Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo

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Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo
Capítulo 4
Os problemas do inatismo e do empirismo:
soluções filosóficas
Inatismo e empirismo: questões e respostas
Vimos, no capítulo anterior, que a razão enfrenta problemas sérios quanto à sua
intenção de ser conhecimento universal e necessário da realidade. Vimos também
que, como conseqüência de conflitos e impasses entre o inatismo e o empirismo,
surgiu na Filosofia a tendência ao ceticismo, isto é, passou-se a duvidar de que o
conhecimento racional, como conhecimento certo, verdadeiro e inquestionável,
seria possível.
Neste capítulo vamos examinar algumas soluções propostas pela Filosofia para
resolver essa questão.
Os problemas criados pela divergência entre inatistas e empiristas foram
resolvidos em dois momentos: o primeiro é anterior à filosofia de David Hume e
encontra-se na filosofia de Leibniz; o segundo é posterior à filosofia de Hume e
encontra-se na filosofia de Kant.
A solução de Leibniz no século XVII
Leibniz estabeleceu uma distinção entre verdades de razão e verdades de fato.
As verdades de razão enunciam que uma coisa é, necessária e universalmente,
não podendo de modo algum ser diferente do que é e de como é. O exemplo mais
evidente das verdades de razão são as idéias matemáticas. É impossível que o
triângulo não tenha três lados e que a soma de seus ângulos não seja igual a soma
de dois ângulos retos; é impossível que um círculo não tenha todos os pontos
eqüidistantes do centro e que não seja a figura formada pelo movimento de um
semi-eixo ao redor de um centro fixo; é impossível que 2 + 2 não seja igual a 4; é
impossível que o todo não seja maior do que as partes.
As verdades de razão são inatas. Isso não significa que uma criança, por
exemplo, nasça conhecendo a matemática e sabendo realizar operações
matemáticas, demonstrar teoremas ou resolver problemas nessa área do
conhecimento. Significa que nascemos com a capacidade racional, puramente
intelectual, para conhecer idéias que não dependem da experiência para serem
formuladas e para serem verdadeiras.
As verdades de fato, ao contrário, são as que dependem da experiência, pois
enunciam idéias que são obtidas através da sensação, da percepção e da memória.
As verdades de fato são empíricas e se referem a coisas que poderiam ser
diferentes do que são, mas que são como são porque há uma causa para que
sejam assim. Quando digo “Esta rosa é vermelha”, nada impede que ela pudesse
ser branca ou amarela, mas se ela é vermelha é porque alguma causa a fez ser
assim e uma outra causa poderia tê-la feito amarela. Mas não é acidental ou
contingente que ela tenha cor e é a cor que possui uma causa necessária.
As verdades de fato são verdades porque para elas funciona o princípio da razão
suficiente, segundo o qual tudo o que existe, tudo o que percebemos e tudo
aquilo de que temos experiência possui uma causa determinada e essa causa pode
ser conhecida. Pelo princípio da razão suficiente – isto é, pelo conhecimento das
causas – todas as verdades de fato podem tornar-se verdades necessárias e serem
consideradas verdades de razão, ainda que para conhecê-las dependamos da
experiência.
Observamos, assim, que, para Leibniz, o princípio da razão suficiente ou a idéia
de causalidade universal e necessária permite manter as idéias inatas e as idéias
empíricas. É justamente o princípio da causalidade, como vimos, que será alvo
das críticas dos empiristas, na filosofia de David Hume. Para esse filósofo, o
princípio da razão suficiente é apenas um hábito adquirido por experiência como
resultado da repetição e da freqüência de nossas impressões sensoriais. A crítica
de Hume à causalidade e ao princípio da razão suficiente leva à resposta de Kant.
A solução kantiana
A resposta aos problemas do inatismo e do empirismo oferecida pelo filósofo
alemão do século XVIII, Immanuel Kant, é conhecida com o nome de “revolução
copernicana” em Filosofia. Por quê? Qual a relação entre Kant e o que fizera
Copérnico, quase dois séculos antes do kantismo?
