Sem título - Faculdade Santa Marcelina

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Sem título - Faculdade Santa Marcelina
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Novos temas, velha ordem e a valorização do
passado
Novos temas, velhas ordens e a valorização do passado..........................................2
Editorial
O regime jurídico internacional da apatridia: a América Latina e o
Caribe.....................................................................................................................................3
Gilberto M. A. Rodrigues; Mariana Fernandes
A Era de Ouro: paradigma econômico ou ameaça política?...................................8
Marília Chiomento
A natureza do desenvolvimento..................................................................................14
Danilo Barbosa Mendonça
Levi-Strauss: o velinho gigante..................................................................................17
Fernando Santomauro
Em busca da terra de Bondiè: análise da imigração haitiana no Brasil em
2012..................................................................................................................................21
Bruno Constantino
Guerra Civil no Camboja: implicações históricas e mutabilidade........................27
Carlos Henrique Mosquete; Victor Sakamoto
Responsabilidade de Proteger e a Guerra Civil na Síria.........................................33
João Paulo Gusmão P. Duarte
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Novos temas, velha ordem e a valorização do passado
O presente número de Inter-Relações
tem a participação de pesquisadores,
professores e alunos da Área de Relações
Internacionais.
Vários
temas
relevantes
são
discutidos, demonstrando a importância da
atualização daqueles que trabalham com as
questões globais candentes. Logo no primeiro
artigo, a questão do tratamento jurídico a ser
dado para a condição dos apátridas nos
demonstra que as organizações internacionais
precisam considerar isso, sob seus novos
vieses.
A seguir, o artigo sobre a chamada Era
do Ouro mostra que o capitalismo viveu algo
sem precedentes, que se exauriu com o fim do
regime de Bretton Woods, fator que indica a
necessidade urgente de se rever a questão da
governança financeira internacional. Na
mesma linha, o artigo posterior, que trata da
natureza do desenvolvimento, demonstra a
importância
da
globalização
e
da
interdependência, sobre a possibilidade de
inovações e modelos diferenciados, para a
busca de um valor do passado: o
desenvolvimentismo.
Falando em valorização do passado, o
artigo sobre o encontro entre um jovem
pesquisador e o então nonagenário Claude
Lévi-Strauss possibilita, para aqueles que
estão começando na área acadêmica, a
verificação de que um gênio não precisava
demonstrar afetação (uma doença grave da
academia) e que continuava pensando e
valorizando os tristes trópicos até o final de
uma vida de gigante.
Dois artigos de alunos resgatam temas
importantes e pouco conhecidos dos
brasileiros. O primeiro, trata da Guerra Civil
no Camboja. O segundo, dos problemas
haitianos e seu rebatimento no Brasil, por
meio da imigração recente. O que vêm a ser
centro e periferia, na visão desses povos?
Finalmente, um tema em alta, nas
relações
internacionais,
como
a
Responsabilidade
de
Proteger,
ganha
contornos mais atuais, na reflexão que se faz
sobre esse tema, no caso da Guerra Civil na
Síria.
A equação para a nova ordem
internacional passa por um profundo
conhecimento do passado, uma valorização
do que já se fez com competência e um olhar
para as possibilidades futuras. É isso que
tentamos fazer neste número. Boa leitura!
Boa leitura!
Moisés da Silva Marques
Coordenador do Curso de Relações
Internacionais da FASM.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
O regime jurídico internacional da apatridia: a América do Sul e o Caribe
Gilberto M. A. Rodrigues; Mariana Fernandes
Apatridia
é
a
ausência
de
nacionalidade.
Ela
gera
nefastas
consequências para os indivíduos que dela são
vítimas. Atualmente, existem mais de 12
milhões
de
apátridas
no
mundo.
Etimologicamente, a palavra apátrida vem do
grego ápatris que significa: sem país.
Sinônimo de heimatlos ou apólida, do grego,
ápolis, que significa - sem cidade, sem pátria.
A Convenção sobre o Estatuto dos
Apátridas de 1954 define-os como “toda a
pessoa que não seja considerada por qualquer
Estado, segundo sua legislação, como seu
nacional”. Ou seja, apátrida é aquele
indivíduo que não possui qualquer
nacionalidade.
A apatridia tem sua origem numa
época remota. Contudo, a sua problemática
difundiu-se a partir do século 20 com as duas
Grandes Guerras, devido ao “deslocamento de
pessoas; a revolução comunista da URSS, o
nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália,
uma vez que todos que fugiram desses
sistemas
políticos
perderam
a
sua
nacionalidade” (MELLO, 2001: 938).
As consequências da Segunda Guerra
Mundial foram devastadoras. Uma delas foi
tornar milhões de pessoas apátridas. Nesse
período, a apatridia passou a ser encarada
como um problema universal; daí surgiu a
necessidade de enfrentá-la e erradicá-la.
Além de assegurar direitos e
obrigações aos indivíduos em uma ordem
jurídica interna, a nacionalidade também lhes
garante proteção internacional. Ou seja,
qualquer violação à integridade física, moral
ou patrimonial de um indivíduo nacional de
algum Estado será passível de legítima
reclamação por parte deste, perante a ordem
internacional. Quanto aos apátridas, eles não
podem contar com tal proteção, pois, não
estão cobertos pelo manto de proteção estatal
garantida pela nacionalidade. A apatridia sem
regulamentação marginaliza uma minoria da
proteção dos Estados. Os apátridas não
possuem nem o mínimo de direitos conferidos
aos estrangeiros em um determinado Estado.
Eles não podem requerer a emissão de
documentos, como consequências disso, não
podem gozar do sistema de saúde pública, de
educação, além disso, são impedidos de
adquirirem móveis ou imóveis e de exercerem
trabalho remunerado reconhecido.
Para suprir a falta de reconhecimento
jurídico internacional da condição de apátrida
foram criadas, em nível universal, a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de
1954 e a Convenção para Redução dos Casos
de Apatridia de 1961, ambas na esfera da
ONU. Foi a partir delas que passaram a existir
duas condições dadas aos indivíduos: ser
nacional de algum Estado, recebendo proteção
internacional deste; ou ser apátrida, recebendo
proteção internacional pela comunidade
internacional. A Convenção sobre o Estatuto
dos Refugiados de 1951 já trazia certa
proteção aos apátridas, pois é aplicável aos
refugiados que possuem o status de apátrida
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(os chamados apátridas de fato). No entanto,
nem todos os apátridas estão na situação de
refúgio e, por isso, o problema persistia. Daí
que, em 1954, a comunidade internacional
decidiu, celebrar um compromisso que é a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas,
que cuida exclusivamente desta questão.
A Convenção de 1954 trouxe à tona
uma das principais bases para a cooperação
internacional sobre os Direitos Humanos que
é a tolerância religiosa, cultural, racial e por
sua vez, a não discriminação. Nela são
elencados dispositivos acerca de direitos que
podem ser exercidos pelos apátridas dentro do
Estado onde estejam estabelecidos, tais como:
liberdade no exercício de religião, de recorrer
aos tribunais jurisdicionais, de exercerem
trabalho remunerado, de receber tratamento
favorável ou não menos favorável que os
estrangeiros no que diz respeito à aquisição de
bens móveis e imóveis, direito à educação
pública, à obtenção de documento de
identidade, dentre outros, como se nacionais
ou estrangeiros fossem.
Como complementação, foi celebrada
a Convenção para Redução dos Casos de
Apatridia de 1961, que criou mecanismos de
repressão e erradicação da apatridia e que
“estabelece regras para a concessão ou não
privação da nacionalidade [...]. As disposições
da Convenção de 1961 oferecem salvaguardas
cuidadosamente detalhadas contra a apatridia,
que devem ser implementadas por meio da
legislação sobre nacionalidade do Estado”
(ACNUR, 2010, p.3), devendo estas leis estar
em
conformidade
com
os
padrões
internacionais.
Apátridas: América Latina e Caribe
No âmbito regional da América Latina
e Caribe, poucos países fazem parte destas das
duas Convenções Internacionais sobre
apatridia. Os gráficos assim ilustram:
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Fonte: Gráficos elaborados pelos autores, a
partir de dados da obra Nacionalidade e
Apatridia. Manual para Parlamentares (2009).
A partir de uma análise dos gráficos,
pode-se estabelecer uma hipótese que explica
o motivo pelo qual a maioria dos Estados da
América Latina e Caribe não assinou ou
ratificou as convenções de 1954 e 1961 sobre
apatridia: a pequena quantidade de apátridas
estabelecidos nessa região. Segundo dados
fornecidos pelo ACNUR, obtidos através de
um senso realizado em dezembro de 2009,
aproximadamente 118 (cento e dezoito)
apátridas estão estabelecidos na região latinoamericana, sendo que 106 (cento e seis)
encontram-se no Brasil, 11 (onze) na
Colômbia e 1 (um) no Panamá.
Destes três países, o Brasil foi o único
que, ao menos, ratificou as duas convenções
sobre apatridia. A Colômbia apenas assinou a
Convenção de 1954, mantendo-se inerte
quanto à de 1961 e o Panamá manteve-se
inerte quanto às duas convenções.
Os dados obtidos pelo senso foram
fornecidos pelos próprios Estados, e como a
maioria declarou possuir um número baixo de
apátridas em seu território, como é o caso do
Brasil, da Colômbia e do Panamá, ou não
possuir qualquer apátrida, conclui-se, com
base em nossa hipótese, que estes Estados
consideram desnecessária a vinculação a essas
convenções. Outra hipótese é a legislação
interna destes países ser mais abrangente do
que as Convenções sobre apatridia. A Estônia,
por exemplo, é um dos países que mais possui
apátridas estabelecidos em seu território, mas
não é parte de nenhuma das convenções sobre
apatridia. Contudo, “quase todas as pessoas
registradas como apátridas têm residência
permanente e desfrutam de mais direitos que
os previstos na Convenção de 1954, relativa
ao
Estatuto
dos
Apátridas”.
Mas essa hipótese necessitaria de
confirmação mediante a análise individual de
cada legislação nacional, no âmbito da região.
O Brasil é um dos poucos países da
América Latina e Caribe que assinaram e
ratificaram as duas Convenções. Para
implementar essas convenções, ele adotou
diversas medidas internas a respeito da
repressão da apatridia. Uma delas foi a
Emenda Constitucional n. 54, reconhecida
pela Campanha Global de Apatridia de 2011
como sendo um “caso de sucesso”. Antes da
inserção da referida emenda na Constituição
Federal, a concessão da nacionalidade
brasileira aos filhos de brasileiros nascidos no
estrangeiro só poderia ser feita se eles
viessem residir no Brasil. A comunidade
brasileira expatriada, vítimas de tal restrição,
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formada por cerca de 3 milhões de pessoas,
criou o movimento dos Brasileirinhos
Apátridas que lutou pela referida emenda.
Com sucesso, em 2007, foi incorporada a
Emenda Constitucional n. 54 que possibilitou
o registro e a respectiva concessão da
nacionalidade brasileira aos filhos de
brasileiros nascidos em território estrangeiro,
por meio dos consulados brasileiros. A norma
foi aplicada retroativamente e resolveu o
problema de cerca de 200 mil casos de
apatridia. Em 11 de novembro de 2010, foi
aprovada a Declaração de Brasília sobre a
Proteção de Refugiados e Apátridas no
Continente Americano. Esse documento
renovou o compromisso dos Estados
signatários em proteger os apátridas, valendose da ampla rede de proteção aos refugiados já
existente.
Jurisprudência no Brasil
Além
da
implementação
dos
compromissos internacionais pelos órgãos
executivos e legislativos brasileiros, é
importante saber como a jurisprudência tem
decido a respeito do reconhecimento do status
de apátrida e dos direitos advindos deste ato
(reconhecimento).
No Brasil, vale comentar o caso
judicial de Andrimana Buyoya Habiziman.
Nascido em Burundi, África, fugiu,
clandestinamente, para o Brasil em um navio
cargueiro em 2006, devido ao genocídio
étnico, crise econômica e política e o
falecimento de seus familiares. No mesmo
ano, embarcou no voo com destino a Lisboa.
No entanto, por utilizar-se de documentação
falsa, foi devolvido ao Brasil, onde cumpriu
integralmente a devida pena. Após diligências
efetuadas pela Polícia Federal brasileira, a
Embaixada de Burundi não lhe assegurou a
cidadania. Já a Embaixada da África do Sul
também não aceitou a sua deportação.
