Canto que foi valente sempre será uma nova canção

Transcrição

Canto que foi valente sempre será uma nova canção
CANTO QUE FOI
VALENTE SEMPRE SERÁ
UMA NOVA CANÇÃO
Gisele C. Costa
Lamericas.org - Maio de 2014
Lamericas.org
Víctor Jara: Canto que foi valente
sempre será uma canção nova
Talvez seja possível que na história singular de um homem esteja a história
de um período histórico, as histórias de muitos homens e mulheres, seus conflitos,
seus sonhos, suas glórias e lutas inglórias. É essa a condição da história de Víctor
Jara na história recente do Chile e na história da América Latina.
Mestiço de mapuche e branco, Víctor Jara nasceu na província de Ñuble,
perto de Santiago, era filho de camponeses pobres e sua infância foi fortemente
marcada pelas agruras familiares. Desde a tenra idade vivenciou o embrutecimento
de seu pai Manuel, um camponês analfabeto destruído pelo alcoolismo e, a
delicadeza de sua mãe, Amanda, mulher forte, inteligente que educou sozinha os
filhos e influenciou grandemente a sensibilidade artística de Víctor.
A história de Amanda e Manuel seria reinterpretada e cantada por Víctor
como a história de muitos amores anônimos, na música Te recuerdo Amanda,
gravada em 1969, a qual Jara mais tarde definiria como:
“Te recuerdo Amanda, fala do amor de dois operários, dois
operários de hoje, desses que vocês veem pelas ruas e às
vezes desconhecem o que há dentro da alma de dois
operários de qualquer fábrica, de qualquer lugar do nosso
continente”. 1
Na adolescência, a vida na capital Santiago trouxe a Víctor a possibilidade
de contato com o conhecimento sistematizado. Foi no bairro de Chicago Chico
que ele dedicou seu tempo entre os estudos no Liceu Ruíz-Table e as horas de
música na viola de sua mãe.
1
Apresentação
de
Víctor
Jara
no
festival
de
Lima.
https://www.youtube.com/watch?v=GRmre8ggkcY. Acesso em 05 maio de 2014.
Disponível
em
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Lamericas.org
Aos 15 anos de idade, quando as condições econômicas razoavelmente se
estabilizaram devido aos esforços de Amanda, a vida daria um dos golpes mais
intensos até então sofridos por Víctor Jara, – a morte repentina de sua mãe.
Com a morte de Amanda e a dissolução de sua família, para não morrer de
solidão, Víctor se mudaria para a região de Población Nogales, onde
primeiramente abandonaria os estudos para trabalhar em uma fábrica de móveis
e posteriormente se recolheria por dois anos como seminarista na Congregação
dos Redentoristas e se dedicaria a cultura eclesiástica. Depois de dois anos, Víctor
Jara abandonaria o seminário e daria início a sua brilhante carreira artística.
A metade da década de 1950 seria decisiva na carreira de Víctor, foi nesse
período que ele ingressou para a companhia de teatro Compañia de Mimos de
Noisvander, aprofundando seus estudos dramatúrgicos na Escola Teatro da
Universidade do Chile. Em 1955, conheceu Violeta Parra, por meio do grupo
Cuncumén, no qual era solista de músicas e cantos folclóricos. Violeta se tornaria
sua grande amiga e encorajadora de seu trabalho e a partir de então Jara seria um
dos maiores frequentadores da peña dos Parras, na rua Carmen, em Santiago do
Chile.
Embora já fosse excelentíssimo compositor, Entre 1959 a 1970, Jara se
dedicou mais a dramaturgia, na condição de diretor de diversas peças que
percorreriam a América Latina e o mundo.
A Nueva Canción Chilena: Entre o homo
sentimentalis e homo politicus
É provável que na história recente da América Latina, nenhum momento
histórico tenha entrelaçando com tanta força aspectos políticos e culturais como a
década de 1960.
A revolução em Cuba, o massacre de jovens estudantes em Tatleloco, no
México, os diversos movimentos guerrilheiros espalhados pelo subcontinente
influenciaram decididamente os movimentos culturais que surgiam desde os anos
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de 1950. É nesse contexto que se insere a história da Nueva Canción Chilena e a
determinante participação de Víctor Jara nela.
