores em matéria de estrutura, cadeia de valor e modos de gestão;
5. A 2.ª R assumirá os princípios multifuncional e agroecológico, que
dizem que quanto mais um agroecossistema se parece, em termos de
estrutura e função, com o ecossistema da região biogeográfica em que
se encontra, maior será a probabilidade de que este agroecossistema seja
sustentável e duradouro;
6. A 2.ª R reconhecerá o lugar central de uma nova geração de “bens
públicos rurais” mais próxima da engenharia biofísica e da arquitectura
paisagística ou, mais ainda, das diversas ecologias e biologias funcionais que contribuem para melhorar a produtividade primária das espécies e populações das nossas comunidades e ecossistemas naturais;
7. A 2.ª R assentará numa nova cultura de ordenamento urbanístico com
relevo para as pequenas e médias cidades do interior no que diz respeito
à auto-organização e autogestão do seu sistema de recursos, sejam os
subsistemas de fornecimento energético (sistemas integrados de microgeração), de abastecimento de água (sistemas de captação, poupança,
eficiência e reciclagem), de aprovisionamento agro-alimentar (sistemas
produtivos locais), de construção sustentável (sistemas de bioconstrução
e bioregulação) e de reciclagem de resíduos (a política dos 3R, redução,
reciclagem e reutilização);
8. A 2.ª R assumirá uma filosofia da paisagem que nos diz que os espaços
verdes da cidade do século XXI não deverão ser concebidos à-posteriori, por via de um mero decorativismo vegetal, em arranjos paisagísticos, na vegetalização e enquadramento de infraestruturas ou em
paisagismos pictóricos, mas sim concebidos como uma obra de arquitectura paisagística de carácter interdisciplinar e transdisciplinar;
9. A 2.ª R adoptará o continuum natural e cultural como princípio operacional necessário para recriar a unidade da urbe-ager-saltus-silva, isto
é, a integração da natureza na cultura em ordem a um urbanismo de
base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulam com o fácies edificado da cidade;
36
Os territórios-rede
10. A 2.ª R assumirá a estetização do mundo rural na linha do pensamento
do Prof. Francisco Caldeira Cabral em que a beleza deve ser o reflexo
espontâneo da boa adequação da obra ao fim proposto, como qualidade
intrínseca, e não, como geralmente se supõe, em resultado de uma série
de operações posteriores e, portanto, extrínsecas, chamadas embelezamento (Cabral, 2003: 40).
Este conjunto de princípios acerca da 2.ª ruralidade é designado mais à
frente, a propósito do pensamento do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, de
um “decálogo do realismo virtual”. Em aplicação deste conjunto de princípios da 2.ª ruralidade podemos falar de algumas aplicações, por exemplo,
entre outras, dos parques agroecológicos, dos corredores verdes, da ecopolis
ou do que aqui nós designamos por “a microgeoeconomia das baixas densidades” que a seguir ilustraremos sob a forma de um programa de acção para
os territórios de baixa densidade. Agora que se volta a falar de reorganização
administrativa, de agregação de freguesias e municípios, o decálogo que se
segue pode ser um bom instrumento programático para dar conteúdo aos
novos agrupamentos, sejam de aldeias, freguesias ou municípios.
1.3. A microgeoeconomia das baixas densidades (BD)
A baixa densidade (BD) pertence àquele complexo de conceitos difusos
e ambíguos que são, digamos, convenientes para quase toda a gente, para
quem dá, para quem opera e para quem recebe. A lista destes pré-conceitos
intuitivos não pára de crescer e tanto mais quanto é preciso inovar conceptualmente para dar cobertura política e financeira a problemas emergentes
que surgem, de forma aguda, quase todos os dias. Eis alguns exemplos desses pré-conceitos intuitivos: desenvolvimento endógeno, interioridade, insularidade, ultra-perificidade, multifuncionalidade, zonas desfavorecidas,
desenvolvimento sustentável, policentrismo, desenvolvimento territorial, etc.
A baixa densidade é um problema crónico com manifestações agudas,
mas é, também, uma construção social com uma história mais ou menos longa. Mas nunca é uma inevitabilidade ou uma fatalidade. Um território de
baixa densidade é uma espécie de iceberg onde a parte visível do problema é
menor do que a sua parte invisível. Então, o problema existe ou emerge por
várias razões: porque, à superfície, explode uma situação-limite considerada
intolerável, porque há um conflito de interesses mal resolvido a que é preciso
dar alguma visibilidade política e social, porque há um silêncio… ensurdecedor por parte de uma coligação de interesses para quem a BD é conveniente
António Covas e Maria das Mercês Covas
37
ou, finalmente, porque ocorreu um acontecimento ou uma circunstância que,
abruptamente, alterou a paz e o leque de oportunidades daquele território.
Em síntese, à superfície, “o problema BD” pode aparecer como “a vítima” de um conflito de interesses mal resolvido, mas também pode emergir
como um conceito de ocasião para acomodar certos interesses que estão,
digamos, entrincheirados por detrás de “um problema conveniente” e, finalmente, pode funcionar, ainda, como um recurso argumentativo e retórico
para explorar durante um período negocial como é aquele que agora se apresenta na véspera do próximo período de programação plurianual dos fundos
europeus.
Mas esta é apenas a parte visível do iceberg. Na sua essência, a baixa
densidade (BD) é quase sempre um problema estrutural de longa data e um
vício de concepção e realização de um modelo de desenvolvimento territorial
que a política local, em si mesma, nunca será capaz de resolver. O que se
pede, portanto, é um olhar mais cirúrgico, uma diferenciação mais rigorosa e
mais fina da BD, em especial, a sua rede arterial e capilar e a sua rede de
capital social, para averiguar se o território em questão tem “intensidade de
rede” suficiente para sair pelos seus próprios meios da situação em que se
encontra ou se precisa de ajuda externa, resgatado, como agora se diz. Há,
portanto, limiares e dinâmicas de BD e pode, mesmo, estabelecer-se uma
tipologia de baixas densidades, que vai desde a BD remota em zonas de
montanha e zonas hostis até BD pendulares em periferias urbanas ou turísticas, com passagem pelas BD de enclave e eclosão mais recente, enquistadas
em territórios críticos ou vítimas de uma acentuada desaceleração económica, social e ambiental.
No caso de Portugal, a este propósito, não podemos deixar de formular
a seguinte questão:
Um país que tem apenas 200km de largura, um país que tem excelentes
rodovias, um país que tem instituições de ensino espalhadas por todas as
capitais de distrito, um país que tem uma grande variedade de microclimas,
um país que teve acesso nos últimos 25 anos a meios financeiros em abundância, um país que tem a mesma cobertura autárquica há cerca de 150 anos,
um país com uma larguíssima cobertura de associações empresariais e de
associações de desenvolvimento local, como é que um país com todas estas
características permitiu que o contributo do mundo rural para a riqueza
nacional fosse tão baixo e desigual?
A baixa densidade não é, como já dissemos, um epifenómeno superficial, é sempre uma tendência de longo prazo e uma fraqueza estrutural revelada por um certo modelo de desenvolvimento, geralmente difuso, híbrido,
invertebrado e assimétrico. Tem a ver com características demográficas longas, com a espessura da rede urbana, com a industrialização difusa, com a
38
Os territórios-rede
estrutura da propriedade fundiária e a estrutura do povoamento, com as
características da terciarização urbana e periurbana e com a lógica de mecanismos de pendularidade e pluriactividade.
Em si mesma, a baixa densidade transmite quase sempre sinais contraditórios. Podemos ter crescimento económico associado a baixa densidade
(grandes empresas de monocultura exportadoras que não empregam muita
mão-de-obra) e frágil crescimento económico associado a densidades mais
elevadas de população. O problema é saber se a BD é a causa que leva à
condenação de uma região ou se a BD é, ela própria, a consequência e a
expressão de um complexo de factores, gerais e particulares, que ultrapassam
em muito a simples circunstância local ou regional.
Ao longo da nossa história recente, desde o pós-guerra, tivemos um
ciclo longo de crescimento económico até, praticamente, o fim do século
XX. Foram 50 anos de crescimento económico que não aproveitámos devidamente para conciliar coesão com competitividade e crescimento económico com desenvolvimento social e ambiental, equilibrado e sustentável. Por
três vezes, a EFTA nos anos sessenta, a CEE no princípio dos anos setenta e
novamente a CEE a partir de 1986, tivemos “surtos de crescimento económico” que deveríamos ter aproveitado para ordenar e consolidar a rede urbana,
para criar uma sólida estrutura industrial, para desenvolver o mundo agrícola
e rural e para ter uma rede de parques e reservas naturais que contribuíssem
para uma oferta integrada de mercados de nicho e de amenidades para
desenvolver o turismo em espaço rural.
A primeira década do século XXI é já uma inversão do ciclo de crescimento de cinco décadas. A produtividade e a competitividade subiram, mas
não o suficiente para contrariar a agressividade dos mercados globais e o
rigor financeiro e orçamental imposto pelas regras da moeda única europeia.
A crise internacional de 2008 apenas veio agravar e precipitar uma crise de
competitividade externa que já se pressentia há muito tempo. O Programa de
assistência económica e financeira da Troika (PAEF) é apenas o culminar de
uma crise aguda de pagamentos que foi dramaticamente precipitada pela falta de acesso aos mercados financeiros internacionais.
Chegados aqui, a grande questão é esta: durante 5 décadas, entre 1950 e
2000, o país beneficiou de crescimento económico contínuo e elevado,
melhorou substancialmente a rede de bens não-transaccionáveis, equipamentos e infra-estruturas, mas, não obstante, não foi capaz de reequilibrar economicamente o país, dotando-o de uma coluna vertebral sólida assente numa
boa rede urbana, numa boa rede industrial e numa boa rede rural. Quer dizer,
o país melhorou a sua coesão territorial no que diz respeito a acessibilidades
e mobilidade mas não foi capaz de se dotar das redes que aumentam a competitividade externa dos bens transaccionáveis (redes de investigação, de
António Covas e Maria das Mercês Covas
39
inovação, de cooperação, de transferência, de extensão). Além disso, depois
de uma década perdida, a primeira do século XXI, o país prepara-se para
perder a segunda década do século XXI.
Não há territórios de baixa densidade que resistam a estes pesados custos de contexto gerais, não obstante a generosidade da política de coesão
que, neste âmbito, pouco mais consegue fazer do que pequenas adaptações e
ajustamentos para além de mitigação e controlo de danos.
Por tudo isto, a nossa pergunta de partida só pode ser esta: 25 anos
depois do 1.º Quadro Comunitário de Apoio (QCA), depois de um período
tão longo de abundância de subsídios e financiamentos concedidos em condições tão favoráveis, como foi possível chegar aqui, e como reverter esta
situação de desigualdade territorial e regional para o próximo futuro num
quadro macroeconómico tão adverso no plano nacional e europeu, num
período marcado por uma forte penúria de meios financeiros e em que será
necessário ajustar e mitigar os danos causados pela descontinuação de algumas políticas com incidência territorial?
Acrescentemos, ainda, que os empreendedores são indivíduos racionais
nas suas escolhas e que reagem racionalmente aos estímulos públicos e privados disponíveis, em termos de custo e rendimento efectivo e potencial. Se há
territórios de BD isso quer dizer que a relação custo-benefício desses territórios
não é, em princípio, favorável à fixação de pessoas e actividades, pelo menos
de acordo com aquilo que são as expectativas e as preferências do potencial
investidor. Acrescente-se que, quanto mais os territórios competem entre si
mais escassos se tornam os recursos e mais elevado é o custo de oportunidade
de um investimento. Quanto mais um país ou uma região se abre ao exterior
maior é o número de concorrentes muito competitivos e, portanto, mais alto é o
custo de oportunidade do investimento, o mesmo é dizer, sobe o risco de uma
região menos competitiva ficar sem actividades e sem pessoas.
O que dissemos não nos deve impedir, porém, de actuar à superfície, lá
onde é preciso agir e dispor de um banco de urgência, sabendo nós, de antemão, que os instrumentos de mitigação e controlo de danos não se substituem nem resolvem os problemas estruturais de uma região. Depois desta
digressão pela baixa densidade e na linha dos princípios antes enunciados
para a 2.ª ruralidade, cabe aqui, perfeitamente, o elenco de dez bases programáticas para o desenvolvimento comunitário dos territórios de baixa densidade, útil, por exemplo, para planear o desenvolvimento dos agrupamentos
de aldeias ou municípios do interior do país:
1) Programa “Em busca das sementes perdidas”: recuperação da biodiversidade local e restauração biofísica dos hotspots respectivos (base biodiversa);
40
Os territórios-rede
2) Programa “Poupança, conservação e eficiência energética”: divulgação
de boas práticas energéticas (base energética);
3) Programa “Bioconstrução e bioregulação climática”: o uso de materiais
e tecnologias locais de construção e boas práticas em matéria de bioregulação e adaptação às alterações climáticas (base climática);
4) Programa “Produção e educação agro-alimentar”: auto-abastecimento e
autogestão da produção alimentar (base alimentar);
5) Programa “Turismo de natureza”: ordenamento dos percursos e dos fluxos de visitação, dos endemismos locais aos sítios histórico-arqueológicos (a base ecoturística);
6) Programa “Floresta de fins múltiplos”: a multifuncionalidade da floresta
e o seu uso múltiplo (base florestal);
7) Programa “Mobilidade suave”: o desenho de vários projectos de acessibilidade, em especial para grupos de mobilidade reduzida (base de
mobilidade);
8) Programa “Microcrédito”: o crédito popular para os pequenos empreendimentos em conjugação com outros formatos financeiros (base financeira);
9) Programa “Banco de tempo”: a entreajuda entre vizinhos e amigos do
projecto para um programa de voluntariado (base voluntariado);
10) Programa “Memória futura”: a arte e a cultura, em todas as suas dimensões, ao serviço do desenvolvimento integral do cidadão e da comunidade (base sociocultural).
Em jeito de conclusão e tendo em vista futuras incursões pelos territórios da baixa densidade, eis alguns apontamentos finais:
– O conceito de BD parece ser, em primeira análise, um “conceito de conveniência”, como são outros (desenvolvimento endógeno, interioridade,
insularidade, policentrismo, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento territorial) que servem de instrumento de negociação em certas circunstâncias para obter vantagens específicas de mera oportunidade;
– Os territórios de baixa densidade estão, de algum modo, reféns do jogo
dos interesses e das coligações de interesses que dominam o universo
regional, sub-regional, intermunicipal e municipal e da procura de legitimidade da despesa pública não-transaccionável que corresponde a
cada um desses níveis;
– Existe um “silêncio ensurdecedor” em discutir abertamente qual é o
modelo de desenvolvimento que interessa à região como um todo porque, aparentemente, ninguém quer saber verdadeiramente o que é “a
região como um todo”;
António Covas e Maria das Mercês Covas
41
– Há uma diferença abissal entre a retórica e o consenso mole em redor da
estratégia, da inovação, da sustentabilidade, da prospectiva e dos cenários, por um lado, e o realismo puro e duro do quotidiano dos negócios
correntes quase sempre envolvidos em pequenas redes clientelares e de
cumplicidade político-partidária;
– Dada a fortíssima restrição orçamental e financeira do próximo período
de programação 2014-2020 e a prevalência de regras mais exigentes de
financiamento, como é o caso da prevalência dada aos empréstimos
reembolsáveis, não surpreenderá que todos os actores locais e regionais
adoptem doravante uma posição mais defensiva e cautelosa na forma de
abordar os seus investimentos;
– Sem uma forte inovação estratégica e operacional ao nível da região
NUTS II, como centro de racionalidade de políticas públicas e central
de operações, que tenha expressão territorial efectiva aos níveis inferiores, NUTS III e intermunicipal, corremos o sério risco de assistir a uma
verdadeira cacofonia territorial no próximo período de programação;
– Mais do que discutir a problemática dos territórios de baixa densidade,
cada região deve discutir se quer manter o modelo actual de coesão,
difuso, disperso e de baixo retorno, baseado em bens não-transaccionáveis (BNT) locais, sub-regionais e regionais que estão próximos do
esgotamento ou se quer iniciar, desde já, um novo ciclo e um novo
modelo de transição recentrado sobre os principais centros urbanos,
com uma relação totalmente descomplexada face ao mundo rural e aos
recursos do território, e exigindo, do mesmo passo, que se altere a estrutura do governo e administração do território, modificando a escala das
intervenções e recentrando-as no nível e no plano regional;
– Finalmente, há a microgeoeconomia das baixas densidades, lá onde emergem os problemas mais críticos dos territórios, a solicitar intervenções de
emergência, qual banco de urgência dos problemas do quotidiano; as dez
bases programáticas para o desenvolvimento comunitário podem ser um
instrumento útil e low cost, de intervenção de emergência.
2. Os territórios-rede, uma nova região cognitiva em formação
Na modernidade líquida (Bauman, 2000) e disforme em que estamos
mergulhados, o poder global, difuso e sem rosto, procura constantemente
novos espaços devolutos para aí “exercer livremente a sua política extraterritorial”. Por isso, podemos afirmar que nesta globalização líquida há uma luta
sem tréguas entre sinergia e entropia territorial, se quisermos, entre territó-
42
Os territórios-rede
rios que cooperam e se renovam e territórios que são abandonados e sobrevivem “em reclusão”, à espera, digamos, de serem capturados. Neste mundo
plano (Friedman, 2006) em que vivemos, os territórios também se abatem,
por isso mesmo eles estão obrigados a aprender depressa, a prosseguirem
uma estratégia reflexiva, a serem territórios cognitivos ou uma região cognitiva. Os territórios-rede são uma construção social com estas características,
territórios de combate cujo caminho se faz caminhando, por tentativa-erro,
através da experimentação associativa e cooperativa.
Neste capítulo vamos abordar a natureza do policy-problem do território-rede, em seguida a transição cognitiva do território-zona para o território-rede e, por último, a tensão política e a violência simbólica do processo de
transição respectivo.
2.1. A natureza do policy-problem do território-rede
A modernidade líquida (Bauman, 2000) criou um paradoxo de difícil
compreensão e administração: há inúmeros territórios geograficamente contíguos, vizinhos há muito tempo, dotados de um capital social precioso, que,
todavia, nunca entenderam necessário e útil, não obstante as dificuldades de
percurso por que passam actualmente, cooperar intensivamente entre si para
resolver problemas comuns ou promover novas oportunidades que a cooperação sempre suscita. Quer dizer, resolver o policy-problem dos futuros territórios-rede implica que os actuais territórios revelem a modéstia suficiente
para se olharem “olhos nos olhos” e entenderem os seus problemas como
problemas comuns, o que, no contexto presente e na ausência de uma cultura
territorial cooperativa, implica que algum actor local ou regional tenha o discernimento bastante para levar esse desiderato a bom porto.
Sabemos, também, que o mesmo território é “apropriado” por vários
grupos sociais de maneira diferente, com diferentes grelhas de leitura e congregando constelações de poderes muito diferenciados. Por isso, um território, mas também uma organização ou uma tecnologia, é uma construção
social atravessada pelas lógicas cruzadas de poderes particulares e do poder
dominante. Sabemos, igualmente, que temos hoje a possibilidade de arranjar
de múltiplas formas a coexistência de uma gama variada de diferentes territórios e sabemos, ainda, que nas sociedades actuais o território-rede começa
por ser, não raras vezes, um território virtual com origem nos fluxos e nas
conexões das redes.
O policy-problem dos futuros territórios-rede estará intimamente associado à história recente da sociedade civil portuguesa. Sabemos que, no caso
António Covas e Maria das Mercês Covas
43
português, o défice de organização da sociedade civil ou, se quisermos, a
profusão inoperante de organizações associativas sem estrutura técnica,
financeira e profissional digna desse nome, está intimamente associado a um
excesso de municipalização e política partidária, por um lado, e à omnipresença da política administrativa e financeira do Estado, por outro. Sabemos,
igualmente, que os territórios-zona assim gerados foram sendo progressivamente alimentados por uma profusão de legislação, de regulamentação, de
administrativismo e subsidiação, que paulatinamente foi demarcando e regulando o sistema de acessos e condicionalidades, que as políticas públicas
sempre incorporaram, e que o sistema de poder dominante foi debitando de
acordo com a sua relação de preferências in loco.
Hoje, quarenta anos depois do 25 de Abril e quase trinta anos depois da
adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), é visível que esta omnipresença do Estado-administração e do Estado-local condicionou bastante o
campo de possibilidades à nossa disposição. De facto, 30 anos consecutivos
de apoios europeus, num Estado-administração que continua a ser de estrutura unitária, criaram uma sociedade civil hierárquica, vertical, subordinada e,
às vezes, subserviente. A teoria dos “direitos adquiridos” e dos “direito de
elegibilidade” criou “destinatários habituais” que estão na origem da criação
de uma malha justaposta de territórios-zona, cada um com a sua específica
biografia político-partidária. É, aliás, extraordinário que 30 anos de política
de coesão e fundos europeus não tenham criado no país um projecto consistente de estrutura e organização espacial, uma espécie de coluna vertebral no
interior do país de modo a impedir a sua desertificação e despovoamento. O
país do interior converteu-se, assim, infelizmente, num país à imagem do IP2
que o atravessa na vertical, isto é, descontínuo, desigual e desqualificado.
E, no entanto.
Durante 30 anos de apoios europeus, houve inúmeras oportunidades para
que territórios privados e territórios públicos aprendessem a construir em conjunto “um novo interesse comum” e este, por sua vez, convertido em “um novo
espaço público”. Esta “dupla conversão” de interesses particulares em interesse
comum e em espaço público constitui a matéria-prima de onde emergirá a filosofia e o policy-problem dos territórios-rede do próximo futuro.
Durante 30 anos de apoios europeus, aquela “dupla conversão”, feita de
mobilização, agregação, cooperação e aprendizagem mútua dos territórios
particulares, podia ter acontecido por vias muito diversas. Em primeiro
lugar, por via de laços de vizinhança e proximidade no quadro de uma lógica
de integração sociocomunitária e associativa, por exemplo, através da organização das pequenas comunidades e aldeias e sua agregação no limite dos
44
Os territórios-rede
concelhos ou no quadro interconcelhio. Em segundo lugar, pela via convencional político-administrativa, seguindo a hierarquia que vai desde as uniões
de freguesias até à associação de municípios e ao nível NUTS III. Em terceiro lugar, por via do ordenamento paisagístico que nos leva das pequenas
unidades territoriais até à unidade de paisagem concelhia e desta até ao sistema-paisagem de uma cidade-região. Em quarto lugar, por via de territórios
que se organizam em redor dos mercados, das tecnologias e finanças e que
recortam o espaço-território de formas muito variadas, por exemplo, através
de sectores, fileiras, cadeias alimentares, sistemas produtivos locais, grupos
económicos e redes de cooperação empresarial. Finalmente, os empreendimentos territoriais de fins múltiplos e geometria variável, socialmente construídos por via da cooperação territorial e dotados de uma organização específica denominada actor-rede para a sua realização material e imaterial.
Sabemos que estas diversas tipologias territoriais não comunicam ou
comunicam mal entre si. A sua lógica dominante nunca foi a cooperação ou
a complementaridade, razão pela qual sempre houve nelas um uso excessivo
de recursos e um défice evidente de resultados. Temos, assim, uma coabitação territorial nem sempre fácil, digamos, vizinhos que se observam mas que
não cooperam tanto quanto seria desejável. Não obstante, é sobre esta diversidade e estes paradoxos, e por causa deles, que terá lugar a construção
social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Com efeito, são eles que, pelo
seu paroxismo, permitem aos diferentes grupos sociais construir diferentes
versões do território, a sua multiterritorialidade.
Para ir em busca de tal multiterritorialidade é necessário promover e
organizar uma associação virtuosa entre parceiros que, em primeiro lugar,
será um mero “território em rede” e, num segundo momento, um território-rede mais estruturado e complexo. Esta associação virtuosa pode reunir e
congregar, por exemplo, uma associação ou grupo empresarial, um parque
ou reserva natural, uma instituição de ensino superior e um centro de investigação, uma associação de desenvolvimento local, uma cooperativa, uma
autarquia ou uma associação de municípios, um clube de produtores ou de
consumidores, uma superfície comercial, um ou mais meios de comunicação
social, etc. É em redor dos interesses particulares destes actores que é necessário construir um “novo interesse comum”, por exemplo, um projecto de
desenvolvimento territorial, e em seguida, por intermédio de um actor-rede,
converter esse interesse comum num “novo espaço público” que crie no território-rede uma nova economia de rede e visitação.
Dito isto, e perante tal potencial de crescimento, por que não acontece,
com mais frequência, a tão desejada cooperação entre territórios particulares
e públicos? Julgamos que este défice de cooperação reside, por um lado,
numa espécie de “iliteracia territorial”, em especial na ignorância dos
António Covas e Maria das Mercês Covas
45
“conhecimentos tácitos” que os territórios possuem e, por outro lado, na
antecipação que fazemos de que existem custos de transacção elevados na
criação de uma “institucionalidade dedicada” e, finalmente, porque o nosso
egoísmo está muito ancorado em práticas pouco recomendáveis como são
aquelas que se reportam ao risco moral e ao free raider. Não vale a pena, os
territórios particulares nunca aprenderão se os actores, indivíduos, desistirem
de aprender.
2.2. A transição cognitiva dos territórios-zona para os territórios-rede
Já o dissemos antes, a transição cognitiva ou aprendizagem territorial
faz-se entre territórios-zona e territórios-rede (Haesbaert, 2006). Começamos, porém, com uma pequena advertência que julgamos fazer todo o sentido. Existem conceitos, que aqui designamos de “conceitos-solução”, que,
pela sua sedução teórica e intelectual, antecipam ou criam uma espécie de
“ficção de solução” cuja “lógica invertida” conduz à criação de um “problema-correspondente”, umas vezes um “problema-bom”, outras um “problema-mau”, talvez, mesmo, um problema onde antes ele nem sequer existia. Se
não tomarmos algumas medidas cautelares, estes conceitos, úteis na aparência, podem revelar-se contra-intuitivos. O conceito de território-rede é um
desses conceitos, outros exemplos são o desenvolvimento sustentável, a multifuncionalidade ou a modernização ecológica. Em todos estes casos, é
necessário montar um grande estaleiro de engenharia social e política para
pôr de pé essa “ficção de solução”. Não obstante esta eventualidade e contra-indicação, estes “conceitos-solução” apresentam um elevado valor cognitivo
e reflexivo. É com esta contra-indicação que aqui os tomamos como “bons”.
No caso dos territórios-rede essa “ficção de solução” e esse valor cognitivo podem transmutar-se na seguinte interrogação: como transitar de uma
cultura-zona de territorialidade homogénea para uma cultura-rede de multiterritorialidade, de tal modo que esta multiterritorialidade se converta em
transterritorialidade e possa, por acção de uma actor-rede, dar lugar a uma
ulterior territorialização material e concreta?
A resposta a este acréscimo de complexidade e contingência só pode ser
uma outra cultura territorial, isto é, mais e “melhor” acção colectiva, cooperação e aprendizagem mútua ao abrigo de um projecto comum conduzido
pela inspiração e sob a égide de um actor-rede movido pela energia de uma
nova inteligência territorial.
A transição de um território-zona para um território-rede só pode ser
uma transição cognitiva e reflexiva se se aprender a fazer política “para lá da
46
Os territórios-rede
política convencional”. Esta “outra política” conduzida por um actor-rede e
uma acção colectiva inovadora deve passar da hierarquia para a heterarquia,
da autoridade directa para a conexão comunicativa, da posição central para a
composição policêntrica, da heteronomia para a autonomia, da regulação
unilateral para a implicação policontextual (Innerarity, 2005: 184). O grande
objectivo desta transição reflexiva é gerar um fluxo denso de capital social
regenerador, uma mistura, porventura caótica, de projectos, ideias, instrumentos e procedimentos e actores novos.
Vejamos, no plano metodológico, como se desenrola o processo de
transição social do território-rede. Em primeiro lugar, a delimitação de um
“território de partida” confunde-se com a formação e delimitação da própria
“parceria inicial do projecto”. O território de partida é definido de forma preliminar e provisória como um “território inorgânico”, em que cada parceiro
traz “o seu próprio território particular” na expectativa de outras “visões territoriais ou territorialidades” e, consequentemente, de outros conteúdos territoriais. Para este “território de partida” vamos juntar, por exemplo, uma cooperativa agrícola, uma escola superior agrária, um parque natural, uma
associação de desenvolvimento local, um centro de artes e ofícios e o município ou municípios respectivos, todos unidos em redor de uma ideia ou
“projecto preliminar de desenvolvimento local ou comunitário”.
Em segundo lugar, segue-se a “produção social de um novo interesse
comum”, de uma visão multiterritorial ou territorialidade transcendente, em
que cada parceiro dá uma contribuição para lá da sua própria territorialidade,
de tal modo que essa visão comum territorial possa ser inspiradora para o
actor-rede do território-rede.
Em terceiro lugar, é necessário converter essa “visão comum” ou multiterritorialidade em um programa de acção, isto é, em novas centralidades,
funcionalidades e actividades empresariais e territoriais, ou seja, em um
“projecto comum” e uma nova economia para o território-rede.
Em quarto lugar, teremos de equacionar qual é o “formato organizacional” mais indicado para acolher e pôr em prática o actor-rede que irá realizar
e materializar o programa de acção.
Em quinto lugar, teremos de averiguar se há condições para configurar
uma nova solidariedade orgânica e campo de forças para forjar uma nova
identidade territorial, pressupostos fundamentais para constituir não apenas o
actor-rede mas, também, aquilo que será o novo “espaço público do território-rede”, isto é, a sua zona de interface com os outros campos e territórios.
Numa sociedade fragmentada e fragmentária, como é aquela que hoje
vivemos em Portugal, a configuração de uma parceria territorial inicial não é
uma tarefa fácil. Com efeito, e não obstante terem coabitado o mesmo território durante bastante tempo (um parque industrial ou mesmo uma coopera-
António Covas e Maria das Mercês Covas
47
tiva agrícola), aqueles actores locais ou regionais, muito provavelmente,
nunca trocaram conhecimento nem criaram capital social comum, pela razão
simples de que sempre ou quase sempre operaram em “modo de território-zona”, ou isoladamente em “modo-arquipélago” ou alinhadamente em
“modo hierárquico e vertical”, em sintonia com as determinações das autoridades político-administrativas. Por isso mesmo, o ponto de partida de um
território-rede é muito exigente, seja porque envolve custos de transacção
elevados ou porque pode desencadear a libertação de anti-recursos e contra-recursos até aí confortavelmente instalados. Não obstante estas dificuldades
iniciais, a cadeia de valor e a energia vital geradas por uma nova racionalidade operativa, transversal e cooperativa, pode ser extraordinariamente compensadora e revelar efeitos externos muito positivos em termos cognitivos,
científicos e práticos.
2.3. A tensão política e a violência simbólica do processo de transição
A transição de um território-zona para um território-rede é uma passagem com muitos episódios e incidentes de percurso. Em jeito de síntese
antecipada poderíamos dizer que liberta tantos recursos positivos como anti-recursos e contra-recursos, tal é a tensão política e a violência simbólica que
são inerentes ao processo de transição. Estamos a falar de desconstrução e
recentramento de posições de longa data e das mudanças de actor-principal e
lógicas de funcionamento. Senão vejamos.
Em primeiro lugar, os diversos subsistemas funcionais que entram na
parceria, especializados e autónomos, realizam configurações territoriais
diferenciadas consoante os problemas a tratar. A diversidade de visões funcionais projecta diferentes versões ou “ficções de unidade”. Isto quer dizer
que a escola politécnica, a administração pública regional, a cooperativa, o
grupo empresarial, a associação de desenvolvimento, a câmara municipal, a
área de paisagem protegida, projectam diferentes versões de unidade e que
há uma violência simbólica nessa projecção unilateral, que pode ser melhor
ou pior resolvida.
Em segundo lugar, a cooperação entre territórios particulares, sejam
privados ou públicos, não é uma tarefa fácil. A tensão política e a violência
simbólica produzidas e implicadas pela conversão de várias territorialidades
em uma multiterritorialidade e depois em uma territorialização concreta
estão dependentes dos arranjos e compromissos que se geram ou não se
geram no interior da respectiva parceria territorial, relativamente a uma
necessária visão hegemónica ou dominante. Dito de outro modo, andamos à
procura de serviços mínimos, de um menor denominador comum, ou de um
projecto-comum com custos de transacção elevados?
48
Os territórios-rede
Em terceiro lugar, a tensão política e a violência simbólica implicadas
pela composição de um “novo interesse comum” não é, também, tarefa fácil
devido ao confronto entre recursos, anti-recursos e contra-recursos. Já sabemos que a desconstrução liberta recursos e que estes, enquanto não forem
novamente reafectados, entram em rota de colisão. Assim, o choque iminente
entre o universo hierárquico, burocrático e corporativo dominante (vertical e
de fora para dentro) e o universo heterárquico, policontextual e cooperativo
emergente (horizontal e de dentro para fora), pode ser extraordinariamente
violento no plano simbólico e organizacional, no que diz respeito à conversão de um padrão organizacional tecno-burocrático para um padrão organizacional mais cooperativo e coopetitivo.
Em quarto lugar, a tensão política e simbólica implicada pela conversão
de um “novo interesse comum” em um “novo espaço público” introduz tanta
liberdade como incerteza, pois junta espaço de produção e espaço de consumo em territórios que não tinham originariamente essa vocação. Temos,
assim, de um lado, um imenso campo de possibilidades, de outro, um grande
mal-estar, justamente por haver excesso de possibilidades, logo maior contingência, donde a necessidade de “estabelecer procedimentos” para lidar
com toda esta complexidade e contingência que só um actor-rede estará em
condições de realizar.
Finalmente, a tensão política e simbólica que deriva da necessidade de
proteger a “política em sentido amplo” da “política em sentido estrito”.
Falamos da tensão e da violência simbólica que resultam do confronto entre
uma legitimidade político-eleitoral de ciclos curtos, ainda dominante, e que
interfere e delimita o campo de forças, e uma legitimidade cívico-política
cujo embededdeness (Granovetter, 1995, 2011) mergulha fundo na sociedade
civil, mas que pela sua relativa imaturidade precisa de ciclos de vida e
aprendizagem mais longos. Dito de uma forma mais simples, podemos estar
em rota de colisão se os territórios-zona da política convencional produzirem
custos de contexto e de formalidade que implicam custos de transacção elevados para os novos territórios-rede em construção.
3. Multifuncionalidade e bens de mérito, a base do novo contrato social
O contrato social da 2.ª ruralidade é um compromisso com a ética da
responsabilidade. A articulação funcional entre multifuncionalidade e bens
de mérito está no coração mesmo do conceito de sustentabilidade e situa-se
no cruzamento de uma tripla responsabilidade que é, de resto, reportada à
doutrina estabelecida acerca do desenvolvimento sustentável: a responsabilidade económica, a responsabilidade ambiental e a responsabilidade social.
António Covas e Maria das Mercês Covas
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A multifuncionalidade agrorural não é uma questão nova e não é uma
questão especificamente agrícola. A década de noventa do século passado
assistiu ao culminar de diferentes perspectivas que se reconhecem no cruzamento entre a produção agrícola, a protecção dos recursos naturais, a segurança alimentar e o ordenamento do território. Quer dizer, a multifuncionalidade agrorural é uma construção social de fins múltiplos, prosseguida de
acordo com diferentes lógicas e perspectivas de funcionamento. Acrescenta-se, no entanto, que estas características devem ser prosseguidas e satisfeitas
sem prejuízo dos resultados operacionais e da rentabilidade das empresas e
sem distorções graves sobre a produção e as trocas. Outra coisa, ainda, é o
facto de terem sido as circunstâncias históricas, em particular as negociações
comerciais multilaterais, a determinar a trajectória da noção de agricultura
multifuncional, o que está na origem de várias “versões de conveniência”
nacionais.
Quer dizer, a noção de multifuncionalidade agrorural tem tanto de ambíguo como de promissor. Não admira, por isso, que uma organização como
a OCDE tenha preferido uma abordagem positiva do problema, o que nestas
circunstâncias quer dizer minimalista e cautelar para evitar lançar mais
“externalidades” para a mesa das negociações. Para fazer o contraponto
apresentamos também a versão normativa da teoria da multifuncionalidade.
Um corolário lógico da teoria da multifuncionalidade, seja apenas agrícola ou, também, territorial é a produção de “bens conjuntos ou de fins múltiplos” que aqui designamos como bens de mérito e reputação, assim chamados por cumprirem, simultaneamente, fins de interesse privado e de interesse
público. Estes bens de mérito serão, no próximo futuro, a coluna vertebral da
política de desenvolvimento da 2.ª ruralidade tal como ela ficou expressa na
Declaração de Princípios anteriormente enunciada. A nova PAC pós-2013
poderia, inclusivé, ter sido mais ousada e criado um “terceiro pilar” que
apontasse claramente no sentido de uma economia dos ecossistemas e serviços ecossistémicos em sentido amplo, onde os bens de mérito e de fins múltiplos, privados e públicos, ocupassem um lugar central e configurassem uma
nova colecção de bens comuns e de bens públicos que funcionariam como
uma fonte privilegiada de criação de empregos no mundo rural.
3.1. O contributo da teoria positiva da multifuncionalidade
A teoria positiva da multifuncionalidade expressa pela OCDE (OCDE,
2001) tem “duas referências ideológicas” de peso que lhe determinam todo o
sentido. Em primeiro lugar, o sistema comercial multilateral da Organização
Mundial de Comércio (OMC) é a variável exógena do regime de trocas
50
Os territórios-rede
internacionais, em segundo lugar, este entendimento geral determina que a
“externalidade” ao nível da exploração agrícola seja tratada como um problema ou característica inerente à produção, isto é, como um problema tecnológico próprio da actividade. Percebe-se o alcance da abordagem. Por um
lado, visa-se reduzir qualquer justificação lateral para “proteger a produção”.
Por outro, visa-se reduzir a própria amplitude da multifuncionalidade, considerando-a uma questão que pode ser ultrapassada pela tecnologia. No limite,
pode mesmo dizer-se que a teoria positiva visa reduzir a multifuncionalidade
à monofuncionalidade, já que, no seu entender, se está a pedir demasiado à
agricultura. Sabemos que outras actividades não-agrícolas são igualmente
responsáveis pela produção de externalidades e bens públicos em espaço
rural. De resto, podemos pôr em causa que a segurança alimentar, a qualidade ambiental ou a viabilidade das zonas rurais sejam “externalidades puras”
da agricultura.
O alerta que a teoria positiva da multifuncionalidade lança é o seguinte:
a actividade agrícola pode ficar esmagada entre o sistema de trocas internacionais (abaixamento e esmagamento de preços) e o sistema multifuncional
da agricultura (encargos adicionais de exploração com a produção de externalidades), pois todos sabemos que o financiamento por via da política
pública é insuficiente, é desigual e não é duradouro. Se esta eventualidade
acontecer, quer dizer, se este encargo adicional for excessivo, não temos
produção agrícola, nem externalidades positivas. O único efeito positivo terá
sido o desaparecimento das externalidades negativas. O alerta faz todo o sentido e reclama prudência e moderação relativamente ao risco de uma ambientalização precipitada da agricultura por via de novos custos de formalidade
oriundos de regulamentos e directivas europeias (Covas, 2007).
Por maioria de razão, este alerta faz todo o sentido para as agriculturas
locais e regionais que são as variáveis endógenas do sistema. Enquanto as
arbitragens de nível superior, OMC e PAC, não incorporarem, elas próprias,
um modelo de externalidades e bens públicos, ou seja, “um terceiro pilar e
um modelo de negócio para os bens de mérito e reputação”, todas as combinações de bens privados e bens públicos dos níveis inferiores estão, permanentemente, sob o fio da navalha e na expectativa de uma nova negociação.
As consequências imediatas são óbvias: a instabilidade da produção agrícola
causa uma degradação das externalidades positivas e dos bens públicos associados e este efeito é regionalmente muito desigual, dado que as regiões mais
desfavorecidas não terão os meios próprios para acorrer e mitigar essa eventualidade (Covas, 2007).
Nestas circunstâncias, a teoria positiva da multifuncionalidade é muito
clara: em face de recursos escassos e sem base produtiva não haverá bens
públicos agro-rurais. A “solução técnica, tecnológica e profissional” é prefe-
António Covas e Maria das Mercês Covas
51
rida à “solução multifuncional” que pode ser satisfeita por outras actividades
não-agrícolas. A política pública deve ser muito selectiva e cirúrgica e visar
os casos em que há, manifestamente, uma subprodução de externalidades
positivas. Digamos que para a teoria positiva quanto menos multifuncionalidade melhor, o que não significa rejeitar ou ignorar a importância dos bens
de mérito em geral.
A arquitectura conceptual da teoria positiva da multifuncionalidade
A actividade agrícola gera “produtos múltiplos” que têm a característica
de “produção conjunta”, produtos comerciais e não-comerciais; os produtos
não-comerciais, assim gerados, apresentam características ou “externalidades” que os aproximam dos bens públicos ou de interesse público. Os produtos múltiplos têm, uns, natureza comercial (um mercado e um preço) e,
outros, natureza não-comercial (não têm mercado nem preço), isto é, apresentam características de bem público (por exemplo, os serviços ecossistémicos)
A “produção conjunta” significa que os produtos múltiplos são obtidos
a partir dos mesmos factores, meios e tecnologias de produção, isto é, têm o
mesmo processo produtivo e são tecnologicamente indissociáveis. As
“externalidades” são os efeitos, directos e indirectos, produzidos pela produção primária ou agrícola sobre o ambiente envolvente, cujas características
(mais ou menos mercantis) os aproximam dos bens de interesse público. Os
bens de interesse público são bens sem valor de troca directo (falha de mercado) mas com elevado valor de uso, razão pela qual proporcionam aos seus
utilizadores elevadas externalidades positivas.
Os custos de transacção são os custos necessários para tornar funcionais
e operacionais as externalidades e os bens de interesse público, na exacta
medida em que, devido ao seu estado de “pureza”, se apresentam inacessíveis ou difíceis de delimitar; falamos de custos de organização, negociação,
funcionamento e manutenção, não apenas da externalidade em sim mesma
como dos diversos grupos de interesse implicados por ela. Neste contexto, a
acção pública, pela sua intensidade e natureza, tanto pode ser uma parte do
problema como uma parte da solução; passiva, pró-activa ou supletiva, tudo
depende da extensão dos custos de transacção e da motivação dos actores
para levar a cabo a sua auto-regulação.
Vejamos, agora, as questões mais pertinentes associadas a este desenho
conceptual, se quisermos, as questões de dinâmica conceptual da teoria positiva da multifuncionalidade (Covas, 2007).
52
Os territórios-rede
Em abstracto, não é difícil enunciar uma série longa de externalidades
positivas e negativas associadas à produção agrícola e alimentar, das mais
puras e globais até às mais impuras e locais; a teoria positiva, porém, põe em
causa que essa associação, em muitos casos, seja uma ligação funcional forte
e possua uma interdependência tecnológica definitiva, isto é, não existe uma
relação exclusiva de causa-efeito entre os dois bens e mesmo a relação tecnológica pode ser modificada com alguma facilidade. Quer dizer, é manifestamente abusivo criar tipologias de produção conjunta e cabazes de produtos
múltiplos, que depois, por transferência tecnológica, seriam transportados
para outros contextos e lugares. A teoria positiva é muito crítica em relação a
esta associação abusiva, que coloca uma enorme sobrecarga sobre a produção agrícola.
A teoria positiva considera que a “dissociação da produção conjunta” é
um objectivo que faz todo o sentido, tanto mais quanto a investigação científica e tecnológica, a agricultura de serviços e as novas formas de organização empresarial permitem, cada vez mais, atingir esse objectivo de dissociação. Em resumo, a teoria positiva persegue a dissociação funcional e
tecnológica para, em seguida, arranjar um mercado e um preço para a nova
actividade. No limite, como já dissemos, as multifunções seriam transformadas em bens privados e novos mercados. Estaríamos, afinal, no caminho da
especialização e da monofuncionalidade. Do produtivismo, no fim de contas.
Se nos lembrarmos das produções sem solo, das culturas forçadas, da estabulação fechada ou dos organismos geneticamente manipulados, as dúvidas
assaltam-nos imediatamente, na exacta medida em que alguns processos de
dissociação alteram significativamente a estrutura e a qualidade das externalidades e dos bens públicos disponíveis, logo o bem-estar dos cidadãos.
As externalidades, por sua vez, são definidas como efeitos, positivos e
negativos, da actividade agrícola sobre o seu ambiente envolvente, entendido
em sentido muito largo: recursos naturais, paisagem, biodiversidade, segurança alimentar, bem-estar animal, ordenamento do território, emprego rural,
erosão dos solos, poluição dos lençóis freáticos, mau-cheiro, ruídos, crises
sanitárias, etc. Estes efeitos são designados de “externos” porque não são
“internalizados” pela própria actividade que os produziu, em particular,
devido à inexistência ou falha de mercado apropriado para o efeito. Neste
sentido, compreende-se que a dissociação, técnica e produtiva, atrás referida
está funcionalmente ligada à diminuição das externalidades, na medida em
que lhe “arranja um mercado para internalizar o efeito externo”. Por exemplo, as empresas de serviços agro-ambientais e o mercado ambiental, já hoje,
“produzem as externalidades” que estão ao alcance das tecnologias disponí-
António Covas e Maria das Mercês Covas
53
veis. Existe, pois, um mercado e um preço que se podem comparar, com utilidade, aos custos e benefícios externos da produção agrícola primária.
As externalidades têm as características de bens de interesse público, no
caso mais geral dos bens públicos puros (a beleza da paisagem rural ou o ar
puro da serra). Nos casos dos bens públicos não-puros, os mais frequentes,
podem acontecer situações de acesso condicionado e de algum congestionamento na sua utilização. Recordemos que os bens de interesse público são
muito variáveis e ocorrem no espaço de uma forma irrepetível. Os bens
públicos puros (a qualidade do ar, o habitat, a biodiversidade) são geralmente oferecidos pelo Estado-administração, sendo difícil estimar a sua procura.
É possível, pois, que haja sobreprodução nuns casos e subprodução noutros
casos. Os bens puros locais (os serviços municipais de incêndios, o serviço
de protecção civil), pelo seu âmbito e natureza são oferecidos com maior
precisão. Os recursos de acesso livre (os bens oceânicos) são, geralmente,
sobre-explorados. Os recursos em propriedade comum (condomínio) revelam uma preferência pela gestão associativa/colectiva, mas, também, podem
ser geridos por uma empresa de gestão de condomínios. Os bens com acesso
privilegiado (campo de golfe ou reserva de caça) têm geralmente uma gestão
privada. As reservas de caça, por exemplo, podem ter uma gestão colectiva
(reserva municipal), associativa (reserva associativa) ou privada (reserva
turística).
Os bens de interesse público são um stock, no sentido mais patrimonial,
enquanto as externalidades são um fluxo, originado no acto de produção.
Digamos que as externalidades positivas se podem consolidar, com o tempo,
em bens de interesse público, até em bens pertencentes ao património da
humanidade (os socalcos do Douro). É, assim, porque as externalidades são
uma produção da actividade privada, enquanto os bens públicos supõem um
interesse colectivo, comum ou público que, geralmente, envolve o dispêndio
de verbas avultadas de todas as partes.
A possibilidade de classificar muitas externalidades positivas como
bens de interesse público é uma forma de valorizar os activos da exploração
e iniciar o seu “processo de ruralização”. Em matéria de externalidades e
bens de interesse público, a posição da teoria positiva da multifuncionalidade
visa delimitar e circunscrever, com a objectividade possível, a origem da
externalidade e os agentes directamente implicados. É, se quisermos, um
problema microeconómico e de organização de um mercado em concreto,
mais do que uma questão de acção ou política pública, de acordo com o lema
geral de que “mais dissociação e mais mercado significam menos externalidades”.
54
Os territórios-rede
Por sua vez, os custos de transacção são os custos envolvidos com o
processo de internalização de uma externalidade (aproximação dos seus custos privados e sociais). Na externalidade positiva o custo privado é superior
ao custo social, logo, pode haver por esse facto, um défice de oferta do bem
público; na externalidade negativa o custo privado é inferior ao custo social,
logo, pode haver uma penalização excessiva dos bens públicos em questão.
Para aproximar os dois tipos de custo (ou para os repartir pela oferta e pela
procura) é necessário encontrar um mediador acreditado que, em função da
especificidade do bem público em apreço, saiba indicar a forma de provisão
mais adequada ao efeito externo: voluntária, municipal, clube, associação,
condomínio, privada, pública.
As diferentes formas de provisão referidas envolvem uma diferente
estrutura de direitos e responsabilidades sobre o bem público, cujo grau de
complexidade depende do número de grupos de interesse que são utilizadores do bem público e dos direitos já adquiridos por esses utilizadores. Por
exemplo, no interior de uma propriedade privada podem defrontar-se os interesses e os direitos de proprietários florestais, de agricultores, de criadores de
gado (pastoreio), de caçadores, de ambientalistas, de gestores de áreas de
paisagem protegida, de bombeiros, de turistas de ambiente, de cidadãos em
passeio, etc. O conflito de interesses pode estar iminente, por exemplo, no
quadro da prevenção do fogo florestal ou nas tarefas prioritárias a realizar na
sequela de um grande incêndio ou após um longo período de seca. Os custos
de transacção são gigantescos e, eles próprios, estão na origem de novos
efeitos externos, desta vez quase sempre negativos.
Esta é faceta mais conflituosa da 2.ª ruralidade, a saber, o mercado dos
interesses e dos direitos adquiridos. Basta dizer que há uma economia e um
mercado do fogo, como, de resto, um mercado da água em tempo de seca.
Perante a falta de regras e transparência destes mercados, a acção pública da
administração central é a externalidade de último recurso quando todas as
outras formas de provisão falharam. Ou por falta de um mediador acreditado,
ou por displicência associativa, ou por incompetência dos interessados, ou
por falta de empenhamento dos cidadãos-consumidores de espaço rural. A
fileira é conhecida: interesses difusos, incompetência profissional, inorganicidade associativa, fundamentalismo doutrinário, excesso de zelo.
Como se observa, estamos rodeados de “não-mercados” por todos os
lados, cujos efeitos se acumulam à medida que novos interesses e direitos
chegam ao “mercado”. A teoria positiva diz-nos que, enquanto a dissociação
da produção conjunta não for possível, existem técnicas de medição directa e
indirecta das externalidades positivas e negativas, cujo valor estimado pode
António Covas e Maria das Mercês Covas
55
ser incorporado, por exemplo, no preço final do produto de origem, como
um prémio (externalidade positiva) ou penalidade (externalidade negativa).
E, no próximo futuro da 2.ª ruralidade, qual a origem provável dos
novos produtos e mercados da teoria positiva da multifuncionalidade?
Não temos dúvidas de que as ciências da vida, as biotecnologias, a
investigação agronómica e o marketing agrorural ajudarão a promover
“novas dissociações da produção conjunta” e que “as externalidades se converterão em novos bens e mercados de futuro”. Aí estarão o mercado dos
alimentos saudáveis, dos bio-alimentos, dos alicamentos (alimentos-medicamentos), dos OGM, dos novos bioquímicos, dos bens e serviços
ambientais, dos referenciais de normalização alimentar, das tecnologias limpas e doces, das consociações felizes, o mercado da bio-reciclagem, os novos
mercados da água, etc. Só não sabemos que novas discriminações e desigualdades surgirão e qual o novo stock de externalidades que lhe corresponderá. Entre os mercados e os interesses, a teoria positiva da multifuncionalidade deposita uma fé imensa na ciência e na profissão.
3.2. O contributo da teoria normativa da multifuncionalidade
Definimos a teoria positiva como um atributo ou característica do acto
de produção agrícola. É nesta sede que se resolverão os problemas de externalidades, com mais e melhor produção agro-alimentar, que a ciência, a tecnologia e os mercados ajudarão a internalizar. No final, terão desaparecido
os “não-mercados”, a multifuncionalidade será produzida de acordo com as
regras da “produção dissociada”.
A teoria positiva deixou uma série de alertas contra uma “ruralização
precipitada” e a publicização de uma série de interesses. Estes afirmam-se
como legítimos e face às externalidades têm uma estratégia: a privatização
dos benefícios e a socialização dos prejuízos. Os custos de transacção crescem desmesuradamente e as soluções colectivas e/ou associativas não têm
força para se impor. A administração central toma conta da ocorrência, como
solução de recurso, mas para não sofrer retaliação dos grupos de interesse
sobrecarrega desproporcionadamente o cidadão comum, gerando, assim, a
maior externalidade negativa de sempre, aquela que recai sobre os interesses difusos dos cidadãos indefesos (Covas, 2007: 59).
Dito isto, a teoria positiva lança uma espécie de anátema sobre a teoria
normativa da multifuncionalidade agrícola, como se atirasse, desde já, uma
providência cautelar sobre o processo de ruralização em que esta assenta.
A abordagem normativa da multifuncionalidade nos debates sobre a
política agrícola e desenvolvimento rural visa sublinhar que a agricultura, do
56
Os territórios-rede
ponto de vista social, não pode ser vista unicamente como a produção de
bens agrícolas. A actividade de produção faz-se acompanhar de efeitos
externos que têm um valor, em si, do ponto de vista social e para os quais os
consumidores revelam um consentimento em pagar que depende da forma
como eles representam essa realidade. Estas representações dos cidadãos e
dos consumidores, mas também de outros actores, acerca da benevolência
dos efeitos externos da agricultura, não podem ser malbaratadas, têm que ser
preservadas, sob pena de gerar um efeito de ricochete sobre a valorização
das próprias produções de base, com consequências imprevisíveis.