Ele então solicitou refugio ao
Conselho Nacional para Refugiados –
CONARE, bem como visto de trabalho ao
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Em
nenhum dos dois pedidos obteve êxito, pois,
segundo as autoridades administrativas, ele
não
preenchia
os
requisitos
para
caracterização de refugiado. Em sequência,
decidiu ajuizar ação contra a União para que
fosse reconhecido seu status de apátrida, bem
como a antecipação dos efeitos da tutela para
que ele pudesse exercer atividade profissional
remunerada, segundo art. 17 e 18 da
Convenção de 1954, e para prorrogar a
validade do documento provisório de
identificação.
O Tribunal Regional Federal da 5ª
região, julgando recurso de apelação da
União, reafirmou sentença dada pela primeira
instância quanto ao reconhecimento do status
de apátrida de Andrimana. O voto do relator
Desembargador Federal Bruno Leonardo
Câmara Carrá foi pelo não provimento
(aceitação) do recurso e consequentemente o
reconhecimento do status de apátrida, com
base na definição de apátrida da Convenção
sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954. Este é
um caso bem-sucedido de reconhecimento de
apatridia pela Justiça Brasileira. A condição
jurídica do apátrida, internacionalmente
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reconhecida, faz parte do desenvolvimento
histórico dos Direitos Humanos que passou a
englobar não só a obrigação dos Estados de
proteger indivíduos reconhecidos como
nacionais de algum Estado, mas também de
proteger aqueles que estão descobertos do
manto da nacionalidade. Tal concepção
confirma a ideia de que os direitos humanos
reconhecidos universalmente são inerentes à
condição de ser humano, independentemente
de ficções jurídicas criadas apenas para
organizar
as
sociedades.
Essa realidade dramática dos apátridas
tem sido vocalizada pelo Alto Comissariado
da ONU para Refugiados (ACNUR), cujo
papel em sensibilizar e apoiar os Estados para
a adoção de medidas legais e executivas em
prol dos apátridas tem contribuído
sobremaneira para o avanço nessa temática.
Concluindo, sendo a nacionalidade um
direito que abre as portas para os demais
direitos essenciais à vida digna do ser
humano, e levando em conta as Convenções
que previnem e reprimem a privação da
nacionalidade, o comprometimento dos
Estados por meio delas é imprescindível para
a efetiva e integral aplicação dos Direitos
Humanos.
Gilberto M. A. Rodrigues é professor Doutor
do Programa de Doutorado em Direito da
Universidade Católica de Santos. Professor do
Curso de Relações Internacionais da Faculdade
Santa Marcelina. Pós-doutor pela Universidade
de Notre Dame (EUA).
Mariana Fernandes é graduanda em Direito e
bolsista CNPq de Iniciação Científica da
Faculdade de Direito da Universidade Católica
de Santos, com o tema do regime jurídico
internacional dos apátridas.
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A Era de Ouro: paradigma econômico ou ameaça política?
Marília Chiomento
A dolorosa crise financeira de 1929
seguida da Segunda Grande Guerra Mundial
foram pressupostos de uma revolução
econômica e social que perdurou durante,
aproximadamente, 30 anos - os chamados
anos gloriosos da Era de Ouro.
O desemprego crônico, a carência de
investimentos privados na produção e os
gastos expansivos com a guerra haviam
colocado o sistema econômico mundial em
uma situação bastante difícil de ser resolvida
nas décadas de 1930 e 1940. A crise havia
afetado todos os setores da economia norteamericana; assim como, teve seus efeitos
sentidos em boa parte da Europa. O mercado
consumidor e financeiro, os investimentos na
produção e a ação dos bancos foram
severamente limitados diante de tamanha
tragédia.
Enquanto se amargava uma das
maiores derrotas da história econômica nos
Estados Unidos; a então, União Soviética
parecia imune à situação que abalara o
mundo. Além do sucesso na produção, a
URSS conseguiu, praticamente, anular o
desemprego. O segredo de todo esse
desenvolvimento
estava
nos
Planos
Quinquenais combinados a uma economia
planificada. Foi sob tais preceitos que a URSS
saiu de uma posição desprivilegiada, no início
do século XX, e chegou como segunda maior
economia mundial no pós Segunda Guerra.
Esse foi o quadro na década de 1940.
Durante a década de 1950, passados os
anos de guerra, a reorganização econômica
era imprescindível - principalmente da Europa
- e ocorria a custa da redistribuição de renda
norte- americana, por meio do Plano
Marshall. Redistribuição essa que fora
estimulada, em grande parte, pelo medo de
que o sistema político da União Soviética
pudesse criar uma rede de influências que
corroborasse com a expansão comunista,
principalmente no continente europeu - o qual
se encontrava extremamente fragilizado. O
receio não era gratuito, visto que a União
Soviética vivia sua melhor fase: a economia
crescia em um ritmo acelerado baseada no
gasto estatal e na produção em massa; tudo de
acordo com os parâmetros prescritos pelos
Planos-Quinquenais.
Se na URSS colhiam-se os frutos de
sua economia, até então, bem sucedida; os
EUA se desenvolviam devido à soma de
dinheiro acumulado nos lucrativos anos de
guerra em que o país inundava o mundo com
sua-produção.
As disputas entre as duas economias
se acirraram. De um lado, o país socialista
mantinha seus agressivos planos de expansão.
De outro, os EUA, ainda que em ritmo menos
acelerado, continuava desfrutando das
vantagens competitivas conquistadas na
guerra, apesar dos países europeus já terem
retomado suas atividades produtivas a ponto
de não mais depender das exportações
americanas. Foi exatamente essa disputa pela
hegemonia mundial que impulsionou, de certa
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forma, o crescimento europeu e a estabilidade
nas economias capitalistas durante os anos
gloriosos, os quais ultrapassaram até as
expectativas
mais
promissoras
de
desenvolvimento/crescimento.
A política de redistribuição de renda
norte americana intensificava a atividade
econômica, tanto na América quanto na
Europa, aumentando os gastos dos governos
em investimentos públicos e privados em prol
do fortalecimento da produção e do equilíbrio
no emprego; enquanto o projeto do New Deal
– incorporando a teoria keynesiana combinado com o aumento das massas nas
cidades e da Social Democracia possibilitava
a ascensão econômica das mesmas,
garantindo
que
os
gastos
estatais
incrementassem a expansão da produção, o
emprego, o rendimento das pessoas atendendo
as demandas sociais e a estabilidade
financeira.
Não há como negar que, baseados em
políticas desenvolvimentistas e na base
teórica keynesiana, o surto de crescimento
econômico tenha se tornado um fenômenoquase mundial- independente dos regimes
políticos e econômicos adotados pelos países;
tanto que as duas lideranças hegemônicas do
mundo, contraditoriamente, adotavam e
estimulavam sistemas políticos independentes
e divergentes.
As raízes dessa expansão estiveram
intrinsecamente relacionadas às reformas no
capitalismo, que puderam liquidar com
disseminação das ideias comunistas. A nova
face do capitalismo se concretizou na
planificação da economia, com a intervenção
do Estado através de políticas públicas de
proteção social (Welfare State). Além disso,
essa
reforma
tornou
possível
uma
internacionalização,
principalmente
do
comércio.
Em um misto de crescimento
econômico e melhoria de vida de parte
considerável dos trabalhadores, os trinta anos
gloriosos se desenvolveram sob um forte
sentimento de euforia e confiança no sistema
de Bretton Woods, que teve papel
fundamental no sucesso do período. O
sistema,
que
contemplava
políticas
orquestradas prevendo estabilidade cambial,
expansão do comércio internacional e a
conversibilidade em dólar, contribuiu de
forma contundente para o equilíbrio
econômico.
Embora o sistema tenha, por alguns
anos, influenciado diretamente a estabilidade
econômica mundial, a partir da década de
1960 o processo de mundialização da
economia, baseada no dólar, criou uma forte
dependência internacional em relação à
moeda norte-americana, e no momento em
que esta veio a ruir levou consigo todo o
complexo sistema econômico internacional.
Com a moeda hegemônica em crise, o
crescimento dos anos anteriores começou a
sofrer variações negativas. A evolução das
contradições e dos desequilíbrios não
demorou muito a colaborar para que uma
nova depressão viesse a desestabilizar o plano
de estruturação capitalista.
O impacto dessa mudança no cenário
global foi a redução incisiva do ritmo no
crescimento industrial em países capitalistas
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já desenvolvidos. No terceiro mundo as
consequências foram mais drásticas quando a
explosão do endividamento gerou caos
monetário. As sociedades socialistas viram o
colapso de seu sistema político/ econômico.
A Era de Ouro começava a entrar em
colapso nos anos 70. Inicialmente, porque os
EUA vinham se desgastando muito; não
apenas com os gastos na disputa com URSS que culminou em enfraquecimento econômico
- mas também com a crise pós Guerra do
Vietnã, a qual foi um dos pressupostos para
que o mundo capitalista entrasse em recessão,
combinando declínio hegemônico, queda do
sistema monetário internacional, (baseado no
ouro), taxas de crescimento desaceleradas,
inflação e queda da produtividade da mão de
obra, a qual foi progressivamente trocada pelo
avanço tecnológico. A produção não exigia
mais uma massa tão volumosa de operários, o
trabalhador agora devia ser qualificado. Em
contrapartida, as novas tecnologias associadas
ao barateamento da produção garantiam o
acesso a mercados mais pobres. Ora, o acesso
ao mercado do consumo ficava mais fácil à
medida que o desemprego em massa
aumentava. Agrupa-se a isso o fato das
grandes indústrias migrarem sua produção
para novos polos industriais (países do
chamado terceiro mundo) e os novos
desempregados começarem a sobreviver à
custa de políticas de seguridade social, como
o sistema previdenciário - que era mantido
pelos trabalhadores em número reduzido - ou
através de uma economia informal.
O novo modelo produtivo previa o
maior lucro possível com o menor gasto,
gerava um ambiente econômico inflacionário
e era usada, principalmente, na compra de
mais fontes de energia, no caso o petróleo,
para o suprimento da demanda industrial; o
resultado foi a liquidez do sistema monetário
internacional. Com a crise do petróleo, o lucro
dos países da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo, que já era
satisfatório, ficou imenso. Os países da OPEP
eram os maiores produtores de petróleo da
época, o que possibilitou o aumento
orquestrado de preços. Logo, a transferência
de renda dos países consumidores de petróleo
para a OPEP era contabilizada e investida no
sistema financeiro pelos países árabes como
forma de gerar novos lucros. O sistema
financeiro internacional emprestava o
dinheiro - investido pelos países produtores
de petróleo - aos países subdesenvolvidos,
que utilizavam o mesmo para a
“modernização” de seus padrões de consumo.
Desse emaranhado de motivos para
aumentar os lucros se originam os eurodólares
e petrodólares, que foram a causa da expansão
da liquidez mundial inflacionária - originária
da crise do petróleo, que abalara as estruturas
do mundo capitalista e socialista, já que
ambos se aproveitavam do baixo preço do
petróleo para satisfazer suas necessidades
industriais e tecnológicas.
Embora a crise tenha sido gerada no
cerne da lógica capitalista de acumulação, a
URSS não escapou ao círculo vicioso
inflacionário, o qual fora agravado pelos
problemas econômicos oriundos dos gastos
militares. Além do mais, a estrutura
econômica soviética sofria pela desaceleração
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do crescimento da PIB do país. A derrocada
do sistema deveu-se ao modelo de
industrialização da década de 1930 e 1940,
em que se explorava o máximo dos recursos
naturais e sociais (trabalhadores), como modo
de aumentar a produção ao máximo para
enfrentar a concorrência ocidental. Esse
modelo
de
produção
logo
perdeu
competitividade quando o aparato industrial
tornou-se insuportavelmente custoso, devido
ao emprego de um número crescente de
trabalhadores/ instalações e outros recursos,
combinados a uma indústria pouco
tecnológica e pouco eficiente, que previa
quantidade em detrimento da qualidade. Os
sinais de debilidade no campo socialista eram
aparentes. A perspectiva socialista, em países
capitalistas, havia sido dissipada através da
Social Democracia, que não mais lutava pelo
fim do sistema político baseado no capital;
sua defesa, agora, passava pela “socialização”
dos frutos desse capitalismo através da
distribuição de renda, expansão do emprego
em todos os níveis da sociedade e políticas
econômicas capazes de reestabelecer o
equilíbrio no sistema. Por outro lado, as taxas
de crescimento começavam a desacelerar. O
impacto das crises do petróleo “dramatizaram
o fim do campo socialista como uma
economia
regional
praticamente
autossuficiente, protegida dos caprichos da
economia mundial” (HOBSBAWM,x2000,
p.408).
