superceticismo, niilismo e o pensamento fraco de gianni vattimo

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superceticismo, niilismo e o pensamento fraco de gianni vattimo
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SUPERCETICISMO, NIILISMO E O PENSAMENTO FRACO DE
GIANNI VATTIMO
Vinícius Renaud1
RESUMO: Em seu ensaio sobre a temática do “ceticismo” Impérios da crença: por que precisamos de mais
ceticismo e dúvida no século XXI?, Stuart Sim identifica uma espécie de “superceticismo” presente no
pensamento pós-moderno. Segundo o autor, ainda que não declaradamente filiados a uma tradição cética, seria
possível encontrar em pensadores contemporâneos, sobretudo pós-estruturalistas e desconstrutivistas, alguns
elementos que permitiriam dizer que suas filosofias constituíram-se a partir de algumas consequências do
ceticismo. Stuart Sim se mostra preocupado quanto a determinados “excessos” no superceticismo pós-moderno,
que poderiam levar a um tipo de niilismo. Com isso, surgem alguns questionamentos. Primeiramente, deveria se
definir o que é “niilismo”, e posteriormente se é um fenômeno de única expressão ou se existiriam versões ou
tipos diferentes. Posteriormente, poderia se questionar se o niilismo, necessariamente, traria problemas para o
ceticismo ou mesmo se haveria, invariavelmente, de incorrer em dogmatismo. Nesse sentido, se o autor diz que
esse tipo de pensamento é típico da pós-modernidade, mas ao mesmo tempo pode degringolar na forma de um
niilismo, acredita-se, aqui, que um bom autor para se abordar a temática seja o filósofo italiano Gianni Vattimo.
E por duas razões: primeiramente, porque o próprio autor atribui a si mesmo ser um pensador pós-moderno e ao
mesmo tempo niilista. A segunda razão é que o modo como o autor apresenta o niilismo não parece ser uma
forma temerária para um cético, pois a maneira como interpreta niilismo parece ter por objetivo também se
contrapor ao pensamento dogmático.
Palavras-chave: Superceticismo; Niilismo; Pensamento Fraco; Pós-Modernidade; Gianni Vattimo.
SUPER-SCEPTICISM, NIHILISM AND GIANNI VATTIMO´S WEAK THOUGHT
ABSTRACT: In his essay on the theme of “scepticism” Empires of belief: why we need more scepticism and
doubt in the twenty-first century, Stuart Sim identifies a kind of “super-scepticism” in this post-modern thought .
According to the author, though not openly affiliated to a sceptical tradition, might be found in contemporary
thinkers, particularly post-structuralist and deconstructive, some elements that allow to say that their
philosophies were constituted from some consequences of scepticism. Stuart Sim is worried about certain
“excesses” in the post-modern super-scepticism, which could lead to a kind of nihilism. Thus, some questions
arise . First, it should define what “nihilism”, and later is a phenomenon unique expression or whether there are
different versions or types. Subsequently, it could be questioned whether nihilism necessarily bring problems for
scepticism or even if there would invariably incur dogmatism. In this sense, the author says that this kind of
thinking is typical of post-modernity, but at the same time can fall apart as a nihilism, it is believed here that a
good author to address the issue is the Italian philosopher Gianni Vattimo. And for two reasons: first, because
the author attaches himself to be a post-modern thinker while nihilist. The second reason is that the way the
author presents nihilism does not seem to be a sceptic to a reckless way, because the way it interprets nihilism
appears to aim to also oppose the dogmatic thinking.
Keywords: Super-Scepticism; Nihilism; Weak Thought; Post-Modernity; Gianni Vattimo.
Em seu ensaio sobre a temática do “ceticismo” Impérios da crença: por que
precisamos de mais ceticismo e dúvida no século XXI?, Stuart Sim identifica uma espécie de
“superceticismo” presente no pensamento pós-moderno. Segundo o autor, ainda que não
declaradamente filiados a uma tradição cética, ou “escola”, ou ao menos não tão interessados
no itinerário que os estudiosos do ceticismo perseguem, seria possível encontrar em
pensadores contemporâneos, sobretudo pós-estruturalistas e desconstrutivistas, alguns
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Mestrando em Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pósgraduado (lato sensu) em Ética Filosófica (Faculdade São Bento-RJ) e em Filosofia Contemporânea (PUC-Rio).
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elementos que teriam ligação com certas vertentes céticas, ou mesmo poderiam ser
consideradas filosofias que construíram sua trajetória a partir de algumas consequências do
ceticismo.2 Segundo Sim (2010, p. 69):
O superceticismo envolve uma rejeição de quase todos os fundamentos possíveis da
verdade, o que praticamente é o mais radical que se pode ser na causa do ceticismo
[...] O que quer que seja sugerido como base de uma crença ou conhecimento não
estará à altura, e esses pensadores deixam claro que seria uma ilusão esperar outra
coisa.
Os autores que Sim toma como exemplo são Lyotard, Deleuze, Foucault, Baudrillard,
Derrida, entre outros. Segundo o autor, as bases do ceticismo desses pensadores viriam dos
escritos de Nietzsche e de alguns autores da Escola de Frankfurt. O “superceticismo” pósmoderno, de acordo com Sim (id., ib., p. 70), seria comprometido com a pluralidade de
pensamento e o distanciamento em relação a modos de pensar que viriam a suprimir as
diferenças. O ceticismo, no pensamento pós-moderno, seria uma estratégia contra a
possibilidade de fundamentos absolutos de crença: “Quando cuidadosamente disposto o
superceticismo pós-moderno pode ser uma ferramenta valiosa no combate às asserções feitas
pelos diversos impérios da crença de estar em posse da verdade absoluta” (id., ib., p. 71).