Tal como os mercados, também as representações dos actores vão
variando com o tempo e o espaço, verificando-se que existe uma relação
directa entre a representação e a valorização que é atribuída à multifuncionalidade agrícola. De um ponto de vista normativo, a multifuncionalidade está
na origem de um novo modelo de acção pública e política. O seu objectivo é
oferecer estímulos que conduzam a produção conjunta da agricultura num
sentido desejado pelas procuras da sociedade.
Este livro é sobre a construção social dos territórios da 2.ª ruralidade.
Ora o referencial teórico da teoria normativa gira, justamente, em redor do
princípio da “produção social de multifuncionalidade”. Isto quer dizer,
também, que as falhas de mercado são uma pequena parte do problema,
são igualmente importantes as falhas das instituições e das políticas públicas. O referencial da teoria normativa gira em redor de três vectores: uma
dimensão privada em redor das normas de mercado, uma dimensão pública
relativa às normas sobre externalidades e bens públicos e uma norma
colectiva relativa à organização local de bens públicos locais e globais
(bens colectivos locais).
Já o dissemos, o mercado pode resolver uma parte, talvez crescente, da
multifuncionalidade agrícola. Mas os custos de transacção existem. São os
custos de conversão-inovação, por exemplo, relativos à conversão biológica
ou à conversão agro-turística. São os custos de organização ligados à criação
das competências alternativas nas áreas profissional, da formação e investigação, da divulgação e da organização interprofissional. São, finalmente, os
custos de inovação institucional, por exemplo, as novas competências públicas e os novos modelos de governança agrorural e territorial.
Em termos comparativos, ficamos com a sensação de que a teoria positiva se contrai para economizar funções, tornando-se nesse movimento mais
produtivista e economicista, no fundo menos multifuncional, enquanto a teoria normativa se expande para englobar mais funções, tornando-se, assim,
mais complexa e labiríntica, mais multifuncional mas, também, porventura,
mais dispendiosa e ineficiente.
António Covas e Maria das Mercês Covas
57
Em jeito de balanço, e no que diz respeito à agricultura multifuncional,
temos à nossa frente três tipos de agricultura:
– Uma agricultura competitiva, liberalizada por sucessivas vagas de negociação internacional; a concorrência das importações afasta os grupos
de interesse mais dependentes das ajudas à produção e liberta recursos
para outras aplicações, para uma política agrorural mais desligada e pró-activa, independentemente dos riscos de erosão da base produtiva que
esta opção implica; este é, claramente, o modelo dominante;
– Uma “agricultura com atributos multifuncionais”, mas muito ligada à
parte agrícola da produção conjunta; este tipo de agricultura comporta
muitas versões, desde uma multifuncionalidade periférica própria de
zonas desfavorecidas até uma multifuncionalidade central em produção
conjunta com a agricultura competitiva; este é um modelo em transição,
com alguns exemplos representativos, mas ainda muito minoritário;
– Uma “agricultura estruturalmente multifuncional”, ligada a territórios-projecto, eles próprios concebidos com esse objectivo; este é um modelo pós-agrícola, mais holístico e sistémico, em que a agricultura é,
sobretudo, uma variável endógena de uma multifuncionalidade claramente territorial.
Estamos, no fundo, perante três multifuncionalidades em construção: em
primeiro lugar, as fileiras especializadas da agricultura competitiva estão, cada
vez mais, obrigadas a respeitar uma multifuncionalidade horizontal ligada a
questões de qualidade e segurança alimentares e de responsabilidade ambiental
e social; em segundo lugar, as pequenas fileiras de produtos com denominação
de origem de qualidade constroem a sua multifuncionalidade em função de
uma convenção de qualidade e do seu ecossistema de acolhimento; por último,
os territórios-projecto ou os territórios-rede que constroem a sua multifuncionalidade agro-territorial a partir das amenidades de uma unidade de paisagem,
dos recursos de uma zona de intervenção agro-florestal ou de uma institucionalidade dedicada de uma cooperativa multissectorial.
Para concluir este tópico sobre as teorias positiva e normativa da multifuncionalidade agrorural, talvez possamos rematar da seguinte forma (Covas,
2007: 71-72)
– A teoria positiva fala de “dissociação da produção conjunta” de bens e
serviços, a teoria normativa fala de “consociação de novas missões e
finalidades” da agricultura;
– A teoria positiva fala de “falhas de mercado”, a teoria normativa acrescenta as “falhas das instituições e das políticas públicas”;
58
Os territórios-rede
– A teoria positiva fala de “internalizar as externalidades”, a teoria normativa fala de “produzir novos bens contextuais e identitários”;
– A teoria positiva fala de “privatizar os bens públicos”, a teoria normativa fala de “novos direitos de utilização da propriedade”;
– A teoria positiva fala de “criação de novos mercados”, a teoria normativa fala de uma “nova organização colectiva, isto é, uma governança
local”;
– A teoria positiva fala de “custos de transacção funcionais”, a teoria
normativa fala de “novo sistema de competências multifuncionais”.
É assim do ponto de vista teórico. No plano dos factos, porém, o excesso de realidade não se compadece com esta divisão analítica. O que somos
depende das nossas expectativas e estas são reajustadas continuadamente
pelos factos. Assim, acontece, também, com as abordagens positiva e normativa da multifuncionalidade agrícola.
3.2. O contributo dos bens de mérito para um novo contrato social
Em termos de um novo contrato social para a 2.ª ruralidade, a multifuncionalidade agrorural e os bens de mérito fazem um casamento perfeito.
Todavia, no terreno concreto da realidade, já hoje assistimos a uma disputa
cerrada entre dois grupos de fiéis partidários, uma contenda que se acentuará
nos mercados de futuro do mundo agrorural. Referimo-nos ao grupo da biotecnologia produtivista, muito poderoso, que acredita na bondade da tecnologia e dos mercados para resolver todos os problemas emergentes e o grupo
da biotecnologia ecossistémica, menos poderoso mas não menos crente, que
acredita na virtude redentora dos ecossistemas naturais, naturalizados ou
regenerados, como modelo de referência para o funcionamento dos agrossistemas.
Nos mercados de futuro, os bens e serviços que incorporem, ao mesmo tempo, a eficiência económica, a responsabilidade social, a sustentabilidade ambiental e cultivem a identidade dos territórios, serão considerados bens de mérito e reputação e estes atributos distintivos serão a sua
fonte de valor primordial que a sociedade premiará quer por via do preço
quer por via de contrato ou qualquer outra transferência pública. A procura destes sinais distintivos tornar-se-á, em si mesmo, um factor de diferenciação por excelência.
Em síntese, estamos a falar da transformação gradual de agrossistemas
em agro-ecossistemas. Do que se trata, portanto, é de criar as condições para
que estes sinais distintivos vejam a luz do dia e sejam, progressivamente,
António Covas e Maria das Mercês Covas
59
incorporados no desenho dos mercados agroecológicos e agro-ecossistémicos. Pelo compromisso que promovem entre bens privados, bens comuns
e bens de interesse público, estes mercados compostos serão o grande desafio do próximo futuro, quer para a investigação científica, na zona de fronteira entre a economia e a ecologia, quer para as políticas agro-rurais, na formulação conceptual e no desenho de novos instrumentos, de tal modo que
seja possível lançar uma nova geração de bens públicos agro-rurais onde o
lugar central seja desempenhado pelos bens de mérito e reputação.
Para estes mercados compostos, eis as nossas perguntas de partida.
Será possível imaginar no próximo futuro uma exploração agrícola multifuncional composta por mais alimentos certificados (desde os convencionais até aos biológicos com passagem pelos modos de produção integrada),
por uma produção sustentável de bens e serviços agro-florestais de uma floresta de uso múltiplo, por uma base diversificada e pluralista de produção
energética (desde as formas mais convencionais às renováveis com passagem
pelas culturas energéticas de biomassa), pela conservação e restauração de
funções ecológicas relativas aos elementos solo, água, vegetação, espécies
ameaçadas e clima, por uma componente recreativa em múltiplas formas
compatíveis de produção-conservação-recreação, obtendo-se, no final, uma
produção composta de “campo novo” fazendo um forte apelo às actividades
trabalho-intensivo e, portanto, também, a um novo simbolismo identitário da
memória agrocultural?
Será possível imaginar uma Nova PAC pós-2013 (aprovada em 2014)
em processo de transformação de uma política de produção e rendimentos
agrícolas desligados para uma política de promoção de bens públicos e
externalidades positivas, cumprindo funções conservacionistas, energéticas,
ambientais e rurais, numa economia de base produtiva multifuncional, onde
as boas práticas naqueles domínios são, também, os códigos inspiradores de
uma boa conduta pessoal e social, e em que a conservação de recursos, a eficiência energética e a moderação nos consumos são virtudes activamente
promovidas e premiadas?
Será possível imaginar, nas nossas áreas rurais de baixa densidade, a
organização de territórios-rede e a confluência virtuosa entre a ecologia e a
economia, num combate sem tréguas contra a máxima entropia, isto é, a
desertificação e o despovoamento desses territórios?
Será possível imaginar, no próximo futuro, em face da rápida dinâmica
dos territórios, como se apresentará o conflito de interesses entre ocupações
do solo, agrícolas, florestais, energéticas, conservacionistas e turísticas e,
bem assim, o formato organizacional de mediação e conciliação de interesses
que lhe poderá corresponder?
60
Os territórios-rede
Estas interrogações, entre outras, fazem parte das preocupações da ecossocioeconomia (Sachs, 2007), uma área do saber ainda muito controversa,
em elaboração contínua, onde os equívocos mais frequentes só são ultrapassados pela necessidade imperiosa de reconciliar as disciplinas da ecologia (as
normas da casa) e da economia (o governo da casa), na exacta medida em
que a lei da entropia ou da degradação do meio ambiente, omnipresente,
espreita a todo o momento e obriga a esse entendimento.
Dito isto, basta olhar à nossa volta e ver. O mundo está praticamente
organizado às avessas. O espaço agrorural é, seguramente, um dos exemplos
mais eloquentes da 2.ª lei da termodinâmica, a lei da entropia ou da degradação continuada das formas de energia. De uma revolução que começou “verde”, na química, na mecânica e electricidade, mas que, rapidamente, se
embrulhou no turbilhão do processo irreversível de degradação energética
rumo à sua dissipação calórica. Processo espectacular cujos impactos e prejuízos saltam todos os dias à nossa frente: exaustão dos recursos naturais
solo e água, poluição dos mesmos recursos, abandono e desertificação agrorural, despovoamento e desvitalização social, êxodo agrícola e rural e guetos
urbanos, rupturas nos subsistemas locais da base informacional, da educação
e da saúde, para alimentar e compensar os níveis de entropia monumentais
do centro ordenador, devido, justamente, ao seu gigantismo organizacional.
Dito isto, é um imperativo de civilização e cultura fazer convergir rapidamente as disciplinas da ecologia e da economia, as normas e o governo da
casa comum, pois não é possível suportar, por mais tempo, a situação paradoxal a que assistimos:
– Rendibilidades económicas positivas coexistindo com balanços energéticos desastrosos; só porque o sistema de preços é transitoriamente favorável, mantêm-se sistemas produtivos em rota de colisão com os sistemas energéticos e biofísicos;
– Balanços energéticos comprovadamente positivos coexistindo com rendibilidades económicas negativas que o mercado não valoriza suficientemente e que sobrevivem graças às subvenções dos contribuintes;
– A proliferação de contra-ordenações, compensações e mitigações de
natureza ambiental, que se parecem mais com o “pagamento de indulgências” e servem para confundir os nossos problemas de consciência a
propósito.
Os bens de mérito: uma legitimação agroecológica e agr(o)cultural
Se queremos passar um novo contrato social com o mundo agrorural
teremos de ser capazes de elaborar uma nova teoria da legitimação agroeco-
António Covas e Maria das Mercês Covas
61
lógica e agr(o)cultural onde os bens de mérito e reputação têm uma função
nuclear a desempenhar. Vejamos, pois, como poderemos sustentar esta teoria
da legitimação.
Em primeiro lugar, a nova legitimação reporta-se a uma cultura pós-agrícola ou, talvez melhor, pós-convencional que incorporará, em dose
variada, agr(i)cultura e agr(o)cultura, isto é, uma agricultura de diversificação que, pela sua natureza tridimensional (produção, conservação e recreação), é mais agr(o)cultura do que agr(i)cultura. Com uma vantagem adicional. Na sociedade da informação e do conhecimento em que viveremos, a
adopção destes factores distintivos ajudará a criar reputação e bens de mérito, isto é, valor acrescentado que valorizará empresarialmente quem os promove. Este é, de resto, o sinal mais distintivo da cultura pós-convencional.
Em segundo lugar, para a cultura pós-convencional que se avizinha, é
fundamental preservar e valorizar tudo o que rodeia a provisão regular de
serviços ecossistémicos. O universo destes serviços é impressionante se pensarmos em todos os efeitos externos que desencadeia. De facto, a salvaguarda e promoção dos efeitos positivos e a minimização dos negativos é, só por
si, um programa de trabalho de grande fôlego para a política pública e uma
oportunidade única para o mundo rural. Falamos de serviços que sustentam a
vida, que regulam os equilíbrios ecológicos, que produzem bens materiais e
que nos oferecem bens culturais de um valor inestimável. Só uma economia
contratual pode registar, com rigor e com justeza, o elenco dos serviços
ecossistémicos prestados, a qualidade e o valor dessa prestação e, bem assim,
providenciar a compensação justa e merecida por essa contribuição para o
bem-estar das populações e das suas respectivas actividades económicas.
Em terceiro lugar, a nova legitimação já não tolera a internalização e
socialização de prejuízos como costuma dizer a economia do ambiente.
Com efeito, já não é suficiente esta abordagem, um pouco cínica, da socialização e remediação dos prejuízos. Ao contrário, os recursos escassos dos
contribuintes devem servir prioritariamente para a produção de bens de
mérito que promovam e salvaguardem os mercados de futuro da
agr(o)cultura, na linha da economia dos agroecossistemas e numa acepção
mais democrática de inclusão socio-territorial das regiões mais desfavorecidas e respectivas populações.
Em quarto lugar, a nova teoria da legitimação necessita de um embededdeness territorial muito forte que aproveite os recursos endógenos, que gere
benefícios de contexto, que crie novos mercados e novas cadeias de valor, que
valorize a identidade e o capital social dos lugares e dos territórios.
Em quinto lugar, a nova legitimação tem uma relação directa com a
fronteira do risco, a justiça ambiental e o acesso aos recursos naturais. Face
aos grandes riscos os problemas locais não têm uma solução fácil. Face aos
62
Os territórios-rede
danos incomensuráveis causados aos ecossistemas e dada a importância vital
de que se revestem os serviços ecossistémicos para o bem-estar das populações, estamos perante um problema político de primeira grandeza, a saber, o
acesso equitativo aos recursos e a regulação política desse acesso. Uma vez
mais uma questão primordial de política pública que só uma governança
multilateral está em condições de abordar com sucesso. Os grandes riscos
não conhecem fronteiras, os seus impactos fazem-se sentir por todo o globo
e produzem efeitos discriminatórios graves, não apenas sobre as condições
de vida de largos estratos da população mas, também, sobre a capacidade de
muitos Estados atingidos iniciarem processos de reabilitação do seu valioso
património natural, razão pela qual levantamos a questão essencial da regulação, do acesso e da provisão dos bens públicos globais, em si mesmos,
bens de mérito de primordial importância. O protocolo de Quioto e o mercado do carbono são um bom exemplo destes bens de mérito.
Em sexto lugar, a nova teoria da legitimação dos bens de mérito reconhece o lugar central desempenhado pelos sistemas produtivos locais e pelas
convenções de qualidade de uma agricultura acompanhada pela comunidade.
Falamos de um contexto agrorural em que o sistema de produtos (produção
sem coordenação e integração) dá lugar aos produtos do sistema (produção
com coordenação e integração). Feita uma primeira comprovação relativamente ao estado de saúde dos capitais aí existentes (capital natural, capital
físico, capital humano e capital social) e à densidade e intensidade das suas
ligações biodiversas, produtivas e relacionais, é, então, o tempo de desenhar
o modelo agroecológico que melhor serve o sistema produtivo local, assim
como o cabaz de produtos e serviços que lhes corresponde e que melhor se
ajusta às finalidades, princípios e objectivos expressos numa Convenção de
Qualidade do Território.
Em sétimo lugar, a nova teoria da legitimação guardará um lugar especial para a construção social de territórios-rede. O território de uma cooperativa multi-serviços, a constituição de um parque agrícola periurbano, o território de um parque e/ou reserva natural, o ordenamento e gestão de terrenos
baldios, uma zona desfavorecida com handicapes específicos, uma grande
aglomeração de explorações minifundiárias, são terrenos de eleição para testar novos instrumentos de governança territorial. No estado de prevenção e
carência em que se encontram muitos dos territórios referidos, o desenho institucional assume uma importância decisiva, que não ignora a precariedade
dos recursos próprios e a base ou capital social em que assenta toda a organização convencional. Só uma direcção/liderança muito criativa pode propiciar
e conciliar factores tão diversos, mas tão inevitáveis, como são: a orgânica
funcional, o insourcing e o outsourcing, a certificação e o benchmarking, o
modelo de protecção e gestão do risco, os incentivos e o funding próprio, a
António Covas e Maria das Mercês Covas
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imagem de marca e o marketing, as formas de gestão partilhada e o entrepreneurship, a gestão e mediação de conflitos, etc. O simples enunciado destes factores críticos serve para mostrar que o modelo de governança de um
território é a chave para um empreendimento bem-sucedido.
Contrato social e ecotopia do mundo rural
A nova teoria da legitimação permite-nos fazer a passagem para a outra
margem. O século XX foi marcado pelos avanços espectaculares da física e
da química, o século XXI pertencerá às ciências da vida. De facto, o advento
da economia biotecnológica, em particular, no último quartel do século vinte, é, de tal modo, espectacular e surpreendente que poderemos estar, paradoxalmente, no limiar do melhor e do pior dos mundos. “Um admirável
mundo novo” onde quase tudo é possível.
Mas se a economia biotecnológica tem o domínio dos instrumentos e
dos processos, a nova economia agroecossistémica do mundo rural já tem,
também, uma matriz de objectivos bem consolidados que aqui relembramos:
a reposição e valorização da biodiversidade, a pluralidade e a integração das
fontes energéticas, a multifuncionalidade e a integração das actividades económicas, a sustentabilidade dos processos e dos recursos naturais, a valoração e valorização dos serviços ecossistémicos, a qualidade e a segurança dos
alimentos, a reticulação multilocal dos empreendimentos agrorurais, a consolidação dos mosaicos e unidades paisagísticas, a solidariedade e a cooperação territorial descentralizada entre grupos de municípios, regiões e países. É
a este conjunto de objectivos e à economia convencional e contratual que lhe
corresponde que atribuímos a designação de “ordem agroecológica” que
marcará decisivamente a 2.ª modernidade da agricultura e do mundo rural.
Nesta nova ordem da agricultura da 2.ª modernidade está, também,
implícita uma tese controversa que aqui designamos como “ecotopia do
mundo rural”, uma nova ecologia política do mundo rural que poderia ser
definida, de modo simples, como a convergência ou a fusão entre os direitos
do consumidor e os direitos da natureza, de acordo com uma noção pós-materialista de consumo, mais glocalista, denominada, diferenciada, biodiversa, culturalista, patrimonialista, ecossistémica.
Nesta circunstância, a pergunta mais pertinente é a seguinte: estão os
movimentos sociais da agricultura sustentável, dos consumidores, do
ambiente e do património histórico e cultural, por via de uma convergência,
mutuamente vantajosa, dos direitos agroecológicos, sociais, naturais e patrimoniais, em condições de se erguerem a um patamar superior de consciência
e organização, de tal modo que sejam capazes de influenciar, no sentido pre-
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Os territórios-rede
tendido, o sistema produtivista e mercantilista dominante ou, em alternativa,
articulando-se, de alguma forma, com esses interesses (e, quem sabe, por
eles, mesmo, patrocinados), e prosseguir, assim, os mesmos objectivos?
A ecotopia do mundo rural está, ainda, assente num outro processo de
convergência ou fusão, a saber, entre a agricultura como espaço-produtor e a
agricultura como espaço-produzido. Aqui, a nossa ecotopia significa que
acreditamos que se poderá dar uma fecundação e rejuvenescimento do mundo agrorural, isto é, que a fusão dos dois espaços proporcionará a chegada de
novos actores atraídos por uma “nova estrutura de oportunidades”. Faz sentido, pois, o aviso: é preciso ordenar e regular a chegada desse urbano pós-moderno, quantas vezes arrogante, vaidoso e ignorante, em busca de experiências de um certo kitch rural em que o campo serve de elemento
decorativo e figurativo para muitas operações de marketing turístico.
A ecotopia do mundo rural faz-se, igualmente, sentir no domínio das
agriculturas ecológicas onde a curiosidade é muito elevada. Nestes casos, o
acesso está, aparentemente, mais facilitado, os capitais necessários são mais
reduzidos, logo o valor acrescentado pode ser mais rápido. Na grande área
das agriculturas ecológicas teremos um campo de possibilidades com interesse, apesar de sabermos, também, que se farão muitas mais “experiências
caprichosas”, muitas delas com destino marcado.
Na ecotopia do mundo rural, a aceleração das dinâmicas territoriais e a
desestruturação social que daí decorre são de tal ordem que estamos confrontados e destinados a ser “construtores sociais de território” mesmo contra
nossa vontade. Para isso, teremos de nos libertar do discurso dicotómico
dominante e reinventar o sentido relacional das coisas. Nesta conjuntura,
estamos mergulhados numa mobilidade constante. Todos somos migrantes:
pessoas, recursos e territórios. Tudo está em desconstrução-reconstrução.
Reina a anarquia madura. O capitalismo continua o seu trabalho de sapa. As
identidades são abandonadas e substituídas pelo conceito de mobilidade
migrante. É o admirável mundo novo da razão instrumental e das redes de
todo o tipo. É aqui que nos encontramos, numa encruzilhada de territórios
sem rede, de territórios em rede e de territórios-rede.
A nova agenda europeia para o mundo rural
No seio desta ecotopia do mundo rural, emerge uma série de trabalhos
de investigação, de iniciativa alemã, conhecida por TEEB (2009) (The Economics of Ecosystems and Biodiversity). É neste contexto que observamos
uma nova agenda europeia em formação e que apreciamos sobremaneira os
esforços da União Europeia para consagrar uma agenda da economia da biodiversidade, dos ecossistemas, dos serviços ecossistémicos, das alterações
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climáticas e dos riscos globais, enfim, de uma economia hipocarbónica e
ecossistémica. Uma parte destas preocupações ficou consagrada na PAC
pós-2013, sobretudo no que diz respeito à temática dos bens públicos rurais.
Por isso, nós atrevemo-nos a perguntar, depois de várias décadas de política
agrícola comum e de muita controvérsia sobre os seus fundamentos e custos:
Está a sociedade europeia, e nacional, ainda disponível para subscrever com o mundo rural um contrato de sociedade cujo propósito essencial
seja o desenho de estratégias locais de segurança alimentar e ecológica onde
se incluem a provisão de serviços ecossistémicos, a prevenção contra os
grandes riscos e a defesa e valorização dos recursos naturais e a biodiversidade que são vitais para o bem-estar das populações e, muito especialmente, os grupos mais desfavorecidos e vulneráveis?
Estará a próxima agenda europeia de políticas públicas para a agricultura e o mundo rural orientada prioritariamente para a promoção dos mercados
de futuro e dos bens de mérito na linha dos quatro vectores antes referidos,
agroecologia, biodiversidade, serviços ecossistémicos e paisagem? E, nesse
sentido, em que medida a política de subsídios à produção e ao rendimento
da União Europeia dará lugar, progressivamente, a uma ajuda contratual por
serviços prestados, uma mistura inteligente de empresarialização e contratualização enquanto o preço do produto final não incorporar toda a “fileira de
mérito”? Estamos, também, convencidos de que, neste intervalo de tempo, o
mercado dos serviços agroecológicos, ecossistémicos e paisagísticos se aprofundará e que novas fórmulas contratuais e mercantis verão a luz do dia.
Tudo somado, e apesar do TEEB, não estamos ainda próximos do que
poderíamos designar como “um ponto paradigmático de viragem”, isto é, no
limiar de um terceiro pilar da PAC para o mundo rural, relativo à economia
dos ecossistemas, da biodiversidade e dos serviços agro-paisagísticos. Trata-se de uma passagem lenta e demorada, conhecimento-intensiva, que a teoria
normativa não está em condições de precipitar, enquanto não for socialmente
e institucionalmente interiorizada.
De facto, uma economia rural TEEB, no plano europeu é, para já, um
caminho muito estreito, não obstante os sinais positivos nessa direcção. De
facto, uma economia TEEB (3.º pilar) tem muita dificuldade em confrontar-se com uma economia OCMA (organização comum dos mercados agrícolas,
1.º pilar) e com uma economia PDR (programa de desenvolvimento rural,
2.º pilar), há muito instaladas no mundo do agro-negócio e do agro-território.
O que queremos dizer é que o modelo centralizado em vigor, mais no
1.º pilar e menos no 2.º pilar, não é, ainda, compatível com a aplicação concreta e material do conceito de multifuncionalidade agroecológica, ecossis-
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Os territórios-rede
témica e paisagística, ele próprio muito controverso como já referimos anteriormente. As contradições são visíveis e espreitam a três níveis:
– A multifuncionalidade agrorural renova e refresca a especificidade e a
legitimidade da agricultura e do mundo rural, por mais ambíguos e difusos que sejam os factores e os sentimentos em consideração;
– A especificidade agrorural, o desligamento das ajudas à produção, a
diferenciação dos produtos pela qualidade e a pluriactividade, recolocam o problema da concorrência em termos inteiramente novos, pois, ao
fim e ao cabo, estamos a comparar situações que não são comparáveis,
dada, justamente, a sua singularidade agro-territorial;
– A especificidade é, também, sabemo-lo bem, fonte de ineficiência e
desperdício; equidade não se confunde com ineficiência e uma agricultura de serviços não é necessariamente mais eficaz e menos dispendiosa
do que uma terciarização empresarial desses serviços.
A renacionalização parcial da PAC, até mesmo a sua regionalização,
pode ser justificada e legitimada pelas razões anteriores, uma vez que não
estamos a falar de produtos de massa mas de produtos de qualidade original;
neste caso, as ajudas nacionais e regionais podem ser consideradas compatíveis por não distorcerem as regras de mercado.
Todas estas eventuais contradições não terão muito significado se a
regulação do risco global, pela União Europeia, não for efectiva e não funcionar aos diferentes níveis ou escalas do problema. Os bens de mérito e
reputação pertencem, não apenas a uma economia intensiva em conhecimento mas, sobretudo, a uma economia intensiva em valores. Falamos de bens e
serviços, limpos, livres, justos e dignos. Só com estes atributos experimentaremos a utilidade social do respeito e estaremos em condições de preparar a
3.ª revolução verde.
Conclusão da I Parte
Na primeira parte deste livro procurámos, claramente, perscrutar o futuro próximo tendo em vista alargar o campo das possibilidades e a diversidade dos presentes, amanhã: com a Declaração de Princípios da 2.ª ruralidade,
no plano político-doutrinário, com a transição dos territórios-zona para os
territórios-rede, no plano cognitivo mas, também, simbólico, com a multifuncionalidade e os bens de mérito, no plano substantivo, como traves-mestras e pilares de um novo contrato social com o mundo rural.
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Preocupa-nos imenso a aceleração e o encurtamento do ciclo de vida
dos territórios, a violência social e simbólica da sua desconstrução e a escassez de recursos que são postos à sua disposição para as tarefas da reconstrução. Neste sentido, a primeira parte deste livro é uma espécie de grito de
alarme e de alerta, tanto mais significativo quanto ocorre num país onde é
muito arriscado ter razão antes de tempo.
A 2.ª ruralidade é essencialmente um tempo de esperança e de compossibilidade, que está à nossa frente e ao nosso alcance. Apesar do “contrato
social e da ecotopia do mundo rural” tivemos o cuidado de não cortar o cordão umbilical com o “sistema em vigor”. Esse cuidado nota-se na forma prudente como apresentámos os contributos da teoria da multifuncionalidade e
dos bens de mérito que consideramos fundamentais para o novo contrato
social da 2.ª ruralidade. Esse cuidado nota-se, ainda, na própria agenda europeia para a agricultura e o mundo rural. O programa TEEB é esse cordão
umbilical, uma espécie de biopolítica que nos devolverá a verdadeira essência das coisas. Como veremos nos próximos capítulos.
II PARTE
A BASE AGROECOLÓGICA DA 2.ª RURALIDADE:
A 3.ª REVOLUÇÃO VERDE (3.ª RV)
Na segunda parte vamos abordar a base agroecológica e ecossistémica
da 2.ª ruralidade, o que aqui designamos de “3.ª revolução verde”, depois da
revolução químico-mecânica conhecida por 1.ª RV e da revolução biotecnológica, mais recente, conhecida por 2.ª RV. No capítulo 4 iremos abordar o
contributo da teoria da modernização ecológica (TME), mais conhecida por
capitalismo verde. Veremos algumas teses a propósito, bem como algumas
críticas à luz da teoria do desenvolvimento sustentável (TDS). No capítulo 5
abordaremos a longa transição agroecológica e agroecossistémica e as dúvidas existenciais a propósito da transição da 2.ª para a 3.ª revolução verde. No
capítulo 6 procuramos ilustrar a base agroecológica e ecossistémica da 2.ª
ruralidade através de uma revisitação ao universo paisagístico e conceptual
do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT), com um enfoque particular na
transformação da cidade-zona em cidade-região e no seu especial metabolismo e organicismo ecossistémico.
4. O contributo da teoria da modernização ecológica (2.ª RV)
Em 1962 Rachel Carson publica a obra premonitória A primavera silenciosa (Carson, 1962), sobre as relações entre o modelo agro-químico de
agricultura e suas consequências sobre o meio ambiente. Tinha acabado de
nascer a chamada “questão ambiental”. Esta contextualização é fundamental
para perceber a evolução do pensamento social em matéria ambiental, por
exemplo, a formação da disciplina de sociologia ambiental no quadro mais
abrangente da teoria sociológica. Não admira, portanto, que adquiram importância relevante os grandes acidentes industriais, químicos e nucleares, dos
anos setenta e oitenta do século passado, que se traduziram em outras tantas
70
Os territórios-rede
crises do industrialismo do sistema capitalista e que estão, em grande medida, na origem da modernização reflexiva da modernidade tardia, tal como se
pode ler e extrair do pensamento social de autores como Anthony Giddens e
Ulrich Beck (Beck et al: 2004).
Estes grandes acidentes do industrialismo capitalista, que já eram pressentidos nos protestos dos movimentos ambientalistas mais radicais dos anos
setenta, de inspiração neomarxista e ecologista radical, têm uma consequência maior sobre o entendimento até aí prevalecente acerca da questão
ambiental. A “nova questão ambiental”, onde se integra, com lugar de destaque, a teoria da modernização ecológica, pode ser expressa através de algumas mudanças importantes: da mudança sectorial para as mudanças globais,
do risco local para o risco global, da abordagem ideológica para a abordagem pragmática do problem-solving, dos movimentos alternativos para os
movimentos participativos, do governing para a governance do policy-process,
das subdisciplinas ambientais para o corpo principal da teoria sociológica e das
políticas domésticas para os regimes da modernidade global.
4.1. O capitalismo verde e as teses sobre a modernização ecológica
A teoria da modernização ecológica (TME) é um exemplo eloquente da
evolução da questão ambiental do último meio século. No início, é uma
reacção contra as teorias mais radicais e desconstrutivistas dos anos setenta,
que visavam combater o sistema capitalista, mais tarde, antecipa e materializa, de acordo com as suas próprias convicções, nas economias desenvolvidas
do norte e centro da Europa, a teoria do desenvolvimento sustentável (Relatório Bruntdland de 1987 e Conferência do Rio de 1992), finalmente, confere
verosimilhança e optimismo à grande teoria da modernização reflexiva, não
obstante pairar sobre ela o pessimismo da teoria do risco global.
A importância da teoria da modernização ecológica (TME) é que ela
acredita, pragmaticamente, que melhorias sucessivas no funcionamento dos
mercados, das tecnologias, das instituições e dos comportamentos, conduzem o capitalismo verde ao desenvolvimento sustentável.
As origens histórico-estruturais da TME, o capitalismo verde
A teoria da modernização ecológica (TME) está em linha com as grandes preocupações ambientais do último quartel do século XX. Na fase inicial, devido ao “romantismo radical” dos movimentos sociais ambientais,
não surpreende que os grandes conceitos sociológicos ambientais tenham
uma origem de inspiração neo-marxista ou, então, giram em redor de uma
António Covas e Maria das Mercês Covas
71
mudança de paradigma como é aquele que se exprime pelo binómio HEP-NEP (Human Exceptionalism Paradigm and New Environmental Paradigm)
de Catton e Dunlapp (1978). Em causa, de facto, estava uma mudança de paradigma: dos impactos dos humanos no ambiente, visão antropocêntrica, para os
impactos do ambiente nos humanos, visão ecocêntrica.
Logo de seguida, os grandes acidentes da década de 80 deixam de respeitar países, sistemas e fronteiras e mudam, por isso, a natureza e a escala
dos problemas ambientais. Ao mesmo tempo, entre os debates do Clube de
Roma sobre os limites biofísicos ao crescimento económico e os diversos
Relatórios do IPCC sobre Alterações Climáticas ou a grande campanha
ambiental de Al Gore denominada “Uma Verdade Inconveniente”, assistimos à internacionalização da questão ambiental e à emergência da “grande
noção” de desenvolvimento sustentável, na sequência do Relatório Brundtland de 1987 e nas Conferências do Rio de 1992 sobre Ambiente e Desenvolvimento e de Joanesburgo de 2002.
Neste percurso, o que acontece à teoria da modernização ecológica?
Julgamos poder descortinar quatro grandes perspectivas (Covas e Covas,
2010: 64-65):
1.ª: Há, em primeiro lugar, uma escola de pensamento social em matéria ambiental; esta escola, ao mesmo tempo de carácter teórico e empírico,
está identificada com os trabalhos académicos da escola alemã de Berlim de
Joseph Huber (2010) e Martin Janicke (2010) e com os trabalhos da escola
holandesa de Wageningen dos sociólogos Arthur Mol (2010) e Gert Spaargaren (2000), aos quais acrescentamos a escola americana desde Allan Schnaiberg (1986) mais radical até Fred Buttel (2000, 2001, 2010) mais modernizador; no início dos anos oitenta, Martin Janicke (2010) e Joseph Huber
(2010) já usavam as expressões modernização ecológica e greening the
industry; estas escolas detêm, ainda hoje, a propriedade intelectual da teoria
da modernização ecológica nos seus traços essenciais;
2.ª: Há, em segundo lugar, um discurso público e uma politização da
questão ambiental, a new environmental policy-framework que conduz à
modernização política; este discurso e esta politização preparam o contexto
favorável ao desenho de novas políticas públicas ambientais e ao surgimento
do neo-corporatismo alemão e das coligações de interesses que são indispensáveis à modernização pragmática e utilitária da indústria alemã, segundo o
princípio geral de que a economia e a ecologia são conciliáveis no quadro
das economias capitalistas avançadas;
3.ª: Há, em terceiro lugar, o pragmatismo da corrente gestionária da
política industrial face ao qual a ecologia perdeu a sua inocência; a TME é,
72
Os territórios-rede
doravante, muitas vezes percebida como gestão ambiental, ecologia industrial, ecologia agrária e ecologia urbana, isto é, eco-reestruturação, em particular no sector privado; outra aproximação inclui as políticas públicas que
promovem a internalização das externalidades ou custos externos não contabilizados; porém, o mais interessante desta evolução gestionária e utilitária é
que a TME faz emergir uma racionalidade ecológica cada vez mais emancipada da economia e da política, ou seja, um mix modernizador de mercado,
tecnologia, instituições, não obstante os neo-marxistas nos lembrarem que o
“capitalismo verde” é um embuste que não resolve os grandes problemas
ambientais do nosso tempo;
4.ª: Há, em quarto lugar, a globalização da questão ambiental, a emergência da sociedade do risco global e o greening do consumo; a geração de
70-80 acreditava nas capacidades do capitalismo liberal para se auto-reformar através de políticas de modernização; hoje, para as gerações mais
recentes, com a globalização ambiental e a modernidade global, a agenda da
modernização ecológica volta a ser mais político-ideológica e muitos conflitos de interesse põem em causa os benefícios ecológicos; por outro lado,
com a hiperglobalização e depois do greening da produção é agora a vez do
greening do consumo e dos estilos de vida; os problemas ambientais deixam
de ser um problema de ecologia agrícola, industrial ou urbana para ser um
problema de ecologia política e ecologia humana, isto é, de cidadania
ambiental.
A partir destas perspectivas podemos construir um decálogo da TME
(Covas e Covas, 2010: 67-68):
1.ª tese: a TME é uma tese acerca da “modernização da modernidade”,
que não confunde industrialismo com capitalismo, e que se inscreve na grande corrente da modernização reflexiva de Anthony Giddens, na fase tardia
do capitalismo quando este ainda acredita, apesar de tudo e dos riscos globais, que tem condições para renovar as disfunções do seu próprio industrialismo;
2.ª tese: a TME é uma tese acerca da economia verde, o greening do
sistema, isto é, é uma lógica técnico-instrumental ao serviço da reestruturação ecológica do capitalismo;
3.ª tese: a TME é uma tese acerca da transição entre o antropocentrismo da sociologia clássica e contemporânea e a emergência do paradigma ecológico onde a sociologia ambiental tem um papel de relevo na definição e delimitação dos problemas agro-ambientais e eco-rurais; esta
António Covas e Maria das Mercês Covas
73
referência remete-nos para o que poderíamos designar como “a ideologia da
modernização ecológica”, a saber, uma abordagem utilitarista, tecnocrática e
corporatista própria das economias capitalistas mais desenvolvidas do centro
da Europa;
4ª tese: a TME é uma tese acerca do compromisso entre crescimento
económico e protecção da natureza; esta referência diz-nos que estamos
perante um problema clássico de policy-framework face à lógica binária
exclusivista de crescimento ou ambiente; desse ponto de vista, a TME é um
compromisso histórico, um novo campo de forças ou coligação de grupos de
interesse, acerca de um novo policy-style para o desenvolvimento económico
e social;
5ª tese: a TME é uma tese acerca da crescente independência da racionalidade ecológica face à racionalidade económica; diz-nos que a força das
práticas e do hábito conduzirão não apenas a uma efectiva modernização
ecológica dos processos agro-industriais mas, também, por efeito colateral, a
uma modernização institucional e, ainda, finalmente, a uma autonomia da
própria esfera de acção da ecologia; o aprofundamento da racionalidade ecológica cria um rationale específico que se repercute positivamente sobre as
outras esferas de actividade;
6ª tese: a TME é uma tese acerca de um capitalismo ecologicamente
regulado; seja pela regulação pública ou a hetero-regulação estamos a institucionalizar a ecologia nas práticas correntes como nas instituições;
7ª tese: a TME é uma tese acerca do papel central desempenhado pela
ciência e a tecnologia; quer na definição e delimitação dos problemas
ambientais, quer na regulação e gestão dos riscos;
8ª tese: a TME é uma tese acerca da distribuição do poder na formação e gestão das fileiras agro-industriais; em íntima ligação, de resto, com a
carga regulatória dos governos, em especial, em redor dos complexos higieno-burocráticos de regulação e inspecção;
9ª tese: a TME é uma tese acerca da actualização do poder entre corporações e profissões; muito ligado ao aparato higieno-alimentar, ao mesmo
tempo que revela a fragilidade da sua base político-sociológica para se ligar
a uma política ecológica que não se limite a ser uma mera modernização
agro-industrial conduzida sob a égide da própria indústria agro-alimentar;
74
Os territórios-rede
10ª tese: a TME é uma tese acerca da modernização de economias
desenvolvidas, logo, carece de uma diferenciação estrutural importante em
relação a zonas desfavorecidas.
A colecção de textos incluídos no Reader sobre a modernização ecológica (Mol, et al. 2010) permite-nos extrair as suas características essenciais,
a sua matriz base, que são outros tantos contributos fundamentais para uma
teoria geral da sustentabilidade (Covas e Covas, 2010: 70):
a) É uma teoria dentro do sistema ou pró-sistema dominante;
b) Visa aumentar a produtividade física dos recursos naturais;
c) Adopta o princípio da precaução e confia nos processos de gestão tecnológica;
d) Faz a gestão verde ou greening das cadeias alimentares;
e) É um momento de auto-crítica e modernização institucional;
f) Promove políticas públicas correctas e uma policy-change reformista;
g) Inova nos produtos e nos processos;
h) Privilegia a eficiência energética e dos materiais;
i) Muda o metabolismo da estrutura e do processo agro-industrial; procura
fazer o up-grading da capacidade de carga do ambiente.
4.2. As principais críticas à teoria da modernização ecológica
As teses acabadas de enunciar, onde impera o pragmatismo e o utilitarismo da TME, abrem o flanco a algumas críticas de carácter cautelar ou
prudencial (Covas e Covas, 2010: 69):
a) A modernização ecológica é uma construção social com todas as implicações político-sociológicas que isso contém e significa;
b) A modernização ecológica, devido à sua forte componente tecnológica,
carrega um risco acrescido e, sobretudo, no domínio agro-alimentar,
alarga o campo dos “objectos comestíveis não-identificados”;
c) A modernização ecológica, ao eleger o aparato tecnológico, não faz o
balanço dos seus fluxos de energia e materiais, logo, não é muito convincente face ao compromisso entre crescimento económico e ambiente;
d) A modernização ecológica é, em boa medida, uma questão microeconómica, por um lado, e de política nacional, por outro, sendo certo que
os grandes problemas ambientais são de global governance;
António Covas e Maria das Mercês Covas
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e) A modernização ecológica, por causa da sua “fé verde e tecnológica”
menoriza ou secundariza dois problemas maiores: o papel da ciência e
tecnologia e, sobretudo, do progresso científico, em primeiro lugar, e a
resposta que dá aos riscos globais, em segundo lugar;
f) A modernização ecológica reconhece, porém, que o que é previsível
hoje é a resistência das populações e não a satisfação com o progresso
científico;
g) A modernização ecológica valoriza o admirável mundo verde das tecnologias limpas e da ecologia mas não reconhece que produção e a qualidade alimentar são processos socialmente construídos e que os produtores e os consumidores podem construir circuitos curtos e directos.
Dito isto, as principais limitações da TME podem ser alinhadas do
seguinte modo:
a)
b)
c)
d)
f)
g)
h)
i)
j)
É muito eurocentrada nos países ricos e no capitalismo industrial;
Coloca a enfase na indústria transformadora;
Coloca o foco na eco-eficiência e na poluição;
Ignora o consumo e os seus padrões;
Revela uma confiança acrítica na capacidade do capitalismo;
Não faz referência aos países subdesenvolvidos do sul;
Atribui pouca relevância aos movimentos sociais;
Ignora a desigualdade social e política;
Encosta aos grandes teóricos da sociologia da modernização reflexiva
para ver se escapa à crítica dos neomarxistas e da ecologia radical.
Este conjunto de características da teoria da modernização ecológica
revela, em toda a sua extensão, o modo como o optimismo declarado da
TME procura reagir ao paradigma emergente do desenvolvimento sustentável, de coloração mais ideológica e radical e geralmente expresso de acordo
com o tríptico eficiência económica, responsabilidade ambiental e responsabilidade social. Estamos claramente perante uma filosofia política que poderíamos denominar de “pragmatismo positivista de cariz tecnológico”, fortemente ancorado na melhor tradição industrialista alemã e nas alianças entre o
capitalismo industrial e a política científica e tecnológica promovida pelo
estado.
Com efeito, na base deste pragmatismo positivista e tecnológico há a
convicção de que tudo depende dos incentivos correctos nas áreas da política
tecnológica e do ambiente. Se assim acontecer, as três dimensões do desen-
76
Os territórios-rede
volvimento sustentável serão mais facilmente alcançáveis. No caso alemão,
esta convicção mergulha fundo as suas raízes em dois elementos estruturo-funcionais do Estado alemão, a saber, “a economia social de mercado”, por
um lado, e o compromisso político na sociedade alemã em matéria de estado
neo-corporatista, por outro.
Uma última frente de crítica da TME provém da chamada cultura do
risco, também ela de origem alemã, com base nos escritos de Ulrich Beck
(Beck, 2009, 2002, 1999). Todo o optimismo da TME é posto em causa, pois
abandonamos cada vez mais territórios, pessoas e recursos. Como é que uma
civilização e uma teoria sobre o progresso humano e social nos trouxeram
até aqui? Por outro lado, o risco chega por todas as vias e tem um custo de
tal modo elevado que só alguns conseguem suportar, logo, torna-se altamente discriminatório e exclusivo. Acresce que o risco global, difuso e invisível
se torna cada vez mais ameaçador.
O risco é um produto da sociedade urbana e industrial e das respectivas
aplicações da ciência moderna. O lema fundamental da sociedade urbano-industrial da primeira modernidade pode ler-se da seguinte forma: a ciência
domina a natureza, o Estado domina o homem. Com a segunda modernidade
quebram-se estes dois nexos. O risco cresce com a modernização, seja o risco interno de natureza tecnológico ou o risco interdependente e sistémico.
Quebra-se o nexo causal científico. Por sua vez, o Estado revela-se incompetente para reduzir essa incerteza. Além do mais, com a globalização, revela-se incompetente para regular as crises e o poder dos mercados predadores.
Por causa das crises de crescimento da economia do bem-estar o Estado deixou de ser “Previdente e Providente”. O risco social das sociedades seniores
aumentou de forma correspondente.
As sociedades urbano-industriais tornam-se críticas de si mesmas, reflexivas. Não há mais actividade risk-free, por isso os cidadãos desenvolvem
uma crescente percepção do risco e confiam moderadamente e cautelosamente nos institutos e centros de investigação. A 1.ª modernidade é, portanto, vítima dos seus próprios sucessos (Beck, 2009, 2002, 1999): os riscos são
produzidos industrialmente, são externalizados economicamente através do
orçamento do estado, são individualizados juridicamente através de uma
cobertura de risco por via de uma companhia privada de seguros, são legitimados cientificamente através do aparelho técnico-científico, institucionalizado e financiado pelos dinheiros públicos e, finalmente, são minimizados
politicamente através de uma narrativa política de conveniência.
A TME não dá conta desta mudança profunda no padrão global do risco
que afecta seriamente o funcionamento do sistema capitalista e o papel do
António Covas e Maria das Mercês Covas
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Estado-nação enquanto regulador-mor do sistema. A grande crise de 2008,
que ainda continua, é, disso, prova eloquente, se não vejamos (Covas e
Covas, 2010: 255):
a) A fábrica, a classe operária e os “exércitos de reserva industrial”, os
signos da sociedade urbano-industrial, estão a ser deslocalizados pelo
processo de globalização, quer dizer, o sistema capitalista está a exportar os seus riscos mais ameaçadores; o desemprego crescente é o preço a
pagar pela “limpeza” do sistema;
b) Socializar o risco através do contribuinte é uma das competências
mais emblemáticas do sistema capitalista; por força das evidências, a
economia da poluição inventou a teoria do poluidor-pagador e o custo
marginal passou a ser comparado com o custo de uma contra-ordenação; a institucionalização dos prejuízos é o preço a pagar para
purgar o sistema;
c) O seguro do risco local é uma tarefa comportável nos limites financeiros
de uma companhia privada mas a cobertura do risco global é uma construção social e política de primeira grandeza que implica vários níveis
de governo e administração, mais uma vez a socialização e a institucionalização de uma parte importante de “produção de risco privado”; o
resseguro sucessivo é o preço a pagar para evitar a “tragédia dos
comuns”;
d) A legitimação científica, outra competência emblemática do sistema
capitalista, está, ela própria, em risco; a ciência oculta-se por detrás do
discurso científico, define o que é risco e qual a sua gravidade, cria a
percepção que lhe convém e desacredita quem ousa fazer o exercício do
contraditório; o pluralismo e o relativismo das diversas abordagens técnico-científicas é o preço a pagar para contornar a “captura da verdade
científica” por interesses corporativos;
e) O risco tem uma narrativa política, logo o discurso político pode “servir-nos” diferentes tipos de risco; o risco global altera, porém, a percepção do risco e a forma como o Estado “democratiza o risco global” passa a ser um elemento crítico de análise e decisão políticas, ao abrir para
variadas ideologias, culturas e políticas de risco.
Em termos de cultura de risco, esta transição paradigmática que estamos
a viver, em que os riscos deixam de ser colaterais para se tornarem riscos
78
Os territórios-rede
estruturalmente constitutivos da sociedade contemporânea, altera radicalmente a relação entre a estrutura e o actor. Reflexividade e estruturação passam a ser, assim, elementos decisivos da acção colectiva, de uma acção
social que confere movimento e efectividade às estruturas, que são regras
mas, também, recursos. Estas categorias analíticas ocupam um dos lugares
centrais da teoria e do pensamento social do século XXI e juntam-se a outras
categorias (mobilidade social, acessibilidades, novos direitos, novos espaços
públicos, individuação, associacionismo, acção colectiva) que, em conjunto,
formam a anarquia madura em que vivemos actualmente, no longo trânsito
paradigmático em que estamos mergulhados.
4.3. A revisão da teoria à luz do desenvolvimento sustentável
Depois de uma crítica à TME no próprio terreno da teoria, vamos neste
tópico fazer duas revisões diferentes da teoria da modernização ecológica.
Em primeiro lugar, revisitamos a noção abrangente e ecléctica de desenvolvimento sustentável, em especial, as escolas da sustentabilidade fraca e sustentabilidade forte. Em segundo lugar, e com a ajuda de um artigo de Terry
Marsden intitulado “The Quest for Ecological Modernisation: Re-Spacing
Rural Development and Agri-Food Studies” (Marsden: 2004), fazemos uma
revisitação da teoria social, numa aproximação mais sociológica à TME
usando, para o efeito, um conjunto de middle level concepts que retirámos do
campo de forças social inscrito na lógica própria do desenvolvimento rural.
A TME e a noção de desenvolvimento sustentável
O desenvolvimento sustentável (DS), tal como está no Relatório Brundtland (1987), é o "desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer
as suas próprias necessidades". Esta formulação conceptual genérica de
desenvolvimento sustentável tem tanto de pertinente como de difuso e remete para uma “construção social permanente”.
A ideia de desenvolvimento sustentável remete-nos, com efeito, para
uma arbitragem temporal entre o curto prazo, o médio prazo e o longo prazo,
acompanhando, de perto, o desenvolvimento dos diferentes ciclos de reprodução dos recursos naturais: dos ciclos curtos, mais socioeconómicos, aos
ciclos longos, mais biogeoquímicos. E, naturalmente, aos seus inúmeros
compromissos. Por isso, e apesar da sua ambiguidade, a ideia do desenvolvimento sustentável remete-nos para a noção de sustentabilidade, como o
atributo de um processo que pode manter-se indefinidamente se for respeita-
António Covas e Maria das Mercês Covas
79
do o equilíbrio entre as potencialidades e as limitações existentes. Assim, a
todo o momento, o desenvolvimento sustentável faz a prescrição recorrente de que a utilização de recursos não pode exceder a capacidade de regeneração e manutenção da integridade, complexidade e equilíbrio dos ecossistemas.
Todavia, as arbitragens temporais contidas na noção de sustentabilidade
não se reportam apenas aos ciclos de vida. A sustentabilidade é uma construção social e política a propósito da relação entre o homem e a natureza e, por
essa via dessa mediação com a natureza, uma relação social por excelência.
Seguindo de perto Daly e Farley (2004), a sustentabilidade compreende,
pelo menos, três abordagens complementares: a sustentabilidade ecológica,
que implica a manutenção das principais características do ecossistema,
essenciais para a sua sobrevivência no longo prazo, a sustentabilidade económica, que se refere à viabilidade do compromisso entre a gestão dos recursos naturais e a dinâmica dos mercados, e a sustentabilidade social, quando a
distribuição dos custos e benefícios respeita a equidade intra-geracional
(entre as gerações actuais) e a equidade inter-geracional (entre as gerações
futuras) (Daly e Farley, 2004).
A sustentabilidade é, portanto, o equilíbrio muito instável entre economia, ecologia e justiça social. No curto prazo, devido às inúmeras desigualdades de partida, as relações entre estas três dimensões da sustentabilidade
só podem ser conflituosas entre si. Restam os compromissos políticos que,
para serem possíveis e verosímeis, precisam de ser “estendidos no tempo”,
ou seja, precisamos de um horizonte temporal mais alargado para a economia, uma valoração mais efectiva dos ecossistemas de acolhimento, uma ética intergeracional mais comprometida.
A sustentabilidade pode ainda ser observada de acordo com uma outra
“arbitragem”, aquela que relaciona ou troca entre si diferentes “espécies de
capital”. Neste caso, a sustentabilidade é o balanço dos efeitos sobre as futuras gerações em resultado da aplicação de sistemas e tecnologias que hoje
desenvolvemos para utilizar os recursos naturais disponíveis. Está aqui
implícita a ideia de neutralidade inter-geracional dos recursos, a ideia de que
o capital se pode “legar intacto” em determinadas condições ou, ainda, a
noção de que o capital pode ser valorizado constantemente e, portanto,
transmitido sob múltiplas formas às gerações vindouras.