Com a crise já instalada, o sistema
econômico
mundial
estava
mais
interdependente do que nunca. Os Estados
estavam à mercê do mercado mundial –devido
à globalização - e as políticas internas de cada
país não conseguiam proteger, como antes,
suas estruturas produtivas e sociais - os
salários internos estavam expostos à
competição estrangeira. A organização
política nos países socialistas e capitalistas
desabou. Para o sistema socialista soviético, a
crise global significou uma ruptura no seu
crescimento e desenvolvimento acabando por
se tratar não mais de uma questão de
competição, mas de uma questão de
sobrevivência. Para as economias capitalistas,
sua sobrevivência não esteve em ameaça
embora seus sistemas políticos tenham se
desestabilizado.
A Era de Ouro significou maiores
investimentos, aumento do consumo da classe
média, automatização da produção e a
“democratização” do mercado, o que foi
conseguido através de medidas que
produziram a chamada “economia mista”, em
que houve a gestão combinada entre
modernização da economia e aumento da
demanda/ consumo, garantida através do
compromisso dos Estados em preservar ou
criar possibilidades para o pleno emprego e
seguridade social, assim como previa Keynes.
Entretanto, esse modelo de gestão política/
econômica criou possibilidades para que o
sistema financeiro se desenvolvesse a ponto
de submeter os Estados Nacionais e os
organismos
internacionais
às
suas
necessidades de crescimento.
Assim,
da
economia
mundial
devastada - na segunda metade da década de
1970 - sobrou a especulação financeira, agora
muito
mais
forte,
organizada,
11
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
internacionalizada e com poder de destruição
com vasta capacidade disseminação. “A Era
de Ouro acabou como os booms anteriores,
num colapso de imóveis e bancos”
(HOBSBAWM, 2000,p.257).
O impacto da substituição de um
capitalismo produtivo por um capitalismo
financeiro, durante os anos dourados, foi a
não recuperação econômica mundial, por
completo, até os dias atuais. Fato que
comprova a correlação entre a crise da década
70 e 80 e a crise americana de 2008; e porque
não falar na atual crise europeia, a semelhança
não é mera coincidência. A possibilidade de
expansão dada ao mercado financeiro,
naquele período, tornou-o muito mais
influente e com alto poder de destruição
econômico
e
social,
garantindo
o
desabamento da estrutura econômica mundial.
Para reverter essa situação cada vez mais
degradante da economia, os Estados
Nacionais e organizações supranacionais se
empenharam, e ainda se empenham, na
salvação de bancos e instituições financeiras,
dando menor relevância aos meios
produtivos.
O que mudou do período de grande
crescimento econômica pós Segunda Guerra
para a década de 70, para crise americana e
para a crise europeia foram as prioridades.
Nos anos iniciais da Era de Ouro deu-se
importância ao incremento da produção com o
intuito de expandir o emprego e,
consequentemente, melhorar a vida das
pessoas - segundo os preceitos keynesianos de
desenvolvimento - e exatamente por isso
viveu-se anos de maior estabilidade e
crescimento. A partir da década de 1970, o
sinônimo de saúde econômica passou a ser a
manutenção do sistema financeiro à custa da
falta de regulação do capital e de proteção dos
mercados internos.
Isso posto, a origem das crises
modernas, século 20 e 21, começa a ficar mais
clara: a primazia da acumulação desmedida,
além das necessidades humanas nas mãos de
poucos, os quais são influenciados e buscam
um capitalismo excludente, em detrimento da
produção, do emprego e do bem estar social e
coletivo.
Marília Chiomento é Bacharel em Relações
Internacionais pela FASM.
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Organizador:
Frederico
Mazzucchelli.
Campinas, São Paulo: UNICAMP/ Instituto
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capital: uma história do sistema monetário
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12
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GALBRAITH, John K. A economia política:
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Tradução: Antônio Zoratto Sanvicente e
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Tese (Doutorado em História Econômica) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
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Tradução: Fernando Castro Ferro. Rio de
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SAMPAIO JR, Plínio de Arruda. Capitalismo
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SAMPAIO JR, Plínio de Arruda (Org.).
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da crise econômica mundial. São Paulo,
Instituto José Luís e Rosa Sunderman, 2009,
p.117-40.
13
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
A natureza do desenvolvimento
Danilo Barbosa Mendonça
O fenômeno da globalização levou à
formação de um mundo cada vez mais
interdependente e uma das principais
consequências foi a crescente aproximação
econômica entre os países do centro e os da
periferia do sistema capitalista. Configurouse, a partir de então, uma realidade na qual a
política interna dos países mais pobres cresce
em importância para os países desenvolvidos
e passa a influenciar os acontecimentos ao
redor do globo.
Com a frustração das promessas de
uma nova ordem mundial mais justa e com a
persistência de indicadores que colocam em
xeque a suposta capacidade de harmonizar a
competição e a cooperação entre países
inseridos em um modelo de produção
capitalista, ganham cada vez mais espaço na
disciplina de relações internacionais, estudos
e teorias que buscam criar um arcabouço
teórico com o intuito de questionar o discurso
desenvolvimentista. Essa não é uma tarefa
simples, visto que não existe uma definição
única para o termo “desenvolvimento” e são
muitos os contextos em que ele pode ser
empregado.
O termo foi inicialmente utilizado para
descrever o processo por meio do qual um
país não industrializado poderia alcançar o
mesmo nível de industrialização das nações
do chamado primeiro mundo. Aos países
empobrecidos por seu passado colonial na
América Latina, somaram-se aqueles que
conquistaram sua independência dos regimes
imperialistas já no século XX, o que veio
consolidar o discurso sobre um mundo “em
desenvolvimento”. De acordo com Moraes
(2005),
“desenvolvimento
é
uma
reencarnação - ou uma ressignificação - de
temas e problemas que eram ainda mais
antigos na história da economia política.
Progresso
material
e,
mais
emblematicamente, claro, ‘riqueza das
nações’ já eram os objetos, por excelência, da
economia
política
clássica.
Mas
a
reencarnação toma nova forma, em contexto
tão rico, com a ascensão de um novo
hegemon e a invasão da cena internacional
por algumas dezenas de “jovens países”
constituídos pela descolonização do pósguerra”.
Embora a multiplicidade de estágios
que o termo desenvolvimento pode englobar
seja sempre instituída sob a perspectiva de um
determinado pensamento, essa amplitude de
escopo acabou contribuindo para que o termo
seja frequentemente associado a “crescimento
econômico” ou, de forma ainda mais
ambígua, “progresso”. Essa associação
equivocada - ainda que muitas vezes
conveniente a determinados interesses - é
proveniente da teoria do desenvolvimento
econômico, que identificava o capital,
isoladamente, como o mais importante fator
de crescimento. Essa linha de pensamento
orientou a quase totalidade das políticas de
ajuda oficial para o desenvolvimento na
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
comunidade internacional até meados dos
anos 80.
O crescimento econômico apresentase, então, como uma condição sine qua non
para se obter o status de país desenvolvido, de
acordo com um modelo definido segundo
parâmetros do sistema capitalista. No entanto,
Celso Furtado (2005) já alertava que esse
crescimento não oferece garantias de que seus
benefícios serão socializados e não assegura
as
condições
necessárias
para
o
estabelecimento de melhorias significativas
no padrão de vida das classes marginalizadas.
Na América Latina, por exemplo, o
desenvolvimentismo baseado tão somente no
crescimento econômico acabou reforçando a
concentração de renda nas mãos de uma
pequena classe abastada vinculada ao centro
do capitalismo internacional, o que levou ao
aumento do abismo que separa os mais ricos
dos mais pobres.
Rist (2002) afirma que todas as
iniciativas empreendidas em nome do
desenvolvimento não conduziram a outro
cenário que não o da “expropiación material y
cultural”. Ele propõe ainda que o grande
desafio para os estudiosos da área seria a
criação
de
uma
teoria
do
pósdesenvolvimento, visto que não faria sentido
continuar investindo nos estudos de um
paradigma que está em crise.
Maggie Black, em seu livro “Que és
desarrollo internacional” (Intermón Oxfam,
2003) defende que o desenvolvimento é um
tema contraditório e que acaba por reforçar a
própria pobreza que almejava erradicar. Ou
seja, muitas das ações propostas para
comunidades carentes sob o pretexto do
desenvolvimento
são
intencionalmente
desenhadas para “camuflar interesses” que
não fazem mais do que gerar lucro e
vantagem
competitiva
para
empresas
multinacionais com origem no próprio país
doador.
Outra consequência nefasta do
desenvolvimento apontado por Black (2003) e
que não é possível mensurar, através de
modelos econômicos,
a “destruição dos
meios de vida tradicionais baseados na
natureza”. A homogeneização do padrão de
vida capitalista ocidental, vendido sob a
forma de vantagem universal do mundo
moderno, é descrito pela autora como uma
forma de genocídio silencioso. Essa noção
universalizante de desenvolvimento teve
como consequência a formação de sociedades
“bloqueadas” (Milani, 2007), nas quais a
imposição de um modelo único, calcado nas
experiências e nos interesses dos países de
primeiro mundo, acabou por estabelecer
metas irreais para os países em vias de
desenvolvimento e aprofundar ainda mais a
dependência desses estados.
Todas estas características teriam
contribuído para a criação de um “apartheid
socioeconômico mundial: pequenas ilhas de
prosperidade dentro e entre Estados-Nação,
rodeadas pelo resto da humanidade
empobrecida” (Black, 2003). Até mesmo a
noção de pobreza seria uma construção social,
já que definir pobreza como carência de
recursos
econômicos,
automaticamente
deslegitima definições diferentes, adotadas
por outras sociedades que não a associam à
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
escassez ou afluência de bens materiais. A
própria consolidação da “hegemonia do
desenvolvimento” só foi possível após a
consolidação da ideia de subdesenvolvimento
e foi a partir da universalização do modo de
vida ocidental como o ápice do progresso
humano que este se impôs como uma meta
que deveria ser almejada por todas as nações.
Rist (2002) sintetiza todos esses aspectos
quando afirma que a oferta abundante de bens
materiais e a produção simultânea de exclusão
social e concentração de renda nada mais são
do que a verdadeira “natureza do
desenvolvimento”.
Após mais de meio século de vigência
de um discurso desenvolvimentista, calcado
em valores etnocêntricos e ocidentais, que se
impôs como universal a partir de regras
definidas pelos países ricos, os avanços
sociais se mostram quase insignificantes e as
promessas de um mundo melhor para todos,
que sempre nortearam a pauta das agendas
internacionais, estão longe de serem
cumpridas. A crescente perda de legitimidade
do discurso desenvolvimentista - que recebeu
a alcunha de “crise do desenvolvimento” no
meio acadêmico - é resultante da incapacidade
das políticas adotadas pelos países
financiadores
e
pelas
organizações
multilaterais, de eliminar ou mesmo atenuar
as assimetrias entre as nações do Norte e do
Sul global e, principalmente, da conclusão,
quase
unânime,
de
estudiosos
do
desenvolvimento que afirmam que a diferença
entre ricos e pobres não para de crescer em
todo o planeta.
A partir da constatação de que o
conceito, as etapas e as regras para ascender à
categoria de “desenvolvido” são determinadas
pelas nações centrais do sistema capitalista e
definidas a partir do nível do padrão histórico
atual desses países, relegando os países- alvo
dos esforços desenvolvimentistas à condição
de meros sujeitos passivos do processo, já que
não levam em conta suas realidades,
necessidades e anseios, fica evidente que o
ideal de solidariedade atrelado ao discurso do
desenvolvimento está longe de se concretizar
no plano material.
Danilo Barbosa Mendonça é Bacharel em
Administração pela Univ. Fed. da Bahia
(UFBA) e pesquisador na área de Relações
Internacionais.
