News Gentium - Sociedade Portuguesa de Direito Internacional

Transcrição

News Gentium - Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
News Gentium
Número III, Ano II
Dezembro 2013 e Janeiro 2014
Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
Continuando um longo caminho para a Liberdade
Neste número:
Diminuição significativa de pirataria
na Somália
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ONU poderá receber queixas de
crianças
cujos
direitos
foram
violados
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Reino Unido no
Tribunal
Penal
Internacional
4
Conversações de
Genebra terminam
sem progressos
6
Direito Internacional ou Política?
(Doutor
Mateus
Kowalski)
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A abrir esta edição da News Gentium, lembramos uma das mais notáveis e incontornáveis figuras
do século XX e que nos deixou recentemente: Nelson Mandela. A sua vida, e o seu legado afetaram
de modo transversal grandes setores da vida política sul-africana e internacional e deixaram também
a sua marca no Direito Internacional.
Mandela, nascido a 18 de Julho de 1918 na aldeia de Mvezo, Umtata, na então Província do Cabo, desde a sua juventude que sentiu o apelo de combater o regime profundamente racista do
apartheid na África do Sul, tendo militado em vários grupos nacionalistas e anti-apartheid, nomeadamente no ANC. Esta atividade revolucionária, na sua maior parte clandestina, custou-lhe a liberdade
durante 27 longos anos, durante os quais sofreu as duras penas de uma prisão psicológica e fisicamente degradante. Ainda assim, foi na prisão que, depois de já ter fundado a primeira sociedade de
advogados sul-africana gerida por negros, concluiu os seus estudos em Direito. Em 1990, depois de
enormes pressões internacionais, Mandela surge finalmente como um homem livre de novo no panorama político nacional e internacional, tendo imediatamente iniciado negociações com o governo
de Frederik de Klerk para o desmantelamento do regime do apartheid. Foi eleito em 1994 como o
primeiro presidente negro da África do Sul, consolidando assim definitivamente o fim do regime de
apartheid e lutando para trazer a união à África do Sul, nomeadamente através do desporto. Sempre
preocupado com o combate às desigualdades sociais no seu país, Mandela liderou a África do Sul no
caminho na recuperação económica e manteve sempre um papel social ativo mesmo depois de se ter
retirado da vida política ativa.
Concretamente para o Direito Internacional, o seu legado encontra-se na centralidade que os Direito Humanos sempre ocuparam no seu discurso. Num convite que, se era especialmente dirigido à
África do Sul, não deixou de ter grande impacto na comunidade internacional, o discurso de Mandela
exorta a que os Direito Humanos ocupem no Direito Internacional o papel central, o conteúdo axiológico essencial e o fundamento último da sua intervenção, na construção da Sociedade Internacional.
Não esqueçamos o enorme apoio que a sua situação encontrou no seio da comunidade internacional, marcando assim o ponto de viragem na política de tolerância em relação ao regime de apartheid.
Veio a falecer a 5 de Dezembro de 2013, depois de um prolongado período de preocupação com
o seu estado de saúde. Contudo, o seu legado será certamente sempre considerado e admirado como um dos mais marcantes da história do século XX.
João Francisco Diogo - Sócio Júnior da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
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Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
Jordânia eleita para o Conselho de Segurança
O Reino hashemita da Jordânia
foi eleito como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas por um mandato de 2 anos, assumindo assim o
lugar deixado pela recusa da Arábia
Saudita.
A rejeição do governo saudita
em tomar assento no Conselho de
Segurança foi justificada como um
protesto pela impotência do órgão
face à guerra civil na Síria, às baixas
civis causadas pelo conflito e a falta
de reconhecimento de responsabi-
lidade.