No entanto, Sim frisa que determinados “excessos” no pensamento pós-moderno
poderiam levar ao niilismo. Ou seja, o autor aponta preocupado para uma certa consequência
desse “superceticismo” que ele parece temer, ou pelo menos adotar alguma prudência. Quanto
a esse ponto, observe-se o comentário de Bicca (2012, p. 223):
O ceticismo é, por muitos autores em nosso tempo, alinhado ao lado de quem
julguem merecer rótulos como ‘relativistas’, ‘niilistas’ e outros mais, sobre os quais
os adversários dizem tratar-se de defensores de um ‘vale tudo’ na esfera filosófica,
seja no plano cognitivo, seja no ético e cultural. A cena do debate está formada: do
lado oposto estão os ‘tradicionalistas’, os advogados do absoluto (saber ou certeza) e
da objetividade.
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Embora se reconheça que é superficial falar apenas em “ceticismo”, levando-se em conta as diferenciações
entre ceticismo pirrônico, acadêmico, moderno, por exemplo, “ceticismo”, aqui, será levado em conta, em linhas
gerais, segundo as definições de Bicca (2012, p. 125-126): “O ceticismo rejeita toda e qualquer tentativa de
afirmar-se um fundamento, sobre o qual alguma instituição ou forma de comportamento pudesse ser preferida a
outra, rejeitando portanto qualquer tentativa de estabelecer-se com autoridade um padrão ou modelo pelo qual se
fixaria como se deve responder ou reagir em situações difíceis”; e de Sim (2010, p. 15, 55): “O ceticismo na
filosofia é a posição que questiona a possibilidade de haver algum fundamento absoluto para as teorias da
verdade ou do conhecimento, ou para a crença [...] Eu veria o ceticismo antes como uma cura para a pretensão
filosófica, uma permanente crítica interna ao discurso filosófico, taticamente equipado para pensar o impensável,
e dizer o indizível, sobre todas as grandes narrativas, em franca oposição aos guardiães destas últimas [...] As
grandes narrativas, na filosofia como em todos os outros lugares, sempre se esforçarão por exibir aquela
aparência externa de autoridade incontestável, e é isso, acima de tudo, que o ceticismo está interessado em
desmanchar”.
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Os comentários desses dois autores acabaram por motivar a produção deste texto. Se
determinados “excessos” no superceticismo pós-moderno poderiam levar a um tipo de
niilismo, questões surgiriam. Primeiramente, deveria se definir o que é “niilismo”, e
posteriormente se é um fenômeno de única expressão ou se existiriam versões ou tipos
diferentes. Posteriormente, poderia se questionar se o niilismo, necessariamente, traria
problemas para o ceticismo ou mesmo se haveria, invariavelmente, de incorrer em
dogmatismo.
Outro ponto incentivador deste texto é a possibilidade de se referir menos
abstratamente a esse “superceticismo” que Sim faz menção, pois, se o autor diz que esse tipo
de pensamento é típico da pós-modernidade, mas ao mesmo tempo pode degringolar na forma
de um niilismo, acredita-se, aqui, que um bom autor para se abordar a temática seja o filósofo
italiano Gianni Vattimo. E por duas razões: primeiramente, porque o próprio autor atribui a si
mesmo ser um pensador pós-moderno e ao mesmo tempo niilista. A segunda razão é que o
modo como o autor apresenta o niilismo não parece ser uma forma temerária para um cético,
pois a maneira como interpreta niilismo parece ter por objetivo também se contrapor ao
pensamento dogmático. Se consegue totalmente escapar ao dogmatismo, não é a questão a ser
abordada aqui, pois não seria possível dar conta de todas as possibilidades de leitura do
dogmatismo3 para a tradição de estudos relacionados ao ceticismo. Por ora, limita-se a
apresentar um tipo de pensamento que seria uma exemplificação desse “superceticismo”
citado por Sim (já que uma exemplificação de pensamento autenticamente pós-moderno) e, ao
mesmo tempo, niilista que tem, por proposta, se opor ou se distanciar do dogmatismo.
Vattimo tem por objetivo conferir vigor e sustentação ao pensamento pós-moderno a
partir da concepção de “niilismo” de Nietzsche e da empreitada heideggeriana do “fim da
metafísica”, rejeitando, juntamente com esses autores, qualquer tipo de superação, evolução
ou perspectiva dialética (características do pensamento moderno e ainda metafísico), que
caminha sempre progressivamente, tentando recuperar o fundamento, ou a origem, “a
verdade”, utilizando-se para isso de métodos, sistemas que visem a um “esclarecimento”
gradual da humanidade, por meio de retornos à tradição, indicando em que ponto “erramos” e
que perspectiva devemos seguir, pela razão, para que encontremos o seguro caminho da
verdade (Vattimo, 2002a, p. VI). Para o autor italiano, a tarefa do filósofo da pósmodernidade seria a de distanciar-se criticamente desse pensamento que busca o fundamento
3
Para Stuart Sim, “dogmática” é toda atitude baseada em uma forte crença sem questionamentos. O modo como
o autor entende o dogmatismo pode ser acompanhado já na introdução de seu livro Impérios da crença: por que
precisamos de mais ceticismo e dúvida no século XXI? (p. 9-24). Para uma outra definição de “dogmatismo”, ver
Teoria do conhecimento, de Johanes Hessen, p. 29-31.
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“forte”, último das coisas, algo para que possibilite categorizar, de forma definitiva e
inequívoca, os objetos, o homem, o mundo por adequação a essa verdade descoberta. Mas a
postura de se afastar criticamente de um pensamento que busque o fundamento deve atentar
para o perigo de se instituir outro fundamento absoluto, o que seria uma mera substituição,
trocar uma verdade por outra – o que no fundo seria ainda estar preso ao pensamento
moderno, visto que só se consideraria um fundamento mais verídico que outro, mais eficiente
e correto no que diz respeito à adequação ideal (Vattimo, 2002a, p. VII).