Vejamos, muito brevemente, o que foi a revolução copernicana em astronomia
para, depois, vermos o que foi ela em Filosofia.
A tradição antiga e medieval considerava que o mundo possuía limites (ou seja, o
mundo era finito), sendo formado por um conjunto de sete esferas concêntricas,
em cujo centro estava a Terra, imóvel. À volta da Terra giravam as esferas nas
quais estavam presos os planetas (o Sol e a Lua eram considerados planetas). Em
grego, Terra se diz Gaia ou Geia. Como ela se encontrava no centro, o sistema
astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo
geocentrismo.
A revolução copernicana demonstrou que o sistema geocêntrico era falso e que:
1. o mundo não é finito, mas é um Universo infinito;
2. os astros não estão presos em esferas, mas fazem um movimento (como
demonstrará Kepler, depois de Copérnico), cuja forma é a de uma elipse;
3. o centro do Universo não é a Terra;
4. o Sol (como já fora demonstrado por outros astrônomos) não é um planeta,
mas uma estrela, e a Terra, como os outros planetas, gira ao redor dele;
5. o próprio Sol também se move, mas não em volta da Terra.
Em grego, Sol se diz Hélios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de
heliocêntrico, e sua explicação, de heliocentrismo, pois o Sol está no centro do
nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor.
Voltemos agora a Kant e observemos o que ele diz.
Inatistas e empiristas, isto é, todos os filósofos, parecem ser como astrônomos
geocêntricos, buscando um centro que não é verdadeiro. Parecem, diz Kant,
como alguém que, querendo assar um frango, fizesse o forno girar em torno dele
e não o frango em torno do fogo.
Qual o engano dos filósofos?
Em lugar de, primeiro e antes de tudo, estudar o que é a própria razão e indagar o
que ela pode e o que não pode conhecer, o que é a experiência e o que ela pode
ou não pode conhecer; em vez, enfim, de procurar saber o que é a verdade, os
filósofos preferiram começar dizendo o que a realidade é, afirmando que ela é
racional e que, por isso, pode ser inteiramente conhecida pelas idéias da razão.
Colocaram a realidade exterior ou os objetos do conhecimento no centro e
fizeram a razão, ou o sujeito do conhecimento, girar em torno deles.
Façamos, pois, uma revolução copernicana em Filosofia: em vez de colocar no
centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento, dizendo que são
racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos, comecemos
colocando no centro a própria razão.
Não é a razão a Luz Natural? Não é ela o Sol que ilumina todas as coisas e em
torno do qual tudo gira? Comecemos, portanto, pela Luz Natural no centro do
conhecimento e indaguemos: O que é ela? O que ela pode conhecer? Quais são as
condições para que haja conhecimento verdadeiro? Quais são os limites que o
conhecimento humano não pode transpor? Como a razão e a experiência se
relacionam?
Comecemos, então, pelo sujeito do conhecimento. E comecemos mostrando que
este sujeito é a razão universal e não uma subjetividade pessoal e psicológica,
que ele é o sujeito conhecedor e não Pedro, Paulo, Maria ou Isabel, esta ou
aquela pessoa, este ou aquele indivíduo.
O que é a razão?
A razão é uma estrutura vazi a, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura (e
não os conteúdos) é que é universal, a mesma para todos os seres humanos, em
todos os tempos e lugares. Essa estrutura é inata, isto é, não é adquirida através
da experiência. Por ser inata e não depender da experiência para existir, a razão é,
do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência. Ou, como escreve Kant, a
estrutura da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende
dela).
Porém, os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa, esses sim,
dependem da experiência. Sem ela, a razão seria sempre vazia, inoperante, nada
conhecendo. Assim, a experiência fornece a matéria (os conteúdos) do
conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e
necessária) do conhecimento. A matéria do conhecimento, por ser fornecida pela
experiência, vem depois desta e por isso é, no dizer de Kant, a posteriori.
Qual o engano dos inatistas? Supor que os conteúdos ou a matéria do
conhecimento são inatos. Não existem idéias inatas.