Para além dos cinco membros
permanentes do CS com poder de
veto, a Jordânia juntou-se a 1 de Janeiro aos membros não-permanentes Chade, Nigéria, Chile e Lituânia.•
Diminuição significativa de pirataria na Somália
De acordo com os últimos dados publicados a 2 de Janeiro de
2014 pela Marinha dos Estados
Unidos da América, o ano de 2013
marcou uma significativa diminuição de atividades de pirataria na
região do Corno de África. De 50
sequestros e 130 tentativas em
2009, 7 sequestros e 25 tentativas
em 2012, em 2013 a Marinha dos
EUA registou apenas 9 suspeitas de
tentativa de sequestro nos mares
entre o Iémen e a Somália.
São apontadas como explicações para os números registados
em 2013, em grande medida, duas
ordens de razões. Em primeiro lugar, a forte presença militar naval
que a comunidade internacional,
encabeçada pela NATO e pela União Europeia, manteve naquela região desde 2008: chegaram a estar
estacionados nessa região um total
de 20 navios de guerra num mesmo
período, oriundos de vários Estados
e encarregues da prevenção e combate a atos de pirataria na região,
incluindo a participação da Marinha Portuguesa. Por outro lado, a
aplicação de medidas anti-pirataria
por parte de navios que circulam
naquelas águas: turnos mais curtos
para aumentar o estado de alerta,
recolha de escadas quando em alto
mar, circulação a maior velocidade
e recrutamento de profissionais de
segurança (normalmente, ex-marines das marinhas do Reino Unido e
dos EUA) para acompanhar o navio,
têm ajudado a melhorar a segurança da importante rota comercial
que atravessa esta região.
Ainda assim, especialistas em
segurança têm alertado para o facto de que um ano como 2013 em
termos de segurança no mar pode
não se repetir se não forem implementadas medidas de longo prazo
em terra. De facto, prevê-se que
cortes orçamentais nos EUA possam afetar a presença militar na região e que uma transição de uma
presença militar marcadamente
ocidental, liderada pela NATO e pela UE, para uma presença militar
dos principais beneficiários do comércio naquela região, nomeada-
mente Arábia Saudita e China em
polos opostos do comércio petrolífero, pode estar eminente. Teme-se ainda que as empresas cujos
navios frequentam aquelas águas
possam vir a diminuir os níveis de
proteção dos seus navios, com base
nos seus elevados custos. A resolução das questões internas na Somália deverá ser a única via para resolver a longo prazo os problemas de
segurança daquela região.
Entretanto, 2013 marcou o
agravar na situação de segurança
na região do Delta do Níger e do
Golfo da Guiné: os petroleiros naquela região são os principais alvos
dos piratas, tendo sido contabilizados no ano que passou 9 sequestros e 48 confrontações com grupos de piratas. •
Pirata somali perto de um navio de pesca de Taiwan que deu à costa depois dos piratas
terem recebido um resgate e libertado a tripulação - Hobyo, Somália, 23 set. 2012
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Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
ONU poderá receber queixas de crianças cujos direitos foram violados
O Comité para os Direitos das
Crianças (órgão da ONU criado em
virtude dos art.º 43.º da Convenção
sobre os Direitos da Criança com o
objetivo de controlar a sua aplicação) poderá agora receber queixas
de crianças (ou seus representantes) que tenham visto os seus direitos violados.
Foi a Costa Rica que, ao tornar-se, a 14 de janeiro, o décimo
Estado a ratificar o Protocolo Facultativo Relativo aos Procedimentos
Crianças podem agora procurar justiça nos
órgãos da ONU
de Comunicação, anexo à Convenção, veio permitir a entrada em
vigor deste instrumento adotado
pela Assembleia Geral das Nações
Unidas a 19 de dezembro de 2011.
Em consequência, a partir de
abril (data em que se iniciará a produção de efeitos), crianças ou grupos de crianças de países que tenham ratificado o Protocolo poderão, esgotadas todas os vias judiciais nos seus países, submeter ao
Comité queixas quanto a violações
específicas relacionadas com a Convenção. É-lhes, assim, conferida a
possibilidade de exercerem plenamente os seus direitos e de terem
acesso aos organismos internacionais para a sua tutela, possibilidade
já conferida a adultos por vários
instrumentos de direitos humanos.