Esse “evitar buscar um fundamento absoluto” Vattimo retira principalmente do modo
como interpreta a filosofia de heideggeriana acerca do ser. Segundo Heidegger, a tradição
filosófica ocidental sempre pensou o ser como sendo algo que possuiria uma identidade
estável, fixa, única, como sendo algo que sempre foi, imutável; tal postura para ele seria a não
distinção entre ser e ente, daí dizer que a metafísica não teria reconhecido a diferença
ontológica. Para Heidegger o ser seria um evento, um acontecimento, uma verdade que
aparece, surge, é desvelada, mas sempre parcialmente, sempre temporal, histórica – na
verdade, pensar o ser como evento e como algo que se desvela e se vela novamente é reservar
ao ser sempre modos de acontecimento diferentes, que sempre estarão ligados a um
determinado tempo histórico, será sempre uma abertura devedora da história como tradição
(linguística) mas ao mesmo tempo apontando para uma outra forma de vivenciar: “A
ontologia nada mais é que interpretação4 da nossa condição ou situação, já que o ser não é
nada fora do seu “evento”, que acontece no seu e nosso historicizar-se (id., ib., p. VIII).
O exercício que Vattimo propõe como possibilidade pós-moderna é um pensamento
que tenha por objetivo aprofundar a destruição da ontologia clássica realizada por Nietzsche e
Heidegger, chegando-se ao termo cunhado pelo autor italiano “debilitamento do ser”
(Vattimo, 2002a, p. 181-182; 2004, p. 33), que seria a perspectiva do ser não metafísico,
pensado de forma não platônica, livre das estruturas estáveis, dos fundamentos “fortes” –
considerando o devir como essência do ser, este não mais sendo compreendido como
4
A “intepretação”, no sentido da filosofia de Vattimo, “é sempre um caminho, uma vez que não permite uma
interpretação definitiva do mundo e das coisas. Destarte interpretar implica sempre esbarrar na inexaurível
problemática da experiência humana que é finita” (Teixeira, 2005b, p. 97).
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absoluto, imutável, e sim a partir de um viés histórico, temporal, hermenêutico, 5 e, nesse
sentido, “fraco”.
Enquanto o homem e o ser forem pensados, metafisicamente, platonicamente, em
termos de estruturas estáveis que impõem ao pensamento e à existência a tarefa de
“fundar-se”, de estabelecer-se (com a lógica, com a ética) no domínio do nãodeveniente, refletindo-se em toda uma mitificação das estruturas fortes em qualquer
campo da experiência, não será possível ao pensamento viver positivamente aquela
verdadeira idade pós-metafísica que é a pós-modernidade (Vattimo, 2002a, p.
XVIII).
O pensamento correlativo a essa “ontologia fraca” é o que Vattimo define como
“pensamento fraco”.6 Essa expressão, segundo o autor, é uma metáfora provisória, um
exercício,
uma
experimentação,
que
tenta
acompanhar
as
consequências
desse
enfraquecimento do ser tradicional (Rovatti, 2006, p. 70). Uma delas é o reconhecimento da
ausência de condições transcendentais da possibilidade de experiência que possam suspender
determinados horizontes histórico-culturais, linguísticos (Vattimo, 2006, p. 19). A ideia de
fundamento forte não se mostra mais eficiente para dar conta da complexidade de
conhecimentos e acúmulos histórico-científicos; se for para falar de algum nível de
fundamentação, ele só poderá ser de cunho hermenêutico, o que significa, na filosofia de
Vattimo, reconhecer a finitude e a caducidade inerentes ao conceito de “ser”. Essa “ontologia
fraca”, segundo Vattimo, é herdeira das consequências da “morte de Deus” apontada por
5
Sobre o modo como Vattimo compreende “hermenêutica”: Os argumentos de que parte uma teoria
hermenêutica da verdade são já conhecidos: a constatação da secundariedade da verdade como correspondência,
e da necessidade de uma abertura prévia que torne possível qualquer verificação ou falsificação de proposições;
o reconhecimento (existencialístico, anteriormente nietzschiano e também por certas vertentes positivistas; e aí
penso em Spencer) da finitude – isto é, historicidade, eventualidade – da verdade primária: o sujeito não é
portador do a priori kantiano, porém herdeiro de uma linguagem hisrórico-finita que torna possível e condiciona
o seu acesso a si próprio e ao mundo. Estes passos, ligados na reflexão da hermenêutica moderna com a
problemática das ciências do espírito – já que é precisamente encontrando os limites na pretensa objetividade das
ciências experimentais e da sua concepção metódica da verdade que vem à luz a interpretatividade de toda
experiência do verdadeiro e, junto, a historicidade das aberturas dentro das quais todo verdadeiro pode dar-se –
parecem porém conduzir somente àquela que me parece ser a que se possa chamar de hermenêutica como
metateoria do jogo das interpretações” (Vattimo, 1999, p. 21).
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Teixeira (2005a, p. 7-8, 122) oferece uma boa compreensão do que seria o “pensamento fraco” na filosofia de
Vattimo: “Vattimo caracteriza o pensiero debole através de quatro idéias principais: a primeira diz respeito em
tomar a sério a idéia nietzschiana, e talvez marxista, do nexo existente entre evidência metafísica e relações de
domínio dentro e fora do sujeito; a segunda busca um “olhar amigo” e sem angústia para o mundo das
aparências, dos procedimentos discursivos e das formas simbólicas, vendo nessas o lugar de uma possível
experiência do ser; uma terceira diz respeito a anterior, chama a atenção para não cair na glorificação de
Deleuze, que equivaleria a voltar a um ontos on; por último, uma quarta idéia entende que a identificação de ser
e linguagem, que a hermenêutica toma de Heidegger, não como um modo de reencontro do ser originário e
verdadeiro, do qual esqueceu a metafísica, mas sim como uma via para encontrar o verdadeiro e novamente o ser
como “pegadas”, “recordo”, ser fragilizado [...] O pensiero debole possui uma ontologia de enfraquecimento do
ser, de desestabilização da substância. O ser debilitado converte-se, portanto, em evento e acontecimento,
efêmero, essência temporal. O pensiero debole caracteriza-se também pela falta de fundamento, próprio da
metafísica de qualquer espécie. Esta carência de fundamentação faz parte da Pós-modernidade em geral. O
niilismo nietzschiano e heideggeriano nega, sobretudo, realidades absolutas”. Ainda sobre essa questão, ver
Vattimo, 2006, p. 38-40.
