News Gentium - Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
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News Gentium Número III, Ano II Dezembro 2013 e Janeiro 2014 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional Continuando um longo caminho para a Liberdade Neste número: Diminuição significativa de pirataria na Somália 2 ONU poderá receber queixas de crianças cujos direitos foram violados 3 Reino Unido no Tribunal Penal Internacional 4 Conversações de Genebra terminam sem progressos 6 Direito Internacional ou Política? (Doutor Mateus Kowalski) 8 A abrir esta edição da News Gentium, lembramos uma das mais notáveis e incontornáveis figuras do século XX e que nos deixou recentemente: Nelson Mandela. A sua vida, e o seu legado afetaram de modo transversal grandes setores da vida política sul-africana e internacional e deixaram também a sua marca no Direito Internacional. Mandela, nascido a 18 de Julho de 1918 na aldeia de Mvezo, Umtata, na então Província do Cabo, desde a sua juventude que sentiu o apelo de combater o regime profundamente racista do apartheid na África do Sul, tendo militado em vários grupos nacionalistas e anti-apartheid, nomeadamente no ANC. Esta atividade revolucionária, na sua maior parte clandestina, custou-lhe a liberdade durante 27 longos anos, durante os quais sofreu as duras penas de uma prisão psicológica e fisicamente degradante. Ainda assim, foi na prisão que, depois de já ter fundado a primeira sociedade de advogados sul-africana gerida por negros, concluiu os seus estudos em Direito. Em 1990, depois de enormes pressões internacionais, Mandela surge finalmente como um homem livre de novo no panorama político nacional e internacional, tendo imediatamente iniciado negociações com o governo de Frederik de Klerk para o desmantelamento do regime do apartheid. Foi eleito em 1994 como o primeiro presidente negro da África do Sul, consolidando assim definitivamente o fim do regime de apartheid e lutando para trazer a união à África do Sul, nomeadamente através do desporto. Sempre preocupado com o combate às desigualdades sociais no seu país, Mandela liderou a África do Sul no caminho na recuperação económica e manteve sempre um papel social ativo mesmo depois de se ter retirado da vida política ativa. Concretamente para o Direito Internacional, o seu legado encontra-se na centralidade que os Direito Humanos sempre ocuparam no seu discurso. Num convite que, se era especialmente dirigido à África do Sul, não deixou de ter grande impacto na comunidade internacional, o discurso de Mandela exorta a que os Direito Humanos ocupem no Direito Internacional o papel central, o conteúdo axiológico essencial e o fundamento último da sua intervenção, na construção da Sociedade Internacional. Não esqueçamos o enorme apoio que a sua situação encontrou no seio da comunidade internacional, marcando assim o ponto de viragem na política de tolerância em relação ao regime de apartheid. Veio a falecer a 5 de Dezembro de 2013, depois de um prolongado período de preocupação com o seu estado de saúde. Contudo, o seu legado será certamente sempre considerado e admirado como um dos mais marcantes da história do século XX. João Francisco Diogo - Sócio Júnior da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional Página 2 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional Jordânia eleita para o Conselho de Segurança O Reino hashemita da Jordânia foi eleito como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas por um mandato de 2 anos, assumindo assim o lugar deixado pela recusa da Arábia Saudita. A rejeição do governo saudita em tomar assento no Conselho de Segurança foi justificada como um protesto pela impotência do órgão face à guerra civil na Síria, às baixas civis causadas pelo conflito e a falta de reconhecimento de responsabi- lidade. Para além dos cinco membros permanentes do CS com poder de veto, a Jordânia juntou-se a 1 de Janeiro aos membros não-permanentes Chade, Nigéria, Chile e Lituânia.