Adeus a Ariel Sharon
Ariel Sharon, nascido Ariel
Scheinermann, faleceu no passado
dia 11 de Janeiro com a idade de 85
anos na cidade israelita de Tel-Aviv.
A morte deste político e antigo
general, cuja vida se entrelaça com
a história moderna da construção
do Estado de Israel, promete reacender velhas querelas e debates,
nomeadamente os alegados massacres nos campos de refugiados palestinos e a retirada da Faixa de Gaza.
Tovah Lazaroff escreveu no
Jerusalem Post que Sharon foi
“talvez o mais venerado e muitas
vezes o mais insultado dos políticos,
classificado alternadamente como
um fazedor da paz e um belicista.
Durante décadas, os seus atos como comandante militar e político
moldaram tanto a perceção que Israel tem de si, como a imagem que
o mundo tem da nação judaica”.•
A UNICEF aplaudiu esta ratificação, frisando que a Convenção e os
seus três Protocolos são vitais para
as crianças mais vulneráveis a violações de direitos humanos, especialmente para aquelas excluídas e
marginalizadas, tais como crianças
com deficiências e de famílias indígenas ou minoritárias. Procedimentos especialmente sensíveis, atendendo à vulnerabilidade das crianças, e garantias adequadas serão
operacionalizadas para assegurar
que qualquer criança que apresente uma queixa será protegida e não
sofrerá represálias.
O Gabinete das Nações Unidas
para os Direitos Humanos já apelou
aos Governos que ainda não o fizeram para que ratifiquem este Protocolo. •
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Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
TRIBUNAIS INTERNACIONAIS
Reino Unido no Tribunal Penal Internacional
No passado dia 11 de Janeiro,
foi entregue no gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional, um vasto dossier com cerca de
250 páginas contendo alegações da
prática de crimes de guerra por
parte de altas patentes do Exército
do Reino Unido durante a invasão
do Iraque em 2003.
Este dossier, intitulado "The
Responsibility of UK Officials for
War Crimes Involving Systematic
Detainee Abuse in Iraq from
2003-2008", foi preparado pela
Public Interest Lawyers (PIL), sedeada em Birmingham, e pelo
European Center for Constitutional
and Human Rights (ECCHR), sedeado em Berlim, fruto de uma investigação de vários anos. Este documento recolhe os testemunhos de
mais de 400 iraquianos e relata
“milhares de alegações de maus
tratos correspondentes a crimes de
guerra de tortura ou tratamento
cruel, inumano ou degradante”. Entre os casos relatados encontram-se situações de tortura das
mais variadas formas, ameaças de
morte, execuções encenadas, violência sexual e humilhação cultural
e religiosa. A confirmarem-se estas
alegações, altas figuras do exército
britânico que “sabiam ou deveriam
ter conhecimento” destas situações
poderão ser acusadas e condenadas pela prática de crimes de guerra, tal como tipificados no Artigo 15
do Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional, incluindo o General Sir Peter Wall, a mais alta figura das forças armadas britânicas
e um dos visados no documento.
Por seu lado, os apoiantes do
documento e da queixa apresentada junto do TPI alegam que a quantidade avassaladora de alegações e
o detalhe com que são descritas
merecerão só por si a atenção deste Tribunal e darão início a investigações formais; por outro lado, defendem que será um desafio ao Tribunal para demonstrar que, nestas
situações, não existe qualquer duplicidade de tratamento em função
dos países envolvidos. Da parte do
Governo Britânico, William Hague,
Foreign Secretary, em declarações
à Sky News, afastou já a necessidade de mais investigações por parte
do TPI, uma vez que muitas destas
alegações já foram ou estão a ser
alvo de investigações internas. •
França julga suspeito de genocídio no Ruanda
Iniciou-se em França, no passado dia 4, o julgamento de Pascal
Simbikangwa, 54 anos, antigo capitão do exército do Ruanda, por
cumplicidade no genocídio e demais crimes contra a humanidade
cometidos naquele país em 1994.