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Nietzsche, e, sendo assim, assume como hipótese – ou melhor, como interpretação – a
caducidade de todas as nossas representações da realidade (id., ib., p. 33-34).
Se é possível ainda falar em “verdade”, a posição que se adota é da verdade
desprendida das pretensões metafísicas, sem ligação cientificista ou positivista, e sim uma
verdade hermenêutica, estética e retórica,7 que seja reconhecidamente criada, elaborada,
“inventada”, discutida, aceita, acolhida, e não comprovada, demonstrada cientificamente – ou
muito menos dogmática, ou imposta. Com isso se afirma a ficcionalidade no advento desse
tipo de verdade, não mais epistêmica ou cognitivamente inquestionável. O objetivo é atingir o
“senso comum”, que os indivíduos sejam os construtores das verdades, sempre com a
perspectiva de que não há hierarquia ou local privilegiado de onde seja possível ser mais
verdadeiro, já que a partir do momento que não se considera mais uma verdade ideal, em que
cabe apenas descobri-la, mas sim criá-la, não há mais sujeito privilegiado, e sim o exercício
de construir sentidos, valores que sejam formulados, discutidos, debatidos e aceitos pelos
homens. No entanto, frisa Vattimo (2002a, p. XIX):
A passagem ao domínio do verdadeiro não é a pura simples passagem ao “senso
comum”, por maior que seja o significado “substancial” que se lhe atribui; e
reconhecer na experiência estética o modelo da experiência da verdade também
significa aceitar que esta tenha a ver com algo mais do que o puro e simples senso
comum, com “grumos” de sentido mais intensos, dos quais somente pode partir um
discurso que não se limite a duplicar o existente, mas estime, além disso, poder
criticá-lo.
Como origem desse pensamento que se fundamenta como pós-metafísico, Vattimo
apropria-se da concepção nietzschiana de “niilismo”,8 considerando, a partir de suas diversas
etapas e definições, o que seria classificado como “niilismo consumado”, em que o homem,
descrente dos fundamentos e abandonando a ideia de qualquer instância metafísica ou
transcendente que desse conta de sua existência, impõe-se a tarefa de criar novos valores, de
7
Nesta passagem Vattimo articula a relação entre verdade, hermenêutica e retórica: “A verdade hermenêutica,
isto é, a experiência de verdade que a hermenêutica reivindica e que vê exemplificada na experiência da arte, é
essencialmente retórica. ´O que se deveria chamar de reflexão teórica sobre a compreensão se não a retórica,
que, desde a tradição mais antiga, se apresenta como o único advogado de uma reivindicação de verdade que
defende o verossímil, o eikós, a evidência da razão comum, contra as pretensões de certeza e demonstratividade
da ciência? Convencer e explicar sem poder apresentar provas são evidentemente o objetivo e a medida tanto da
compreensão e da interpretação como da arte do discurso e da persuasão retórica´” (Vattimo, 2002a, p. 135). No
entanto, o filósofo italiano esclarece que a experiência pós-moderna da verdade como experiência estética e
retórica “nada tem a ver com a redução da experiência a emoções e sentimentos ´subjetivos’, mas, antes, leva a
reconhecer o vínculo da verdade com o monumento, a estipulação, a ‘substancialidade’ da transmissão histórica”
(id., ib., p. XIX).
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Acerca do significado de “niilismo” na obra nietzschiana, o comentário de Ansell-Pearson é de grande valia:
“O niilismo descreve uma condição em que há um disjunção entre nossa experiência do mundo e o aparato
conceitual de que podemos dispor, e que herdamos, para interpretá-la. Assim, a experiência de uma crise moralmetafísica, em que nossos hábitos e tradições já não nos amparam, não é peculiar à idade moderna, mas
caracteriza qualquer época em que aconteça uma transformação fundamental da autocompreensão” (AnsellPearson, 1997, p. 48).
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ser seu próprio legislador. Pode-se pensar a questão do niilismo a partir do que Nietzsche
entendia como acontecimento da “morte de Deus”, que seria, a partir da modernidade, a
derrocada valores supremos que até então norteavam a vida – a racionalização (científica e
tecnológica, consequências da “vontade de verdade”) da existência acabou por tornar obsoleta
a crença em um ser supremo, em um Deus (Vattimo, 2004, p. 21, 113). No entanto, com o
esfacelamento dos antigos arranjos da vida, os determinantes do “porquê”, “para quê”, o
homem se viu desamparado, sem ter de onde retirar os fundamentos para suas ações e as
justificativas para sua existência. A antiga crença no Deus cristão declina, e junto com ela o
sentido da vida. A consequência desse processo, segundo Nietzsche (2013, 9 [43] outono de
1887, p. 293-294), é o niilismo.
Conforme enfatiza Vattimo, para Nietzsche (id., ib., 9 [35] outono de 1887, p. 289290), o niilismo é ambíguo, há duas possibilidades de vivenciá-lo: niilismo (ativo) pode ser
experimentado como uma elevação do poder de criação, ao ponto dos valores até então
vigentes se mostrarem insuficientes para a manifestação criativa dessa força, daí a
necessidade de perecerem; niilismo (passivo) também pode ser sinal de um declínio do poder
do espírito, sinal de fraqueza, esgotamente das crenças até então em vigência e inabilidade de
lidar com o cenário de abandono decorrente.
O caráter negativo inerente ao niilismo como tal assume um viés positivo, na medida
em que possibilita a nova posição dos valores, baseada no reconhecimento da
vontade de poder, como marca fundamental de tudo o que existe. Ao conseguir abrir
caminho afirmativo, o niilismo supera sua limitação e se completa. Torna-se
niilismo clássico. É esse o niilismo que Nietzsche reivindica como seu, quando se
declara “o primeiro niilista perfeito da Europa, mas tendo já ultrapassado o niilismo
por tê-lo vivido dentro de si profundamente (Volpi, 1999, p. 62-63).