• Diminuição significativa de pirataria na Somália De acordo com os últimos dados publicados a 2 de Janeiro de 2014 pela Marinha dos Estados Unidos da América, o ano de 2013 marcou uma significativa diminuição de atividades de pirataria na região do Corno de África. De 50 sequestros e 130 tentativas em 2009, 7 sequestros e 25 tentativas em 2012, em 2013 a Marinha dos EUA registou apenas 9 suspeitas de tentativa de sequestro nos mares entre o Iémen e a Somália. São apontadas como explicações para os números registados em 2013, em grande medida, duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a forte presença militar naval que a comunidade internacional, encabeçada pela NATO e pela União Europeia, manteve naquela região desde 2008: chegaram a estar estacionados nessa região um total de 20 navios de guerra num mesmo período, oriundos de vários Estados e encarregues da prevenção e combate a atos de pirataria na região, incluindo a participação da Marinha Portuguesa. Por outro lado, a aplicação de medidas anti-pirataria por parte de navios que circulam naquelas águas: turnos mais curtos para aumentar o estado de alerta, recolha de escadas quando em alto mar, circulação a maior velocidade e recrutamento de profissionais de segurança (normalmente, ex-marines das marinhas do Reino Unido e dos EUA) para acompanhar o navio, têm ajudado a melhorar a segurança da importante rota comercial que atravessa esta região. Ainda assim, especialistas em segurança têm alertado para o facto de que um ano como 2013 em termos de segurança no mar pode não se repetir se não forem implementadas medidas de longo prazo em terra. De facto, prevê-se que cortes orçamentais nos EUA possam afetar a presença militar na região e que uma transição de uma presença militar marcadamente ocidental, liderada pela NATO e pela UE, para uma presença militar dos principais beneficiários do comércio naquela região, nomeada- mente Arábia Saudita e China em polos opostos do comércio petrolífero, pode estar eminente. Teme-se ainda que as empresas cujos navios frequentam aquelas águas possam vir a diminuir os níveis de proteção dos seus navios, com base nos seus elevados custos. A resolução das questões internas na Somália deverá ser a única via para resolver a longo prazo os problemas de segurança daquela região. Entretanto, 2013 marcou o agravar na situação de segurança na região do Delta do Níger e do Golfo da Guiné: os petroleiros naquela região são os principais alvos dos piratas, tendo sido contabilizados no ano que passou 9 sequestros e 48 confrontações com grupos de piratas. • Pirata somali perto de um navio de pesca de Taiwan que deu à costa depois dos piratas terem recebido um resgate e libertado a tripulação - Hobyo, Somália, 23 set. 2012 Página 3 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional ONU poderá receber queixas de crianças cujos direitos foram violados O Comité para os Direitos das Crianças (órgão da ONU criado em virtude dos art.º 43.º da Convenção sobre os Direitos da Criança com o objetivo de controlar a sua aplicação) poderá agora receber queixas de crianças (ou seus representantes) que tenham visto os seus direitos violados. Foi a Costa Rica que, ao tornar-se, a 14 de janeiro, o décimo Estado a ratificar o Protocolo Facultativo Relativo aos Procedimentos Crianças podem agora procurar justiça nos órgãos da ONU de Comunicação, anexo à Convenção, veio permitir a entrada em vigor deste instrumento adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 19 de dezembro de 2011. Em consequência, a partir de abril (data em que se iniciará a produção de efeitos), crianças ou grupos de crianças de países que tenham ratificado o Protocolo poderão, esgotadas todas os vias judiciais nos seus países, submeter ao Comité queixas quanto a violações específicas relacionadas com a Convenção. É-lhes, assim, conferida a possibilidade de exercerem plenamente os seus direitos e de terem acesso aos organismos internacionais para a sua tutela, possibilidade já conferida a adultos por vários instrumentos de direitos humanos. Adeus a Ariel Sharon Ariel Sharon, nascido Ariel Scheinermann, faleceu no passado dia 11 de Janeiro com a idade de 85 anos na cidade israelita de Tel-Aviv. A morte deste político e antigo general, cuja vida se entrelaça com a história moderna da construção do Estado de Israel, promete reacender velhas querelas e debates, nomeadamente os alegados massacres nos campos de refugiados palestinos e a retirada da Faixa de Gaza. Tovah Lazaroff escreveu no Jerusalem Post que Sharon foi “talvez o mais venerado e muitas vezes o mais insultado dos políticos, classificado alternadamente como um fazedor da paz e um belicista. Durante décadas, os seus atos como comandante militar e político moldaram tanto a perceção que Israel tem de si, como a imagem que o mundo tem da nação judaica”.