Assim como foi a Nueva Trova Cubana e el Nuevo Cancionero Argentino, a
Nueva Canción Chilena foi um grande movimento cultural que por meio do
teatro, da dança, da poesia e da música buscou resgatar as raízes culturais dos
trabalhadores campesinos e dos povos originários da América Latina. Para tanto
rechaçou a indústria cultural que adentrava no subcontinente difundindo,
sobretudo o rock americano e inglês.
Para além da América Latina, as músicas da Nueva Canción Chilena
abarcaram também o contexto da luta de classe em nível mundial. Expressão
máxima dessa tendência foi a obra de Rolando Alarcón intitulada Por Cuba y
Vietnam e Derecho de vivir en paz, disco produzido por Víctor Jara em
solidariedade ao povo vietnamita em sua luta contra o imperialismo
estadunidense.
Assimilado por grupos de estudantes universitários, surgiram inúmeros
grupos como o Quilapayun, do qual Jara atuou como diretor, Inti-IIIimani e
outros, identificados com as características da Nueva Canción. Com o avanço da
luta de classes na América Latina e o ascenso do movimento operário e estudantil
no Chile, os artistas ligados à Nueva Canción assumiram em suas obras as temáticas
sociais e a denúncia das mazelas provocadas pelo Capital. Entretanto, como o
próprio Victor Jara afirmaria, a Nueva Canción Chilena não se tratava somente de
denúncias sociais em si, senão da condição do próprio ser humano no mundo:
“As canções mobilizadoras ajudam em um momento,
canções que cantam o povo (...). Mas existe outro tipo de
canção, aquela que fica na alma do povo, e nisso Violeta era
artista popular por excelência, porque ela não fazia canção
mobilizadora no sentido contingente, mas sim a canção
autenticamente popular e revolucionária, aquela que
movimenta os sentimentos do Homem, que promove seu
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estado de consciência, onde ele descubra a si mesmo e seus
semelhantes”.2
Entre o final dos anos de 1960 e início da década de 1970, ganhou força na
América Latina, a teoria da dependência, cuja principal afirmação era que nos
países periféricos, o subdesenvolvimento é um estado do capitalismo e não uma
fase. Dessa maneira, nessas regiões o capitalismo deveria ser substituído pelo
socialismo. 3
A teoria da dependência influenciou profundamente a esquerda chilena e
consequentemente o programa da Unidade Popular, no qual o centro não estava
na distribuição de riquezas, senão na socialização da produção dela. Entretanto, a
via escolhida pela Unidade Popular foram nacionalizações e reformas estruturais
por dentro das instituições do próprio Estado.
Convictos que a mediação entre os sonhos do gênero humano e a realidade,
não é outra coisa senão as ações dos próprios homens e mulheres, os artistas da
Nueva Canción Chilena como Ángel e Isabel Parra, Patricio Manns, Rolando
Alarcón, Víctor Jara e outros ligaram-se organicamente ao projeto político da “via
chilena ao socialismo” defendida por Salvador Allende. A própria campanha da
Unidade Popular foi pautada em muitos elementos já então defendidos pela
Nueva Canción, como o fim das injustiças sociais e a necessidade do antiimperialismo. Na composição de A Cuba, Víctor assim comparou o processo da
Revolução cubana com a “via chilena ao socialismo”: “Nossa Serra Maestra é a
eleição”.
Por meio da empolgação e empenho dos intelectuais orgânicos, artistas e
estudantes, a campanha da Unidade Popular, chegou aos rincões mais distantes do
país e foi assimilada pelos trabalhadores pobres que adotavam as músicas da
Nueva Canción como trilha sonora de suas lutas, unificando peñas e poblaciones
callampa.4
2
Entrevista concedida por Víctor Jara para Nicomedes Santa Cruz, na cidade de Lima, há exatos três meses
antes de morrer. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wl-T7q2h_8c Acesso em:
05/05/2014.
3
Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe, p. 285.
4
Poblaciones callampa é a designação que se dá as moradias precárias (favelas) no Chile.
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Coube a Víctor Jara dar voz ao clamor popular que levou Salvador Allende
ao poder em setembro de 1970. Interprete da segunda versão da música
“Venceremos”, de Sérgio Ortega, Jara cantou a vitória da Unidade Popular e
indiretamente ‘profetizou’ a reação da direita diante dela:
“Venceremos, venceremos
Con Allende en septiembre a vencer
Venceremos, venceremos
La Unidad Popular al poder
Con la fuerza que surge del pueblo
Una patria mejor hay que hacer
A golpear todos juntos y unidos
AL poder, al poder, al poder.
