Sem título - Faculdade Santa Marcelina
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Novos temas, velha ordem e a valorização do passado Novos temas, velhas ordens e a valorização do passado..........................................2 Editorial O regime jurídico internacional da apatridia: a América Latina e o Caribe.....................................................................................................................................3 Gilberto M. A. Rodrigues; Mariana Fernandes A Era de Ouro: paradigma econômico ou ameaça política?...................................8 Marília Chiomento A natureza do desenvolvimento..................................................................................14 Danilo Barbosa Mendonça Levi-Strauss: o velinho gigante..................................................................................17 Fernando Santomauro Em busca da terra de Bondiè: análise da imigração haitiana no Brasil em 2012..................................................................................................................................21 Bruno Constantino Guerra Civil no Camboja: implicações históricas e mutabilidade........................27 Carlos Henrique Mosquete; Victor Sakamoto Responsabilidade de Proteger e a Guerra Civil na Síria.........................................33 João Paulo Gusmão P. Duarte 1 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Novos temas, velha ordem e a valorização do passado O presente número de Inter-Relações tem a participação de pesquisadores, professores e alunos da Área de Relações Internacionais. Vários temas relevantes são discutidos, demonstrando a importância da atualização daqueles que trabalham com as questões globais candentes. Logo no primeiro artigo, a questão do tratamento jurídico a ser dado para a condição dos apátridas nos demonstra que as organizações internacionais precisam considerar isso, sob seus novos vieses. A seguir, o artigo sobre a chamada Era do Ouro mostra que o capitalismo viveu algo sem precedentes, que se exauriu com o fim do regime de Bretton Woods, fator que indica a necessidade urgente de se rever a questão da governança financeira internacional. Na mesma linha, o artigo posterior, que trata da natureza do desenvolvimento, demonstra a importância da globalização e da interdependência, sobre a possibilidade de inovações e modelos diferenciados, para a busca de um valor do passado: o desenvolvimentismo. Falando em valorização do passado, o artigo sobre o encontro entre um jovem pesquisador e o então nonagenário Claude Lévi-Strauss possibilita, para aqueles que estão começando na área acadêmica, a verificação de que um gênio não precisava demonstrar afetação (uma doença grave da academia) e que continuava pensando e valorizando os tristes trópicos até o final de uma vida de gigante. Dois artigos de alunos resgatam temas importantes e pouco conhecidos dos brasileiros. O primeiro, trata da Guerra Civil no Camboja. O segundo, dos problemas haitianos e seu rebatimento no Brasil, por meio da imigração recente. O que vêm a ser centro e periferia, na visão desses povos? Finalmente, um tema em alta, nas relações internacionais, como a Responsabilidade de Proteger, ganha contornos mais atuais, na reflexão que se faz sobre esse tema, no caso da Guerra Civil na Síria. A equação para a nova ordem internacional passa por um profundo conhecimento do passado, uma valorização do que já se fez com competência e um olhar para as possibilidades futuras. É isso que tentamos fazer neste número. Boa leitura! Boa leitura! Moisés da Silva Marques Coordenador do Curso de Relações Internacionais da FASM. 2 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 O regime jurídico internacional da apatridia: a América do Sul e o Caribe Gilberto M. A. Rodrigues; Mariana Fernandes Apatridia é a ausência de nacionalidade. Ela gera nefastas consequências para os indivíduos que dela são vítimas. Atualmente, existem mais de 12 milhões de apátridas no mundo. Etimologicamente, a palavra apátrida vem do grego ápatris que significa: sem país. Sinônimo de heimatlos ou apólida, do grego, ápolis, que significa - sem cidade, sem pátria. A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 define-os como “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo sua legislação, como seu nacional”. Ou seja, apátrida é aquele indivíduo que não possui qualquer nacionalidade. A apatridia tem sua origem numa época remota. Contudo, a sua problemática difundiu-se a partir do século 20 com as duas Grandes Guerras, devido ao “deslocamento de pessoas; a revolução comunista da URSS, o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália, uma vez que todos que fugiram desses sistemas políticos perderam a sua nacionalidade” (MELLO, 2001: 938). As consequências da Segunda Guerra Mundial foram devastadoras. Uma delas foi tornar milhões de pessoas apátridas. Nesse período, a apatridia passou a ser encarada como um problema universal; daí surgiu a necessidade de enfrentá-la e erradicá-la. Além de assegurar direitos e obrigações aos indivíduos em uma ordem jurídica interna, a nacionalidade também lhes garante proteção internacional. Ou seja, qualquer violação à integridade física, moral ou patrimonial de um indivíduo nacional de algum Estado será passível de legítima reclamação por parte deste, perante a ordem internacional. Quanto aos apátridas, eles não podem contar com tal proteção, pois, não estão cobertos pelo manto de proteção estatal garantida pela nacionalidade. A apatridia sem regulamentação marginaliza uma minoria da proteção dos Estados. Os apátridas não possuem nem o mínimo de direitos conferidos aos estrangeiros em um determinado Estado. Eles não podem requerer a emissão de documentos, como consequências disso, não podem gozar do sistema de saúde pública, de educação, além disso, são impedidos de adquirirem móveis ou imóveis e de exercerem trabalho remunerado reconhecido. Para suprir a falta de reconhecimento jurídico internacional da condição de apátrida foram criadas, em nível universal, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961, ambas na esfera da ONU. Foi a partir delas que passaram a existir duas condições dadas aos indivíduos: ser nacional de algum Estado, recebendo proteção internacional deste; ou ser apátrida, recebendo proteção internacional pela comunidade internacional. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 já trazia certa proteção aos apátridas, pois é aplicável aos refugiados que possuem o status de apátrida 3 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 (os chamados apátridas de fato). No entanto, nem todos os apátridas estão na situação de refúgio e, por isso, o problema persistia. Daí que, em 1954, a comunidade internacional decidiu, celebrar um compromisso que é a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, que cuida exclusivamente desta questão. A Convenção de 1954 trouxe à tona uma das principais bases para a cooperação internacional sobre os Direitos Humanos que é a tolerância religiosa, cultural, racial e por sua vez, a não discriminação. Nela são elencados dispositivos acerca de direitos que podem ser exercidos pelos apátridas dentro do Estado onde estejam estabelecidos, tais como: liberdade no exercício de religião, de recorrer aos tribunais jurisdicionais, de exercerem trabalho remunerado, de receber tratamento favorável ou não menos favorável que os estrangeiros no que diz respeito à aquisição de bens móveis e imóveis, direito à educação pública, à obtenção de documento de identidade, dentre outros, como se nacionais ou estrangeiros fossem. Como complementação, foi celebrada a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961, que criou mecanismos de repressão e erradicação da apatridia e que “estabelece regras para a concessão ou não privação da nacionalidade [...]. As disposições da Convenção de 1961 oferecem salvaguardas cuidadosamente detalhadas contra a apatridia, que devem ser implementadas por meio da legislação sobre nacionalidade do Estado” (ACNUR, 2010, p.3), devendo estas leis estar em conformidade com os padrões internacionais. Apátridas: América Latina e Caribe No âmbito regional da América Latina e Caribe, poucos países fazem parte destas das duas Convenções Internacionais sobre apatridia. Os gráficos assim ilustram: 4 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Fonte: Gráficos elaborados pelos autores, a partir de dados da obra Nacionalidade e Apatridia. Manual para Parlamentares (2009). A partir de uma análise dos gráficos, pode-se estabelecer uma hipótese que explica o motivo pelo qual a maioria dos Estados da América Latina e Caribe não assinou ou ratificou as convenções de 1954 e 1961 sobre apatridia: a pequena quantidade de apátridas estabelecidos nessa região. Segundo dados fornecidos pelo ACNUR, obtidos através de um senso realizado em dezembro de 2009, aproximadamente 118 (cento e dezoito) apátridas estão estabelecidos na região latinoamericana, sendo que 106 (cento e seis) encontram-se no Brasil, 11 (onze) na Colômbia e 1 (um) no Panamá. Destes três países, o Brasil foi o único que, ao menos, ratificou as duas convenções sobre apatridia. A Colômbia apenas assinou a Convenção de 1954, mantendo-se inerte quanto à de 1961 e o Panamá manteve-se inerte quanto às duas convenções. Os dados obtidos pelo senso foram fornecidos pelos próprios Estados, e como a maioria declarou possuir um número baixo de apátridas em seu território, como é o caso do Brasil, da Colômbia e do Panamá, ou não possuir qualquer apátrida, conclui-se, com base em nossa hipótese, que estes Estados consideram desnecessária a vinculação a essas convenções. Outra hipótese é a legislação interna destes países ser mais abrangente do que as Convenções sobre apatridia. A Estônia, por exemplo, é um dos países que mais possui apátridas estabelecidos em seu território, mas não é parte de nenhuma das convenções sobre apatridia. Contudo, “quase todas as pessoas registradas como apátridas têm residência permanente e desfrutam de mais direitos que os previstos na Convenção de 1954, relativa ao Estatuto dos Apátridas”. Mas essa hipótese necessitaria de confirmação mediante a análise individual de cada legislação nacional, no âmbito da região. O Brasil é um dos poucos países da América Latina e Caribe que assinaram e ratificaram as duas Convenções. Para implementar essas convenções, ele adotou diversas medidas internas a respeito da repressão da apatridia. Uma delas foi a Emenda Constitucional n. 54, reconhecida pela Campanha Global de Apatridia de 2011 como sendo um “caso de sucesso”. Antes da inserção da referida emenda na Constituição Federal, a concessão da nacionalidade brasileira aos filhos de brasileiros nascidos no estrangeiro só poderia ser feita se eles viessem residir no Brasil. A comunidade brasileira expatriada, vítimas de tal restrição, 5 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 formada por cerca de 3 milhões de pessoas, criou o movimento dos Brasileirinhos Apátridas que lutou pela referida emenda. Com sucesso, em 2007, foi incorporada a Emenda Constitucional n. 54 que possibilitou o registro e a respectiva concessão da nacionalidade brasileira aos filhos de brasileiros nascidos em território estrangeiro, por meio dos consulados brasileiros. A norma foi aplicada retroativamente e resolveu o problema de cerca de 200 mil casos de apatridia. Em 11 de novembro de 2010, foi aprovada a Declaração de Brasília sobre a Proteção de Refugiados e Apátridas no Continente Americano. Esse documento renovou o compromisso dos Estados signatários em proteger os apátridas, valendose da ampla rede de proteção aos refugiados já existente. Jurisprudência no Brasil Além da implementação dos compromissos internacionais pelos órgãos executivos e legislativos brasileiros, é importante saber como a jurisprudência tem decido a respeito do reconhecimento do status de apátrida e dos direitos advindos deste ato (reconhecimento). No Brasil, vale comentar o caso judicial de Andrimana Buyoya Habiziman. Nascido em Burundi, África, fugiu, clandestinamente, para o Brasil em um navio cargueiro em 2006, devido ao genocídio étnico, crise econômica e política e o falecimento de seus familiares. No mesmo ano, embarcou no voo com destino a Lisboa. No entanto, por utilizar-se de documentação falsa, foi devolvido ao Brasil, onde cumpriu integralmente a devida pena. Após diligências efetuadas