• A UNICEF aplaudiu esta ratificação, frisando que a Convenção e os seus três Protocolos são vitais para as crianças mais vulneráveis a violações de direitos humanos, especialmente para aquelas excluídas e marginalizadas, tais como crianças com deficiências e de famílias indígenas ou minoritárias. Procedimentos especialmente sensíveis, atendendo à vulnerabilidade das crianças, e garantias adequadas serão operacionalizadas para assegurar que qualquer criança que apresente uma queixa será protegida e não sofrerá represálias. O Gabinete das Nações Unidas para os Direitos Humanos já apelou aos Governos que ainda não o fizeram para que ratifiquem este Protocolo. • Página 4 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional TRIBUNAIS INTERNACIONAIS Reino Unido no Tribunal Penal Internacional No passado dia 11 de Janeiro, foi entregue no gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional, um vasto dossier com cerca de 250 páginas contendo alegações da prática de crimes de guerra por parte de altas patentes do Exército do Reino Unido durante a invasão do Iraque em 2003. Este dossier, intitulado "The Responsibility of UK Officials for War Crimes Involving Systematic Detainee Abuse in Iraq from 2003-2008", foi preparado pela Public Interest Lawyers (PIL), sedeada em Birmingham, e pelo European Center for Constitutional and Human Rights (ECCHR), sedeado em Berlim, fruto de uma investigação de vários anos. Este documento recolhe os testemunhos de mais de 400 iraquianos e relata “milhares de alegações de maus tratos correspondentes a crimes de guerra de tortura ou tratamento cruel, inumano ou degradante”. Entre os casos relatados encontram-se situações de tortura das mais variadas formas, ameaças de morte, execuções encenadas, violência sexual e humilhação cultural e religiosa. A confirmarem-se estas alegações, altas figuras do exército britânico que “sabiam ou deveriam ter conhecimento” destas situações poderão ser acusadas e condenadas pela prática de crimes de guerra, tal como tipificados no Artigo 15 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, incluindo o General Sir Peter Wall, a mais alta figura das forças armadas britânicas e um dos visados no documento. Por seu lado, os apoiantes do documento e da queixa apresentada junto do TPI alegam que a quantidade avassaladora de alegações e o detalhe com que são descritas merecerão só por si a atenção deste Tribunal e darão início a investigações formais; por outro lado, defendem que será um desafio ao Tribunal para demonstrar que, nestas situações, não existe qualquer duplicidade de tratamento em função dos países envolvidos. Da parte do Governo Britânico, William Hague, Foreign Secretary, em declarações à Sky News, afastou já a necessidade de mais investigações por parte do TPI, uma vez que muitas destas alegações já foram ou estão a ser alvo de investigações internas. • França julga suspeito de genocídio no Ruanda Iniciou-se em França, no passado dia 4, o julgamento de Pascal Simbikangwa, 54 anos, antigo capitão do exército do Ruanda, por cumplicidade no genocídio e demais crimes contra a humanidade cometidos naquele país em 1994. Acusada de ter sido um obstá- Um esboço do julgamento Photo: AFP/GETTY culo à justiça durante os últimos 20 anos, albergando no seu território um grande número de suspeitos que o Ruanda queria levar a julgamento pelo genocídio dos tutsis (entre Abril e Julho de 1994, 800 mil foram mortos pela maioria hútu) e recusando-se a repatria-los, França inicia agora uma processo que é visto como “tardio”, mas “bem vindo”, pelo Ministro da Justiça ruandês, Johnston Busingye. Segundo o Ministro, este "não é um momento para festejarmos, o processo [de fazer justiça] mal começou, este é o primeiro caso em 20 anos e vamos segui-lo com mui- to interesse". Busingye acrescentou que a extradição "foi sempre a nossa primeira opção, mas sempre dissemos que se não o fizessem que ao menos os julgassem". O seu Governo dará toda a colaboração a França, caso esta seja solicitada. Pascal Simbikangwa era capitão do Exército e, segundo a acusação, fornecia armas aos hutus – era conhecido como "o torturador". Procurado pela Interpol por crimes contra a humanidade e crime organizado, foi