Si la justa victoria de Allende
la derecha quisiera ignorar
todo el pueblo resuelto y valiente
como un hombre se levantará.”
O entusiasmo com o projeto popular que ascendia no Chile permaneceu
depois da vitória de Allende, em 4 de abril de 1970. Para os setores dos círculos
culturais de esquerda tratava-se agora de estabelecer um diálogo com a juventude
e os trabalhadores para consolidar os rumos de uma nova sociedade e lutar contra
as forças reacionárias em curso.
Os três anos que seguiram depois da vitória da Unidade Popular foram
caracterizados pelo acirramento da luta de classes. Tal como mostra
brilhantemente o filme Chove sobre Santiago, do diretor Helvio Soto, a burguesia
chilena, com o apoio da CIA e das ditaduras então implementadas no Cone Sul,
orquestradamente tomou medidas de desestabilização política e econômica contra
o governo Allende, entre as quais, o estocamento de mercadorias desencadeando
o sumiço de produtos básicos do mercado.
Com o prelúdio do golpe cada vez mais forte, Victor e Pablo Neruda
conclamaram, por meio da TV, a população contra o fascismo. Pouco tempo
depois, em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet, nomeado pelo
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próprio Allende para o comando das forças armadas, deu o golpe de Estado e
iniciou uma verdadeira caçada aos militantes e intelectuais de esquerda.
Um dia depois que em que as tortura, mortes e perseguições entrariam para
a história recente do Chile, a própria história de Victor se cruzaria com a história
de seu país.
Os versos da canção Venceremos que embalou toda a campanha de Allende
se concretizou. Contra o fascismo golpista, os trabalhadores e a juventude chilena
se levantaram. Entretanto, o verbo vencer conjugado em 3ª pessoa do singular
não se fez carne, a via chilena ao socialismo em pouco tempo foi destruída e as
vozes que a anunciaram foram literalmente silenciadas.
Um dia depois do Golpe de Pinochet, Victor Jara foi preso na Universidade
Técnica do Estado (UTE) junto com mais de 600 acadêmicos, estudantes e
funcionários. Levado para o Estádio do Chile, o mesmo estádio que o tinha
aplaudido quando ele ganhou o festival da Nueva Canción Chilena, em 1969,
agora servia de campo de concentração para ele e mais de cinco mil pessoas. Ali,
Jara seria torturado, tendo suas mãos esmagadas por coronhadas e morto dois
dias depois com quarenta e quatro tiros.
As últimas horas de Víctor Jara foram por ele mesmo assim definidas em seu
último escrito:
“Somos cinco mil aqui en esta pequeña parte la ciudad.
Somos cinco mil.¿Cuántos somos en total en las ciudades y
en todo el país? Sólo aquí, diez mil manos que siembran y
hacen andar las fábricas. Cuánta humanidad con hambre,
frío, pánico, dolor, presión moral, terror y locura (...)! Que
espanto produce el rostro del fascismo! Llevan a cabo sus
planes con precisión artera sin importarles nada. La sangre
para ellos son medallas. La matanza es um acto de heroísmo.
¿Es este el mundo que creaste, Dios mío? ¿Para esto tus siete
días de asombro y de trabajo? (...) La sangre del compañero
Presidente golpea más fuerte que bombas y matrallas, así
golpeará nuestro puño nuevamente. Canto, qué mal me
sabes cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el
que vivo, como el que muero, espanto. De verme entre
tantos y tantos momentos de infinito em que el silencio y el
grito son metas de este canto. Lo que veo nunca vi. Lo que
he sentido y siento harán brotar el momento...”
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Somente 23 anos depois do assassinato de Víctor, o Estado chileno
reconheceu sua morte como crime da ditadura e no ano de 2003 o Estádio Chile
foi rebatizado como Estádio Víctor Jara em sua homenagem. Entretanto, as causas
de sua prisão, tortura e morte não foram destruídas. Homens e mulheres na
América Latina e no mundo seguem sobrevivendo para trabalhar, quando suas
vozes gritam para trabalhar para viver com dignidade, a mesma dignidade
presente na atual luta do povo mapuche contra o massacre perpetrado pelo Estado
democrático chileno, a mesma dignidade que o mestiço Víctor sonhou, lutou e
cantou. Afinal:
“(...) Ahí donde llega todo y donde todo comienza, canto que ha sido valiente
siempre será canción nueva” 5
5
Trecho da música Manifiesto, composta e interpretada por Víctor Jara.
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