Segundo Pearce e Atkinson (1993), em matéria de sustentabilidade, destacam-se duas escolas de pensamento: a escola da sustentabilidade fraca e a
escola da sustentabilidade forte. A escola da sustentabilidade fraca considera
que a substituição de capital manufacturado (ou capital humano) por capital
natural é relativamente fácil e que a perda de capital natural não é importante
em si mesma, desde que aumente a riqueza sob a forma de capital manufac-
80
Os territórios-rede
turado ou de capital humano (Pearce e Atkinson, 1993). A crítica a esta escola da sustentabilidade fraca advém do facto de não levar em conta que certos
serviços ambientais (os serviços da biodiversidade, por exemplo) têm um
valor de existência, de uso único e insubstituível para os quais não existem
verdadeiros substitutos (o património natural genético que está na origem
desses serviços). A escola da sustentabilidade forte, ao contrário, parte do
pressuposto de que não há verdadeiros substitutos para certos bens do património natural.
A escola da sustentabilidade forte acrescenta duas razões de peso: não
compreendemos em toda a sua complexidade o funcionamento integral dos
sistemas ecológicos (a complexidade das cadeias alimentares e a reacção a
certos agentes perturbadores, por exemplo) e este facto pode conduzir-nos à
perda definitiva de património natural significativo em virtude de, justamente, não tomarmos as medidas cautelares que se justificavam para contrariar
alguma displicência e falta de prudência da nossa parte.
Como se observa, estas duas escolas de pensamento têm na sua génese
uma combinação variável de tecnologia e ecologia, mais uma vez os dois
factores que relacionam o homem com a natureza. Digamos que nos encontramos num continuum de combinações entre mais tecnologia e menos ecologia (sustentabilidade fraca), de um lado, e mais ecologia e menos tecnologia (sustentabilidade forte), de outro. A sustentabilidade fraca deposita,
portanto, uma fé imensa na inovação tecnológica e, desse ponto de vista,
parece identificar-se bem com a teoria da modernização ecológica que analisámos no ponto anterior, no quadro mais geral de uma “teoria do sistema”
capitalista na fase tardia da modernidade ocidental.
Neste contexto, merece especial destaque a abordagem teórica levada a
efeito pela economia do ambiente, de inspiração neoclássica, e o seu peculiar
marginalismo económico (as diversas economias da poluição) quando considera que a substituição destes capitais não é perfeita e que, portanto, é necessário considerar os custos sociais da degradação ambiental nas estratégias de
desenvolvimento.
Nas abordagens de pendor mais ecológico a fé na tecnologia diminui do
mesmo passo. Aqui, também, as “doses de ecologia” variam, desde uma
posição mais ecodesenvolvimentista à maneira de Ignacy Sachs (1981, 2007)
até ao desenvolvimento sem crescimento à maneira de Herman Daly (1974)
(estado estacionário), já sem falar nas correntes mais radicais da ecologia
profunda, todas elas mais próximo da escola da sustentabilidade forte.
Estas duas escolas de pensamento resumem bem a posição relativa dos
“dois realismos” em presença: em primeiro lugar, o realismo político que
propõe a continuidade do crescimento económico face à impossibilidade
manifesta de conciliar distribuição do rendimento e estabilidade demográfi-
António Covas e Maria das Mercês Covas
81
ca, em segundo lugar, o realismo ecológico ao afirmar que a realidade política deveria ceder terreno à realidade biofísica, pois a economia mundial já
ultrapassou os limites toleráveis do ecossistema-terra. É em redor destas duas
“posições realistas” que se faz hoje a política internacional em busca do que
parece ser um “terceiro realismo” por todos desejado: o desenvolvimento
sustentável pode fazer tudo ao mesmo tempo, tratar de satisfazer as necessidades humanas, aspirar a manter o crescimento económico e a preservar o
capital natural. É, claramente, uma “carga excessiva” para o pragmatismo e
utilitarismo da TME.
A TME e o campo mais vasto da teoria social
Na origem, no tempo da “Primavera silenciosa” de Rachel Carson
(1962), o problema ambiental era uma consequência directa da acção humana, isto é, os princípios e as aplicações químico-mecânicos do modelo de
agricultura produtivista eram a causa principal dos problemas ambientais. No
plano da teoria social, a leitura do problema fazia-se, digamos, da sociologia
rural para a sociologia ambiental. Muitos factos relevantes aconteceram,
entretanto, nas sociedades capitalistas mais avançadas que fizeram avançar a
teoria social.
De acordo com Terry Marsden no artigo intitulado “The Quest for Ecological Modernisation: Re-Spacing Rural Development and Agri-Food Studies” (Marsden, 2004), onde se actualiza a abordagem sociológica e se recuperam alguns conceitos que podem relançar o desenvolvimento rural, o
problema da reconceptualização da teoria pode ser formulado do seguinte
modo: na origem, a sociologia rural deu um excelente contributo para fundamentar a base temática e teórica da sociologia ambiental, pois os problemas agro-químicos foram uma fonte segura e um bom pretexto para criar
uma agenda ambiental; hoje, porém, a agenda ambiental, expressiva e consolidada como está, pode ser um poderoso instrumento para renovar, em bases
novas, a agenda da sociologia rural; poderá esta inversão de perspectiva,
mais agroecológica e socioecológica, renovar a sociologia rural e a temática
do desenvolvimento rural, ao menos nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas?
Em tudo o que dissemos anteriormente sobre a teoria da modernização
ecológica (TME) ficou claro que se trata, em primeira instância, de uma
abordagem eminentemente urbano-industrial, na confluência de vários processos de modernização e segundo o princípio geral de que uma racionalidade ecológica mais autónoma e independente acabará por influenciar e determinar, também, as outras esferas de actuação, económica, política e cultural.
E, também, a agricultura em toda a sua extensão, acrescentamos nós.
Os territórios-rede
82
O artigo de Marsden (2004), inspirado nas áreas da modernização agrícola, das cadeias de bens alimentares e da floresta, adopta uma posição
optimista e positiva acerca da importância desta esfera autónoma de racionalidade ecológica e confirma a perspectiva de que estamos perante um período de modernização ecológica, no início do século XXI, muito diferente do
anterior período de modernização industrial. Dito isto, não devemos, todavia,
exagerar a autonomia da esfera ecológica no processo de modernização em
curso. Aliás, a referência a uma modernização ecológica fraca e a uma
modernização ecológica forte visa, justamente, sublinhar o princípio da precaução nesta matéria, pois essa modernização tem uma distribuição muito
desigual pelas diferentes economias, sectores e regiões. Este é, de resto, um
importante desafio, teórico e empírico, para a sociologia rural e, de um modo
mais geral, para a teoria social das questões ambientais.
Tabela n.º 1– Aproximação do quadro conceptual inovador (Middle level concepts) à
construção social dos conceitos de Marsden (2004)
Quadro conceptual inovador
(Middle Level concepts)
A construção social dos conceitos (segundo Marsden, 2004)
1. Ambiente e justiça territorial
A qualidade dos ecossistemas e da vida
das populações são construções sociais
2. Comunidade e associacionismo
O embededdeness e o significado político
profundo da construção social dos conceitos de comunidade e associação
3. Exclusão e capacitação
O empowerment e a requalificação, formas poderosas de construção social do
actor social
4. Consumismo e produtivismo
A segurança e a qualidade como uma construção social dos produtos alimentares
5. Responsabilidade socio-ambiental das empresas
A responsabilidade socio-ambiental
como construção social do espírito e da
ética empresariais
6. Regulação, profissionalização
e burocratização
Os custos de formalidade da actividade e
da profissão como construção social do
“acesso e do exercício”
Fonte: Própria.
No campo da economia rural, o caminho é conhecido, pois prevalecem
as abordagens neo-clássicas e micro-económicas já utilizadas na economia
industrial e nos processos de modernização industrial, com as mesmas falhas
António Covas e Maria das Mercês Covas
83
e externalidades de sempre, já há muito conhecidas na literatura. No campo
da sociologia rural, a diferenciação teórica e empírica é muito maior e a
complexidade, aqui, é o preço a pagar pela diversidade. Citando novamente
Marsden (2004), “We need to be reconstructing as well as de-constructing
models and frameworks which suggest how things could work in different
and more socio-ecological ways over space and time” (Marsden, 2004: 133).
Neste esforço de reconstrução socioecológica do policy-framework do
mundo rural desenvolvido, Marsden resgata conceitos do quadro tradicional
da teoria social e da sociologia tendo em vista a formação de um novo compromisso teórico-prático, útil, por exemplo, sobre a construção dos futuros
territórios-rede. Partilhando este esforço, apresentamos na Tabela n.º 1 um
quadro conceptual inovador (middle level concepts) para a laboriosa construção social dos conceitos de Marsden (2004).
Vejamos, agora, mais de perto, as seis áreas onde pode nascer este novo
formative power em resultado da interacção entre a sociologia ambiental e a
sociologia rural.
Crescimento desigual, ambiente e justiça territorial
O crescimento desigual cria assimetrias regionais e, portanto, problemas
de desemprego, de recursos naturais e recursos humanos, logo, de justiça territorial, de acordo com o princípio geral de que “qualidade dos ecossistemas
e qualidade de vida das populações são as duas faces da mesma moeda”. Se a
opção política privilegiar a concentração dos recursos, tendo em vista um
crescimento económico mais rápido e uma redistribuição mais efectiva,
como garantir que, dessa forma, se corrigirão as injustiças territoriais? Com
efeito, um rol de medidas agro-ambientais nas áreas da mitigação, adaptação
e compensação não substitui uma estratégia de desenvolvimento sustentável
que cumpra o objectivo geral de levar a par a qualidade dos ecossistemas e a
qualidade de vida das populações que os habitam e deles usufruem. Levar a
par estas duas qualidades é a razão de ser, mesma, da construção social destes middle level concepts.
Comunidade e associação
Estas duas noções, ricas na teoria social mais tradicional, pertencem a
uma “integração fraca” que é muito vulnerável aos custos de contexto e às
variações voláteis dos mercados externos, não obstante poderem proporcionar algumas externalidades positivas que têm a ver com a formação do capital social local (por exemplo, as cadeias curtas de bens alimentares), por
oposição aos interfaces institucionais mais próximos da intervenção pública
84
Os territórios-rede
e das agências de desenvolvimento. A inovação social hoje recomenda que
se articule devidamente o suporte institucional e o desenvolvimento associativo e é nesta articulação que assenta a construção social destes conceitos.
Tanto a natureza como as comunidades e as associações “racionalizam” as
condições contextuais da sua especial circunstância local e ao fazerem isso
forjam novas relações entre a natureza e a sociedade local.
Exclusão e requalificação
De acordo com Marsden (2004), nas comunidades florestais do Reino
Unido observa-se um longo e continuado processo de disempowerment e, em
consequência, uma crescente marginalização das respectivas populações por
parte dos mercados e das autoridades públicas. Todavia, este processo de
exclusão-requalificação é, em si mesmo, uma via privilegiada para observar
a forma como as comunidades se relacionam com a natureza e como compõem com ela diferentes modos e processos de sustentabilidade face aos
imperativos de curto prazo do mercado.
Outra fonte de exclusão reside no funcionamento das grandes cadeias de
bens alimentares, na sua “cumplicidade” com os consumidores e capacidade
para afastar os “concorrentes locais” através de preços flexíveis e agressivos.
Os consumidores, uma vez afastada a concorrência local, acabam, também,
por pagar mais caro os bens alimentares e em muitas áreas urbanas e rurais
do Reino Unido estes arranjos monopolísticos são uma prática comum.
Uma terceira fonte de exclusão diz respeito aos produtores primários e
aos pequenos industriais, cada vez mais afastados dos mercados retalhistas
por factores de custo como normalização, calibragem, higiene e segurança
alimentar. Agora, é a grande distribuição e retalho que controla a qualidade
da produção final ao consumidor, já não são, como antes, os vendedores de
factores de produção aos agricultores e industriais. Estes exemplos mostram
como os processos de aprendizagem implicados por este movimento de
exclusão e requalificação são um factor poderoso de construção social em
permanente actividade.
A agricultura acompanhada pela comunidade de consumidores
A variedade de situações agro-rurais no quadro europeu deve-se a contextos institucionais, associativos e culturais muito diversos mas, também, a
sistemas, tecnologias e mercados diversificados e bem adaptados aos condicionalismos locais e territoriais. Quer dizer, a ligação directa entre grupos de
produtores e grupos de consumidores, por via de uma convenção ou contrato
passado entre eles, pode estar na origem da criação de uma rede dedicada e da
António Covas e Maria das Mercês Covas
85
construção social e cultural de um bem ou serviço comum aos interesses das
partes em presença que, assim, podem escolher o sistema de produção, a tecnologia utilizada, a relação com o ambiente, a forma de distribuição do produto, a
qualidade final do produto, etc. Todavia, importa não esquecer que a volatilidade comercial e financeira imposta pelos sistemas convencionais aos mercados agro-alimentares torna muito difícil e precária a existência das cadeias
mais curtas e alternativas e o risco do negócio cresce na mesma proporção.
Responsabilidade social e ambiental e ética empresarial
No quadro da mercadorização da produção agro-alimentar, os aspectos
cruciais dizem respeito: às mudanças na política regulatória e ao modelo
higieno-alimentar, à crescente mobilidade comercial e financeira, à inovação
tecnológica e logística no desenvolvimento e localização das cadeias alimentares, à mudança nos padrões de consumo, à emergência de novos movimentos sociais e dos fenómenos de corrupção, à fragmentação das comunidades
locais e ao surgimento de novas formas organizacionais e associativas, à
irrupção dos riscos globais e ao papel das companhias de seguros na definição e responsabilidade social face aos riscos e à incerteza.
Este imenso campo de forças cria a necessidade e a urgência para o surgimento de novas comunidades de interesses, de inovação social e de responsabilidade empresarial, em especial nas áreas social e ambiental. É a este
campo de forças e a estas comunidades de interesses que chamamos governança. Neste contexto, a sociologia rural tem tido um papel muito discreto
mas, doravante, não se pode aceitar mais a sua “ausência” face às profundas
alterações que estão reconfigurando os territórios agrorurais.
Regulação, profissionalização e burocracia
Face às sucessivas crises agro-industriais e alimentares dos anos mais
recentes, os governos europeus responderam com mais regulação, profissionalização e burocratização regulamentar por via de códigos e boas práticas,
quer dizer, um modo de coordenação em que a higiene, a segurança e a qualidade desempenham um papel regulatório fundamental. Esta imensa carga
regulatória e regulamentar tem um efeito perverso sobre os pequenos produtores e industriais que se vêm confrontados com custos adicionais desproporcionados e cria, ainda, barreiras à entrada de novos empreendedores. No
mesmo sentido, este modo higiénico de regulação afasta mais o consumidor
do produtor, ao recordar-lhe que a segurança alimentar prevalece sobre a
sustentabilidade socio-ambiental.
86
Os territórios-rede
Chegados aqui, no último meio século, o desenvolvimento rural confundiu-se com modernização agrária, nos termos do modelo produtivista, de
base químico-mecânica e biotecnológica. A economia agrária tomou como
bons os conceitos de economia de escala, mercados globais, concentração e
marginalização de explorações agrícolas, internalização marginal de alguns
custos externos. A teoria da modernização ecológica, neste contexto, trouxe
um benefício inegável. Por via da TME, a sociologia rural e a sociologia do
ambiente estão cada vez mais próximas dos problemas reais e complexos do
mundo rural do século XXI enquanto, ao mesmo tempo, a abordagem agroecológica dá passos seguros na direcção certa abrindo espaço para o surgimento de uma pluralidade de agriculturas. Neste contexto, justamente, fazem
muito sentido os conceitos antes enunciados pois abrem um amplo espaço de
problematização na confluência das duas sociologias antes mencionadas e
serão, seguramente, um campo imenso de oportunidades ao estudo da inovação agroecológica e agrorural.
5. A 3.ª revolução verde, a longa transição agroecossistémica
Depois dos contributos das teorias críticas da modernização ecológica e
dos argumentos em redor da interacção virtuosa entre a sociologia ambiental
e a sociologia rural, estamos mais bem preparados para fazer o caminho que
nos levará da 2.ª revolução verde até à 3.ª revolução verde. Começamos com
as dúvidas herdadas da transição biotecnológica, denominada a 2.ª revolução
verde, e transitamos para o ideário agroecológico e agroecossistémico em
busca da 2.ª ruralidade e dos seus princípios inspiradores.
5.1. As dúvidas herdadas acerca da transição biotecnológica
O modelo de desenvolvimento económico adoptado pela civilização
ocidental coloca-nos face a situações contraditórias e absurdas. De um lado,
o progresso científico e tecnológico sem o qual a vida moderna seria inimaginável, de outro, problemas novos e riscos globais de elevada perigosidade
como produtos ou subprodutos do próprio modelo de desenvolvimento. A
TME diz-nos que não há razões para ter dúvidas, pois o conhecimento disponível é suficiente para eliminar esses problemas e as preocupações decorrentes. Mas será verdadeiramente assim? Não estará o “imperativo tecnológico” da nossa sociedade à beira de um limiar perigoso de risco e incerteza?
No rasto dos últimos grandes problemas alimentares não estará a nossa dieta
António Covas e Maria das Mercês Covas
87
alimentar à beira de se transformar numa espécie de menu de objectos
comestíveis não-identificados?
A primeira revolução verde foi, essencialmente, um processo de “desnaturalização”, e, assim, se criou o “ambiente”. Agora, as dúvidas acerca da
transição para a “3.ª revolução verde” residem em saber se se trata de mais
tecnologia (a transição biotecnológica) numa direcção claramente produtivista, ou se se trata de “renaturalizar” o ambiente anteriormente desnaturalizado
numa perspectiva de restauração ecológica e biofísica de agrossistemas em
mau estado (a transição ecológica). Ou, ainda, uma qualquer transição a
meio caminho que concilie a biotecnologia e os métodos agroecológicos
numa óptica agroecossistémica em direcção a uma pluralidade de agriculturas com graus de sustentabilidade variável (uma transição agroecossistémica). Temos, assim, várias transições com graus de intensidade diferenciados
à nossa frente e as dúvidas são legítimas acerca do caminho a seguir.
A biotecnología ou a “2.ª revolução verde”
No princípio da década de 1980 a expectativa dominante residia em
conseguir aumentos crescentes de produtividade nas principais culturas alimentares. A biotecnologia parecia estar à altura desse grande desafio desde
que os mercados globais ajudassem. De facto, as biotecnologias passaram a
ser vistas como capazes de solucionar os problemas resultantes da aplicação
dos métodos da agricultura moderna, especialmente aqueles relacionados
com as contaminações ambientais produzidas pela utilização intensiva de
produtos agro-químicos e recursos energéticos não renováveis e, também,
capazes de dar um novo dinamismo aos rendimentos das culturas, bem como
aliviar a pressão crescente sobre os recursos naturais, reduzindo, ao mesmo
tempo, a necessidade de combustíveis fósseis na actividade agrícola. No
final da década de 1980, a opinião dominante acreditava que estávamos
perante uma 2.ª revolução verde, de base biogenética, muito mais ampla nos
seus efeitos que a 1.ª revolução verde, de base químico-mecânica. Neste contexto de grande esplendor científico e técnico, onde estão as dúvidas e a
ideologia biotecnológica?
Sabemos, por exemplo, que a orientação dominante das inovações genéticas em sementes tem sido a de diminuir a influência da qualidade da terra e
do ambiente físico-químico como determinantes da produção e produtividade agrícolas. Porém, sabemos também que as variedades de alto rendimento,
base dos pacotes tecnológicos da 1.ª revolução verde, são fortemente dependentes de agro-químicos e fertilizantes sintéticos para maximizar o seu
potencial produtivo. Quer dizer, as exigências nutricionais e de protecção
Os territórios-rede
88
exigidas por estas variedades são realizadas através de uma crescente artificialização agroecossistémica.
Tabela n.º 2 – Os modelos-padrão produtivista e sustentável
Modelo Produtivista
Modelo Sustentável
1
O processo de produção e o processo de trabalho são determinados
pelo kit tecnológico
O kit tecnológico tem de passar pela
prova do balanço energético e da
produtividade global do ecossistema
2
O sistema biofísico é uma variável
endógena do sistema produtivo
O sistema biofísico é a moldura fundamental do processo produtivo
3
A escala e a estandardização são as
variáveis chave do processo produtivo
Todas as formas de conhecimento,
local e tradicional, devem ser consideradas
4
A estandardização genética faz parte do processo produtivo
A variabilidade genética é um factor
produtivo da maior importância
5
O tempo curto prevalece sobre o
tempo longo, é intergeracionalmente censurável
O tempo longo prevalece sobre o
tempo curto, é intergeracionalmente
responsável
6
O poder privatiza os benefícios e
socializa os prejuízos
O modelo internaliza os custos e premeia os méritos
7
A fileira opera uma transferência de
rendimentos de montante para
jusante
O modelo considera diversos tipos
de “convenções” de regulação e controlo
8
A escala e a normalização esmagam
as margens comerciais
O modelo considera as redes e os sistemas produtivos locais operadores
privilegiados
9
Os ciclos de inovação são curtos e
estão programados para a obsolescência
Os ciclos de inovação estão orientados para a produtividade global do
ecossistema
10
O progresso é excludente
O progresso é inclusivo
Fonte: Covas e Covas (2010: 86).
Assim, as biotecnologias, em geral, e a engenharia genética, em particular, oferecem os instrumentos para a criação de variedades de plantas adaptadas a ambientes até agora considerados como de menor capacidade produtiva. Neste caso, são as sementes que se adaptam a condições ecossistémicas
adversas, o que poderia ser usado em benefício da humanidade para permitir
António Covas e Maria das Mercês Covas
89
a obtenção de maiores níveis de produtividade na produção agrária em solos
mais empobrecidos e com menor fertilidade natural. Logo, uma mais-valia
agroecossistémica preciosa.
Sabemos, por outro lado, que a utilização das biotecnologias pode
aumentar, em vez de reduzir, a dependência da actividade de produção de
alimentos e fibras do fornecimento de agro-químicos sintéticos. Na sequência dos pacotes tecnológicos da 1.ª revolução verde, desta vez as sementes
originárias da engenharia genética “garantem” que os agricultores ficarão
muito mais presos aos kits biogenéticos com patente registada.
A duplicidade é evidente, as biotecnologias não somente poderão converter-se em um instrumento poderoso para dinamizar a produtividade agrícola como, também, poderão propiciar os meios para aumentar o grau de
monopolização da indústria sobre a actividade produtiva. O paradigma biotecnológico prepara-se, assim, para fechar o triângulo mecânico, químico e
genético (MQG), abrindo possibilidades imensas aos kits tecnológicos. O
resultado está à vista. Esta tendência pesada provoca um efeito de sucção
sobre os recursos, as pessoas e os territórios, tornando-os devolutos e descartáveis. Neste contexto, a política e o direito não parecem estar à altura das
circunstâncias para exercer um contrapoder suficiente.
Se considerarmos ambos os modelos-padrão, produtivista e sustentável,
como tridimensionais (mercados, ecossistemas e relações sociais), então
poderemos afirmar que o modelo produtivista considera os ecossistemas e as
relações sociais como variáveis endógenas e/ou instrumentais face ao sistema produtivo e comercial. Por sua vez, o modelo sustentável considera os
ecossistemas e as relações sociais como variáveis estruturais ou restrições
fundamentais ao sistema produtivo e comercial. Os dois modelos podem ser
comparados, de forma esquemática, ao longo de várias características, como
se mostra na tabela seguinte.
Os conceitos-chave nesta comparação são já conhecidos. Em primeiro
lugar, o kit tecnológico completo garante, dizem-nos, resultados a curto prazo. Em segundo lugar, a mitigação é para os casos mais graves em ordem a
restabelecer a “ordem antiga”, devidamente financiados pelo contribuinte
anónimo. Em terceiro lugar, o difusionismo técnico-comercial, que se confunde com uma assistência pós-venda, de carácter essencialmente comercial,
aparece “travestido” de extensão rural. Em quarto lugar, a genética produtivista, moderada pelo princípio da precaução, vai acomodando e consolando
a investigação científica mais “performante”. Em quinto lugar, a normalização, para providenciar cada vez mais escala, vai fazendo o seu caminho por
entre os despojos da micro e da pequena empresa agrorural. Em sexto lugar,
a fileira, como conceito operatório “por excelência”, encarrega-se de confirmar a lei dos rendimentos decrescentes e da troca desigual entre parceiros.
90
Os territórios-rede
Em sétimo lugar, os custos de formalidade, que crescem sem parar, pressionam constantemente as micro e as pequenas empresas em direcção à economia paralela. Em oitavo lugar, os ciclos de inovação são cada vez mais curtos e geram a desqualificação dos activos. Finalmente, a política pública,
cada vez mais acantonada, pelo défice e pela dívida, limita-se a fazer remediação para salvar as aparências.
A questão central no confronto entre os dois modelos é a de saber como
se irá desenrolar o “ciclo biotecnológico completo” nas suas duas componentes
principais: a “biotecnologia do processo e do produto”, por um lado, e a “biotecnologia dos recursos e dos ecossistemas”, por outro, sendo certo que o
modelo produtivista valoriza mais a primeira e o modelo sustentável mais a
segunda. Neste contexto, o realismo ecológico da economia significa levar a
cabo o aprofundamento dos mercados de modo a que eles possam considerar,
valorizar e reflectir devidamente os “bens e serviços sem mercado”, enquanto
o realismo económico da ecologia significa levar a efeito o aprofundamento
dos ecossistemas no sentido da sua exploração económica sob restrições.
Já sabemos que o ciclo biotecnológico foi e está concebido e construído
assimetricamente. A inovação de produtos e processos produz resultados
mais imediatos e com retorno mensurável, enquanto a inovação de recursos e
ecossistemas precisa de tempo para produzir resultados e tem uma óbvia
dificuldade em ser mensurável. A primeira é, em grande medida, uma rotina
técnico-científica instalada, a segunda é um processo recente de conhecimento-intensivo cuja consolidação será, ainda, demorada. Estamos, por exemplo,
a falar de balanços energéticos e de mercado de emissões, de acordos voluntários e compromissos entre negócios e biodiversidade, de métodos de valoração e valorização de bens e serviços públicos sem mercado, de modelos de
convenção que são fundamentais para a formação de parcerias público-privadas e modos de regulação mais descentralizados, da operacionalização
de redes e sistemas produtivos locais, dos ciclos de inovação orientados para
a produtividade global dos ecossistemas, da responsabilidade social e comunitária dos empreendimentos.
Do ponto de vista da investigação biotecnológica os avanços verificados
e esperados estão mais em linha com a trajectória produtivista anterior e
visam dois objectivos principais: corrigir os problemas ambientais provocados pelas tecnologias anteriores e prevenir retornos decrescentes de produtividade que se tornaram evidentes com as tecnologias actuais. Entretanto, a
investigação biotecnológica mais agroecológica (por exemplo, a maior eficiência fotossintética das culturas e a fixação de azoto atmosférico em
cereais por meios biológicos), em virtude da sua natureza ecossistémica, tarda em produzir resultados “competitivos” à luz das técnicas actualmente disponíveis.
António Covas e Maria das Mercês Covas
91
Em resumo, face à nossa relação com a natureza, podemos encarar a
biotecnologia de duas maneiras distintas. Na primeira, consideramos a agricultura como uma actividade industrial pelo que se trata de minimizar o seu
impacto sobre a natureza. Neste caso, ao aumentar substancialmente a produtividade agrícola, a biotecnologia possibilitaria a redução da área cultivada e
abriria a oportunidade de reabilitação em grande escala dos ecossistemas
naturais com base nos novos conhecimentos científicos e tecnológicos disponíveis, reduzindo, ao mesmo tempo, a contaminação e o impacto negativo
da agricultura sobre o meio ambiente.
Na segunda, consideramos a agricultura como um subconjunto da natureza sujeito aos princípios biofísicos e às leis da termodinâmica. Neste caso,
a biotecnologia da 2.ª revolução verde poderia levar a agricultura a um novo
círculo vicioso tecnológico e tornar-se uma ameaça para o ecossistema, ainda
maior que a anterior revolução química. Seja como for, tudo depende do
caminho que as indústrias irão seguir no próximo futuro: criar novos produtos que possam poupar factores de produção (como seriam as culturas resistentes a pragas) ou fazer um uso mais intensivo dos mesmos factores (por
exemplo, as culturas resistentes aos herbicidas). Como se observa, há dúvidas legítimas acerca da ideologia e do papel das biotecnologias na relação
entre agricultura e natureza e nada garante, no curto prazo, que se produzam
alterações substanciais na direcção do paradigma agroecossistémico.
5.2. A relevância da abordagem agroecológica e ecossistémica
Já vimos como há boas razões para ter dúvidas acerca da “ideologia da
biotecnologia” e mesmo da denominada “produção social de qualidade”.
Tudo isto, a propósito, ou por causa, das relações de poder que sempre
suportam os processos de transição e mudança. De acordo com Altieri
(2004), Gliessman (2007) ou Sevilla-Guzman (1998) os ecossistemas agrícolas são considerados como as unidades fundamentais de estudo na abordagem agroecológica. Nesses sistemas, os ciclos minerais, a transformação de
energia, os processos biológicos e as relações socioeconómicas são investigados e analisados como um todo. Nesses sistemas, a pesquisa agroecológica
não se interessa só pela maximização da produção, mas, também, pela optimização do agroecossistema de forma integrada; isto significa, ainda, que a
exploração integrada dos agroecossistemas rompe com as barreiras disciplinares tradicionais e com a acomodação do sistema de investigação e desenvolvimento convencional, ruptura essa necessária para a compreensão da
complexidade das interacções entre pessoas, sistemas de produção, recursos
naturais, animais e ambiente socioeconómico.
92
Os territórios-rede
Agricultura, agroecologia e revolução agroecossistémica (a 3.ª RV)
A “modernização da agricultura” pode converter-se numa opção dilemática: não modernizar “pode ser” uma tragédia, modernizar “pode ser” uma
tragédia. A modernização tecnológica, ou melhor, a “corrida à modernização
tecnológica” pode transformar-se numa “faca de dois gumes” se o agricultor
não for bem aconselhado quanto à natureza das suas opções em matéria de
sistema produtivo. As biotecnologias inscrevem-se na mesma opção dilemática. Por um lado, há uma visão positiva de que as biotecnologias agrárias
seriam mais “limpas" que suas antecessoras "agroquímicas" ao permitir, por
exemplo, maior resistência biológica a pragas e doenças. Por outro lado, a
biotecnologia pode ser usada para aumentar a resistência das culturas aos
agroquímicos, mantendo, assim, a dependência do sector face a produtos
comerciais que são potencialmente perigosos para o meio ambiente. Neste
caso, mais do que uma mudança de ciclo, estaríamos perante uma perspectiva evolucionista a aprofundar os custos e benefícios da primeira revolução
verde.
Não será a “crise ecológica” e, em especial, a emergência de problemas
macro-ecológicos, o sinal de que precisávamos para mudar de vida? Crise
ecológica, local e global, crise de civilização, riscos globais, o mito do
desenvolvimento, pobreza crescente, o lado oculto da racionalidade económica dominante, eis o “menu” do tempo que corre vertiginosamente. É neste
contexto que se enquadra a necessidade de uma “agricultura sustentável”,
quer dizer, uma agricultura que pondere de modo equivalente produtividade,
sustentabilidade e equidade, sabendo nós que o discurso sobre a agricultura
sustentável não está liberto de todas as dificuldades e contradições a propósito do discurso mais geral sobre o desenvolvimento sustentável.
Estas contradições dizem respeito, por exemplo, ao surgimento das
“agriculturas alternativas”, por um lado, e à “proposta abrangente da agroecologia”, por outro, sendo que o mais significativo do discurso da agricultura
sustentável é a abertura de muitas vias para a diversidade dos sistemas agrários, em contraposição ao discurso “unicitário” da ordem produtivista e tecnológica até agora dominante. A grelha de leitura da agricultura sustentável é
muito aberta e muitas interpretações são possíveis, não surpreendendo que
assuma significados distintos para “diferentes comunidades epistémicas”,
por exemplo, da biologia ecológica mais radical até às formas mais socio-antropológicas da sociologia ambiental, com passagem pelas diferentes economias: ecológica, do ambiente e dos recursos naturais, agrária e do desenvolvimento rural.
Uma formulação de compromisso para a agroecologia poderia ser: um
agroecossistema sustentável respeita a conservação dos recursos renováveis,
António Covas e Maria das Mercês Covas
93
a adaptação das espécies cultivadas às condições do meio ambiente e a
manutenção de níveis moderados, porém sustentáveis, de produtividade, em
todo o caso, o objectivo de tal estratégia seria a sustentabilidade ecológica de
longo prazo em lugar da produtividade de curto prazo.
A agroecologia é, portanto, uma abordagem compreensiva e multidisciplinar, integra princípios agronómicos, ecológicos, socioeconómicos e
socioculturais, fornece uma estrutura teórico-metodológica para o entendimento mais aprofundado da natureza e dos princípios de funcionamento dos
agroecossistemas que são aqui utilizados como unidades de estudo, em contraposição aos convencionais agrossistemas, mais unidimensionais.
A estratégia agroecológica
No plano ecotecnológico, a produção sustentável de um agroecossistema
deriva do equilíbrio sistémico entre plantas, solos, nutrientes, luz solar, humidade e a comunidade biótica envolvente. O agroecossistema é produtivo, saudável e resiliente quando essas condições de crescimento prevalecem e quando
as perturbações podem ser superadas por métodos alternativos, adaptados e
flexíveis, sem provocar danos desnecessários ou irreparáveis. Além da luta
contra as pragas, doenças ou problemas do solo, o agroecologista procura restaurar a resiliência e a força do agroecossistema. Se a causa da doença, das
pragas, da degradação do solo, por exemplo, for entendida como desequilíbrio,
então o objectivo do tratamento agroecológico é restabelecê-lo. Na agroecologia, a preservação e ampliação da biodiversidade dos agroecossistemas é o
primeiro princípio utilizado para produzir auto-regulação e sustentabilidade
(Altieri et al, 1987). Quando a biodiversidade é restituída aos agroecossistemas, numerosas e complexas interacções passam a estabelecer-se entre o solo,
as plantas e os animais. O aproveitamento de interacções e sinergias complementares pode resultar em efeitos benéficos, uma vez que:
– Cria uma cobertura vegetal contínua para a protecção do solo;
– Assegura uma constante produção de alimentos, variedade na dieta alimentar e produção de alimentos e outros produtos para o mercado;
– Fecha os ciclos de nutrientes e garante o uso eficaz dos recursos locais;
– Contribui para a conservação do solo e dos recursos hídricos através da
cobertura morta e da protecção contra o vento;
– Intensifica o controlo biológico de pragas fornecendo um habitat para
os inimigos naturais;
– Aumenta a capacidade de uso múltiplo do território;
– Assegura uma produção sustentável das culturas sem o uso de inputs
químicos que possam degradar o ambiente.
94
Os territórios-rede
A Tabela n.º 3 considera e resume os elementos de uma estratégia
agroecológica.
Tabela n.º 3 – A estratégia agroecológica
I. Conservação e regeneração dos recursos naturais
a) Solo: controlo de erosão, fertilidade e saúde das plantas;
b) Água: captação, conservação, gestão e irrigação;
c) Germoplasma: espécies autóctones, melhoramento genético;
d) Fauna e flora: inimigos naturais, polinizadores, vegetação de uso múltiplo.
II. Gestão de recursos produtivos
a) Diversificação: rotações, policultura, sistemas mistos;
b) Reciclagem de nutrientes e matéria orgânica: biomassa origem vegetal e animal;
c) Regulação biótica: protecção de culturas e saúde animal.
III. Implementação de elementos técnicos
a) Técnicas de regeneração, conservação e maneio de recursos adequados às
necessidades locais e ao contexto agroecológico e socioeconómico;
b) O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica,
unidade produtiva ou sistema de cultura;
c) A implementação é orientada por uma concepção integrada e sistémica das
culturas;
d) A estratégia deve estar de acordo com a racionalidade da agricultura familiar,
incorporando elementos da gestão tradicional de recursos.
Fonte: Covas e Covas (2010: 110), adaptado de Altieri (2004).
Restaurar a saúde ecológica não é, porém, o único objectivo da agroecologia. De facto, a sustentabilidade, na acepção larga que adoptámos, não é
possível sem a preservação da diversidade cultural que rodeia as agriculturas
locais. O estudo da etnociência, por exemplo, tem revelado que o conhecimento das pessoas do local sobre o ambiente, a vegetação, os animais e solos
pode ser bastante detalhado. Para os agroecologistas, algumas particularida-
António Covas e Maria das Mercês Covas
95
des dos sistemas tradicionais de conhecimento são particularmente relevantes, não só para a agricultura tradicional mas, sobretudo, para melhorar o
desempenho das agriculturas desenvolvidas mais convencionais, por exemplo: a capacidade de tolerar riscos, a eficiência produtiva de misturas simbióticas de culturas, a reciclagem de materiais, a utilização dos recursos e material genético local, a habilidade em explorar toda uma gama de microambientes, etc. A partir daqui, é possível obter informações relevantes que
podem ser utilizadas no desenvolvimento de estratégias agrícolas apropriadas, adequadas às necessidades, preferências e base de recursos de grupos
específicos de agricultores e agroecossistemas regionais (Altieri, 2004).
Porém, importa não esquecer, a produção sustentável da agroecologia
só acontecerá no contexto de uma organização social e política que proteja a
integridade dos recursos naturais, compreenda a importância transcendente
da economia dos serviços ecossistémicos e perceba a relação umbilical entre
agroecologia, ambiente e qualidade de vida. Eis algumas premissas do enfoque agroecológico de acordo com Altieri (2008) e Gliessman (2007):
– Atender a requisitos sociais: preservando e qualificando as relações
entre os indivíduos e buscando melhores condições de vida e de bem-estar em um determinado contexto;
– Considerar aspectos culturais: resgatando e respeitando saberes, conhecimentos e valores dos diferentes grupos sociais, que serão analisados,
compreendidos e utilizados como ponto de partida para o desenvolvimento local;
– Cuidar do meio ambiente: preservando os recursos naturais ao longo do
tempo, com a manutenção ou ampliação da biodiversidade, melhorando
a reciclagem de materiais e energia dentro dos agroecossistemas;
– Apoiar o fortalecimento de formas associativas e de acção colectiva:
promovendo a participação efectiva, possibilitando a formação dos
actores sociais e estimulando a autogestão;
– Contribuir para a obtenção de resultados económicos: observando o
ponto de equilíbrio entre a produção e preservação da base de recursos
naturais;
– Atender a requisitos éticos: compromisso com uma sociedade mais justa, pautada por relações igualitárias e fraternas, observando que a busca
de sustentabilidade implica uma necessária solidariedade entre as gerações actuais e as futuras gerações.
Em resumo, com a contribuição da corrente agroecológica o que se busca é a construção social de uma diversidade de agriculturas sustentáveis, isto
é, estilos de agricultura que reconhecem a natureza sistémica da produção de
96
Os territórios-rede
alimentos, forragens e fibras, equilibrando, com equidade, aspectos relacionados com a saúde ambiental, a justiça social e a viabilidade económica,
entre os diferentes sectores da população, incluindo distintos povos e diferentes gerações (Gliessman, 2007).
Terminamos com a definição de Pretty (2006). Um sistema de produção
agrária será sustentável se perseguir, sistematicamente, as seguintes metas:
a) Uma mais completa incorporação de processos naturais, como seriam a
reciclagem de nutrientes, a fixação de nitrogénio atmosférico e as relações predador-presa nos processos de produção agrária;
b) Uma redução no uso de inputs externos e não renováveis com maior
potencial de dano ao meio ambiente e à saúde de agricultores e consumidores, e um uso mais criterioso dos demais inputs no sentido de
minimizar os custos variáveis de produção;
c) Um acesso mais equitativo aos recursos produtivos e mais atento às formas socialmente mais justas de agricultura;
d) Um maior uso produtivo do potencial biológico e genético das espécies
animal e vegetal;
e) Um maior uso produtivo das práticas e conhecimentos locais e um
incremento da confiança entre agricultores e população rural;
f) Um melhoramento no equilíbrio entre estilos de agricultura, potencial
produtivo e restrições ambientais de clima e solo, de maneira a assegurar a sustentabilidade dos níveis de produção a longo prazo;
5.3. O processo de transição e conversão agroecológico e ecossistémico
Neste tópico vamos destacar, em primeiro lugar, a um nível intermédio,
a importância do ecossistema de acolhimento onde ocorre o processo de
transição e conversão, em segundo lugar, realçar o significado e a extensão
do continuum agroecológico e, por último, registar as fases e a diferenciação
dos vários níveis de transição e conversão agroecológica e ecossistémica.
A importância do ecossistema de acolhimento
Há dois níveis fundamentais de transição no processo de conversão
agroecossistémico. O primeiro, num plano intermédio de intervenção, digamos mesoecológico e mesoeconómico, tem a ver com a preparação do ecossistema de acolhimento, isto é, com a diferenciação estrutural que enquadra a
passagem dos agrossistemas artificializados aos agroecossistemas mais renaturalizados. O segundo, num plano microecológico e microeconómico, tem a
António Covas e Maria das Mercês Covas
97
ver com a preparação da exploração agrícola propriamente dita para a respectiva conversão. A Tabela n.º 4 mostra a complexidade destas transições
entre ecossistemas com diferentes graus de artificialização e renaturalização.
Tabela n.º 4 – Diferenças estruturais nos processos de transição e conversão
Características
Ecossistema
Natural
Agrossistema
Artificializado
Agroecossistema
Renaturalizado
1.Produtiv/Líquida
1. Média (natural) 1. Alta (artificial)
1. Em alta (renatural)
2.Interacção Trófica
2. Complexa
2. Simples
2. Em recomposição
3.Diversid. Espécies
3. Alta
3. Baixa
3. Em recomposição
4.Diversid. Genética
4. Alta
4. Baixa
4. Em recomposição
5. Ciclo de Nutrientes
5. Fechado
5. Aberto
5. Mais autónomo
6.Estabilida/Resiliência 6. Alta
6. Baixa
6. Mais resiliente
7.Controlo Humano
7. Dependente
7. Mais independente
8.Permanência Tempo 8. Longa
8. Curta
8. Mais longa
9. Heterog. de habitats 9. Complexa
9. Simples
9. Mais complexa
7. Independente
Fonte: Covas e Covas (2010: 117), adaptado de Gliessman (2007).
Duas constatações ressaltam imediatamente: em primeiro lugar, não há,
em rigor, microconversões definitivas sem uma mesoconversão apropriada
do ecossistema de acolhimento; em segundo lugar, e em boa verdade, estamos perante um continuum de agriculturas sustentáveis e de inúmeras conversões em busca de serem bem-sucedidas, uma vez que a concorrência e a
contingência estão sempre presentes e podem fazer regredir, a qualquer
momento, a “fé” no processo de conversão.
A primeira constatação é tão necessária quanto complexa porque envolve uma middle level approach, uma abordagem territorializada e minimamente institucionalizada (uma extensão rural agroecológica) que permita
aplicar no terreno concreto dos ecossistemas em causa os princípios estruturais de uma estratégia de conversão agroecológica, sob pena de os nove tópi-
98
Os territórios-rede
cos referenciados na tabela não produzirem resultados globalmente satisfatórios.
Esta middle level approach envolve uma rede constituída pelas organizações de produtores, os serviços de extensão rural da administração pública,
as instituições de ensino superior e investigação agrária e as associações de
desenvolvimento local que, no conjunto, representam os principais stakeholders do processo de conversão agroecológica. Os territórios-rede podem ser
usados com este propósito e esse pode ser uma das suas justificações. Em
abono da verdade devemos dizer que a última reforma da PAC, por via do
seu esverdeamento, ficou mais próxima desta abordagem intermédia, em particular, pelo reconhecimento da importância dos bens públicos rurais de
natureza agroecológica e ecossistémica.
A segunda constatação diz-nos que, se não formos bem-sucedidos na
implementação daquela middle level approach, não teremos conversões
genuínas, mas tão-só oportunistas, deixando germinar no seu seio o risco
moral e os comportamentos egoístas (free raider). Esta eventualidade é muito elevada e pode ser observada a olho nu na forma como cada agricultor ou
empresário rural desenha os “compromissos agroecológicos e multifuncionais” entre as suas diversas produções (Covas e Covas, 2010).
A formação do continuum agroecológico
De um ponto de vista realista, a ideia mais próxima da realidade é a de
um continuum de oportunidades e experiências de agricultura sustentável e,
portanto, também, de conversão agroecológica, não obstante serem cada vez
mais raros os casos de conversão genuína e integral. Numa ponta desse continuum estariam as formas de ecological greening ou de “intensificação sustentável” que, apesar de um certo tipo de conversão minimalista, continuariam muito próximas do padrão produtivista dominante. Na outra ponta do
continuum estariam as múltiplas formas de “agricultura de base ecológica”,
em busca de uma maior integração entre os conhecimentos agronómicos,
ecológicos, económicos e sociológicos. Neste continuum de agriculturas de
base ecológica, a conversão agroecológica propriamente dita é um caso
especial por não se limitar a ser uma agricultura alternativa e ser, também, ou
desejar ser, uma ecologia política e uma economia política da “ruralidade
renascentista” do século XXI.
António Covas e Maria das Mercês Covas
99
A extensão agroecológica, no que diz respeito às boas práticas a utilizar
na manutenção do continuum agroecológico, recomenda uma série de procedimentos que hoje entram em qualquer manual relativo às agriculturas de
base ecológica: a transição dos nutrientes externos para a reciclagem de
nutrientes, a transição das formas de energia não renovável para a energia
renovável, a eliminação de inputs sintéticos e o aproveitamento dos materiais
existentes no local, a manipulação de pragas, doenças e ervas daninhas em
vez da sua eliminação, o restabelecimento de relações biológicas que podem
ocorrer naturalmente na exploração em vez da sua redução ou simplificação,
uma combinação mais apropriada entre padrões de cultivo, potencial produtivo e limitações físicas da paisagem agrícola, a adaptação do potencial biológico e genético das espécies de plantas e animais às condições ecológicas
da exploração, em vez de as modificar para satisfazer às necessidades das
culturas e animais, a valorização da saúde geral do ecossistema e a ênfase
posta na preservação dos recursos, finalmente, a ideia de sustentabilidade de
longo prazo no desenho e gestão geral do agroecossistema.
Em síntese, o continuum agroecológico é um sistema de vasos comunicantes entre natureza e cultura, por isso, a extensão agroecológica ou o actor-rede que gere o continuum agroecológico tem de tomar algumas medidas
cautelares para evitar que os incidentes de percurso, que sempre ocorrem,
não agravem os custos de contexto e reduzam os benefícios de contexto que
estão sempre na base de uma estrutura de acolhimento territorial e ecossistémica favorável, por exemplo: a baixa utilização do potencial biogenético
local, a fragilidade do capital social local, a baixa multifuncionalidade do
capital da exploração agrícola e a baixa intensidade-rede das organizações
cooperativas e associativas. No resto, é preciso estarmos avisados sobre os
principais problemas de ordenamento do território, a sua ocupação e povoamento e, sobretudo, confirmar se o equilíbrio metabólico num local não está
a ser descompensado por um desequilíbrio noutro local, isto é, se estamos a
exportar desequilíbrios ecológicos para territórios politicamente mais frágeis.
Os níveis de transição e conversão
Segundo Gliessman (2007), podem ser distinguidos três níveis fundamentais no processo de transição para os agroecossistemas sustentáveis:
a) O aumento da eficiência das práticas convencionais para reduzir o uso
e consumo de inputs caros, escassos e perniciosos para o meio ambiente; tem sido a principal missão da investigação agrária convencional,
resultando daí muitas práticas e tecnologias que ajudam a reduzir os
100
Os territórios-rede
impactos negativos da agricultura convencional; embora persista a
dependência de recursos externos, adoptam-se já práticas de regeneração e conservação da fertilidade do solo, entre outras;
b) A substituição de inputs e práticas convencionais por práticas alternativas; a meta é, aqui, a substituição de produtos e práticas intensivas por
outras mais benignas do ponto de vista ecológico; neste nível de transição a estrutura básica do agroecossistema mantém-se praticamente inalterada, próxima do sistema de produção convencional, podendo ocorrer,
portanto, problemas similares aos destes sistemas; nesta altura, estamos
a alterar substancialmente a “matriz das intensidades” da exploração,
reduzindo e convertendo essas intensidades (química, mecânica, hídrica,
fitossanitária, veterinária), etc.;
c) O redesenho do agroecossistema com base num novo conjunto de processos ecológicos; neste nível procuramos eliminar “as causas” dos problemas que ainda subsistem nos dois níveis anteriores; trata-se de uma
conversão “conhecimento-intensiva”, de experimentação complexa,
razão pela qual são mais comuns os trabalhos de investigação sobre a
transição do primeiro nível ao segundo nível, e mais escassos os trabalhos sobre a transição ao terceiro nível.
Nos primeiros dois níveis podemos falar de um “processo de modernização ecológica” da agricultura, inscrita na grande teoria da modernização ecológica, que não se confunde com a transição agroecológica, propriamente dita. A
corrente agroecológica defende a construção de agriculturas de base ecológica
que se justifiquem pelos seus méritos próprios e incorpora sempre a ideia de
justiça social e protecção ambiental, independentemente do valor comercial ou
nicho de mercado que venha a conquistar (Caporal e Costabeber, 2000).
Ora, a modernização ecológica da agricultura orienta-se exclusivamente
pelo mercado e pela expectativa de um benefício económico obtido num
determinado período histórico ou conjuntura económico-comercial, o que, só
por si, não garante a sua sustentabilidade no médio e longo prazos. Na perspectiva de um “processo de modernização ecológica” nada impede que o
“capitalismo verde” venha a produzir uma monocultura orgânica de grande
escala, realizada em qualquer parte do mundo e exportada como uma commodity. Essa green commodity pode, mesmo, ser muito útil aos caprichos de
“consumidores informados” sobre as benesses de consumir produtos agrícolas “limpos”, “orgânicos”, “naturais”, “ecológicos”, “biológicos”, independentemente de o mesmo consumidor desconhecer as condições sociais, políticas e económicas em que o “tal produto” foi ou vem sendo produzido.
António Covas e Maria das Mercês Covas
101
Face ao debate sobre a agroecologia e as suas exigências em termos de
conversão, o processo de modernização ecológica da agricultura é uma evolução positiva mas, também, uma simplificação, se quisermos, uma modernização ecológica incremental, à maneira da economia do ambiente de inspiração neo-clássica. Todavia, este facto não impede, antes pelo contrário, que
essas alterações de ordem técnica promovam uma nova diferenciação de
produtos e uma nova segmentação do mercado e dos clientes e, finalmente,
outros tipos de diferenciação/discriminação social na agricultura por via de
uma especialização “ecológica ou orgânica” e respectivas condições de acesso. Questões como a identidade e certificação ecológicas ou como a produção social de qualidade podem estar na origem de novas segregações sociais
na classe dos agricultores se não forem acauteladas algumas condições de
partida que constam, por exemplo, no “ideário” da agroecologia e que têm a
ver com a abordagem holística e sistémica dos sistemas produtivos locais
onde se insere a agricultura (Caporal e Costabeber, 2000).
O terceiro nível de transição, pelo contrário, aproxima-se muito mais da
abordagem agroecológica. Altieri considera que seria uma proposta tecnológica apoiada em conceitos ecológicos, onde as complementaridades e sinergias resultantes da combinação de espécies animais e vegetais em distintos
arranjos espaço-temporais proporcionariam as bases para a optimização
agroecossistémica (Altieri, 2004). É, porém, o incremento da biodiversidade
agrícola o elemento chave para o desenho e gestão de sistemas agrários, uma
vez que promove uma variedade de processos de renovação ecossistémica e
serviços ecológicos correspondentes que, em conjunto, potenciam as metas
de uma produção sustentável a longo prazo (Altieri, 2008).
As dificuldades para operar estes diferentes níveis de transição têm a
ver com a sua natureza conhecimento-intensiva que não está ao alcance da
maioria dos agricultores e empresários agrícolas, em particular, a dificuldade
em definir com precisão e monitorizar com rigor os indicadores e critérios
operativos que convertem agrossistemas convencionais em agroecossistemas. É certo, muitas destas práticas agrárias cabem no âmbito dos primeiros
dois níveis porque se estabelecem em contraposição àquelas que têm sido
dominantes no modelo agroquímico convencional, e são mais fáceis de aplicar. A passagem ao terceiro nível implica, porém, passar do “sistema de produtos” aos “produtos do sistema”, isto é, uma conversão em que todos os
produtos agrícolas são filhos do “agroecossistema”, cujo perfil foi desenhado
para que todas as “internalidades” fossem mutuamente vantajosas: integração de agricultura, pecuária e floresta, rotação de culturas, fertilização orgânica do solo, reciclagem de nutrientes, controle biológico de pragas, ervas
102
Os territórios-rede
daninhas e doenças, redução do consumo energético, eliminação do uso de
inputs agroquímicos, incremento da biodiversidade, etc.
Em síntese final, o conceito de agricultura sustentável, na prática, funciona como um enorme guarda-chuva sob o qual se abrigam inúmeros sistemas de produção, tecnologias agrárias e estilos de agricultura. A maior ou
menor utilização destas práticas sustentáveis caracterizaria e serviria para
descrever alternativas ao modelo tecnológico dominante. Estas alternativas
incluiriam, por exemplo, a agricultura de baixos inputs externos (1.º e 2.º
níveis de transição), a agricultura agroecológica (3.º nível de transição), para
além de outras agriculturas de base ecológica, mais ou menos representativas
ou mais ou menos circunscritas, tais como a agricultura biológica, a agricultura orgânica, a agricultura biodinâmica, a agricultura natural, a permacultura, entre outras denominações de geometria muito variável.