Qual o engano dos empiristas? Supor que a estrutura da razão é adquirida por
experiência ou causada pela experiência. Na verdade, a experiência não é causa
das idéias, mas é a ocasião para que a razão, recebendo a matéria ou o conteúdo,
formule as idéias.
Dessa maneira, a estrutura da razão é inata e universal, enquanto os conteúdos
são empíricos e podem variar no tempo e no espaço, podendo transformar-se com
novas experiências e mesmo revelarem-se falsos, graças a experiências novas.
O que é o conhecimento racional, sem o qual não há Filosofia nem ciência?
É a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo
particular oferecido pela experiência.
Qual é a estrutura da razão?
A razão é constituída por três estruturas a priori:
1. a estrutura ou forma da sensibilidade, isto é, a estrutura ou forma da percepção
sensível ou sensorial;
2. a estrutura ou forma do entendimento, isto é, do intelecto ou inteligência;
3. a estrutura ou forma da razão propriamente dita, quando esta não se relaciona
nem com os conteúdos da sensibilidade, nem com os conteúdos do entendimento,
mas apenas consigo mesma. Como, para Kant, só há conhecimento quando a
experiência oferece conteúdos à sensibilidade e ao entendimento, a razão,
separada da sensibilidade e do entendimento, não conhece coisa alguma e não é
sua função conhecer. Sua função é a de regular e controlar a sensibilidade e o
entendimento. Do ponto de vista do conhecimento, portanto, a razão é a função
reguladora da atividade do sujeito do conhecimento.
A forma da sensibilidade é o que nos permite ter percepções, isto é, a forma é
aquilo sem o que não pode haver percepção, sem o que a percepção seria
impossível. Percebemos todas as coisas como dotadas de figura, dimensões
(altura, largura, comprimento), grandeza: ou seja, nós as percebemos como
realidades espaciais.Não interessa se cada um de nós vê cores de uma certa maneira, gosta
mais de uma cor ou de outra, ouve sons de uma certa maneira, gosta mais de certos sons
do que de outros, etc. O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir
propriedades espaciais; por isso, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite haver
percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o próprio
espaço). Assim, o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes
e sem a experiência.
Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas:
percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos.
Ou seja, percebemos as coisas como realidades temporais. Não percebemos o
tempo (temos a experiência do passado, do presente e do futuro, porém não
temos percepção do próprio tempo), mas ele é a condição de possibilidade da
percepção das coisas e é a outra forma a priori da sensibilidade que existe em
nossa razão antes da experiência e sem a experiência.
A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade organiza
racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo. Essa organização espaçotemporal
dos objetos do conhecimento é que é inata, universal e necessária.
O entendimento, por sua vez, organiza os conteúdos que lhe são enviados pela
sensibilidade, isto é, organiza as percepções. Novamente o conteúdo é oferecido
pela experiência sob a forma do espaço e do tempo, e a razão, através do
entendimento, organiza tais conteúdos empíricos.
Essa organização transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou em
conceitos. Para tanto, o entendimento possui a priori (isto é, antes da experiência
e independente dela) um conjunto de elementos que organizam os conteúdos
empíricos. Esses elementos são chamados de categorias e sem elas não pode
haver conhecimento intelectual, pois são as condições para tal conhecimento.
Com as categorias a priori, o sujeito do conhecimento formula os conceitos.
As categorias organizam os dados da experiência segundo a qualidade, a
quantidade, a causalidade, a finalidade, a verdade, a falsidade, a universalidade, a
particularidade. Assim, longe de a causalidade, a qualidade e a quantidade serem
resultados de hábitos psicológicos associativos, eles são os instrumentos
racionais com os quais o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a
conhece. As categorias, estruturas vazias, são as mesmas em toda época e em
todo lugar, para todos os seres racionais.
Graças à universalidade e à necessidade das categorias, as ciências são possíveis
e válidas; o empirismo, portanto, está equivocado.