pela Polícia Federal brasileira, a Embaixada de Burundi não lhe assegurou a cidadania. Já a Embaixada da África do Sul também não aceitou a sua deportação. Ele então solicitou refugio ao Conselho Nacional para Refugiados – CONARE, bem como visto de trabalho ao Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Em nenhum dos dois pedidos obteve êxito, pois, segundo as autoridades administrativas, ele não preenchia os requisitos para caracterização de refugiado. Em sequência, decidiu ajuizar ação contra a União para que fosse reconhecido seu status de apátrida, bem como a antecipação dos efeitos da tutela para que ele pudesse exercer atividade profissional remunerada, segundo art. 17 e 18 da Convenção de 1954, e para prorrogar a validade do documento provisório de identificação. O Tribunal Regional Federal da 5ª região, julgando recurso de apelação da União, reafirmou sentença dada pela primeira instância quanto ao reconhecimento do status de apátrida de Andrimana. O voto do relator Desembargador Federal Bruno Leonardo Câmara Carrá foi pelo não provimento (aceitação) do recurso e consequentemente o reconhecimento do status de apátrida, com base na definição de apátrida da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954. Este é um caso bem-sucedido de reconhecimento de apatridia pela Justiça Brasileira. A condição jurídica do apátrida, internacionalmente 6 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 reconhecida, faz parte do desenvolvimento histórico dos Direitos Humanos que passou a englobar não só a obrigação dos Estados de proteger indivíduos reconhecidos como nacionais de algum Estado, mas também de proteger aqueles que estão descobertos do manto da nacionalidade. Tal concepção confirma a ideia de que os direitos humanos reconhecidos universalmente são inerentes à condição de ser humano, independentemente de ficções jurídicas criadas apenas para organizar as sociedades. Essa realidade dramática dos apátridas tem sido vocalizada pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), cujo papel em sensibilizar e apoiar os Estados para a adoção de medidas legais e executivas em prol dos apátridas tem contribuído sobremaneira para o avanço nessa temática. Concluindo, sendo a nacionalidade um direito que abre as portas para os demais direitos essenciais à vida digna do ser humano, e levando em conta as Convenções que previnem e reprimem a privação da nacionalidade, o comprometimento dos Estados por meio delas é imprescindível para a efetiva e integral aplicação dos Direitos Humanos. Gilberto M. A. Rodrigues é professor Doutor do Programa de Doutorado em Direito da Universidade Católica de Santos. Professor do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina. Pós-doutor pela Universidade de Notre Dame (EUA). Mariana Fernandes é graduanda em Direito e bolsista CNPq de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, com o tema do regime jurídico internacional dos apátridas. Referências bibliográficas: ACNUR. Unidade de Informação Pública. www.acnur.org/portugues ALMEIDA, Guilherme de; RAMOS, André de Carvalho; RODRIGUES, Gilberto M. A.60 Anos de ACNUR. Perspectivas de futuro. São Paulo: CLA, 2011. ANDRADE, William Cesar de; FANTAZZINI, Orlando. Dossiê “A Apatridia – O Direito de se ter um lugar a que chamamos de pátria”. Refúgio, Migrações e Cidadania, CadernosxdexDebatesx6,xp.33-60, Dezembro de, 2011. MELLO, Celso D. de Albuquerque Mello. Direito Internacional Público. Rio de Janeiro:zRenovar,x2001. PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. A pátria dos sem pátria: Direitos Humanos e Alteridade. Porto Alegre: UniRitter, 2011. TRF 5ª Região. Relator: Desembargador Bruno Leonardo Câmara Carrá. Julgamento em: 20/09/2011, publicado no DJE de 17/11/2011 p. 697. 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A crise havia afetado todos os setores da economia norteamericana; assim como, teve seus efeitos sentidos em boa parte da Europa. O mercado consumidor e financeiro, os investimentos na produção e a ação dos bancos foram severamente limitados diante de tamanha tragédia. Enquanto se amargava uma das maiores derrotas da história econômica nos Estados Unidos; a então, União Soviética parecia imune à situação que abalara o mundo. Além do sucesso na produção, a URSS conseguiu, praticamente, anular o desemprego. O segredo de todo esse desenvolvimento estava nos Planos Quinquenais combinados a uma economia planificada. Foi sob tais preceitos que a URSS saiu de uma posição desprivilegiada, no início do século XX, e chegou como segunda maior economia mundial no pós Segunda Guerra. Esse foi o quadro na década de 1940. Durante a década de 1950, passados os anos de guerra, a reorganização econômica era imprescindível - principalmente da Europa - e ocorria a custa da redistribuição de renda norte- americana, por meio do Plano Marshall. Redistribuição essa que fora estimulada, em grande parte, pelo medo de que o sistema político da União Soviética pudesse criar uma rede de influências que corroborasse com a expansão comunista, principalmente no continente europeu - o qual se encontrava extremamente fragilizado. O receio não era gratuito, visto que a União Soviética vivia sua melhor fase: a economia crescia em um ritmo acelerado baseada no gasto estatal e na produção em massa; tudo de acordo com os parâmetros prescritos pelos Planos-Quinquenais. Se na URSS colhiam-se os frutos de sua economia, até então, bem sucedida; os EUA se desenvolviam devido à soma de dinheiro acumulado nos lucrativos anos de guerra em que o país inundava o mundo com sua-produção. As disputas entre as duas economias se acirraram. De um lado, o país socialista mantinha seus agressivos planos de expansão. De outro, os EUA, ainda que em ritmo menos acelerado, continuava desfrutando das vantagens competitivas conquistadas na guerra, apesar dos países europeus já terem retomado suas atividades produtivas a ponto de não mais depender das exportações americanas. Foi exatamente essa disputa pela hegemonia mundial que impulsionou, de certa 8 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 forma, o crescimento europeu e a estabilidade nas economias capitalistas durante os anos gloriosos, os quais ultrapassaram até as expectativas mais promissoras de desenvolvimento/crescimento. A política de redistribuição de renda norte americana intensificava a atividade econômica, tanto na América quanto na Europa, aumentando os gastos dos governos em investimentos públicos e privados em prol do fortalecimento da produção e do equilíbrio no emprego; enquanto o projeto do New Deal – incorporando a teoria keynesiana combinado com o aumento das massas nas cidades e da Social Democracia possibilitava a ascensão econômica das mesmas, garantindo que os gastos estatais incrementassem a expansão da produção, o emprego, o rendimento das pessoas atendendo as demandas sociais e a estabilidade financeira. Não há como negar que, baseados em políticas desenvolvimentistas e na base teórica keynesiana, o surto de crescimento econômico tenha se tornado um fenômenoquase mundial- independente dos regimes políticos e econômicos adotados pelos países; tanto que as duas lideranças hegemônicas do mundo, contraditoriamente, adotavam e estimulavam sistemas políticos independentes e divergentes. As raízes dessa expansão estiveram intrinsecamente relacionadas às reformas no capitalismo, que puderam liquidar com disseminação das ideias comunistas. A nova face do capitalismo se concretizou na planificação da economia, com a intervenção do Estado através de políticas públicas de proteção social (Welfare State). Além disso, essa reforma tornou possível uma internacionalização, principalmente do comércio. Em um misto de crescimento econômico e melhoria de vida de parte considerável dos trabalhadores, os trinta anos gloriosos se desenvolveram sob um forte sentimento de euforia e confiança no sistema de Bretton Woods, que teve papel fundamental no sucesso do período. O sistema, que contemplava políticas orquestradas prevendo estabilidade cambial, expansão do comércio internacional e a conversibilidade em dólar, contribuiu de forma contundente para o equilíbrio econômico. Embora o sistema tenha, por alguns anos, influenciado diretamente a estabilidade econômica mundial, a partir da década de 1960 o processo de mundialização da economia, baseada no dólar, criou uma forte dependência internacional em relação à moeda norte-americana, e no momento em que esta veio a ruir levou consigo todo o complexo sistema econômico internacional. Com a moeda hegemônica em crise, o crescimento dos anos anteriores começou a sofrer variações negativas. A evolução das contradições e dos desequilíbrios não demorou muito a colaborar para que uma nova depressão viesse a desestabilizar o plano de estruturação capitalista. O impacto dessa mudança no cenário global foi a redução incisiva do ritmo no crescimento industrial em países capitalistas 9 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 já desenvolvidos. No terceiro mundo as consequências foram mais drásticas quando a explosão do endividamento gerou caos monetário. As sociedades socialistas viram o colapso de seu sistema político/ econômico. A Era de Ouro começava a entrar em colapso nos anos 70. Inicialmente, porque os EUA vinham se desgastando muito; não apenas com os gastos na disputa com URSS que culminou em enfraquecimento econômico - mas também com a crise pós Guerra do Vietnã, a qual foi um dos pressupostos para que o mundo capitalista entrasse em recessão, combinando declínio hegemônico, queda do sistema monetário internacional, (baseado no ouro), taxas de crescimento desaceleradas, inflação e queda da produtividade da mão de obra, a qual foi progressivamente trocada pelo avanço tecnológico. A produção não exigia mais uma massa tão volumosa de operários, o trabalhador agora devia ser qualificado. Em contrapartida, as novas tecnologias associadas ao barateamento da produção garantiam o acesso a mercados mais pobres. Ora, o acesso ao mercado do consumo ficava mais fácil à medida que o desemprego em massa aumentava. Agrupa-se a isso o fato das grandes indústrias migrarem sua produção para novos polos industriais (países do chamado terceiro mundo) e os novos desempregados começarem a sobreviver à custa de políticas de seguridade social, como o sistema previdenciário - que era mantido pelos trabalhadores em número reduzido - ou através de uma economia informal. O novo modelo produtivo previa o maior lucro possível com o menor gasto, gerava um ambiente econômico inflacionário e era usada, principalmente, na compra de mais fontes de energia, no caso o petróleo, para o suprimento da demanda industrial; o resultado foi a liquidez do sistema monetário internacional. Com a crise do petróleo, o lucro dos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, que já era satisfatório, ficou imenso. Os países da OPEP eram os maiores produtores de petróleo da época, o que possibilitou o aumento orquestrado de preços. Logo, a transferência de renda dos países consumidores de petróleo para a OPEP era contabilizada e investida no sistema financeiro pelos países árabes como forma de gerar novos lucros. O sistema financeiro internacional emprestava o dinheiro - investido pelos países produtores de petróleo - aos países subdesenvolvidos, que utilizavam o mesmo para a “modernização” de seus padrões de consumo. Desse emaranhado de motivos para aumentar os lucros se originam os eurodólares e petrodólares, que foram a causa da expansão da liquidez mundial inflacionária - originária da crise do petróleo, que abalara as estruturas do mundo capitalista e socialista, já que ambos se aproveitavam do baixo preço do petróleo para satisfazer suas necessidades industriais e tecnológicas. Embora a crise tenha sido gerada no cerne da lógica capitalista de acumulação, a URSS não escapou ao círculo vicioso inflacionário, o qual fora agravado pelos problemas econômicos oriundos dos gastos militares. Além do mais, a estrutura econômica soviética sofria pela desaceleração 10 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 do crescimento da PIB do país. A derrocada do sistema deveu-se ao modelo de industrialização da década de 1930 e 1940, em que se explorava o máximo dos recursos naturais e sociais (trabalhadores), como modo de aumentar a produção ao máximo para enfrentar a concorrência ocidental. Esse modelo de produção logo perdeu