6. Uma biopolítica da paisagem: o contributo do arquitecto Gonçalo
Ribeiro Telles (GRT)
Neste capítulo revisitamos o universo paisagístico e conceptual do
arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) e, também, uma das suas aplicações mais conhecidas, o plano verde e a cidade que lhe corresponde, a ecopólis. O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles é um dos fundadores da escola de
arquitectura paisagista em Portugal, numa linha doutrinária próxima da ecologia da paisagem, embora o seu pensamento seja extraordinariamente polissémico e esteja permanentemente em processo e construção.
Nos principais conceitos com que organiza o seu pensamento há uma
vibração biológica constante e a intensificação dos elementos vitais dos seus
projectos é um traço permanente da sua composição e do seu compromisso
com a paisagem. Nesta medida, ousamos dizer que o pensamento de GRT é
um fluxo permanente de energia e vida que procura contrariar o movimento
geral a caminho da desordem e da entropia universal. Os seus projectos têm
sempre o mesmo propósito, qual seja, o de criar bolsas de estrutura, ordem e
beleza que contribuam para aproveitar toda a energia útil disponível mesmo
que ela continue o seu processo de degradação à luz das leis gerais da termodinâmica. O universo paisagístico e conceptual pertence a essa grande corrente
regeneradora, fonte de vida, a que damos o nome de biopolítica do território.
6.1. A filosofia e a política da paisagem em GRT
Em GRT nós podemos observar, a olho nu, a poesia da natureza e a
criatividade humana. Basta pensar nesse labor constante que é a construção
António Covas e Maria das Mercês Covas
103
de socalcos, orlas, sebes, muros, bosquetes e bordaduras. A filosofia da paisagem em GRT cabe no seu conceito de paisagem global, um conceito de
“ordem, estrutura e beleza”, pleno de intuições e princípios de organização e
funcionamento mas, também, de normas, regras e procedimentos, que pode
ser revisto e revisitado em alguns instrumentos normativos que se foram instituindo ao longo dos últimos anos.
Em GRT a paisagem global é, antes de mais, uma ética e uma estética da
paisagem, se quisermos, uma espécie de sentimento vital que em GRT tem,
ainda, uma tradução prática na forma como os espaços rurais, urbanos e naturais, se articulam e organizam por via da sua continuidade ecológica e cultural.
Em GRT o tempo da paisagem reveste uma dupla natureza. O tempo
como sucessão (histórico) e o tempo como simultaneidade (quotidiano).
Uma simultaneidade que permite diferentes temporalidades, o que significa
que os actores se apropriam do espaço por meio de territorialidades igualmente diversas. Estas múltiplas determinações territoriais geram inúmeras
paisagens ou representações da paisagem. Por isso, a paisagem é sempre um
compromisso entre valores que se estendem no tempo (existência, uso e
opção), entre interesses e representações e, mesmo, entre normas de realização e regras de comportamento.
Em GRT este compromisso entre valores que se estendem no tempo, a
saber, a existência como património, o uso como utilidade presente e a opção
como legado às futuras gerações, é uma espécie de eco-antropologia transcendental que comanda a nossa vida e as relações de sociabilidade que mantemos com os outros por intermédio de uma relação essencial de naturalidade que nos liga à natureza-ambiente.
Em GRT a paisagem é o génio do lugar, o espírito, cultural e ambiental,
de um território que é capaz de capturar a nossa atenção, de nos instruir e
deslumbrar. Neste sentido, a paisagem é em GRT uma espécie de hermenêutica dos lugares, pois todos os lugares parecem fazer sentido nesse lugar
transcendente que é a paisagem global.
Dito isto, a filosofia da paisagem é em GRT a arte da composição e do
compromisso, uma arte muito complexa cujos principais elementos constituintes podem ser alinhados como segue:
– O solo arável e a biodiversidade local: o solo é uma fonte de vida e a
intensificação dos elementos vitais da paisagem aumenta a produtividade primária dos recursos com óbvios benefícios para a agricultura;
– A circulação dos elementos naturais: a circulação dos elementos naturais é mais uma fonte de vida que inspira a construção social da cidade
orgânica e metabólica que deverá substituir-se à cidade zonada e compartimentada;
104
Os territórios-rede
– O abastecimento alimentar de proximidade e a circular verde: a estrutura ecológica municipal e o continuum natural entre a cidade e o campo
permitem organizar a cintura verde, a agricultura periurbana e urbana e
todo o sistema alimentar local (SAL) de proximidade;
– O desenho da paisagem como acto de criação: a aptidão não nasce, a
aptidão constrói-se, o montado é uma criação humana, é a história
humana inscrita na natureza;
– A cidade-região como um continuum natural e cultural: o urbanismo
modernista e a agricultura moderna criaram uma não-relação cidade-campo, ou seja, uma relação dicotómica, polarizada e dual, que acabou
por ocultar o campo á cidade e a cidade ao campo; pelo contrário, a
cidade-região é uma relação aberta, sem complexos ou zonas demarcadas; em GRT regressamos, de certo modo, e paradoxalmente, a um pré e
pós-modernismo em busca de um tempo que se renova constantemente
pelo acto da criação;
– A conservação da natureza como composição da agricultura: eis a prova
de que em GRT a conservação não é um acto exterior à produção, pelo
contrário, a conservação é uma internalidade do sistema produtivo, é um
output da produção conjunta da agricultura através dos seus serviços
agroecológicos e ecossistémicos;
– A paisagem como compromisso de temporalidades e territorialidades: a
paisagem do quotidiano tem vários tempos ou várias velocidades, se
quisermos, muitos tempos no mesmo tempo produzem muitas representações do tempo presente; cada uma destas temporalidades do quotidiano está na origem de uma territorialidade diferenciada e assim se enriquece o mosaico paisagístico do território;
– A paisagem como compromisso de valores e representações: a ética, a
estética, a ciência, a arte, a religião e a cultura, todos juntos no acto criativo, sempre como compromisso e representação de autor; mais do que
um arquitecto GRT é um artista intemporal;
– O génio do lugar: a morfogénese no pensamento de GRT, a estetização
do mundo rural, a beleza e a harmonia das formas e, por essa via superior, o sentimento vital e a recriação do espírito dos lugares, nessa obra
permanente que consiste em reciclar todos os materiais da criatividade
humana como princípio prático de uma biopolítica da vida.
Num outro plano, no plano da política da paisagem, o universo paisagístico em GRT acompanha de perto o que estabelece a Convenção Europeia da
Paisagem (CEP). Lembremos o que diz a Convenção:
António Covas e Maria das Mercês Covas
105
– Constatando que a paisagem desempenha importantes funções de interesse público, nos campos cultural, ecológico, ambiental e social, e
constitui um recurso favorável à actividade económica, cuja protecção,
gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de
emprego;
– Conscientes de que a paisagem contribui para a formação de culturas
locais e representa uma componente fundamental do património cultural
e natural europeu, contribuindo para o bem-estar humano e para a consolidação da identidade europeia;
– Reconhecendo que a paisagem é em toda a parte um elemento importante da qualidade de vida das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas
áreas degradadas bem como nas de grande qualidade, em áreas consideradas notáveis, assim como nas áreas da vida quotidiana;
– Constatando que a evolução das técnicas de produção agrícola, florestal
industrial e mineira e das técnicas nos domínios do ordenamento do território, do urbanismo, dos transportes, das infra-estruturas, do turismo,
do lazer e, de modo mais geral, as alterações na economia mundial estão
em muitos casos a acelerar a transformação das paisagens;
– Desejando responder à vontade das populações de usufruir de paisagens
de grande qualidade e de desempenhar uma parte activa na sua transformação;
– Persuadidos de que a paisagem constitui um elemento-chave do bem-estar individual e social e que a sua protecção, gestão e ordenamento
implicam direitos e responsabilidades para cada cidadão.
Assim sendo, com base no artigo 5.º da Convenção cada Parte signatária
compromete-se a:
a) Reconhecer juridicamente a paisagem como uma componente essencial
do ambiente humano, uma expressão da diversidade do seu património
comum, cultural e natural, e base da sua identidade;
b) Estabelecer e aplicar políticas da paisagem visando a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem através da adopção das medidas específicas estabelecidas no artigo 6º;
106
Os territórios-rede
c) Estabelecer procedimentos para a participação do público, das autoridades locais e das autoridades regionais e de outros intervenientes interessados na definição e implementação das políticas da paisagem mencionadas na alínea b) anterior;
d) Integrar a paisagem nas suas políticas de ordenamento do território e de
urbanismo e nas suas políticas cultural, ambiental, agrícola, social e
económica, bem como em quaisquer outras políticas com eventual
impacto directo ou indirecto.
A Convenção aplica-se a todo o território das Partes e incide sobre as
áreas naturais, rurais, urbanas e periurbanas. Abrange as áreas terrestres, as
águas interiores e as águas marítimas. Aplica-se tanto a paisagens que possam ser consideradas excepcionais como a paisagens da vida quotidiana e a
paisagens degradadas. Para o efeito, a Convenção introduz os seguintes conceitos:
1) «Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas
populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores
naturais e/ou humanos;
2) «Política da paisagem» designa a formulação pelas autoridades públicas
competentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que
permitam a adopção de medidas específicas tendo em vista a protecção,
a gestão e o ordenamento da paisagem;
3) «Objectivo de qualidade paisagística» designa a formulação pelas autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspirações das populações relativamente às características paisagísticas do
seu quadro de vida;
4) «Protecção da paisagem» designa as acções de conservação ou manutenção dos traços significativos ou característicos de uma paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da sua configuração natural e/ou da intervenção humana;
5) «Gestão da paisagem» designa a acção visando assegurar a manutenção
de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, no
sentido de orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos
sociais, económicos e ambientais;
António Covas e Maria das Mercês Covas
107
6) «Ordenamento da paisagem» designa as acções com forte carácter prospectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens.
Este eclectismo e sistemismo da política de paisagem ínsitos na CEP
tem muitos pontos de contacto com o conceito intuitivo de paisagem global
de GRT e revelam em comum uma dificuldade maior relacionada com o
objectivo de qualidade paisagística, tal como ele é aqui formulado pela CEP,
qual seja, a importância das metodologias de participação e envolvimento da
população na representação, planeamento e gestão do território e da paisagem. A partir do momento em que há vários actores envolvidos e são possíveis conflitos emergentes de usos do solo, imagina-se a importância de
conhecer as percepções e preferências desses actores quanto à evolução
desejada da paisagem, os cenários alternativos de planeamento que daí
decorrem e, bem assim, o desenho das medidas de política pública mais
apropriado a cada novo compromisso de interesses em volta de objectivos de
qualidade paisagística.
Com efeito, podemos ter um leque variado de representações que vão
desde uma paisagem sentimental (as memórias do passado) até uma paisagem futurista (uma certa estetização do futuro), para além das diversas paisagens utilitaristas do presente. Não é, portanto, muito previsível que as
“várias paisagens” coincidam, isto é, que as representações paisagísticas dos
actores presentes e ausentes no território forneçam indicações seguras à política pública para promover os seus programas de acção. De resto, a política
pública é sempre uma racionalização das mensagens contidas nessas várias
representações. Nesta sequência, já se vislumbram as dificuldades em delimitar e circunscrever as unidades de paisagem e os ecossistemas que elas
contêm, por um lado, e os agroecossistemas e o sistema agro-alimentar local
que eles suportam, por outro. Ora, esta compatibilização, mutuamente benéfica, entre unidades de paisagem e sistemas produtivos locais é, justamente, a
prova de fogo de uma política de paisagem bem concebida e conduzida.
Neste contexto e nestas condições, julgamos poder dizer o seguinte
(Covas e Covas, 2012: 156-157):
– Não há uma “política de paisagem” proactiva e bem dotada que resolva,
ao mesmo tempo, os passivos paisagísticos acumulados e as externalidades positivas que o sistema produtivo local e o subsistema cultural
esperam dela;
– Não é muito previsível que uma unidade de paisagem seja um sistema
produtivo local perfeito, isto é, que reúna uma massa crítica de recursos
e desencadeie uma série de efeitos de aglomeração, capilaridade e reticulação sobre os territórios adjacentes ou da sua área de influência;
108
Os territórios-rede
– Não é muito previsível que um sistema produtivo local seja exemplar do
ponto de vista paisagístico, isto é, que tenha internalizado e incorporado
todas as boas práticas de lidar com os recursos naturais e o ordenamento
do território;
– Não há, ainda, uma política agroecológica bem estabelecida porque ela
não se confunde ou limita a uma transposição de normativos internacionais e europeus ou a um simples programa nacional de agricultura biológica;
– Não há uma cultura de ordenamento do território que esclareça qual a
importância e a posição destas duas políticas públicas, de paisagem e
agroecológica, no desenho e na gestão dos territórios multifuncionais
existentes no espaço agrorural.
Esta entropia ou falta de “ordem e estrutura” na política de paisagem
acontece porque há dois factores a operar que desestruturam fortemente o
espaço-território em construção e que impedem que se materialize aquela
convergência favorável. Em primeiro lugar, é visível que a globalização dos
mercados acelera e segmenta a dinâmica das actividades económicas e, portanto, das paisagens que as integram ou enquadram e mesmo os sistemas
produtivos mais remotos não estão imunes a este movimento global de desconstrução e segmentação. Desta constatação, fácil de verificar no território,
pode retirar-se a questão pertinente de saber se, face a este movimento global
de desestruturação, as políticas de paisagem e agroecológica têm argumentos
políticos e meios suficientemente fortes para se impor no terreno concreto
das empresas e das explorações, ou se, pelo contrário, são consideradas
como um custo de contexto adicional, que afecta a competitividade das actividades e empresas e que é preciso reduzir ou eliminar com brevidade.
Em segundo lugar, sabemos que os ciclos de reprodução em causa não
são convergentes e têm diferentes grupos de interesse a suportá-los e promovê-los. Os ciclos agroecológicos e paisagísticos inscrevem-se no território de
forma lenta e gradual, têm um período longo de incubação e um retorno
mediato e são suportados por grupos inorgânicos e difusos. Os ciclos económicos e produtivos têm uma reprodução e um retorno mais imediatos e
são suportados por grupos de interesse mais organizados e poderosos com
“ligações perigosas” aos respectivos ciclos político-eleitorais. Este descompasso dos três ciclos em presença é fonte de muitos equívocos e muito ruido
e acaba, quase sempre, por ter repercussões negativas na concepção e gestão
das respectivas políticas públicas.
António Covas e Maria das Mercês Covas
109
6.2. O universo conceptual e normativo em GRT
Quando GRT fala em vitalidade biológica, em intensificação dos elementos vitais da paisagem, em variedade e diversidade do mosaico cultural,
ele está sintonizado com uma ideia-força deste livro, a ideia de uma biopolítica de longo alcance para o mundo rural, que só pode ser de natureza agroecológica, ecossistémica e arqui-paisagística. Alarguemos um pouco mais o
espectro conceptual em GRT para abarcar outras realidades e para fazer,
como ele dizia, a utopia com os pés na terra. O homem de hoje tende a deixar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto
os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, também, as actividades. “As ideias que presidem à criação da nova cidade
devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urbanismo-ecologia. O conceito de paisagem global tende a informar todo o
processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo” (Telles,
2003: 334).
O realismo virtual em GRT
As reflexões que vamos fazer seguem o mote dado pela Utopia e os pés
na terra (Telles, 2003), uma espécie de realismo virtual que consagra alguns
conceitos-chave, centrais no pensamento de Gonçalo Ribeiro Telles, como o
de paisagem global, sistema-paisagem, cidade-região e plano verde, que
integram a nossa noção mais ampla dos sistemas territoriais (Covas e Covas,
2012: 158-171).
O pensamento de GRT é, na sua essência, uma aplicação das leis gerais
da termodinâmica. Criar bolsas de ordem, aproveitar a energia útil disponível, mesmo degradada, para reciclar e criar ordem e beleza novamente, este é
o realismo virtual de GRT em face do movimento geral de entropia que nos
rodeia. Por isso, todo o seu universo conceptual é feito de estrutura, ordem e
beleza. Conceitos como paisagem global, sistema-paisagem, cidade-região
ou plano verde fazem parte de uma biopolítica da paisagem e do território,
são parte de uma corrente vital contra a desordem e a entropia.
Há em GRT um “desencontro de perspectivas” que não tem a ver com
uma incongruência do seu pensamento mas, antes, com a violência simbólica
e a tensão política do campo de forças onde ele se move. A vitalidade dos
mercados, pela sua força expansiva, fragmenta constantemente os limites das
unidades paisagísticas onde, supostamente, se deviam situar os sistemas pro-
110
Os territórios-rede
dutivos locais (SPL) ou os sistemas alimentares de proximidade (SAP). Quer
dizer, os SPL e os SAP contraem e dilatam a uma velocidade tal que não é
possível estar permanentemente a redesenhar as unidades de paisagem que
os acolhem. Esta diferença de velocidades e representações torna muito difícil todo o exercício de planeamento e gestão paisagístico. Acresce que, ao
desestruturar as actividades económicas o mercado impõe “ajustamentos de
emergência” à política de paisagem com o pretexto ou sob o argumento de
que esta pode criar custos de contexto adicionais que, por sua vez, podem
desestruturar ainda mais as actividades económicas.
Este “desencontro de perspectivas” pode, ainda, ser expresso de outra
maneira: de um lado, temos uma expressão paisagística plural a que não corresponde um sistema produtivo local em concreto; de outro, temos um sistema produtivo concreto para o qual não encontramos uma expressão paisagística adequada. O ecletismo do pensamento de GRT não o deixa ficar
entrincheirado nesta dualidade mas ele parece acreditar que a multiplicidade
de representações da paisagem pode “criar um mercado para a paisagem”
que respeite os seus interesses específicos. Por isso mesmo, as noções de
paisagem global e sistema-paisagem são, em GRT, noções transcendentes
para pôr ordem e estrutura em tantas representações da paisagem, razão pela
qual o seu pensamento é, não apenas sobre a ecologia da paisagem mas,
também, sobre uma ecologia da vida humana que pratica o princípio da utilidade social do respeito.
Um dos factores que, hoje em dia, mais contribui para esta multiplicidade de representações da paisagem são as distintas “culturas de risco” que
temos à nossa frente. Esta conexão entre representação paisagística e cultura
de risco afigura-se decisiva porque é, em boa medida, a cultura do risco e a
sua transmutação territorial que nos permitirão traçar a identidade e o carácter da paisagem que queremos delimitar. Ora, as distintas representações da
paisagem que daqui derivam estarão na base de outras tantas unidades de
paisagem do território e são estes diferentes sistemas naturais e naturalizados
que deverão enfrentar, não apenas a imprevisibilidade e a violência do risco
global mas, também, operar a ulterior reabilitação e reconstrução dos diversos territórios assim representados. Por outro lado, as políticas de paisagem
também contraem e dilatam embora menos frequentemente e menos rapidamente do que as políticas de produção. Podemos ter políticas de paisagem
entrincheiradas em áreas de paisagem protegida, em santuários conservacionistas e terroirs remotos ou podemos, ao contrário, ter uma política de paisagem horizontal e musculada capaz de se impor às diversas políticas sectoriais
e respectivas actividades económicas.
António Covas e Maria das Mercês Covas
111
A paisagem normativa do sistema-paisagem
Muitas intuições pertencentes ao universo conceptual de GRT tiveram,
felizmente, uma versão normativa. Quer dizer, temos hoje uma extensa “paisagem normativa” ao nosso dispor, mas em curso está, ainda, um processo
longo de aprendizagem social e colectiva que só poderá acontecer nos sistemas territoriais em concreto. Por isso, temos a certeza de que não existe, ainda, a maturidade estratégica e operativa suficiente para tornar efectiva a sua
aplicação prática no território concreto das nossas áreas urbanas e rurais.
Tabela n.º 5 – A paisagem normativa do sistema-paisagem
O sistema-paisagem
A paisagem normativa
– A Convenção Europeia da Paisagem (CEP);
– Os regulamentos e directivas da política europeia ambiente;
– A lei de bases do ordenamento do território e
urbanismo;
– O regime jurídico dos instrumentos de gestão
territorial;
Elementos Tipológicos
e Topológicos
– O procedimento
ambiental;
de
avaliação
estratégica
– O programa nacional de políticas ordenamento
do território
– O programa regional de ordenamento do território;
– A reserva ecológica nacional
– A reserva agrícola nacional
– A estrutura regional de protecção e valorização
ambiental;
– O plano director municipal;
– O plano intermunicipal e municipal de ordenamento
– A estrutura ecológica municipal;
– O plano de urbanização;
– O plano de pormenor;
– Os múltiplos normativos sectoriais.
Fonte: Covas e Covas (2012: 148).
112
Os territórios-rede
Mas este facto não diminui a sua pertinência estratégica e o império da lei é,
obviamente, para cumprir. Na Tabela n.º 5 temos o que poderíamos designar
como a “paisagem-normativa do sistema-paisagem”, todavia, para este efeito, estamos ainda longe de ter um sistema integrado de planeamento e gestão
das unidades de paisagem contidas nos programas regionais de ordenamento
do território (PROT), dos sistemas produtivos locais e dos sistemas alimentares de proximidade que lhe correspondem. Quando lá chegarmos estaremos,
seguramente, muito mais próximos do pensamento de GRT.
A estrutura operativa do sistema-paisagem e da cidade-região
Nesta tipologia normativa e nesta topologia operativa do sistema-paisagem, os lugares centrais, de articulação formal e funcional, são ocupados, no plano regional, pelo programa regional de ordenamento do território
(PROT) e o seu instrumento operativo, a estrutura regional de protecção e
valorização ambiental (ERPVA) e, no plano local ou municipal, pelo plano
director municipal (PDM) e a sua estrutura operativa, a estrutura ecológica
municipal (EEM). A ERPVA e a EEM são, portanto, os instrumentos operativos fundamentais do sistema-paisagem, da paisagem global e da cidade-região, pela articulação que promovem dos dois níveis de planeamento
regional e local e pelo modo como a cidade é projectada para fora das suas
fronteiras e do seu perímetro urbano.
Nesta estrutura operativa, o conjunto formado pelos corredores verdes
(CV) e suas redes (RCV), os planos de pormenor (PP) de carácter ecossistémico e biofísico, bem como outras unidades operativas de reabilitação ecológica e biofísica, imprime uma dinâmica própria a cada sistema territorial e
é essa dinâmica que lhe conferirá a identidade e o sentimento de pertença,
assim como o carácter da paisagem que a população imagina ou representa
em cada segmento do território. Este conjunto de instrumentos operativos é
uma espécie de “mesa de operações cirúrgicas”, onde se deitam a Unidade de
Paisagem e o Sistema Produtivo Local ou o Sistema Alimentar de Proximidade e onde têm lugar as intervenções que fazem convergir os quatro elementos constitutivos de qualquer sistema territorial: a unidade de paisagem
(UP), o sistema produtivo local (SPL), o sistema simbólico-cultural (SSC) e a
institucionalidade dedicada (ID).
A Figura n.º 1 mostra-nos a estrutura de ligações do sistema-paisagem e
da cidade-região. Como se pode observar, a cidade-região “acontece” entre o
nível regional PROT/ERPVA e o nível local PDM/EEM. As áreas ERPVA são
65% do território nacional (Oliveira, et al, 2012), coincidem com áreas de
António Covas e Maria das Mercês Covas
113
baixa densidade e baixa dinâmica territorial de desenvolvimento, logo,
podem constituir-se numa “rede de base ecológica de características multifuncionais” e, portanto, ambicionar atingir objectivos tão meritórios para as
zonas menos desenvolvidas como, por exemplo, o sequestro de carbono, o
abastecimento alimentar de proximidade, a eficiência energética, a qualidade
do ar e da água, a renaturalização urbana e a criação de mais espaços verdes
de recreio e lazer.
Figura n.º 1 – Paisagem global e sistema-paisagem
Paisagem Global
Nível 1
(Nacional)
Nível 2
(Regional)
PROT
ERPVA
Nível 3
Prog. Regional de
Ordenamento
do Território
(Sub-regional)
Nível 4
PDM
(Municipal)
Plan. Direct.
Municipal
RD-Rede de Distribuição
UP
Nivel 5
(Cidade-região)
CR
PP
PU
RE-Rede Ecológica
PIMOT
Plano de
Prog. InterUrbanização municipal de
Ord. Território
R C - R ede C ultutal
Prog. Nacional de
Polít. Ordenamento
do Território
EEM
Estrut. Ecol.
Municipal
Plano de
Unidade
Pormenor
de Paisagem
PNPOT
Estrut. Regional
de Protecção e
Valorização
Ambiental
IGT
Instrumentos de
Gestão Territorial
Fonte: Covas e Covas (2012: 152).
A multifuncionalidade complexa proporcionada pelo sistema-paisagem
(Figura n.º 1) permite à cidade-região organizar a sua polaridade concelhia e
o seu interland territorial de forma muito mais harmoniosa e inteligente,
114
Os territórios-rede
usando, para o efeito, as redes que tem à sua disposição (de distribuição, ecológicas e culturais) e, agora, por causa dessa multifuncionalidade, de uma
forma mais heterárquica e policontextual.
Quando dizemos, a propósito da ERPVA, uma “rede de base ecológica
de características multifuncionais” percebemos melhor a expressão “realismo
virtual” no pensamento de GRT. Seja como for, como mostra a Figura n.º 1,
a conexão estrutural-funcional entre a ERPVA e a EEM, se bem estabelecida,
confere maior consistência ao conceito de cidade-região que, assim, passa de
uma simples gestão urbanística de um perímetro urbano para uma gestão
mais territorial, paisagística e multifuncional de toda a área envolvente do
município. Em particular, esta conexão estrutural-funcional facilita o desenho dos corredores verdes e a implantação das redes de corredores verdes,
que são um dos vectores centrais da projecção da cidade-região em toda a
sua área envolvente.
Em consequência desta maior consistência estrutural-funcional, teremos, também, mais e melhor urbanismo e planeamento sistémico da cidade-região, seja nas variáveis-objectivo do planeamento seja nas suas variáveis-instrumentais. Com efeito, trata-se de:
1. Melhorar as variáveis-objectivo do planeamento verde ou as suas redes
de usos:
– Melhorar as redes de produção: as hortas sociais familiares e colectivas,
as hortas pedagógicas, os parques hortícolas, a agricultura especializada, a agricultura biológica de abastecimento, a agricultura patrimonial,
os agrossistemas tradicionais, as quintas de recreio, as tapadas, cercas e
jardins históricos;
– Melhorar as redes de protecção: as linhas de água e as galerias ripícolas,
os bosquetes, as sebes de compartimentação, os muros e muretes, as faixas de integração paisagística dos espaços-canal;
– Melhorar as redes de recreio e lazer: os espaços de desporto ao ar
livre, o campismo, os parques de merenda, os percursos pedestres e
cicláveis, etc.
2. Melhorar as variáveis-instrumentais do planeamento verde:
– Aprofundar os estudos de paisagem para a delimitação das unidades de
paisagem (UP);
– Aprofundar a complexidade multifuncional das UP para aumentar o
número de ligações;
– Melhorar a qualidade das infra-estruturas ecológicas de ligação;
– Melhorar a conectividade dos corredores de ligação.
António Covas e Maria das Mercês Covas
115
Nesta organização multiníveis da cidade-região há factores críticos que
importa aqui salientar. Em primeiro lugar, queremos relevar a importância da
multifuncionalidade da paisagem e a estruturação e dinâmica que ela introduz nas multifuncionalidades de 2.ª ordem ou grau, como são as multifuncionalidades da agricultura e da economia rural. Em segundo lugar, relevamos a importância dos corredores de ligação, que fazem a conexão entre os
diferentes subsistemas da paisagem global e do sistema-paisagem e no interior dos quais podem emergir novos sistemas territoriais. Em terceiro lugar, a
governação multiníveis deste sistema complexo deve estar muito atenta à
possibilidade real de se virem a formar “sistemas territoriais transfronteiriços”, pois neles poderá residir a componente mais inovadora do planeamento
urbanístico e ecossistémico da cidade-região, em especial, o planeamento
sistémico das ligações entre as redes de uso dos solos e as variáveis-instrumentais da estrutura verde de conexão.
Em resumo, a nossa teoria nesta matéria é a de que uma política de paisagem, nos termos definidos, genericamente, na convenção europeia, cria
“benefícios de contexto” para o sistema produtivo local da unidade de paisagem ou unidades de paisagem que estamos a considerar. A unidade de paisagem é um sistema territorial específico que tem uma massa crítica mínima de
capital natural que lhe dá identidade e carácter próprio. Por sua vez, o sistema produtivo local (SPL) é um conjunto dinâmico de actividades económicas que integra, em dose variável mas apropriada, o capital natural, o capital
produtivo, o capital social e o capital institucional. O que importa averiguar
é se aquela unidade e este sistema são compatíveis e convergem no mesmo
plano territorial ou, de outro modo, se a maior homogeneidade da unidade de
paisagem é compatível com a maior heterogeneidade do sistema produtivo
local. No final, a política de paisagem deve procurar promover esta convergência, de tal modo que todos os efeitos externos positivos dessa política se
façam sentir sobre a qualidade do sistema produtivo local e sejam atingidos
os objectivos visados de qualidade paisagística.
6.3. A cidade-região, o plano verde e a ecopolis da 2.ª ruralidade
Feita esta metanarrativa da paisagem global e do sistema-paisagem, voltemos, agora, ao discurso premonitório do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, sobretudo no que diz respeito à necessidade de uma estrutura verde da
cidade que faça a interface da urbe com o mundo exterior. Como dissemos, a
qualidade da conexão estrutural-funcional entre a Estrutura Regional de Protecção e Valorização Ambiental (ERPVA) e a Estrutura Ecológica Municipal
116
Os territórios-rede
(EEM) é, aqui, o elemento determinante, pois abre imenso o campo das ligações e possibilidades do planeamento sistémico da cidade, projectando-a
desde o anel intra-urbano até aos anéis exteriores do rural remoto.
A cidade monolítica está condenada, é preciso recrear a unidade da urbe-ager-saltus-silva. O planeamento ecológico da região e o desenho da nova
paisagem exigem a integração da ecologia no urbanismo. O desenho da
cidade não se pode circunscrever a traçar zonas que definam as transformações do espaço edificado ou a edificar mas, pelo contrário, deve comportar
todo um sistema espacial definido por circunstâncias geográficas, ecológicas e culturais inter-relacionadas (Telles, 2003: 334).
A conexão cidade-campo e os princípios da estrutura verde
Há muito tempo que as fronteiras da cidade foram ultrapassadas. Mas
de que cidade estamos a falar? Por paradoxal que pareça, não estamos a falar
da “cidade desordenada de antigamente” mas da “cidade-zonada, ordenada”,
da era urbano-industrial. Os perímetros urbanos foram alargados, surgiram
os anéis suburbanos e periurbanos, os equipamentos e as infra-estruturas rasgaram o território envolvente e as barreiras naturais em todas as direcções, a
alteração do uso dos solos promoveu a especulação e a irracionalidade urbanísticas. Nesta sequência desordenada desapareceu a unidade espacial da
urbe-ager-saltus-silva, no tempo em que a cidade era um ponto no meio do
campo e em que a cultura da cidade era comum à cultura do campo. O restabelecimento desta unidade perdida é hoje um imperativo das políticas de
ordenamento e de urbanismo.
Com efeito, a trajectória da cidade moderna é a história do modo como a
conexão virtuosa entre a cidade (urbe), a agricultura de abastecimento (ager), a
agricultura livre e de pastoreio (saltus) e a mata de apoio (silva) foi sendo
sucessivamente quebrada ao longo dos diferentes períodos históricos. Mais
perto de nós, a cidade do pós-guerra foi rigidamente desenhada a régua e
esquadro, uma cidade-zona sectorializada para implementar as suas diferentes
funcionalidades. A cidade-tipo do mundo urbano-industrial do pós-guerra é
aquela em que tudo ou quase tudo fica circunscrito pelo domínio do automóvel
e das grandes densidades urbanísticas, cuja massa e volumetria se sobrepõem à
morfologia e aos valores culturais do território (Telles, 2003: 332).
Esta cidade-zona artificializa-se cada vez mais e faz algumas vítimas. Em
primeiro lugar, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os
subúrbios inóspitos e agressivos, em segundo lugar, os ecossistemas naturais,
cada vez mais poluídos, fragmentados e degradados e, por último, os centros
históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais, filhos bastardos de heran-
António Covas e Maria das Mercês Covas
117
ças desencontradas e políticas públicas ausentes, onde apenas ficam alguns
serviços públicos e os elementos monumentais mais significativos.
Em Portugal, a “terraplanagem” é uma ameaça constante. A morfologia
do território e os sistemas ecológicos mas, também, os valores culturais das
paisagens tradicionais são desprezados ou menosprezados. A cidade densa
urbanisticamente torna-se energetívora. Por outro lado, ao crescer, as cidades
urbano-industriais alargam os suas áreas de influência, tornam-se verticais,
vão penetrando sucessivamente o território e a sua dimensão é cada vez mais
regional, em anéis sucessivos que se estendem do suburbano e do periurbano
até ao rural de proximidade e ao rural remoto. Esta é, por isso, também, uma
grande oportunidade, pois o restabelecimento da conexão entre áreas urbanas
e paisagens rurais está, agora, ao nosso alcance.
É por isso que se deve substituir um urbanismo espartilhado em zonas independentes, sustentáveis artificialmente, por um urbanismo de base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulem com o
facies edificado da cidade. É esta diversidade espacial que hoje deve presidir à cidade-região (Telles, 2003: 333).
Nesta estratégia de restauração da conexão cidade-campo, parece
imprescindível uma nova arquitectura biofísica e paisagista. Nesta estratégia
e nesta arquitectura, o plano verde, a estrutura ecológica e a rede de corredores verdes podem e devem desempenhar um papel fundamental. Assim, na
construção do sistema-paisagem e da cidade-região devem ser respeitados os
seguintes princípios de ordenamento (Telles, 2003: 334):
– Em primeiro lugar, o primado da ecologia humana porque o homem
está sempre no centro de todas as mudanças no território;
– Em segundo lugar, a centralidade do continuum naturale, sistema contínuo de funcionamento dos ecossistemas naturais através de estruturas
que garantem a presença da natureza, a biodiversidade e a circulação
dos elementos;
– Em terceiro lugar, a centralidade do continuum aedificandi, sistema
contínuo de espaços edificados, superfícies pavimentadas e equipamentos que, no seu conjunto, constituem o habitat residencial do homem;
– Em quarto lugar, a relevância do genius loci, os lugares, biofísicos e
simbólicos, histórico-paisagísticos, com valor emblemático na cidade,
no país e no mundo;
– Em sexto lugar, a importância da polivalência dos espaços, suporte das
actividades de produção e lazer;
– Por último, a intensificação dos elementos biológicos, no sentido da
auto-regulação e da auto-regeneração dos sistemas naturais.
118
Os territórios-rede
Neste contexto e com esta estrutura, a cidade-região é a projecção da
urbe para a sua envolvente externa que inclui o ager, o saltus e a silva, ou,
de uma forma mais actual, os cursos de água biologicamente activos, a agricultura de abastecimento de alimentos frescos, as matas e as zonas de recreio
e conforto ambiental. A projecção externa da cidade exige a criação de uma
estrutura verde global que seja o interface com esse “mundo exterior”. Essa
estrutura verde global tem alguns pressupostos fundamentais (Telles, 2003:
332):
– A cidade não é um puzzle de unidades territoriais desenhadas pela forma como a estrutura viária se relaciona com o tipo de edificação;
– As estruturas não-identificáveis e os vazios urbanos não garantem, só
por si, a constituição de uma estrutura verde útil e eficaz;
– Os espaços verdes não podem ser espaços residuais, mas espaços substanciais que organizam o espaço;
– A cidade não é um conjunto zonado de áreas independentes, só identificáveis pelo modo como o automóvel se relaciona com os blocos residenciais;
– A cidade deve ultrapassar o convencionalismo inadequado da composição vegetal que hoje envolve, por exemplo, o tratamento ajardinado em
rotundas e faixas de separação;
– A imagem da cidade deve ser defendida através de um sistema cartografado de vistas que que determine a dimensão dos edifícios, a distribuição e forma da vegetação e o enquadramento das infra-estruturas;
– No planeamento da cidade do século XXI é fundamental considerar
“unidades operativas” de conteúdo ecológico com autonomia de planeamento, sempre que necessário, sem as quais estará em causa a sustentabilidade biofísica, a qualidade ambiental e o abastecimento alimentar.
O plano verde da cidade-região
Na história do modelo urbano-industrial, e em resposta ao artificialismo
do ambiente urbano, foram construídos diferentes “pulmões verdes”, desde
os mais diversos parques urbanos até aos mais variados tipos de jardins
públicos, projectados em lugares centrais ou em espaços residuais. Nos dias
de hoje, porém, os problemas sociais e ambientais das cidades-região não
podem ser resolvidos por parques e jardins, isolados no meio do tecido urbano. Já sabemos, também, que o crescimento desordenado causa a fragmentação dos ecossistemas naturais e condiciona o metabolismo circular das cidades, ao modificar, sobretudo, os cursos de água e a morfologia da paisagem.
António Covas e Maria das Mercês Covas
119
As cinturas verdes do século XIX foram construídas para conter o crescimento desordenado das cidades americanas (os parkways e os greenbelts),
a poluição dos rios, as inundações e os alagamentos, mas, também, para
acautelar as questões estéticas e sociais. Mais recentemente, nos anos 60 do
século XX, não só emergiram os movimentos ecologistas para defesa do
ambiente e dos recursos naturais como, também, se passou dos parques
lineares do século XIX para os corredores verdes e ecológicos de protecção
da biodiversidade e dos ecossistemas. Um marco histórico nesta evolução
diz respeito à obra de Ian McHarg de 1969, intitulada Design with nature
(McHarg, 1969), onde se dá relevo aos estudos de capacidade de carga ecológica de estruturas espaciais que visam conciliar a preservação ambiental e
a expansão urbana e rural.
Como vimos anteriormente, o conceito de paisagem global corresponde
a uma visão contemporânea, mais completa e complexa das relações cidade-campo, muito para lá dos parques e jardins da cidade industrial. Nesse sistema compreensivo e orgânico de vasos comunicantes, o Plano Verde (PV) é
um instrumento essencial na concepção dos espaços exteriores da cidade
cuja autonomia do desenho é exigida pela retaguarda biofísica e cultural que
lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção
da paisagem viva. A elaboração do Plano Verde exige o reconhecimento da
morfologia, dos valores pedológicos das áreas livres de construção, da vegetação existente e potencial e a caracterização estética da paisagem e valores
culturais respectivos. A figura central do Plano Verde é a estrutura ecológica
urbana ou regional que se desdobra nos seguintes subconjuntos (Telles,
2003: 335-338):
– Estrutura ecológica fundamental (EEF): compreende os sistemas húmido,
contínuo e seco;
– Estrutura ecológica integrada (EEI): compreende o sistema contínuo de
espaços-canal e o sistema descontínuo de jardins, parques públicos e logradouros;
– Estrutura de paisagem cultural (EPC): compreende os agrossistemas tradicionais e ocorrências naturais notáveis, geo-monumentos e os valores culturais representativos da arte paisagística e dos jardins.
A EEF é uma estrutura contínua de espaços naturais (continuum naturale)
que permite o funcionamento dos ecossistemas de acordo com a sua própria
dinâmica evolutiva. A EEF tem por função a sustentabilidade ecológica e
física, o conforto ambiental, a cultura e a imagem da cidade. No plano
especificamente ambiental, a EEF tem as funções seguintes: fornecimento
de oxigénio e melhoria do conforto ambiental, protecção dos ventos, fixa-
120
Os territórios-rede
ção de poeiras e regularização de brisas, criação de um suporte natural para a
circulação e infiltração de água pluvial, criação de habitats tendo em vista a
biodiversidade e a activação biológica da vida silvestre, promoção de actividades de recreio, uma rede de pistas de bicicletas e outras estruturas de passeio e contribuição para o abastecimento da cidade em produtos frescos.
A EEF abrange também zonas edificadas já consolidadas e implantadas
sobre sistemas naturais, de que se destaca a recuperação das linhas de água,
com o objectivo de diminuir a velocidade de escoamento da água, fazer a
deposição de materiais inertes e a sua fácil retirada, fazer a depuração das
águas através da vegetação marginal, melhorar o recreio, os percursos e o
conforto ambiental e eliminar as inundações.
A EEF concretiza-se através de projectos específicos de corredores verdes
e de corredores de ligação, que estabelecem a continuidade das estruturas
verdes no tecido edificado da cidade.
A EEI é uma estrutura integrada no tecido edificado e é composta por espaços verdes descontínuos de carácter público e privado (logradouros, espaços verdes de escolas, etc.), mas, também, pelo sistema contínuo de espaços-canal como são, por exemplo, as faixas laterais e centrais de protecção
das vias rodoviárias e ferroviárias.
A EPC é constituída por espaços culturalmente significativos. Nestas estruturas estão implantadas redes de produção, de protecção e de recreio. Nas
primeiras, falamos de hortas sociais, agricultura urbana, periurbana e agricultura patrimonial. Nas segundas, falamos de bosquetes, galerias ripícolas,
sebes de compartimentação, faixas de espaços-canal, etc. Nas últimas, de
campismo, espaços de desporto, parques de merendas, percursos vários,
etc. (Telles, 2003: 335-338).
Chegados aqui, queremos sublinhar o papel e a função que os corredores verdes podem desempenhar como uma alternativa sustentável para estruturar a expansão urbana e rural em bases novas, pois são baseados, simultaneamente, em factores biofísicos e culturais. De facto, os corredores verdes e
as redes de corredores verdes interconectam as pessoas através das cidades e
dos campos, perto do lugar onde elas vivem. Esta é uma grande oportunidade para as ciências sociais e para as ciências naturais, em particular para a
sociologia ambiental e a ecologia da paisagem, uma vez que está em causa a
forma como as áreas verdes afectam a qualidade de vida das pessoas e das
comunidades, os seus efeitos nas relações sociais, na sociabilidade e na economia, enfim, a saúde física e mental como fonte geradora não apenas de
bem-estar mas de rendimento e riqueza.
António Covas e Maria das Mercês Covas
121
Os corredores verdes podem ser de diversa forma e natureza:
– Espaços abertos e lineares ao longo de um corredor natural: um rio, um
vale, uma linha de colinas, as margens de uma linha de caminho-de-ferro convertida em uso recreativo, um canal, uma estrada panorâmica;
– Espaços naturais ou paisagísticos para percursos pedestres ou ciclovias;
– Uma ligação aberta entre parques, reservas naturais, elementos culturais, locais históricos entre si ou com áreas habitadas;
– No plano local, os espaços de avenidas, parques ou cinturas verdes.
Estes corredores verdes (CV) e, por maioria de razão, as redes de corredores verdes (RCV) desempenham importantes funções (Ferreira et al.,
2010). Em primeiro lugar, funções ecológicas, por exemplo: a manutenção
da biodiversidade, espaços naturais e habitats, ligações entre habitats para a
circulação de espécies, materiais e energia, filtro natural à poluição das
águas e atmosfera, fixação de poeiras, protecção dos ventos e regularização
de brisas, regularização das amplitudes térmicas e humidade atmosférica,
circulação da água pluvial e infiltração. Em segundo lugar, funções sociais e
económicas, por exemplo: espaços para recreio e lazer, abastecimento alimentar em produtos frescos, melhoria da qualidade ambiental, preservação
do património histórico-cultural, valorização da qualidade estética das paisagens e controlo dos factores de risco.
As novas funcionalidades cidade-campo e a construção social da ecopolis
O ambiente é um mediador de relações sociais. O processo de urbanização é uma construção social. Os corredores verdes são construções sociais
em busca de novas sociabilidades. Se formos agressivos com a natureza, os
impactos ambientais da nossa acção terão fortes implicações sociais e, por
sua vez, esta perturbação social repercutir-se-á novamente sobre o ecossistema e as condições de vida que ele nos proporciona.
Os corredores verdes, por exemplo, podem tornar áreas densamente
povoadas em locais agradáveis e procurados e melhorar a convivência entre
cidadãos. Para o mesmo objectivo contribui a integridade ecológica, a saúde
da flora e da fauna respectiva. Um local com uma forte integridade da sua
paisagem terá, em princípio, uma boa representação de si mesmo, é um local
que acabará por valorizar as funções sociais, económicas, recreativas e estéticas. Assim será, se, por via do planeamento biofísico, soubermos tirar partido da topografia e morfologia do espaço e adequarmos o projecto da cidade
à comunidade local.
122
Os territórios-rede
Sabemos que a paisagem possui um padrão que pode ser determinado
pela topografia, pelo ecossistema, pelo tipo de solo, e sofre perturbações e
alterações que podem ser naturais ou de origem antrópica. Sabemos que a
paisagem é um mosaico composto por três elementos: a matriz ou mancha
principal, os fragmentos e os corredores. Sabemos, também, que os arranjos
ou configurações espaciais entre manchas, fragmentos e corredores têm
grande importância ecológica e determinam a circulação dos elementos, os
movimentos de animais, da água e das pessoas através da paisagem. Sabemos, também, que os elementos variam e apresentam, em consequência, diversos graus de conectividade. A matriz é muito variável, mais ou menos homogénea e mais ou menos linear. As paisagens são, portanto, compostas de
mosaicos heterogéneos. Os corredores são sistemas-condutores para a circulação de espécies e, dependendo da dimensão e da variedade das espécies,
podem constituir-se em habitats ou em corredores de circulação ou dispersão.
Sabemos que a escala tem uma importância decisiva no estudo da ecologia da paisagem, de sua biodiversidade e forma de planear os corredores
verdes. A escala adequada para se projectar um corredor verde deve ser concebida em função dos usos e funções programados e da área de abrangência
do corredor. A possibilidade de espécies e populações circularem entre os
diversos fragmentos de um mosaico paisagístico aumenta com a escala, ao
mesmo tempo que se reforça a conectividade e se realizam funções naturais
indispensáveis à sustentabilidade.
Sabemos, ainda, que a fragmentação ocorre tanto por causas naturais –
deslizamentos de terras, inundações, incêndios, erupções vulcânicas – como
por acção do homem, por via dos grandes equipamentos e infra-estruturas. O
tamanho dos fragmentos e a natureza e grau de conectividade dos elementos
determinam a configuração da paisagem e esta a configuração dos corredores. Embora saibamos que a eficácia dos corredores só pode ser provada ao
longo de muitos anos ou décadas, também sabemos que não é possível esperar pelos resultados pois as paisagens já estarão irremediavelmente alteradas
em termos de estrutura e função. O planeamento, a monitorização permanente e uma gestão adaptativa são a melhor solução disponível.
As linhas de água, com as suas galerias ripícolas e respectiva dinâmica
hidrológica são um corredor verde por excelência. Todavia, com o desenvolvimento urbano, tem ocorrido uma extensa impermeabilização dos solos,
seja por pavimentação ou compactação, e uma supressão das matas que
garantiam a permeabilidade e humidade do solo, fundamentais para a sua
manutenção em boas condições ecológicas. A consequência óbvia é que as
António Covas e Maria das Mercês Covas
123
águas escoam com maior facilidade e carregam os resíduos para os corpos de
água, gerando assoreamento e poluição e mudando a dinâmica hidrológica
da linha de água, que, por sua vez, perturbam a ecologia dos ecossistemas
aquáticos e afectam a fauna e a flora respectivas.
Uma zona ripícola bem conservada poderá manter a função de estabilização dos fluxos de água, superficiais e subterrâneos, e assim, aumentar a
conectividade entre os seus vários elementos. Este fluxo e esta conectividade
permitirão realizar outras funções entre fragmentos: habitats de vida silvestre
e corredores de trânsito de fauna e flora, amortecimento de nutrientes e
sedimentos, a recreação humana e a manutenção de paisagens culturais. O
mesmo se pode dizer em relação às florestas urbanas que podem ser desenhadas para conter o deslizamento de encostas, prevenir a erosão dos solos,
manter a qualidade das águas, do ar e do ambiente, assim como, a qualidade
de vida dos cidadãos em geral.
Sabemos, igualmente, que, quanto mais intensiva, compacta e densa for
a cidade e o processo de urbanização mais ela se projecta na sua área de
influência, pelas melhores e piores razões: mudanças no uso e ocupação dos
solos, a segregação de famílias de menor rendimento de certos espaços, mais
poluição da água, do ar e do solo, maiores distâncias a serem percorridas,
maior dependência do automóvel e do sistema de transporte, maiores consumos de energia, mais sedentarismo e mais patologias agressivas, menos áreas
naturais e menos acesso a espaços livres e, finalmente, menor sociabilidade
associada a maior perigosidade e risco urbanos.
As áreas periurbanas são um bom exemplo desta projecção territorial da
cidade intensiva, compacta e densa. Algumas das suas características revelam bem a violência social e simbólica destes lugares (Covas e Covas, 2012:
168):
– São áreas em transição, um território movediço em matéria de usos;
– São áreas tensas, nervosas, instáveis e voláteis;
– São áreas que revelam grande dificuldade em guardar a sua memória e
identidade;
– São áreas que revelam uma grande litigiosidade e conflitos de interesses;
– São áreas com grandes feridas expostas e sujeitas a processos de exclusão social;
– São áreas com grandes problemas de representação social e política;
– São áreas com grandes feridas abertas na engenharia do território;
124
Os territórios-rede
– São áreas com muito capital social, embora caótico e desordenado;
– São áreas com uma grande plasticidade e muita economia informal e
ilegal.
Todas as referências anteriores têm a ver com as relações cidade-campo
e a forma como elas são projectadas no território da cidade-região. Nos corredores verdes e nas redes de corredores verdes devemos não apenas aproveitar para reprogramar as relações cidade-campo como, também, para
mudar os nossos hábitos e comportamentos para com a natureza, uma vez
que a natureza e o ambiente são mediadores de relações sociais.
Em jeito de síntese, julgamos já ter recolhido argumentos suficientes
para elaborarmos um pouco mais sobre o perfil da ecopolis do século XXI, a
cidade-região da 2.ª ruralidade que apresentámos em obra anterior (Covas e
Covas, 2012: 169-170). Retomamos, então, o decálogo da ecopólis, a cidade-região da 2.ª ruralidade:
Decálogo da ecopolis, a cidade-região da 2.ª ruralidade
1) Do rational da paisagem global e das unidades de paisagem à cidade
como sistema-paisagem ou sistema territorial;
2) Da função vertebral da estrutura ecológica municipal aos operadores
ecossistémicos e multifuncionais no sistema de planeamento biofísico
da cidade-região;
3) Da prestação de serviços ecossistémicos ao desenho de uma nova economia agroecológica e do bem-estar;
4) Do problem-solving para o problem-saving ou da terapêutica para a profilaxia urbana;
5) Do “verdismo e do arranjismo paisagístico” ao planeamento biofísico,
isto é, ao metabolismo circular dos elementos, à restauração e reabilitação ecológicas;
6) Da monofuncionalidade energética intensiva ao pluralismo, descentralização e complementaridade energéticas e aos sistemas integrados de
microgeração;
7) Da construção dissipativa e entrópica à bioconstrução e bioclimatização;
António Covas e Maria das Mercês Covas
125
8) Do agro-alimentar intensivo e energetívoro aos sistemas agro-alimentares locais de proximidade;
9) Do organicismo da administração convencional às formas de governança local e institucionalidade dedicadas;
10) Da cultura zonada da mega-máquina urbana à cultura da fusão entre a
cidade e o campo.
Este decálogo da ecopolis, cidade-região da 2.ª ruralidade, institui os
fundamentos para uma agroecologia urbana do próximo futuro. Nesta agroecologia urbana da cidade-região, há uma nova tipologia e prioridade em
construção, a saber, os equipamentos e infra-estruturas verdes que terão um
lugar proeminente no planeamento, prevenção e terapêutica urbanas. Estas
infra-estruturas ecológicas, que nós designamos aqui como os “operadores
biofísicos da cidade-região” serão essenciais na projecção territorial da cidade, pois elas poderão funcionar como as “placas giratórias dos corredores
verdes e das redes de corredores verdes” ou como os “novos lugares centrais” da cidade-região. Registemos esses operadores biofísicos e ecossistémicos da cidade-região:
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
Os sistemas ou redes integrados de microgeração energética;
A construção sustentável e a bioregulação climática;
A rede dos sumidouros de carbono numa economia hipocarbónica;
A construção do bosquete multifuncional e a floresta urbana;
O ordenamento da agricultura urbana e periurbana para abastecimento
alimentar;
A provisão dos serviços ecossistémicos e o bem-estar da população;
A promoção dos corredores verdes de ligação aos espaços mais sensíveis;
A rede de lagos biodepuradores e de unidades de compostagem urbana;
Os parques agrícolas urbanos para abastecimento de alimentos biológicos;
A construção de amenidades agroecológicas e recreativas;
A rede de equipamentos e experimentação em agricultura vertical urbana.
Em relação a estes operadores ecossistémicos e multifuncionais no
desenho da ecopolis e da cidade-região da 2.ª ruralidade, acompanhamos, de
perto, o que refere o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (Telles, 2003: 331):
… a estrutura verde não deverá ser concebida ‘à posteriori’ concretizada
num mero decorativismo vegetal, em ‘arranjos paisagísticos’, na vegetali-
126
Os territórios-rede
zação e enquadramento de infra-estruturas ou em ‘paisagismos pictóricos’,
mas sim concebida como uma obra de arquitectura paisagista que se apoia
numa participação interdisciplinar (Telles, 2003: 331).