preso, em 2008 em Mayotte, a ilha francesa das Comores, onde se refugiou, por falsificação e tráfico de documentos. • Página 5 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional Tribunais da ONU podem ajudar os Estados na prossecução da justiça criminal Alguns magistrados de Tribunais das Nações Unidas afirmaram, a 5 de dezembro de 2013, perante o Conselho de Segurança, que os trabalhos judiciais do conflito dos Balcãs bem como do genocídio do Ruanda – que brevemente se concluirão – poderão constituir material importante para ensinar os Estados a construir sistemas nacionais mais complexos e seguros no que toca à prossecução da justiça criminal. Em 2013, celebrou-se os vinte anos da constituição do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia (TPIJ) que tinha como objeto principal a aferição da responsabilidade criminal daqueles que, durante os conflitos dos Balcãs nos anos 90 do séc. XX, cometeram crimes internacionais (crimes de guerra e violações de direitos humanitários). Theodor Meron, Juiz-Presidente do TPIJ afirmou ao Conselho de Segurança da ONU que “o que o Tribunal conseguiu alcançar ao longo de duas décadas foi extraordinário”. Todo o trabalho do Tribunal, no que toca ao direito processual e substantivo, bem como à assistência judicial promovida perante os tribunais domésticos, podem servir de case-study para futuras situações análogas com que a comunidade internacional possa deparar-se. E o mesmo sucede com o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR). Serge Brammertz, Procurador do TPIJ, referiu que “há lições que devem ser extraídas dos diferentes modelos e estruturas judiciárias adotadas pelos Estados da antiga Jugoslávia que assumiram responsabilidade (jurisdição e competên- cia) pelos diversos casos de criminalidade internacional”. Para além disso, reiterou que deverão ser igualmente extraídas lições de todo o processo de transferência de competência das instâncias judiciárias internacionais para os tribunais domésticos. Segundo Hassan Bubacar Jallow, Procurador do TPIR, “conforme esperado, o fecho iminente dos tribunais ad hoc tem gerado um vasto interesse dentro da comunidade internacional no que toca àquilo que foi o potencial das suas práticas judiciárias e bem assim, a outros aspetos relacionados com o legado desses tribunais na construção e composição das instâncias nacionais e internacionais especializadas no tratamento judicial de crimes internacionais”. • CONFLITOS Nações Unidas condenam ataque ao Ministério da Defesa no Iémen No passado dia 5 de Dezembro Ban Ki-moon condenou o ataque terrorista ao Ministério da Defesa do Iémen, que resultou em 20 mortos e um número de feridos ainda por apurar. O Iémen tem vindo a desenvolver um processo de mudança política para um sistema democrático, agora com um governo liderado pelo Presidente Abdrabuh Mansour Hadi Mansour. Este processo envolve atualmente um debate alargado em todo o país, que se espera que evolua para a redação de uma constituição e para a convocação de eleições legislativas no próximo ano. O ataque foi também condenado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que destacou a necessidade de levar a justiça os res- ponsáveis, organizadores e colaboradores deste ataque terrorista. • Presidente Abdrabuh Mansour Hadi Mansour Página 6 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional Conversações de Genebra terminam sem progressos “Não fizemos quaisquer progressos” afirmou Lakhdar Brahimi, enviado especial das Nações Unidas e da Liga Árabe para a Síria, numa conferência de imprensa em Genebra, local onde decorreram as conversações que juntaram durante 10 dias representantes do governo e da oposição síria. A reunião de Genebra foi apresentada apenas como um primeiro passo num processo que se pode prolongar durante anos. A segunda etapa tem já data marcada, a 10 de Fevereiro, mas Brahimi disse que só a Coligação Nacional Síria confirmou para já a sua presença (a delegação do governo terá que consultar a capital). Lakhdar Brahimi admitiu que este foi um “início muito modesto”, mas diz que as duas delegações têm mais pontos em comum do que estão dispostas a admitir. Ambos “acreditam que o futuro da Síria pode apenas ser decidido pelo seu povo” e reconhecem “que a situação humanitária em que se encontra a população deve ter uma solução rápida”, resumiu. De