competitividade quando o aparato industrial tornou-se insuportavelmente custoso, devido ao emprego de um número crescente de trabalhadores/ instalações e outros recursos, combinados a uma indústria pouco tecnológica e pouco eficiente, que previa quantidade em detrimento da qualidade. Os sinais de debilidade no campo socialista eram aparentes. A perspectiva socialista, em países capitalistas, havia sido dissipada através da Social Democracia, que não mais lutava pelo fim do sistema político baseado no capital; sua defesa, agora, passava pela “socialização” dos frutos desse capitalismo através da distribuição de renda, expansão do emprego em todos os níveis da sociedade e políticas econômicas capazes de reestabelecer o equilíbrio no sistema. Por outro lado, as taxas de crescimento começavam a desacelerar. O impacto das crises do petróleo “dramatizaram o fim do campo socialista como uma economia regional praticamente autossuficiente, protegida dos caprichos da economia mundial” (HOBSBAWM,x2000, p.408). Com a crise já instalada, o sistema econômico mundial estava mais interdependente do que nunca. Os Estados estavam à mercê do mercado mundial –devido à globalização - e as políticas internas de cada país não conseguiam proteger, como antes, suas estruturas produtivas e sociais - os salários internos estavam expostos à competição estrangeira. A organização política nos países socialistas e capitalistas desabou. Para o sistema socialista soviético, a crise global significou uma ruptura no seu crescimento e desenvolvimento acabando por se tratar não mais de uma questão de competição, mas de uma questão de sobrevivência. Para as economias capitalistas, sua sobrevivência não esteve em ameaça embora seus sistemas políticos tenham se desestabilizado. A Era de Ouro significou maiores investimentos, aumento do consumo da classe média, automatização da produção e a “democratização” do mercado, o que foi conseguido através de medidas que produziram a chamada “economia mista”, em que houve a gestão combinada entre modernização da economia e aumento da demanda/ consumo, garantida através do compromisso dos Estados em preservar ou criar possibilidades para o pleno emprego e seguridade social, assim como previa Keynes. Entretanto, esse modelo de gestão política/ econômica criou possibilidades para que o sistema financeiro se desenvolvesse a ponto de submeter os Estados Nacionais e os organismos internacionais às suas necessidades de crescimento. Assim, da economia mundial devastada - na segunda metade da década de 1970 - sobrou a especulação financeira, agora muito mais forte, organizada, 11 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 internacionalizada e com poder de destruição com vasta capacidade disseminação. “A Era de Ouro acabou como os booms anteriores, num colapso de imóveis e bancos” (HOBSBAWM, 2000,p.257). O impacto da substituição de um capitalismo produtivo por um capitalismo financeiro, durante os anos dourados, foi a não recuperação econômica mundial, por completo, até os dias atuais. Fato que comprova a correlação entre a crise da década 70 e 80 e a crise americana de 2008; e porque não falar na atual crise europeia, a semelhança não é mera coincidência. A possibilidade de expansão dada ao mercado financeiro, naquele período, tornou-o muito mais influente e com alto poder de destruição econômico e social, garantindo o desabamento da estrutura econômica mundial. Para reverter essa situação cada vez mais degradante da economia, os Estados Nacionais e organizações supranacionais se empenharam, e ainda se empenham, na salvação de bancos e instituições financeiras, dando menor relevância aos meios produtivos. O que mudou do período de grande crescimento econômica pós Segunda Guerra para a década de 70, para crise americana e para a crise europeia foram as prioridades. Nos anos iniciais da Era de Ouro deu-se importância ao incremento da produção com o intuito de expandir o emprego e, consequentemente, melhorar a vida das pessoas - segundo os preceitos keynesianos de desenvolvimento - e exatamente por isso viveu-se anos de maior estabilidade e crescimento. A partir da década de 1970, o sinônimo de saúde econômica passou a ser a manutenção do sistema financeiro à custa da falta de regulação do capital e de proteção dos mercados internos. Isso posto, a origem das crises modernas, século 20 e 21, começa a ficar mais clara: a primazia da acumulação desmedida, além das necessidades humanas nas mãos de poucos, os quais são influenciados e buscam um capitalismo excludente, em detrimento da produção, do emprego e do bem estar social e coletivo. Marília Chiomento é Bacharel em Relações Internacionais pela FASM. Referências bibliográficas: BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Ensaios sobre o capitalismo no século XX. Organizador: Frederico Mazzucchelli. Campinas, São Paulo: UNICAMP/ Instituto de Economia.zUnesp,x2004. DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Tradução: Antônio Borges Coelho. 8. ed. Paris, Horizonte, 2000. DILLARD, Duddley. A teoria econômica de John Maynard Keynes: teoria de uma economia monetária. 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Com a frustração das promessas de uma nova ordem mundial mais justa e com a persistência de indicadores que colocam em xeque a suposta capacidade de harmonizar a competição e a cooperação entre países inseridos em um modelo de produção capitalista, ganham cada vez mais espaço na disciplina de relações internacionais, estudos e teorias que buscam criar um arcabouço teórico com o intuito de questionar o discurso desenvolvimentista. Essa não é uma tarefa simples, visto que não existe uma definição única para o termo “desenvolvimento” e são muitos os contextos em que ele pode ser empregado. O termo foi inicialmente utilizado para descrever o processo por meio do qual um país não industrializado poderia alcançar o mesmo nível de industrialização das nações do chamado primeiro mundo. Aos países empobrecidos por seu passado colonial na América Latina, somaram-se aqueles que conquistaram sua independência dos regimes imperialistas já no século XX, o que veio consolidar o discurso sobre um mundo “em desenvolvimento”. De acordo com Moraes (2005), “desenvolvimento é uma reencarnação - ou uma ressignificação - de temas e problemas que eram ainda mais antigos na história da economia política. Progresso material e, mais emblematicamente, claro, ‘riqueza das nações’ já eram os objetos, por excelência, da economia política clássica. Mas a reencarnação toma nova forma, em contexto tão rico, com a ascensão de um novo hegemon e a invasão da cena internacional por algumas dezenas de “jovens países” constituídos pela descolonização do pósguerra”. Embora a multiplicidade de estágios que o termo desenvolvimento pode englobar seja sempre instituída sob a perspectiva de um determinado pensamento, essa amplitude de escopo acabou contribuindo para que o termo seja frequentemente associado a “crescimento econômico” ou, de forma ainda mais ambígua, “progresso”. Essa associação equivocada - ainda que muitas vezes conveniente a determinados interesses - é proveniente da teoria do desenvolvimento econômico, que identificava o capital, isoladamente, como o mais importante fator de crescimento. Essa linha de pensamento orientou a quase totalidade das políticas de ajuda oficial para o desenvolvimento na 14 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 comunidade internacional até meados dos anos 80. O crescimento econômico apresentase, então, como uma condição sine qua non para se obter o status de país desenvolvido, de acordo com um modelo definido segundo parâmetros do sistema capitalista. No entanto, Celso Furtado (2005) já alertava que esse crescimento não oferece garantias de que seus benefícios serão socializados e não assegura as condições necessárias para o estabelecimento de melhorias significativas no padrão de vida das classes marginalizadas. Na América Latina, por exemplo, o desenvolvimentismo baseado tão somente no crescimento econômico acabou reforçando a concentração de renda nas mãos de uma pequena classe abastada vinculada ao centro do capitalismo internacional, o que levou ao aumento do abismo que separa os mais ricos dos mais pobres. Rist (2002) afirma que todas as iniciativas empreendidas em nome do desenvolvimento não conduziram a outro cenário que não o da “expropiación material y cultural”. Ele propõe ainda que o grande desafio para os estudiosos da área seria a criação de uma teoria do pósdesenvolvimento, visto que não faria sentido continuar investindo nos estudos de um paradigma que está em crise. Maggie Black, em seu livro “Que és desarrollo internacional” (Intermón Oxfam, 2003) defende que o desenvolvimento é um tema contraditório e que acaba por reforçar a própria pobreza que almejava erradicar. Ou seja, muitas das ações propostas para comunidades carentes sob o pretexto do desenvolvimento são intencionalmente desenhadas para “camuflar interesses” que não fazem mais do que gerar lucro e vantagem competitiva para empresas multinacionais com origem no próprio país doador. Outra consequência nefasta do desenvolvimento apontado por Black (2003) e que não é possível mensurar, através de modelos econômicos, a “destruição dos meios de vida tradicionais baseados na natureza”. A homogeneização do padrão de vida capitalista ocidental, vendido sob a forma de vantagem universal do mundo moderno, é descrito pela autora como uma forma de genocídio silencioso. Essa noção universalizante de desenvolvimento teve como consequência a formação de sociedades “bloqueadas” (Milani, 2007), nas quais a imposição de um modelo único, calcado nas experiências e nos interesses dos países de primeiro mundo, acabou por estabelecer metas irreais para os países em vias de desenvolvimento e aprofundar ainda mais a dependência desses estados. Todas estas características teriam contribuído para a criação de um “apartheid socioeconômico mundial: pequenas ilhas de prosperidade dentro e entre Estados-Nação, rodeadas pelo resto da humanidade empobrecida” (Black, 2003). Até mesmo a noção de pobreza seria uma construção social, já que definir pobreza como carência de recursos econômicos, automaticamente deslegitima definições diferentes, adotadas por outras sociedades que não a associam à 15 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 escassez ou afluência de bens materiais. A própria consolidação da “hegemonia do desenvolvimento” só foi possível após a consolidação da ideia de subdesenvolvimento e foi a partir da universalização do modo de vida ocidental como o ápice do progresso humano que este se impôs como uma meta que deveria ser almejada por todas as nações. Rist (2002) sintetiza todos esses aspectos quando afirma que a oferta abundante de bens materiais e a produção simultânea de exclusão social e concentração de renda nada mais são do que a verdadeira “natureza do desenvolvimento”. Após mais de meio século de vigência de um discurso desenvolvimentista, calcado em valores etnocêntricos e ocidentais, que se impôs como universal a partir de regras definidas pelos países ricos, os avanços sociais se mostram quase insignificantes e as promessas de um mundo melhor para todos, que sempre nortearam a pauta das agendas internacionais, estão longe de serem cumpridas. A crescente perda de legitimidade do discurso desenvolvimentista - que recebeu a alcunha de “crise do desenvolvimento” no meio acadêmico - é resultante da incapacidade das políticas adotadas pelos países financiadores e pelas organizações multilaterais, de eliminar ou mesmo atenuar as assimetrias entre as nações do Norte e do Sul global e, principalmente, da conclusão, quase unânime, de estudiosos do desenvolvimento que afirmam que a diferença entre ricos e pobres não para de crescer em todo o planeta. A partir da constatação de que o conceito, as etapas e as regras para ascender à categoria de “desenvolvido” são determinadas pelas nações centrais do sistema capitalista e definidas a partir do nível do padrão histórico atual desses países, relegando os países- alvo dos esforços desenvolvimentistas à condição de meros sujeitos passivos do processo, já que não levam em conta suas realidades, necessidades e anseios, fica evidente que o ideal de solidariedade atrelado ao discurso do desenvolvimento está longe de se concretizar no plano material. Danilo Barbosa Mendonça é Bacharel em Administração pela Univ. Fed. da Bahia (UFBA) e pesquisador na área de Relações Internacionais. Referências bibliográficas: DUPAS, Gilberto (1986). O mito do progresso. São Paulo. UNESP. 