Acusada de ter sido um obstá-
Um esboço do julgamento Photo: AFP/GETTY
culo à justiça durante os últimos 20
anos, albergando no seu território
um grande número de suspeitos
que o Ruanda queria levar a julgamento pelo genocídio dos tutsis
(entre Abril e Julho de 1994, 800
mil foram mortos pela maioria
hútu) e recusando-se a repatria-los,
França inicia agora uma processo
que é visto como “tardio”, mas
“bem vindo”, pelo Ministro da Justiça ruandês, Johnston Busingye.
Segundo o Ministro, este "não é
um momento para festejarmos, o
processo [de fazer justiça] mal começou, este é o primeiro caso em
20 anos e vamos segui-lo com mui-
to interesse". Busingye acrescentou
que a extradição "foi sempre a nossa primeira opção, mas sempre dissemos que se não o fizessem que
ao menos os julgassem". O seu Governo dará toda a colaboração a
França, caso esta seja solicitada.
Pascal Simbikangwa era capitão
do Exército e, segundo a acusação,
fornecia armas aos hutus – era conhecido como "o torturador". Procurado pela Interpol por crimes
contra a humanidade e crime organizado, foi preso, em 2008 em
Mayotte, a ilha francesa das Comores, onde se refugiou, por falsificação e tráfico de documentos. •
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Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
Tribunais da ONU podem ajudar os Estados na prossecução da justiça criminal
Alguns magistrados de Tribunais
das Nações Unidas afirmaram, a 5
de dezembro de 2013, perante o
Conselho de Segurança, que os trabalhos judiciais do conflito dos Balcãs bem como do genocídio do Ruanda – que brevemente se concluirão – poderão constituir material
importante para ensinar os Estados
a construir sistemas nacionais mais
complexos e seguros no que toca à
prossecução da justiça criminal.
Em 2013, celebrou-se os vinte
anos da constituição do Tribunal
Penal
Internacional
para
a
Ex-Jugoslávia (TPIJ) que tinha como
objeto principal a aferição da responsabilidade criminal daqueles
que, durante os conflitos dos Balcãs nos anos 90 do séc. XX, cometeram crimes internacionais (crimes
de guerra e violações de direitos
humanitários). Theodor Meron,
Juiz-Presidente do TPIJ afirmou ao
Conselho de Segurança da ONU
que “o que o Tribunal conseguiu alcançar ao longo de duas décadas
foi extraordinário”.
Todo o trabalho do Tribunal, no
que toca ao direito processual e
substantivo, bem como à assistência judicial promovida perante os
tribunais domésticos, podem servir
de case-study para futuras situações análogas com que a comunidade internacional possa deparar-se. E o mesmo sucede com o
Tribunal Penal Internacional para o
Ruanda (TPIR).
Serge Brammertz, Procurador
do TPIJ, referiu que “há lições que
devem ser extraídas dos diferentes
modelos e estruturas judiciárias
adotadas pelos Estados da antiga
Jugoslávia que assumiram responsabilidade (jurisdição e competên-
cia) pelos diversos casos de criminalidade internacional”. Para além
disso, reiterou que deverão ser
igualmente extraídas lições de todo
o processo de transferência de
competência das instâncias judiciárias internacionais para os tribunais
domésticos.