facto, um dos assuntos mais prementes tem sido o acesso a ajuda humanitária por parte dos 1.6 milhões de sírios, alguns dos quais estão cercados há quase dois anos, sem abastecimentos regulares de alimentos, e neste tópico não se registou qualquer progresso. A base das conversações terá sido a implementação do plano de ação adotado no chamado “Comunicado de Genebra” de 2012, documento aprovado na primeira conferência internacional sobre o conflito que define as etapas necessárias para acabar com o conflito, apelando à formação de um governo de transição seguida da convocação de eleições livres. Ambas as partes concordaram em usar tal documento nas negociações, mas com assinaladas reservas, particularmente da parte do governo. Entre as situações mais urgentes está Yarmuk, o campo de refugiados palestinianos em Damasco cercado desde Junho pelo Exército sírio e onde já 87 pessoas morreram à fome ou por falta de medicamentos. Sexta-feira, a ONU conseguiu fazer entrar no campo um segundo carregamento de ajuda, mas as rações de comida entregues nos últimos dois dias chegam apenas para metade das 18 mil pessoas que ali permanecem. Valeria Avos, Secretáriageral-adjunta para Assuntos Huma- nitários e Coordenadora de Socorro de Urgência das Nações Unidas manifestou de imediato a sua “profunda frustração e desapontamento” perante a impossibilidade de chegar a acordo sobre a prestação de auxílio às populações e incitou a uma atuação urgente, ao levantamento dos cercos e à celebração de acordos de cessar-fogo que permitam enviar ajuda a estas pessoas. • Lakhdar Brahimi (segundo da esquerda), chega à conferência de impensa. Multidões desesperadas aguardam ajuda humanitária no campo de refugiados Yarmouk, em Damascus. Conferência de Segurança de Munique: Ocidente apoia Euromaidan A recusa da Ucrânia, em Novembro do ano passado, em assinar um pacto de comércio livre com a União Europeia motivou um grande número de protestos contra o Governo e o Presidente Viktor Ianukovich. A denominada Euromaidan ainda não tem um fim à vista e as palavras “Guerra Civil” já começam a ser proferidas, numa altura em que os confrontos entre os manifestantes e a polícia já fize- ram, pelo menos, mais de 2 dezenas de mortos. Algumas concessões já foram feitas – a demissão do Governo, o convite à oposição para integrar um novo Governo, a libertação → Página 7 dos manifestantes detidos -, mas não as suficientes. Os manifestantes demandam a demissão do Presidente Ianukovich e o fim da subjugação da Ucrânia, um país integrante da extinta União Soviética, à Rússia de Putin. A Euromaidan luta, não só pela aproximação ao Ocidente, como também contra a corrupção do Governo de Ianukovich e a brutalidade da resposta política (que intentou restringir fortemente o direito à manifestação) e policial. Com efeito, sob a égide do Conselho da Europa e seguindo as recomendações da Human Rights Watch, o Governo e oposição ucranianos já chegaram a acordo para autorizar uma investigação sobre a Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional violência e repressão policial das manifestações. O Ocidente já se pronunciou sobre os confrontos, na Conferência de Segurança de Munique que se realizou nos dias 1 e 2 de Fevereiro. John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, afirmou que “os Estados Unidos e a União Europeia estão ao lado do povo ucraniano nesta luta”, depois de chamar a atenção para “uma tendência estranha em demasiadas partes da Europa Central e de Leste e dos Balcãs”. Por sua vez, Herman van Rompuy, Presidente do Conselho Europeu, assegurou que “o futuro da Ucrânia está com a União Europeia”. Sergei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, preferiu condenar a violência dos manifestantes e criticar a pressão de Washington e Bruxelas sobre o Governo ucraniano, dizendo que “está a ser imposta uma escolha à Ucrânia” e garantindo que “a Rússia não irá fazer parte disso”. • As manifestações persistem após a demissão do Governo ucraniano. ONU e UE tentam conter a atual crise na República Centro Africana Temendo que a violência na República Centro Africana (RCA) possa dividir o país com linhas religiosas e étnicas, podendo resvalar para uma situação incontrolável, o Conselho de Segurança da ONU autorizou em Dezembro a criação de uma força de manutenção da paz, a ser apoiada por tropas francesas. O país vive