2006.309. ed. Revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. FURTARDO, Celso (1964). Development and Underdevelopment Berkeley: University of California Press. IGLESIAS, Manuel G. (2005). El impacto econômico y social de la cooperación para el desarrollo. Madrid: UCM. MORAES, Reginaldo Carmello Correa de (2006). Estado, Desenvolvimento e Globalização. São Paulo: UNESP. RIST, Gilberto (2002), El desarrollo: historia de una creencia occidental, Los libros de la Catarata, Madrid, págs. 13 – 18, 273 – 284. 16 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Levi-Strauss: o velhinho gigante Fernando Santomauro A batida na cara Depois de tomar coragem para a ligação, me penteei, escovei os dentes, fechei as janelas do quarto de estudante apertado, e liguei. Atendeu uma mocinha super simpática, que parecia ser a ajudante dele (provavelmente quem leu primeiro o e-mail, que mandei para ele no site do College de France). Depois de me identificar como estudante de mestrado brasileiro que havia me comunicado com ele por e-mail (coisa que não estava acreditando até então), ela me passou a ligação. Ele, com a voz cansada, foi super simpático. Perguntou um pouco sobre a minha dissertação, os detalhes do tema, e disse que eu poderia visitá-lo a hora que eu quisesse, agora que ele tinha voltado de sua casa no campo, para passar o verão em Paris. Poderíamos nos encontrar na sua casa mesmo, na próxima terça, depois do feriado de segunda-feira, 8 de maio, (Fête de la Victoire de 1945). Até o momento tudo estava acontecendo melhor do que o esperado e a conversa fluía, apesar de toda minha reverência. O problema foi quando ele disse seu endereço pela primeira vez, e eu não entendi. Ele então, com a voz cansada pelo tempo, repetiu. As palavras me saíam incompletas pelo seu sotaque de francês original (até então conversava mais em francês com os estrangeiros que viviam aqui na Cité Universitaire de Paris, que tinham os mais variados temperos de sotaque), e minha compreensão também não era lá das melhores, já que mesmo depois de alguns meses, ainda percebia que as aulas no Brasil e somente ler em francês, não asseguravam minha fluência no idioma. Além disso, minha insegurança, a partir do momento de incompreensão entre eu e o Mito, fez com que eu concordasse com ele, sem mesmo entender direito o endereço de sua casa. Nos despedimos e desliguei o telefone. Depois disso dei um pulo pela conversa, e passados 3 minutos, notei que sem a certeza de seu endereço, não poderia encontrá-lo depois do feriado. Tinha entendido um nome, mas não conhecia a palavra dita por ele. E a minha primeira idéia foi ligar novamente para sua casa, e confirmar logo com sua assistente, que atenderia, e assim não precisaria passar pelo desgaste de nova incompreensão daquele gênio com as minhas fraquezas de mestrando no exterior. Tomei coragem, respirei fundo e liguei. Ele atendeu prontamente com sua voz mais cansada. Desliguei na sua cara, covardemente. O encontro Pareceu sonho o que me aconteceu naquela terça-feira, e até então estava mesmo encarando o fato como se não fosse verdade. 17 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Poderia ser sonho mesmo, porque tudo estava bem surreal para mim. Estava semi-acordado depois de uma noite de três horas de sono somente, (razão de um pneu furado na estrada de Roterdam à Paris), na madrugada anterior, e plantado na frente de um simpático prédio na Rue des Marroniers, 2, bem ao lado da Maison de la Radio, de onde o Reali Junior dá a temperatura parisiense para os ouvintes brasileiros todas as manhas, desde que me lembro como gente. Cheguei 5 minutos antes do combinado e fiquei esperando vendo o vidro do fusquinha da frente, molhado pela garoa que refrescava o tempo abafado dos últimos dias. E uma música não me saía da cabeça. Na verdade só a introdução estranha da música "O estrangeiro”, do Caetano. Bom, depois de olhar no relógio a cada 20 segundos, achei que me anunciar com 3 minutos de antecedência era polido. 9h57 me dirigi ao portão do prédio, e uma espécie de porteira/faxineira do prédio me perguntou onde ia, expliquei o meu "rendez-vous" e ela me deixou subir. O velhinho em si Bom, subi o elevador novo do prédio nem tão novo assim, e nem precisei apertar a campainha que ele mesmo veio me receber na porta, com um simpático "Bonjour Monsieur Santomauro"! Estava bem curvadinho, do alto dos seus 95 anos. Apertamos a mão, ele me convidou para entrar na sua casa, me levando até o seu escritório, e eu o agradecia a cada passo que nós dávamos. A ficha decididamente tinha caído. Sentei no sofá de couro de seu escritório e ele fechou a porta e sentou-se a meu lado. Disse-me que esperava ser útil à minha pesquisa. Então eu lhe expliquei um pouco o motivo pelo qual estava lá (já tinha mais ou menos o feito por e-mail, que ele tinha me respondido e imprimido, em cima da sua escrivaninha, feita de um tronco de madeira escura e curvada de tão gasta pelo tempo e horas de estudo). Seu escritório era o que imaginava. Cheirando a guardado de tanto estudar. As paredes todas repletas de prateleiras, com enciclopédias e milhares de livros, e outras coisas à la explorador europeu do século XIX - algumas estátuas exóticas, e coisinhas que iam de potinhos indígenas, pequenos cocares, a uma pequenina estátua de Buda. Também me chamou atenção uma espécie de cinzeiro em forma de casca de coco marronzinho, em cima da mesa de centro. Depois disso lhe pedi para gravar nossa conversa e ele disse não. Fiz-me de desentendido e fui tirando o bloquinho com minhas anotações e questões, e lhe mostrei o gravador. Disse-lhe que queria registrar tudo para me lembrar mais tarde. E ele me falou que aquilo deveria ser só uma conversa, e não uma entrevista. Não insisti, e coloquei o gravador de volta na minha maletinha; A conversa Depois até entendi a sua resistência ao gravador, pois era a primeira vez que me via, 18 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 mas eu o sentia como um velho conhecido. Logo no comecinho lhe disse isso, pois já tinha levado muitas manhas e madrugadas da minha vida, nos meus anos de Ciências Sociais, lendo e quebrando a cabeça com os seus livros. Pra mim ele era um grande conhecido. Só que nunca tinha imaginado vêlo na minha frente. Também lhe expliquei que não estava lá como estudante de Ciências Sociais, e não pretendia discutir sua obra a fundo, ou suas teorias, mas queria conversar com ele mais como historiador, e queria saber mais sobre a sua importância como ator histórico da época que estou estudando. Ele evitou entrar em muitos detalhes sobre a sua convocação e a orientação de Georges Dumas, psicólogo positivista francês que teve central participação na elaboração de uma política cultural francesa na América Latina, desde 1909 até 1937- e que tinha sido seu professor de filosofia. Além disso, Dumas era o coordenador da política das missões universitárias francesas, que entre outras coisas, criou a Universidade de São Paulo, da qual ele foi, se não o mais, um dos mais destacados professores. Me disse que não teve contato com Dumas durante todo o tempo que esteve no Brasil (1935-39). Mas me deu algumas dicas boas. Falou que a criação da USP, é claro, teve diretamente as mãos francesas, que queriam manter a influência sobre a elite intelectual e política brasileira, mas também foi apoiada principalmente pela elite paulistana da época, que tinha acabado de perder a revolução constitucionalista e queria retomar hegemonia nacional através da criação de uma nova elite- intelectual- que seria formada pela USP. Citou como ator e patrocinador importante nesse jogo, Júlio de Mesquita, dono do Estado de S.Paulo. Também falou de como os professores franceses do entre guerras, se sentiam acima de tudo, funcionários a serviço do Governo francês, e que depois desse momento histórico importante de luta ideológica contra o nazismo (que tinha algumas raízes nas colônias alemãs no Sul e no governo Vargas), desejavam voltar aos seus afazeres na França. Também me deu a dica de procurar um pouco sobre Jean Marx, que foi sucessor de Dumas no comando do Service des Oeuvres Françaises a l'Étranger (o que já tinha listado como prioridade), e achou minha hipótese interessante de ser estudada. Falou que realmente existe uma política cultural como instrumento de poder, e como exemplo disso disse que a França daquela época não buscava vantagens econômicas no Brasil, e sim sempre buscou influenciar o Cone sul culturalmente, desde o século XIX. Ele exemplificou que apesar da colônia francesa ser infinitamente menor que a italiana e a japonesa no Brasil naquela época, e que a influência econômica ficar na mão da Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, a França era que tinha maior presença nas elites políticas e intelectual do Brasil (falou que nos seus cinco anos no Brasil nunca precisou aprender português, porque todas as pessoas falavam francês), e que isso era sim resultado de uma estratégia elaborada pelo governo francês. 19 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Depois ele falou de seu tempo em Nova York, durante e depois da 2a Guerra, e não quis entrar muito em detalhes de como foi seu papel de Adido Cultural da França nos Estados Unidos (ao mesmo tempo em que chefiava a New School of Social Research, com bolsa americana). Admitiu mesmo que, depois de 1945 os Estados Unidos tiveram uma política cultural poderosa na América Latina e na própria Europa, que substitui os meios muito mais modestos da influência francesa. Enfim, me recomendou procurar mesmo os documentos nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores daqui (a permissão chegou, depois de complicado processo), já que sua memória não poderia me dar maiores detalhes sobre essas coisas e me desejou boa sorte. Ao final, pedi licença para ter um momento de admirador, e lhe pedi para assinar o "Tristes Tropiques" em francês, que com certeza irei guardar para o resto da vida no lugar mais especial da minha estante. E ele, com as mãos trêmulas, conseguiu com certo esforço destampar a caneta tinteiro preta, se dirigiu à sua mesa gasta e curva, e escreveu: "Pour Fernando Santomauro, un souvenir de notre rencontre. Cordialement, Claude Lévi-Strauss". PS: As fotos não são minhas, mas de uma entrevista que ele fez em 1998. Eu já o vi um pouco mais velhinho do que essa foto, e menos chique, já que ele estava em casa. Até levei a máquina, mas não achei que tinha clima pra tirar. Eu com ele, sozinhos no escritório, não me senti à vontade. Mas essas são muito boas também. "PS2: As fotos usadas aqui, na verdade, foram tiradas por Eric Brochu em 1998, autoria descoberta só agora quando desta publicação por um grande amigo em comum, Jean Tible. Presentes de encontros que ainda hoje se fazem presentes. Fernando Santomauro é Doutorando em Relações Internacionais do Programa San Tiago Dantas, professor da FASM e Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura-de-Guarulhos. 