No fundo, devemos falar de unidades operativas de raiz ecológica sempre que há uma obstrução biofísica e paisagística à criação de novas multifuncionalidades que se afiguram necessárias ao bom funcionamento das
redes de uso do território. Depois da arquitectura e da engenharia civil, elegemos a arquitectura paisagista e a engenharia biofísica para restaurar e
repor muitos dos equilíbrios socioecológicos que antes tinham sido quebrados. Regressamos, assim, à biopolítica do território.
António Covas e Maria das Mercês Covas
127
Conclusão da II Parte
Na segunda parte continuámos a nossa digressão pelos caminhos do
futuro, desta vez em direcção à 3.ª revolução verde, aqui traduzida e representada pela base agroecológica e ecossistémica da 2.ª ruralidade. Começámos com a filosofia positivista e o realismo pragmático da teoria da modernização ecológica de inspiração industrialista, vimos as suas virtualidades e
as suas limitações à luz da noção de desenvolvimento sustentável. Em seguida, passámos para a ecotopia da transição agroecológica e ecossistémica e os
respectivos processos de conversão e terminámos com o “realismo virtual e a
biopolítica da paisagem” em Gonçalo Ribeiro Telles, com uma referência
especial à cidade-região e à ecopolis da 2.ª ruralidade.
Nesta segunda parte é bem visível a forma como a agricultura, o
ambiente, a urbanização, a paisagem, mas também a teoria social correspondente, podem ser lidos e interpretados como processos de mediação e construção social da realidade. Estes “distintos compartimentos” do mundo rural
organizam e conformam, ainda hoje, o pensamento da 1.ª modernidade e,
através deles, pode observar-se não apenas a história recente do mainstream
da 1.ª ruralidade mas, também, os sinais claros e a evidência suficiente de
novas sociabilidades e territorialidades e de um outro construtivismo social.
Talvez a expressão mais genuína desta segunda parte, aquela que pode
representar melhor o espírito da 2.ª parte, seja a de “biopolítica da paisagem
e do território” a propósito do pensamento e da obra do arquitecto Gonçalo
Ribeiro Telles. O divórcio entre as ciências sociais e as ciências da natureza
é uma marca da 1.ª modernidade. A natureza tornou-se ambiente por acção
antropogénica e este foi “funcionalizado” pela política pública do ambiente,
esquecendo, quase por completo, a ligação umbilical que a ligava à primeira.
A biopolítica da paisagem e do território reabilita esta ligação umbilical, não
para regressar ao mito das origens mas para vincar a prioridade elevada que
deve ser atribuída aos elementos vitais da natureza que regeneram o ambiente que nos rodeia e aos processos criativos do trabalho humano que, através
da paisagem, nos proporcionam “as ordens locais” de estrutura e beleza do
território.
III. PARTE
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS TERRITÓRIOS-REDE
DA 2.ª RURALIDADE
Introdução
Retomemos a nossa asserção fundamental já enunciada no início deste
livro:
Acreditamos que os territórios, à semelhança dos mercados, se podem
constituir em objectos de construção social, em territórios reflexivos e cognitivos que aprendem, pela participação cooperativa e organizada dos seus
principais actores, a reconfigurar e recriar os seus capitais próprios mais
característicos e valiosos por via da diversificação, diferenciação e densificação dos seus muitos atributos e qualidades.
Estamos em Junho de 2014. A 17 de Maio de 2014 Portugal saiu do estado de emergência financeira em que se encontrava, vivendo sob assistência
internacional e numa espécie de “regime de liberdade condicional”. No interior
do país, há parcelas crescentes do território que mais parecem verdadeiros “territórios em reclusão”. Referimo-nos a municípios inteiros sem actividade económica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e sem
um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.
Nestes territórios imóveis do interior prevalece a lógica associativa
convencional dos municípios, sendo a associação de municípios o único
actor-rede (AR) com algum significado neste “grande universo interior”.
Mas a inteligência dos territórios não se reduz à associação convencional de
municípios, este é o tempo para ousar novas incursões no campo da acção
colectiva territorial.
Em primeiro lugar, é muito pertinente averiguar em que medida os
“conhecimentos acumulados pelos territórios” podem ser mobilizados por
130
Os territórios-rede
um pequeno investimento cooperativo em capital social, de tal modo que
seja possível reunir em volta do problem-saving e do problem-solving de
um território em risco uma constelação de parceiros interessados em formar uma nova configuração territorial que permita desenhar uma estratégia
inteligente para a reocupação de espaços rurais em risco de despovoamento
e desertificação.
Uma universidade ou instituto politécnico, uma associação empresarial
ou grupo empresarial, uma associação de municípios ou comunidade intermunicipal, uma ou mais associações de desenvolvimento local, os serviços
públicos regionais, uma ou mais cooperativas de produção e serviços, os
parques e as reservas naturais, etc., possuem, em conjunto, um capital social
valioso que podem pôr em comum para abordar o problem-saving e o problem-solving de um território-rede (TR) em construção.
Em segundo lugar, deve perguntar-se a essa nova entidade colectiva
em formação se é capaz de pensar e conceber um território-projecto ou um
bem comum territorial, para lá da “política convencional”, a partir de uma
visão multiterritorial e multifuncional de um novo território em construção, estando todos os actores imbuídos da mesma modéstia cooperativa e
construtivista.
Em terceiro lugar, deve a nova entidade perguntar-se como é possível
levar à prática a governança dedicada (GD) de um território-rede em construção e, com esse propósito, qual o actor-rede que é capaz de dar corpo a
uma nova inteligência territorial.
Em síntese, estamos convencidos de que os “territórios já instalados”
poderão ainda aprender uns com os outros, e ser, digamos, reciclados e refuncionalizados, se lhes abrirmos a possibilidade de um projecto comum transdisciplinar, baseado numa acção colectiva inovadora e assente numa rede de cooperação multiterritorial de valor acrescentado. Está em causa a reocupação de
inúmeros territórios concelhios do interior, na sua grande maioria áreas rurais,
e a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade.
No capítulo sete iremos abordar a nova ordem dos territórios-rede em
construção, a sua relação com a teoria social e uma primeira tipologia exploratória. No capítulo oito, abordaremos a cooperação multiterritorial e multifuncional dos territórios-rede, os campos de força no mundo rural e a importância de uma boa teoria do actor-rede para uma governança dedicada. No
capítulo nove, depois de uma breve incursão pela microgeoconomia do
desenvolvimento territorial (os ensinamentos do Projecto Querença e suas
réplicas), abordaremos o caso particular de uma apelação territorial de pres-
António Covas e Maria das Mercês Covas
131
tígio atribuída pela UNESCO – A Dieta Mediterrânica, Património Imaterial
da Humanidade, e, a partir dela, procuramos ensaiar a construção social de
um território-rede para a denominada Dieta Mediterrânica.
7. A dinâmica territorial e a construção social dos territórios da 2.ª ruralidade
Neste capítulo abordamos, em primeiro lugar, a “nova ordem” em formação ou a reconsideração do problema rural, em segundo lugar, fazemos
uma incursão pelo universo conceptual dos territórios-rede e seu enquadramento na teoria social, em terceiro lugar, traçamos um quadro analítico e
tipológico, ainda preliminar, dos territórios-rede.
7.1. A reconsideração do “problema rural”.
A reconsideração do problema rural e a emergência de um novo ciclo da
2.ª ruralidade (2.ªR), requerem que façamos a distinção entre desenvolvimento agrário e desenvolvimento rural:
– O desenvolvimento agrário faz-se com “agri-cultura”, isto é, os produtos vendem o território que utilizam mas não se preocupam tanto com a
reprodução do “recurso e do contexto” que consomem; é, essencialmente, um acto comercial, que origina, quase sempre, várias externalidades
negativas;
– O desenvolvimento rural faz-se com “agro-cultura”, isto é, os produtos
vendem os recursos e os territórios, tanto quanto os territórios comunicam por via dos seus produtos e recursos; todos se reproduzem, afinal,
no acto de venda mas, para além de ser um acto comercial é, também,
um acto cultural cujo fundamento radica nos princípios da agricultura
multifuncional e na produção de externalidades positivas, isto é, na
“produção de bens contextuais favoráveis”.
Uma outra cultura dos territórios resilientes
No princípio era a economia camponesa e a “produção de campo”. O
homem, escravo da terra e servo de outros homens, utilizava e consumia,
essencialmente, as energias naturais. A produção agrícola era uma produção
primária final para ser autoconsumida e vendida nos mercados locais de proximidade. A divisão do trabalho, de características feudais e familiares e de
pequena escala, respeitava, supõe-se, os equilíbrios naturais. A actividade
132
Os territórios-rede
ocupava o território quase em exclusivo, enquanto se aguardava que os agentes de mudança fizessem “o trabalho revolucionário”, a saber, a ascensão da
burguesia, a revolução industrial, o liberalismo, a reforma fundiária.
Do ciclo estacionário de subsistência e do “caos agrícola pré-moderno”,
a actividade agro-rural, variável consoante os contextos e os pretextos, evoluiu, rapidamente, para o ciclo da economia agro-industrial e, mais recentemente, para o ciclo agro-alimentar, à medida que nos afastamos, cada vez
mais, da produção primária final para os produtos alimentares objecto de
sucessivas transformações.
Eis-nos chegados, pois, ao centro nevrálgico de uma racionalidade
imparável feita de escala, intensificação, especialização, profissionalização,
industrialismo, urbanização, acumulação, exportação, êxodo. O campo transforma-se em fábrica de estabulação fechada, produtora de matérias-primas
que encaminha para a fábrica da cidade onde ocorrem as transformações
industriais que criam os novos produtos. As fileiras e as cadeias alimentares
geram processos e produtos que pouco ou nada têm a ver com as matérias-primas de origem. A formação das grandes metrópoles e das megacidades
levanta problemas novos de abastecimento, donde a importância das actividades de logística agro-alimentar, de transporte, distribuição e consumo de
alimentos de massa.
Todavia, a aceleração a que se assiste não ocorre de forma idêntica em
todo o espaço do mundo desenvolvido. A actividade agrícola, a indústria alimentar e o modelo de consumo alimentar são realidades distintas, como são
distintas as tradicionais actividades agrícolas e as novas actividades recém-chegadas ao mundo rural, sendo certo que a presença e a permanência dos
agricultores contribuem para restabelecer os equilíbrios com a natureza e o
ambiente. Este equilíbrio a três é, aliás, o segredo dos territórios agro-rurais:
produzir agricultura, diversificar a ruralidade, conservar a natureza e o
ambiente.
Nesta sequência de ciclos e modelos é o tempo da economia biotecnológica, em particular, no último quartel do século vinte. Duas grandes aproximações ao século da biotecnologia começam a emergir. Uma, a mais brutal, utiliza a ciência genética para preparar mudanças radicais no património
genético das espécies. Outra, mais suave, cria formas mais bem integradas e
mais sustentáveis de relação entre as espécies existentes e o seu ambiente.
Passa-se da era da petroquímica para a era do comércio genético e das patentes genéticas. Estamos a criar, assim, um segundo Génesis, desta vez um
António Covas e Maria das Mercês Covas
133
Génesis sintético. Uma espécie de Santa Aliança entre o produtivismo agro-químico e o produtivismo biotecnológico.
É no contexto desta Santa Aliança e em reacção aos efeitos perversos
deste modelo dominante que emerge uma outra cultura do território. Uma
cultura dos territórios resilientes. Essa outra cultura em formação já tem,
também, uma matriz de objectivos bem estabelecida, a saber: a reposição da
biodiversidade, a pluralidade das fontes energéticas, a multifuncionalidade
das actividades em espaço rural, a sustentabilidade dos processos e dos
recursos naturais, a qualidade e a origem dos alimentos, a reticulação dos
empreendimentos agro-rurais, a solidariedade entre grupos, regiões e países.
É também neste contexto hostil e adverso que emergem ou podem
emergir as economias marginais, minoritárias e resilientes, muitas das quais
estarão directamente relacionadas com a realidade nua e crua dos territórios-rede em construção. Com efeito, está em causa não apenas a desestruturação
da ecossocioeconomia desses territórios como, também, o próprio exercício
democrático das autoridades locais que assistem impotentes à deslocalização
de empresas até então aí sedeadas e ao encerramento de outros serviços
públicos de interesse económico geral.
Estaremos nós a assistir, sem disso nos darmos conta, à reversibilidade
do processo de desenvolvimento contra a tese evolucionista das etapas do
crescimento económico, a uma espécie de “processo de involução” e, em
muitos casos, à beira de um limiar crítico de desertificação física e humana,
de onde emergem quase misteriosamente as “economias marginais, minoritárias e resilientes” ligadas ao ordenamento, à conservação e gestão de recursos naturais e aos princípios e ideologia do desenvolvimento sustentável?
A reconsideração do “problema rural”
A ideologia dominante, essencialmente de origem e natureza urbana,
identifica necessidades sociais com consumos públicos ou colectivos, isto é,
infra-estruturas, equipamentos e, obviamente, despesa pública. Portanto,
necessidade igual a equipamento e/ou infra-estrutura. No fundo, “o problema
rural” só existe se gerar despesa pública, mas uma despesa que padroniza e
normaliza necessidades-equipamentos por todo o território e que, depois, se
declara impotente para acorrer a todas as procuras porque “a baixa densidade
não justifica o investimento”.
A mesma ideologia afirma peremptoriamente que os territórios de baixa
densidade foram atingidos pelo círculo vicioso do subdesenvolvimento e que
134
Os territórios-rede
por causa desta “evidência” estes territórios não têm nenhuma “vocação
agrícola”, estando disponíveis para todas as “operações urbanas”, sejam
imobiliárias, industriais, turísticas ou florestais. Um equívoco recorrente que
é continuamente alimentado pelo ciclo político-partidário.
E se a economia biotecnológica, orientada e inspirada por uma outra
corrente doutrinária e científica, mais agroecológica e ecossistémica, vier
demonstrar e confirmar que todos os círculos viciosos são construções
sociais hegemonizadas por determinados grupos de poder? E se a sociedade
civil e a sociedade científica estiverem sintonizadas e quiserem “impor” à
administração pública os projectos inovadores que poupam recursos e energia e acrescentam valor aos equipamentos e actividades tradicionais? E se a
economia biotecnológica for capaz de repor os ritmos naturais da agricultura
e encontrar, para o efeito, o ponto de compromisso entre sistemas naturais e
sistemas bio-industriais?
A reconsideração do “problema rural” é também visível no plano discursivo e no espaço público e até se faz acompanhar de inovações sociolinguísticas. Os “prefixos da moda” marcam o ritmo e são conceptualmente significativos: trans, inter, multi, pluri, poli. Eles traduzem e comunicam acção, processo,
movimento e quebram barreiras e fronteiras de todo o tipo. A teoria do desenvolvimento rural acompanha-os e renova-se com estas aquisições: a multifuncionalidade, a pluriactividade, a transversalidade, a policultura, a interconectividade, etc. Alguns dirão mesmo, com alguma ironia, que a nossa apregoada
pré-modernidade agrorural ou, segundo outros, a nossa modernidade tardia,
nos deixou, paradoxalmente, à beira da 2.ª modernidade.
A reconsideração do “problema rural” busca encontrar o ponto de equilíbrio entre produção, conservação e recreação, os três pólos da nova economia do desenvolvimento rural. A nova ordem em formação coloca, no plano
substantivo, a seguinte interrogação: como é que uma economia de base biotecnológica pode alargar o seu campo de possibilidades de modo a realizar
uma “produção conjunta” que seja, simultaneamente, produção, conservação
e recreação?
A reconsideração do “problema rural” é um combate permanente, quanto mais não seja por que o mundo rural, pela pureza e pelo pudor que ainda
encerra, é uma opção de vida inquestionável para uma trajectória individual,
para se fazer a experiência concreta da libertação pessoal. É certo que estamos perante um combate desigual, em especial, nos territórios desfavorecidos de baixa densidade, é certo que não podemos repousar sobre os ombros
de uma qualquer utopia naturalista, mas também é verdade que podemos ser
racionais de muitos modos diferentes. O que é crítico é perder a capacidade
de conceber novos objectivos e de enfrentar novos conflitos. Este é o traço
distintivo da 2.ª ruralidade.
António Covas e Maria das Mercês Covas
135
A reconsideração do “problema rural” faz apelo a uma profunda “cultura dos territórios” que projecte a sua identidade para fora das suas fronteiras
tendo em vista a comunicação com os outros territórios. Esta comunicação
simbólica é fundamental para transmitir “sinais comerciais”. Todavia, se esta
comunicação não for autêntica, o marketing territorial e a marca colectiva
não acrescentam valor aos produtos locais e regionais. Na aparência, tudo
muito moderno. De facto, não chegaremos a convencer o consumidor advertido. Que atribui tanta ou mais importância aos sinais simbólicos quanto aos
sinais comerciais.
A reconsideração do “problema rural” integrará uma nova economia do
desenvolvimento com quatro componentes principais: a economia do ordenamento e da conservação de recursos, a economia da inovação e do conhecimento, a economia da produção e do consumo, a economia da recreação e
do lazer. No plano organizacional, as duas primeiras são políticas públicas
transversais dirigidas à produtividade natural e tecnológica dos recursos. A
investigação tem aqui um papel insubstituível na determinação do equilíbrio
entre as duas produtividades. As duas últimas são políticas públicas sectoriais cujas capacidades de carga ficam sujeitas às regras de condicionalidade
das primeiras.
O processo de inovação socio-territorial da 2.ª ruralidade
A nova economia do desenvolvimento rural tem um potencial de inovação muito elevado, se pensarmos em todas as suas componentes e nas várias
hipóteses de desmultiplicação e combinação virtuosas. Esta lógica de abordagem é, especialmente, importante para os territórios de baixa densidade
que, por esta via, readquirem não apenas o interesse dos investigadores e dos
conservacionistas mas, também, de novos promotores imobiliários e grupos
empresariais que, diga-se, já há muito iniciaram os seus jogos de sedução
junto dos proprietários locais. Se forem, todavia, respeitados os princípios do
desenvolvimento sustentável, esta abordagem trará muitos benefícios para as
populações locais.
Na acepção compreensiva e transdisciplinar que aqui lhe damos, o processo de inovação socio-territorial deve estar permanentemente orientado
para a identificação e promoção dos projectos multifuncionais mais prometedores. Vejamos, agora, algumas condições ou requisitos que o processo de
inovação deve respeitar para ser bem-sucedido:
– É fundamental introduzir a investigação na identificação, no desenho e
na monitorização do projecto multifuncional, de modo a poder alimentar, de forma continuada, o processo de inovação;
136
Os territórios-rede
– É fundamental mobilizar e convidar novos stakeholders para os projectos mais inovadores, mesmo que sejam exteriores aos territórios em
questão;
– É fundamental o reforço das redes temáticas de cooperação transnacional, tendo em vista dispor de boas práticas de outras experiências;
– É fundamental encontrar e desenhar ligações virtuosas às universidades
e escolas superiores agrárias, tendo em vista promover não apenas um
banco de ensaios do processo de inovação como, também, uma nova
governança do processo de inovação territorial;
– É fundamental a criação de um nível federativo regional das associações
de desenvolvimento, tendo em vista não apenas o lançamento de uma
plataforma de assistência técnica e tecnológica aos associados como,
também, um grau elevado de auto-regulação e reflexividade, indispensáveis à sustentação do processo de inovação territorial.
Para além dos factores antes referidos, o desenvolvimento do processo
de inovação supõe que sejam atendidos certos requisitos internos ou intrínsecos ao ciclo de inovação. Usemos, para o efeito, o exemplo da metodologia Leader1:
– A constituição do grupo de acção local (GAL) tem que ser muito mais
criteriosa e a sua composição técnico-política deve reflectir e antecipar
as necessidades do próprio processo inovatório;
– A elaboração de um diagnóstico para levantar as necessidades de inovação e o respectivo plano de acção tem que ser, simultaneamente, microcirúrgica, transdisciplinar e criativa, tendo em vista uma primeira identificação das potenciais ligações virtuosas;
– O dispositivo comunicacional do GAL tem que ser, igualmente, muito
inventivo; internamente visa motivar e mobilizar os agentes para os
processos participativos, externamente visa criar uma imagem positiva e
favorável do empreendimento junto dos seus stakeholders e da opinião
pública em geral;
– A montagem ou engenharia do processo inovatório é a tarefa mais difícil de realizar porque exige a convergência de muitos contributos e a
análise fina das interdependências técnicas e sistémicas;
– Uma vez realizado este inventário é necessário convencer os agentes
socioeconómicos da bondade destas ligações virtuosas/projectos candi-
1
O autor é membro de dois grupos de acção local (GAL) do Programa LEADER.
António Covas e Maria das Mercês Covas
137
datáveis, de modo a que o plano de acção seja não apenas verosímil
mas, também, mobilizador e verdadeiramente interactivo no seu ciclo de
desenvolvimento;
– Uma vez delimitada a carteira dos projectos com potencial inovatório
efectivo e concretizadas as candidaturas, é necessário implementar todo
o processo de acompanhamento-monitorização-investigação, isto é,
conceber um factor de instigação permanente da inovação, por exemplo,
um núcleo técnico criativo que seja capaz de transformar as ligações
virtuosas em novos projectos e produtos inovatórios; este é o mecanismo endógeno por excelência do processo de inovação e o seu momento
mais crítico;
– Se este processo de instigação for bem-sucedido, o que não está garantido, o ciclo da inovação pode continuar, desta vez em redor da codificação de boas práticas, do registo de patentes, da demonstração e da
transferência de resultados e, finalmente, de uma imagem de reputação
do território, misturada com novos elementos simbólicos, que atraem
novas iniciativas e novos empreendedores.
Dito isto, não nos parece que estejam reunidas, neste momento, as condições necessárias e suficientes, objectivas e subjectivas, para despoletar um
processo inovatório num território rural desfavorecido, tal como aqui o imaginámos. De facto, a gestão de restrições de todo o tipo (institucionais, burocráticas, financeiras, técnicas, sociais) condiciona e prevalece sobre a gestão
por objectivos e sobre o processo de planeamento na sua inteireza e complexidade. Quanto ao programa LEADER, apesar das suas inegáveis virtualidades, não nos parece que ele tenha arcaboiço para liderar o processo inovatório tal como aqui o descrevemos, nem essa é a sua vocação, não obstante as
virtudes da metodologia Grupo de Acção Local/ Programa de Acção Local.
(GAL/PAL).
Em resumo, o novo “problema rural” e a nova ordem eco-rural em construção têm um longo caminho à sua frente, mas o facto de um número crescente de territórios serem expulsos do “mercado competitivo” e entrarem no
“mercado resiliente” abre um campo imenso de possibilidades de soluções
inovadoras e, também, novos compromissos entre as diversas racionalidades
em presença. De resto, se nos lembrarmos que em quase todos os distritos há
uma universidade ou escola superior agrária com formação na área dos estudos agro-rurais, é quase um crime de lesa pátria ter, de um lado, uma população agrícola envelhecida e, de outro, uma população de jovens quadros
técnicos sem património e capital inicial para aceder à actividade.
138
Os territórios-rede
Em síntese, no longo caminho que nos levará dos valores de existência
até aos valores transaccionáveis, estamos de volta a uma nova economia do
sector primário, desta vez, porém, mais agroecológica, multifuncional e territorialista. A matriz agrorural da nova ordem em construção será, doravante,
composta de vários agros:
– O agro-alimentar que converge em redor de conceitos como segurança,
rastreabilidade e certificação;
– O agro-florestal que converge em redor de conceitos como ordenamento, uso múltiplo e certificação;
– O agro-ambiental em redor da eco-condicionalidade, das boas práticas e
da protecção dos recursos;
– A agro-conservação em redor dos recursos genéticos, da agroecologia e
dos serviços ecossistémicos;
– O agro-energético em redor do balanço energético, sequestro do carbono e créditos verdes;
– O agro-recreativo em redor do ordenamento, marketing dos territórios e
ecovisistação.
7.2. O universo conceptual dos territórios-rede e a teoria social
Os territórios-rede são uma intuição prometedora, mas na aldeia global é
preciso fazer prova de vida, isto é, é imprescindível desenhar estratégias consociativas e cooperativas que reduzam as vulnerabilidades próprias e aumentem o campo de possibilidades de gerar capital social entre actores que até aí
mal se conheciam e pouco interagiam. Em nome e benefício deste desejável
interaccionismo metodológico que junta “espaço comum e espaço público”, há
vários contributos teóricos com interesse que vão desde a Nova Sociologia
Económica, de Polanyi (2000) a Granovetter (1995, 2011) e a Fligstein (2001,
2012) até ao Neo-Institucionalismo Económico de Williamson (2000), Ostrom
(2005) e de Olson (1999), com passagem pelas teorias do capital social de Putnam (1993), Coleman (1988) e Bourdieu (1979, 2000) e das convenções de
Duvernay e Thévenot (2006), até às abordagens transdisciplinares de cariz territorialista e culturalista de matriz teórica variada que vão da sociologia rural e
ambiental até à sociologia do risco no âmbito mais largo da teoria social da
modernização reflexiva (Giddens e Beck, 2004).
O universo conceptual dos territórios-rede da 2.ª ruralidade, tal como
nós o entendemos, assenta numa base teórica muito ecléctica que considera:
o sentido de comunidade e pertença, o embededdeness, na linha de Granovetter (1995), por exemplo; a convenção territorial e os projectos de qualidade, “as convenções”, na linha de Duvernay (2006); os bens comuns e a acção
António Covas e Maria das Mercês Covas
139
colectiva, “a lógica da acção colectiva”, na linha de Olson (1999); a justiça
social e a justiça ambiental, “a ecologia social e política” na linha de Martinez-Alier (2007); “os empreendimentos multifuncionais”, na linha de Van
der Ploeg (2000) e Huylenbroeck (2003); “os territórios inteligentes” e “as
classes criativas”, na linha de Florida (2002);” a governança territorial” e “as
redes” na linha dos trabalhos do ESPON (European Observation Network
for Territorial Development and Cohesion); “a economia das proximidades”,
“o génio dos lugares” e “a cultura territorial” segundo Pecqueur (1996,
2004), entre outros.
A convergência e a transdisciplinaridade destes contributos teóricos
podem ser muito úteis na revisitação, renovação, integração e mobilização
destes valores e conceitos tendo em vista promover um novo aparato socio-territorial de intervenção e desenvolvimento, em vários “registos territoriais”. A Tabela n.º 6 é uma síntese das principais incursões pela teoria
social.
Tabela n.º 6 – Territórios-rede e teoria social
Corpo conceptual
Enraizamento
Capital social
Instituições sociais
Rede social
Campos de força
Actor-rede
Convenções
Normas e standards
Acordos sociais
As qualidades
A Teoria Social
I. A Nova Sociologia Económica e a Teoria das Redes
Sociais
–
–
–
–
–
Dos mercados de proximidade aos mercados à distância
A força dos laços fracos e a confiança
Do enraizamento à comoditização
A relação entre a rede e o actor
As redes, o risco moral e o free raider
II. A escola francesa das convenções e da regulação
– Os mundos, os valores e os modos de coordenação
– Os acordos e a organização social da produção
– Uma qualidade certificada e regulada
III. A Nova Economia Institucional
Custos de transacção
Custos informação
Direitos propriedade
Contratos
– As boas instituições reduzem custos de transacção e
informação
– A abordagem microeconómica do mercado é privilegiada
– Os direitos de propriedade, os contratos e uma boa
regulação
Fonte: Elaboração própria.
140
Os territórios-rede
Em tempo de “racionalidade limitada” estes contributos teóricos são
uma fonte de inspiração preciosa que, todavia, só poderão ser avaliados e
postos à prova em territórios concretos que sejam mobilizados por via de
projectos de cooperação territorial e por configurações territoriais mais
ousadas e inovadoras. Para ilustrar esta asserção vejamos alguns exemplos
onde esta convergência teórico-prática pode acontecer.
No campo dos sistemas agro-alimentares locais (SAL) há margem de
liberdade disponível, conceptual e prática para, através de uma convenção
territorial apropriada, desenhar uma “qualidade específica alimentar” e a partir dela criar uma rede de suporte – um clube de produtores e um clube de
consumidores ligados entre si por um circuito curto de comercialização –
que, em si mesma, pode informar um novo território reticular dotado de um
capital social que importará consolidar.
No campo da acção social de reinserção, pode ser desenhado um projecto associativo, comunitário e/ou empresarial, que junte uma escola profissional, um sindicato, algumas Instituições Particulares de Solidariedade Social
(IPSS), o instituto de emprego e formação profissional, uma associação
empresarial ou um grupo empresarial, com o objectivo de promover a reinserção de um grupo de desempregados de longa duração que tenha sido
constituído para o efeito no âmbito de intervenção de um determinado centro
de emprego.
No campo da construção social dos territórios, o desenho de um novo
território-projecto, de uma nova multiterritorialidade e da configuração de
um território-rede de suporte a esse projecto, pode juntar, por exemplo, um
parque natural, as aldeias do parque, uma associação empresarial local, uma
escola superior agrária, os municípios do parque, tendo em vista estabilizar e
desenvolver o sistema produtivo local desse território.
No campo da provisão de serviços ambientais e ecossistémicos, o desenho de uma convenção territorial para a protecção de recursos naturais e a
provisão de serviços ecossistémicos que são essenciais para o bem-estar e a
qualidade de vida, pode juntar, por exemplo, uma administração de bacia
hidrográfica, os produtores de regadio e a intermediação de uma associação
de regantes, os municípios respectivos, tendo em vista a melhoria da qualidade da água, a provisão de amenidades ribeirinhas e o ordenamento de um
parque recreativo.
No campo da acção colectiva e da provisão de serviços comuns, através do desenho de diversas fórmulas condominiais, seja em espaço rural
para gerir um banco de terras, em espaço urbano para administrar um condomínio, ou em espaço industrial para gerir um parque empresarial ou uma
zona industrial, tendo em vista reduzir o risco moral implicado pela prática
do free rider.
António Covas e Maria das Mercês Covas
141
Mas poderíamos, também, referir outros territórios em estado de necessidade a precisar de intervenção urgente e “rede social”: guetos urbanos, territórios pendulares, territórios de 2.ª residência em meio rural, territórios
turísticos padecendo de “stress sazonal”, zonas industriais decadentes, zonas
florestais desordenadas, bacias hidrográficas descuidadas, cooperativas agrícolas com problemas de fidelidade, etc. Em cada caso, é necessário perguntar qual a melhor fórmula de “acção colectiva e inovação social” que pode e
deve ser promovida.
A pergunta que se impõe é, então, a seguinte: em tempo de emergência
nacional e de desterritorialização de muitas parcelas do território nacional,
saberemos nós reunir as condições mínimas necessárias para passar da
racionalidade abstracta à racionalidade limitada e do “individualismo
metodológico” ao “interaccionismo metodológico” e, no contexto de um território em concreto, explorar todas as virtualidades do processo de “destruição criativa e cooperativa” que muitos parecem desejar mas que tão
poucos ousam propor e praticar?
Vejamos o problema pelo lado da teoria das redes.
Uma teoria das redes para a construção de territórios-rede
Já vimos que a “1.ª revolução verde”, a revolução químico-mecânica,
nos deixou exaustos e exangues. Por outro lado, já aí está a “2.ª revolução
verde”, a biotecnológica, a revolução do gene, puro ou manipulado. Prometem-nos, agora, a agricultura sem solo e sem dor, uma agricultura medicamente assistida, através da manipulação e da tecnologia replicativa, que trará, quem sabe, a felicidade às gentes e aos territórios mais desprotegidos e
remotos. Quem promete tem, de resto, o kit tecnológico pronto para todos os
terrenos. Por isso, dizem-nos, devemos confiar e fazer uma “agricultura sem
rede”. Todavia, a pequena agricultura desconfia. Nós, que já vimos o logro
das revoluções “ditas verdes”, estamos avisados, não obstante sabermos, de
fonte segura, que a agricultura e o desenvolvimento rural estão “nas mãos do
poder do mercado e do mercado do poder”.
A rede é uma daquelas noções que parece conter o princípio activo
necessário para resolver todos os males de que o mundo padece. Ela contém,
de facto, muitas virtualidades, mas apresenta outras tantas condicionalidades.
Vejamos algumas características do que poderíamos designar como uma
“abordagem territorial pela perspectiva das redes” em ordem á promoção de
territórios-rede.
– A rede é um “modo policontextual” de ver o policy-problem
A rede é um modo transversal e policontextual de ver o policy-problem.
É uma noção praticável que precisa de ser praticada. Não é uma panaceia.
142
Os territórios-rede
Quase sempre, o modo de ver o problema é uma parte importante do problema. Quer dizer, a rede precisa de passar por uma avaliação ex-ante e ser
sujeita a um pré-teste de praticabilidade, pela “razão simples” de que tem
ou pode ter custos de transacção elevados. Não queremos que a solução se
transforme no problema e que as virtualidades se transformem em dificuldades.
– A rede é um ecossistema heterárquico de acolhimento
A rede é, ou pode ser, uma zona de conforto, um ecossistema de acolhimento capaz de proporcionar uma grande diversidade contextual. Se for
possível desenvolver, e isso já é todo “um programa”, todos os benefícios de
contexto que encerra. Esse ecossistema policontextual de acolhimento percorre toda a fileira ecossistémica, desde a gestão da biodiversidade até à
prestação de serviços ecossistémicos. Por outro lado, a rede aumenta a sua
capacidade de reticulação em linha directa com a variedade e funcionalidade
do mosaico paisagístico, a consequência é uma interacção acrescida de flora,
fauna e actividades económicas.
– A rede pode estruturar um mercado de serviços de valor acrescentado
Adensar o mosaico paisagístico, gerir as suas multifuncionalidades, é
reticular mais e melhor a actividade económica. O mosaico paisagístico é um
mercado de valor acrescentado. Nesta rede os mercados mais convencionais
estão intimamente conectados com o mercado dos serviços agro-ambientais e
ecossistémicos que estão, por sua vez, muito articulados com os mercados de
visitação do ecoturismo. Para os territórios mais desfavorecidos esta articulação é portadora de futuro. As redes deverão promover fórmulas inovadoras
para a operacionalização destes mercados de serviços de elevado valor
acrescentado.
– A rede pode estruturar um sistema produtivo local (SPL)
A rede precisa “desesperadamente” de redescobrir ou reinventar o sistema produtivo local do seu “local de residência” e, muito em particular, de
organizar e consolidar as suas ligações socioeconómicas. Em primeiro lugar,
o mercado interno da rede, em segundo lugar, as ligações externas da rede,
em especial, a sua articulação com empresas e/ou investimentos-âncora, seja
uma cooperativa, uma fileira, um parque industrial ou uma rede de distribuição. Isto é, os nós da rede. É aqui que se formam as pequenas aglomerações,
mas, também, as economias de rede e as suas ramificações. Na pequena agricultura, este é um trabalho de microcirurgia, de malha fina, sem resultados
garantidos à partida.
António Covas e Maria das Mercês Covas
143
– A rede pode estruturar um sistema 3R, (reduzir, reciclar, reutilizar)
A rede é um sistema produtivo de ciclo fechado, sem desperdício de
recursos. Os resíduos da rede são recursos da rede que se organiza no sentido
da sua auto-regulação. No plano dos resíduos orgânicos mas, também, no
plano das águas pluviais ou no aproveitamento das energias renováveis, a
rede precisa de elaborar o seu “plano de internalidades” de modo a aumentar
o seu grau de autonomia e a sua capacidade de autogestão.
– A rede pode estruturar uma multilocal itinerante
A rede pode conceber-se como um empreendimento móvel e itinerante
que compensa a imobilidade relativa dos seus utentes-destinatários. A rede
organiza a mobilidade de serviços públicos e comunitários e pode tornar-se a
sede privilegiada para a criação de empreendimentos sociais, de um mercado
social de emprego, e o local próprio para a aplicação de políticas activas de
emprego, por exemplo, através de uma carteira de micro-projectos para
serem propostos na rede aos seus destinatários.
– A rede é uma comunidade virtual de informação e conhecimento
A rede é, na sua substância, um instrumento conhecimento-intensivo,
sobretudo na forma como transforma e converte informação virtual em
informação real. A rede é um banco de problemas e soluções já experimentados noutras latitudes. A rede não tem, necessariamente, contiguidade física
entre os parceiros, uma parte pode estar virtualmente mais próxima do que
os membros fisicamente mais chegados. Gerir a rede virtual pode tornar-se
uma tarefa esgotante e uma fonte de enormes desperdícios. O sucesso da
rede depende directamente da qualidade do networking.
– A rede é uma forma de administração inovadora (pivots e reputação)
A rede pode adoptar diversos formatos, das formas mais associativas às
formas mais condominiais. A rede administra o sistema de ajudas públicas, é
uma gestão de compartes, é uma mútua de seguros, é uma central de compras, é uma central de leasing, é uma carteira de projectos, é um mediador de
conflitos, é tudo isto sob a forma cooperativa, por exemplo. A rede administra informação assimétrica, disciplina comportamentos, regula a lógica da
acção colectiva e reduz o risco moral e o comportamento free raider. Neste
contexto, a rede depende directamente da qualidade do leadership e, portanto, da sua reputação.
144
Os territórios-rede
– A rede é uma estrutura resiliente
A rede contribui positivamente para gerir as expectativas dos parceiros.
Deste ponto de vista, a rede é socialmente resiliente se contribuir para gerar
solidariedade activa na forma como reage às adversidades e à contingência
que afecta todos e cada um dos seus membros. Quer dizer, por via da adversidade e da contingência a rede pode chegar às “economias de rede”. Esta é
uma forma de valor acrescentado que não pode ser menosprezada na génese
e constituição de uma rede, tanto mais quanto o factor contingência se institui, cada vez mais, como o factor perturbador por excelência.
– A rede é uma construção social da “razão de ser”
Esta é a substância de uma rede, a sua constituição, o seu projecto, o seu
bem comum. A rede é, pois, muito mais do que um mercado, é uma rede de
sentido, produz identificação, é uma construção social da razão de ser. Se
assim for, a rede é socialmente resiliente na forma como reage às adversidades e à contingência que afectam todos e cada um dos seus membros. Este
facto pode facilitar a ligação entre a solidariedade e a economia, por um
lado, e a ligação delas com o conhecimento e a cultura, por outro.
Esta introdução a uma teoria das redes esconde uma duplicidade mais
do que evidente. De um lado, uma necessidade incontornável de formalização, sob a forma de normas e standards, de regras e convenções, tendo em
vista a extensão dos mercados locais, de outro, uma construção social problemática, pois as micro e pequenas empresas e serviços em espaço rural,
com interesses similares mas muito difusos, defrontam-se, geralmente, com
um custo de constituição, organização, certificação e transacção muito elevado. Mesmo que transfiram para fora essa responsabilidade, esse outsourcing terá, porventura, um custo desproporcionado para os parceiros em presença e suas respectivas associações.
As associações de desenvolvimento local e rural, na sua grande maioria
“uma produção primária” das políticas públicas em vigor, procuram remediar e
fazer frente a essa duplicidade mas nem sempre parecem estar em condições de
garantir essas economias de rede e esta fragilidade é um teste decisivo à sua
sobrevivência no próximo futuro, dedicado, justamente, às economias de rede
no espaço virtual da sociedade da informação e do conhecimento.
Uma teoria geral para a construção dos territórios-rede (TR)
Em inúmeras situações e circunstâncias, é no mínimo estranho que a
cooperação mas, também, o mutualismo, a entreajuda e a solidariedade inter-
António Covas e Maria das Mercês Covas
145
territoriais não sejam um instrumento privilegiado de actuação e de vantagem competitiva dos territórios, por maioria de razão os territórios e as
regiões mais desfavorecidos. Sabemos que a economia dominante continua a
ignorar as internalidades (trocas directas), a socializar os prejuízos das suas
externalidades negativas e a exportar o seu risco moral para dentro do orçamento do Estado, mas nada impede que os “territórios vizinhos” possam
aprender mutuamente através da cooperação e da troca de capital social,
numa espécie de economia da comunhão e da reciprocidade onde a troca de
internalidades é um activo precioso, embora um “valor sem preço”.
No plano de uma teoria geral dos territórios-rede, a sua construção
social assenta em três pilares principais: a centralidade da cooperação (a
cooperatividade), a troca interna directa (a produção de internalidades) e a
competitividade de um arranjo institucional (a coopetitividade). De um ponto de vista mais conceptual, esta teoria geral dos territórios-rede (TR) poderia ser esquematizado do seguinte modo:
– No plano epistemológico, o território rede (TR) é uma construção social
complexa que envolve a compreensão do que aqui designamos como “o
paradoxo da vizinhança”: porque é que os “territórios vizinhos” cooperam tão pouco? Porque é que o capital social com origem na cooperação
inter-organizacional atrai tão pouco as organizações e as empresas? Por
que é que as organizações parecem preferir a impessoalidade do mercado à aparente intersubjectividade da cooperação territorial?
– No plano conceptual, o TR é uma teoria ecléctica que vai buscar inspiração à teoria das convenções (os mundos e as regras convencionais), à
teoria neo-institucional (os custos de transacção, os custos de informação e as restrições dos direitos de propriedade) e à teoria das redes (o
actor-rede, a acção colectiva e a gestão inter-organizacional); o TR é
também um middle level concept e uma abordagem meso-analítica de
territórios mais desfavorecidos;
– No plano metodológico, o TR está focado na centralidade da cooperação
(a cooperatividade), na produção de bens e serviços internos comuns (a
internalidade) e na eficácia, eficiência e efectividade do seu arranjo institucional (a coopetitividade);
– No plano operacional, o TR é o lugar geométrico da multi-level governance e tira partido de vários níveis e escalas de governo e administração; o TR é um operador multi-escalar da maior relevância e nessa
medida é uma nova estrutura de oportunidades para outros operadores
locais e regionais;
146
Os territórios-rede
– No plano organizacional, o TR é um actor-rede, inter-organizacional e
inovador que pode assumir várias fórmulas compósitas e complexas
tendo em vista coordenar e gerir “activos territoriais estratégicos”;
– No plano produtivo, o TR é um sistema produtivo local (SPL) ou um
sistema alimentar local (SAL) que opera a conversão do “sistema de
produtos locais” em “os produtos do sistema local”, sistema cuja origem
e denominação passam a constituir uma das suas formas de identificação mais emblemáticas;
– No plano da rede social, o TR é um ensaio e um compromisso entre os
mercados de proximidade e os mercados à distância com toda a complexidade que estas duas redes implicam, da resiliência dos mercados
locais à construção social da qualidade dos mercados à distância;
– No plano comunicacional, o TR está obrigado a investir na sua coesão
interna, isto é, a construir uma idiossincrasia própria e uma ideologia do
agir comunicacional a condizer com o seu triplo arranjo convencional,
institucional e produtivo;
– No plano político, o TR supõe e solicita que os níveis e escalas meso-territoriais NUTS III e NUTS II vejam melhor esclarecidas as suas atribuições e competências à luz de uma nova estrutura de benefícios e custos de contexto territoriais; se quisermos, faz falta a “criação de um
centro de racionalidade de políticas públicas no quadro regional” para a
refuncionalização, articulação e consistência de territórios que são considerados subsistemas funcionais da região;
– No plano cultural, o TR está em condições de estabelecer inúmeras
articulações e mediações extraterritoriais, de projectar nos outros a sua
identidade territorial e, portanto, de procurar nos outros uma imagem de
si próprio.
Como veremos mais à frente, estes territórios-rede podem reportar-se a
territórios muito variados como, por exemplo: regiões termais, zonas de
intervenção florestal (ZIF), áreas de cooperação agrícola, parques ambientais
e biológicos, zonas turísticas e de lazer, áreas de paisagem protegida, parques multimunicipais, grupos empresariais e parques industriais e, ainda
mais importante, uma diversidade de redes cooperativas e colaborativas que
estes territórios podem constituir entre si, dando origem a outras multiterritorialidades até aí desconhecidas.
António Covas e Maria das Mercês Covas
147
7.3. Um quadro analítico, topologia e tipologia dos territórios-rede
Depois de uma incursão pelo universo conceptual dos territórios-rede e
pela teoria social que inspira este universo conceptual, temos à nossa frente,
de um ponto de vista mais analítico, três abordagens possíveis de organização territorial, o que aqui designamos como uma “topologia da construção
social dos territórios”:
– Uma abordagem que verticaliza actividades e sectores, em cadeia ou
em fileira, por via de contratos mais justos ou mais leoninos e de relações interprofissionais bem estabelecidas, num quadro mais industrial e
tecnológico em que a escala e o processo da integração vertical desempenham o papel principal; o sector agro-industrial-alimentar em Portugal, hegemonizado pela grande distribuição, é uma boa ilustração desta
abordagem topológica;
– Uma abordagem que aglomera actividades diversas, por exemplo, sob a
forma de distritos industriais, pólos de crescimento e clusters, e onde a
proximidade, a diferenciação e a complementaridade dos capitais in situ
desempenham o papel principal; neste caso, a escala e a produto homogéneo dão lugar à coordenação e à colaboração e a um produto mais difuso e
heterogéneo; no entanto, esta topologia territorial pode evoluir bem para
um sistema produtivo local mais definido do que o anterior;
– Uma abordagem que reticula mercados e territórios, por via de territórios em rede e de territórios-rede e actores-rede e onde a cooperação, a
colaboração e a coordenação desempenham o papel principal na construção social desses territórios; estes são os territórios cognitivos por
excelência, os “territórios-surpreendentes” onde tudo pode acontecer,
onde as expectativas são mais controversas e onde a inteligência territorial é mais posta à prova; nesta topologia territorial de geometria variável estamos verdadeiramente a conceber e a construir o futuro, por
exemplo, nos nossos remotos territórios de baixa densidade (Covas e
Covas, 2013a, 2013b, 2013c, 2013d, 2012, 2012a, 2011, 2010a, 2008,
2008a) e (Pereira, M., 2013, 2009).
A primeira abordagem territorial cai dentro da teoria microeconómica
neo-clássica, seja na variante da nova economia institucional por via dos
contratos, dos custos de transacção e informação e dos direitos de propriedade, seja na variante da teoria da regulação no que concerne à natureza das
relações de integração vertical e ao interprofissionalismo no interior da fileira ou cadeia industrial. Nesta abordagem o problema principal é uma questão
148
Os territórios-rede
de eficácia, de eficiência e de efectividade. No mesmo sentido, o território é
relegado para um plano secundário, torna-se um mero território-suporte onde
a actividade, o mercado-preço e o actor desempenham o papel principal.
A segunda abordagem territorial “sai do scale e entra no scope”, seja na
variante dos “meios inovadores”, ou nas diversas aproximações conceptuais
operadas pela sociologia económica: capital social, redes sociais, convenções, campos de forças. Nesta abordagem, o território volta à boca de cena,
não apenas com a força imanente dos seus “conhecimentos tácitos” mas,
sobretudo, pelo impulso construtivista que está traduzido naqueles conceitos.
Esta topologia mais horizontal transfere o seu policy-problem para os
“ambientes acolhedores” e para uma melhor policontextualização desses
ambientes em ordem a baixar substancialmente os custos de contexto.
A terceira abordagem territorial é não apenas uma abordagem claramente construtivista como, acima de tudo, um modelo de acção, isto é, os conceitos não preexistem à construção do território-rede e do actor-rede, da mesma
forma que não são exteriores à construção dos “acordos sociais” necessários:
o acordo sobre a qualidade dos produtos, sobre a qualidade do ambiente,
sobre a qualidade da relação laboral, sobre a qualidade da relação associativa
ou sobre a qualidade da relação intergeracional. O território surge nesta
abordagem como o elemento de ligação e o cimento de todas estas qualidades. A teoria das convenções, por exemplo, pode ajudar-nos a definir projectos de vida para um território-rede e para um actor-rede na medida em que
podem endogeneizar a questão da qualidade e estabelecer “ordens locais”
que funcionam nos territórios que estamos a considerar.
No tópico anterior vimos a topologia da construção dos territórios-rede.
Tomando como referência a região do Algarve, podemos, agora, ensaiar uma
primeira tipologia exploratória da construção social de territórios, se quisermos, a produção de território novo a partir de estratégias de cooperação territorial descentralizada e horizontal.
Assim, de que falamos quando falamos de cooperação territorial descentralizada? Quais os territórios que desejamos mobilizar para esse efeito?
– Em primeiro lugar, os territórios convencionais da nossa 1.ª ruralidade: redes de aldeias, amenidades rurais, corredores verdes, territórios de
produção cooperativa, etc.; neste caso, a construção da rede de aldeias
do barrocal algarvio pode ser uma excelente ilustração ou, ainda, a
construção do território-rede representativo da Dieta Mediterrânica;
– Em segundo lugar, os territórios e sistemas agro-alimentares locais:
clubes de produtores e consumidores, circuitos curtos, parques agroeco-
António Covas e Maria das Mercês Covas
149
lógicos, indicações geográficas de proveniência (Dallabrida, 2013,
2012b, 2010b, 2010c), convenções locais de produção social e comunitária; neste caso, o ordenamento do sistema agro-alimentar local (SAL),
por exemplo, a construção do SAL da campina de Faro pode ser uma
excelente ilustração;
– Em terceiro lugar, os territórios urbanos e o reordenamento do espaço
público: a política ambiental dos 3R (redução, reciclagem, reutilização),
a reabilitação urbana, a certificação energética renovável, os planos
verdes e as redes de cidades; neste caso, a construção da rede urbana da
ecopolis de Faro-Loulé-Olhão ou o reordenamento do espaço público de
toda a área ribeirinha da Ria Formosa no concelho de Faro podem ser
uma boa ilustração;
– Em quarto lugar, territórios integrados na rede nacional de áreas protegidas e rede natura 2000: os parques e reservas naturais, os territórios
de Zonas de Protecção Especiais (ZPE) e Sítios de Interesse Comunitário (SIC), a rede de corredores verdes, a estrutura ecológica municipal,
os territórios ITI (intervenções territoriais integradas) no novo quadro
regulamentar dos fundos estruturais europeus; neste caso, algumas unidades territoriais do Programa de Ordenamento Regional do Algarve
(PROTAL) do Algarve, como o Baixo Guadiana ou a Costa Vicentina,
por exemplo, podem ser objecto de intervenções ITI;
– Em quinto lugar, territórios socio-terapêuticos, recreativos e comunitários: áreas-problema, territórios-problema, grupos-alvo, projectos de
voluntariado, associativismo e projecto de desenvolvimento; por exemplo, a construção de um projecto de voluntariado ou um projecto de
desenvolvimento comunitário (Gonçalves, et al., 2013) com uma associação de jovens desempregados, por via de uma cooperativa de serviços ou uma cooperativa de reabilitação urbana pode ser uma excelente
ilustração de um território-rede;
– Finalmente, em sexto lugar, os territórios que acolhem as áreas empresariais; um parque empresarial, público ou privado, ou o território de
um grupo empresarial privado ou cooperativo neste caso, podem conceber-se redes de cooperação empresarial (Covas e Covas, 2010a), projectos de condomínio industrial ou ainda projectos inovadores de
empreendedorismo jovem incrustados nessas áreas empresariais e incubando os seus projectos nas áreas já existentes, por exemplo, uma incubadora jovem para o parque das cidades de Faro-Olhão.
150
Os territórios-rede
Feito o elenco de territórios potenciais que podem ser mobilizados para
a construção de territórios-rede, apresentamos a seguir uma série de exemplos, aqui designados como configurações sociais de territórios-rede, uma
espécie de “produto potencial” de uma região, que podem e devem servir
para formar, a pouco-e-pouco, uma grelha de leitura crítica relativamente a
uma estratégia necessária de desenvolvimento territorial.