aterrorizado há quase um ano pelos confrontos entre milícias rivais, que já fizeram milhares de mortos. Em Março, o Presidente François Bozizé foi deposto pelos Séléka, um grupo rebelde de maioria muçulmana, e substituído por Michel Djotodia. Rapidamente, os Séléka começaram a espalhar o terror pelas comunidades cristãs, maioritárias no país. Em resposta, começaram a surgir milícias de autodefesa, denominadas anti-balaka, e os combates escalaram. Com a deterioração da situação no país, caracterizada por um total desrespeito pela lei e por uma generalizada desconsideração pelos direitos humanos, nomeadamente pelos rebeldes Séléka e milícias, o Conselho de Segurança adotou, por unanimidade, uma resolução autorizando a criação uma Missão Internacional de Apoio (Misca), bem como o envio de tropas francesas para o país, com o objetivo de apoiar esta missão. A resolução impõe ainda um regime sancionatório ao país, que inclui um embargo de armas de um ano. Também a UE já desbloqueou 150 milhões de euros para ajudar a conter a crise na RCA e aprovou o envio de uma força europeia de 500 soldados. No entanto, nem assim a violência foi contida, tendo-se, aliás, alastrado a outras regiões do país, preocupando a comunidade internacional. A crise humanitária na RCA é um dos temas que domina a 22ª Cimeira da União Africana, em Adis Abeba (Etiópia). O Comissário Europeu para o Desenvolvimento, Andris Piebalgs, anunciou no passado dia 31 que a União Europeia vai disponibilizar mais 45 milhões de euros para apoiar o fim do conflito na República Centro Africana. • Ajuda alimentar chega a um campo de desalojados em Bangui, RCA. Página 8 Newsletter da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional DOUTOR MATEUS KOWALSKI - Ministério dos Negócios Estrangeiros OPINIO IURIS Direito Internacional ou Política? A problemática em torno da relação entre Direito Internacional e política, que emerge ao nível do fundamento do próprio Direito Internacional, não é uma problemática de hoje. É, porém, uma problemática sempre atual e constantemente renovada. Pensar, desenvolver e aplicar o Direito Internacional exige uma constante reflexão sobre a natureza e fundamento da sua juridicidade. Uma vez que o Direito Internacional é necessariamente contextual, é no quotidiano social que devem ser procurados os interesses, as expectativas e as práticas que alimentem esta reflexão. A sucessão de acontecimentos que conduziu à revisão das Regras de Procedimento e Prova do Tribunal Penal Internacional (RPP) oferece um bom contexto para este debate. O Tribunal Penal Internacional (TPI) encontra-se a apreciar a situação da violência pós-eleitoral no Quénia em 2007-2008 no curso da qual terão sido cometidos crimes contra a humanidade. Entre os acusados estão Uhuru Kenyatta e William Ruto, respetivamente Presidente e Vice-Presidente do Quénia. Ambos obtiveram escusa condicionada e temporária de comparência no Tribunal de modo a poderem exercer cabalmente as suas funções oficiais, nomeadamente no contexto do ataque terrorista em Nairobi a 21-24 de Setembro últi- mo. Posteriormente, o Quénia, na sequência de uma decisão da União Africana, solicitou ao Conselho de Segurança o adiamento por 12 meses de qualquer procedimento no TPI relativo à situação no Quénia, nos termos do artigo 16.º do Estatuto do TPI. O argumento era o de que a presença dos dois acusados na Haia, ao invés de no Quénia, implicava um agravamento da ameaça à paz e segurança internacionais, afirmando implicitamente que se estava perante um conflito entre paz e justiça. Em reunião de 15 de Novembro, o Conselho de Segurança não adotou a decisão de adiamento pela margem de apenas um voto. A questão deslocou-se então para a Assembleia dos Estados Parte no Estatuto do TPI, que teve lugar na Haia entre 20 e 28 de Novembro. Gerou-se uma certa tensão em torno desta questão, nomeadamente face ao argumento (renovado) de que são os chefes de Estado e de Governo dos países africanos quem melhor pode avaliar sobre as implicações do exercício da justiça sobre os seus líderes na paz e segurança local e regional, e não o TPI. Chegou mesmo a antever-se uma crise grave no TPI, com sugestões de revisão do Estatuto, incluindo a revisão do artigo 27.