20 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Em busca da terra de Bondiè: análise da imigração haitiana no Brasil em 2012 Bruno Constantino Introdução O terremoto que atingiu o Haiti em 2010 deixou muitos cidadãos haitianos em condições precárias, sem moradias e sem esperanças de melhoria. Adicionado a isso, a ajuda internacional não foi eficiente e o povo haitiano parecia ter sido esquecido por Bondiè (Deus em crioulo haitiano). Emigrar do Haiti para o Brasil - uma terra considerada próspera - foi o único meio de tentar superar a penúria. Então, os objetivos deste paper são abordar aspectos deste processo imigratório que aconteceu no início de 2012, analisar a influência dele nas relações internacionais brasileiras e, além disso, concluir se a vida dos haitianos nessa nova terra melhorou e assim superou as expectativas que eles tinham. Nem bem o primeiro e mais forte tremor acabara, as pessoas já erguiam as mãos aos céus e clamavam por Jezi (Jesus) e Bondiè (Deus); outras, poucas, entraram em transe a poucos metros de distância de nós. A consciência da violência do sismo foi imediata. Uma imensa nuvem de poeira nos jogou numa névoa impenetrável, explosões se sucediam e não longe de onde estávamos a chama de um posto de gasolina se adivinhava em meio ao pó. Pessoas feridas, queimadas, descabeladas, enlouquecidas surgiam no nevoeiro. (THOMAZ, 2010, p. 25). Dia 12 de janeiro de 2010 às 16h53, quinta-feira. O Haiti foi abalado por um sismo com magnitude de 7 graus na escala Richter que trouxe uma mudança no rumo da vida dos seus habitantes, que perderam, em um instante, familiares, amigos e vizinhos. Além dos mortos, aqueles que estavam vivos encontravam-se espalhados pelas ruas, desabrigados, feridos ou até mesmo amputados. As casas que não desabaram tiveram de ser abandonadas, pois outros temores de menores intensidades aconteciam constantemente e as bases estavam totalmente danificadas, o que traziam riscos de novos desabamentos. Todos se viram obrigados a dormir nos quintais e ruas, acampados com tendas feitas de lona. As circunstâncias fizeram com que a dependência de ajuda internacional se tornasse maior, uma vez que já havia intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1994 no Haiti. Ela era tanto de caráter militar, quanto de ajuda humanitária. Esta última “constituiu um terço do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009” (WARGNY, 2011, p. 19). Porém, opiniões diferem sobre a eficiência do órgão internacional após o terremoto, como a de Omar Ribeiro Thomaz, que presenciara o tremor e que teve a impressão de um descaso por parte da ONU para com os haitianos expressada no trecho: 21 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Os haitianos pareciam saber: parece ser que todo o efetivo militar da Minustah se concentrava no trabalho de salvar os membros da ONU no Hotel Cristophe. Cerca de 6 mil efetivos militares. Uma minoria estava trabalhando no Montana. A ONU ajuda a ONU, os haitianos ajudam os haitianos. (2010, p. 26). Além do descaso, também havia o despreparo por parte da ONU - mesmo após ter estado em solo haitiano há mais de 10 anos - para que fossem entregues as doações: “A informação obtida nos deixou perplexos: não tinham nenhum esquema de distribuição de alimentos ou remédios, e tampouco um esquema de segurança para garantir o trabalho dos cooperantes.” (THOMAZ, 2010, p. 30). Doze meses depois do terremoto, as doações aumentaram, mas a restauração do aeroporto e o recapeamento das principais artérias viárias são os únicos projetos em andamento. À população, resta esperar auxílio e sobreviver em meio a uma estrutura precária.”(WARGNY,2011,p.18). Ainda que a ajuda humanitária chegue até os haitianos, grande parte dela é perdida para a corrupção e também é investida em projetos que beneficiam as elites. Os mais pobres veem suas vidas iguais ou pouco diferentes daquelas que tiveram logo após o terremoto. Wargny, um enviado especial ao Haiti, descreve as condições precárias dos acampamentos - que mesmo após um ano do terremoto se encontram iguais - no trecho: “uma sucessão de barracas tão juntas umas das outras que temos dificuldade de passar uma mesa de plástico entre duas tendas. Promiscuidade ao extremo, condições de vida na temporada de chuvas (de junho a novembro) oscilando entre o insuportável e o terrível.” (2011, p. 18). Essas condições insalubres proporcionam o reaparecimento de doenças: No tempo seco, as fezes formam o essencial das partículas em suspensão. Assim como a água suja, transportam o bacilo do cólera, que acaba de voltar à ilha depois de uma ausência de quase um século. Doença de fácil prevenção – ter acesso à água limpa e lavar as mãos com frequência reduz o risco –, ela faz estragos aqui. Em meados de dezembro, quase cem mil pessoas foram contaminadas, 34 mil hospitalizadas. Mais de 200 mil mortes foram contabilizadas. Até esse período, Tomas, o ciclone que atingiu a ilha em 5 de novembro, ajudou na propagação da bactéria. Por todos os lados, fossas sépticas transbordam e misturam o conteúdo às imundices trazidas pelas tempestades. Receptáculo de águas furiosas e lixo que elas levam, os campos de desabrigados se transformaram em imensas fossas infestadas de vibriões coléricos. (WARGNY, 2011, p. 18). Frente às péssimas condições de vida e à falta de oportunidades para a melhoria delas, os haitianos se veem obrigados a usar a emigração para superar a pobreza. Os desabrigados economizaram os poucos donativos que receberam durante esses dois anos após o terremoto e, com eles, pagaram as passagens aéreas e rodoviárias em direção aos países que estão em crescimento e que oferecem oportunidades de trabalho. Os 22 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Estados Unidos costumavam ser o local mais procurado pelos imigrantes haitianos, mas devido à crise financeira que tem atingido aquele país, o foco imigratório direcionou-se totalmente para o Brasil, que conseguiu contornar quase que todos os efeitos dessa instabilidade econômica mundial e que assim passou a ser visto como uma área em pleno desenvolvimento e de empregabilidade. Processo imigratório De acordo com uma pesquisa realizada com cinco haitianos presentes em Andradas (cidade no sul do estado de Minas Gerais), eles saíram do Haiti no início do ano, voaram até a Costa Rica, em seguida ao Panamá e depois para o Peru. Desse último país, eles foram em direção ao Brasil de carro, atravessando a fronteira do Acre ilegalmente. Segundo eles, todo esse trajeto foi realizado sem dificuldades e o processo de liberação dos vistos foi simples, tendo sido o governo brasileiro atencioso com todos eles. Quatro mil haitianos presentes no Brasil foram legalizados e medidas para o controle do fluxo imigratório foram tomadas: A situação estava fugindo do controle e precisava ser disciplinada, essa foi a justificativa do governo brasileiro para editar a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012, do Conselho Nacional de Imigração – CNIG, dispondo sobre a concessão do visto permanente, previsto no art. 16, da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de cinco anos, nos termos do art. 18, da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro. A própria Resolução do CNIG estabelece o que são razões humanitárias, ou seja, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país, em 12 de janeiro de 2010. Ainda de acordo com a Resolução, o visto tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, com limite de até mil e duzentos vistos por ano, correspondendo a uma média de cem concessões por mês. Antes do término do prazo de cinco anos, o nacional do Haiti deverá comprovar sua situação laboral para fins da convalidação da permanência no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade de Estrangeiro. (LAURIA, Lélio. A questão dos imigrantes haitianos. Além do controle pelos vistos liberados por mês na embaixada em Porto Príncipe, outra medida foi tomada. O ministro das relações exteriores, Antônio Patriota, disse na sabatina realizada no Shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo, no dia 17 de maio de 2012 que houve uma iniciativa diplomática entre Brasil e Peru, e que o último começou a requerer visto desses estrangeiros. A contenção dos haitianos além de servir para que não haja disputa entre eles e brasileiros por vagas no mercado de trabalho, também tem a função de proteger esses imigrantes do narcotráfico e dos coiotes que 23 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 eles contratam para conseguir atravessar a fronteira brasileira sem vistos. Porém, por vezes, essas medidas não são bem vistas. Elas nada mais são do que, segundo Ventura e Illes (2012, p. 34 apud OTAVIO, Chico & GUILAYN, Priscila. “um processo de imigração seletiva, que priorize a drenagem de cérebros, mas estabeleça limites para os estrangeiros que chegam fugindo da pobreza de seus países.” E mantendo a mesma posição em relação às restrições, ela vai totalmente contra a ideia de que com as medidas, os haitianos estão sendo protegidos dos criminosos que os ajudam a atravessar a fronteira, no trecho: Medidas restritivas se fizeram acompanhar por mitos. Por exemplo, o de que dificultar a entrada de pessoas as protege dos “coiotes” (os falsários que organizam a passagem pelas fronteiras ou até promovem o tráfico de pessoas), quando é sabido que, quanto maior for a restrição, mais valorizado é o atravessador. Não é difícil intuir que, sob o prisma individual, o recurso a essa totalmente incerta, cara e perigosa viagem de milhares de quilômetros é sempre o último. (VENTURA & ILLES, 2012, p. 35) Assim como Deisy Ventura e Paulo Illes, Omar Ribeiro Thomaz e Sebastião Nascimento fizeram duras críticas para a política de imigração adotada pelo governo brasileiro: Ora, a antropofagia pode ser agradável para quem devora, mas não para quem deve pagar o preço da assimilação. Assim, o universo institucional revive uma tradição nacional tão vetusta quanto infame: a do favorecimento da imigração, sim, mas com alta seletividade, ao longo de uma história em que aos negros estrangeiros só se abririam as portas enquanto chegassem pelos porões do cativeiro. (THOMAZ, Omar Ribeiro & NASCIMENTO, Sebastião. Fronteira Social e fronteira de serviço. Em: < http://www.estadao.com.br/noticias/suplemen tos,fronteira-social-e-fronteira-deservico,828430,0.htm> Acesso em: 7 jun. 2012) Contratações, novos rumos e esperanças Os haitianos, agora legalizados, espalharam-se por diversas regiões do Brasil, e a região sudeste foi a mais procurada, por ter uma oferta maior de emprego, principalmente no setor primário, pois há mais oportunidades para a mão-de-obra barata. Junto daqueles cinco imigrantes que participaram da pesquisa feita em Andradas, vieram mais dez. Esses quinze refugiados viajaram durante cinco dias, do Acre até o destino no sul de Minas Gerais, por meio de um ônibus de seu novo patrão. Foram contratados para trabalhar na cultura de rosas e fazem serviços como plantio, capinação, corte e embalagem. J.G., O.S-F., R.S., I. M. e sua mulher J.S. disseram que estão se adaptando sem muitas dificuldades com o novo emprego que conseguiram. Eles têm moradias dignas, porém não ganham o tanto que esperavam, assim como muitos haitianos que vieram para 24 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 o Brasil. Recebem um salário mínimo de R$ 622,00, mas em cima deste, recai o desconto de 8% (R$ 49,76) do INSS, então o salário é de R$ 572,24. Caso façam horas- extras, ganham R$ 3,50/hora. Além desses valores, ganham uma cesta básica com componentes como arroz, feijão, açúcar e papel higiênico de valor de R$ 43,00. O salário é gasto com carnes, temperos e leite. Pouco dinheiro sobra para ser enviado aos familiares no Haiti ou mesmo para tentar trazê-los para o Brasil. J.G., O.S.-F. e R.S. deixaram filhos e maridos no Haiti, I.M. e a mulher J.S. deixaram seis filhos com a irmã dela. Sobre o terremoto, eles relataram algumas lembranças. Todos eles estavam na rua e correram assustados e sem direção, mas com J.S. foi diferente. No início do tremor, ela estava dentro de casa e sua reação foi pegar seu filho de sete anos e correr em direção à rua. Todavia, quando conseguiu sair da construção prestes a desabar, um bloco de tijolo caiu em sua cabeça, causando um trauma em sua cabeça, o qual foi tratado mais tarde por médicos americanos. Muitos familiares morreram soterrados nos escombros, principalmente os mais idosos, que não conseguiram se locomover a tempo de se salvarem. Para finalizar, alguns dados sobre esses cinco haitianos serão apresentados em gráficos. São eles: a idade, o número de óbitos na família e a quantidade de pessoas deixadas-no-Haiti. Considerações Finais Estes imigrantes são guerreiros que não deixam de lutar contra os empecilhos da vida, mesmo marcados pelas feridas feitas por um terremoto que os separou de entes queridos pela morte ou por decisões de deixálos para buscar melhorias. Por mais que as expectativas em relação à vida no Brasil não tiverem sido superadas, por mais que novos empecilhos possam aparecer, viver aqui é tudo que eles querem. Ainda que em momentos se sintam dependentes da ajuda de outros, eles têm um emprego, ganham dinheiro com o próprio suor e veem nisso modos para superar a pobreza. O governo brasileiro, por mais temeroso que estivesse com o grande fluxo imigratório, acolheu os imigrantes na medida do possível, procurando ajudá-los a criar uma nova vida no Brasil. Além disso, a atenção e preocupação que o povo brasileiro tem com eles fazem com que se sintam parte deste novo lugar, lar de esperança, lar de Bondiè. Bruno Constantino é Relações Internacionais graduando em pela FASM. 25 