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São Paulo. UNESP. 2006.309. ed. Revisada e
ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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RIST, Gilberto (2002), El desarrollo: historia de
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Catarata, Madrid, págs. 13 – 18, 273 – 284.
16
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Levi-Strauss: o velhinho gigante
Fernando Santomauro
A batida na cara
Depois de tomar coragem para a
ligação, me penteei, escovei os dentes, fechei
as janelas do quarto de estudante apertado, e
liguei. Atendeu uma mocinha super simpática,
que
parecia
ser
a
ajudante
dele
(provavelmente quem leu primeiro o e-mail,
que mandei para ele no site do College de
France). Depois de me identificar como
estudante de mestrado brasileiro que havia me
comunicado com ele por e-mail (coisa que
não estava acreditando até então), ela me
passou a ligação.
Ele, com a voz cansada, foi super
simpático. Perguntou um pouco sobre a minha
dissertação, os detalhes do tema, e disse que
eu poderia visitá-lo a hora que eu quisesse,
agora que ele tinha voltado de sua casa no
campo, para passar o verão em Paris.
Poderíamos nos encontrar na sua casa mesmo,
na próxima terça, depois do feriado de
segunda-feira, 8 de maio, (Fête de la Victoire
de 1945).
Até o momento tudo estava
acontecendo melhor do que o esperado e a
conversa fluía, apesar de toda minha
reverência. O problema foi quando ele disse
seu endereço pela primeira vez, e eu não
entendi. Ele então, com a voz cansada pelo
tempo, repetiu. As palavras me saíam
incompletas pelo seu sotaque de francês
original (até então conversava mais em
francês com os estrangeiros que viviam aqui
na Cité Universitaire de Paris, que tinham os
mais variados temperos de sotaque), e minha
compreensão também não era lá das
melhores, já que mesmo depois de alguns
meses, ainda percebia que as aulas no Brasil e
somente ler em francês, não asseguravam
minha fluência no idioma.
Além disso, minha insegurança, a
partir do momento de incompreensão entre eu
e o Mito, fez com que eu concordasse com
ele, sem mesmo entender direito o endereço
de sua casa. Nos despedimos e desliguei o
telefone. Depois disso dei um pulo pela
conversa, e passados 3 minutos, notei que sem
a certeza de seu endereço, não poderia
encontrá-lo depois do feriado.
Tinha entendido um nome, mas não
conhecia a palavra dita por ele. E a minha
primeira idéia foi ligar novamente para sua
casa, e confirmar logo com sua assistente, que
atenderia, e assim não precisaria passar pelo
desgaste de nova incompreensão daquele
gênio com as minhas fraquezas de mestrando
no exterior.
Tomei coragem, respirei fundo e
liguei. Ele atendeu prontamente com sua voz
mais cansada. Desliguei na sua cara,
covardemente.
O encontro
Pareceu sonho o que me aconteceu
naquela terça-feira, e até então estava mesmo
encarando o fato como se não fosse verdade.
17
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Poderia ser sonho mesmo, porque tudo estava
bem surreal para mim.
Estava semi-acordado depois de uma
noite de três horas de sono somente, (razão de
um pneu furado na estrada de Roterdam à
Paris), na madrugada anterior, e plantado na
frente de um simpático prédio na Rue des
Marroniers, 2, bem ao lado da Maison de la
Radio, de onde o Reali Junior dá a
temperatura parisiense para os ouvintes
brasileiros todas as manhas, desde que me
lembro como gente.
Cheguei 5 minutos antes do
combinado e fiquei esperando vendo o vidro
do fusquinha da frente, molhado pela garoa
que refrescava o tempo abafado dos últimos
dias. E uma música não me saía da cabeça. Na
verdade só a introdução estranha da música
"O estrangeiro”, do Caetano.
Bom, depois de olhar no relógio a
cada 20 segundos, achei que me anunciar com
3 minutos de antecedência era polido. 9h57
me dirigi ao portão do prédio, e uma espécie
de porteira/faxineira do prédio me perguntou
onde ia, expliquei o meu "rendez-vous" e ela
me deixou subir.
O velhinho em si
Bom, subi o elevador novo do prédio
nem tão novo assim, e nem precisei apertar a
campainha que ele mesmo veio me receber na
porta, com um simpático "Bonjour Monsieur
Santomauro"! Estava bem curvadinho, do alto
dos seus 95 anos. Apertamos a mão, ele me
convidou para entrar na sua casa, me levando
até o seu escritório, e eu o agradecia a cada
passo que nós dávamos. A ficha
decididamente tinha caído.
Sentei no sofá de couro de seu
escritório e ele fechou a porta e sentou-se a
meu lado. Disse-me que esperava ser útil à
minha pesquisa. Então eu lhe expliquei um
pouco o motivo pelo qual estava lá (já tinha
mais ou menos o feito por e-mail, que ele
tinha me respondido e imprimido, em cima da
sua escrivaninha, feita de um tronco de
madeira escura e curvada de tão gasta pelo
tempo e horas de estudo).
Seu escritório era o que imaginava.
Cheirando a guardado de tanto estudar. As
paredes todas repletas de prateleiras, com
enciclopédias e milhares de livros, e outras
coisas à la explorador europeu do século XIX
- algumas estátuas exóticas, e coisinhas que
iam de potinhos indígenas, pequenos cocares,
a uma pequenina estátua de Buda. Também
me chamou atenção uma espécie de cinzeiro
em forma de casca de coco marronzinho, em
cima da mesa de centro.
Depois disso lhe pedi para gravar
nossa conversa e ele disse não. Fiz-me de
desentendido e fui tirando o bloquinho com
minhas anotações e questões, e lhe mostrei o
gravador. Disse-lhe que queria registrar tudo
para me lembrar mais tarde. E ele me falou
que aquilo deveria ser só uma conversa, e não
uma entrevista. Não insisti, e coloquei o
gravador de volta na minha maletinha;
A conversa
Depois até entendi a sua resistência ao
gravador, pois era a primeira vez que me via,
18
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
mas eu o sentia como um velho conhecido.
Logo no comecinho lhe disse isso, pois já
tinha levado muitas manhas e madrugadas da
minha vida, nos meus anos de Ciências
Sociais, lendo e quebrando a cabeça com os
seus livros. Pra mim ele era um grande
conhecido. Só que nunca tinha imaginado vêlo na minha frente.
Também lhe expliquei que não estava
lá como estudante de Ciências Sociais, e não
pretendia discutir sua obra a fundo, ou suas
teorias, mas queria conversar com ele mais
como historiador, e queria saber mais sobre a
sua importância como ator histórico da época
que estou estudando.
Ele evitou entrar em muitos detalhes
sobre a sua convocação e a orientação de
Georges Dumas, psicólogo positivista francês
que teve central participação na elaboração de
uma política cultural francesa na América
Latina, desde 1909 até 1937- e que tinha sido
seu professor de filosofia. Além disso, Dumas
era o coordenador da política das missões
universitárias francesas, que entre outras
coisas, criou a Universidade de São Paulo, da
qual ele foi, se não o mais, um dos mais
destacados professores. Me disse que não teve
contato com Dumas durante todo o tempo que
esteve no Brasil (1935-39). Mas me deu
algumas dicas boas.
Falou que a criação da USP, é claro,
teve diretamente as mãos francesas, que
queriam manter a influência sobre a elite
intelectual e política brasileira, mas também
foi apoiada principalmente pela elite
paulistana da época, que tinha acabado de
perder a revolução constitucionalista e queria
retomar hegemonia nacional através da
criação de uma nova elite- intelectual- que
seria formada pela USP. Citou como ator e
patrocinador importante nesse jogo, Júlio de
Mesquita, dono do Estado de S.Paulo.
Também falou de como os professores
franceses do entre guerras, se sentiam acima
de tudo, funcionários a serviço do Governo
francês, e que depois desse momento histórico
importante de luta ideológica contra o
nazismo (que tinha algumas raízes nas
colônias alemãs no Sul e no governo Vargas),
desejavam voltar aos seus afazeres na França.
Também me deu a dica de procurar
um pouco sobre Jean Marx, que foi sucessor
de Dumas no comando do Service des
Oeuvres Françaises a l'Étranger (o que já
tinha listado como prioridade), e achou minha
hipótese interessante de ser estudada. Falou
que realmente existe uma política cultural
como instrumento de poder, e como exemplo
disso disse que a França daquela época não
buscava vantagens econômicas no Brasil, e
sim sempre buscou influenciar o Cone sul
culturalmente, desde o século XIX.
Ele exemplificou que apesar da
colônia francesa ser infinitamente menor que
a italiana e a japonesa no Brasil naquela
época, e que a influência econômica ficar na
mão da Inglaterra, Estados Unidos e
Alemanha, a França era que tinha maior
presença nas elites políticas e intelectual do
Brasil (falou que nos seus cinco anos no
Brasil nunca precisou aprender português,
porque todas as pessoas falavam francês), e
que isso era sim resultado de uma estratégia
elaborada pelo governo francês.
19
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Depois ele falou de seu tempo em
Nova York, durante e depois da 2a Guerra, e
não quis entrar muito em detalhes de como foi
seu papel de Adido Cultural da França nos
Estados Unidos (ao mesmo tempo em que
chefiava a New School of Social Research,
com bolsa americana). Admitiu mesmo que,
depois de 1945 os Estados Unidos tiveram
uma política cultural poderosa na América
Latina e na própria Europa, que substitui os
meios muito mais modestos da influência
francesa.
Enfim, me recomendou procurar
mesmo os documentos nos arquivos do
Ministério das Relações Exteriores daqui (a
permissão chegou, depois de complicado
processo), já que sua memória não poderia me
dar maiores detalhes sobre essas coisas e me
desejou boa sorte.
Ao final, pedi licença para ter um
momento de admirador, e lhe pedi para
assinar o "Tristes Tropiques" em francês, que
com certeza irei guardar para o resto da vida
no lugar mais especial da minha estante.
E ele, com as mãos trêmulas,
conseguiu com certo esforço destampar a
caneta tinteiro preta, se dirigiu à sua mesa
gasta e curva, e escreveu: "Pour Fernando
Santomauro, un souvenir de notre rencontre.
Cordialement, Claude Lévi-Strauss".
PS: As fotos não são minhas, mas de
uma entrevista que ele fez em 1998. Eu já o vi
um pouco mais velhinho do que essa foto, e
menos chique, já que ele estava em casa. Até
levei a máquina, mas não achei que tinha
clima pra tirar. Eu com ele, sozinhos no
escritório, não me senti à vontade. Mas essas
são muito boas também.
"PS2: As fotos usadas aqui, na
verdade, foram tiradas por Eric Brochu em
1998, autoria descoberta só agora quando
desta publicação por um grande amigo em
comum, Jean Tible. Presentes de encontros
que ainda hoje se fazem presentes.
Fernando Santomauro é Doutorando em
Relações Internacionais do Programa San
Tiago Dantas, professor da FASM e
Coordenador de Relações Internacionais da
Prefeitura-de-Guarulhos.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Em busca da terra de Bondiè: análise da imigração haitiana no Brasil em 2012
Bruno Constantino
Introdução
O terremoto que atingiu o Haiti em
2010 deixou muitos cidadãos haitianos em
condições precárias, sem moradias e sem
esperanças de melhoria. Adicionado a isso, a
ajuda internacional não foi eficiente e o povo
haitiano parecia ter sido esquecido
por Bondiè (Deus em crioulo haitiano).
Emigrar do Haiti para o Brasil - uma terra
considerada próspera - foi o único meio de
tentar
superar
a
penúria.
Então, os objetivos deste paper são abordar
aspectos deste processo imigratório que
aconteceu no início de 2012, analisar a
influência dele nas relações internacionais
brasileiras e, além disso, concluir se a vida
dos haitianos nessa nova terra melhorou e
assim superou as expectativas que eles
tinham.
Nem bem o primeiro e mais forte
tremor acabara, as pessoas já erguiam as mãos
aos céus e clamavam por Jezi (Jesus) e
Bondiè (Deus); outras, poucas, entraram em
transe a poucos metros de distância de nós. A
consciência da violência do sismo foi
imediata. Uma imensa nuvem de poeira nos
jogou numa névoa impenetrável, explosões se
sucediam e não longe de onde estávamos a
chama de um posto de gasolina se adivinhava
em meio ao pó. Pessoas feridas, queimadas,
descabeladas, enlouquecidas surgiam no
nevoeiro. (THOMAZ, 2010, p. 25).