O niilismo aqui apontado como vital para o pensamento pós-moderno é o “niilismo
clássico” de Nietzsche de que fala Volpi, niilismo este que Vattimo chama de “consumado”,
que encara a ressaca da transformação do mundo “real”, “verdadeiro” em fábula, a
experiência fabulizada da realidade como possibilidade de lidar com uma concepção de
realidade a partir da perspectiva da interpretação e da criação – não há mais algo que existe
absolutamente e que o homem pode, com o uso da razão, descobrir mediante métodos
investigativos que garantam descobrir todas as verdades dessa realidade. O que podemos
compreender a partir de agora é que toda realidade é sempre uma compreensão muito mais
interpretativa de uma determinada construção, uma ficção, e não “o real” desgarrado (e
acima) de um mundo imanente: “O mundo ‘aparente’ é o único: o ‘mundo verdadeiro’ é
apenas um mundo acrescentado de maneira mendaz” (Nietzsche, 2000, III, § 2, p. 28-29).
Essa leitura do real do ponto de vista da fábula e da ficcionalização de tudo do que se dá e se
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apresenta, é uma tentativa nietzschiana de livrar-se das dualidades ficção/realidade,
aparência/verdade, trevas/claridade, sombras/luz – uma proposta de interpretação diversa da
metafísica platônica (Nietzsche, 2000, IV, §§ 1-6, p. 35-36; Volpi, 1999, p. 57-59).
O niilismo (consumado) é a nossa chance porque não pretende ultrapassar a
alienação mediante a tentativa de uma reapropriação [...] o niilismo opera uma
desmistificação da força do real, suspende a coercitividade do mundo, põe no plano
do eventual tudo o que se dá como real, necessário, autêntico, peremptório [...] A
chance que o niilismo nos oferece, mas que afinal de contas não pode deixar de
depender de nós, dá-se no enfraquecimento das estruturas fortes da metafísica
(políticas, sociais, filosóficas etc.), na transpropriação do próprio, na desrealização
da realidade, na fabulação do mundo (Pecoraro, 2005, p. 64).
Se ainda é possível falar do “ser” segundo a perspectiva do niilismo nietzchiano
adotada por Vattimo, só pode ser a partir da compreensão do ser não mais como uma unidade
estável, como identidade única, imutável, absoluta, e sim como algo temporal e histórico; o
ser acontece – o que entra em cena é uma perspectiva de uma ontologia fraca, que pensa no
ser como algo que irá se apresentar a cada vez de forma específica, de acordo com o seu
tempo de acontecimento, as suas condições de aparição, determinadas condições, não mais
algo para ser descoberto, à mercê de um método estável que garanta a “certeza” moderna ou
mesmo uma dialética metafísica de ascensão à “verdade”. Segundo Vattimo (2002a, p. 69):
“A verdade como evento – a determinação cada vez nova e diferente de estruturas
ordenadoras da experiência, escritas nas linguagens mutáveis da humanidade”.
Uma das experiências possíveis de compreender essas perspectivas de ser e de
verdade, segundo Vattimo, é a experiência estética – a arte como desveladora do ser do ente
(Heidegger, 1977, p. 27). Vattimo aborda principalmente o texto de Heidegger A origem da
obra de arte, em que o filósofo alemão dá um novo sentido à arte e mais especificamente à
obra de arte, deslocando seu sentido de produção de beleza para deleite estético para produção
de verdade.
A obra de arte abre à sua maneira o ser do ente. Na obra, acontece esta abertura, a
saber, o desocultar, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente
pôs-se em obra na obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade. Que é a própria
verdade para que, de tempos em tempos, aconteça como arte? Em que consiste este
pôr-se-em-obra? (id., ib., p. 30).
A obra expõe objetos que são reconhecidos porque se tem acesso ao mundo desses
objetos – utilizando a terminologia heideggeriana, a obra abre um mundo e produz a terra: “A
terra é, decerto, hic et nunc da obra a que toda nova interpretação sempre retorna e que
sempre suscita novas leituras, portanto novos ‘mundos’ possíveis” (Vattimo, 2002a, p. 53).
Na obra de arte é aberta a verdade do ente, em que todo ente é um determinado ente inserido
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em uma realidade histórica (e não metafísica, ideal), só que a essência desse ente, o ser do
ente, sempre acontece, aparece, historicamente, situado em um contexto, em um mundo.
Dessa forma, mais que experimentar apenas a verdade sobre aquele determinado ente,
vivenciamos a experiência do acontecimento universal da verdade, que sempre é temporal,
histórica, atrelada a um mundo e a uma terra.
A pintura de Van Gogh constitui a abertura do que o apetrecho, o par de sapatos da
camponesa, na verdade, é. Este emerge no desvelamento do seu ser [...] Na obra, se
nela acontece uma abertura do ente, no que é e no modo como é, está em obra um
acontecer da verdade [...] põe-se em obra a verdade do ente (Heidegger, 1977, p.
27).
Na obra de arte há sempre a instauração de um mundo e a produção da terra, em uma
relação em que não há subordinação nem equilíbrio, na verdade há um conflito constante
entre mundo e terra (id., ib., p. 39), entre a cristalização e a possibilidade de novas
interpretações, pois quando surge um mundo, a tendência é, sobretudo no pensamento
Ocidental, de o mundo se cristalizar, se tornar “o” mundo, e não mais “um” mundo, e o que
permite que isso não aconteça é a terra, que sempre permite novos olhares, sempre se mostra
de nova forma, sempre expõe um novo mundo, e sempre é exposta por um novo mundo: “[...]
o mundo se torna um mundo, o que indica que a abertura da verdade não pode ser pensada
como uma estrutura estável, mas sempre como (um) evento” (Vattimo, 2002a, p. 59).
Os entes não existem absolutamente, em um plano ideal, em que sempre existiriam, ou
que seriam reconhecidos daquela mesma forma em qualquer civilização, mas sim uma
civilização que tivesse contato com os elementos que fizessem com que eles ganhassem
determinada clarificação. O que acontece com um ente específico é o que para Heidegger
constitui a essência de qualquer ente: ter sua verdade revelada sempre em um contexto, e
sempre parcialmente, pois não se esgotam as possibilidades de leitura sobre o ente
(Heidegger, 1977, p. 28, 44).