Segundo
Hassan
Bubacar
Jallow, Procurador do TPIR,
“conforme esperado, o fecho iminente dos tribunais ad hoc tem gerado um vasto interesse dentro da
comunidade internacional no que
toca àquilo que foi o potencial das
suas práticas judiciárias e bem assim, a outros aspetos relacionados
com o legado desses tribunais na
construção e composição das instâncias nacionais e internacionais
especializadas no tratamento judicial de crimes internacionais”. •
CONFLITOS
Nações Unidas condenam ataque ao Ministério da Defesa no Iémen
No passado dia 5 de Dezembro
Ban Ki-moon condenou o ataque
terrorista ao Ministério da Defesa
do Iémen, que resultou em 20
mortos e um número de feridos
ainda por apurar.
O Iémen tem vindo a desenvolver um processo de mudança política para um sistema democrático,
agora com um governo liderado
pelo
Presidente
Abdrabuh
Mansour Hadi Mansour. Este
processo envolve atualmente um
debate alargado em todo o país,
que se espera que evolua para a
redação de uma constituição e
para a convocação de eleições
legislativas no próximo ano.
O ataque foi também condenado pelo Conselho de Segurança das
Nações Unidas, que destacou a necessidade de levar a justiça os res-
ponsáveis, organizadores e colaboradores deste ataque terrorista. •
Presidente Abdrabuh Mansour
Hadi Mansour
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Conversações de Genebra terminam sem progressos
“Não fizemos quaisquer progressos” afirmou Lakhdar Brahimi,
enviado especial das Nações Unidas e da Liga Árabe para a Síria, numa conferência de imprensa em
Genebra, local onde decorreram as
conversações que juntaram durante 10 dias representantes do governo e da oposição síria.
A reunião de Genebra foi apresentada apenas como um primeiro
passo num processo que se pode
prolongar durante anos. A segunda
etapa tem já data marcada, a 10 de
Fevereiro, mas Brahimi disse que
só a Coligação Nacional Síria confirmou para já a sua presença (a delegação do governo terá que consultar a capital).
Lakhdar Brahimi admitiu que
este foi um “início muito modesto”,
mas diz que as duas delegações
têm mais pontos em comum do
que estão dispostas a admitir. Ambos “acreditam que o futuro da Síria pode apenas ser decidido pelo
seu povo” e reconhecem “que a situação humanitária em que se encontra a população deve ter uma
solução rápida”, resumiu. De facto,
um dos assuntos mais prementes
tem sido o acesso a ajuda humanitária por parte dos 1.6 milhões de
sírios, alguns dos quais estão cercados há quase dois anos, sem abastecimentos regulares de alimentos,
e neste tópico não se registou qualquer progresso.
A base das conversações terá sido a implementação do plano de
ação adotado no chamado
“Comunicado de Genebra” de
2012, documento aprovado na primeira conferência internacional sobre o conflito que define as etapas
necessárias para acabar com o conflito, apelando à formação de um
governo de transição seguida da
convocação de eleições livres. Ambas as partes concordaram em usar
tal documento nas negociações,
mas com assinaladas reservas, particularmente da parte do governo.
Entre as situações mais urgentes está Yarmuk, o campo de refugiados palestinianos em Damasco
cercado desde Junho pelo Exército
sírio e onde já 87 pessoas morreram à fome ou por falta de medicamentos. Sexta-feira, a ONU conseguiu fazer entrar no campo um segundo carregamento de ajuda, mas
as rações de comida entregues nos
últimos dois dias chegam apenas
para metade das 18 mil pessoas
que ali permanecem.
Valeria
Avos,
Secretáriageral-adjunta para Assuntos Huma-
nitários e Coordenadora de Socorro
de Urgência das Nações Unidas manifestou de imediato a sua
“profunda frustração e desapontamento” perante a impossibilidade
de chegar a acordo sobre a prestação de auxílio às populações e incitou a uma atuação urgente, ao levantamento dos cercos e à celebração de acordos de cessar-fogo que
permitam enviar ajuda a estas
pessoas. •
Lakhdar Brahimi (segundo da esquerda),
chega à conferência de impensa.
Multidões desesperadas aguardam ajuda
humanitária no campo de refugiados
Yarmouk, em Damascus.