1) Uma área urbana, um arco urbano, uma rede de cidades, em articulação
com clubes de produtores e de consumidores, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior agrária, por exemplo, propõem-se
desenhar um sistema alimentar local (SAL), a partir da agricultura periurbana e através de uma rede de circuitos curtos tendo em vista organizar o
comércio local de produtos alimentares de proximidade; ao mesmo tempo, a parceria aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes, utilizando, por exemplo, as hortas sociais, as linhas de água e
os bosquetes multifuncionais, tendo em vista articular as áreas urbanas, as
áreas rurais e as áreas naturais; falamos, também, de contratos e convenções entre clubes de produtores e clubes de consumidores;
2) Um parque natural que comporta uma ou várias unidades de paisagem,
conjuntamente com o clube de produtores do parque ou a associação
ambientalista do parque, mais o conjunto das aldeias que integram o
parque, a associação de desenvolvimento local da região e a escola politécnica ou universidade mais próxima propõem-se modernizar o sistema
produtivo local (SPL) do parque, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma
nova estratégia de visitação do parque por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo; passamos, assim, do “sistema de produtos” locais para os “produtos do sistema” produtivo local;
3) Um empreendimento turístico, uma comunidade piscatória, uma área de
paisagem protegida, uma câmara municipal, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior, propõem-se requalificar um
empreendimento turístico e uma praia adjacente e criar um nicho de
mercado e um novo espaço público de qualidade para o turismo acessível, terapêutico e recreativo (turismo de saúde e bem-estar) com base,
por exemplo, numa pequena aglomeração de actividades terapêuticas,
criativas e culturais criadas para o efeito;
4) Um grupo de aldeias ribeirinhas, na área de influência de um lago, de
uma albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, os operadores
António Covas e Maria das Mercês Covas
151
turísticos, as associações e/ou clubes de produtores agro-florestais, as
administrações de recursos hídricos, uma escola superior, propõem-se
lançar uma estratégia criativa e integrada de agro-turismo e turismo
rural que inclui a participação e a experienciação dos visitantes nas práticas agro-rurais tradicionais;
5) Um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado sector ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo,
património mundial da Humanidade, associa-se com os empreendimentos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola superior, as associações culturais mais representativas, tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património
material e imaterial dessa sub-região;
6) Um grupo de cooperativas agrícolas ou associações de agricultores, uma
empresa de distribuição alimentar ou rede de supermercados, a associação de municípios da mesma área, uma escola superior agrária ou universidade, associam-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta
de modernização agroecológica e comercial para uma sub-região que foi
objecto de grandes investimentos públicos e que precisa urgentemente
de ser relançada (Alqueva e Cova da Beira, por exemplo);
7) Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou
clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de paisagem protegida e as zonas de protecção especial, as empresas agro-florestais, uma escola superior, as comunidades humanas envolvidas,
associam-se para constituir um sistema agro-florestal (SAF) ou agrosilvopastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada
que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção
dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos
da floresta;
8) Um centro de investigação na área da biodiversidade, da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural,
uma associação agro-florestal, empresas de turismo em espaço rural,
empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de
investigação-acção tendo em vista a preservação da biodiversidade e
dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ecossistémicos
relevantes e a valorização comercial destes activos biodiversos por via
do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;
152
Os territórios-rede
9) Um agrupamento de associações de desenvolvimento local em associação com uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissional agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias serranas, os operadores de turismo de natureza e de aldeia, propõem-se
lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas;
10) Um grupo empresarial da área do termalismo e das águas minerais, uma
área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desenvolvimento local, uma escola superior politécnica, a cooperativa ou
associação local de produtores, as aldeias e vilas da área de influência
do projecto, propõem-se criar uma espécie de “santuário ou ecossistema
exemplar” que seja um local de aprendizagem e visitação de boas práticas agroecológicas onde se pode observar e aprender: a diversidade de
agriculturas como arte, técnica e estética da paisagem rural, a ecologia
da paisagem e a reabilitação de habitats, a economia da conservação, do
baixo carbono e da energia renovável, a arquitectura funcional associada à bioconstrução e à bioclimatização, etc.;
11) No campo da acção social, através da configuração de um projecto associativo, comunitário e/ou de voluntariado, que junte, por exemplo, os
sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o
Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e uma associação
ou grupo de desempregados de longa duração que tenha sido constituído para o efeito no âmbito de cada centro de emprego;
12) No campo da provisão de serviços ambientais e ecossistémicos, através
do desenho de uma convenção territorial para a protecção de recursos
naturais e a provisão de serviços ecossistémicos que são essenciais para
o bem-estar e a qualidade de vida, que junte, por exemplo, uma administração de bacia hidrográfica, os produtores de regadio e a intermediação de uma associação de regantes, tendo em vista a melhoria da
qualidade da água e a provisão de amenidades ribeirinhas;
13) No campo da acção colectiva e da provisão de serviços comuns, através
do desenho de diversas fórmulas condominiais, seja em espaço rural
para gerir um banco de terras, em espaço urbano para administrar um
condomínio, ou em espaço industrial para gerir um parque empresarial
ou uma zona industrial, tendo em vista reduzir o risco moral implicado
pela prática do free rider;
António Covas e Maria das Mercês Covas
153
14) Mas poderíamos, também, referir outros territórios em estado crítico a
necessitar de intervenção urgente e “rede social”: guetos urbanos, territórios pendulares, territórios de 2.ª residência em meio rural, territórios
turísticos padecendo de stress sazonal, zonas industriais decadentes,
zonas florestais desordenadas, bacias hidrográficas descuidadas, etc. Em
cada caso, é necessário perguntar qual a melhor fórmula de “acção
colectiva e inovação social” que pode e deve ser promovida.
Desta “desordem tipológica” queríamos retirar, apenas, um ensinamento
de ordem geral, a saber, em todos os casos, a construção social de um território-rede faz apelo a três ordens de arranjos. Em primeiro lugar, um “arranjo
convencional” entre parceiros que desejam empreender um território-rede,
em segundo lugar, um “arranjo institucional” acerca de processos e procedimentos necessários sob a forma, por exemplo, de um actor-rede, finalmente,
um “arranjo produtivo local” sob a forma de um sistema produtivo local
(SPL), de um sistema alimentar local (SAL) ou de outros arranjos inovadores. Neste último caso, a discussão sobre a produção dos bens de mérito e
reputação é, igualmente, uma excelente contribuição para a construção social
dos territórios em questão.
8. A cooperação territorial e funcional e a governança dos territórios-rede
Vamos aprofundar um pouco mais a base cooperativa, territorial e funcional da nossa tese, em particular quando a abordamos pela óptica da
“mobilidade” da actual conjuntura capitalística, como se houvesse aqui uma
guerra de velocidades entre “os lentos e os rápidos”. Neste capítulo vamos
abordar três tópicos fundamentais. Em primeiro lugar, em vez de uma anunciada “tragédia dos lentos” podemos provar que essa eventual morte prematura pode ser contrariada por uma cooperação territorial e funcional bem
concebida e conduzida. Em segundo lugar, não podemos escapar ao facto de
que a emergência de uma nova estrutura de poderes no mundo rural condicionará decisivamente a formação dos territórios-rede. Vale, por isso, a pena
averiguar em que direcção aponta essa nova estrutura de poder em formação
e, por essa razão, esse novo determinismo social. Por último, e em sentido
oposto, queremos sublinhar que a autonomia do actor-rede na pilotagem do
território-rede cria não apenas uma nova multiterritorialidade como configura uma nova institucionalidade muito prometedora; neste caso, a criação de
um actor-rede mas, também, a sua acção e eficácia exigem que sobre ele
possamos fazer uma reflexão teórica a condizer.
154
Os territórios-rede
8.1. Os “territórios lentos” e a cooperação territorial e funcional
Permitam os leitores que, a propósito deste capítulo sobre cooperação,
comecemos por duas citações do Padre José Tolentino de Mendonça escritas
nas crónicas semanais da Revista do jornal Expresso e intituladas Primaverar
(Mendonça, 23.03.2014: 6) e a Arte da lentidão (Mendonça, 25.05.2013: 6).
A propósito de Primaverar diz-nos o Padre José Tolentino de Mendonça na Revista do Jornal Expresso de 23.03.2014:
A primavera faz de nós testemunhas da revitalização do mundo. Desde o
fio de erva à vegetação mais grandiosa, tudo passa por um incrível processo
de rejuvenescimento. A vida parece uma rebentação, um contágio imparável, um sobressalto. Não somos apenas testemunhas mas protagonistas,
todos somos chamados a primaverar. Primaverar é uma sucessão infinda de
recomeços. Ao lado do previsto chega-nos o imprevisto, irrompe o imprevisível que precisamos aprender a acolher. Misturado com aquilo que escolhemos, chega-nos o que não escolhemos e que temos, na mesma de viver,
transformando-o em oportunidade e desafio para a confiança (Mendonça,
23.03.2014: 6).
Ou, ainda, a propósito da Arte da Lentidão diz-nos o Padre José Tolentino de Mendonça na Revista do Jornal Expresso de 25.05.2013:
Deveríamos reflectir sobre o que vai ficando para trás, sobre o que deixamos de saber quando a aceleração nos condiciona porque o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento. A pressa
condena-nos ao esquecimento e a velocidade impede-nos de viver. Uma
alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo, por tentativas e
pequenos passos. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme,
necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas,
dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o
concentrado, o atento e uno (Mendonça, 25.05.2013: 6).
Estas duas citações resumem o essencial da mensagem deste capítulo
sobre cooperação. A arte da cooperação pode ser, se quisermos, a “arte de
primaverar pela vida e contra o esquecimento”. Se essa for a nossa atitude
não há motivos para ter receios de uma “tragédia dos lentos” ou ter a expectativa de uma “morte anunciada”. Porque o território não é um consumível
corrente que, uma vez usado e abusado, nós alienamos levianamente, como
se fosse pura e simplesmente descartável. Em defesa da natureza e da cultura
dos “territórios lentos” nós propomos o paradigma da cooperação territorial e
da mobilidade com conta, peso e medida.
António Covas e Maria das Mercês Covas
155
O paradigma da cooperação e da mobilidade territoriais
Já sabemos que a “velha” geografia política é uma geografia dos limites
e das fronteiras físicas e, também, dos aparelhos ideológicos de Estado que
lhe correspondem. É uma geopolítica dos limites e das fronteiras, logo, de
territórios-zona. Mas, também, em boa medida, uma geografia das suspeições. Toda esta construção começou a desmoronar-se em nome de um
“Mundo Plano” (Friedman, 2006) mas, primaverar, em matéria de reconstrução dos territórios é uma tarefa de longo alcance.
Na esfera global, e sobretudo na esfera europeia em que vivemos, já não
há “o dentro e o fora”, estamos todos, digamos, do mesmo lado da barricada,
isto é “dentro”. As dinâmicas socioeconómicas mais recentes puseram em
causa a coesão territorial, pelo menos nos países do sul da Europa: a austeridade e as recessões prolongadas, o envelhecimento e as elevadas taxas de
desemprego, em especial dos jovens e desempregados de longa duração, e o
agravamento das assimetrias regionais e locais, deixaram muitos territórios à
beira de um ataque de nervos, onde se incluem inúmeros concelhos entregues ao “fatalismo da desertificação e do despovoamento”.
Nos países do sul da Europa, confrontados com dívidas públicas e privadas muito expressivas para os próximos vinte anos, pelo menos, a nova
geopolítica da coesão territorial terá de fazer opções de fundo: menos estado
e menos política (estado mínimo), mais estado e menos política (estado
burocrático) e menos estado e mais política (estado cooperativo). Estamos
convencidos de que a melhor opção será a terceira, pois o que se esgotou não
foi a política mas uma determinada forma de fazer política e, concretamente,
aquela que corresponde à era da sociedade delimitada territorialmente e integrada politicamente.
Isto quer dizer que deveremos ensaiar, doravante, uma geografia de
limites variáveis, “des-limitada” e, mesmo, sem contiguidade territorial. Não
desaparecem os “fixos e lentos”, pois os estados, as regiões e os municípios
permanecerão, ainda, por muito tempo. Não obstante, “os fixos e lentos” irão
participar em novas experiências de geometria variável, desde os territórios
em rede aos territórios-rede, móveis e mutáveis, e até portáteis, espaços de
múltiplas territorialidades, onde a contiguidade geográfica conta cada vez
menos. Doravante, todos, sem excepção, iremos participar na grande aventura paradigmática da cooperação e da mobilidade territoriais.
E qual é o acquis da cooperação territorial europeia?
Digamos, para começar, que, depois da liberdade de circulação proporcionada às empresas e aos cidadãos, o processo de construção do espaço
público europeu não estaria completo se às autoridades locais e regionais
fosse coarctada a possibilidade de aprofundarem a liberdade de relaciona-
156
Os territórios-rede
mento e cooperação entre si, como uma das manifestações fundamentais do
processo de aprofundamento da cidadania europeia e da construção europeia.
Esta cooperação territorial passou, assim, por várias fases, desde a simples
cooperação de vizinhança fronteiriça até à cooperação territorial “propriamente dita”, tal como pode ser entendida a partir da figura do “Agrupamento
Europeu de Cooperação Territorial” (AECT), um instrumento de direito
comunitário para materializar a ideia de cooperação de 2.ª geração. A escolha de um instrumento jurídico comunitário com as características do regulamento é, também, um traço distintivo desta “mudança de geração”, uma
vez que complementa e aprofunda os instrumentos convencionais usados até
então, a saber, os acordos bilaterais entre Estados nacionais e a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre cooperação transfronteiriça.
No início do processo de construção europeia, a cooperação territorial
resumia-se a uma mera cooperação de vizinhança entre regiões de “fim de
linha” de Estados nacionais soberanos. Esta cooperação assentava em acordos de natureza diplomática, seja de âmbito multilateral (Conselho da Europa) ou bilateral. Estávamos, digamos, na fase interfronteiriça da cooperação
territorial. A história da política regional europeia traz-nos até ao Programa
INTERREG que acabou por consagrar três vertentes de cooperação: transfronteiriça, transnacional e inter-regional. Estas vertentes convergem na
noção, mais compreensiva, de cooperação territorial, embora a parte mais
substancial dos recursos continue a ser destinada à cooperação transfronteiriça (de vizinhança), aquela que regista uma actividade mais intensa e, por
isso, aquela que solicita um maior esforço em termos de soluções institucionais. Aliás, os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT)
foram concebidos para este tipo de cooperação, antes de, no seguimento das
objecções levantadas pelo Comité das Regiões e pelo Parlamento, terem sido
alargados aos outros níveis de cooperação territorial. É este edifício, cada
vez mais complexo, que recebe consagração no tratado de Lisboa com a
designação de cooperação territorial, o terceiro pilar da política de coesão,
depois da coesão económica e social.
Como dissemos, esta evolução acompanha a construção do mercado
único, desta vez no sentido da formação de um “território único europeu” ou
de uma nova territorialidade em formação.
A partir de 2007 a cooperação territorial é promovida à condição de
objectivo prioritário. A nova política de coesão, por intermédio da cooperação territorial, assegura a continuidade dos objectivos anteriormente prosseguidos no quadro do INTERREG em todas as suas vertentes. Com esta reforma da política de coesão busca-se uma maior equivalência e comunicação
entre todos os territórios, mais e menos desenvolvidos, porque há a convic-
António Covas e Maria das Mercês Covas
157
ção crescente de que a tradicional linha de separação entre competitividade e
coesão está cada vez mais ultrapassada à luz dos mecanismos veiculados
pelo processo de globalização. Há um enorme potencial de desenvolvimento
entre regiões, mais e menos ricas, a partir da multiplicação de relações inovadoras de cooperação territorial entre autoridades locais e regionais. Por
isso, seria um erro compartimentar os três objectivos de convergência, competitividade e cooperação territorial da política de coesão. A programação
orçamental para 2007-2013 foi uma fase de transição. Nesta sequência, a
política de coesão para o período pós-2013 deverá, em nossa opinião,
aumentar a equivalência e a intercomunicabilidade dos três objectivos e
reforçar a cooperação territorial como elemento instigador de novas relações
de desenvolvimento e bem-estar entre os povos e os cidadãos europeus.
As ideias-força da cooperação territorial europeia
Chegados aqui, a interrogação é legítima, sobretudo, na actual conjuntura de quase estagnação económica: em que medida a experiência adquirida
de várias décadas, em matéria de cooperação transfronteiriça, transnacional e
inter-regional, é útil e, mesmo decisiva, na reconstrução dos territórios atingidos pela deslocalização empresarial, pelo recuo dos Estado em serviços
básicos essenciais e pelo abandono das populações? Ou, de outra forma, ainda, face à dimensão e gravidade dos problemas socioeconómicos actuais,
estamos nós, simples cidadãos, “com paciência” para aceitar que problemas
simultaneamente locais e transfronteiriços se transformem em questões
internacionais e assuntos de Estado, ficando a aguardar que a capital ou o
respectivo ministério dos Negócios Estrangeiros se digne prestar atenção a
questões de “vida banal” do quotidiano transfronteiriço e inter-regional?
Num balanço sumário da cooperação territorial e tendo em vista o próximo futuro da cooperação de 2.ª geração, algumas ideias-força podem ser
apontadas. Eis o nosso decálogo da cooperação territorial de 2.ª geração para
o período pós-2014:
1. A existência de um quadro territorial de intervenção, claro e inteligível,
permite estimular formas de governabilidade com valor acrescentado
próprio e distintas das que decorrem de lógicas nacionais ou de recorte
mais sectorial; a cooperação de 2.ª geração exige segurança jurídica,
estabilidade institucional, programação estratégica de actividades, horizonte temporal alargado e avaliação consequente, autonomia financeira
suficiente, parcerias eficazes e eficientes, isto é, regiões politicamente
constituídas dos dois lados da “fronteira”;
158
Os territórios-rede
2. Nas orientações fundamentais para o próximo período de programação
2014-2020 é imperioso rever o trinómio convergência-competitividade-cooperação, os três objectivos da política de coesão, por esta ordem, e
decidir qual o novo equilíbrio de prioridades que desejamos alcançar e
de que forma elas podem e devem comunicar entre si mercados, territórios e instituições;
3. No plano estratégico, político e operacional, é fundamental que, na
sequência da profunda recessão económica dos anos 2010-2013, se proceda a uma revisão das prioridades em matéria de programa de políticas
de ordenamento do território; as novas centralidades territoriais (transfronteiriças, transnacionais e inter-regionais) são decisivas para reiniciar
os processos de desenvolvimento sustentável e, neste contexto, a cooperação territorial, nas suas várias formulações, é fundamental para a formação destas novas centralidades (euro-regiões, euro-cidades, agências
de desenvolvimento transfronteiriço, redes de cidades, redes de parques
e reservas naturais, etc.);
4. Um programa de cooperação territorial tendo em vista a eliminação de
custos de contexto transfronteiriços é um objectivo central e decisivo a
curto e médio prazo; a política de coesão sem aprofundamento do mercado interno de proximidade e sem o aprofundamento da cidadania
transfronteiriça não produz resultados duradouros, para lá do valor simbólico indiscutível de um programa com aquelas características;
5. A cooperação territorial não pode nem deve confundir os meios com os
fins, isto é, não pode assentar numa abordagem meramente oportunística de acesso aos fundos europeus; ao contrário, a cooperação territorial
só é duradoura se se basear em instrumentos de cooperação que estejam
para lá do horizonte financeiro dos programas comunitários e europeus;
neste contexto, é, também, importante rever o princípio da adicionalidade na política de coesão se considerarmos que, por razões de natureza e
necessidade, os problemas transfronteiriços são problemas eminentemente comunitários;
6. Um dos elementos nucleares de uma nova institucionalidade transfronteiriça de 2.ª geração é a qualidade da governação multiníveis; deveríamos tomar algumas precauções com a aprovação dos primeiros AECT,
uma vez que eles servirão de balão de ensaio para futuras experiências
de cooperação territorial; preservar, tanto quanto possível, as condições
de sucesso dos primeiros AECT é fundamental para garantir o sucesso
dos agrupamentos vindouros;
António Covas e Maria das Mercês Covas
159
7. A equidade das dotações financeiras é um factor decisivo para o sucesso
da cooperação; de facto, não há cooperação territorial que resista a uma
relação financeira de 1 euro para Portugal e 3 euros para Espanha, tal
como acontece com os actuais critérios de distribuição do programa
operacional de cooperação territorial baseados na densidade dos territórios; deste facto, todavia, devem ser retiradas duas consequências fundamentais para o futuro próximo: em primeiro lugar, devemos evitar a
todo o custo que os AECT sejam estruturas consumidoras de recursos,
em segundo lugar é imperioso pensar rapidamente qual o modelo de
financiamento para além do actual programa de cooperação, num cenário de penúria de meios financeiros disponíveis;
8. O “excesso de institucionalização” da cooperação transfronteiriça por via
de agrupamentos de autoridades e poderes públicos locais e regionais é
um risco com resultados contraproducentes porque pode significar a captura de recursos públicos por aparelhos político-partidários em operações
de duvidosa reprodutibilidade e elevado custo de oportunidade;
9. O sucesso a médio e longo prazo dos programas de cooperação transfronteiriça recomenda que sejam tidos em devida conta três tipos de instrumentos ou lógicas de intervenção: a institucionalização de iniciativas
públicas, a empresarialização de iniciativas privadas, a materialização
de direitos de cidadania ao quotidiano, de modo a que, no final, todos
nos possamos interrogar sobre que espaço público, identidade ou nova
territorialidade foram construídos no antigo território das regiões de
fronteira;
10. As novas institucionalidades e centralidades para lá da cooperação
transfronteiriça de vizinhança e dos programas financeiros de ocasião
estarão no cerne da política de coesão para o pós-2014; neste contexto,
temos a obrigação de colocar em discussão não apenas os custos da não-regionalização face aquelas institucionalidades e centralidades, como
também, de questionar as regiões para o pós-2014 em situação de
carência financeira quanto a apoios especificamente europeus e comunitários e confrontadas com as novas institucionalidades transfronteiriças,
do tipo euro-regiões, euro-cidades, agências de desenvolvimento transfronteiriço, etc.;
A cooperação territorial na Península Ibérica e na Europa está perante
uma verdadeira encruzilhada civilizacional e cultural que a actual crise se
limitou a trazer à luz do dia. As fronteiras foram determinadas por razões
históricas. A mudança de contexto e de pretexto podem mudar essas razões e
160
Os territórios-rede
determinar uma outra reconstrução histórica, uma nova territorialidade. A
vaga nacionalista e antieuropeia das últimas eleições para o Parlamento
Europeu (25 de Maio de 2014) mostra à evidência que os conflitos que julgávamos ultrapassados podem regressar a qualquer momento. À nossa frente, podem reemergir com um vigor redobrado:
– A história longa contra a história curta e a geografia dos territórios de
proximidade;
– O interesse concreto das colectividades locais contra os interesses sem
rosto do capital transnacional;
– A vida quotidiana das pessoas comuns contra os assuntos de Estado e o
prestígio das instituições;
– Os recursos exíguos e preciosos da cultura dos povos contra a cultura
dos recursos infinitos do sistema capitalista;
– As velhas territorialidades do estado-nação contra as novas identidades
pós-fronteiriças e pós-estaduais.
Cooperação e diversificação dos territórios: from scale to scope
Num outro plano, a cooperação territorial, a diversificação de actividades e a gestão multifuncional dos territórios podem constituir entre si uma
associação muito virtuosa, sobretudo nos territórios agro-rurais da 2.ª ruralidade. Há uma interacção muito forte entre agricultura multifuncional e territórios multi-atributos, sobretudo em espaços rurais de baixa densidade e forte potencial ambiental e paisagístico. Digamos que há uma relação virtuosa
entre produtos e territórios, e as suas imagens ou representações, que precisa
de ser reconcebida, construída e animada (Covas e Covas, 2008, 2008a).
Produtos emblemáticos dão um prémio aos seus territórios de acolhimento,
um território com características multifuncionais valoriza e projecta os produtos locais. Todavia, para evitar equívocos desnecessários, é curial que as
imagens não se substituam aos produtos e não sirvam para dissimular a sua
falta de qualidade intrínseca.
Já sabemos que a economia rural produtivista, por via da intensificação
material e energética, conduziu à concentração da propriedade fundiária, ao
êxodo agrícola, ao crescente abandono dos territórios, ao crescimento urbano
desordenado e a problemas de saúde pública cada vez mais frequentes. Não
surpreende, pois, que a nova economia rural tenha de fazer, em boa medida,
um movimento contrário ao da “revolução verde”: colocar as tecnologias da
informação e do conhecimento ao dispor de novas actividades e serviços
agro-rurais, restituir a riqueza florística e faunística ao território, renaturalizando, por exemplo, os espaços periurbanos, retocar a sua imagem paisagís-
António Covas e Maria das Mercês Covas
161
tica e cultural, utilizar as biotecnologias ecossistémicas em benefício da biodiversidade para “repovoar” territórios em vias de desertificação, promover
uma nova economia residencial em zonas de baixa de densidade, etc.
A economia rural do século XXI será determinada por dois novos primados que se anunciam: o primado ecológico e o primado da mobilidade. O
primeiro recoloca a prevalência do território por via dos seus atributos biofísicos e ecológicos, o segundo altera radicalmente as nossas percepções convencionais sobre o espaço, o tempo e o acesso aos diferentes territórios, em
especial os de baixa densidade.
O mundo rural descreve, neste momento, uma longa curva paradigmática que o levará da escala à diversificação, from scale to scope. As previsões
surgidas em estudos recentes (Avillez, 2005) e (Correia, 2006), de que cerca
de 80% do nosso território rural estará reservado, a prazo, para uma ruralidade agroecológica, multifuncional e biodiversa, são agora claramente confirmadas se tivermos em conta as consequências da aplicação do programa de
assistência económica e financeira a Portugal no interior do país (Covas e
Covas, 2009). De facto, os sinais vitais de muitos municípios e regiões do
interior colocam-nos abaixo ou fora das características da chamada economia
convencional de mercado.
Todavia, a escassez estrutural de bens alimentares e de matérias-primas
energéticas põe em risco aquele destino aparentemente mais virtuoso, pelo
que assistiremos, muito provavelmente, na ausência de formalidade e fiscalização apropriadas, à mercantilização do espaço e à introdução de cargas desproporcionadas de ocupação e utilização de recursos. Nestas circunstâncias,
por exemplo, a associação entre culturas energéticas e biotecnologia, por via
dos organismos geneticamente modificados, é uma incógnita cuja verosimilhança se avoluma cada vez mais. A conjugação desta ocorrência com o
oportunismo comercial e a irresponsabilidade socio-ambiental de promotores
recém-chegados não deixa prever nada de bom. No mesmo sentido, e em
relação ao primado ecológico, assistiremos, muito provavelmente, ao “tráfico
entre a razão ecológica e a razão verde”, ao greening, numa mistura pastosa
de propaganda, publicidade enganosa e evidência científica.
Como se pode verificar, a ruralidade pós-moderna está muito longe de
ser um cenário cor-de-rosa. A procura de cereais (as economias emergentes),
por um lado, e a procura de culturas energéticas, por outro, põem pressão
sobre os terrenos agrícolas, de maior e menor qualidade, podendo gerar a
curto e médio prazo uma nova vaga de solos erodidos e abandonados. Nessa
altura estaremos muito mais próximos do cenário de desertificação e não
haverá meios públicos ou privados que cheguem para reverter a situação.
162
Os territórios-rede
Diversificação e benefícios de contexto em espaço rural
Já sabemos que o desenvolvimento rural “se institucionalizou” na política agrícola comum (PAC) para reduzir a produção agrícola e poupar recursos ao orçamento europeu. Nasceu, digamos, sob a forma de um constrangimento. Não foi um começo muito prometedor. Hoje, o mundo rural já não é
o monopólio da agricultura, nem pode estar dependente de um constrangimento. A nova política de desenvolvimento rural, para ser duradoura, tem de
estimular a multifuncionalidade agrícola e o modelo de agricultura familiar
mas, também, as actividades não-agrícolas, em especial, uma agricultura
energética e de serviços, assegurando, ao mesmo tempo, uma relação virtuosa com os bens de interesse e utilidade públicos.
Vamos, desde já, alertar para um risco real que esta preferência pela
abordagem territorial envolve. De facto, ela leva-nos da agricultura para o
desenvolvimento local, para o desenvolvimento sustentável, para o ordenamento, para as políticas urbanas e de cidades médias, para o desenvolvimento regional, enfim. Quer dizer, para uma concertação político-administrativa
cada vez mais sofisticada e, provavelmente, para mais uma longa série de
conflitos de jurisdição e competência. Estes conflitos podem gerar muitos
vícios de forma e um laborioso contencioso de responsabilidade que os grupos de interesse aproveitam para tirar vantagem e benefício para “os seus
direitos adquiridos”. Este contencioso de responsabilidade, que implica algumas estratégias de autodefesa por parte da administração pública, pode estar
na origem de um fluxo significativo de efeitos externos desfavoráveis à formação dos territórios multifuncionais.
Seja como for, a nossa teoria nesta matéria diz-nos que o binómio cooperação-diversificação, se bem concebido e conduzido, pode ajudar-nos a construir uma base sólida para a multifuncionalidade e o desenvolvimento rural.
Tomemos o exemplo de uma cooperativa agrícola especializada num determinado sector de actividade. Se nela se respirar um verdadeiro espírito cooperativo, o capital social já acumulado pode ser utilizado para diversificar os serviços
prestados pela cooperativa que, por esse facto, se pode converter numa cooperativa multissectorial de fins múltiplos, com capacidade para uma oferta integrada e complementar de bens privados, de bens comuns e de bens públicos.
O binómio cooperação – diversificação é variável, portanto, com a configuração do território de que estamos a tratar. Mas de que territórios estamos nós a falar? Os territórios de jurisdição fixa consolidada como os municipais ou os territórios de jurisdição variável construída numa base
conservacionista ou ambiental ou, ainda, os territórios-projecto concebidos
para atingir objectivos específicos, por exemplo, as áreas de paisagem protegida ou as zonas de intervenção florestal?
António Covas e Maria das Mercês Covas
163
Como facilmente se imagina, é diferente o stock de capital e o valor dos
activos de cada um destes territórios, bem como a estrutura dos direitos e os
conflitos de interesses aí residentes. Sendo certo que a municipalização
arruma a questão das fronteiras, não estamos seguros de que, por essa via, se
mantenha intacta a capacidade de inovação institucional que uma construção
mais atrevida e maleável poderia proporcionar.
Infelizmente, as organizações não-municipais (ou para-municipais?)
presentes no terreno não têm sabido ou querido usar a sua liberdade contratual para se introduzirem em territórios menos habituais mas, também, mais
prometedores. Por exemplo, para além das cooperativas agrícolas, as associações de desenvolvimento local podiam juntar-se para gerir um território-rede, os centros de investigação podiam juntar-se para gerir um território-experimental ou uma área-piloto, uma associação de proprietários podia
associar-se a uma associação de caçadores para gerir uma zona de intervenção florestal, etc. Em todos os casos, o direito administrativo e a liberdade
contratual dos parceiros podem encontrar soluções muito diferenciadas para
cada situação.
Em todos os casos, é crucial o critério de dimensão crítica que preside à
delimitação da unidade territorial para “efeitos de diversificação”. Infelizmente, com frequência, essa demarcação é mais fruto do acaso das circunstâncias do que de uma deliberação racional. Na mesma sequência, é imperioso ultrapassar um enviesamento habitual nas políticas do território, a saber, a
sua excessiva municipalização. Por um lado, passando de políticas centradas
nas infra-estruturas e equipamentos para políticas centradas no serviço, no
conhecimento e na organização, por outro, passando da fase de dispersão e
especialização dos equipamentos para uma visão de ordenamento, multifuncionalidade e polivalência, isto é, pondo as suas valências a render de forma
muito mais imaginativa. A mesma imaginação que deveria ser aplicada aos
sistemas urbanos territoriais, em especial aos espaços de influência das
pequenas e médias cidades do interior.
Devido a estrangulamentos agro-ecológicos e socio-estruturais de longa
data, ainda hoje não resolvidos, o desenvolvimento rural em Portugal é disperso e inorgânico. A falta de ordenamento cultural e territorial das explorações agrícolas e dos aglomerados urbanos em meio rural não tem permitido o
desenvolvimento de uma abordagem sistemática e integrada das questões
agro-rurais, tal como aqui a enunciámos por via da cooperação territorial e
da diversificação multifuncional. Estamos, todavia, numa fase de transição
paradigmática de longo alcance.
A política rural europeia deu, neste sentido, um impulso significativo
com o programa LEADER. A filosofia original do programa LEADER (liga-
164
Os territórios-rede
ção entre acções de desenvolvimento rural) pode ser aprofundada e alargada
a outras intervenções. Aliás, em rigor, deveria ser, mesmo, o critério ordenador. O eixo estruturante do ordenamento, ambiente e recursos naturais e
desenvolvimento rural cruza, cada vez mais, a política agrícola tradicional.
É certo que devemos evitar o risco de uma excessiva ambientalização
da política agrícola sob pena de reduzirmos, ainda mais, a base produtiva
da economia rural. Encontrar o equilíbrio entre a economia da produção, a
economia da protecção e a economia da diversificação será, sempre o segredo do sucesso de uma economia agrorural.
Para lá do rol de medidas já disponíveis em matéria de eco-racionalidade (informativas, regulamentares, regulatórias, interventivas, contratuais)
são fundamentais, no quadro da diversificação multifuncional que nos interessa, as actividades de investigação, experimentação e desenvolvimento que
nos ajudam a dilucidar os interfaces entre agricultura, ambiente e território,
em particular, na sequência, rica de ensinamentos, entre agricultura tradicional, agricultura convencional, produção integrada, agricultura biológica, pelo
menos em quatro domínios:
1. Numa criteriosa delimitação do sistema de agricultura tradicional: dos
métodos e técnicas até aos produtos tradicionais de qualidade;
2. Na intensificação de sistemas extensivos, por paradoxal que possa parecer; qual o alcance em termos de mercado e o que pode significar, do
ponto de vista tecnológico, esta intensificação sob condições?;
3. Na gestão de novos bens públicos e outros sistemas protegidos; como se
sabe, recortamos cada vez mais o território (parques, reservas, outras
áreas de paisagem protegida) que necessita, por esse facto, de novas
regras de gestão socioeconómica;
4. Na utilização das tecnologias da informação ao serviço do desenvolvimento rural e do marketing territorial; o que significam as “procuras
agro-culturais em espaço rural”, qual o lugar da agricultura de serviços
nessa oferta?
Como facilmente se observa, todos estes elementos acrescentam diversificação e diversidade ao espaço agrorural. Infelizmente, o que aqui trazemos
em matéria de diversificação da base territorial está em rota de colisão com a
ideia hegemónica de política pública, de cariz essencialmente sectorial e
administrativo-financeira, pois é necessário justificar verbas e fechar contas
António Covas e Maria das Mercês Covas
165
anualmente, sob pena de não haver retorno no ano seguinte. Chama-se a esta
prática “ser bom aluno”. Na verdade, partimos dos fundos financeiros, fixados em Bruxelas, para as elegibilidades e destas para um catálogo de medidas. Tudo fica, assim, pré-formatado por um labirinto de disposições regulamentares e procedimentos técnico-burocráticos. Neste contexto, os territórios não existem, são um catálogo de medidas, disputadas palmo a palmo
que só por acaso ou mera coincidência poderão ser bem-sucedidas. Não há
base territorial para a gestão integrada das medidas. Não existem programas
operativos para áreas específicas e não é suficiente a “territorialização de
políticas de base sectorial”.
A teoria da diversificação em espaço rural tem, portanto, um longo
caminho para percorrer, mas os sinais positivos são muito prometedores. A
conjugação da multifuncionalidade agrícola (a exploração multifuncional)
com a multifuncionalidade territorial (a gestão de programas operativos de
base territorial) e a cooperação territorial descentralizada é a via acertada
para levar a bom termo uma diversificação virtuosa.
Diversificação e gestão da multifuncionalidade territorial
A multifuncionalidade territorial é um campo aberto para uma nova
normatividade social, fonte, igualmente, de uma nova normalização social.
Estamos a falar da recomposição dos interesses que giram à volta da actividade agrícola, dos seus efeitos externos e dos bens públicos rurais. O equilíbrio precário é posto em causa pela chegada de novos valores e objectivos,
novos interesses e direitos, novos actores e protagonistas, pois a multifuncionalidade, que é diversidade, não se compadece com essa normalização.
Donde se retira que a metodologia multifuncional põe, igualmente, em causa
a tradicional teoria da acção pública assente na conformação/agregação de
interesses individuais.
A multifuncionalidade territorial é, igualmente, um processo criativo de
uma nova organização colectiva local ou uma nova localidade. A multifuncionalidade supõe que se crie uma rejuvenescida organização colectiva local
sob pena de não existirem condições objectivas para promover uma boa
governança dos interesses em presença. A multifuncionalidade é, neste contexto, um risco e uma oportunidade. O risco de congestionamento da organização colectiva que é alimentado pelo risco de congestionamento da própria
multifuncionalidade, uma vez que há demasiados objectivos, muitas restrições e poucos instrumentos. Por outro lado, a reflexão em redor de uma nova
organização colectiva, mesmo que precária, pode estimular e suscitar uma
saída para a crise em que se encontra a actividade agrícola e as suas respecti-
166
Os territórios-rede
vas externalidades e bens públicos e chamar a atenção do país para a urgência de uma solução de mais largo espectro.
A multifuncionalidade territorial cria novos referenciais teóricos, metodológicos e práticos para a acção comum e colectiva. A multifuncionalidade
é um vector de integração e coordenação horizontal de actividades e pessoas
que coabitam um espaço de íntima contiguidade. Não se concebe, por isso,
que o problema seja analiticamente compartimentado para que se possa, em
seguida, “dialogar com a administração”. Não é a multifuncionalidade que se
verticaliza, é a administração que se horizontaliza.
As disfunções irão surgir com toda a naturalidade, mas a nova metodologia irá incluir, tarde ou cedo, o estudo exaustivo das produções conjuntas e das
suas externalidades, a definição de quadros territoriais pertinentes para esse
efeito, a constituição de carteiras específicas de projectos multifunções, a execução de acções-piloto para efeitos de demonstração, a criação do “guichet
único” para este projectos, as equipas de missão ou projecto polivalentes e a
formação de mediadores qualificados para as questões de arbitragem de interesses. A experimentação, a divulgação e a extensão agro-rurais terão de ser
profundamente reconsideradas e os casos ditos de “sucesso” terão de ser recolhidos com muito critério para evitar deslumbramentos desnecessários. No
mesmo sentido terá de ser repensada a formação inicial e contínua das universidades, provavelmente numa lógica de mais e melhor itinerância e em estreita
conexão com uma rede de acções-piloto de agricultura multifuncional.
A multifuncionalidade territorial assistirá, finalmente, à passagem de
testemunho de dois modelos de política agrícola. Depois da reforma de 2003
todas as reformas da PAC apontam no sentido do desligamento total, embora
faseado, das ajudas à produção. A interrogação que permanece é a seguinte:
será possível manter uma base produtiva alargada, sobretudo em zonas rurais
desfavorecidas, sem o apoio das ajudas ligadas à produção, trocadas, entretanto, por um sistema de ajudas mais regionalizado e destinado à gestão
integrada de estruturas operativas de base territorial?
É muito cedo para responder afirmativamente a esta questão tão pertinente. Porém, a PAC desligada é, também, uma PAC extraordinariamente
conservadora, pois congelou os direitos adquiridos a um nível que ofende a
mais elementar justiça distributiva. Ela continuará, por isso, a ser o ponto de
encontro de todos os conflitos do próximo futuro.
António Covas e Maria das Mercês Covas
167
A desterritorialização é sempre uma reterritorialização
No “mundo plano” (Friedman, 2006), a mobilidade é uma espécie de
imperativo categórico. Isto também quer dizer que uma desterritorialização
é, sempre e algures, uma reterritorialização (Haesbaert, 2006). De acordo
com esta posição, e no quadro do movimento permanente dos territórios
impulsionados pela dinâmica capitalista, estes viveriam “apenas” uma imobilidade relativa, uma espécie de temporalidade diferencial, nada que o paradigma da mobilidade não resolvesse. As crises seriam, portanto, fruto de
uma imobilidade relativa, isto é, de meros ajustamentos diferenciais motivados por mobilidades em transição, em processos contínuos de desterritorialização e reterritorialização.
De acordo com esta posição, a desertificação e o despovoamento dos
concelhos portugueses do interior (os fixos e os lentos) dever-se-iam, pois, à
sua imobilidade relativa, ou, dito de outro modo, tão depressa quanto possível, os “fixos e os lentos” deveriam dar lugar, aos “móveis e rápidos”!
Sempre de acordo com esta posição teórica, tudo seria movimento, logo,
exportável e importável. O “equilíbrio interno” seria obtido por via do turismo, a emigração, o investimento estrangeiro, a exportação e a importação, os
movimentos de capitais, no fundo uma economia cosmopolita em construção
fundada em cidadãos cosmopolitas sempre disponíveis para “viajar” quer
materialmente quer virtualmente.
A questão fulcral é, então, a seguinte: como é que todo este frenesim
do movimento e da mobilidade “se inscreve socialmente nos territórios”,
sabendo nós que para os grupos mais poderosos o território é um recurso instrumental e para os grupos mais vulneráveis é um abrigo, um fim
em si mesmo, mais identitário-simbólico do que funcional-instrumental?
E que fazer dos territórios que se fecham sobre si próprios, que se tornam imóveis por abandono, esquecimento ou falta de projecto comum?
A coesão económica, social e territorial não faz só parte dos tratados
europeus, faz parte, também, do contrato social que fundamenta a biopolítica
do Estado-nação, a sua razão de ser e o lastro da sua identidade mais profunda. Há um nexo de causalidade circular nesta relação triangular do princípio
da coesão e uma quebra acentuada deste nexo de causalidade converte os territórios atingidos em verdadeiros “territórios de reclusão”, se quisermos, em
“territórios-lar da 3.ª idade”. Infelizmente, este movimento de desterritorialização-reterritorialização não está sintonizado nem pode ser programado. Por
outro lado, estes territórios, devido às suas vulnerabilidades estruturais de
longa data (problemas de ordenamento e crescimento) e à dinâmica segrega-
168
Os territórios-rede
cionista e agressiva dos mercados globais, estão permanentemente no banco
de urgência e nos cuidados intensivos da “meso-cirurgia territorial”. Em certa medida, pode dizer-se que a sua desterritorialização se explica pela sua
imobilização, razão pela qual, hoje, um território só resiste à sua imobilização se promover, em primeiro lugar, a sua multiterritorialidade e, em segundo lugar, a territorialização e a mobilização de todos os seus recursos.
Não obstante as dificuldades, não há determinismos irremediáveis.
O modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema.
Talvez esteja na altura de verificar em que medida os nossos velhos conceitos, as nossas grelhas de análise convencionais e os nossos modos de organização e acção estão aptos para lidar com os novos e complexos problemas
que temos pela frente. A escassez de recursos ou os défices de capital não
são apenas um resultado a jusante motivado por projectos e organizações
mal concebidos e executados, são, sobretudo, uma condição e uma restrição
a montante que a “ordem local” teima em conservar. Tudo leva a crer que,
para aumentar a mobilidade dos “recursos escassos” existentes in situ, vai ser
necessário criar alguma desordem local. Os territórios cognitivos, multiterritoriais e multifuncionais, tiram partido desta desordem local porque teimam
em organizar-se como projecto de construção social, a partir da mobilidade e
mobilização de todos os seus recursos, materiais e imateriais, tangíveis e
intangíveis, de preferência sob a forma de um território-rede que restabeleça
as condições mínimas do seu contrato social.
8.2. Os campos de força no mundo rural e os territórios-rede
Na contracapa de A Grande Transição escrevemos:
A Grande Transição é sobre uma nova antropologia cultural do mundo
rural, sobre a formação de comunidades de interesses em busca de laços
comunitários para o sentido da vida, em contacto directo com o chão físico
e biológico. A Grande Transição é sobre a fusão entre os direitos naturais e
os direitos sociais e humanos, o primado do acesso sobre a propriedade e
da economia de serviços sobre a economia da produção. A Grande Transição, finalmente, diz respeito à utilidade social do respeito. Do respeito pela
pessoa da natureza e pela natureza da pessoa humana. De respeito pela
diversidade dos futuros, hoje, e pela diversidade dos presentes, amanhã
(Covas e Covas, 2011).
A nossa tese é a de que a 2.ª ruralidade será o ecossistema de acolhimento dos territórios-rede que ambicionamos construir. Mas o advento da
2.ª ruralidade, que já se anuncia e assinala, está, também, repleto de paradoxos, se não vejamos:
António Covas e Maria das Mercês Covas
169
– Maior agressividade da economia global mas, também, maior resiliência
das economias locais;
– Mais produtos brancos e sem rosto, mas, também, mais produtos denominados e com indicação geográfica;
– Maior mobilidade de produtos, cada vez mais longínquos, mas, também, produtos de maior proximidade;
– Menor sazonalidade da produção mas, também, mais produtos de época
e estação;
– Mais risco alimentar com maior rastreabilidade, mas, também, mais
informalidade;
– Maior volatilidade do investimento em activos mas, também, mais economia verde e conservação de recursos;
– Mais valores de troca mas, também, mais valores de uso, de existência e
de opção;
– Mais soluções tecnológicas disponíveis mas, também, mais segregação
social por via da infoexclusão;
– Mais respeito pelo direito de propriedade mas, também, mais direitos de
acesso e circulação e mais declarações de interesse público;
– Mais conflitos de interesse, maior privatização dos benefícios, mas,
também, maior socialização dos prejuízos;
– Mais ética nos comportamentos, com mais accountability mas, também,
mais free raider e risco moral.
A diversidade dos futuros, hoje, a diversidade dos presentes, amanhã
Como se observa, a 2.ª ruralidade terá um chão muito paradoxal de onde
germinará, esperamos nós, muita liberdade e contingência. É sobre estes paradoxos, e por causa deles, que terá lugar a construção social dos territórios-rede
da 2.ª ruralidade. Com efeito, são eles que, pelo seu paroxismo, permitem aos
diferentes grupos sociais construir diferentes versões do território, a sua multiterritorialidade e territorialidade transcendente. Para dar conta de tal complexidade e contingência é necessário promover e organizar a “diversidade dos futuros hoje”. Só um reforço do capital social por via da cooperação territorial e do
empreendedorismo associativo pode provocar a “desordem local” necessária a
um acréscimo de mobilidade e mobilização dos “recursos escassos”.
Esta associação virtuosa entre “diversidade de futuros hoje”, “recursos
escassos”, “défices de capital”, “desordem local”, “cooperação territorial”,
“actor-rede”, está na origem do que aqui temos repetidamente designado
como a “construção social de um território-rede cognitivo”.
Para montar o estaleiro de construção de um território-rede, a nossa
primeira tarefa é agrupar territórios, de natureza e geometria variáveis, que
170
Os territórios-rede
articularão, de preferência, áreas naturais, áreas urbanas e áreas rurais e uma
combinação de novas centralidades, funcionalidades, racionalidades e personalidades, que podem ser conseguidas a partir de uma associação virtuosa
entre parceiros. Este trabalho de reagrupamento é uma tarefa ingente e não
está garantida à partida, pois a tal desordem local que suscita irá desencadear
muitos anti-recursos e contra-recursos. Estamos a falar de uma associação
territorial potencialmente virtuosa que pode reunir, em dose variável e em
contextos territoriais específicos, por exemplo: empreendimentos turísticos,
grupos empresariais, parques e reservas naturais, comunidades piscatórias,
instituições do ensino superior, centros de investigação, escolas profissionais
agrícolas, associações empresariais e de desenvolvimento local, cooperativas
agrícolas e multissectoriais, autarquias e suas associações, clubes de produtores e de consumidores, superfícies comerciais e suas associações, meios de
comunicação social, etc.
Em segundo lugar, pode e deve perguntar-se: qual é o actor que tem a
legitimidade ou então a notoriedade e o prestígio para “desencadear a desordem local” e que resultados poderá aspirar e obter face aos “campos de força” existentes, isto é, face à “ordem local” dominante? E o seu corolário
lógico, serão os recursos libertados por essa desordem local superiores em
quantidade e qualidade aos anti-recursos e contra-recursos que a mesma
desordem local libertará?
Quer dizer, estamos à procura de líderes e lideranças que nos possam
guiar pelo interior da ordem local estabelecida, à procura de cumplicidades,
lealdades e confiança, e que, ao mesmo tempo, nos digam qual é o tipo de
desordem local que querem provocar a partir de uma lógica cooperativa multiterritorial ou mesmo extraterritorial. Sabemos, de antemão, que o mesmo
território é apropriado por vários grupos sociais de maneira diferente, com
diferentes grelhas de leitura e congregando poderes muito diferenciados.
Sabemos que os territórios, recursos, actividades ou tecnologias são construções sociais e relações sociais atravessadas pela lógica do poder dominante.
Sabemos que os anti-recursos e os contra-recursos estão na expectativa à
espreita de oportunidade e sabemos, ainda, que temos hoje a possibilidade de
combinar de forma inédita a intervenção e a coexistência de uma gama
enorme de diferentes territórios.
Em terceiro lugar, sabemos, também, que nas sociedades actuais o território-rede não escapa ao controlo de mobilidade, dos fluxos e das conexões das
redes, com tudo o que isso implica de exposição, vulnerabilidade e anonimato
irresponsável. Quer dizer, o território-rede, se não for uma construção sólida, é
António Covas e Maria das Mercês Covas
171
um alvo fácil a abater. Ou, dito de outro modo, a construção social de um território-rede é uma operação de risco elevado, com um risco moral muito alto e
uma taxa de free raider também significativa, razão pela qual os seus prós e
contras devem ser, em devido tempo, seriamente ponderados.
No caso português, o “défice de sociedade civil” na configuração dos
territórios teve como consequência um excesso de municipalização e política
partidária, por um lado, e a omnipresença da política administrativa e financeira do Estado, por outro. Hoje, esta omnipresença reduz substancialmente
o campo de possibilidades à nossa disposição, uma vez que encurta e regula
o sistema de acessos e condicionalidades ao poder dominante. O campo de
forças (Bourdieu, 2012, 2013) ou as relações de poder no mundo rural e a
formação dos territórios-rede estão, portanto, intimamente relacionadas.
Os campos de forças no âmbito de distintos processos de ruralização
Já o dissemos antes, estão em curso distintos processos de ruralização
que são, cada um a seu modo, outros tantos processos de privatização do
espaço público rural e, portanto, fonte de muitos e novos conflitos de interesse. Eis os principais: o rentismo imobiliário, o esverdeamento ou ambientalização da produção, a florestação de terrenos agrícolas, a conservação de
recursos naturais, a residencialização do espaço agrorural, a energetização
dos recursos renováveis em espaço agrorural, a turistificação das amenidades
agro-rurais, a reagrarização luso-espanhola, a cinegetização dos recursos
agro-florestais, a terciarização agrorural.
Não podemos idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam
as nossas representações e encenações. Na retaguarda desses imaginários
urbanos sobre o mundo rural correm as relações de poder e os processos
agro-políticos que, na sua discrição e arbitrariedade, determinam o essencial
das relações sociais e as sociabilidades do mundo rural. Por isso mesmo, não
devemos confundir o frenesim dos novos actores do mundo rural (para já
simples epifenómenos) com as relações de poder no interior do mundo rural
português, uma mistura, por vezes perversa, de abandono, concentração e
intensificação das terras. Eis as suas principais manifestações: a extracção de
mais-valias fundiárias em terrenos expectantes, as grandes plantações ou florestas industriais em terrenos que estão praticamente abandonados, as grandes propriedades conservacionistas financiadas pelas multinacionais da conservação da natureza, as grandes propriedades turistificadas mas, também, os
grandes parques energéticos, os grandes parques ambientais e as grandes
reservas de caça. Para além, obviamente, da indústria agrícola intensiva e
172
Os territórios-rede
superintensiva que ocorre, sobretudo, na área de influência dos grandes
aproveitamentos hidroagrícolas.
Como é óbvio, os novos valores relativos ao ordenamento, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agrorural conflituam com a tentativa de
privatização de alguns processos de ruralização em curso. Os conflitos são
inevitáveis mas deles também surgem novos territórios, “novos intrusos” e
novas relações de poder que podemos observar, por exemplo, no latifúndio
tradicional que é convertido em grupo empresarial, na propriedade fundiária
que dá lugar a um condomínio de residências secundárias, na caça associativa que é convertida em coutada de caça turística, nos novos contratos de
arrendamento energético onde domina o aerogerador ou o espelho solar, nas
pequenas propriedades arrendadas aos grandes projectos de pomar, olival e
vinha, intensivos e superintensivos, em que os capitais nacionais aparecem
consociados com capitais estrangeiros.
Em resumo, os campos de força do mundo rural terão a sua origem nas
ondas de choque que se formarão, quase inevitavelmente, entre duas concepções ou ideologias do mundo rural: como espaço de produção e espaço de
apropriação privada e como espaço de consumo ou espaço público de visitação e lazer. Mas muitas outras representações do espaço rural verão a luz do
dia e estarão na origem de projectos inovadores, plenos de futuro, que nós
sem sequer imaginamos nesta altura.
O frenesim neo-rural e rurbano
O mundo rural é, hoje, um jogo de sombras e uma encruzilhada onde se
cruzam percepções e representações de mundos trocados. As representações
giram em redor de polaridades que foram sendo construídas ao longo das
últimas décadas. Sobre os territórios em redor do binómio rural-urbano,
sobre os sistemas de produção em redor da dualidade agricultura convencional-agricultura não convencional, sobre os valores em redor da dualidade
valores de troca-valores de existência. Cada uma destas representações cria a
sua própria verdade, mas, também, muitas ideias simplistas, imagens desfocadas e equívocos sobre o mundo rural. Por outro lado, estas representações
alimentam a produção de uma nova ruralidade e são estas mesmas representações, práticas e teóricas, que criam as novas procuras e os mercados emergentes que atravessam em todas as direcções o espaço rural.
Esta transmutação, feita maioritariamente pelos agentes citadinos, significa, umas vezes, verdadeira modernização agrária, outras vezes turistificação vinícola, oleícola ou cinegética, outras vezes, ainda, simples elemento
decorativo para happenings cosmopolitas. Todos os dias os meios de comunicação social nos fazem chegar estas incursões urbanas em meio rural,
António Covas e Maria das Mercês Covas
173
como casos de sucesso fulgurante, devidamente acompanhados de elementos
publicitários que visam passar a imagem da moda. Lá está a moda neo-rural
e os seus três pivots, o verde, o eco e o bio, a que se acrescenta a economia
agro-residencial, que transformam as áreas rurais em zonas privilegiadas por
onde passam todos os equívocos do mundo rural.
O rurbanus está, para já, no início da sua própria construção, a fazer a
aprendizagem dos “limites”; é, portanto, um homem itinerante, pendular,
“experienciando” momentos especiais, mas, também, cada vez mais dedicado, experimentado e conhecedor dos segredos do mundo natural-rural,
cujas fronteiras deseja alargar (Covas e Covas, 2011: 143).