Mediante a arte, por uma obra de arte, chegaríamos ao ser do ente, e a verdade que
emergiria disso seria uma verdade que não seria de todo apreendida, e sim parcial; o ser do
ente seria desvelado mas ao mesmo tempo novamente velado, já que não haveria uma verdade
em algum lugar a ser descoberta – aqui a ideia de uma verdade referencial cai por terra, pois
não há mais o método de buscar a verdade por adequação, já que a verdade ainda está por
acontecer, ela é devir, precisará de um mundo para vir à tona e de uma terra para ser
apreendida:
Enquanto o mundo é sistema de significados que se lêem de maneira desdobrada na
obra, a terra é aquele elemento da obra que se adianta como sempre se fechando de
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novo, como uma espécie de núcleo nunca consumível pelas interpretações, nunca
esgotado nos significados (Vattimo, 2002a, p. 64).
Nessa perspectiva, a essência da arte estaria atrelada à linguagem (Heidegger, 1977, p.
59-60), à capacidade de nomear, de instaurar o novo, de produzir novos enfoques, novas
formas de lidar com o habitual, de produzir choque com o estabelecido, seria uma essência
Poética, de nomear, de caracterizar de acordo com um tempo histórico:
Só na medida em que a linguagem nomeia pela primeira vez o ente é que um tal
nomear traz o ente à palavra e ao aparecer” (id., ib., p. 59).
[...] o significado inaugural da poesia consiste em fundar mundos históricos (reais ou
possíveis, mas, também nesse segundo caso, sempre como mundos históricos), a
linguagem poética tem as mesmas características de inessencialidade da linguagem
representativa: consuma-se e quebra-se na referência à coisa, quando a coisa é
(desde então) feita presente (Vattimo, 2002a, p. 60).
A verdade não aconteceria apenas na arte, mas para Heidegger seria uma de suas
formas de aparição, em que seria possível a nós perceber ao que a verdade do ente estaria
atrelada, seria mais uma possibilidade de pensar de forma não metafísica, absoluta, o ente, e
pensar a partir de uma ontologia fraca, dando liberdade ao ser para a realização do projeto
niilista, para consumar o niilismo como niilismo positivo, criador, instaurador.
Verdade – antes e mais fundamentalmente que conformidade da preposição à coisa –
é abertura dos horizontes histórico-destinais no âmbito dos quais qualquer
verificação de preposições se torna possível, isto é, o ato em que se institui um certo
mundo histórico-cultural, em que uma certa “humanidade” histórica vê definidas de
modo original as características portantes da sua experiência do mundo (id., ib., p.
58).
A modernidade seria ainda uma época de essência metafísica, pois embora desalojasse
Deus de seu trono para dar conta da realidade e fornecer explicações sobre fenômenos da
natureza, fazendo dos valores tradicionais ultrapassados por causa do desenvolvimento da
técnica, da racionalidade científica, mergulhou profundamente na fé no progresso, que
passaria a dar conta de nossos problemas pelo fato de ser um método de maior eficácia em
relação à descoberta da verdade ainda como adequação: “Os assim chamados conceitos
críticos da verdade, que, desde Descartes, partem da verdade como certeza, são apenas
variações da determinação da verdade como adequação” (Heidegger, 1977, p. 41).
É com o pensamento pós-metafísico surgido na pós-modernidade, que abandona os
valores supremos, que se tem a possibilidade de experenciar uma nova maneira de lidar com o
niilismo, sem uma substituição de uma metafísica por outra, consumando o niilismo, evitando
os efeitos do niilismo reativo, passivo, negativo, buscando uma saída positiva para o evento
da morte de Deus, dando ao homem a oportunidade de não mais buscar uma referência,
11
qualquer instância que norteie sua vida, e sim dando-lhe a abertura de uma vida em que
estabeleça e crie seus próprios valores, não do nada, mas sim a partir do o trouxe até aqui,
partindo da tradição mas produzindo diferenças, rupturas, algo, de fato, novo.
No capítulo “Niilismo e pós-moderno em filosofia”, em O fim da modernidade:
niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, Vattimo, apoiado em Nietzsche, indica-nos
o caminho de saída da modernidade, mas que aponta para um importante detalhe. Se a
modernidade se caracteriza pela época da superação constante, pela novidade que
rapidamente envelhece, pela substituição veloz de novidades, não é possível uma escapatória
que seja pela superação por uma etapa mais evoluída, por um processo mais adequado ao
desenvolvimento científico, pois nesse sentido ainda estaríamos sob seus parâmetros
(Vattimo, 2002a, p. 171).
A “saída” pós-moderna é não mais apostar na crença de descoberta da verdade,
quebrando a estrutura dela como adequação, não mais visando a métodos mais eficazes de
busca por essa estrutura imutável, pois com a morte de Deus, o fim dos valores superiores, é o
próprio fundamento de qualquer verdade que fica sob suspeita, toda fundamentação absoluta
já não é mais sustentável (id., ib., 173).
Não apenas a ideia de fundamento se dissolve “logicamente”, do ponto de vista da
fundação das suas pretensões a valer como norma para o pensamento verdadeiro,
mas também se revela, por assim dizer, vazia do ponto de vista do conteúdo: a
insignificância da origem, quando essa se torna conhecida, aumenta e, por
conseguinte, “a realidade mais próxima, aquilo que está em torno e dentro de nós,
começa pouca a pouco a mostrar cores e belezas e enigmas e riquezas de
significado, coisas essas com que a humanidade antiga sequer sonhava” (id., ib., p.
175).
A concepção de pós-modernidade defendida por Vattimo é a de uma época que não se
compreende mais a realidade sob uma única ótica, submetida a apenas uma instância
metafísica que dê conta de todos os fenômenos, em que a tarefa da filosofia seria de descobrila, adequar-se a ela. E para Vattimo vive-se em um mundo que atualmente é pós-moderno,
pois “o mundo efetivamente pluralista em que vivemos não mais se deixa interpretar por um
pensamento que deseja unifica-lo a qualquer custo, em nome de uma verdade definitiva”
(Vattimo, 2004, p. 11).