Conferência de Segurança de Munique: Ocidente apoia Euromaidan
A recusa da Ucrânia, em Novembro do ano passado, em assinar um pacto de comércio livre
com a União Europeia motivou um
grande número de protestos contra
o Governo e o Presidente Viktor
Ianukovich.
A
denominada
Euromaidan ainda não tem um fim
à vista e as palavras “Guerra Civil”
já começam a ser proferidas, numa
altura em que os confrontos entre
os manifestantes e a polícia já fize-
ram, pelo menos, mais de 2 dezenas de mortos.
Algumas concessões já foram
feitas – a demissão do Governo, o
convite à oposição para integrar
um novo Governo, a libertação →
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dos manifestantes detidos -, mas
não as suficientes. Os manifestantes demandam a demissão do Presidente Ianukovich e o fim da subjugação da Ucrânia, um país integrante da extinta União Soviética, à
Rússia de Putin. A Euromaidan luta,
não só pela aproximação ao Ocidente, como também contra a corrupção do Governo de Ianukovich e
a brutalidade da resposta política
(que intentou restringir fortemente
o direito à manifestação) e policial.
Com efeito, sob a égide do Conselho da Europa e seguindo as recomendações da Human Rights
Watch, o Governo e oposição ucranianos já chegaram a acordo para
autorizar uma investigação sobre a
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violência e repressão policial das
manifestações.
O Ocidente já se pronunciou sobre os confrontos, na Conferência
de Segurança de Munique que se
realizou nos dias 1 e 2 de Fevereiro.
John Kerry, o secretário de Estado
norte-americano, afirmou que “os
Estados Unidos e a União Europeia
estão ao lado do povo ucraniano
nesta luta”, depois de chamar a
atenção para “uma tendência estranha em demasiadas partes da
Europa Central e de Leste e dos
Balcãs”. Por sua vez, Herman van
Rompuy, Presidente do Conselho
Europeu, assegurou que “o futuro
da Ucrânia está com a União Europeia”.
Sergei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, preferiu
condenar a violência dos manifestantes e criticar a pressão de
Washington e Bruxelas sobre o Governo ucraniano, dizendo que “está
a ser imposta uma escolha à Ucrânia” e garantindo que “a Rússia não
irá fazer parte disso”. •
As manifestações persistem após a
demissão do Governo ucraniano.
ONU e UE tentam conter a atual crise na República Centro Africana
Temendo que a violência na República Centro Africana (RCA) possa
dividir o país com linhas religiosas e
étnicas, podendo resvalar para uma
situação incontrolável, o Conselho
de Segurança da ONU autorizou em
Dezembro a criação de uma força
de manutenção da paz, a ser apoiada por tropas francesas.
O país vive aterrorizado há quase um ano pelos confrontos entre
milícias rivais, que já fizeram milhares de mortos. Em Março, o Presidente François Bozizé foi deposto
pelos Séléka, um grupo rebelde de
maioria muçulmana, e substituído
por Michel Djotodia. Rapidamente,
os Séléka começaram a espalhar o
terror pelas comunidades cristãs,
maioritárias no país. Em resposta,
começaram a surgir milícias de autodefesa,
denominadas
anti-balaka, e os combates
escalaram.
Com a deterioração da situação
no país, caracterizada por um total
desrespeito pela lei e por uma generalizada desconsideração pelos
direitos humanos, nomeadamente
pelos rebeldes Séléka e milícias, o
Conselho de Segurança adotou, por
unanimidade, uma resolução autorizando a criação uma Missão Internacional de Apoio (Misca), bem como o envio de tropas francesas para o país, com o objetivo de apoiar
esta missão. A resolução impõe ainda um regime sancionatório ao
país, que inclui um embargo de
armas de um ano.