Os actores do mundo rural, no próximo futuro, serão muito diversificados
nas suas vocações e competências. Do mesmo modo, são muito diversos os
pretextos para as suas “incursões” ao mundo rural. A principal característica
destes novos actores é, portanto, a sua mobilidade e pendularidade, isto é, eles
são “incursionistas” do mundo rural em momentos diversos do seu ciclo de
vida. São eles que transformam o paradigma do mundo rural, de espaço produtor para espaço produzido, por via das suas inúmeras representações e encenações do mundo rural. Ou seja, serão eles que “instalarão a desordem” num universo geralmente conservador e tradicionalista. Eis alguns exemplos dessa
“desordem em construção” (Covas e Covas, 2011: 144-145):
– Os movimentos pendulares em redor de uma 2.ª residência, para aqueles
para quem o campo é um território de recordações, nostalgia mas, também, de recomeços;
– Os movimentos pendulares no quadro da chamada agricultura periurbana, em redor de uma pequena propriedade ou exploração agrícola e no
quadro dos mercados locais de proximidade;
– Os ecologistas militantes impulsionados pela sua ideologia verde, para
quem o campo é um campo privilegiado para o combate em nome de
grandes causas;
– Os desportistas radicais e os “excursionistas” da natureza, para quem o
campo é uma “experienciação” inesquecível da prática desportiva e da
visitação da natureza;
– Os caçadores reservistas, para quem o campo é uma oportunidade de
revisitação permanente e regular, além de ser uma fonte de rendimento
importante para os empreendimentos cinegéticos;
– Os paisagistas e conservacionistas, para quem o campo é um quadro
pictórico e um mosaico ecossistémico que pode encerrar muitos projectos com interesse;
174
Os territórios-rede
– Os agricultores biológicos e os produtores alternativos, para quem o
campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica e a oportunidade
de construir um sistema alimentar local que respeite os recursos escassos da terra-mãe;
– Os patrimonialistas populares ligados à história local e a uma certa eco-antropologia das culturas locais, para quem o campo é um repositório
de histórias, mistérios e muitas festividades;
– Os novos investidores nos mercados do carbono, para quem o campo é
um depósito e um sumidouro precioso para o sequestro de carbono;
– Os consumidores funcionalistas e o soft food, em redor de novos movimentos gastronómicos, para quem o campo é um repositório de dietas e
mezinhas e uma fonte inesgotável de novas ideias e projectos culinários;
– Os arquitectos da sustentabilidade e da bio-regulação climática, ligados
ao aproveitamento das energias renováveis e à certificação energética,
para quem o campo é uma fonte inesgotável de materiais e fontes de
bioregulação;
– Os agricultores organizados em hortas sociais e comunitárias e o institutional food, um movimento que cresce junto da população sénior, para quem
o campo é um campo de solidariedade para com os mais desprotegidos;
– Os empreendedores pós-convencionais de produtos com indicação geográfica de proveniência em certos nichos de mercado, para quem o
campo é uma fonte inesgotável de produtos com história e identidade;
– Os empreendedores dos vários modos de turismo em espaço rural, para
quem o campo é um imenso repositório de amenidades e momentos de
recreio e lazer, assim como de boas oportunidades de negócio;
– Os empreendedores de ocasião atrás de uma oportunidade agro-comercial de curto prazo, em campanhas agrícolas sazonais, para quem o
campo é essencialmente um negócio de ocasião com retorno rápido;
– Os jovens empreendedores, finalmente, atrás de uma primeira instalação
profissional, para quem o campo é uma oportunidade para iniciar uma
actividade empresarial e, também, a sucessão geracional.
Como se observa por estas múltiplas referências a “desordem está instalada”; acrescente-se que nenhuma destas referências faz parte do mainstream
do “sector dito primário”, em redor do qual ainda hoje se organiza o campo
de forças produtivista do mundo rural. Logo, um longo caminho e muitos
episódios à nossa frente que farão a história futura da 2.ª ruralidade.
António Covas e Maria das Mercês Covas
175
Um novo campo de forças ou uma middle level approach ao território
Os territórios-rede, enquanto unidades operativas de gestão territorial,
são uma abordagem intermédia para a construção social de meso-territórios.
Eles estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vectores estruturantes, a saber, a agricultura biotecnológica, a agroecologia e a biodiversidade, os ecossistemas e as paisagens globais. Do mesmo modo, os territórios-rede serão construídos na encruzilhada dos grandes mercados emergentes
do futuro que não deixarão de moldar e configurar o mundo rural do século
XXI. Estamos em condições de enunciar aqueles que serão, seguramente, os
principais mercados de futuro do mundo agrorural das próximas gerações:
– Os mercados de commodities ligados aos grandes operadores e ao agro-business internacional que usa o espaço nacional como plataforma
giratória para os seus interesses financeiros de ocasião;
– Os mercados dos produtos agroecológicos: dos produtos limpos aos
produtos justos, das tecnologias doces e intermédias às produções conjuntas e aos serviços ambientais;
– Os mercados do carbono: as transacções entre quem limpa e quem suja,
os futuros sumidouros e o papel dos fundos de investimento no “sequestro carbónico” do mundo rural;
– Os mercados da água: da água da chuva à água da rede, as novas empresas e os negócios da água, mas, também, as actividades e os negócios
dos 3R das águas residuais;
– Os mercados da biodiversidade e da provisão dos serviços ecossistémicos: os novos negócios, as novas empresas e os bens de mérito por
excelência, socializados, com gosto, por todos nós, os contribuintes;
– Os mercados das amenidades, da arquitectura paisagística à engenharia
biofísica: do ordenamento da paisagem global às unidades de paisagem
e à gestão de áreas de paisagem protegida, como recursos de primeira
linha para a produção de amenidades recreativas e turísticas;
– Os mercados dos 3R: reduzir, reciclar e reutilizar, está em causa a construção social de uma verdadeira economia verde, uma indústria fundamental de produção e consumo responsáveis;
– Os mercados dos produtos com denominação de origem: estes são os
nossos “produtos glocais”, aqueles que importa valorizar a todo o custo
porque põem no mapa os nossos territórios mais remotos;
– Os mercados do institutional food não-convencional: um futuro mais
saudável está claramente ao nosso alcance, para isso é necessário cons-
176
–
–
–
–
Os territórios-rede
truir uma relação social entre uma rede de agricultura de alimentos limpos e uma rede solidária de institutional food;
Os mercados da mitigação, adaptação e compensação e, também, da
prevenção e contingência: um mercado que cresce em virtude das alterações climáticas, da meteorologia, dos equipamentos de aviso e alerta
até aos processos laboratoriais de rastreabilidade dos produtos;
Os mercados dos alimentos e dos medicamentos funcionais: os novos
alimentos e medicamentos da biotecnologia ao serviço da saúde pública
e da sociedade sénior;
Os mercados da microgeração energética: os novos sistemas integrados
de poupança, eficiência e diversificação das fontes energéticas e, também, a democracia energética ao nosso alcance, de consumidores para
produtores de energia;
Os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos naturais
e dos ecossistemas: da engenharia biofísica e da arquitectura paisagística até à cirurgia reconstrutiva das áreas ardidas.
Para todos estes mercados de futuro, os territórios-rede e os actores-rede
estão em condições de propiciar um middle level approach de intervenção e
planeamento e nessa medida muito bem-estar para as populações que habitam e vivem esses territórios. É esta abordagem intermédia de natureza territorial e multifuncional que trará a diversidade de futuros hoje e a diversidade
de presentes amanhã aos nossos territórios mais deprimidos. Para tanto, há
um campo imenso de possibilidades de investimento que não apenas respondem às exigências do tempo presente, no que diz respeito ao modelo dominante de agro-business como legitimam, amanhã, o novo contrato social
entre a agricultura e as sociedades da modernidade tardia. Muitos destes
investimentos não terão promotores individuais porque não se enquadram
nesse padrão. Em vez disso, enquadram-se perfeitamente na filosofia e na
política dos territórios-rede. Os “investimentos middle level approach” estarão, sobretudo, nas áreas do ordenamento do território, da energia, dos ecossistemas, da produção agroecológica e na grande área da economia verde em
tudo o que diga respeito à política dos 3R.
No contexto de uma middle level approach territorial a mudança mais
importante que desejamos, em direcção a uma multifuncionalidade intensiva
em conhecimento, é aquela que opera a conversão do “sistema de produtos
em os produtos do sistema”, isto é, aquela que faz convergir os mercados
emergentes, em toda a sua extensão, para plataformas territorializadas e/ou
sistemas integrados de produtos. Mais uma vez, só no âmbito de um territó-
António Covas e Maria das Mercês Covas
177
rio-rede é possível materializar esta convergência necessária entre “investimentos de construção de um sistema denominado” e “investimentos de construção de um cabaz de produtos” que, sob apelação de origem ou denominação própria, seja o emblema do território-rede.
Uma estratificação social emergente
O desenvolvimento rural ou a “desordem do desenvolvimento rural”
ocorre em várias versões, variáveis segundos os concelhos, mas que nós
podemos estratificar territorialmente do seguinte modo:
– Uma versão determinista, de abandono progressivo e “morte anunciada”, que conduz inelutavelmente ao envelhecimento e à desertificação:
o rural enquistado, remoto ou profundo, digamos, territórios de enclave
ou reclusão;
– Uma versão localista, resiliente, ligada à economia informal dos concelhos, variável com a estrutura fundiária e ligada à promoção das actividades dos municípios e ao seu ritual de mercados locais, feiras e festividades: o rural de subsistência e informal;
– Uma versão pluriactiva, ligada ao trânsito das gerações e à gestão do
ciclo de vida familiar, uma mistura de reformados com activos, com o
regresso à actividade agrícola junto do local de residência e ao comércio
de proximidade: o micro-rural difuso de pluriactividade e plurirrendimento;
– Uma versão empresarial de capitalismo familiar, em sectores tradicionais, modernizados e rentáveis em subsectores especializados e com
mercados em expansão (ex.: vinho, azeite, hortofrutícolas, flores, etc.):
o agrorural de capitalismo doméstico e familiar;
– Uma versão capitalista intensiva, ligada a grupos empresariais e a capital estrangeiro, de culturas superintensivas, tendo em vista a exportação
e rendimentos com retornos rápidos (a floresta, o azeite, as culturas
industriais): o agrorural cosmopolita e superintensivo;
– Uma versão ambientalista e conservacionista, ligada à política e ao
direito do ordenamento e do ambiente em sentido largo, mais ou menos
institucionalizada e com ligações a organizações multinacionais do
ambiente: o rural ambientalista e conservacionista.
Estas várias versões ilustram a diversidade e autonomia dos actores no
terreno. É isto o “construtivismo agrorural”, porventura em “ordem desordenada”. Dito isto, a estratificação social que se indica é o resultado de uma
178
Os territórios-rede
observação descomprometida e vale mais pelo significado dos sinais observados do que pela sua representatividade sociológica. As observações foram
por nós recolhidas durante o trabalho de campo feito para o estudo Retratos
portugueses de agricultura multifuncional (Covas e Covas, 2009) e já posteriormente confirmadas por outras visitas de campo:
– Um primeiro estrato diz respeito à grande propriedade e às “quintas
novas” que aparecem associadas aos empreendimentos”complexo”,
ligados ao golfe, ao enoturismo, ao turismo cinegético e às diversas
formas de turismo de saúde, portanto mais turistificados, internacionalizados e “financeirizados”;
– Um segundo estrato diz respeito à classe empresarial da agricultura
convencional ligada à agro-indústria, à distribuição agro-alimentar e ao
agro-negócio dos mercados internacionais que está em ajustamento
permanente aos mercados globais e às condições gerais de financiamento; este ajustamento permanente está na origem de bastantes processos
de reestruturação, concentração e fusão destas empresas motivados por
operações de saneamento financeiro e aumento de capital;
– Um terceiro estrato diz respeito à classe dos pequenos e médios agricultores, proprietários e arrendatários, que vão desde a agricultura de subsistência, presente nos mercados locais de proximidade, até uma agricultura de subcontratação junto de cooperativas, intermediários e
centrais de compra de grandes superfícies, quase sempre atravessando
graves problemas de liquidez e solvência, uma boa parte da qual faz o
trânsito ida e volta que vai da economia formal à economia informal;
– Um quarto estrato tem a ver com uma parte da classe média urbana que
decidiu, num primeiro momento, patrimonializar a herança recebida na
velha casa dos pais-avós “onde tudo começou”; estes neo-rurais aumentam o número de movimentos pendulares cidade-campo e interagem
cada vez mais com a comunidade da aldeia, uns residencializando simplesmente a casa que herdaram, outros empresarializando aquele património com microprojectos empresariais, outros, ainda, ensaiando, pela
primeira vez, sistemas alternativos de produção;
– Um quinto estrato diz respeito a estratégias de emergência ou urgência,
aos casos de regresso forçado às pequenas propriedades dos pais-avós,
feito por desempregados jovens e desempregados de longa duração,
umas vezes sob a forma de “primeira instalação” nos casos “mais pro-
António Covas e Maria das Mercês Covas
179
fissionalizados”, outras vezes em estratégias de mera subsistência, temporárias e em trânsito para a emigração;
– Um sexto e último estrato diz respeito aos casos isolados e/ou familiares, de decisão própria e autónoma, que fazem dessa mudança um projecto de vida, muitas vezes em áreas que nada têm a ver com o mundo
agrorural mas que, rapidamente, acabam por intersectar e interagir com
ele e são geralmente portadores de uma dose significativa de iniciativa,
inovação e criatividade.
Não temos evidência empírica suficiente para traçar com nitidez a relevância, o alcance e os contornos teórico-práticos da estratificação que acabámos de traçar. Não obstante, são sinais que anotámos, por observação
directa, em alguns trabalhos de campo mais recentes. Estamos, de resto, convencidos de que estes sinais, visíveis a olho nu, mereceriam melhor atenção
e estudo cuidado por parte da academia, uma vez que eles farão parte do
nosso quotidiano, de modo crescente, e mais valia tomar conta dessa ocorrência de forma rigorosa e intencional para o bem-estar de todos.
8.3. Uma teoria do actor-rede para uma governança dedicada
Como já dissemos, na transição dos territórios-zona para os territórios-rede passamos do modo governing (hierarquia) para o modo governance
(heterarquia). Nesta transição falta-nos, ainda, uma teoria-prática do actor-rede e da sua interacção social para fazer bem a aprendizagem da cooperação entre parceiros que mal se conhecem.
Recordemos os três pilares sobre os quais assenta a política de transição
para uma governança territorial. Em primeiro lugar, a cooperatividade ou centralidade da cooperação como acto criativo de capital social comum aos parceiros, em segundo lugar a produção de internalidades como acto de redução e
racionalização dos custos de informação e transacção entre parceiros, em terceiro lugar, a coopetitividade como acto de criação de bens e serviços de mérito e reputação do território-rede em construção, por último, a institucionalidade dedicada que só a constituição de um actor-rede pode assegurar.
Um actor-rede para um território-rede
Vivemos na sociedade da informação e do conhecimento. Neste género
de sociedade só sobrevivem os subsistemas, os sectores e os actores que
estão dispostos a aprender e são capazes de aprender. A política, mas tam-
180
Os territórios-rede
bém a ciência, a economia, as artes e a comunicação social, por exemplo,
não estão desobrigadas da necessidade de aprender. O que mais impressiona
é verificar como todos estes subsistemas, sectores e actores, quantas vezes
sobrepostos no mesmo território, desperdiçam as oportunidades de aprender
e criar capital social regenerador, ignorando vizinhos e parceiros que verdadeiramente nunca chegaram a ser. De facto, se os parceiros que integram as
configurações territoriais que nos propomos construir teimarem em ser auto-referenciais, abdicando de se protegerem de si próprios e do seu interesse
egoísta, está criado um equívoco monumental e, em breve, não surpreenderá
que o território-zona regresse vitoriosamente para impor ordem no sistema
territorial.
As configurações territoriais e os territórios-rede, tal como nós os imaginamos aqui, são, antes de mais, “produções civilistas”, de cariz social,
societal, cooperativo, mutualista ou comunitário, mais do que territórios institucionais, públicos e institucionalizados ou burocrático-administrativos, o
que não invalida a cooperação necessária entre parceiros públicos e privados.
Essas “produções civilistas” são verdadeiras “comunidades políticas” produtoras de capital social (confiança, respeito, entreajuda, conhecimento, futuro)
para lá da política convencional e, nessa medida, necessitam de muita “instigação política” para atingirem um alto grau de reflexão interna. Esta “instigação política” não é fácil de obter na fase de transição e liberta muitos anti-recursos e contra-recursos.
O futuro território-rede tem um horizonte largo de expectativas positivas à sua frente e este é o seu principal trunfo, todavia, ao libertar anti-recursos e contra-recursos faz também apelo à necessidade de reforçar o sistema de negociação interna e respectivos procedimentos de resolução de
conflitos de interesses. Com efeito, se cada parceiro carregar para a acção
comum e colectiva as posições fixas do seu estatuto e condição como se fosse um mero delegado mandatado pela sua corporação, então, a violência
simbólica, a que já antes nos referimos, será de tal ordem que bloqueará os
progressos já realizados e nada de relevante acontecerá para o território-rede
em formação. É, mais uma vez, o reino vitorioso dos anti-recursos e dos contra-recursos.
Sabemos hoje, por via da sociologia do conhecimento e dos contributos
das teorias construtivistas do conhecimento, que não podemos ver o que não
sabemos. O nosso dilema, portanto, neste momento de emergência, é saber
como produzir o conhecimento e o capital social onde antes havia um verdadeiro diálogo de surdos, pois a omnipresença da política hierárquica, arrogante e auto-referencial “segregou e secou” as múltiplas formas de conhecimento formal e informal que circulavam na sua órbita e que foram
progressivamente empurradas para o limbo da “sociedade oficial” onde hoje
António Covas e Maria das Mercês Covas
181
proliferam e vegetam sem esperança, arrastando consigo outros tantos territórios sem futuro.
Sabemos, finalmente, que a produção dos territórios-rede, na sua enorme variedade, implica a passagem da governação pública para a governação
civil ou, ainda, a transição da regulação pública para a hétero-regulação e
desta para a auto-regulação que é, afinal, a obrigação de os actores se autolimitarem na sua acção e nos seus interesses, substituindo a regulação externa pela regulação própria. Isto só é possível se o território-rede reunir as
condições para criar uma “institucionalidade ou administração dedicada”
capaz de produzir várias visões de futuro através de sucessivas “ficções de
consenso” que alimentem permanentemente a comunicação consensual em
redor de um ideário de prosperidade cooperativa para todos.
Como dissemos, cada configuração territorial, sob a forma de um território-rede em formação, terá de criar uma racionalidade operativa apropriada
e adaptada aos seus diversos territórios de origem. Numa fase de pré-projecto, que se recomenda que tenha uma duração apropriada de seis a
nove meses, essa racionalidade operativa pode assumir a forma de uma
comissão instaladora dos parceiros, cuja missão principal é delimitar o território de partida e esboçar os traços essenciais do que será a estratégia de
intervenção ou o bem comum desse território.
Todavia, o território-rede não é um simples “território em rede”, logo, é
recomendável que se constitua uma “administração dedicada e permanente”
sob a forma organizacional de um actor-rede. Na fase de projecto propriamente dita este actor-rede é uma “estrutura de missão ou projecto”, servida
por uma “administração dedicada e permanente”, pois só há competência se
houver permanência, ao serviço de um projecto comum, de preferência com
vários cenários de futuro à sua frente. É, também, um actor intuitivo e quase
meta-territorial no sentido em que é dotado de um “discurso paradoxal”
sobre o território em construção e muito em especial sobre a natureza da sua
multiterritorialidade. Por mais surpreendente que possa parecer, a coesão do
grupo é mantida pela reflexão prospectiva e pela renovação permanente desses cenários de futuro. O actor-rede é, assim, o representante do futuro próximo no presente actual e, nessa medida, ele é o mediador, por excelência,
das actividades criativas e culturais que são portadoras de ilusão e de imaginário mas que são o alimento do espírito do novo território.
Em síntese, para ser este mentor intuitivo e reflexivo do território-rede,
o actor-rede precisa, em primeiro lugar, de alimentar um ethos cooperativo
genuíno, não apenas no procedimento mas, também, na substância do que se
deve entender por um “bem comum”. Precisa, em segundo lugar, de uma
182
Os territórios-rede
inteligência territorial, material e imaterial, dotada de modéstia construtivista
na formação do valor acrescentado multiterritorial. Em terceiro lugar, precisa
de uma teoria do agir comunicacional (Habermas, 1986 e 1994) sob a forma
de um arranjo comunicativo local e de uma retórica discursiva que tornem o
actor-rede capaz de produzir sucessivas “ficções de consenso” sobre outros
tantos conflitos de interesse que germinarão no interior do território-rede em
construção. Por último, o actor-rede é o agente-principal de um novo espaço
público criativo que se confundirá com a própria multiterritorialidade, qual
caldo de cultura de onde emergirá a putativa identidade-rede de uma configuração territorial que, tendo começado por ser um território inorgânico
ambicionará, algum dia, ser um território-rede dotado de um mínimo de
organicidade, consistência e espessura territoriais.
Os elementos para uma teoria do actor-rede (TAR)
Dito isto, estamos em condições de delimitar a natureza e os atributos
do que deve ser uma nova inteligência territorial, interpretada e realizada por
uma organização-rede cujo objecto é a construção social de um território-rede. Trata-se, em primeira instância, de projectar um novo bem comum que
supere os interesses particulares dos parceiros envolvidos e, em segundo
lugar, se possível, de transformar esse “bem comum particular” num “novo
espaço público alargado” a outros segmentos de público.
Todas estas considerações pressupõem uma extraordinária ampliação do
que terá de ser considerado espaço público e/ou bem comum. Não ignoramos
a dificuldade da tarefa de configurar espaços comuns, em particular a dificuldade de traçar limites e de, com base neles, organizar uma estratégia. No
melhor dos casos, temos de saber que todos os limites são variáveis, plurais e
contextuais. A consequência imediata é que em qualquer actividade o interior e o exterior se misturam continuamente, isto é, que a desconstrução e a
reconstrução são as faces da mesma moeda. Ora, a política é, por natureza, o
governo dos limites. Isto também quer dizer que aumenta o número de problemas que só pode ser resolvido cooperativamente. Esta é a missão do território-rede. A política terá de problematizar adequadamente a distinção entre
“o dentro e o fora” e entre “nós e eles”, conceitos que são inadequados para
governar espaços des-limitados. Há, em vez disso, um espaço que se desenvolve em todas as direcções e, nessa medida, “espaço comum particular” e
“espaço público novo” podem ser devidamente articulados com benefício
mútuo.
É preciso, pois, politizar esta reticulação entre “espaço comum particular” e “espaço público inteligente” e cumprir esta dupla condição está na origem do território-rede que queremos construir. Para este território-rede é
António Covas e Maria das Mercês Covas
183
preciso criar o actor-rede correspondente, uma organização inovadora e um
espaço de acção, coordenação e responsabilidade comuns. Vejamos alguns
dos seus atributos.
1) O actor-rede é uma organização dotada de pensamento e inteligência
territorial que é capaz de produzir uma auto-referenciação suficiente
para criar um mínimo de “ordem local” no território-rede em formação;
nessa exacta medida, patrocina a cultura política do bem comum e do
espaço público, o envolvimento policontextual e a interacção comunicativa dos parceiros;
2) O actor-rede é uma organização contra-intuitiva que perscruta o futuro
antecipando-o constantemente, uma vez que o futuro já não é o que costumava ser; nessa exacta medida, lida tanto com “a realidade” como
com a parte mais invisível e contingente da realidade;
3) O actor-rede é uma organização que cultiva a modéstia organizacional e
que constrói uma identidade precária em redor de pequenas melhorias
sectoriais, provisórias e contingentes; nessa exacta medida, os actores
do território-rede em formação “movimentam-se entre a estrutura e a
finalidade no interior de uma teia de processos e procedimentos”;
4) O actor-rede é uma organização que atribui mais importância à performatividade dos procedimentos do que à normatividade da sua própria
legitimação; nessa exacta medida, é a construção laboriosa de uma esfera deliberativa dos interesses que cultiva o consenso como horizonte e o
dissenso como processo, sempre em busca de um compromisso mesmo
que provisório e contingente;
5) O actor-rede é uma organização que se distingue pelo modo como lida
com a marginalidade e a exclusão; nessa exacta medida, é uma organização inclusiva, em especial na forma como coopera com os anti-recursos e contra-recursos;
6) O actor-rede é uma a organização que deve a sua sobrevivência à sua
capacidade cognitiva e reflexiva permanente; nessa exacta medida, é
uma “comunidade política de autogoverno” que mantém uma gramática
sempre actualizada do bem comum e da acção colectiva;
7) O actor-rede é uma organização que precisa urgentemente de um “sistema produtivo local” para a sua identificação e auto-referenciação; nessa exacta medida, o actor-rede está obrigado a operar a conversão entre
184
Os territórios-rede
“o sistema de produtos” e “os produtos do sistema”, aqui representados
por bens de mérito e reputação que são a ponte entre o espaço comum e
o espaço público;
8) O actor-rede é uma organização que privilegia a “produção conjunta de
bens de mérito e reputação”; nessa exacta medida, se for capaz de articular espaço comum particular e espaço público teremos um território-rede que oferecerá uma provisão diversificada de bens mercantis, de
bens ambientais e ecossistémicos, de bens sociais e culturais e de bens
de lazer e turismo num espaço-território muito mais estruturado do que
temos hoje;
9) O actor-rede é uma organização que precisa de uma liderança muito forte e de uma administração dedicada para poder revelar todo o seu “produto potencial” e tanto mais quanto ela tende constantemente para o
impasse e a entropia; nessa exacta medida, a organização está obrigada
à produção continuada de uma “ficção de consensos” que só uma inteligência territorial muito fértil e uma liderança muito marcada estão em
condições de proporcionar;
10) O actor-rede é uma organização que, em síntese teórica, apresenta as
seguintes traves-mestras: uma comunidade política de interesses, um
projecto de vida em comum, uma acção colectiva inovadora, uma rede
cooperativa, uma estrutura de missão, uma institucionalidade dedicada,
uma liderança muito marcada.
De acordo com estes atributos, o actor-rede está dotado de uma inteligência territorial útil para mobilizar os “conhecimentos tácitos” do território-rede, o que só por si já é uma tarefa de grande monta, mas, sobretudo, está
obrigado a criar “ficções de consenso”, como se fosse o actor principal de
uma representação ficcional, de uma espécie de encenação territorial. Esta
inteligência territorial manifesta-se, sobretudo, na forma como a criação de
“um espaço comum particular”, como espaço de produção de bens de mérito
e reputação, pode ser convertida no palco de “um novo espaço público”
como espaço de consumo, recreação e lazer. Onde antes só havia um espaço
comum mas privado passaria a haver, agora, também, um espaço público de
visitação e conhecimento, ou seja, um verdadeiro território cognitivo. Se
quisermos, adoptando um outro registo, estamos a falar do actor-rede como
um actor pós-moderno da multiterritorialidade cuja função principal é, justamente, a construção social dos futuros territórios-rede.
António Covas e Maria das Mercês Covas
185
9. A construção social de um território-rede para a Dieta Mediterrânica
Neste capítulo vamos abordar três tópicos principais, a propósito de
uma nova realidade que se anuncia e que, por isso mesmo, precisa de ser
urgentemente enunciada. Falamos da Dieta Mediterrânica, recentemente proclamada, património imaterial da humanidade pela UNESCO, uma candidatura transnacional de sete países liderada pela cidade algarvia de Tavira. A
aprovação recente desta candidatura em Dezembro de 2013 é uma excelente
ocasião para provar a pertinência da construção social de um território-rede
que seja a retaguarda e o suporte territorial desta prestigiada apelação internacional e que funcione como um laboratório de ensaio de muitas especificações contidas nesta denominação territorial.
No primeiro tópico passamos em revista uma experiência recente de
microgeoeconomia territorial, a saber, o Projecto Querença e algumas das
suas réplicas recentes levadas à prática em vários pontos do país, para dela
extrair alguns ensinamentos úteis à construção social dos territórios-rede. No
segundo tópico discutimos a relevância da apelação UNESCO como distinção de prestígio de um território em concreto e o alcance das obrigações que
daí decorrem, para perceber, afinal, se há suficiente embeddedeness e se, a
partir dele, podemos construir um território-rede com origem numa “declaração de património imaterial da humanidade”. No terceiro tópico procuraremos ensaiar aquilo que, em primeira instância, será a delimitação de um território experimental para testar a Dieta Mediterrânica na região do Algarve e
as implicações que tal ensaio terá para a “ordem local” da região abrangida.
9.1. A microgeoeconomia territorial, o Projecto Querença e as suas
réplicas.
O Projecto Querença (2011-2012) foi um projecto de microgeoeconomia territorial, uma experiência-piloto de animação e intervenção sociocomunitária, focada numa aldeia em concreto, que usou uma metodologia
adaptada de investigação-acção para impulsionar e despertar a inteligência
territorial de um espaço rural em concreto, a saber, uma aldeia localizada no
denominado barrocal algarvio e no sopé da serra algarvia. Querença é uma
aldeia do concelho de Loulé em acelerado processo de envelhecimento,
situada na meia-serra algarvia, mas, não obstante, muito próxima da sede do
concelho e muito próximo, igualmente, dos maiores centros turísticos do
Algarve situados no concelho, como são Vale do Lobo, Quinta do Lago e
Vilamoura. Apesar do envelhecimento e da entropia geral de que padece a
186
Os territórios-rede
freguesia de Querença, não podemos dizer que se trata de um território
remoto ou de uma economia enquistada ou de enclave.
No plano teórico, o Projecto Querença é uma abordagem à microgeoeconomia de um território, uma missão de resgate de um território em risco
em áreas rurais de baixa densidade, dirigido a uma aldeia ou grupo de aldeias
ou mesmo de municípios. O Projecto visa promover o empreendedorismo de
jovens licenciados em situação profissional precária e, para o efeito, cria
uma estrutura de missão residente e uma institucionalidade dedicada. A
estrutura de missão residente e a administração dedicada configuram, em
conjunto, uma pequena incubadora em meio rural ao redor da qual se desenvolverá toda a dinâmica de grupo e de onde germinará o capital social de
que o projecto necessita.
A experiência do Projecto Querença decorreu durante nove meses entre
2011 e 2012 e contou com um apoio financeiro do IEFP, sob a forma de uma
bolsa de estágio para os membros estagiários do grupo de missão residente.
Entretanto, devido ao interesse que despertou, o Projecto Querença teve
várias réplicas no território português: em Geraz do Lima (4 freguesias no
concelho de Viana do Castelo), as Aldeias Ribeirinhas do Alqueva (5 freguesias em redor da albufeira do Alqueva), o Projecto Alcoutim (no concelho de Alcoutim), o Projecto Sabrosa (no concelho de Sabrosa), o Projecto
Barril (no concelho de Tavira), o Projecto Ourique Mais (no concelho de
Ourique), o Projecto Vipasca21 (no concelho de Aljustrel). Outras iniciativas
estão agora em fase de pré-projecto.
1) A apresentação geral do Projecto Querença
O Projecto Querença é um projecto/missão de resgate territorial de territórios em estado crítico, gravemente atingidos por processos de desertificação e abandono dos seus activos (naturais, produtivos, sociais e simbólicos),
cada vez mais próximos de limiares-limite de irreversibilidade de processos
de desenvolvimento.
O Projecto Querença está orientado para as áreas rurais de baixa densidade, sejam aldeias, grupos de aldeias ou mesmo de municípios, de geometria variável e de acordo com uma análise de pertinência dos recursos existentes, disponíveis e potenciais.
O Projecto Querença tem um propósito fundamental, qual seja, o de
alargar o campo de possibilidades desses territórios em estado crítico e, ao
mesmo tempo, promover o empreendedorismo de jovens licenciados em
situação profissional precária, usando, para o efeito, uma abordagem territorial inovadora que visa fixar no interior dos municípios aquela população
universitária recém-licenciada.
António Covas e Maria das Mercês Covas
187
O Projecto Querença foi constituído a partir do contributo de três promotores principais: a Câmara Municipal de Loulé, a Universidade do Algarve e a
Fundação Manuel Viegas Guerreiro de Querença, com sede nesta freguesia,
que se constituiu em promotora directa do projecto. Através de um protocolo
as três entidades partilharam entre si as respectivas responsabilidades.
O Projecto Querença dividiu-se em três fases. A fase de pré-projecto,
com a duração de 9 meses, é o período de avaliação ex-ante e visa a preparação de todas as tarefas preliminares do projecto. A fase de projecto, com a
duração de 9 meses, correspondeu ao período de intervenção territorial propriamente dito, para o qual foi constituída uma equipa ou grupo de missão
com o objectivo expresso de desenhar um projecto de empreendedorismo
para a aldeia, grupo de aldeias ou município, de acordo com as características do território que foi delimitado na fase de pré-projecto. A fase de pós-projecto, com uma duração 6 meses, visou dar continuidade e consolidar o
projecto e, ao mesmo tempo, fazer a avaliação ex-post do projecto.
O Projecto Querença, para formar o seu grupo de missão, deu preferência, em primeira prioridade, a jovens licenciados e/ou pós-graduados com pouca ou nenhuma experiência profissional, oriundos do concelho em questão ou
de concelhos vizinhos, recrutados através de um processo de selecção levado a
efeito pela entidade promotora do projecto. Os jovens licenciados e/ou pós-graduados foram recrutados de acordo com as necessidades de intervenção do
território em causa, cobrindo diversas formações e áreas do conhecimento
complementares. Como elemento de selecção refere-se que os candidatos ficaram obrigados ao critério de permanecer na aldeia durante um período de nove
meses, a mesma duração do estágio profissional apoiado pelo IEFP.
O Projecto Querença criou uma institucionalidade dedicada ao projecto: os promotores constituíram, para além da comissão coordenadora, uma
comissão local e uma comissão técnica de acompanhamento para seguir de
perto o grupo de missão; a ligação à aldeia faz-se através de um Fórum
Aldeia sendo ainda constituídos grupos de apoio ao projecto aqui designados
por clubes.
O Projecto Querença teve por objecto três tipos de acções ou projectos:
projectos de interacção social, de animação simbólica e projectos empresariais propriamente ditos; trata-se, por esta ordem, de confirmar a aceitação
social do projecto por parte da população, de reabilitar o espírito sociocomunitário na aldeia, de tornar sustentável um pequeno grupo empresarial local.
2) A filosofia de intervenção do Projecto Querença
O Projecto Querença tem um lema geral, “da teoria à acção, aprender a
empreender”. Trata-se de uma acção-piloto de problem-solving, investiga-
188
Os territórios-rede
ção-acção e dinâmica de grupo. No plano mais programático, o Projecto
Querença tem uma doutrina de intervenção própria que pode ser descrita do
seguinte modo:
1) Onde não existe normalidade territorial, terá de haver excepcionalidade
territorial: o resgate territorial;
2) Onde não há um projecto municipal mobilizador, terá de haver uma
acção colectiva inovadora: um grupo de missão;
3) Onde não há capital institucional, terá de haver uma “institucionalidade
dedicada”: uma governança específica;
4) Onde não há capital social, terá de haver importação de capital social:
jovens licenciados em situação precária;
5) Onde não há stock, terá de haver fluxo: uma economia de redes e de
visitação;
6) Onde não há actividade económica continuada, terá de haver actividade
económica descontinuada: uma economia de eventos com forte reticulação;
7) Onde não há aglomeração, terá de se criar um efeito de aglomeração:
uma economia de colar de pérolas;
8) Onde não há actores colectivos, terá de se reinventar a acção colectiva:
uma sociologia dos actores-rede e dos clubes do território;
9) Onde não há financiamento convencional, terá de haver um financiamento não convencional: uma engenharia de microfinanciamento e de
parceria;
10) Onde não há uma imagem real, terá de haver uma imagem virtual: um
imaginário próprio e uma imagem de marca.
3) A microgeoeconomia do Método Querença
O Projecto de Querença, de acordo com a filosofia e a doutrina anteriores, segue um método particular de intervenção territorial em três fases. A
operacionalização destas fases apresenta diversos pontos críticos que são
cruciais para o desenrolar do projecto.
A fase de pré-projecto (6 a 9 meses):
– Os contactos preliminares e a formação de uma equipa de trabalho;
– A prospecção e delimitação do território;
– A avaliação do estado dos recursos (recursos, anti-recursos, contra-recursos);
– A definição de linhas de orientação estratégica, metodológica e operacional;
– A selecção dos alunos-estagiários candidatos;
António Covas e Maria das Mercês Covas
189
– A logística e o acolhimento dos estagiários e do grupo de trabalho na
aldeia;
– A selecção de um pivot, coordenador-executivo para gerir o projecto in
situ.
A fase de projecto propriamente dita (9 meses):
1.º trimestre:
–
–
–
–
A instalação do grupo de missão e a divisão do trabalho intra-grupo;
As acções de interacção social e simbólica com a população;
O primeiro esboço de actividades, produtos e serviços no território;
A escolha de actores-rede (embaixadores) e a formação de clubes de
suporte;
2.º trimestre:
– O desenho final da linha de actividades, produtos e serviços do território;
– A formação de redes comerciais dedicadas e primeiros testes de mercado;
– O desenho dos planos de negócio empresarial;
– A consagração de uma linha de projectos de interacção social e simbólica.
3.º trimestre:
–
–
–
–
A consolidação dos planos de negócio;
O plano de marketing do território e a estratégia comunicacional;
O formato empresarial e a engenharia financeira do projecto;
O planeamento de uma candidatura aos sistemas de incentivos em vigor.
A fase de pós-projecto (3 a 6 meses):
–
–
–
–
–
A consolidação da candidatura;
A consolidação do projecto empresarial;
A consolidação da engenharia financeira;
A consolidação de parcerias e acordos de cooperação empresarial;
A consolidação do Projecto Global de Querença nas suas três vertentes
(social, simbólica e empresarial).
4) Os pontos críticos do Projecto Querença
A experiência do Projecto Querença suscitou uma tal curiosidade que
ultrapassou todas as expectativas dos promotores. A sua natureza profundamente inovadora tinha, porém, alguns pontos críticos que decorriam de duas
ordens de razões: em primeiro lugar, o tempo era muito escasso para levar a
cabo todas as iniciativas, em segundo lugar, as ideias de projecto foram em
tão grande número que criaram alguma saturação ao desenrolar do próprio
190
Os territórios-rede
projecto. O decálogo que se segue é um mapa dos pontos críticos do Projecto
Querença.
– A escolha de um “território crítico ou pertinente”
Na fase de pré-projecto este é o primeiro ponto crítico. Aqui tratamos
com problemas de escala, de limiares críticos de recursos, de jurisdição territorial e conflitos de interesses. Os três promotores do projecto (universidade
ou politécnico, câmara municipal e associação de desenvolvimento ou fundação) devem tomar uma “decisão política” sobre o assunto depois de terem
ponderado convenientemente os prós e contras que decorrem de uma avaliação ex-ante do estado dos recursos e do seu potencial de desenvolvimento. O
território pertinente será sempre de geometria variável em função da quantidade, qualidade, potencialidade e disponibilidade dos seus activos e pode ser
uma aldeia, um conjunto de aldeias, um município ou uma associação de
municípios. Neste particular, a aldeia de Querença, devido aos seus exíguos
recursos, foi desde o início um exercício de alto risco de que todos estavam
conscientes.
– A formação de uma equipa de trabalho e a selecção do pivot do projecto
Este é o segundo ponto crítico. Aqui tratamos da formação de uma
equipa de coordenação técnica com representantes das três entidades promotoras e, sobretudo, com a selecção de um pivot operacional para o projecto,
em permanência no terreno, e com a função de dirigir, no dia a dia, todos os
aspectos operacionais de desenvolvimento do projecto. Este gestor operacional do projecto deverá ser um técnico sénior, conhecedor profundo do território em questão, destacado especialmente por um dos promotores para o
projecto ou, em alternativa, escolhido fora destas entidades que deverão,
para o efeito, encontrar uma forma de remuneração adequada à função a
desempenhar durante os nove meses do projecto. Esta equipa deverá estar
constituída, ainda que informalmente, logo na fase de pré-projecto e ter continuidade formal na fase de projecto propriamente dita. Neste particular, o
Projecto Querença foi bem-sucedido pois contou desde o início com um
excelente coordenador-executivo, conhecedor profundo da sub-região onde
nos encontrávamos.
– A selecção dos estagiários e a formação do Grupo de Missão Residente
Este é o terceiro ponto crítico ainda na fase de pré-projecto. A preferência, que não a exclusividade, recaiu sobre jovens alunos licenciados ou pós-graduados, em busca de uma saída profissional, residentes no concelho ou
António Covas e Maria das Mercês Covas
191
concelhos vizinhos. A diversidade dos alunos e das suas formações académicas depende em linha directa do estado dos recursos e activos que desejamos
reabilitar e desenvolver. O objectivo essencial é formar, com os alunos-estagiários, um Grupo de Missão Residente que se constitui, ele próprio,
numa espécie de incubadora local, um laboratório de ideias e projectos onde
crescerão as microempresas a desenvolver. Neste sentido, a escolha dos alunos-estagiários terá de ser muito criteriosa não apenas em termos curriculares mas, sobretudo, em termos de traços de carácter e personalidade, uma vez
que se deseja constituir uma equipa para funcionar durante nove meses em
ambiente adverso e, por vezes, mesmo, hostil. No caso do Projecto Querença, o grupo tinha uma formação homogénea de valor individual equivalente
e bem sintonizada com o espírito do Projecto.
– A mobilização social da população da aldeia ou aldeias
Este é o quarto ponto crítico do projecto, a aceitação social do projecto
por parte da população. Neste particular é decisivo o envolvimento da câmara
municipal e muito em especial da junta de freguesia respectiva e, bem assim,
da associação de desenvolvimento local presente no concelho. O presidente da
junta de freguesia é uma figura central em toda esta mobilização, conjuntamente com outros agentes locais que têm a faculdade de serem uma espécie de
actores-rede. Para o efeito, uma atenção especial terá de ser dedicada, logo no
1.º trimestre da fase de projecto, aos projectos de interacção social e simbólica
que visam, justamente, a motivação e a mobilização da população. Para este
efeito, pode, também, pensar-se na constituição de um Fórum Aldeia. No caso
do Projecto Querença, a participação empenhada do presidente da Junta de
Freguesia foi, desde o início, um activo precioso para facilitar a compreensão e
a mobilização da população e o mesmo se diga da Fundação Viegas Guerreiro
cuja direcção sempre esteve muito próxima da população.
– A incubadora local de ideias e projectos
Este é, porventura, o ponto crítico mais decisivo de todo o projecto.
Trata-se de criar uma linha de actividades, produtos e serviços, de preferência com indicação de origem, que acrescentem identidade e que a partir de
um ponto de irradiação no território possam projectar-se para fora desse território por via de redes dedicadas de qualidade elevada. Para o efeito, as
ligações à universidade/politécnico, em particular, às escolas superiores
agrárias, são um elemento decisivo, sobretudo aos laboratórios e centros de
investigação onde podem ser realizados testes de verosimilhança e consistência dos novos produtos e serviços. No caso do Projecto Querença esta
192
Os territórios-rede
ligação aos laboratórios da Universidade do Algarve foi conseguida mas o
tempo atribuído ao projecto era manifestamente insuficiente.
– A necessidade de criar uma economia de redes no território
Este é, igualmente, um ponto crítico de todo o projecto, pois estamos a
lidar com territórios de baixa densidade, muito envelhecidos e em perda acelerada do seu capital social. Onde não há stock terá de haver fluxo. Por isso,
é absolutamente necessário recriar uma economia de redes e fluxos que
deverá contemplar, em função de cada território concreto e em combinações
diversas, os seguintes factores ou variáveis: os campos de aventura, de férias
ou de trabalho, uma linha de serviços de ecoturismo, uma linha de eventos
sazonais ligados às festividades tradicionais, a organização da visitação
pedagógica (escolas) e da visitação sénior (lares), a atribuição de funções
imaginativas/representativas a actores-rede, aos clubes de suporte e às tertúlias locais, a organização de redes de itinerários histórico-turísticos, a organização de serviços ambulatórios locais e multi-locais ao serviço das populações, um marketing territorial e simbólico imaginativo ligado aos sítios da
Reserva 2000 e ao serviço de visitantes virtuais convertidos mais tarde em
visitantes reais, por via, por exemplo, de uma associação inteligente entre
natureza, gastronomia e lazer. Esta pequena economia de rede e fluxos assim
concebida deverá provocar um pequeno efeito de aglomeração local e estará
na origem de novos projectos se seguir de perto a lógica do “colar de pérolas”, uma metodologia de reticulação e integração de micro e nano-projectos
locais. No caso do Projecto Querença esta economia de rede continua em
construção na 2.ª fase do Projecto pois envolve custos de transacção muito
elevados que não estão ao alcance de uma organização tão modesta como
aquela que foi montada pelo Projecto.
– Os planos de negócio e a estratégia de marketing e comunicação
Este é mais um ponto crítico fundamental, uma vez que todos ou quase
todos os projectos deverão passar por uma análise custo-benefício e demonstrar a sua viabilidade económica e comercial. Dado que estamos a laborar a
uma microescala, a integração dos planos de negócio e a coordenação da
estratégia de marketing e comunicação são tópicos essenciais para o projecto
ser bem-sucedido. Estamos a falar, em especial, de micro-lotes de produção
agrícola, de transformações simples mas inovadoras, de circuitos curtos e
redes comerciais dedicadas, de pequenos clubes de consumidores leais, de
estratégias de institutional food com as IPSS, enfim, de uma estratégia de
marketing e comunicação que exige muita persuasão e algum músculo finan-
António Covas e Maria das Mercês Covas
193
ceiro em redor de pequenas cadeias de valor que associem natureza, gastronomia, lazer e cultura como uma cadeia de valor completa. O Projecto Querença cumpriu bem este objectivo se pensarmos nas inúmeras iniciativas realizadas e no espaço de tempo disponível.
– A governança local do projecto
A governança local do projecto varia com o contexto e a diversidade
dos actores presentes no território. A nossa sugestão para a governança do
projecto foi a seguinte: uma Comissão Coordenadora com elementos das
entidades promotoras, uma Comissão Técnica e Científica com elementos da
universidade e/ou politécnico, uma Comissão Local de Apoio composta pela
junta de freguesia e alguns actores-locais, um Fórum Aldeia com todos os
“homens bons” da freguesia. A este conjunto acrescenta-se um segundo círculo com actores-rede, os clubes de amigos e os filhos da terra, as redes
sociais e os amigos virtuais, os mecenas e os patrocinadores do projecto.
O Projecto Querença foi beneficiado neste particular tendo em conta o
conhecimento mútuo dos parceiros e o papel-chave do coordenador-executivo na mobilização desse conhecimento.
– O financiamento do projecto
No que diz respeito ao financiamento, os custos de funcionamento são
assegurados pelas entidades promotoras. O IEFP assegura o pagamento das
bolsas de estágio dos alunos conjuntamente com a Câmara Municipal.
A Universidade/Politécnico disponibiliza os seus laboratórios para ensaios e
análises de produtos. O financiamento das actividades em concreto deve ser
procurado junto de mecenas e patrocinadores, grupos de amigos da terra, a
que se acrescenta a organização de trabalho voluntário e comunitário com os
habitantes da aldeia mas, também, com os alunos da universidade/politécnico e os campos de férias e trabalho. Outras fórmulas de financiamento
podem envolver o crowdfunding, o microcrédito, as redes sociais, etc. No
caso do Projecto Querença, foram assegurados os recursos mínimos para o
projecto funcionar mas a exiguidade dos recursos funcionou sempre como
uma restrição para levar a cabo ideias mais ambiciosa que o Projecto tinha
em carteira. Na 2.ª fase o Projecto procurará recuperar algumas das iniciativas que ficaram pendentes.
– O formato do projecto de empreendedorismo local
O formato do projecto de empreendedorismo local será discutido e definido ao longo da fase de nove meses e pode assumir várias opções em fun-
194
Os territórios-rede
ção da natureza das actividades, produtos e serviços seleccionados, por
exemplo: um agrupamento complementar de microempresas unipessoais,
uma cooperativa de produção e serviços, uma associação de desenvolvimento local, um condomínio rural sob a forma de uma sociedade por quotas, por
exemplo etc. O Projecto Querença teve a sua sequência numa empresa privada que assumiu a transição e a 2.ª fase do projecto.
5) O modelo de empreendedorismo implícito na metodologia do Projecto
No plano da sua filosofia geral, o Projecto atribui prioridade elevada ao
empreendedorismo e à empresarialização de actividades económicas, sociais
e culturais que inovem e acrescentem valor aos recursos e actividades já
existentes. Vejamos o modelo de empreendedorismo que está implícito no
Projecto Querença:
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
social, desde a 1.ª idade à 4ª idade; queremos ter, em cada território
seleccionado, um caso exemplar de empreendedorismo social (educação
infantil, envelhecimento activo, voluntariado social, saúde pública e
gerontologia social, grupos com deficiência, por exemplo) que possa ser
cotado na Bolsa de Valores Sociais (BVS);
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
cultural, em especial à gestão integrada do património material e imaterial; queremos ter em cada território um caso exemplar de empreendedorismo cultural, por exemplo, a gestão de uma plataforma criativa e
cultural que faça, não apenas, a administração integrada de equipamentos culturais mas, também, a reaproximação criativa dos artistas e artesãos do território, por via, por exemplo, da criação de residências criativas a partir de habitações devolutas;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
ecológico e ambiental, em especial nas actividades ligadas aos 3R (reduzir, reciclar e reutilizar), por exemplo no que diz respeito à concepção e
produção de uma linha de produtos de ecodesign e merchandising a partir
de resíduos de diversa proveniência; queremos ter uma experiência inovadora e iniciar um empreendimento nesta área de negócio;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
turístico, nas diversas formas e formatos de turismo em espaço rural
(TER), em especial no ecoturismo; queremos ter em cada território um
António Covas e Maria das Mercês Covas
195
empreendimento exemplar na área do ecoturismo e turismo de natureza,
vocacionado, por exemplo, para os grupos mais vulneráveis e mobilidade reduzida;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
agro-alimentar, pela criação de um sistema alimentar local (SAL) que a
biotecnologia e a engenharia alimentar nos podem proporcionar; queremos, em cada território, criar uma nova cadeia de valor e uma empresa que conceba e produza uma nova linha de produtos que aumente e
renove a identidade e a coesão dos territórios;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada ao empreendedorismo
eco-energético e à gestão integrada de diferentes formas e fontes de
energia renovável, por exemplo, através da promoção da construção
sustentável (a utilização dos materiais locais), das técnicas de bioregulação climática e das redes integradas de microgeração; queremos
ter uma experiência inovadora e um empreendimento nesta área de
negócio;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da paisagem,
desde a arte efémera às paisagens literárias, desde a engenharia biofísica
à arquitectura da paisagem; em cada território deve ser testada uma
experiência inovadora de gestão de unidades de paisagem e a sua
empresarialização;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da culinária e
da gastronomia, em estreita articulação com as escolas de hotelaria e
turismo, com os mestres cozinheiros e a população local; em cada território deve ser testada uma experiência inovadora que associe natureza,
gastronomia e inovação alimentar e a sua empresarialização;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes de recreio,
desporto e lazer, desde os campos de férias e aventura até ao caravanismo e campismo; em cada território deve ser criado um empreendimento exemplar que associe os aspectos pedagógicos, terapêuticos,
recreativos e desportivos;
– A filosofia do projecto atribui prioridade elevada às artes da comunicação e cultura, através, por exemplo, de uma empresa de gestão de eventos criativos e culturais cujo objectivo é criar visitação regular no território respectivo;
196
Os territórios-rede
A experiência do Projecto Querença é uma forma, entre outras, de provocar a animação e a multifuncionalidade de um território e de nele introduzir uma dinâmica de “multiplicador virtuoso” para as áreas rurais de baixa
densidade. O Projecto foi um sucesso em termos de “ensaio de animação e
metodologia de investigação-acção”, mas o universo-aldeia não poderia
resistir nem responder, como era óbvio, a tanta expectativa criada com recursos tão exíguos. Tratou-se de um projecto de microgeoeconomia territorial,
limitado no tempo e no espaço, que pode, no entanto, pelas suas características metodológicas e com as devidas adaptações, ser transposto para o universo de um território-rede com mais escala, massa, músculo e intensidade
rede. O Projecto “aconteceu” em Querença mas era evidente, desde o início,
que a experiência pedagógica e profissional adquirida pelos estagiários de
Querença os levaria para outros projectos e para outras experiências. Seja
como for, os nove estagiários do projecto estão hoje todos ocupados profissionalmente e todos continuam ligados, directa ou indirectamente, à segunda
fase do Projecto. Entretanto, o Projecto Querença foi replicado em sete (7)
locais, três dessas experiências terminaram em 2013 e quatro estão ainda em
funcionamento. Outros projectos estão agora a ensaiar os primeiros passos.
6) As réplicas do projecto: uma avaliação muito preliminar
A título preliminar e exploratório podemos realizar uma primeira avaliação aos oito projectos já realizados ou ainda em curso, a partir de uma série de
variáveis-explicativas construídas para o efeito e concebidas propositadamente
para fazer realçar a sua natureza cognitiva e reflexiva. A Tabela n.º 7 resume as
variáveis-explicativas utilizadas e as suas dimensões respectivas.