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Gráficos 26 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Guerra Civil no Camboja: implicações históricas e mutabilidade Carlos Henrique Mosquete; Victor Sakamoto Introdução Este paper tem por objetivo trazer uma reflexão específica a cerca de um tema que intriga a humanidade contemporânea. Em pleno século XXI, ainda convivemos com os resultados de acontecimentos que marcaram a história de diversos países ou povos por meio de uma esfera indesejável. Acontecimentos que marcam a vida de inúmeras pessoas através de massacres e brutalidades e que servem de aprendizagem e reflexão para as futuras gerações: Que mundo é esse em que inúmeros atentados contra a humanidade são feitos durante o que deveria ser o século do desenvolvimento tecnológico e industrial, e isso por seus próprios habitantes? O que motiva os diversos massacres e mortes em massa com o intuito de dizimar uma específica população e qual direito é dado para essa ação brutal e inimaginável? A que ponto chega à natureza humana para cometer esses atos? O tema tem por conceito a Guerra Civil ou, mais especificamente, a Guerra Civil no Camboja. Uma guerra baseada na opressão de um Governo totalitário criminoso contra sua própria população, que resultou em inúmeras mortes e atentados contra os Direitos Humanos. Será discutida a contextualização da Guerra, de modo a descobrir que fatores e ações anteriores fizeram com que a situação culminasse nesse conflito brutal, além de uma narração dos acontecimentos que ocorreram durante o conflito, como ocorreu seu término e uma conclusão do pós-guerra. Para o desenvolvimento do paper partimos da seguinte problemática: De que modo os conflitos ocorridos durante as chamadas Guerras da Indochina desembocaram no período turbulento e traumático pelo qual o Camboja passou entre os anos de 1975 a 1979, caracterizados pela vontade de formação de uma economia agrária imposta e ditatória do então governo formado pelo grupo revolucionário Khmer Vermelho? Nossa hipótese para a problemática: Os conflitos tiveram início no Vietnã em relação ao seu processo de independência com a França, e boa parte de suas direções foram tomadas haja vista toda a problemática e crescente discussão relacionada à Guerra Fria e sua completa mudança de visão de construção de governo entre os países envolvidos. Neste paper, serão discutidas as causas externas e internas que levaram a conflitos generalizados em toda a área conhecida como Indochina, suas implicações na chamada Guerra Civil do Camboja, e de que forma questões mais complexas relacionadas, tanto as idealizações de Estado por parte de autores históricos, quanto aos efeitos causados por parte das ideias difundidas na chamada Guerra Fria, criaram uma situação traumática e indelével em um país que atualmente tenta 27 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 recuperar-se das imposições idealistas/utópicas do partido ditatório conhecido como Khmer Vermelho. Justificativa O fascínio pelo campo das guerras e genocídios entre os estudantes de história e cursos relacionados à área fez e faz com que diversos trabalhos acadêmicos sejam publicados sobre o assunto. Os grandes genocídios como o Armênio, Holocausto Nazista, mortes em massa por Stalin na Rússia, na China com Mao Tsé Tung, Ruanda, Camboja, dentre outros, inspiraram a publicação de diversos outros como também deste trabalho, por meio do qual se espera apresentar um contexto histórico movido por discussões polêmicas que transformaram o mundo a partir da metade do século XX. A importância do entendimento de tais assuntos, mesmo que não a fundo, objetiva o simples entendimento sobre o que mais envolveu a Guerra Fria além da disputa “não armada” entre Estados Unidos e Rússia, ou mais precisamente, Capitalismo x Socialismo. Fundamentação teórica Por mais que os conflitos que se desenrolaram no Camboja entre os anos de 1975 e 1979 - e também em anos anteriores – tenham sido denominados Guerra Civil, é bem difícil definir exatamente o que foi esse período. Como tentativa de explicar o que foram os conflitos, podemos tentar distinguir entre os três tipos de guerra civil descritas por Waldmann & Reinares (1999, pp. 14-15); (1) Guerra Civil por revolução – guerras dirigidas contra o próprio regime, ou seja, que tem como finalidade a derrubada do governo estabelecido e/ou profunda mudança socioeconômica; (2) Guerra Civil por sucessão – guerras de sucessão com a finalidade de autonomia ou separação; (3) Guerra Civil internacionalizada – guerras civis tanto por revolução como por sucessão, que têm a participação ou intervenção de, pelo menos, um país soberano. As variações entre as definições acima podem ser colocadas dentro da sequência mutável de fatos ocorridos entre os períodos de 1960 a 1970 e 1975 a 1979. Saloth Sar, conhecido como Pol Pot e líder do partido comunista Khmer Vermelho, que tentou construir uma sociedade agrária comunista no Camboja, foi responsável pela morte de estimadas 2.000.000 (dois milhões) de pessoas, segundo concordância de diversos autores e estudiosos do assunto. Após ser reprovado por três anos consecutivos em seus estudos de Rádio Eletrônica, perdendo a bolsa de estudos que possuía em Paris e tomado por ideais políticos e por correntes filosóficas como o marxismo e suas ideias sobre socialismo e revolução, ele retorna ao Camboja em 1953, período idêntico ao da lei de supressão criada pelo rei Norodom Sihanouk com vista a suprimir os partidos comunistas formados, que estavam se radicalizando frente à opressão contra o movimento de independência realizado pela 28 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 França contra o Camboja, na época uma de suas colônias. Sendo levado por seu irmão mais velho, Saloth Chhay, Pol Pot juntou-se ao movimento comunista, que com os comitês de independência criados, levaram o Camboja a independência em 1953, e ao reconhecimento de tal feito em 1954 pela França. Tornou-se líder do partido comunista em 1962, precisando se refugiar na floresta devido à perseguição por parte do ainda governante Norodom Sihanouk. Já influenciado por suas ideias sobre o comunismo e socialismo marxistas, e tendo se refugiado em uma tribo nas montanhas no nordeste cambojano, que lhe possibilitaram conhecer uma forma simples e não material de vida, formou o partido guerrilheiro Khmer Vermelho, com o intuito de derrubar o governo de Sihanouk, e passou a tomar pequenos vilarejos e substituir os líderes locais por líderes do partido de resistência, conquistando pouco a pouco o território e reunindo forças para ataques a cidades e províncias de importância vital para o governo. No ano de 1970, após um golpe de Estado inesperado do antes primeiro ministro Lon Nol, apoiado pelos Estados Unidos, objetivando impedir que se formasse um regime comunista no Camboja e em toda a área conhecida como Indochina, o rei Sihanouk fugiu e se reuniu com o antigo partido inimigo Khmer Vermelho, que continuou com a tomada de cidades em que o poder do novo governo tinha autoridade limitada, sendo agora apoiado pela China e União Soviética, devido aos ideaisxsocialistasXprocuradosxemxcomumxp rincípioxexquexpossibilitaramxum “crescimento explosivo, no qual suas práticas assassinas puderam, rapidamente, atingir proporções épicas” (VEZNEYAN, 2009, pp. 231). A formação da Frente Nacional Unida da Kampuchea (Funk), provinda da junção do Khmer Vermelho com o rei Sihanouk, foi essencial para a conquista de mais territórios e aquisição de simpatizantes à causa e, entre 1969 e 1973, após se aliarem a grupos nortevietnamitas interiorizados por tentativas de expulsão dos Estados Unidos, foram bombardeados no que pode ter sido considerado a maior quantidade de explosivos e bombardeio na história em um só país. Considera-se que tenham morrido cerca de 600 mil cambojanos, entre esses 150 mil agricultores em cerca de 600 mil toneladas de bombas despejadas. O bombardeio atingiu milhares de agricultores do interior do Camboja, fazendo com que os que sobreviveram tivessem de mudar, aos milhares, para a capital do Camboja e principal cidade, Phnomz Penh. Em 1975, após a retirada das tropas americanas do Vietnã e perda do apoio americano no Camboja, seguido da fuga do general Lon Nol devido à incompetência do governo instaurado, marcado pela corrupção, o Estado cambojano viu-se livre do governo. Entretanto, enquanto havia comemorações em Phnom Penh, o grupo Khmer Vermelho viu sua oportunidade e, no dia dezessete de abril, marchou sobre a cidade matando todos os 29 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 funcionários do antigo regime e estrangeiros restantes no país. Sobre a desculpa de perigo iminente e regresso em alguns dias, esvaziou a cidade, levando todos consigo sem que esses pudessem carregar nada, direcionando-os para os campos de trabalho criados, com vista a conseguir cumprir com seus planos de uma utopia agrária comunista, inspirada em líderes e movimentos como a revolução cultural de Mao Tsé Tung na China, e que iriam destruir no Camboja toda e qualquer influência ou característica do capitalismo. A partir da tomada da cidade de Phnom Penh, Pol Pot declarou o que chamou de “Ano Zero” para o Camboja, em que iniciou um programa rigoroso com o intuito de “purificar” a sociedade cambojana e transformá-la em uma sociedade comunista autossuficiente, livrando-a de influências ocidentais como cultura, religiões e capitalismo, instaurando medidas de controle como expulsão de estrangeiros, fechamento de embaixadas, desligamento da moeda corrente no antigo regime, além de matar todos que se opusessem ao Khmer Vermelho, incluindo seus líderes. Segundo Kiernan (1996), apesar de sua economia subdesenvolvida, o regime de Pol Pot foi, provavelmente, o que mais controlou seus cidadãos considerando todos os países em toda a história, adotando postura totalmente fechada para o mundo exterior. Os Cambojanos chamaram esse período de “O regime de três anos, oito meses e 20 dias”, referindo-se a todos os segundos de terror vivenciados no período que exterminou cerca de 30% da população do Camboja por fome, torturas e execuções. Fase na qual se estima que quase todas as famílias tenham perdido ao menos um membro. Segundo Vezneyan (2009): milhões de cambojanos acostumados à vida citadina foram forçados a trabalhar nos “campos da morte” de Pol Pot, onde rapidamente começaram a sucumbir face ao excesso de trabalho, doenças, e desnutrição. Os indivíduos tinham direito a uma xícara de arroz (180 gramas) por pessoa a cada dois dias. Além disso, eles eram submetidos a cargas e condições de trabalho inumanas e morriam ao cometer qualquer infração, por mais leve que fosse. Um dos métodos de repressão foi a transformação de um colégio popular cambojano em cadeia. Este era conhecido como S-21 ou Tuol Sleng, usado contra milhares de pessoas com o intuito de torturálas até que confessassem os crimes, participação em esquemas no antigo governo ou traição contra o Khmer Vermelho. Muitas vezes, após a tortura que sofriam, eram assassinados e, antes da morte, eram fotografados como parte de um ensinamento para aqueles que desobedecessem. Atualmente, o colégio funciona como museu para lembrar a perda de pessoas inocentes e mostrar a todos o que foi o massacre. Em 25 de dezembro de 1978, o Camboja foi invadido pelo Vietnã com o intuito de interromper os ataques e incursões do Khmer Vermelho às fronteiras cambojanas. Formou-se nesse momento um 30 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 governo provisório formado principalmente por desertores do grupo. Pol Pot teve então de fugir de seu país e iniciou, com o que sobrou dos Khmer Vermelho, várias guerrilhas durante os anos 1980 e 1990 com os governos sucessores, sem, entretanto, mostrar-se presente como organizador dessas. Em 1997, após anos escondido, Pol Pot foi preso pelo líder de sua guerrilha, que fora formado após a deposição do Khmer Vermelho do governo. Pol Pot e seus comparsas fugiram e armaram um esconderijo na selva para montar uma resistência armada contra os futuros governantes. Essa prisão, entretanto, em nada mais culminou além de um “julgamento” fictício, ou melhor, uma encenação teatral judicial, uma completa farsa. “As farsas judiciárias de Josef Stalin e Mao Tsé Tung inspiraram a encenação dos Khmers que revelavam dessa forma o que, na ocasião, pretendiam negar: sua fidelidade a si mesmos e ao seu passado”. (MAGNOLI, 2006, p. 