Em instante algum Kant admite que a realidade, em si mesma, é espacial,
temporal, qualitativa, quantitativa, causal, etc. Isso seria regredir ao forno
girando em torno do frango. O que Kant afirma é que a razão e o sujeito do
conhecimento possuem essas estruturas para poder conhecer e que, por serem elas
universais e necessárias, o conhecimento é racional e verdadeiro para os
seres humanos.
É isso que a razão pode. O que ela não pode (e nisso inatistas e empiristas se
enganaram) é supor que com suas estruturas passe a conhecer a realidade tal
como esta é em si mesma. A razão conhece os objetos do conhecimento. O
objeto do conhecimento é aquele conteúdo empírico que recebeu as formas e as
categorias do sujeito do conhecimento. A razão não está nas coisas, mas em nós.
A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal
como ela seria em si mesma, nem pode pretender que exista uma razão objetiva
governando as próprias coisas.
O erro dos inatistas e empiristas foi o de supor que nossa razão alcança a
realidade em si. Para um inatista como Descartes, a realidade em si é espacial,
temporal, qualitativa, quantitativa, causal. Para um empirista como Hume, a
realidade em si pode ou não repetir fatos sucessivos no tempo, pode ou não
repetir fatos contíguos no espaço, pode ou não repetir as mesmas seqüências de
acontecimentos.
Para Kant, jamais poderemos saber se a realidade em si é espacial, temporal,
causal, qualitativa, quantitativa. Mas sabemos que nossa razão possui uma
estrutura universal, necessária e a priori que organiza necessariamente a
realidade em termos das formas da sensibilidade e dos conceitos e categorias do
entendimento. Como razão subjetiva, nossa razão pode garantir a verdade da
Filosofia e da ciência.
A resposta de Hegel
Um filósofo alemão do século XIX, Hegel, ofereceu uma solução para o
problema do inatismo e do empirismo posterior à de Kant.
Hegel criticou o inatismo, o empirismo e o kantismo. A todos endereçou a
mesma crítica, qual seja, a de não haverem compreendido o que há de mais
fundamental e de mais essencial à razão: a razão é histórica.
De fato, a Filosofia, preocupada em garantir a diferença entre a mera opinião
(“eu acho que”, “eu gosto de”, “eu não gosto de”) e a verdade (“eu penso que”,
“eu sei que”, “isto é assim porque”), considerou que as idéias só seriam racionais
e verdadeiras se fossem intemporais, perenes, eternas, as mesmas em todo tempo
e em todo lugar. Uma verdade que mudasse com o tempo ou com os lugares seria
mera opinião, seria enganosa, não seria verdade. A razão, sendo a fonte e a
condição da verdade, teria também que ser intemporal.
É essa intemporalidade atribuída à verdade e à razão que Hegel criticou em toda
a Filosofia anterior.
Ao afirmar que a razão é histórica, Hegel não está, de modo algum, dizendo que
a razão é algo relativo, que vale hoje e não vale amanhã, que serve aqui e não
serve ali, que cada época não alcança verdades universais. Não. O que Hegel está dizendo
é que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é obra
racional da própria razão. A razão não é uma vítima do tempo, que lhe roubaria a
verdade, a universalidade, a necessidade. A razão não está na História; ela é a
História. A razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo.
Hegel também fez uma crítica aos inatistas e aos empiristas muito semelhante à
que Kant fizera. Ou seja, inatistas e empiristas acreditam que o conhecimento
racional vem das próprias coisas para nós, que o conhecimento depende
exclusivamente da ação das coisas sobre nós, e que a verdade é a
correspondência entre a coisa e a idéia da coisa.
Para o empirista, a realidade “entra” em nós pela experiência. Para o inatista a
verdade “entra” em nós pelo poder de uma força espiritual que a coloca em nossa
alma, de modo que as idéias inatas não são produzidas pelo próprio sujeito do
conhecimento ou pela própria razão, mas são colocadas em nós por uma força
sábia e superior a nós (como Deus, por exemplo). Assim, o conhecimento parece
depender inteiramente de algo que vem de fora para dentro de nós. No caso dos
inatistas, depende da divindade; no caso dos empiristas, depende da experiência
sensível.