É ainda cedo para uma leitura definitiva dos projectos já terminados e
ainda em curso. Todavia, pelo nosso conhecimento directo do pretexto e do
contexto em que foram criados, podemos retirar algumas conclusões muito
preliminares sobre alguns factores de ordem geral que estão presentes em
todos eles:
– A microescala apresenta limitações óbvias em termos de recursos e de
actores, a intervenção fica contida nestes limites; o tempo é também
uma variável-limite, a materialização das acções fica, igualmente, contida neste limite;
– Fica provado, porém, que apesar das restrições espaço-tempo-recursos,
uma pequena estrutura low cost e uma boa equipa podem realizar
pequenos milagres de mobilização e animação territoriais;
António Covas e Maria das Mercês Covas
197
Tabela n.º 7 – Quadro interpretativo do Projecto Querença e suas réplicas
Variáveis-explicativas
As dimensões das variáveis
1. A dedicação dos parceiros
2. A qualidade da equipa técnica
3. A qualidade do pivot coordenador
4. O grupo de missão residente
5. O território pertinente
6. A duração do projecto
1. Maior ou menor empenhamento
2. Maior ou menor competência/permanência
3. Maior ou menor competência/permanência
4. Maior ou menor qualidade dos estagiários
5. Maior ou menor escala e recursos
6. Mais curto ou mais longo, uma restrição
7. O capital social do projecto
8. O capital natural do projecto
9. O capital produtivo do projecto
10. O capital simbólico do projecto
7. Valor, disponibilidade e mobilidade
8. O estado dos recursos e sua mobilização
9. Estrutura e dinâmica socio-empresarial
10. Identidade e património imaterial
11. As missões atribuídas
12. A dinâmica intra-grupo residente
13. A incubação das ideias de projecto
14. O efeito “colar de pérolas”
11. Melhor ou pior afectação das missões
12. Líderes, grupos, conflitos, arbitragem
13. A maior/menor fusão de conhecimentos
14. O processo criativo de gerar ideias novas
15. O choque da realidade
16. Os anti e os contra-recursos
17. O processo “coopetitivo”
18. A gestão das expectativas
15. A realidade resiste ao nosso entusiasmo
16. O projecto liberta “recursos ocultos”
17. Cooperação e competição andam juntas
18. Saber gerir entusiasmo e desilusão
19. O “sucesso” do projecto
20. Uma nova acção colectiva
21. Um novo espaço público
22. O valor cognitivo do projecto
23. O valor sentimental do projecto
24. O valor replicativo do projecto
25. O risco de empreender
19. O sucesso é sempre relativo e transitivo
20. Uma construção social com os actores
21. Uma construção social com os actores
22. Uma processo de aprendizagem criativo
23. Uma experiência para memória futura
24. Os contextos e os pretextos da replicação
25. Ser maduro, responsável e conhecer
Fonte: Elaboração própria.
198
Os territórios-rede
– Fica provado que a experiência de vida adquirida por estes jovens estagiários sem experiência profissional, residindo durante nove meses em
contacto directo com as populações e os seus problemas, é o acquis
mais importante destes projectos, independentemente dos resultados
obtidos;
– Fica, ainda, provado que esta experiência de microgeoeconomia territorial apresenta um elevado valor cognitivo e que a aprendizagem assim
adquirida pode ser transposta, com as devidas cautelas, para uma escala
multi-escalar, por exemplo, na construção social de territórios-rede de
âmbito geográfico e multiterritorial muito variável.
9.2. Dieta Mediterrânica, uma apelação territorial de prestígio
A Dieta Mediterrânica é uma construção social e cultural milenar. Desde sempre, o homem mediterrânico necessitou de todo o seu engenho e arte
para lidar contra a escassez de água e alimentos. É deste relacionamento
intenso e através desta aprendizagem constante que se vão modelar os hábitos alimentares dos diferentes povos desta região. O património da dieta
mediterrânica é, assim, o conjunto de práticas, conhecimentos e competências associado à produção, confecção e consumo alimentar das populações
do sul, assim como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais
que as comunidades reconhecem como parte do seu património sociocultural. A dieta mediterrânica é, portanto, uma cultura alimentar adaptada á
escassez, é um modo de produção e conservação de alimentos ajustado a
uma natureza hostil, é, finalmente, um modo de viver a vida, pela sua convivialidade e especial sociabilidade.
A Convenção da UNESCO sobre património cultural imaterial
No artigo 2.º da Convenção pode ler-se:
1. Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos,
objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as
comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como
fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado
pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com
a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e
de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito
pela diversidade cultural e pela criatividade humana. Para os efeitos da presente Convenção, tomar-se-á em consideração apenas o património cultural
António Covas e Maria das Mercês Covas
199
imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais existentes
em matéria de direitos do homem, bem como com as exigências de respeito
mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos.
2. O “património cultural imaterial”, tal como definido no número anterior, manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios:
a) Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial;
b) Artes do espectáculo;
c) Práticas sociais, rituais e eventos festivos;
d) Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo;
e) Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.
3. Entende-se por “salvaguarda” as medidas que visem assegurar a viabilidade do património cultural imaterial, incluindo a identificação, documentação, pesquisa, preservação, protecção, promoção, valorização,
transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal,
bem como a revitalização dos diferentes aspectos desse património.
Estas disposições convencionais implicam a consideração das seguintes
linhas de reflexão estruturada:
– Considerações históricas sobre as grandes mutações da sociedade mediterrânica, em particular as mutações e os “desvios” no seu modelo alimentar;
– As consequências dessas mutações sobre o estado dos recursos naturais, a
estrutura do capital natural e, em particular, da paisagem mediterrânica;
– A responsabilidade social dos agentes-actores principais das cadeias
alimentares: produtores, distribuidores, consumidores;
– As necessidades sentidas em matéria de investigação, inovação e informação e a respectiva estratégia organizacional para o efeito;
– As exigências em matéria de qualidade e segurança alimentar no quadro
do comércio internacional das mercadorias agro-alimentares e, em particular, a estratégia relativa ao comércio dos produtos de imitação da
dieta mediterrânica;
– As políticas públicas de acompanhamento e promoção, sobretudo nas
áreas da educação e do turismo;
– As exigências transmediterrânicas em matéria de cooperação internacional, para lá das medidas nacionais de salvaguarda do património
imaterial e a interacção constante entre as autoridades nacionais e as
instâncias da própria Convenção.
200
Os territórios-rede
Como se pode observar, as definições da Convenção reportam-se a um
conceito de património imaterial que não se reduz a um mero acto conservacionista. Estamos a falar de um património imaterial que poderíamos designar de comunitário ou comunitarista, um património do quotidiano e, como
tal, um património dinâmico, criativo e em permanente mutação. Todavia,
esta perspectiva abrangente do património imaterial levanta sérias questões
científicas, técnicas, processuais e procedimentais que colocação grandes
dificuldades ao trabalho de intermediação e cooperação da própria UNESCO, em especial, a harmonização mínima necessária a uma base comum de
inventariação e classificação dos bens e serviços culturais e patrimoniais.
A Convenção foi aprovada em 2003 e, nesta fase, não pode ainda afirmar-se que a Dieta Mediterrânica seja um emblema da região do Mediterrânico, dado que ela pertence mais à ordem dos desejos do que à ordem da realidade dos factos. Pelo menos enquanto a noção de dieta mediterrânica se
confundir ou reduzir, no plano do cidadão comum, a um modelo de consumo
alimentar.
Um modelo de produção e consumo alimentar
De acordo com a decisão da UNESCO de Dezembro de 2013:
A dieta mediterrânica envolve uma série de competências, conhecimentos,
rituais, símbolos e tradições ligadas às colheitas, à safra, à pesca, à pecuária, à conservação, processamento, confecção e, em particular, à partilha, à
convivialidade e ao consumo dos alimentos. Comer em conjunto é a base
da identidade cultural e da sobrevivência das comunidades por toda a bacia
do Mediterrâneo.
Numa entrevista de Samuel Silva a Pedro Graça, no Jornal Público, em
4/12/2014, Alimentação desequilibrada tem impacto negativo no rendimento
escolar dos estudantes, (Graça, 2014), pode ler-se:
… Assim, não é de estranhar a referência constante à recolecção de produtos silvestres (os caracóis, moluscos, cogumelos), a tradição na recolha de
produtos vegetais selvagens (beldroegas, espargos e agriões), o estatuto da
caça, a existência de uma enorme tradição de pastoreio para fornecer a proteína animal e o recurso a alimentos sazonais frescos ou conservados que
forneciam a energia necessária quando faltavam as outras fontes de energia
(figos secos, amêndoas, grão, favas e outras leguminosas, alfarroba, bolotas, etc.)” (Graça, 4.12.2014).
… Esta constante adaptação à escassez está na origem de uma arte culinária
muito rica que é, afinal, um desafio vegetariano à escassez de proteína animal.
António Covas e Maria das Mercês Covas
201
Devido às temperaturas elevadas, a arte culinária do mediterrâneo utiliza a
cozedura com frequência nas sopas, ensopados, estufados, jardineiras e caldeiradas. Outra forma de reduzir a contaminação dos frescos e das saladas é
através da utilização frequente de substâncias ácidas como o vinagre, o limão
ou a laranja amarga. Nas bebidas, o vinho, simples ou traçado, tem o equivalente no chá de hortelã ou de outras ervas aromáticas do sul da bacia mediterrânica. Nas carnes e no pescado o sal é o conservante. Nas frutas é a presença
do açúcar e do mel que funcionam como conservante” (Graça, 4.12.2014).
Os estudos demonstram que as populações que aderem a este tipo de
padrão alimentar possuem, em média, um melhor estado de saúde, visível na
redução da mortalidade por doença cardiovascular, doença oncológica e
incidência de doença de Parkinson e Alzheimer. Contudo, também sabemos
que este padrão alimentar foi muito alterado com a urbanização e industrialização, com a modificação do tecido sociodemográfico, com a entrada da
mulher no mercado de trabalho e com a nova estrutura comercial agro-alimentar mais recente. Apesar destas profundas modificações alimentares e
socioculturais, podemos afirmar que os traços distintivos da dieta mediterrânica se mantêm: o consumo elevado de pescado, a preferência pelas gorduras
vegetais, o consumo moderado de vinho, o hábito da sopa.
Estamos na região do Algarve, sede da candidatura à UNESCO através
da cidade de Tavira. Entretanto, o ano 2014 é considerado o Ano Internacional da Agricultura Familiar. A associação íntima entre a promoção da Dieta
Mediterrânica e o relançamento da agricultura familiar levanta-nos as
seguintes interrogações:
Como é que a apelação “património imaterial da humanidade”, proveniente de uma organização internacional como a UNESCO, pode aproveitar à agricultura familiar e promover as pequenas economias locais da região algarvia?
Como é que as especificações e o plano de salvaguarda desta certificação internacional podem ajudar a modernizar e a promover a agricultura
familiar e as pequenas economias da região do Algarve sem as segregar ou
excluir?
Que estratégia regional e multilocal podemos desenhar para levar a cabo
a “grande aliança” entre educação para a saúde alimentar, o desenvolvimento
da agricultura familiar e das pequenas economias locais do interior e a promoção do património imaterial das suas culturas respectivas?
Como proceder, desde já, para evitar que a erosão do padrão alimentar
da dieta mediterrânica se acentue, que uma apelação internacional de prestígio seja trocada, com ligeireza, por festivais de culinária mediterrânica, que
as economias locais e a agricultura familiar sejam abandonadas à sua sorte e
os pequenos aglomerados do interior desertificados, que as culturas locais
202
Os territórios-rede
sejam abastardadas ainda mais dando lugar ao mau gosto e ao kitch mediterrânico para “turista ver”?
Que responsabilidade é a nossa, cidadãos algarvios, face a esta incumbência de que fomos investidos tão solenemente? O que vamos fazer com os
nossos recursos naturais do barrocal e serra, o que vamos dizer aos nossos
jovens desempregados acerca do futuro que os aguarda, como vamos reagir
aos lamentos das populações abandonadas do interior algarvio, que educação
básica sobre saúde, alimentação e cultura queremos transmitir às nossas
crianças do ensino primário, que visitação turística queremos, de facto, promover nas nossas aldeias e no interior algarvio, que exigências vamos fazer
às autoridades locais e regionais se não tivermos, nós próprios, comunidade
política dos interesses públicos e do bem comum, assumido a responsabilidade de o fazer por nossa conta e risco?
Dieta Mediterrânica, uma promessa de futuro
Para lá dos aspectos mais utilitários, produtivos e comerciais, a classificação de património imaterial da humanidade é, antes de mais, uma promessa de futuro para uma região, o Algarve, se quisermos, um crédito por conta
do que falta fazer na região se, para tanto, seguirmos o caderno de encargos e
especificações que acompanha a classificação atribuída.
A Dieta Mediterrânica é, digamos, um conceito vertical, que atravessa a
região em toda a sua extensão, do património imaterial como representação
simbólica até ao património material como suporte da dieta mediterrânica. É
preciso, pois, perceber que não se trata de duas realidades distintas, mas de
duas faces da mesma realidade e que preservar o património imaterial equivale a conservar e desenvolver o património material.
Este registo e esta exigência são tanto mais importantes quanto sabemos
que, em nome do progresso económico e social, se observam, com frequência, ocorrências preocupantes: o poder de controlo sobre o capital natural nas
mãos de poucos actores económicos, a reprodução do capital alargada a
novos espaços sociais e físicos, uma maior padronização tecnológica e consequente empobrecimento biofísico do território. No final, a rápida velocidade
de rotação do capital financeiro acaba por entrar em rota de colisão com os
ritmos de regeneração própria dos sistemas biofísicos. É preciso que nos preocupemos mais com a temporalidade das tecnologias porque o planeta não está
em condições de ser indefinidamente reconstituído pelas tecnologias.
A Dieta Mediterrânica, como promessa de futuro, é a expressão cultural
e simbólica de um equilíbrio delicado entre a natureza e a actividade humana, que o tempo porfiou e o homem confiou. No cerne da questão, em nome
António Covas e Maria das Mercês Covas
203
do progresso e da tecnologia, teremos a disseminação de monoculturas, a
monotonia biofísica e a redução da diversidade social, as diversas facetas do
mesmo problema. A cada velocidade a sua cultura. Ora, a Dieta Mediterrânica precisa, com alguma urgência, de um plano de preservação que a proteja
dos “riscos morais” de curto prazo, pois há sempre alguém disposta a sacrificá-la no altar da hipervelocidade e do consumo indiscriminado.
O que é relevante é que nesta política da velocidade (Virilio, 1977) o
homem e a natureza estão juntos na mesma luta porque correm o risco de
serem, ambos, produzidos, isto é, correm o risco de ser o produto e o fruto de
uma biopolítica. A intermediação é feita pela tecnologia que é uma forma de
relação do capital com as pessoas, a natureza e o território. A tecnologia é
uma relação de poder que configura as sociabilidades e a produção biopolítica, isto é, a produção do sujeito e da natureza. Assim, o uso das biotecnologias e das nanotecnologias determina as relações de sociabilidade e a natureza da produção biopolítica, bem como a relação de poder face à natureza.
A manipulação genética, por exemplo, faz parte desta política da velocidade e é uma boa ilustração desta produção biopolítica. Isto quer dizer
que, por intermédio de tecnologias, fármacos e alimentos, podem ser definidos novos padrões de agrupamento social e estilos de vida. Na retórica do
poder biopolítico, biotec e nanotec podem simbolizar objectividade, certeza
e verdade científica. As inovações biotec e nanotec podem determinar o ritmo da vida, a indústria da vida e o mercado da saúde e dos alimentos. A vida
passa a ser produzida, deixa de ser simples reprodução para passar a ser um
“projecto de ser vivo”.
A dieta mediterrânica tem aqui o seu maior desafio. Depois da biopolítica do século XX – limpeza, higiene, rastreabilidade e certificação a engenharia genética e a biotecnologia molecular, as terapias genéticas
mas, também, os alimentos nutriceuticos, a bioética e os novos códigos
da vida, adquirem uma condição política elevada. Ao mesmo tempo, a
natureza é um imenso campo de possibilidades de manipulação à nossa
disposição. O mundo natural e biológico torna-se, portanto, um universo
cultural, isto é, pode ser produzido.
A grande aliança do futuro ou, se quisermos, o grande risco global do
futuro para uma cultura social e cultural milenar como é a dieta mediterrânica,
é esta ligação perigosa entre biopoder e biopolítica. Cuidado, pois, com a
diversidade de biologias de acordo com diferentes programas de investigação,
cuidado, pois, com a domesticação de plantas e animais, cuidado, pois, com a
fabricação da vida por via de alimentos, fármacos e intervenções diversas.
204
Os territórios-rede
Esta “grande aliança” entre biopolítica e biopoder é a grande oportunidade do capitalismo dos dias de hoje, tendo em vista que a expansão do capitalismo, por causa da globalização e por falta de exterior, é hoje mais intensivo do que extensivo. O capitalismo financeiro tornou-se especulador e já
não há praticamente santuários ou regiões sagradas. Tudo é transformado em
capital, em activos, a começar no ambiente e a terminar na vida humana.
Tudo deve trocado, comprado e vendido em nome do “bezerro de oiro” do
capitalismo financeiro.
Neste contexto, qual é o lugar da dieta mediterrânica? Uma presa fácil
da política de velocidade e das tecnologias de substituição, um local de refúgio para os mais avisados ou um estilo de vida e um padrão alimentar geralmente aceites pela população? Escapará a dieta mediterrânica à política de
normalização do capitalismo actual que visa transformar-nos a todos numa
espécie de “proletários do sistema capitalista em modo monocultura? O capitalismo está obrigado a criar permanentemente novas oportunidades de
negócio e a capitalizar constantemente. A dieta mediterrânica pode emergir
como mais uma oportunidade de negócio interessante.
Neste contexto de luta pela sobrevivência, a dieta mediterrânica pode já
estar, sem o saber, em rota de colisão com o capitalismo regional e internacional. Ela é uma espécie de contra-racionalidade, uma intrusa, em luta muito desigual contra o “regime estabelecido” que, entretanto, aproveita para
fazer o elogio público de “uma nova promessa” de desenvolvimento regional. A atribuição desta apelação internacional pela UNESCO é um desafio
interessante para a “sociologia política local” e, nesse sentido, ninguém
aprovaria que a dieta mediterrânica fosse conhecida como a história de uma
captura e de uma enorme dissimulação, por mais sucesso e brilhantismo de
que a operação fosse coroada. Resta, então, a possibilidade que todos aguardam, a saber, a dieta mediterrânica como o exemplo eloquente de uma produção social de qualidade, que melhora o bem-estar material das populações
locais e valoriza o património material em que assenta, justificando, dessa
forma, a apelação internacional que lhe foi concedida.
A Dieta Mediterrânica e a produção social de qualidade
Se a dieta mediterrânica, pelo valor potencial que encerra, é uma promessa de futuro, então a nossa pergunta de partida é a seguinte: como fazer a
conversão de uma “expectativa positiva”, a Dieta Mediterrânica, num processo participativo de sucesso e numa produção social de qualidade e como
operar essa conversão através de uma cadeia de valor que liga um património imaterial da Humanidade a um património material regional, de tal
modo que pode transformar de forma significativa a estrutura económica,
social e empresarial de uma comunidade ou região?
António Covas e Maria das Mercês Covas
205
Sabemos que a produção de qualidade não existe em abstracto e duas
abordagens são possíveis. Na primeira, o mercado “sabe” melhor do que
ninguém o que o cliente precisa. Mercado e cliente, duas noções abstractas
ao serviço de uma “ideologia da qualidade”. Na segunda, a qualidade é um
atributo que pode ser negociado por sucessivas "convenções ou regras de
procedimento", desde a produção até o consumo e num processo interactivo
e negocial em que estão implicados diversos actores com estratégias diferentes. O que se pretende é que a qualidade passe a ser o resultado de um consenso social e de um processo de aprendizagem com implicações políticas e
organizacionais, no sentido em que existem e são reconhecidos diversos
modos alternativos de “produzir socialmente qualidade”.
Sabemos que a economia de mercado, ela própria, usa inúmeras convenções ou regras, desde as normas técnicas às marcas e certificações, já
para não falar do próprio mecanismo de preços. Também sabemos que estas
regras e procedimentos convencionais já não são suficientes para assegurar a
qualidade e a tranquilidade dos consumidores. A pergunta que se impõe é a
seguinte: pode a Dieta Mediterrânica estar na origem de uma “economia
convencional emergente”, de um “inovador sistema produtivo local”, de um
“território-rede de alto valor acrescentado” com base em mercados de proximidade e circuitos curtos, mas, também, em relações interpessoais e nos
valores e princípios de uma economia solidária?
Ou, ainda, ao criar uma “contra-racionalidade socio-territorial protegida” por uma apelação internacional de prestígio, pode a Dieta Mediterrânica
estar na origem de um contra ou alter-movimento local e regional que alargue o campo de possibilidades do território e estenda a “produção social de
qualidade” para outras áreas de produção e consumo que até aí estavam quase blindadas pela ordem local do capitalismo dominante?
A produção e o consumo são sempre localizados e realizados por produtores e consumidores concretos em algum lugar, o que permite estabelecer
convenções ou procedimentos sempre que a qualidade seja considerada um
“bem comum” repartido e baseado na confiança mútua. Neste sentido, a
“produção social de qualidade” pode ser usada para promover uma estratégia
de desenvolvimento rural, feita de uma pluralidade de agriculturas com base
em produtos tradicionais de alto valor biológico, ecossistémico e paisagístico. Evidentemente, levamos em conta o arsenal disponível no local como
sejam as indicações, denominações, selos, etiquetas, de processo e qualidade,
que, elas também, podem ser objecto de negociação e convenção.
206
Os territórios-rede
Em síntese, uma “produção social de qualidade” pode e deve ser um
excelente pretexto, não apenas para rever os programas de desenvolvimento, investigação e extensão agro-rurais, mas, sobretudo, para relançar a
economia e a sociedade locais. A Dieta Mediterrânica é um excelente pretexto para inovar localmente em matéria de inteligência territorial, por
intermédio do instrumento “economia das convenções”, um pacto territorial para dar à luz um sistema agro-alimentar local e uma cultura simbólica
assertiva que respeitem e valorizem a apelação de prestígio internacional
que lhe foi concedida.
9.3. A construção social de um território-rede para a Dieta Mediterrânica
Depois de todas as interrogações que formulámos no ponto anterior apetece perguntar: e agora, o que fazer, em concreto, com este património imaterial da humanidade, com esta cultura alimentar adaptada á escassez, com este
modo de produção e conservação de alimentos ajustado a uma natureza hostil, com este modo de viver a vida, com esta convivialidade e sociabilidade?
Acresce que em 2014 se celebra o ano internacional da agricultura familiar, temos, portanto, uma razão adicional para fazer uma “grande aliança”
entre o património material (a biodiversidade local) e o património imaterial
das povoações (a culinária e a cultura), entre a promoção da saúde, da educação e do ambiente (o meio social e a educação para o desenvolvimento) e
as pequenas economias locais do interior. Uma das possibilidades em aberto
é, justamente, a construção social de um território-rede que seja capaz de
criar um actor-rede para alimentar as aspirações e a identidade desse novo
agrupamento territorial em processo de construção.
Uma breve advertência
Como já dissemos anteriormente, a dieta mediterrânica pertence, por
enquanto, mais à ordem da promessa do que à ordem da realidade. Para já,
parece-nos mais curial um programa de inventariação, salvaguarda e contingência do património imaterial do que um programa de grandes realizações
mediáticas. Esse programa deve acautelar, desde logo, que a força da inércia
e o oportunismo de ocasião convertam uma sociabilidade singular e uma cultura milenar numa “sucessão de eventos” de gosto duvidoso e utilidade questionável, promovidos, porventura, por quem tem legitimidade e ousadia bastante para tanto.
António Covas e Maria das Mercês Covas
207
E o que fazer com as micro e pequenas economias e aglomerados do
interior desertificados e despovoados, como iremos nós integrá-los neste
movimento de longo alcance e duração que é a Dieta Mediterrânica, sem
perder de vista que é necessário produzir resultados concretos a curto e
médio prazo? Até que ponto a construção de um território-rede para a Dieta
Mediterrânica pode servir para testar as exigências e as expectativas que se
foram acumulando em redor de uma apelação internacional, ao mesmo tempo testando a ambição e as competências da comunidade política local em
matéria de organização do bem comum e do interesse público, assumindo a
responsabilidade de o fazer por sua conta e risco?
Fazemos aqui um alerta que nos foi sugerido pela leitura do livro
L´invention du quotidien de Michel Certeau (Certeau, 1990). A Dieta Mediterrânica pertence a uma certa antropologia do quotidiano, é, de algum
modo, uma história de resistência, faz parte da pequena história invisível
comparada com a Grande História do Capitalismo Agrário, por exemplo.
Quando se diz “cultura da escassez em ambiente hostil ou convivialidade e
sociabilidade” estamos a falar da “invenção do quotidiano e das artes de
fazer” (Certeau, 1990). Neste registo, a Dieta Mediterrânica é uma espécie
de anti-sistema, uma contra-racionalidade, uma história não-escrita, praticada nas margens e na fronteira de um sistema dominante de características
urbano-industriais. Numa região marcada pela hegemonia absoluta do sector
turístico, com todas as deseconomias externas que esse facto acarreta, julgamos fazer todo o sentido esta advertência elementar a propósito de uma
eventual apropriação indevida da cultura antropológica contida na ecologia
humana da Dieta Mediterrânica.
Nesta linha de raciocínio, e com todas estas cautelas, os principais tópicos
em agenda neste ponto dizem respeito, respectivamente, à herança das “linhas
paralelas” da economia algarvia, à falta de verticalização das cadeias de valor
dos produtos regionais, à ausência de uma linha contemporânea e representativa de “produtos regionais estruturados verticalmente”, a uma rede de suporte
da Dieta Mediterrânica para os planos de preservação e promoção e, finalmente, aos riscos associados à introdução dos “procedimentos DM”, em face, justamente, dos pergaminhos eco-antropológicos da Dieta Mediterrânica.
A herança das “linhas paralelas” da economia algarvia
A estruturação da economia algarvia no último meio século, pelo
menos, ocorreu ao longo de quatro linhas paralelas:
– A linha de costa que inclui o litoral e a área de paisagem protegida da
ria formosa;
208
Os territórios-rede
– A linha urbana que acompanha a Estrada Nacional (EN) 125 e que
inclui os núcleos urbanos em seu redor, assim como a chamada agricultura periurbana que é, em boa medida, hoje, uma agricultura intensiva e
forçada;
– A linha do barrocal, do rural algarvio mais tradicional, que acompanha,
por exemplo, a EN 270 e que inclui a agricultura tradicional algarvia,
em especial o chamado pomar tradicional de sequeiro;
– A linha serrana que acompanha, por exemplo, a EN 124 e a EN 2 e que
inclui a economia florestal e os produtos derivados da floresta, a economia do montado assim como a economia cinegética.
A história recente é, por demais, conhecida. Devido à hegemonia crescente da economia do imobiliário, nas suas diversas modalidades turísticas e
residenciais, o espaço compreendido entre a linha de costa e a linha da EN
125 foi sendo capturado para a actividade imobiliário-turística, tendo como
consequência a fragmentação da propriedade rústica, a profusão de equipamentos e infra-estruturas e, portanto, a inviabilização económica de muitas
explorações agrícolas tradicionais que revestiam características multifuncionais adequadas ao ecossistema mediterrânico algarvio. Esta pulverização da
propriedade rústica e da exploração agrícola tradicional coincidiu, por um
lado, com o definhamento do movimento associativo e cooperativo regional
e, por outro, com a emergência de um sector comercial muito heterogéneo de
onde emergem as superfícies comerciais, de todas as dimensões, que impuseram regras mais severas de produção e comercialização à economia agro-alimentar da região.
A velocidade de implantação do “novo modelo de negócio regional”
não deixou tempo para conceber e praticar uma verdadeira política de desenvolvimento agrícola e rural na região, não obstante o volume de ajudas que
foram chegando por via da PAC. Para este panorama ficar mais completo
devemos, ainda, juntar o agente comercial intermediário que, nos interstícios
da pequena economia local, continuou a fazer os seus negócios de oportunidade tirando vantagem das evidentes fragilidades financeiras e comerciais da
agricultura familiar, dominante no rural tradicional algarvio. Acrescente-se a
desorganização do mercado de trabalho local em consequência da sazonalidade do mercado de trabalho turístico, mais agressivo e mais atractivo. Esta
relação desigual, económica e comercial mas, também, interprofissional e
contratual, conduziu a uma forte descapitalização da agricultura familiar
algarvia e, com o tempo, ao seu recuo para a economia informal e, mesmo,
ao abandono de muitas pequenas propriedades, ao mesmo tempo que se
reduzia substancialmente a sua relação paisagística, ecossistémica e multifuncional com os recursos naturais locais da região.
António Covas e Maria das Mercês Covas
209
A falta de verticalização das cadeias de valor da economia algarvia
As quatro linhas paralelas que referimos, criaram, nos seus interstícios,
pequenas economias paralelas que mal comunicavam entre si. A falta de
reticulação destes quatro segmentos da economia algarvia e a relação desigual entre o sector associativo da produção e o sector empresarial da comercialização e do retalho deram origem a uma economia agrária regional muito
vulnerável e a uma economia rural muito sensível a estes fortes movimentos
de desestruturação socioterritorial. Os sinais mais evidentes estão à vista:
– Terrenos agrícolas expectantes à espera de valorização urbana;
– A desorganização dos mercados de trabalho do rural tradicional algarvio, trocados por trabalho sazonal nos sectores mais dinâmicos;
– As cadeias de produção locais, curtas e de reduzido valor acrescentado,
esmagadas pelas margens comerciais;
– Os canais de comercialização locais nas mãos de intermediários transportadores;
– O abandono de muitas propriedades rústicas e pequenas explorações
familiares;
– A degradação do património rural imaterial local e regional, por exemplo, da paisagem mediterrânica à arquitectura rural do barrocal-serra
algarvio.
O que fazer neste contexto e nestas circunstâncias?:
– Em primeiro lugar, abrir pontos de passagem e cruzamentos entre estas
quatro linhas paralelas da economia algarvia, criando, por via dessa fertilização, uma nova inteligência territorial;
– Em segundo lugar, criar cadeias de valor em que as actividades tradicionais da economia algarvia sejam penetradas pelas artes e pela cultura, isto é, fazer da patrimonialização, material e imaterial, uma nova
fonte de riqueza, por via das actividades criativas e culturais;
– Em terceiro lugar, inovar e criar uma nova linha de “produtos e serviços
estruturados”, com um designe do produto e um marketing mais arrojados;
– Por fim, disseminar estes benefícios de contexto através da reticulação
dos pontos de apoio de uma rede de suporte à Dieta Mediterrânica,
sejam micro-redes territoriais, redes temáticas ou territórios-rede com
mais músculo e sistema nervoso.
A título de exemplo, pensemos, por exemplo, na verticalização da
cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspectiva de valorização das economias locais e dos seus ecos-
210
Os territórios-rede
sistemas mais sensíveis, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico
preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.). Vejamos
uma primeira aproximação a essa cadeia de valor:
– Em primeiro lugar, trata-se de reagrupar os produtores da raça autóctone da cabra algarvia tendo em vista apurar e valorizar a biodiversidade
local da espécie e do seu nicho ecológico;
– Em segundo lugar, trata-se de organizar a assistência técnica, associativa e
pública, nessa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;
– Em terceiro lugar, trata-se de rejuvenescer o capital social envolvido,
seja no plano familiar dos produtores, seja convidando “novas entradas”
para o agrupamento;
– Em quarto lugar, trata-se de melhorar o processo de produção, de alargar as funções da cadeia de valor e de acrescentar as suas internalidades
tendo em vista reduzir os sus custos de transacção internos: raça, pastagem, biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc.;
– Em quinto lugar, trata-se de diversificar a linha de produtos finais da
cabra algarvia e de diversificar os mercados-alvo por via de uma comercialização e marketing mais inteligentes;
– Finalmente, trata-se de capitalizar a fileira de produção e de articular a
cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração florestal das ZIF,
acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e o sistema nervoso
deste sistema produtivo local regional.
Esta metodologia para a verticalização da fileira da cabra algarvia só
será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos em mãos um
projecto de território-rede em construção, inspirado nos princípios de desenvolvimento territorial que sustentam a filosofia da dieta mediterrânica. Nesta
segunda linha de actuação, estamos a robustecer a ecosocioeconomia rural e
regional e a estruturar as seguintes áreas de trabalho:
– O alargamento das áreas da agroecologia e da agricultura biológica;
– O alargamento das actividades criativas e culturais, desde as artes culinária e gastronómica, à artesania tradicional, os materiais locais e as
oficinas de artes e ofícios;
– A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo
de natureza;
– O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do
turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;
– O desenvolvimento das actividades de ecodesign, a economia verde e as
artes dos 3R, (redução, reciclagem e reutilização);
António Covas e Maria das Mercês Covas
211
– A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos,
lúdicos e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se
incluem os campos de férias e as residências seniores;
– O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de
residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à história local, a literatura oral, a poesia, o património imaterial.
Todas estas actividades podem e devem ser objecto de uma “convenção
territorial” que passará a ser a lei fundamental da construção social do futuro
território-rede. Uma comissão promotora pode ser o elemento de instigação
do projecto.
Configurar uma linha de “produtos e serviços estruturados”
A verticalização de uma actividade económica ao longo de uma fileira
ou cadeia de valor deve ser cruzada e complementada com uma rede de actividades reticuladas horizontalmente, de tal modo que destes cruzamentos e
desta malha possamos derivar uma nova inteligência territorial e, a partir
dela, desenhar um novo cabaz de “produtos e serviços estruturados” que
possamos identificar com uma nova imagem mais contemporânea e cosmopolita da região. Estamos a falar de uma malha mais apertada e de uma capilaridade socioterritorial mais densa onde a composição de actividades económicas tradicionais se cruze com as actividades criativas e culturais e a
visitação turística como elo de ligação de todas elas.
A título ilustrativo, vejamos como esta malha mais apertada e esta capilaridade socioterritorial mais densa poderiam ser organizadas numa região
como o Algarve. Enumeremos as artes tradicionais e pensemos no que poderia ser realizado com algumas pequenas inovações introduzidas nestas actividades de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar e construir um
território-rede e uma economia de rede e visitação turística:
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
10)
As artes do pastoreio da cabra algarvia;
As artes da rouparia/queijaria tradicional algarvia;
As artes da tirada da cortiça;
As artes do varejo e da apanha da azeitona;
As artes do varejo e da apanha da alfarroba e da amêndoa;
As artes da apicultura e da melaria e a transumância das abelhas;
As artes da pisa a pé das uvas;
As artes da destilação do medronho;
As artes da apanha do figo da índia;
As artes da apanha dos produtos micológicos;
212
Os territórios-rede
11) As artes associadas à poda e ao enxerto;
12) As artes associadas à cosmética tradicional;
13) As artes associadas às ervas aromáticas;
14) As artes associadas às ervas medicinais;
15) As artes da cestaria e da olaria;
16) As artes associadas às flores comestíveis;
17) As artes associadas à pesca artesanal;
18) As artes associadas à caça e à cinegética;
19) As artes da confeitaria e doçaria tradicionais;
20) As artes associadas à culinária tradicional;
(…)
Imaginemos, agora, o mapeamento destas actividades no território-rede
em construção e a diversidade de “produtos e serviços estruturados” que
seria possível realizar a partir da combinação e cruzamento de todas estas
actividades. A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria
de designe de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de
produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas
por nós sob a forma de “um dia em”:
– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a
destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;
– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas
e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao
apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à
noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;
– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas
guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do
barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de
aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da
dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta
área em particular;
– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária
dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o
turismo cinegético;
– Um dia na ria formosa: a observação de peixes e aves na ria formosa,
os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a
natureza e a vida selvagem da ria e actividades culturais e recreativas a
pretexto da ria;
António Covas e Maria das Mercês Covas
213
– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação
industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade
do montado;
– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone,
recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da
dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas
ao sistema agro-silvo-pastoril;
– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato
local;
– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de
produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais,
técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;
– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no
lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de
azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada,
sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.
Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas
especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção
criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de
educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e
programas recreativos de eventos e espectáculos nocturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário,
campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc..
Num outro plano, a criação de uma linha de “produtos e serviços estruturados” ligada ao território é um objectivo que merece ser prosseguido com
muita tenacidade e persistência. O exemplo da linha de artesanato “TASA”
(técnicas ancestrais, soluções actuais) é uma boa ilustração deste campo
imenso de possibilidades que combina matérias-primas locais e tecnologias
artesanais com soluções de designe e comunicação actuais que revolucionam
o marketing comercial e territorial devolvendo aos territórios e aos artistas
locais uma relevância que eles não tinham até aí. A linha de produtos ligados
214
Os territórios-rede
à cortiça, mais artesanais ou mais artísticos, e à rota da cortiça é outro excelente exemplo de embeddedeness territorial.
Se pensarmos nas múltiplas associações técnicas, tecnológicas e culturais entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distribuição, o marketing territorial e o design e a comunicação teremos um campo imenso de possibilidades para os “produtos e serviços estruturados” em
redor da cabra algarvia, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas
aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, etc., para
já não falar do universo das “sementes perdidas”, sobretudo na área hortofrutícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à
espreita de uma oportunidade.
Uma rede de suporte da Dieta Mediterrânica
No que diz respeito à aplicação prática de um plano de inventariação,
salvaguarda e promoção da Dieta Mediterrânica, é fundamental a construção
de uma rede de suporte à dieta mediterrânica, que pode assumir várias geometrias e naturezas, desde uma micro-rede local muito circunscrita a uma
rede de natureza temática e a um território-rede de âmbito mais alargado.
Uma micro-rede pode justificar-se para resgatar uma “semente perdida
ou um produto autóctone” em risco de extinção que, todavia, pode revestir
um valor científico e simbólico extraordinário para o plano de salvaguarda
da dieta mediterrânica. A rede temática é uma rede sobre inventariação e
classificação das “práticas alimentares e culturais e os estilos de vida” mais
representativos da Dieta Mediterrânica e que podem ser recolhidos em vários
pontos do país. Uma rede territorial é uma rede delimitada geograficamente
que, em primeira instância, tem a sua origem na comunidade política e cultural do concelho de Tavira, líder da candidatura, mas que pode ser estendida a
outros concelhos algarvios adjacentes ou distantes que com ele compõem um
“território vertical”, isto é, um território cujo corte seja representativo dos
vários estratos socioculturais que se estendem do mar até à serra.
No caso da rede temática, estamos convencidos de que o inventário e a
classificação das práticas alimentares, (desde a biodiversidade local até à
confecção alimentar) e dos estilos de vida (desde a estrutura familiar até às
formas de convivialidade, sociabilidade e festividade) merecerão tratamento
privilegiado. Neste particular, sabemos que já estão em curso trabalhos preparatórios de carácter operacional por via de comissões técnico-científicas
que se constituem numa espécie de actor-rede da Dieta Mediterrânica e tão
cedo quanto possível pois o plano de salvaguarda será avaliado nos próximos
quatro anos em 2018.
António Covas e Maria das Mercês Covas
215
No segundo caso, a rede territorial, estamos convencido de que podem
ser considerados duas linhas de abordagem, de primeira e segunda prioridade. A primeira linha corresponde ao concelho de Tavira, que é, em primeira
instância, o rosto da comunidade representativa da parte portuguesa da candidatura. Neste sentido, a eleição da Estação Agrária de Tavira como sede do
futuro Centro de Estudos da Dieta Mediterrânica seria uma excelente escolha
para celebrar o arranque do plano de salvaguarda e promoção da Dieta Mediterrânica, tanto mais quanto a Estação Agrária de Tavira dispõe de um espólio valioso de variedades hortofrutícolas que serão, não apenas no plano
simbólico mas, sobretudo, no plano da biodiversidade local e regional, um
óptimo ponto de partida para o lançamento e a promoção da Dieta Mediterrânica. De resto, esta primeira prioridade é perfeitamente compatível com as
micro-redes de salvaguarda de sementes perdidas e espécies autóctones.
No que diz respeito à segunda linha de abordagem da rede territorial,
seguindo o critério dos “concelhos verticais representativos”, estamos convencidos de que, em primeira aproximação, uma das zonas mais relevantes
para este efeito é aquela que encontramos no cruzamento e na área de
influência das estradas nacionais N124, N2 e N270. Assim sendo, a primeira
rede experimental de suporte da Dieta Mediterrânica poderia incluir as freguesias de Martinlongo, Cachopo, Barranco do Velho e Querença no alinhamento da N124, o Ameixial, novamente o Barranco do Velho e Alportel
no alinhamento da N2 e Alportel novamente, Santa Catarina e Santa
Luzia/Barril no alinhamento da N270. No prolongamento destas linhas podíamos ainda acrescentar as aldeias típicas do barrocal como são Alte, Salir e a
União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim. Quer dizer, estaríamos a
eleger uma boa parte da Serra do Caldeirão para este efeito, mas, também, a
eleger uma zona especialmente atingida pelos grandes incêndios do verão onde
o risco climático é elevado e onde, por isso mesmo, todas as “práticas alimentares e culturais” lutam abnegadamente pela sua sobrevivência.
A rede de suporte e os riscos associados à Dieta Mediterrânica
No Algarve, como sabemos, muita actividade depende da estratégia
seguida e prosseguida pela indústria do turismo/lazer, em sentido amplo.
Quer dizer, as condições de funcionamento em baixa densidade, que representa a maioria do território da região, só são possíveis se o turismo/lazer,
ele próprio, polinuclear e reticular o seu crescimento interno. Dito de outro
modo, o turismo/lazer é o sector-motor, a indústria-industrializante que tem
capital próprio suficiente para fazer uma incursão estratégica no interior do
Algarve, criando investimento multifuncional e empreendimentos de fins
múltiplos que reconfiguram o território e geram pequenas economias de
216
Os territórios-rede
aglomeração em seu redor, com ou sem base produtiva própria. Deve fazer
isto por razões de racionalidade económica e não por meras razões de circunstância ou oportunidade, dado que estamos convencidos de que o futuro
da indústria do turismo/lazer depende também da diversificação que for
capaz de imprimir ao contínuo campina-barrocal-serra, numa linha de “economia vertical” a que nos referimos anteriormente.
Neste sentido, uma “economia vertical” é uma espécie de “arquitectura de
interiores” que considera e trabalha conjuntamente sobre as infra-estruturas, os
equipamentos, os corredores ecológicos, a engenharia biofísica, as amenidades
paisagísticas, as economias de aglomeração e reticulação, as cargas e a gestão
ordenada dos fluxos turísticos para o interior. Se a pilotagem desta economia
vertical não estiver à altura da sua responsabilidade, a indústria do turismo/lazer continuará, muito provavelmente, a ser desequilibrante, enquanto os
programas de índole regional e local, supostamente desenvolvimentistas, serão
tão só redistributivos e cada vez mais assistencialistas.
Debater o desenvolvimento rural do interior e serra algarvios é reflectir
sobre o futuro de dois terços do território algarvio, é prevenir a região quanto
a um possível choque assimétrico que, de um momento para o outro, pode
irromper e devastar a economia costeira, é dar profundidade ao litoral e à
campina, é aproveitar territórios em estado preventivo, é, afinal, reequacionar a identidade profunda dos algarvios, num momento em que “as modas
identitárias estão na moda”. É aqui que, na equação desta economia vertical
que une litoral-campina-barrocal-serra, surge a Dieta Mediterrânica com factor de reunificação e apelação territorial.
Será a Dieta Mediterrânica um foco resiliente suficientemente forte
e capaz de contrariar os riscos de vária ordem que já hoje afectam o
interior algarvio?
Os valores culturais, patrimoniais, naturais e paisagísticos do mundo
rural são um bem público inestimável cuja fragilidade e vulnerabilidade
importa contrariar a todo o custo. A desertificação, as secas prolongadas, os
incêndios florestais, a degradação das reservas naturais de futuro, são uma
ferida a céu aberto nos ecossistemas agro-rurais da região do Algarve. Em
que medida, pode a Dieta Mediterrânica contribuir para contrariar os riscos
climáticos e ambientais associados a um despovoamento destes territórios?
O segundo tipo de riscos que pode seriamente afectar a Dieta Mediterrânica tem a ver com o rejuvenescimento e a sucessão geracional, isto é, com
o capital social hoje disponível e o capital social disponível no futuro próximo. É imprescindível fazer algum trabalho de investigação no terreno da
rede territorial de suporte que aqui sugerimos e realizar uma pré-qualificação
António Covas e Maria das Mercês Covas
217
dos actores disponíveis para este efeito. As juntas de freguesia podem ser,
em primeira instância, um ponto de partida com interesse mas outras estruturas associativas já existentes podem funcionar como os animadores dos pontos da rede. Outro ponto da rede com muito interesse, em matéria de capital
social, são todas as iniciativas que podem envolver os jovens saídos das
escolas técnicas profissionais e superiores da região.
Um outro tipo de risco associado à DM está relacionado com as boas
práticas impostas pelo respectivo “caderno de especificações” e, bem assim,
as tipologias diversas de certificação e controlo que podem causar danos elevados na micro e pequena agricultura local. Importa relembrar mais uma vez
que a Dieta Mediterrânica é uma apelação internacional que não se resume a
ser uma “cultura alimentar da escassez e da natureza hostil”, ela é também
um estilo de vida e uma antropologia do quotidiano. Uma abordagem meramente produtivista e economicista da DM pode ter efeitos contraproducentes
e impactos negativos sobre os modos de produção familiar e artesanal.
Finalmente, um último risco associado à Dieta Mediterrânica está relacionado com a sua política de imagem, ou a sua imagem de marca, e o plano de
marketing que for julgado mais apropriado, isto é, com a possibilidade de, no
futuro próximo, a Dieta Mediterrânica aparecer travestida de produtos e serviços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos. Se a imagem de
marca da DM for confundida com uma sucessão de eventos mais ou menos
“turistificados” então o risco de uma “dieta kitch” espreitará a todo o momento.
Em conclusão, a apelação “Dieta Mediterrânica, património imaterial da
humanidade” afigura-se como uma oportunidade única para realizar o up-grade da economia local e regional algarvia, em especial a promoção da
economia do barrocal algarvio e da economia serrana. Serve, porém, a advertência para dizer que se deve depositar uma expectativa contida e moderada
em tal desiderato. Para o efeito, a região precisa urgentemente, no plano da
microgeoeconomia territorial e dos territórios-rede, de levar a cabo um
ensaio experimental, uma rede temática e territorial, que possa lançar as primeiras sementes do que será, no futuro próximo, uma política de certificação
regional da dieta mediterrânica. Este é um desafio de longo alcance e um
bem comum inestimável para o país e a região do Algarve. Recordemos, a
propósito, que o primeiro teste, a avaliação do plano de salvaguarda, estará à
nossa frente já em 2018. O tempo urge, pois.
Conclusão
Na terceira parte debruçámo-nos sobre a construção social dos territórios-rede da 2.ª ruralidade. Os territórios-rede são, essa é a nossa convicção,
218
Os territórios-rede
uma promessa carregada de futuro, uma promessa que nós aqui enunciamos
e anunciamos. Eis algumas conclusões acerca desta promessa de futuro.
Em primeiro lugar, a dinâmica dos territórios hoje, a sua velocidade de
transformação, obriga-nos a reconsiderar a natureza do problema rural, de
um território espaço de produção para um território cada vez mais espaço de
consumo e visitação. Neste alargamento, a sociologia rural e o desenvolvimento rural estenderam e ramificaram o seu campo teórico para dentro da
teoria social e essa fertilização cruzada beneficiou extraordinariamente a
construção social dos territórios-rede, sobretudo a sua natureza cognitiva, o
seu quadro analítico, a sua topologia e tipologia.
Em segundo lugar, a construção social dos territórios-rede é fortemente
tributária do aprofundamento da cooperação territorial e funcional que os
espaços-territórios particulares forem capazes de mobilizar e implementar,
assim como das inovações socio-organizacionais introduzidas em matéria de
governança e administração dedicadas, que nós aqui identificámos com a
criação de um agente principal designado de actor-rede. Esta corrente teórico-prática dos territórios-rede não esquece, porém, que se move em terreno
adverso e que é minoritária no campo de forças do mainstream do capitalismo financeiro e do agro-business. Neste contexto, a teoria dos territórios-rede e do actor-rede pode ser apelidada, com legitimidade, de uma “teoria
da resiliência” de economias e sociedades à margem da Grande História e,
ainda, de uma “teoria do capital social” sob a forma de “cooperação low
cost” de natureza funcional e territorial.
Em terceiro lugar, transportámos o corpo teórico-prático dos territórios-rede para o campo experimental dos territórios em concreto e procurámos
avaliar em que medida a transposição multi-escalar ou multiníveis entre territórios pode ser útil e instrutiva para os nossos exercícios de engenharia e
governança territoriais (Pereira, 2013, 2009), (Gonçalves et al., 2013) e
(Dallabrida, 2011, 2010). O nosso ponto de partida foi uma experiência já
concretizada de microgeoeconomia territorial, o Projecto Querença e as suas
oito réplicas. Aos ensinamentos destas micro-redes de experimentação territorial juntámos o arsenal conceptual e instrumental dos territórios-rede em
construção e, assim, chegámos à discussão da Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da Humanidade, uma apelação territorial de prestígio que
nos foi concedida pela UNESCO. Em aberto fica, ainda, a possibilidade de
delimitarmos uma rede territorial para testar no terreno concreto da região
algarvia os “encargos e as especificações” desta apelação de prestígio tão
portadora de futuro.
CONCLUSÕES GERAIS E FINAIS
Interessa-me o futuro porque é o sítio
onde vou passar o resto da minha vida.
Woody Allen
O texto que agora terminamos é, nos limites do nosso conhecimento e
dos nossos desejos, uma aposta comedida e ponderada sobre o futuro próximo. Não é uma preocupação de agora. Este texto é o terceiro livro de uma
trilogia que inclui mais dois títulos, a saber, A Grande Transição (Covas e
Covas, 2011) e A caminho da 2.ª Ruralidade (Covas e Covas, 2012). A ruralidade é, portanto, o espaço cénico e o campo de forças onde tudo acontece:
a construção social de um território-rede, a emergência de um actor-rede e o
desenvolvimento de uma nova inteligência territorial.
A nossa primeira convicção é a de que os territórios guardam conhecimentos tácitos e expressos fundamentais que podem ser instigados e provocados na boa direcção, por via de processos e procedimentos de cooperação
funcional e territorial estimulados e activados por um agente singular denominado actor-rede.
A nossa segunda convicção é a de que estes territórios particulares,
sejam privados ou públicos, não respondem imediatamente a esta instigação
ou provocação porque sofrem de um paradoxo muito comum que nós denominamos de “paradoxo da vizinhança”, acerca do qual, para simplificar,
poderíamos dizer que “santos de casa não fazem milagres”. O paradoxo diz-nos que os territórios vizinhos abdicam da proximidade e da intersubjectividade das relações de vizinhança em benefício de relações mais impessoais e
virtuais onde, aparentemente, é menor o risco moral e a retaliação pessoal.
Ao relegarem para plano secundário a sua relação de vizinhança, os territórios abdicam de um enorme potencial de cooperação que está implicitamente
contido nos seus respectivos stocks de capital.
220
Os territórios-rede
A nossa terceira convicção é a de que precisamos de uma dose apropriada de “utopia com os pés na terra” (Telles, 2003) para ultrapassar este
paradoxo da vizinhança, cuja matéria-prima-bruta são os custos de transacção, o risco moral e o free raider que estão contidos na transição de um
território-zona para um território-rede. Precisamos de doutrina, de “ficções
de consenso” e de processos e procedimentos que façam avançar o trabalho de construção social, características próprias de um verdadeiro território cognitivo.
A nossa quarta convicção é a de que precisamos de uma boa teoria para
resolver um problema prático. Essa é a razão pela qual o universo conceptual
dos territórios-rede mergulha fundo as suas raízes na teoria social disponível
com o objectivo de configurar um quadro analítico mais poderoso e construtivo. Lembremos os três pilares desta teoria dos territórios-rede: a cooperatividade, sob a forma de reciprocidade e troca de capital social low-cost, a
produção de internalidades, de modo a reduzir os inputs externos e os custos
de transacção internos e a coopetitividade, sob a forma de bens de mérito e
reputação e de uma institucionalidade dedicada e eficaz sob a égide de um
actor-rede.
A nossa quinta convicção é a de que a 2.ª ruralidade e, em particular, a
chamada 3.ª revolução verde são um terreno de eleição para a construção
social dos territórios-rede. Nesta linha, a contribuição do arquitecto Gonçalo
Ribeiro Telles (GRT) é um input muito importante no sentido de uma biopolítica da paisagem e do território, de uma configuração feita de estrutura,
ordem e beleza, se quisermos, a mesma “utopia com os pés na terra” em que
parece apontar a denominação de Dieta Mediterrânica, património imaterial
da humanidade, apelação concedida pela UNESCO a uma candidatura transnacional liderada pela cidade portuguesa de Tavira.
A nossa sexta convicção é a de que o actor-rede é a figura central desta construção social do território-rede. Só o actor-rede parece estar em
condições de transformar uma série de territórios particulares num espaço
comum cooperativo e este num novo espaço público que sendo um objecto
de cultura, pode ser igualmente, objecto de consumo e visitação. Tal como
o concebemos, o actor-rede é o único que pode mobilizar as condições de
imanência e transcendência necessárias para desencadear uma nova inteligência colectiva no território-rede, em benefício de territórios críticos que
hoje estão à beira de “uma morte anunciada”, por exemplo, no grande interior de Portugal.
António Covas e Maria das Mercês Covas
221
A nossa sétima convicção é a de que esta “ecotopia com os pés na terra”, para ser experimentada, precisa de uma outra cultura política para lá da
política convencional, tal como a conhecemos hoje. A que temos hoje é
demasiado conservadora, rotineira, calculista e excessivamente institucionalizada. As instituições políticas de jurisdição fixa dominam a política convencional porque é nesse quadro territorial de geometria fixa que se reproduzem os sistemas, os aparelhos e as clientelas político-partidárias respectivas.
Ora, em alguns casos o experimentalismo territorialista e a construção social
em geometria variável, tal como aqui as descrevemos, podem entrar em rota
de colisão com as instituições e o regime estabelecido.
A nossa última convicção é a de que temos muitas dúvidas acerca das
nossas convicções. Somos, porventura, vítimas da nossa dúvida metódica
mas não desistimos facilmente. Como dissemos no início deste livro, pior do
que ter uma má ideia é ter uma ideia feita (Charles Péguy). Boa leitura.
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