Sendo assim, a possibilidade de uma racionalidade, mas uma racionalidade não
metafísica e não instrumental, dá-se pela via argumentativa, pela possibilidade hermenêutica,
pelo consenso, pelo convencimento, e não mais apoiando-se na verdade absoluta – já que se
renuncia ao fundamento universal que supere qualquer diferença cultural, histórica etc. –, é
uma racionalidade mais fraca, menos prepotente e com pretensões não mais de se chegar à
12
verdade absoluta, mas sim de aprender com os erros cometidos que se não se pode chegar ao
melhor, que pelo menos se evite o pior, relativizando e fragmentando as verdades
consolidadas, imutáveis, em prol do diverso e do novo, consumando o niilismo (Pecoraro,
2005, p. 133). Com o pensamento pós-moderno não metafísico, qualquer tentativa de
construção de consenso passa pela via do diálogo, pelo reconhecimento da diferença e pela
ausência de hierarquia e de privilégio na detenção de qualquer posição privilegiada de
verdade, recorre-se sempre à constituição histórica do conhecimento e à narrativa de
determinada verdade construída (Vattimo, 2004, p. 12).
É possível falar a partir da “contingência e historicidade do nosso existir” (id., ib., p.
13), pensando o homem como existente dentro de um mundo de significados e contextos,
compreendendo e relacionando-se de acordo com sua inserção no mundo, seu ser-no-mundo,
e o próprio ser compreendido como um evento, um acontecimento, situado historicamente, e
não mais de forma eterna, imutável, estática. O pensamento pós-moderno torna-se possível
com o advento do niilismo, a perda dos valores supremos, a morte de Deus e o fim da
metafísica, que representa um profundo ataque ao fundamento de cunho essencialista.
[...] o fim da metafísica, bem como a morte de Deus, é um evento que o pensamento
não deve registrar “objetivamente”, mas ao qual ele é chamado a dar uma resposta.
Um evento capaz de mudar a vida daqueles que recebem o seu anúncio e cuja
relevância, podemos afirmar, consiste justamente nessa mudança. O evento do “fim
da metafísica” tem, no pensamento de Heidegger, o mesmo sentido da morte de
Deus: aqui também é o Deus moral que é “überwunden”, superado, colocado de
lado. O que Heidegger chama de metafísica é, na verdade, a crença em uma ordem
objetiva do mundo que o pensamento deveria reconhecer para poder adequar tanto
suas descrições da realidade quanto suas escolhas morais (id., ib., p. 22).
O que o pensamento pós-moderno tenta, na contraposição à modernidade, é evitar
subordinar as possibilidades existenciais a uma objetividade do ser, objetividade que
transforma tudo em entes a serem controlados e conhecidos por uma racionalidade
instrumental, que transforma a vida em etapas calculáveis, socialmente organizadas segundo
uma ordem político-econômica que inibe qualquer possibilidade existencial que não esteja
enquadrada segundo sua lógica de desenvolvimento.
Se em um tempo pós-moderno experimenta-se o efeito do fim dos valores
inquestionáveis, da morte de Deus, esse evento teve seu início com a modernidade, que
ampliou as possibilidades de leitura do mundo, relativizando, senão acabando, com a narrativa
tradicional teológica e teleológica do mundo, dando à ciência e à técnica a possibilidade de
produção de verdade sobre o mundo. O aprofundamento do processo, o rápido
desenvolvimento científico, asseverou o mergulho em uma época que teria cada vez mais
13
dificuldade de se esmerar em critérios seguros e imutáveis, elementos não mais compatíveis
com a modernidade.
O desafio pós-moderno é desnudar o discurso dominante, mostrando que toda tentativa
de hegemonia enclausurante, estável, imutável é artificial, antinatural, violenta, que nenhum
argumento é autojustificável, e sim justificável de forma argumentativa, consensual, cabendo
à filosofia pós-moderna, e pós-metafísica, construir novos referenciais, oferecer novas leituras
mas, sobretudo, novas possibilidades de pensamento, de vivência.
[...] Nietzsche afirmava o caráter essencialmente metafórico da linguagem: cada um
associa livremente a um objeto uma determinada imagem mental e um som.
Somente ao se estabelecer uma sociedade e uma casta de dominadores nasce a
obrigação de se “mentir segundo uma regra estabelecida”, ou seja, de se usar, como
única língua “apropriada”, as metáforas dos dominadores, fazendo com que as
outras linguagens sejam degradadas à condição de puras linguagens metafóricas, ao
campo do poético. Bem, o pluralismo, sem centro, da época pós-metafísica, aboliu
toda e qualquer possibilidade de se distinguir a linguagem metafórica da linguagem
própria. Essa distinção, quando ainda persiste, é mostrada como puro efeito da
distribuição desigual do poder social (Vattimo, 2004, p. 25-26).
A “superação da metafísica”9 só se dá se não mais considerarmos o ser como algo uno,
imutável, e sim como um acontecimento, como evento. Nesse sentido, a tarefa frente a ele é
mergulhar em sua história, atentar para sua formação, para como aconteceu, como se deu, em
que circunstâncias apareceu, um “rememorar” seu processo de desvelamento/velamento.
Rememorar sua histórica significa voltar-se para a tradição que nos trouxe até aqui, para os
processos que nos fizeram enxergam as coisas como enxergamos, mas não para a partir daí
obtermos uma imagem mais verdadeira do ponto de vista de uma objetividade do que é o ser,
mas sim para tentarmos refazer o trajeto que levou até o seu acontecimento, descobrindo mais
sobre a sua formação. O “pensamento fraco” seria essa ressaca da descoberta do ser como
fruto de um processo histórico que descamba em um evento que não aconteceria
necessariamente daquele jeito, mas sim porque houve processos que proporcionaram aquele
tipo de acontecimento – “pensamento fraco” como abandono das pretensões ontológicas da
metafísica de busca por um ser eterno, estável etc.