Dia 12 de janeiro de 2010 às 16h53,
quinta-feira. O Haiti foi abalado por um sismo
com magnitude de 7 graus na escala Richter
que trouxe uma mudança no rumo da vida dos
seus habitantes, que perderam, em um
instante, familiares, amigos e vizinhos. Além
dos mortos, aqueles que estavam vivos
encontravam-se espalhados pelas ruas,
desabrigados, feridos ou até mesmo
amputados. As casas que não desabaram
tiveram de ser abandonadas, pois outros
temores de menores intensidades aconteciam
constantemente e as bases estavam totalmente
danificadas, o que traziam riscos de novos
desabamentos. Todos se viram obrigados a
dormir nos quintais e ruas, acampados com
tendas feitas de lona.
As circunstâncias fizeram com que a
dependência de ajuda internacional se
tornasse maior, uma vez que já havia
intervenção da Organização das Nações
Unidas (ONU) desde 1994 no Haiti. Ela era
tanto de caráter militar, quanto de ajuda
humanitária. Esta última “constituiu um terço
do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009”
(WARGNY, 2011, p. 19). Porém, opiniões
diferem sobre a eficiência do órgão
internacional após o terremoto, como a de
Omar Ribeiro Thomaz, que presenciara o
tremor e que teve a impressão de um descaso
por parte da ONU para com os haitianos
expressada no trecho:
21
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Os haitianos pareciam saber: parece
ser que todo o efetivo militar da Minustah se
concentrava no trabalho de salvar os membros
da ONU no Hotel Cristophe. Cerca de 6 mil
efetivos militares. Uma minoria estava
trabalhando no Montana. A ONU ajuda a
ONU, os haitianos ajudam os haitianos.
(2010, p. 26).
Além do descaso, também havia o
despreparo por parte da ONU - mesmo após
ter estado em solo haitiano há mais de 10 anos
- para que fossem entregues as doações: “A
informação obtida nos deixou perplexos: não
tinham nenhum esquema de distribuição de
alimentos ou remédios, e tampouco um
esquema de segurança para garantir o trabalho
dos cooperantes.” (THOMAZ, 2010, p. 30).
Doze meses depois do terremoto, as
doações aumentaram, mas a restauração do
aeroporto e o recapeamento das principais
artérias viárias são os únicos projetos em
andamento. À população, resta esperar auxílio
e sobreviver em meio a uma estrutura
precária.”(WARGNY,2011,p.18).
Ainda que a ajuda humanitária chegue
até os haitianos, grande parte dela é perdida
para a corrupção e também é investida em
projetos que beneficiam as elites. Os mais
pobres veem suas vidas iguais ou pouco
diferentes daquelas que tiveram logo após o
terremoto. Wargny, um enviado especial ao
Haiti, descreve as condições precárias dos
acampamentos - que mesmo após um ano do
terremoto se encontram iguais - no trecho:
“uma sucessão de barracas tão juntas umas
das outras que temos dificuldade de passar
uma mesa de plástico entre duas tendas.
Promiscuidade ao extremo, condições de vida
na temporada de chuvas (de junho a
novembro) oscilando entre o insuportável e o
terrível.” (2011, p. 18). Essas condições
insalubres proporcionam o reaparecimento de
doenças:
No tempo seco, as fezes formam o
essencial das partículas em suspensão. Assim
como a água suja, transportam o bacilo do
cólera, que acaba de voltar à ilha depois de
uma ausência de quase um século. Doença de
fácil prevenção – ter acesso à água limpa e
lavar as mãos com frequência reduz o risco –,
ela faz estragos aqui. Em meados de
dezembro, quase cem mil pessoas foram
contaminadas, 34 mil hospitalizadas. Mais de
200 mil mortes foram contabilizadas. Até esse
período, Tomas, o ciclone que atingiu a ilha
em 5 de novembro, ajudou na propagação da
bactéria. Por todos os lados, fossas sépticas
transbordam e misturam o conteúdo às
imundices trazidas pelas tempestades.
Receptáculo de águas furiosas e lixo que elas
levam, os campos de desabrigados se
transformaram em imensas fossas infestadas
de vibriões coléricos. (WARGNY, 2011, p.
18).
Frente às péssimas condições de vida e
à falta de oportunidades para a melhoria delas,
os haitianos se veem obrigados a usar a
emigração para superar a pobreza. Os
desabrigados economizaram os poucos
donativos que receberam durante esses dois
anos após o terremoto e, com eles, pagaram as
passagens aéreas e rodoviárias em direção aos
países que estão em crescimento e que
oferecem oportunidades de trabalho. Os
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Estados Unidos costumavam ser o local mais
procurado pelos imigrantes haitianos, mas
devido à crise financeira que tem atingido
aquele país, o foco imigratório direcionou-se
totalmente para o Brasil, que conseguiu
contornar quase que todos os efeitos dessa
instabilidade econômica mundial e que assim
passou a ser visto como uma área em pleno
desenvolvimento e de empregabilidade.
Processo imigratório
De acordo com uma pesquisa realizada
com cinco haitianos presentes em Andradas
(cidade no sul do estado de Minas Gerais),
eles saíram do Haiti no início do ano, voaram
até a Costa Rica, em seguida ao Panamá e
depois para o Peru. Desse último país, eles
foram em direção ao Brasil de carro,
atravessando a fronteira do Acre ilegalmente.
Segundo eles, todo esse trajeto foi realizado
sem dificuldades e o processo de liberação
dos vistos foi simples, tendo sido o governo
brasileiro atencioso com todos eles.
Quatro mil haitianos presentes no
Brasil foram legalizados e medidas para o
controle do fluxo imigratório foram tomadas:
A situação estava fugindo do controle
e precisava ser disciplinada, essa foi a
justificativa do governo brasileiro para editar
a Resolução Normativa nº 97, de 12/01/2012,
do Conselho Nacional de Imigração – CNIG,
dispondo sobre a concessão do visto
permanente, previsto no art. 16, da Lei nº
6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais
do
Haiti,
por
razões
humanitárias,
condicionado ao prazo de cinco anos, nos
termos do art. 18, da mesma Lei,
circunstância que constará da Cédula de
Identidade do Estrangeiro. A própria
Resolução do CNIG estabelece o que são
razões humanitárias, ou seja, aquelas
resultantes do agravamento das condições de
vida da população haitiana em decorrência do
terremoto ocorrido naquele país, em 12 de
janeiro de 2010. Ainda de acordo com a
Resolução, o visto tem caráter especial e será
concedido pelo Ministério das Relações
Exteriores, por intermédio da Embaixada do
Brasil em Porto Príncipe, com limite de até
mil e duzentos vistos por ano, correspondendo
a uma média de cem concessões por mês.
Antes do término do prazo de cinco anos, o
nacional do Haiti deverá comprovar sua
situação laboral para fins da convalidação da
permanência no Brasil e expedição de nova
Cédula de Identidade de Estrangeiro.
(LAURIA, Lélio. A questão dos imigrantes
haitianos.
Além do controle pelos vistos
liberados por mês na embaixada em Porto
Príncipe, outra medida foi tomada. O ministro
das relações exteriores, Antônio Patriota,
disse na sabatina realizada no Shopping Pátio
Higienópolis, em São Paulo, no dia 17 de
maio de 2012 que houve uma iniciativa
diplomática entre Brasil e Peru, e que o
último começou a requerer visto desses
estrangeiros.
A contenção dos haitianos além de
servir para que não haja disputa entre eles e
brasileiros por vagas no mercado de trabalho,
também tem a função de proteger esses
imigrantes do narcotráfico e dos coiotes que
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
eles contratam para conseguir atravessar a
fronteira brasileira sem vistos. Porém, por
vezes, essas medidas não são bem vistas. Elas
nada mais são do que, segundo Ventura e Illes
(2012, p. 34 apud OTAVIO, Chico &
GUILAYN, Priscila.
“um processo de imigração seletiva,
que priorize a drenagem de cérebros, mas
estabeleça limites para os estrangeiros que
chegam fugindo da pobreza de seus países.” E
mantendo a mesma posição em relação às
restrições, ela vai totalmente contra a ideia de
que com as medidas, os haitianos estão sendo
protegidos dos criminosos que os ajudam a
atravessar a fronteira, no trecho:
Medidas restritivas se fizeram
acompanhar por mitos. Por exemplo, o de que
dificultar a entrada de pessoas as protege dos
“coiotes” (os falsários que organizam a
passagem pelas fronteiras ou até promovem o
tráfico de pessoas), quando é sabido que,
quanto maior for a restrição, mais valorizado
é o atravessador. Não é difícil intuir que, sob
o prisma individual, o recurso a essa
totalmente incerta, cara e perigosa viagem de
milhares de quilômetros é sempre o último.
(VENTURA & ILLES, 2012, p. 35)
Assim como Deisy Ventura e Paulo
Illes, Omar Ribeiro Thomaz e Sebastião
Nascimento fizeram duras críticas para a
política de imigração adotada pelo governo
brasileiro:
Ora, a antropofagia pode ser agradável
para quem devora, mas não para quem deve
pagar o preço da assimilação. Assim, o
universo institucional revive uma tradição
nacional tão vetusta quanto infame: a do
favorecimento da imigração, sim, mas com
alta seletividade, ao longo de uma história em
que aos negros estrangeiros só se abririam as
portas enquanto chegassem pelos porões do
cativeiro.
(THOMAZ,
Omar
Ribeiro
&
NASCIMENTO, Sebastião. Fronteira Social e
fronteira
de
serviço.
Em:
<
http://www.estadao.com.br/noticias/suplemen
tos,fronteira-social-e-fronteira-deservico,828430,0.htm> Acesso em: 7 jun.
2012)
Contratações, novos rumos e esperanças
Os haitianos, agora legalizados,
espalharam-se por diversas regiões do Brasil,
e a região sudeste foi a mais procurada, por
ter uma oferta maior de emprego,
principalmente no setor primário, pois há
mais oportunidades para a mão-de-obra
barata.
Junto daqueles cinco imigrantes que
participaram da pesquisa feita em Andradas,
vieram mais dez. Esses quinze refugiados
viajaram durante cinco dias, do Acre até o
destino no sul de Minas Gerais, por meio de
um ônibus de seu novo patrão. Foram
contratados para trabalhar na cultura de rosas
e fazem serviços como plantio, capinação,
corte e embalagem.
J.G., O.S-F., R.S., I. M. e sua mulher
J.S. disseram que estão se adaptando sem
muitas dificuldades com o novo emprego que
conseguiram. Eles têm moradias dignas,
porém não ganham o tanto que esperavam,
assim como muitos haitianos que vieram para
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
o Brasil. Recebem um salário mínimo de R$
622,00, mas em cima deste, recai o desconto
de 8% (R$ 49,76) do INSS, então o salário é
de R$ 572,24. Caso façam horas- extras,
ganham R$ 3,50/hora. Além desses valores,
ganham uma cesta básica com componentes
como arroz, feijão, açúcar e papel higiênico
de valor de R$ 43,00.
O salário é gasto com carnes, temperos
e leite. Pouco dinheiro sobra para ser enviado
aos familiares no Haiti ou mesmo para tentar
trazê-los para o Brasil. J.G., O.S.-F. e R.S.
deixaram filhos e maridos no Haiti, I.M. e a
mulher J.S. deixaram seis filhos com a irmã
dela.
Sobre o terremoto, eles relataram
algumas lembranças. Todos eles estavam na
rua e correram assustados e sem direção, mas
com J.S. foi diferente. No início do tremor,
ela estava dentro de casa e sua reação foi
pegar seu filho de sete anos e correr em
direção à rua. Todavia, quando conseguiu sair
da construção prestes a desabar, um bloco de
tijolo caiu em sua cabeça, causando um
trauma em sua cabeça, o qual foi tratado mais
tarde por médicos americanos. Muitos
familiares
morreram
soterrados
nos
escombros, principalmente os mais idosos,
que não conseguiram se locomover a tempo
de se salvarem.
Para finalizar, alguns dados sobre
esses cinco haitianos serão apresentados em
gráficos. São eles: a idade, o número de
óbitos na família e a quantidade de pessoas
deixadas-no-Haiti.