º que determina a inexistência de imunidade de jurisdição. A válvula de escape acabou por ser uma alteração das RPP (e não a revisão do Estatuto). Apesar do Estatuto estabelecer que o arguido tem de estar presente no Tribunal durante o julgamento, passaram a ser aceites possibilidades excecionais de não presença dos acusados, nomeadamente por recurso à videoconferência ou pela ausência consentida pelo Tribunal. Esta questão, que dominou o TPI durante aqueles meses, tem uma percetível componente política, o que pode levar a (re) questionar até que ponto o Direito Internacional não se confunde com política (incluindo mesmo na sua versão mais simplista de realpolitik). Não se pretende neste curto espaço ensaiar uma resposta a esta questão ou sequer analisá-la no caso concreto do TPI. Mas a problemática é estrutural, e como tal poderá ser útil pelo menos contribuir com algumas pistas gerais de reflexão. A relação entre Direito Internacional e política pode ser sintetizada em quatro linhas de abordagem. Primeiro, uma abordagem normativista-positivista que exalta a norma pura expurgada de elementos não-jurídicos. Nesta linha de raciocínio, as alterações das RPP não têm fundamento suficiente. Em segundo lugar, uma abordagem que valoriza mais o contexto da normatividade e menos o seu caráter jurídico-vinculativo. Não sendo metodologicamente correto confundir política com Direito Internacional, este último não é certamente neutro na medida em que deve ser espelho do contexto político-social em que vive. O foco deve, para esta abordagem, ser sempre político, o que significa que mesmo que o Direito exista, o seu conteúdo não pode ser determinado fora de uma análise política. Nesta ótica, a revisão das RPP foi o resultado necessário na medida em que permitiu superar uma tensão que punha em causa a própria instituição TPI. Depois, uma abordagem política que vê o Direito Internacional como instrumento da ação política dos Estados. O Direito Internacional assume, assim, uma função técnica, tornando-o num simples instrumento de política estadual, ao invés de adquirir o propósito de projeto político. Nesta linha de pensamento, a tensão sobre a situação no Quénia refletiu uma (legítima) luta de interesses divergentes: os de certos Estados africanos que procuram proteger os seus líderes contra a ação penal pelo TPI; os daqueles que defendem a integridade do TPI como forma de exercer a ação penal sobre altos responsáveis por crimes graves de relevância internacional, sem hostilizar aqueles Estados africanos. A revisão das RPP foi uma válvula de escape para acomodação de interesses, refletindo um consenso político. Finalmente, e em quarto lugar, a abordagem segundo a qual o Direito Internacional e política se confundem. Para esta perspetiva, a produção normativa não é mais do que a manipulação de uma certa conceção de Direito pela política em função de interesses e opções da classe política dominante. Os detentores do poder político, os mais favorecidos e, em geral, os com maior capacidade de influência encetam um discurso jurídico não em proveito da sociedade mas em benefício dos seus interesses particulares. Para esta perspetiva, o processo de revisão das RPP do TPI em todo o seu contexto põe em causa o Direito Internacional que deveria ter por ambição ontológica a realização da justiça. Para este posicio- FICHA TÉCNICA Redação, edição e design gráfico por Rita Teixeira, João Francisco Diogo, João Barreiros e Ricardo Bastos (Sócios Júnior da SPDI) e Miguel Calado Moura (Sócio Efetivo). Agradecimentos ao Doutor Mateus Kowalski. namento, o processo apenas veio contribuir para o enfraquecimento do TPI e para que o Tribunal seja posto em causa enquanto instituição de justiça. A fundamentalidade deste debate é incontornável e bem percetível. Um debate que necessariamente deve ser inclusivo com a participação da Academia, dos produtores de Direito Internacional, dos seus aplicadores e dos seus destinatários. Um debate de sempre e que casos como o que resultou na revisão das RPP fazem recordar a sua constante atualidade. Um debate que deve ser interdisciplinar e que deve ter por referentes uma dimensão ética, o contexto político-social, a legitimidade da produção normativa, a valorização do ser humano e da sua experiência. Um debate em que a justiça seja fator determinante da transformação social progressista por via do Direito Internacional, e não o contrário. Uma reflexão que poderá mesmo convidar a questionar paradigmas vigentes. •