O evento é o evento que acontece para nós hoje, aqui. Assim, o enfraquecimento do
ser, que se produz quando este se desvenda no salto como evento, é também,
inseparavelmente, um enfraquecimento, como sentido e fio condutor histórico, da
tradição dentro da qual saltamos. O retorno rememorado do ser é, igualmente, uma
filosofia da história guiada pela ideia do enfraquecimento: consumação das
estruturas fortes no plano teórico (desde a metafísica metanarrativa até as
9
Sobre essa questão, afirma Teixeira (2005b, p. 56): “No que se refere à ‘superação’ da metafísica, a motivação,
em última análise, é de razão ética e não teórica. Tal desconfiança tem a ver com um modo de pensamento
segundo o qual se deve duvidar de uma estrutura estável do ser que rege o futuro e dá sentido ao conhecimento e
normas de conduta”.
14
racionalidades locais; desde a crença na objetividade do conhecimento até a
consciência do caráter hermenêutico de cada verdade) e no plano da existência
individual e social (desde o sujeito centrado na autoconsciência até o sujeito da
psicanálise; desde o Estado despótico até o Estado constitucional; e assim por
diante...) (Vattimo, 2004, p. 33).
No entanto, com o fim dos valores superiores, com a morte de Deus, com o ocaso das
metanarrativas, processo oriundo da modernidade, o pensamento pós-moderno convive com a
ausência de fundamentação, o que pode gerar um problema: qual é o critério para qualquer
ação ou prática na contemporaneidade? Parece se chegar ao ponto muito recorrente nas
sociedades contemporâneas ocidentais, a crise pela perda dos valores – ensaia-se um cenário
de prevalecimento de um niilismo reativo, ou uma certa inabilidade de lidar com as
possibilidades oferecidas pelo niilismo, ou sua ainda não consumação, crescendo movimentos
de tentativa de retornos a teorias que buscam essências, identidades (a todo custo!), sejam elas
de cunho religioso e/ou político. Contra o fanatismo religioso, os movimentos neonazistas ou
de estirpe xenofóbica, o desafio que o niilismo consumado de Vattimo parece tomar para si é
oferecer resistência aos fundamentos enclausurantes, estáticos, violentos, apostando na
liberação (obtida com “a morte de Deus” e o niilismo) para criar, inventar novos valores, que
evitem o pior e não repitam a história manchada de sangue da modernidade – processos de
colonização violentos, escravidão, perseguições étnicas e religiosas, duas guerras mundias,
Guerra Fria – cabe a tentativa de outros caminhos, ainda porvir, que incluam as diferenças,
que tentem absorver o máximo de discursos para que se possa buscar uma política consensual,
que busquem princípios e metas universalizáveis, que abranjam toda a humanidade, não com
base em uma razão forte, opressora, verdadeira, mas sim uma “humana razoabilidade”
(Pecoraro, 2005, p. 27-29), “uma razão que não pretende fundar algo, mas somente tornar-se
razão da provisoriedade da humana conditio” (Teixeira, 2005b, p. 8).
O mal-estar da nossa sociedade contemporânea é provocado pelo fato de que ela
ainda não aprendeu a ser radical e lucidamente niilista e ainda abriga perigosas
nostalgias metafísicas: “Ao invés de reagir à dissolução do princípio de realidade
com a tentativa de recuperar identidade e pertencimentos, ao mesmo tempo
tranqüilizantes e punitivos, trata-se de apreender o niilismo como chance de
emancipação” (Vattimo apud Pecoraro, 2005, p. 110).
O pensamento fraco de Gianni Vattimo, uma vez que não lida mais com a ideia de
fundamento forte, nem com uma concepção de verdade imutável, acaba por desferir um duro
golpe contra qualquer tipo de convicção, ou crença dogmática. Se o cético poderia, de fato, ter
crenças (Marcondes, 2008, p. 142, 148), crenças, se assim é possível dizer, “fracas”, não
dogmáticas, pode-se entender o filósofo italiano como autêntico representante do pensamento
pós-moderno de linhagem “superceticista”, para ficar nos termos de Stuart Sim. E parece que
15
não há motivos para se temer, necessariamente, a experiência de pensamento que Vattimo
oferece como niilismo10 se se quiser pensar dentro dos questionamentos do ceticismo, pois, se
entendido como supercético, o pensamento fraco oferece modos de vivenciar esse tipo de
ceticismo, hermeneuticamente, e, justamente por isso, também acaba por se prevenir de uma
recaída no dogmatismo, já que novas interpretações sempre poderão e deverão ser feitas, já
que não há um fundamento forte que oriente e ao mesmo tempo implique empecilhos ao
pensamento e à experimentação.11
10
Sobre esse vivenciar de um niilismo não dogmático, fraco, porém consumado, ativo, diz Vattimo (2002b, p.
210): “O niilismo ativo se definiria como uma forma de vida que, por sua força e vitalidade, criaria sempre novas
interpretações que se enfrentam permanentemente e só alcançam precárias situações de equilíbrio, sem que a
referência a um critério ‘objetivo’ de validez seja possível em nenhum caso”.
11
Nesse sentido, a conclusão de D´Agostini (2002, p. 396) parece acertada: “A reabilitação do niilismo
apresenta-se em Vattimo como uma circunstância decidida num plano ético-prático. O niilismo aparece antes de
tudo como ‘dissolução das razões com que se justifica e se alimenta a violência’, portanto a fabulização do
mundo e a morte de Deus são pré-condições da tolerância”. Ainda para ficar na questão da tolerância, e na
contextualização do pensamento de Vattimo como superceticista, que se observe o comentário de Marcondes
(2008, p. 144): “De um ponto de vista prático, a reflexão cética levaria o ser humano como a abandonar as
pretensões dogmáticas e, dessa forma, a tomar suas decisões de modo mais amadurecido, sem a precipitação e a
presunção do dogmático e, portanto, também de forma mais tranquila, aberta à reformulação de seus próprios
pressupostos e à tolerância quanto a posições divergentes”.
16
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