31). O que realmente se esperava da Comunidade Internacional era a imposição de ato de justiça por meio do Tribunal Internacional, condenando os devidos responsáveis, assim como fora feito com os crimes de Genocídio da Bósnia (1995) e Ruanda (1994). No entanto, isso não ocorreu. Magnoli (2006, PP. 32) descreveu: “Afinal, um julgamento genuíno traria à tona as responsabilidades indiretas de todos os que, em um momento ou outro, deram a mão aos Khmers – uma heterogênea confraria que abrange governantes chineses, tailandeses e americanos”. Assim sendo, caso houvesse a condenação dos responsáveis, diversos movimentos totalitários criminosos seriam “desmascarados” e isso foi um impulso para a absolvição por meio do esquecimento. Magnoli (2006) descreve que, no dia 15 de abril de 1998, segundo fontes do Khmer, Pol Pot morreu de ataque cardíaco e seu corpo foi queimado numa cerimônia testemunhada por um grupo de guerrilheiros caçados. Considerações finais O estudo das guerras e genocídios influenciou e ainda influencia a construção de estudos sobre o assunto e pesquisa acadêmica. Esse assunto, no entanto, é caracterizado por ser um tópico de pesquisa e referência em diversos campos, tais como Psicologia, Relações Internacionais, Ciências políticas, entre outros. Isso se deve aos diversos modos de interpretação, tais como a forma como a mente humana age frente ao poder, as motivações externas por parte do estudo de autores históricos, o aparecimento de novas concepções relacionadas à política, além de outros entre os diversos motivos pelos quais já se tentou explicar ações cruéis como a dizimação de uma população ou etnocídio, por exemplo. Conclui-se que as motivações relacionadas aos abusos por parte do grupo Khmer Vermelho tiveram motivações diversas, sendo difícil achar uma explicação completa e que abranja tudo, e foram relacionadas principalmente as conturbações recentes causadas por disputas entre países Socialistas e Capitalistas, assim como por meio 31 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 dos exemplos seguidos de formas de governo vistas em países como China e Rússia. Carlos Henrique Mosquete é graduando em Relações Internacionais pela FASM. Victor Sakamoto é graduando em Relações Internacionais da FASM. Referências bibliográficas: KIERNAN, B.,Boua, C. The Pol Pot Regime: Race, Power and Genocide in Cambodia under the Khmer Rouge, 1975-1979: New Haven, CT, Yale University Press,z1996. MAGNOLI, Demétrio (org.). O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie. SãoxPaulo:xEdiouro,x2006. VEZNEYAN, Sérgio. Genocídios no século XX: uma leitura sistêmica de causas e conseqüências. –Tese de Doutorado: USP/SP,x2009. WALDMANN, P. Dinamicas Inherentes de La Violência Política Desatada. IN: Peter Waldmann and Fernando Reinares (eds.). Sociedades em Guerra Civil: Conflictos Violentos de Europa y America Latina. Spain: Editora Paidos Iberica, 1999b, PP. 87-108. WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da política, 1 (Vol. 1). São Paulo: Ática, 2006. Sites The Killing Fields Museum. Memorial for victims in Washington state. Disponível em: http://www.killingfieldsmuseum.com/genocide1 .html Filmes e documentários Os Gritos do Silêncio - The Killing Fields (1984, 2 hours, 21 minutes).Dirigido por Roland Joffé. Esta foi sua estreia no Cinema, tendo trabalhado sempre como documentarista. 32 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Responsabilidade de Proteger e Guerra Civil na Síria João Paulo Gusmão P. Duarte Do século XX ao século XXI: preocupação em prevenir conflitos a A sucessão de processos revolucionários e guerras civis iniciados em 2011 no chamado “mundo árabe” expôs uma das características mais evidentes das relações internacionais contemporâneas no que diz respeito à ocorrência da guerra. Se durante boa parte do século XX as preocupações neste campo giravam em torno da tensão causada pelo embate entre as forças militares dos grandes Estados, no século XXI, o que se nota é a consolidação de novas formas de manifestação da violência. Comumente reconhecido como marco que define esta mudança, o fim da Guerra Fria colocou em evidência outros importantes problemas de ordem global que passaram a incidir sobre as relações internacionais e sobre as populações mundiais. Em princípios da década de 1990, nota-se a ascensão pujante de terrorismos, de tráficos transnacionais, de incontroláveis movimentos guerrilheiros, de conflitos étnicos e genocídios, e de uma miríade de guerras civis que passavam a repercutir muito além dos limites fronteiriços dos ditos “Estados falidos” ou sob regime ditatoriais. A partir dos anos 2000, essa tendência se confirmou, desafiando as leis de guerra regulamentadas a partir das velhas formulações que identificavam o conflito nas relações internacionais como um fenômeno atrelado unicamente aos Estados. A concentração de esforços para a criação de princípios de direito internacional ao longo do século XX, que tinham como grande objetivo a promoção e manutenção de relações pacíficas frente à ameaça das grandes guerras, viu-se defasada com a alteração das formas de violências que se modularam nesses últimos anos, apresentando-se sob novas desenvolturas que escapam aos conceitos de regulamentação da guerra de tipo clausewitziana (Rodrigues, 2010). O século XXI se inicia, portanto, com um objetivo claro nos circuitos internacionalistas: direcionar a atenção da segurança para as pequenas e localizadas agitações políticas e sociais em países subdesenvolvidos, em regiões de grande pobreza e miséria, em zonas periféricas com déficit de governança, em Estados sob regimes ditatoriais. Antes considerada desinteressante do ponto de vista estratégicogeopolítico, essa atenção dada aos problemas “marginais” de outrora, confirmou o redimensionamento dos sistemas de segurança e, ao mesmo tempo, da articulação, manipulação e conceituação dos mesmos. Se ao longo do século XX – mais precisamente, até o fim da Guerra Fria –, ouvia-se pelos gabinetes governamentais e diplomáticos, e se reproduzia nos discursos acadêmicos a preocupação com os problemas de defesa nacional, que buscavam responder ao temor das grandes guerras, depois da queda do muro de Berlin, nota-se uma 33 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 alteração semântica que não foi aleatória. Desde então, houve uma preponderância dos discursos pela segurança internacional, que, de algum modo, já se vê um pouco desgastado, dando espaço para os atuais esforços de conceituação daquilo que vem sendo chamado de governança global. Isso se deve ao fato dessa última denominação condizer mais com os problemas que são próprios do século XXI, ou seja, problemas de segurança que estão além do entre nações, ocupando um patamar ampliado: a esfera do global. Uma nova segurança para novas violências A constatação de que há na contemporaneidade uma fragmentação ou pulverização dos conflitos em focos de violência recorrentes e espalhados pelo planeta, que assumem diversas formas e se manifestam de maneira irregular, motivou a ativação de novos instrumentos jurídicos e militares para a contenção ou controle dos mesmos. Segundo indica Gros (2009), o despontar desse novo cenário caracterizou algumas mudanças profundas nas maneiras com as quais se manifestam as violências. De acordo com o autor, os atuais conflitos são mais privatizados, desterritorializados e desregulamentados. Significa dizer que, em sua primeira dimensão, eles são caracterizados pela participação cada vez maior de grupos “não oficiais”, ou seja, que não estão vinculados a algum Estado ou unidade organizacional pública e formal, como as redes terroristas, os bandos ou quadrilhas de tráfico e negócios ilegais, os grupos armados paramilitares ou guerrilheiros. Do mesmo modo, as novas violências não obedecem a padrões espaciais ou temporais; são infraestatais e, ao mesmo tempo, transterritoriais, são possíveis de ocorrência nos lugares mais inócuos e distantes do planeta, bem como nas grandes metrópoles, iniciando a qualquer momento, sem determinar uma clara e objetiva conclusão. São ainda desprovidos de regulamentações, ou seja, não se prendem necessariamente a compromissos legais, envolvendo tanto elementos reconhecidos pelo direito internacional, quanto elementos não reconhecidos. Tais mudanças, que vinculam cada vez mais a esfera civil, despertaram um súbito apelo por renovadas maneiras de circunscrever estas manifestações de inseguranças globais. O controle sobre os novos focos de violências que se alojam no interior dos chamados Estados falidos ou que são perpetrados pelo próprio soberano contra sua população, exigiu, então, a programação de mecanismos de força militar e diplomáticojurídica que conferisse legitimidade aos rompimentos dos princípios de soberania dos Estados que permitissem a ascensão e ocorrências dos mesmos. Foi assim que surgiu o engajamento em torno das intervenções militares com fins humanitários, um novo modo de se fazer guerra contra as possibilidades sempre despertas de insegurança na vastidão planeta. 34 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Esta mudança ocorreu formalmente no âmbito das Nações Unidas, em 17 de julho de 1992, com a aprovação no plenário da Assembleia Geral da “Agenda para a paz: diplomacia preventiva, estabelecimento da paz e manutenção da paz”. Este relatório proposto pelos países que compõem o Conselho de Segurança de maneira permanente visou à reformulação de alguns mecanismos diplomáticos, jurídicos e militares que permitissem a execução de medidas para contenção das pequenas violências descentralizadas que repercutem negativamente na busca por estabilidade internacional. O documento ressalta, no entanto, que o motivo principal deste redimensionamento dos instrumentos para garantir e promover a segurança da coletividade seria a “exigência de solução para problemas de ordem humanitária que residem dentro de nações em que os aparelhos estatais são fracos”. Ainda de acordo com o texto, o compromisso das Nações Unidas a partir destas novas diretrizes que se tornaram conhecidas pelas expressões “peacebuilding” e “peacekeeping”, seria de “sensibilidade para com o direito das minorias”1, ou seja, uma atenção da instituição voltada aos países pobres e às populações miseráveis, consideradas mais suscetíveis à ocorrência das novas violências. 1 Trechos extraídos do parágrafo 18, da Parte I do documento. Disponível em: <http://www.un.org/Docs /SG/agpeace.html>. Acesso em: 28/06/2012. Esse engajamento em benefício dos direitos humanos ganhou força pouco depois com outro dispositivo também proveniente de órgãos das Nações Unidas. Como indica Rodrigues (2012), o Human Development Report, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 1994, alinhavou esses novos temas de segurança em torno da necessidade de promoção de uma securitização ampliada, envolta ao conceito de segurança humana. De maneira resumida, uma atenção voltada às populações mundiais e suas condições de vida em detrimento das soberanias estatais. Com o desenvolvimento dessas duas iniciativas nos circuitos diplomáticos, e, ao mesmo tempo, com a ocorrência de guerras civis na década de 1990 em que as inovações dessas prerrogativas se chocaram com o velho princípio de inviolabilidade da soberania estatal, causando impasses na resolução dos conflitos, formou-se, em 2001, a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), responsável pela publicação do relatório The Responsibility to Protect. A comissão, que obteve a chancela da ONU, teve como principal objetivo equacionar os problemas de incompatibilidade entre os conceitos de direitos humanos e de soberania estatal. Segundo Rodrigues (2012), o relatório proveniente dos trabalhos da comissão inscreveu o princípio da Responsabilidade de Proteger (RdeP) na agenda internacional, que buscou projetar a condição do exercício do poder soberano ao cumprimento rigoroso de cada Estado aos direitos humanos. Desse 35 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 modo, não houve uma proclamação do fim da soberania, mas uma intimidação ao seu exercício, que deve ser pautado por princípios legítimos de condução do poder, balizados pelos valores universais humanitários. Os Estados, a partir de então, só possuiriam o legítimo direito de exercício de sua soberania quando protegessem os direitos e a vida dos seus cidadãos. Por outro lado, a chamada comunidade internacional teria