Também a UE já desbloqueou
150 milhões de euros para ajudar a
conter a crise na RCA e aprovou o
envio de uma força europeia de
500 soldados. No entanto, nem assim a violência foi contida,
tendo-se, aliás, alastrado a outras
regiões do país, preocupando a
comunidade internacional. A crise
humanitária na RCA é um dos
temas que domina a 22ª Cimeira da
União Africana, em Adis Abeba
(Etiópia). O Comissário Europeu
para o Desenvolvimento, Andris
Piebalgs, anunciou no passado dia
31 que a União Europeia vai
disponibilizar mais 45 milhões de
euros para apoiar o fim do conflito
na República Centro Africana. •
Ajuda alimentar chega a um campo de
desalojados em Bangui, RCA.
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Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
DOUTOR MATEUS KOWALSKI - Ministério dos Negócios Estrangeiros
OPINIO IURIS
Direito Internacional ou Política?
A problemática em torno da relação entre Direito Internacional e
política, que emerge ao nível do
fundamento do próprio Direito Internacional, não é uma problemática de hoje. É, porém, uma problemática sempre atual e constantemente renovada. Pensar, desenvolver e aplicar o Direito Internacional
exige uma constante reflexão sobre
a natureza e fundamento da sua juridicidade. Uma vez que o Direito
Internacional é necessariamente
contextual, é no quotidiano social
que devem ser procurados os interesses, as expectativas e as práticas
que alimentem esta reflexão. A sucessão de acontecimentos que conduziu à revisão das Regras de Procedimento e Prova do Tribunal Penal Internacional (RPP) oferece um
bom contexto para este debate.
O Tribunal Penal Internacional
(TPI) encontra-se a apreciar a situação da violência pós-eleitoral no
Quénia em 2007-2008 no curso da
qual terão sido cometidos crimes
contra a humanidade. Entre os acusados estão Uhuru Kenyatta e
William Ruto, respetivamente Presidente e Vice-Presidente do Quénia. Ambos obtiveram escusa condicionada e temporária de comparência no Tribunal de modo a poderem exercer cabalmente as suas
funções oficiais, nomeadamente no
contexto do ataque terrorista em
Nairobi a 21-24 de Setembro últi-
mo. Posteriormente, o Quénia, na
sequência de uma decisão da União
Africana, solicitou ao Conselho de
Segurança o adiamento por 12 meses de qualquer procedimento no
TPI relativo à situação no Quénia,
nos termos do artigo 16.º do Estatuto do TPI. O argumento era o de
que a presença dos dois acusados
na Haia, ao invés de no Quénia, implicava um agravamento da ameaça
à paz e segurança internacionais,
afirmando implicitamente que se
estava perante um conflito entre
paz e justiça. Em reunião de 15 de
Novembro, o Conselho de Segurança não adotou a decisão de adiamento pela margem de apenas um
voto.
A questão deslocou-se então
para a Assembleia dos Estados Parte no Estatuto do TPI, que teve lugar na Haia entre 20 e 28 de Novembro. Gerou-se uma certa tensão em torno desta questão, nomeadamente face ao argumento
(renovado) de que são os chefes de
Estado e de Governo dos países
africanos quem melhor pode avaliar sobre as implicações do exercício
da justiça sobre os seus líderes na
paz e segurança local e regional, e
não o TPI. Chegou mesmo a antever-se uma crise grave no TPI, com
sugestões de revisão do Estatuto,
incluindo a revisão do artigo 27.º
que determina a inexistência de
imunidade de jurisdição. A válvula
de escape acabou por ser uma alteração das RPP (e não a revisão do
Estatuto). Apesar do Estatuto estabelecer que o arguido tem de estar
presente no Tribunal durante o julgamento, passaram a ser aceites
possibilidades excecionais de não
presença dos acusados, nomeadamente por recurso à videoconferência ou pela ausência consentida
pelo Tribunal.