Considerações Finais
Estes imigrantes são guerreiros que
não deixam de lutar contra os empecilhos da
vida, mesmo marcados pelas feridas feitas por
um terremoto que os separou de entes
queridos pela morte ou por decisões de deixálos para buscar melhorias. Por mais que as
expectativas em relação à vida no Brasil não
tiverem sido superadas, por mais que novos
empecilhos possam aparecer, viver aqui é
tudo que eles querem. Ainda que em
momentos se sintam dependentes da ajuda de
outros, eles têm um emprego, ganham
dinheiro com o próprio suor e veem nisso
modos para superar a pobreza.
O governo brasileiro, por mais
temeroso que estivesse com o grande fluxo
imigratório, acolheu os imigrantes na medida
do possível, procurando ajudá-los a criar uma
nova vida no Brasil. Além disso, a atenção e
preocupação que o povo brasileiro tem com
eles fazem com que se sintam parte deste
novo lugar, lar de esperança, lar de Bondiè.
Bruno Constantino é
Relações
Internacionais
graduando em
pela
FASM.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Gráficos
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Guerra Civil no Camboja: implicações históricas e mutabilidade
Carlos Henrique Mosquete; Victor Sakamoto
Introdução
Este paper tem por objetivo trazer
uma reflexão específica a cerca de um tema
que intriga a humanidade contemporânea. Em
pleno século XXI, ainda convivemos com os
resultados de acontecimentos que marcaram a
história de diversos países ou povos por meio
de uma esfera indesejável. Acontecimentos
que marcam a vida de inúmeras pessoas
através de massacres e brutalidades e que
servem de aprendizagem e reflexão para as
futuras gerações: Que mundo é esse em que
inúmeros atentados contra a humanidade são
feitos durante o que deveria ser o século do
desenvolvimento tecnológico e industrial, e
isso por seus próprios habitantes? O que
motiva os diversos massacres e mortes em
massa com o intuito de dizimar uma
específica população e qual direito é dado
para essa ação brutal e inimaginável? A que
ponto chega à natureza humana para cometer
esses atos?
O tema tem por conceito a Guerra
Civil ou, mais especificamente, a Guerra Civil
no Camboja. Uma guerra baseada na opressão
de um Governo totalitário criminoso contra
sua própria população, que resultou em
inúmeras mortes e atentados contra os
Direitos Humanos.
Será discutida a contextualização da
Guerra, de modo a descobrir que fatores e
ações anteriores fizeram com que a situação
culminasse nesse conflito brutal, além de uma
narração dos acontecimentos que ocorreram
durante o conflito, como ocorreu seu término
e uma conclusão do pós-guerra.
Para o desenvolvimento do paper
partimos da seguinte problemática: De que
modo os conflitos ocorridos durante as
chamadas
Guerras
da
Indochina
desembocaram no período turbulento e
traumático pelo qual o Camboja passou entre
os anos de 1975 a 1979, caracterizados pela
vontade de formação de uma economia
agrária imposta e ditatória do então governo
formado pelo grupo revolucionário Khmer
Vermelho?
Nossa hipótese para a problemática:
Os conflitos tiveram início no Vietnã em
relação ao seu processo de independência
com a França, e boa parte de suas direções
foram tomadas haja vista toda a problemática
e crescente discussão relacionada à Guerra
Fria e sua completa mudança de visão de
construção de governo entre os países
envolvidos.
Neste paper, serão discutidas as causas
externas e internas que levaram a conflitos
generalizados em toda a área conhecida como
Indochina, suas implicações na chamada
Guerra Civil do Camboja, e de que forma
questões mais complexas relacionadas, tanto
as idealizações de Estado por parte de autores
históricos, quanto aos efeitos causados por
parte das ideias difundidas na chamada
Guerra Fria, criaram uma situação traumática
e indelével em um país que atualmente tenta
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
recuperar-se
das
imposições
idealistas/utópicas do partido ditatório
conhecido como Khmer Vermelho.
Justificativa
O fascínio pelo campo das guerras e
genocídios entre os estudantes de história e
cursos relacionados à área fez e faz com que
diversos
trabalhos
acadêmicos
sejam
publicados sobre o assunto. Os grandes
genocídios como o Armênio, Holocausto
Nazista, mortes em massa por Stalin na
Rússia, na China com Mao Tsé Tung,
Ruanda, Camboja, dentre outros, inspiraram a
publicação de diversos outros como também
deste trabalho, por meio do qual se espera
apresentar um contexto histórico movido por
discussões polêmicas que transformaram o
mundo a partir da metade do século XX. A
importância do entendimento de tais assuntos,
mesmo que não a fundo, objetiva o simples
entendimento sobre o que mais envolveu a
Guerra Fria além da disputa “não armada”
entre Estados Unidos e Rússia, ou mais
precisamente, Capitalismo x Socialismo.
Fundamentação teórica
Por mais que os conflitos que se
desenrolaram no Camboja entre os anos de
1975 e 1979 - e também em anos anteriores –
tenham sido denominados Guerra Civil, é
bem difícil definir exatamente o que foi esse
período. Como tentativa de explicar o que
foram os conflitos, podemos tentar distinguir
entre os três tipos de guerra civil descritas por
Waldmann & Reinares (1999, pp. 14-15);
(1) Guerra Civil por revolução –
guerras dirigidas contra o próprio regime, ou
seja, que tem como finalidade a derrubada do
governo estabelecido e/ou profunda mudança
socioeconômica;
(2) Guerra Civil por sucessão –
guerras de sucessão com a finalidade de
autonomia ou separação;
(3) Guerra Civil internacionalizada –
guerras civis tanto por revolução como por
sucessão, que têm a participação ou
intervenção de, pelo menos, um país
soberano.
As variações entre as definições acima
podem ser colocadas dentro da sequência
mutável de fatos ocorridos entre os períodos
de 1960 a 1970 e 1975 a 1979.
Saloth Sar, conhecido como Pol Pot e
líder do partido comunista Khmer Vermelho,
que tentou construir uma sociedade agrária
comunista no Camboja, foi responsável pela
morte de estimadas 2.000.000 (dois milhões)
de pessoas, segundo concordância de diversos
autores e estudiosos do assunto.
Após ser reprovado por três anos
consecutivos em seus estudos de Rádio
Eletrônica, perdendo a bolsa de estudos que
possuía em Paris e tomado por ideais políticos
e por correntes filosóficas como o marxismo e
suas ideias sobre socialismo e revolução, ele
retorna ao Camboja em 1953, período
idêntico ao da lei de supressão criada pelo rei
Norodom Sihanouk com vista a suprimir os
partidos comunistas formados, que estavam se
radicalizando frente à opressão contra o
movimento de independência realizado pela
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
França contra o Camboja, na época uma de
suas colônias.
Sendo levado por seu irmão mais
velho, Saloth Chhay, Pol Pot juntou-se ao
movimento comunista, que com os comitês de
independência criados, levaram o Camboja a
independência em 1953, e ao reconhecimento
de tal feito em 1954 pela França. Tornou-se
líder do partido comunista em 1962,
precisando se refugiar na floresta devido à
perseguição por parte do ainda governante
Norodom Sihanouk.
Já influenciado por suas ideias sobre o
comunismo e socialismo marxistas, e tendo se
refugiado em uma tribo nas montanhas no
nordeste cambojano, que lhe possibilitaram
conhecer uma forma simples e não material
de vida, formou o partido guerrilheiro Khmer
Vermelho, com o intuito de derrubar o
governo de Sihanouk, e passou a tomar
pequenos vilarejos e substituir os líderes
locais por líderes do partido de resistência,
conquistando pouco a pouco o território e
reunindo forças para ataques a cidades e
províncias de importância vital para o
governo.
No ano de 1970, após um golpe de
Estado inesperado do antes primeiro ministro
Lon Nol, apoiado pelos Estados Unidos,
objetivando impedir que se formasse um
regime comunista no Camboja e em toda a
área conhecida como Indochina, o rei
Sihanouk fugiu e se reuniu com o antigo
partido inimigo Khmer Vermelho, que
continuou com a tomada de cidades em que o
poder do novo governo tinha autoridade
limitada, sendo agora apoiado pela China e
União
Soviética,
devido
aos
ideaisxsocialistasXprocuradosxemxcomumxp
rincípioxexquexpossibilitaramxum
“crescimento explosivo, no qual suas práticas
assassinas puderam, rapidamente, atingir
proporções épicas” (VEZNEYAN, 2009, pp.
231).
A formação da Frente Nacional Unida
da Kampuchea (Funk), provinda da junção do
Khmer Vermelho com o rei Sihanouk, foi
essencial para a conquista de mais territórios e
aquisição de simpatizantes à causa e, entre
1969 e 1973, após se aliarem a grupos nortevietnamitas interiorizados por tentativas de
expulsão dos Estados Unidos, foram
bombardeados no que pode ter sido
considerado a maior quantidade de explosivos
e bombardeio na história em um só país.
Considera-se que tenham morrido cerca de
600 mil cambojanos, entre esses 150 mil
agricultores em cerca de 600 mil toneladas de
bombas despejadas.
O bombardeio atingiu milhares de
agricultores do interior do Camboja, fazendo
com que os que sobreviveram tivessem de
mudar, aos milhares, para a capital do
Camboja e principal cidade, Phnomz Penh.
Em 1975, após a retirada das tropas
americanas do Vietnã e perda do apoio
americano no Camboja, seguido da fuga do
general Lon Nol devido à incompetência do
governo instaurado, marcado pela corrupção,
o Estado cambojano viu-se livre do governo.
Entretanto, enquanto havia comemorações em
Phnom Penh, o grupo Khmer Vermelho viu
sua oportunidade e, no dia dezessete de abril,
marchou sobre a cidade matando todos os
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
funcionários do antigo regime e estrangeiros
restantes no país.
Sobre a desculpa de perigo iminente e
regresso em alguns dias, esvaziou a cidade,
levando todos consigo sem que esses
pudessem carregar nada, direcionando-os para
os campos de trabalho criados, com vista a
conseguir cumprir com seus planos de uma
utopia agrária comunista, inspirada em líderes
e movimentos como a revolução cultural de
Mao Tsé Tung na China, e que iriam destruir
no Camboja toda e qualquer influência ou
característica do capitalismo.
A partir da tomada da cidade de
Phnom Penh, Pol Pot declarou o que chamou
de “Ano Zero” para o Camboja, em que
iniciou um programa rigoroso com o intuito
de “purificar” a sociedade cambojana e
transformá-la em uma sociedade comunista
autossuficiente, livrando-a de influências
ocidentais como cultura, religiões e
capitalismo, instaurando medidas de controle
como expulsão de estrangeiros, fechamento
de embaixadas, desligamento da moeda
corrente no antigo regime, além de matar
todos que se opusessem ao Khmer Vermelho,
incluindo seus líderes.
Segundo Kiernan (1996), apesar de
sua economia subdesenvolvida, o regime de
Pol Pot foi, provavelmente, o que mais
controlou seus cidadãos considerando todos
os países em toda a história, adotando postura
totalmente fechada para o mundo exterior.
Os Cambojanos chamaram esse
período de “O regime de três anos, oito meses
e 20 dias”, referindo-se a todos os segundos
de terror vivenciados no período que
exterminou cerca de 30% da população do
Camboja por fome, torturas e execuções. Fase
na qual se estima que quase todas as famílias
tenham perdido ao menos um membro.
Segundo Vezneyan (2009): milhões de
cambojanos acostumados à vida citadina
foram forçados a trabalhar nos “campos da
morte” de Pol Pot, onde rapidamente
começaram a sucumbir face ao excesso de
trabalho, doenças, e desnutrição. Os
indivíduos tinham direito a uma xícara de
arroz (180 gramas) por pessoa a cada dois
dias.
Além disso, eles eram submetidos a
cargas e condições de trabalho inumanas e
morriam ao cometer qualquer infração, por
mais leve que fosse.
Um dos métodos de repressão foi a
transformação de um colégio popular
cambojano em cadeia. Este era conhecido
como S-21 ou Tuol Sleng, usado contra
milhares de pessoas com o intuito de torturálas até que confessassem os crimes,
participação em esquemas no antigo governo
ou traição contra o Khmer Vermelho. Muitas
vezes, após a tortura que sofriam, eram
assassinados e, antes da morte, eram
fotografados como parte de um ensinamento
para
aqueles
que
desobedecessem.