a obrigação de intervir em Estados em que haveria algum tipo de violação da liberdade e dignidade de sua população. Essa perspectiva vai de encontro ao que Fukuyama (2005) argumenta em suas análises que buscam justificar algumas das ações contraterroristas estadunidenses. De acordo com o autor – caracterizando a necessidade dessas ações –, a soberania do Estado-nação deve ser condicionada àquilo que acontece dentro dele, ou seja, condicionada à qualidade da governança interna. No caso de má governança do Estado e da possibilidade dos problemas internos afetarem a esfera internacional, o princípio de soberania se corrói, abrindo espaço para as intervenções de construção de Estados, expansão da democracia e proteção humanitária. O arcabouço de dispositivos que seguem essas orientações, resumidos e aglutinados atualmente no conceito de Responsabilidade de Proteger, foi aprovado – sem aceitação unânime – na Assembleia Geral da ONU, em 2005. Estipulou, portanto, uma nova forma de se fazer a guerra por meio de intervenções que buscam – ao menos em discurso – defender os direitos humanos, mas que, efetivamente, produz o gerenciamento de um ambiente internacional pacificado ao solucionar demandas que não estão associadas à preocupação humanitária. Problematizando a Responsabilidade de Proteger Os esforços contemporâneos no sentido de legitimar a utilização do mecanismo da Responsabilidade de Proteger em situações de crise política em determinados países, expõe um dilema ainda sem solução nos circuitos acadêmicos e diplomáticos. Em vez de uma real preocupação em proteger civis em situações de risco, pode-se problematizar o RdeP questionando se por trás dos belos discursos humanitários não há uma intenção estratégica de poder angariada pelos partidários da intervenção. Pode-se identificar, desse modo, a utilização das intervenções humanitárias/militares como mecanismo de segurança inaugurado a partir da necessidade de controle das novas violências. O que estaria em jogo nos processos intervencionistas seria algo além da proteção humanitária, que envolve a prevenção ou controle de pequenas convulsões localizadas que podem se alastrar de maneira irrestrita, permitindo a ocorrência de terrorismos, de epidemias, de atividades de pirataria, de ilegalismos transnacionais, de acesso e manipulação sem restrições de armas de destruição em massa, ou mesmo dos fluxos migratórios. Assim, do ponto de vista prático, 36 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 as intervenções teriam o efeito de instrumentalizar a pacificação de zonas de proliferação das novas violências desregulamentadas, como forma de ampliar a segurança no ambiente internacional, mas sob a alegação de levar às populações afetadas o benefício da liberdade democrática e dos direitos humanos (conforme os parâmetros ocidentais). Nesse sentido, segundo Rodrigues: “o princípio da Responsabilidade de Proteger representa um novo contexto normativo e institucional de caráter global; anuncia-se como parte de um novo dispositivo diplomático-militar não mais voltado para o equacionamento e sobrevivência do Estado em um sistema fechado e interestatal (...), mas para a produção de novas técnicas para a gestão do planeta buscando preservar uma nova ordem internacional articulada pela combinação entre mercado capitalista global (com seus fluxos transterritoriais de informação, capital e produtos) e democracia representativa consolidada como o modelo final para a organização política dos povos” (2012: 37). Essas iniciativas indicam, portanto, ainda que de maneira muito prematura, a emergência de novas práticas interessadas no governo planetário, que seguem normativas, procedimentos e costumes orientados pelo sistema liberal-democrático-capitalista. Por isso, relembrando a análise desenvolvida anteriormente, já se pode considerar ultrapassada a “simples” segurança internacional, ou seja, entre nações. O que se desenvolve cada vez mais são práticas, técnicas e instrumentos de governo que visam construir no ambiente internacional um “estado de paz” em benefício de certos modelos políticos e sociais pré-determinados. Guerra civil na Síria Desde os primeiros meses do ano de 2011 a Síria vive um processo revolucionário contra o regime ditatorial de Bashar al-Assad, que progrediu, desde o início do ano de 2012, para uma guerra civil entre a oposição armada e as forças militares do Estado. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas já morreram nos conflitos diários em território sírio. Logo após iniciados os protestos, a atenção diplomática dos diversos atores envolvidos ou interessados na questão síria clamou pela proteção dos civis em meio à guerra. Uma vez mais os questionamentos sobre a ativação do mecanismo da Responsabilidade de Proteger veio à tona. A intitulada comunidade internacional logo identificou as reivindicações oposicionista por reformas democráticas como legítimas, bem como a violência perpetrada pelos vários grupos de oposição ao regime, a despeito dos métodos utilizados por elas nos confrontos. Inversamente, a violência proveniente do regime contra as sublevações foi identificada como ilegítima e ilegal. Desse modo, embora haja um confronto aberto entre o regime e a oposição – armada e financiada desde fora por países como Turquia, Catar, 37 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Arábia Saudita e Estados Unidos –, as responsabilidades e os prejuízos com relação aos resultados da guerra recaem sobre o regime. Este seria violador dos direitos humanos ao expor os seus cidadãos ao conflito – e, antes, à condição de repressão e falta de liberdade –, e, portanto, deveria perder o direito de exercer sua soberania. É nesse sentido que as articulações no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas vêm sendo tratadas. Com os primeiros embates entre as forças da oposição e do governo no país, surgiram também as solicitações de resoluções contra a Síria, cujo limite seria uma intervenção militar para salvaguardar os direitos da população civil. Liderada pela diplomacia estadunidense, as ações e os discursos que reivindicam intervenção externa, no entanto, esbarram no problema da persistente negativa da diplomacia russa e chinesa, que possuem laços estreitos com o regime de al-Assad. Todas as vezes em que foram propostas resoluções no Conselho de Segurança buscando a ativação do dispositivo do RdeP, Rússia e China vetaram, sendo aceita, ao longo desse tempo, somente uma resolução de envio de observadores internacionais ao país. Esse fato expõe como o princípio da Responsabilidade de Proteger está sujeito, quando da sua formalização nos órgãos de segurança, às disposições e orientações políticas de alguns Estados que influenciam de modo decisivo as questões mais importantes de política internacional. Nesse sentido, vemos que os mesmos motivos que levam hoje à solicitação de rompimento da soberania síria, são os que justificaram a implantação da zona de exclusão aérea na Líbia (uma forma de intervenção externa), que permitiu o auxílio militar à oposição naquele país, derrubando o regime de Muammar Gaddafi. Poderiam também justificar uma solicitação de intervenção no Bahrein, país em que as revoltas da chamada Primavera Árabe foram sufocadas pelo regime sem que a “comunidade internacional” pronunciasse legitimidade nas reivindicações dos grupos opositores neste país em que, da mesma forma, há violações flagrantes dos direitos humanos por parte de um regime também ditatorial. Portanto, os parâmetros para a ativação do princípio da Responsabilidade de Proteger não são guiados pela necessidade real de proteção dos direitos humanos, e sim, pelo complexo jogo de poder que há nas relações internacionais e pelo desejo de ampliação de um sistema de governança global. No caso da Síria, como as pressões partem dos Estados Unidos e de seus principais aliados na Europa e no próprio Oriente Médio, pode-se pensar que os interesses em uma intervenção para substituição do regime de al-Assad por um sistema democrático, teria como verdadeira fundamentação, se tomarmos um foco de análise regional, o enfraquecimento do Hezbollah, o isolamento do Irã, e o consequente fortalecimento da segurança de Israel. Num foco de análise ampliado, pode-se pensar na contenção do avanço chinês sobre o Oriente Médio – principalmente no que diz 38 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 respeito as questões econômicas –, no enfraquecimento militar russo, já que as únicas bases do país na região encontram-se em território sírio, no controle da estabilidade de comercialização e distribuição do petróleo, e na contenção do Islã. No entanto, não se pode tomar as atuais iniciativas de ativação de intervenções como sendo particularmente proveniente de interesses nacionais. Há um componente mais sofisticado que está vinculado à implantação de um governo global que se “desprende” do exercício de poder unicamente nacional. Nesse sentido, como aponta Rodrigues (2012), pode-se pensar que o RdeP – em ligação direta com a busca por uma segurança humana –, é parte de um sistema que articula novas práticas de poder interessadas em gerir o planeta e os fluxos de pessoas, de produtos e de capitais que por ele transita, identificando cada “anormalidade” como algo que pode atrapalhar ou interromper um “estado de paz” que faz funcionar o bom andamento da vida. A crise na Síria seria uma “anormalidade” a ser combatida por esse mecanismo que se articula, segundo Hardt e Negri (2005), como uma força policial que, em concordância ou não com as leis do direito internacional, está sempre pronta a pacificar um evento de insegurança. Cada intervenção militar atuaria, desse modo, como um ato de polícia internacionalizado, evidenciando a utilização do RdeP como instrumento que busca dispor e controlar as populações mundiais, exercendo um poder político sobre os homens em escala planetária. Um esforço de governo muito além do nacional. Uma governança, portanto, global. Referências bibliográficas DUARTE, João Paulo Gusmão Pinheiro (2011). Terrorismo e sociedade de controle. Dissertação de Mestrado Relações Internacionais. (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). São Paulo, 178f. FUKUYAMA, Francis (2005). Construção de Estados. Tradução Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco. GROS, Frédéric (2009). Estados de Violência – ensaio sobre o fim da guerra. Tradução José Augusto da Silva. Aparecida/SP: Idéias & Letras. HARDT, Michel; NEGRI, Antonio (2005). Multidão – guerra e democracia na era do império. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeio: Record. RODRIGUES, Thiago (2010). Guerra e política nas relações internacionais. São Paulo: Educ. ______ (2012). “Responsabilidade de Proteger e sua ‘responsabilidade de reagir’: Ultima ratio de um novo dispositivo global de segurança?”. In. Pensamiento proprio. Cries, Nº 35, Jan-Jul/2012. 39 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Inter-Relações ISSN: 1980-3702 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina Direção: Ir. Valéria de Araújo Carvalho Coordenação de Relações Internacionais: Prof. Dr. Moisés da Silva Marques Assistência de coordenação: Diogo Bueno de Lima Conselho editorial: Prof. Dr. Clóvis Brigagão (IUPERJ-UCAM); Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira (UNICAMP); Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP); Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues (UFABC); Ms. Kjeld Jacobsen (Instituto Observatório Social); Profª Dr. Meire Mathias (UEM); Prof. Dr. Moisés da Silva Marques (FASM/FESP-SP); Prof. Dr. Paulo-Edgar A. Resende [in memoriam] (PUC-SP); Prof. Dr. Peter Demant (USP); Prof. Dr. Rafael Duarte Villa (USP); Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM); Prof. Dr. Sergio Aguilar (UNESP-Marília); Prof. Dr. Thiago Rodrigues (UFF); Prof. Dr. Wagner de Melo Romão (UNESP-Araraquara). Editoração: Prof. Dr. Moisés da Silva Marques Revisão: Prof. Ms. João Paulo Gusmão P. Duarte e Deborah de Almeida Sheps As opiniões expressas nos artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as posições dos editores e da Faculdade Santa Marcelina. LABORATÓRIO DE ANÁLISE INTERNACIONAL (LAI – FASM) Faculdade Santa Marcelina (Campus Perdizes) Rua Dr. Emílio Ríbas, 89. Perdizes. CEP 05006-020. São Paulo – SP Tel.: (55) (11) 3824-5800 E-mail: [email protected] www.fasm.edu.br 40
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