Inatistas e empiristas se enganaram por excesso de objetivismo, isto é, por
julgarem que o conhecimento racional dependeria inteiramente dos objetos do
conhecimento.
Mas Kant também se enganou e pelo motivo oposto, isto é, por excesso de
subjetivismo, por acreditar que o conhecimento racional dependeria exclusivamente do
sujeito do conhecimento, das estruturas da sensibilidade e do
entendimento.
A razão, diz Hegel, não é nem exclusivamente razão objetiva (a verdade está nos
objetos) nem exclusivamente subjetiva (a verdade está no sujeito), mas ela é a
unidade necessária do objetivo e do subjetivo. Ela é o conhecimento da
harmonia entre as coisas e as idéias, entre o mundo exterior e a consciência, entre
o objeto e o sujeito, entre a verdade objetiva e a ve rdade subjetiva. O que é afinal
a razão para Hegel?
A razão é:
1. o conjunto das leis do pensamento, isto é, os princípios, os procedimentos do
raciocínio, as formas e as estruturas necessárias para pensar, as categorias, as
idéias – é razão subjetiva;
2. a ordem, a organização, o encadeamento e as relações das próprias coisas, isto
é, a realidade objetiva e racional – é razão objetiva;
3. a relação interna e necessária entre as leis do pensamento e as leis do real. Ela
é a unidade da razão subjetiva e da razão objetiva.
Por que a razão é histórica?
A unidade ou harmonia entre o objetivo e o subjetivo, entre a realidade das coisas
e o sujeito do conhecimento não é um dado eterno, algo que existiu desde todo o
sempre, mas é uma conquista da razão e essa conquista a razão realiza no tempo.
A razão não tem como ponto de partida essa unidade, mas a tem como ponto de
chegada, como resultado do percurso histórico ou temporal que ela própria
realiza.
Qual o melhor exemplo para compreender o que Hegel quer dizer? O melhor
exemplo é o que acabamos de ver nos capítulos 2 e 3 desta unidade.
Vimos que os inatistas começaram combatendo a suposição de que opinião e
verdade são a mesma coisa. Para livrarem-se dessa suposição, o que fizeram
eles? Disseram que a opinião pertence ao campo da experiência sensorial,
pessoal, psicológica, instável e que as idéias da razão são inatas, universais,
necessárias, imutáveis.
Os empiristas, no entanto, negaram que os inatistas tivessem acertado, negaram
que as idéias pudessem ser inatas e fizeram a razão depender da experiência
psicológica ou da percepção. Ao fazê-lo, revelaram os pontos fracos dos inatistas,
mas abriram o flanco para um problema que não podiam resolver, isto é, a
validade das ciências.
A filosofia kantiana negou, então, que inatistas e empiristas estivessem certos.
Negou que pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas, negou que a razão
possuísse conteúdos inatos, mostrando que os conteúdos dependem da
experiência; mas negou também que a experiência fosse a causa da razão, ou que
esta fosse adquirida, pois possui formas e estruturas inatas. Kant deu prioridade
ao sujeito do conhecimento, enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao
objeto do conhecimento.
Que diz Hegel? Que esses conflitos filosóficos são a história da razão buscando
conhecer-se a si mesma e que, graças a tais conflitos, graças às contradições entre
as filosofias, a Filosofia pode chegar à descoberta da razão como síntese, unidade
ou harmonia das teses opostas ou contraditórias.
Em cada momento de sua história, a razão produziu uma tese a respeito de si
mesma e, logo a seguir, uma tese contrária à primeira ou uma antítese. Cada tese
e cada antítese foram momentos necessários para a razão conhecer-se cada vez
mais. Cada tese e cada antítese foram verdadeiras, mas parciais. Sem elas, a
razão nunca teria chegado a conhecer-se a si mesma. Mas a razão não pode ficar
estacionada nessas contradições que ela própria criou, por uma necessidade dela
mesma: precisa ultrapassá-las numa síntese que una as teses contrárias, mostrando onde
está a verdade de cada uma delas e conservando essa verdade. Essa é a razão histórica.

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