Atualmente, o colégio funciona como museu
para lembrar a perda de pessoas inocentes e
mostrar a todos o que foi o massacre.
Em 25 de dezembro de 1978, o
Camboja foi invadido pelo Vietnã com o
intuito de interromper os ataques e incursões
do
Khmer
Vermelho
às
fronteiras
cambojanas. Formou-se nesse momento um
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
governo provisório formado principalmente
por desertores do grupo. Pol Pot teve então de
fugir de seu país e iniciou, com o que sobrou
dos Khmer Vermelho, várias guerrilhas
durante os anos 1980 e 1990 com os governos
sucessores, sem, entretanto, mostrar-se
presente como organizador dessas.
Em 1997, após anos escondido, Pol
Pot foi preso pelo líder de sua guerrilha, que
fora formado após a deposição do Khmer
Vermelho do governo. Pol Pot e seus
comparsas fugiram e armaram um esconderijo
na selva para montar uma resistência armada
contra os futuros governantes. Essa prisão,
entretanto, em nada mais culminou além de
um “julgamento” fictício, ou melhor, uma
encenação teatral judicial, uma completa
farsa. “As farsas judiciárias de Josef Stalin e
Mao Tsé Tung inspiraram a encenação dos
Khmers que revelavam dessa forma o que, na
ocasião, pretendiam negar: sua fidelidade a si
mesmos e ao seu passado”. (MAGNOLI,
2006, p. 31).
O que realmente se esperava da
Comunidade Internacional era a imposição de
ato de justiça por meio do Tribunal
Internacional, condenando os devidos
responsáveis, assim como fora feito com os
crimes de Genocídio da Bósnia (1995) e
Ruanda (1994). No entanto, isso não ocorreu.
Magnoli (2006, PP. 32) descreveu:
“Afinal, um julgamento genuíno traria à tona
as responsabilidades indiretas de todos os que,
em um momento ou outro, deram a mão aos
Khmers – uma heterogênea confraria que
abrange governantes chineses, tailandeses e
americanos”.
Assim sendo, caso houvesse a
condenação dos responsáveis, diversos
movimentos totalitários criminosos seriam
“desmascarados” e isso foi um impulso para a
absolvição por meio do esquecimento.
Magnoli (2006) descreve que, no dia
15 de abril de 1998, segundo fontes do
Khmer, Pol Pot morreu de ataque cardíaco e
seu corpo foi queimado numa cerimônia
testemunhada por um grupo de guerrilheiros
caçados.
Considerações finais
O estudo das guerras e genocídios
influenciou e ainda influencia a construção de
estudos sobre o assunto e pesquisa acadêmica.
Esse assunto, no entanto, é caracterizado por ser
um tópico de pesquisa e referência em diversos
campos, tais como Psicologia, Relações
Internacionais, Ciências políticas, entre outros.
Isso se deve aos diversos modos de
interpretação, tais como a forma como a mente
humana age frente ao poder, as motivações
externas por parte do estudo de autores
históricos, o aparecimento de novas concepções
relacionadas à política, além de outros entre os
diversos motivos pelos quais já se tentou
explicar ações cruéis como a dizimação de uma
população ou etnocídio, por exemplo.
Conclui-se
que
as
motivações relacionadas aos abusos por parte
do grupo Khmer Vermelho tiveram motivações
diversas, sendo difícil achar uma explicação
completa e que abranja tudo, e foram
relacionadas principalmente as conturbações
recentes causadas por disputas entre países
Socialistas e Capitalistas, assim como por meio
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
dos exemplos seguidos de formas de governo
vistas em países como China e Rússia.
Carlos Henrique Mosquete é graduando em
Relações Internacionais pela FASM.
Victor Sakamoto é graduando em Relações
Internacionais da FASM.
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Filmes e documentários
Os Gritos do Silêncio - The Killing Fields
(1984, 2 hours, 21 minutes).Dirigido por
Roland Joffé. Esta foi sua estreia no Cinema,
tendo trabalhado sempre como documentarista.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Responsabilidade de Proteger e Guerra Civil na Síria
João Paulo Gusmão P. Duarte
Do século XX ao século XXI:
preocupação em prevenir conflitos
a
A
sucessão
de
processos
revolucionários e guerras civis iniciados em
2011 no chamado “mundo árabe” expôs uma
das características mais evidentes das relações
internacionais contemporâneas no que diz
respeito à ocorrência da guerra. Se durante
boa parte do século XX as preocupações neste
campo giravam em torno da tensão causada
pelo embate entre as forças militares dos
grandes Estados, no século XXI, o que se nota
é a consolidação de novas formas de
manifestação da violência. Comumente
reconhecido como marco que define esta
mudança, o fim da Guerra Fria colocou em
evidência outros importantes problemas de
ordem global que passaram a incidir sobre as
relações internacionais e sobre as populações
mundiais. Em princípios da década de 1990,
nota-se a ascensão pujante de terrorismos, de
tráficos transnacionais, de incontroláveis
movimentos guerrilheiros, de conflitos étnicos
e genocídios, e de uma miríade de guerras
civis que passavam a repercutir muito além
dos limites fronteiriços dos ditos “Estados
falidos” ou sob regime ditatoriais.
A partir dos anos 2000, essa tendência
se confirmou, desafiando as leis de guerra
regulamentadas a partir das velhas
formulações que identificavam o conflito nas
relações internacionais como um fenômeno
atrelado unicamente aos Estados. A
concentração de esforços para a criação de
princípios de direito internacional ao longo do
século XX, que tinham como grande objetivo
a promoção e manutenção de relações
pacíficas frente à ameaça das grandes guerras,
viu-se defasada com a alteração das formas de
violências que se modularam nesses últimos
anos,
apresentando-se
sob
novas
desenvolturas que escapam aos conceitos de
regulamentação
da
guerra
de
tipo
clausewitziana (Rodrigues, 2010).
O século XXI se inicia, portanto, com
um
objetivo
claro
nos
circuitos
internacionalistas: direcionar a atenção da
segurança para as pequenas e localizadas
agitações políticas e sociais em países
subdesenvolvidos, em regiões de grande
pobreza e miséria, em zonas periféricas com
déficit de governança, em Estados sob
regimes ditatoriais. Antes considerada
desinteressante do ponto de vista estratégicogeopolítico, essa atenção dada aos problemas
“marginais” de outrora, confirmou o
redimensionamento
dos
sistemas
de
segurança e, ao mesmo tempo, da articulação,
manipulação e conceituação dos mesmos.
Se ao longo do século XX – mais
precisamente, até o fim da Guerra Fria –,
ouvia-se pelos gabinetes governamentais e
diplomáticos, e se reproduzia nos discursos
acadêmicos a preocupação com os problemas
de defesa nacional, que buscavam responder
ao temor das grandes guerras, depois da
queda do muro de Berlin, nota-se uma
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
alteração semântica que não foi aleatória.
Desde então, houve uma preponderância dos
discursos pela segurança internacional, que,
de algum modo, já se vê um pouco
desgastado, dando espaço para os atuais
esforços de conceituação daquilo que vem
sendo chamado de governança global. Isso se
deve ao fato dessa última denominação
condizer mais com os problemas que são
próprios do século XXI, ou seja, problemas de
segurança que estão além do entre nações,
ocupando um patamar ampliado: a esfera do
global.
Uma nova segurança para novas violências
A constatação de que há na
contemporaneidade uma fragmentação ou
pulverização dos conflitos em focos de
violência recorrentes e espalhados pelo
planeta, que assumem diversas formas e se
manifestam de maneira irregular, motivou a
ativação de novos instrumentos jurídicos e
militares para a contenção ou controle dos
mesmos.
Segundo indica Gros (2009), o
despontar desse novo cenário caracterizou
algumas mudanças profundas nas maneiras
com as quais se manifestam as violências. De
acordo com o autor, os atuais conflitos são
mais privatizados, desterritorializados e
desregulamentados. Significa dizer que, em
sua
primeira
dimensão,
eles
são
caracterizados pela participação cada vez
maior de grupos “não oficiais”, ou seja, que
não estão vinculados a algum Estado ou
unidade organizacional pública e formal,
como as redes terroristas, os bandos ou
quadrilhas de tráfico e negócios ilegais, os
grupos
armados
paramilitares
ou
guerrilheiros. Do mesmo modo, as novas
violências não obedecem a padrões espaciais
ou temporais; são infraestatais e, ao mesmo
tempo, transterritoriais, são possíveis de
ocorrência nos lugares mais inócuos e
distantes do planeta, bem como nas grandes
metrópoles, iniciando a qualquer momento,
sem determinar uma clara e objetiva
conclusão. São ainda desprovidos de
regulamentações, ou seja, não se prendem
necessariamente a compromissos legais,
envolvendo tanto elementos reconhecidos
pelo direito internacional, quanto elementos
não reconhecidos.
Tais mudanças, que vinculam cada vez
mais a esfera civil, despertaram um súbito
apelo
por
renovadas
maneiras
de
circunscrever
estas
manifestações
de
inseguranças globais.
O controle sobre os novos focos de
violências que se alojam no interior dos
chamados Estados falidos ou que são
perpetrados pelo próprio soberano contra sua
população, exigiu, então, a programação de
mecanismos de força militar e diplomáticojurídica que conferisse legitimidade aos
rompimentos dos princípios de soberania dos
Estados que permitissem a ascensão e
ocorrências dos mesmos. Foi assim que surgiu
o engajamento em torno das intervenções
militares com fins humanitários, um novo
modo de se fazer guerra contra as
possibilidades
sempre
despertas
de
insegurança na vastidão planeta.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Esta mudança ocorreu formalmente no
âmbito das Nações Unidas, em 17 de julho de
1992, com a aprovação no plenário da
Assembleia Geral da “Agenda para a paz:
diplomacia preventiva, estabelecimento da
paz e manutenção da paz”. Este relatório
proposto pelos países que compõem o
Conselho de Segurança de maneira
permanente visou à reformulação de alguns
mecanismos diplomáticos, jurídicos e
militares que permitissem a execução de
medidas para contenção das pequenas
violências descentralizadas que repercutem
negativamente na busca por estabilidade
internacional.
O documento ressalta, no entanto, que
o motivo principal deste redimensionamento
dos instrumentos para garantir e promover a
segurança da coletividade seria a “exigência
de solução para problemas de ordem
humanitária que residem dentro de nações em
que os aparelhos estatais são fracos”. Ainda
de acordo com o texto, o compromisso das
Nações Unidas a partir destas novas diretrizes
que se tornaram conhecidas pelas expressões
“peacebuilding” e “peacekeeping”, seria de
“sensibilidade para com o direito das
minorias”1, ou seja, uma atenção da
instituição voltada aos países pobres e às
populações miseráveis, consideradas mais
suscetíveis à ocorrência das novas violências.
1
Trechos extraídos do parágrafo 18, da Parte I do
documento. Disponível em: <http://www.un.org/Docs
/SG/agpeace.html>. Acesso em: 28/06/2012.
Esse engajamento em benefício dos
direitos humanos ganhou força pouco depois
com outro dispositivo também proveniente de
órgãos das Nações Unidas. Como indica
Rodrigues (2012), o Human Development
Report, produzido pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em
1994, alinhavou esses novos temas de
segurança em torno da necessidade de
promoção de uma securitização ampliada,
envolta ao conceito de segurança humana. De
maneira resumida, uma atenção voltada às
populações mundiais e suas condições de vida
em detrimento das soberanias estatais.
Com o desenvolvimento dessas duas
iniciativas nos circuitos diplomáticos, e, ao
mesmo tempo, com a ocorrência de guerras
civis na década de 1990 em que as inovações
dessas prerrogativas se chocaram com o velho
princípio de inviolabilidade da soberania
estatal, causando impasses na resolução dos
conflitos, formou-se, em 2001, a International
Commission on Intervention and State
Sovereignty (ICISS), responsável pela
publicação do relatório The Responsibility to
Protect. A comissão, que obteve a chancela
da ONU, teve como principal objetivo
equacionar
os
problemas
de
incompatibilidade entre os conceitos de
direitos humanos e de soberania estatal.