Esta questão, que dominou o
TPI durante aqueles meses, tem
uma percetível componente política, o que pode levar a (re)
questionar até que ponto o Direito
Internacional não se confunde com
política (incluindo mesmo na sua
versão
mais
simplista
de
realpolitik). Não se pretende neste
curto espaço ensaiar uma resposta
a esta questão ou sequer analisá-la
no caso concreto do TPI. Mas a problemática é estrutural, e como tal
poderá ser útil pelo menos contribuir com algumas pistas gerais de
reflexão.
A relação entre Direito Internacional e política pode ser sintetizada em quatro linhas de abordagem.
Primeiro, uma abordagem normativista-positivista que exalta a norma
pura expurgada de elementos
não-jurídicos. Nesta linha de
raciocínio, as alterações das RPP
não têm fundamento suficiente. Em
segundo lugar, uma abordagem
que valoriza mais o contexto da
normatividade e menos o seu
caráter jurídico-vinculativo. Não
sendo metodologicamente correto
confundir política com Direito
Internacional, este último não é
certamente neutro na medida em
que deve ser espelho do contexto
político-social em que vive. O foco
deve, para esta abordagem, ser
sempre político, o que significa que
mesmo que o Direito exista, o seu
conteúdo
não
pode
ser
determinado fora de uma análise
política. Nesta ótica, a revisão das
RPP foi o resultado necessário na
medida em que permitiu superar
uma tensão que punha em causa a
própria instituição TPI. Depois, uma
abordagem política que vê o Direito
Internacional como instrumento da
ação política dos Estados. O Direito
Internacional assume, assim, uma
função técnica, tornando-o num
simples instrumento de política
estadual, ao invés de adquirir o
propósito de projeto político. Nesta
linha de pensamento, a tensão sobre a situação no Quénia refletiu
uma (legítima) luta de interesses divergentes: os de certos Estados
africanos que procuram proteger os
seus líderes contra a ação penal pelo TPI; os daqueles que defendem a
integridade do TPI como forma de
exercer a ação penal sobre altos
responsáveis por crimes graves de
relevância internacional, sem hostilizar aqueles Estados africanos. A
revisão das RPP foi uma válvula de
escape para acomodação de interesses, refletindo um consenso político. Finalmente, e em quarto lugar, a abordagem segundo a qual o
Direito Internacional e política se
confundem. Para esta perspetiva, a
produção normativa não é mais do
que a manipulação de uma certa
conceção de Direito pela política
em função de interesses e opções
da classe política dominante. Os detentores do poder político, os mais
favorecidos e, em geral, os com
maior capacidade de influência encetam um discurso jurídico não em
proveito da sociedade mas em benefício dos seus interesses particulares. Para esta perspetiva, o processo de revisão das RPP do TPI em
todo o seu contexto põe em causa
o Direito Internacional que deveria
ter por ambição ontológica a realização da justiça. Para este posicio-
FICHA TÉCNICA
Redação, edição e design gráfico por Rita Teixeira, João Francisco Diogo, João
Barreiros e Ricardo Bastos (Sócios Júnior da SPDI) e Miguel Calado Moura (Sócio
Efetivo). Agradecimentos ao Doutor Mateus Kowalski.
namento, o processo apenas veio
contribuir para o enfraquecimento
do TPI e para que o Tribunal seja
posto em causa enquanto instituição de justiça.
A fundamentalidade deste debate é incontornável e bem percetível. Um debate que necessariamente deve ser inclusivo com a participação da Academia, dos produtores
de Direito Internacional, dos seus
aplicadores e dos seus destinatários. Um debate de sempre e que
casos como o que resultou na revisão das RPP fazem recordar a sua
constante atualidade. Um debate
que deve ser interdisciplinar e que
deve ter por referentes uma dimensão ética, o contexto político-social,
a legitimidade da produção normativa, a valorização do ser humano e
da sua experiência. Um debate em
que a justiça seja fator determinante da transformação social progressista por via do Direito Internacional, e não o contrário. Uma reflexão que poderá mesmo convidar a
questionar paradigmas vigentes. •