Segundo Rodrigues (2012), o relatório
proveniente dos trabalhos da comissão
inscreveu o princípio da Responsabilidade de
Proteger (RdeP) na agenda internacional, que
buscou projetar a condição do exercício do
poder soberano ao cumprimento rigoroso de
cada Estado aos direitos humanos. Desse
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
modo, não houve uma proclamação do fim da
soberania, mas uma intimidação ao seu
exercício, que deve ser pautado por princípios
legítimos de condução do poder, balizados
pelos valores universais humanitários. Os
Estados, a partir de então, só possuiriam o
legítimo direito de exercício de sua soberania
quando protegessem os direitos e a vida dos
seus cidadãos. Por outro lado, a chamada
comunidade internacional teria a obrigação de
intervir em Estados em que haveria algum
tipo de violação da liberdade e dignidade de
sua população.
Essa perspectiva vai de encontro ao
que Fukuyama (2005) argumenta em suas
análises que buscam justificar algumas das
ações contraterroristas estadunidenses. De
acordo com o autor – caracterizando a
necessidade dessas ações –, a soberania do
Estado-nação deve ser condicionada àquilo
que acontece dentro dele, ou seja,
condicionada à qualidade da governança
interna. No caso de má governança do Estado
e da possibilidade dos problemas internos
afetarem a esfera internacional, o princípio de
soberania se corrói, abrindo espaço para as
intervenções de construção de Estados,
expansão da democracia e proteção
humanitária.
O arcabouço de dispositivos que
seguem essas orientações, resumidos e
aglutinados atualmente no conceito de
Responsabilidade de Proteger, foi aprovado –
sem aceitação unânime – na Assembleia Geral
da ONU, em 2005. Estipulou, portanto, uma
nova forma de se fazer a guerra por meio de
intervenções que buscam – ao menos em
discurso – defender os direitos humanos, mas
que, efetivamente, produz o gerenciamento de
um ambiente internacional pacificado ao
solucionar demandas que não estão associadas
à preocupação humanitária.
Problematizando a Responsabilidade de
Proteger
Os esforços contemporâneos no
sentido de legitimar a utilização do
mecanismo da Responsabilidade de Proteger
em situações de crise política em
determinados países, expõe um dilema ainda
sem solução nos circuitos acadêmicos e
diplomáticos. Em vez de uma real
preocupação em proteger civis em situações
de risco, pode-se problematizar o RdeP
questionando se por trás dos belos discursos
humanitários não há uma intenção estratégica
de poder angariada pelos partidários da
intervenção. Pode-se identificar, desse modo,
a
utilização
das
intervenções
humanitárias/militares como mecanismo de
segurança inaugurado a partir da necessidade
de controle das novas violências.
O que estaria em jogo nos processos
intervencionistas seria algo além da proteção
humanitária, que envolve a prevenção ou
controle de pequenas convulsões localizadas
que podem se alastrar de maneira irrestrita,
permitindo a ocorrência de terrorismos, de
epidemias, de atividades de pirataria, de
ilegalismos transnacionais, de acesso e
manipulação sem restrições de armas de
destruição em massa, ou mesmo dos fluxos
migratórios. Assim, do ponto de vista prático,
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
as intervenções teriam o efeito de
instrumentalizar a pacificação de zonas de
proliferação
das
novas
violências
desregulamentadas, como forma de ampliar a
segurança no ambiente internacional, mas sob
a alegação de levar às populações afetadas o
benefício da liberdade democrática e dos
direitos humanos (conforme os parâmetros
ocidentais).
Nesse sentido, segundo Rodrigues:
“o princípio da Responsabilidade de
Proteger representa um novo contexto
normativo e institucional de caráter global;
anuncia-se como parte de um novo
dispositivo diplomático-militar não mais
voltado para o equacionamento e
sobrevivência do Estado em um sistema
fechado e interestatal (...), mas para a
produção de novas técnicas para a gestão do
planeta buscando preservar uma nova ordem
internacional articulada pela combinação
entre mercado capitalista global (com seus
fluxos transterritoriais de informação,
capital
e
produtos)
e democracia
representativa consolidada como o modelo
final para a organização política dos povos”
(2012: 37).
Essas iniciativas indicam, portanto,
ainda que de maneira muito prematura, a
emergência de novas práticas interessadas no
governo planetário, que seguem normativas,
procedimentos e costumes orientados pelo
sistema liberal-democrático-capitalista. Por
isso, relembrando a análise desenvolvida
anteriormente, já se pode considerar
ultrapassada
a
“simples”
segurança
internacional, ou seja, entre nações. O que se
desenvolve cada vez mais são práticas,
técnicas e instrumentos de governo que visam
construir no ambiente internacional um
“estado de paz” em benefício de certos
modelos políticos e sociais pré-determinados.
Guerra civil na Síria
Desde os primeiros meses do ano de
2011 a Síria vive um processo revolucionário
contra o regime ditatorial de Bashar al-Assad,
que progrediu, desde o início do ano de 2012,
para uma guerra civil entre a oposição armada
e as forças militares do Estado. Estima-se que
cerca de 30 mil pessoas já morreram nos
conflitos diários em território sírio. Logo após
iniciados os protestos, a atenção diplomática
dos
diversos
atores
envolvidos
ou
interessados na questão síria clamou pela
proteção dos civis em meio à guerra. Uma vez
mais os questionamentos sobre a ativação do
mecanismo da Responsabilidade de Proteger
veio à tona.
A intitulada comunidade internacional
logo
identificou
as
reivindicações
oposicionista por reformas democráticas
como legítimas, bem como a violência
perpetrada pelos vários grupos de oposição ao
regime, a despeito dos métodos utilizados por
elas nos confrontos. Inversamente, a violência
proveniente do regime contra as sublevações
foi identificada como ilegítima e ilegal. Desse
modo, embora haja um confronto aberto entre
o regime e a oposição – armada e financiada
desde fora por países como Turquia, Catar,
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Arábia Saudita e Estados Unidos –, as
responsabilidades e os prejuízos com relação
aos resultados da guerra recaem sobre o
regime. Este seria violador dos direitos
humanos ao expor os seus cidadãos ao
conflito – e, antes, à condição de repressão e
falta de liberdade –, e, portanto, deveria
perder o direito de exercer sua soberania.
É nesse sentido que as articulações no
âmbito do Conselho de Segurança das Nações
Unidas vêm sendo tratadas. Com os primeiros
embates entre as forças da oposição e do
governo no país, surgiram também as
solicitações de resoluções contra a Síria, cujo
limite seria uma intervenção militar para
salvaguardar os direitos da população civil.
Liderada pela diplomacia estadunidense, as
ações e os discursos que reivindicam
intervenção externa, no entanto, esbarram no
problema da persistente negativa da
diplomacia russa e chinesa, que possuem
laços estreitos com o regime de al-Assad.
Todas as vezes em que foram propostas
resoluções no Conselho de Segurança
buscando a ativação do dispositivo do RdeP,
Rússia e China vetaram, sendo aceita, ao
longo desse tempo, somente uma resolução de
envio de observadores internacionais ao país.
Esse fato expõe como o princípio da
Responsabilidade de Proteger está sujeito,
quando da sua formalização nos órgãos de
segurança, às disposições e orientações
políticas de alguns Estados que influenciam
de modo decisivo as questões mais
importantes de política internacional. Nesse
sentido, vemos que os mesmos motivos que
levam hoje à solicitação de rompimento da
soberania síria, são os que justificaram a
implantação da zona de exclusão aérea na
Líbia (uma forma de intervenção externa),
que permitiu o auxílio militar à oposição
naquele país, derrubando o regime de
Muammar Gaddafi. Poderiam também
justificar uma solicitação de intervenção no
Bahrein, país em que as revoltas da chamada
Primavera Árabe foram sufocadas pelo
regime sem que a “comunidade internacional”
pronunciasse legitimidade nas reivindicações
dos grupos opositores neste país em que, da
mesma forma, há violações flagrantes dos
direitos humanos por parte de um regime
também ditatorial.
Portanto, os parâmetros para a
ativação do princípio da Responsabilidade de
Proteger não são guiados pela necessidade
real de proteção dos direitos humanos, e sim,
pelo complexo jogo de poder que há nas
relações internacionais e pelo desejo de
ampliação de um sistema de governança
global.
No caso da Síria, como as pressões
partem dos Estados Unidos e de seus
principais aliados na Europa e no próprio
Oriente Médio, pode-se pensar que os
interesses em uma intervenção para
substituição do regime de al-Assad por um
sistema democrático, teria como verdadeira
fundamentação, se tomarmos um foco de
análise regional, o enfraquecimento do
Hezbollah, o isolamento do Irã, e o
consequente fortalecimento da segurança de
Israel. Num foco de análise ampliado, pode-se
pensar na contenção do avanço chinês sobre o
Oriente Médio – principalmente no que diz
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
respeito as questões econômicas –, no
enfraquecimento militar russo, já que as
únicas bases do país na região encontram-se
em território sírio, no controle da estabilidade
de comercialização e distribuição do petróleo,
e na contenção do Islã.
No entanto, não se pode tomar as
atuais iniciativas de ativação de intervenções
como sendo particularmente proveniente de
interesses nacionais. Há um componente mais
sofisticado que está vinculado à implantação
de um governo global que se “desprende” do
exercício de poder unicamente nacional.
Nesse sentido, como aponta Rodrigues
(2012), pode-se pensar que o RdeP – em
ligação direta com a busca por uma segurança
humana –, é parte de um sistema que articula
novas práticas de poder interessadas em gerir
o planeta e os fluxos de pessoas, de produtos
e de capitais que por ele transita, identificando
cada “anormalidade” como algo que pode
atrapalhar ou interromper um “estado de paz”
que faz funcionar o bom andamento da vida.
A crise na Síria seria uma
“anormalidade” a ser combatida por esse
mecanismo que se articula, segundo Hardt e
Negri (2005), como uma força policial que,
em concordância ou não com as leis do direito
internacional, está sempre pronta a pacificar
um evento de insegurança.
Cada intervenção militar atuaria, desse
modo,
como
um
ato
de
polícia
internacionalizado, evidenciando a utilização
do RdeP como instrumento que busca dispor e
controlar as populações mundiais, exercendo
um poder político sobre os homens em escala
planetária. Um esforço de governo muito
além do nacional. Uma governança, portanto,
global.
Referências bibliográficas
DUARTE, João Paulo Gusmão Pinheiro
(2011). Terrorismo e sociedade de controle.
Dissertação
de
Mestrado
Relações
Internacionais.
(Pontifícia
Universidade
Católica de São Paulo). São Paulo, 178f.
FUKUYAMA, Francis (2005). Construção de
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Rio de Janeiro: Rocco.
GROS, Frédéric (2009). Estados de Violência
– ensaio sobre o fim da guerra. Tradução José
Augusto da Silva. Aparecida/SP: Idéias &
Letras.
HARDT, Michel; NEGRI, Antonio (2005).
Multidão – guerra e democracia na era do
império. Tradução Clóvis Marques. Rio de
Janeio: Record.
RODRIGUES, Thiago (2010). Guerra e
política nas relações internacionais. São
Paulo: Educ.
______ (2012). “Responsabilidade de
Proteger e sua ‘responsabilidade de reagir’:
Ultima ratio de um novo dispositivo global de
segurança?”. In. Pensamiento proprio. Cries,
Nº 35, Jan-Jul/2012.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012
Inter-Relações
ISSN: 1980-3702
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina
Direção: Ir. Valéria de Araújo Carvalho
Coordenação de Relações Internacionais: Prof. Dr. Moisés da Silva Marques
Assistência de coordenação: Diogo Bueno de Lima
Conselho editorial: Prof. Dr. Clóvis Brigagão (IUPERJ-UCAM); Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira
(UNICAMP); Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP); Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues
(UFABC); Ms. Kjeld Jacobsen (Instituto Observatório Social); Profª Dr. Meire Mathias (UEM); Prof. Dr.
Moisés da Silva Marques (FASM/FESP-SP); Prof. Dr. Paulo-Edgar A. Resende [in memoriam] (PUC-SP);
Prof. Dr. Peter Demant (USP); Prof. Dr. Rafael Duarte Villa (USP); Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM);
Prof. Dr. Sergio Aguilar (UNESP-Marília); Prof. Dr. Thiago Rodrigues (UFF); Prof. Dr. Wagner de Melo
Romão (UNESP-Araraquara).
Editoração: Prof. Dr. Moisés da Silva Marques
Revisão: Prof. Ms. João Paulo Gusmão P. Duarte e Deborah de Almeida Sheps
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