A súbita vocação “africanista” de um ex ‑ministro: A viagem

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A súbita vocação “africanista” de um ex ‑ministro: A viagem
A súbita vocação “africanista” de um
ex­‑ministro: A viagem de Mariano de
Carvalho a Moçambique em 1890*
Paulo Jorge Fernandes
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Introdução1
Os meses que antecederam o Ultimato britânico de Janeiro de 1890 foram penosos
para o governo do Partido Progressista. No plano externo as tensões com a Inglaterra
atingiam o seu ponto extremo por causa dos diferentes entendimentos que ambos os
países tinham em relação aos respectivos alinhamentos diplomáticos e, sobretudo,
devido às desavenças em matéria de política africana. Na frente doméstica, os proble‑
mas não eram de menor importância. Em Fevereiro de 1889, os influentes ministros
Mariano de Carvalho e Emídio Navarro, os expoentes da facção mais “avançada” do
elenco conduzido por José Luciano de Castro, foram removidos de funções na sequên‑
cia de dois escândalos que minaram irremediavelmente a credibilidade do executivo.
A ferida aberta na governação progressista seria agravada, pouco depois, com o
abandono de António Cândido, outra das vozes partidárias de maior prestígio, que se
retirava da política activa e militante para se dedicar à advocacia descontente com a
actuação do governo. As várias facções que compunham a formação que suportava o
gabinete ministerial passaram, então, os meses seguintes em guerra declarada numa
tentativa de ajuste de contas interno. Mariano de Carvalho, um dos principais respon‑
sáveis pela crise política, entretanto criada, incompatibilizado com a liderança de José
Luciano, abeirou­‑se mesmo da órbita do rival Partido Regenerador. Essa aproximação
valeu­‑lhe o convite feito já em meados de 1890 pelo governo seguinte para liderar uma
expedição a Moçambique com o objectivo oficial de inventariar os recursos económi‑
cos da colónia, que estava a sob o alvo da cobiça britânica. Na prática, a verdadeira
intenção da viagem parecia patrocinar a ascensão de interesses privados naquela
província. Tratava­‑se de uma deslocação histórica. Nunca nos tempos modernos um
ex­‑governante ou uma figura pública da primeira grandeza do reino se tinha deslocado
à África portuguesa. Mariano de Carvalho passou 6 meses em Moçambique. Viajou
por quase todo o território, conheceu pessoalmente realidades locais muito distintas
e preparou um relatório onde aconselhou um amplo programa de reformas financei‑
* Este texto reproduz com algumas alterações uma parte dos capítulos VII e VIII do meu livro Mariano Cirilo
de Carvalho: o «Poder Oculto» do liberalismo progressista (1876­‑1892), Lisboa, Assembleia da República e Texto
Editores, 2010, pp. 323­‑343.
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ras, administrativas, educativas e aduaneiras na colónia, de cariz descentralizador,
enquanto em Lisboa os partidos do sistema revelavam a sua inaptidão para lidar com
o agravar da crise colonial. Daqui resultou uma visão alternativa que passou a circu‑
lar entre as elites nacionais sobre o futuro da presença portuguesa nas margens do
Índico. Este texto procura debater a importância e o impacto da viagem de Mariano de
Carvalho no contexto da época e as opções equacionadas pelos decisores governativos
relativamente à construção de uma nova política ultramarina após o Ultimato.
Notícias sensacionais
Em Maio de 1890, algumas semanas após ter sido eleito pela 11.ª vez consecutiva (desde
Março de 1870) e para espanto geral da nação, Mariano de Carvalho era incumbido
pelo titular da Marinha e Ultramar, Júlio de Vilhena, para uma comissão de serviço
em África, acabando por aceitar o convite que lhe fora dirigido por uma “companhia
composta de capitalistas importantes do país” (Diário da Câmara dos Deputados, 24
de Maio de 1890: 391; Jornal das Colónias, 25 de Maio de 1890: 1). Logo surgiram dúvi‑
das na imprensa sobre a súbita vocação africanista do ex­‑ministro da Fazenda (O Sor‑
vete, 8 de Junho de 1890: 5). Alegadamente, o recém­‑nomeado tinha mostrado desejos
de receber tal incumbência, cuja única virtude residia no facto de “afastar da nossa
política esse constante fermento de perturbação e embaraço para tudo”. A imprensa
logo se encheu de trovas chistosas alusivas à viagem (Fernandes, 1940: 64). Não se
tratava de um personagem anónimo. Mariano de Carvalho era um muito conhecido e
conceituado professor da Escola Politécnica de Lisboa (desde 1863), era o fundador e
director, entre outros títulos, do Diário Popular, um dos mais prestigiados jornais da
monarquia (1866), tinha sido ministro da Fazenda (em 1886­‑1889) e era dirigente de
grande destaque da ala “avançada” do regime ligado aos Partidos Reformista (1870­
‑1876) e Progressista (1876­‑1890).
Qual seria, contudo, o verdadeiro objectivo da deslocação? A especulação instalou­‑se
imediatamente, mas a resposta parecia simples. Mariano de Carvalho pretendia “chei‑
rar Moçambique e reconhecer os recursos que essa rica província pode oferecer para a
constituição da grande Companhia Africana” que, alegadamente, o director do Diário
Popular pretendia constituir. Explicava­‑se assim a recente ida à capital francesa, onde
Mariano de Carvalho se tinha reunido com banqueiros. Tratava­‑se, pois, de uma ope‑
ração “bem combinada”, apenas se estranhando o convite feito por Júlio de Vilhena,
um adversário político, o que acabava por levantar suspeitas sobre as reais intenções
do executivo nesta matéria. Temia­‑se que a missão oficial, afinal, apenas servisse para
promover interesses privados mal conhecidos (BNP, Espólio de Mariano de Carvalho,
N16/87; Charivari, 24 de Maio de 1890: 324­‑325; O Sorvete, 22 de Junho de 1890: 7­‑8).
O redactor do Jornal do Comércio não resistiu mesmo à piada fácil escrevendo que “e
se algum dia quiserem voltar a perguntar­‑lhe – o que é feito da outra metade? Esta‑
mos já a ver o sorriso de triunfante sarcasmo com que ele lhes responderá: a outra
metade, compadres, convosco a reparti, quando me nomeaste Comissário régio das
colónias africanas! E, pela primeira vez, todos acreditarão” (Jornal do Comércio, 27
de Maio de 1890: 1). A diatribe, que foi explorada à exaustão (Charivari, 12 de Julho de
1890: 381), glosando a famosa questão da “outra metade”, o escândalo financeiro que
envolveu Mariano de Carvalho em 1889 e que o levou a sair do executivo, confirmava
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A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
que a pretensão de Mariano de Carvalho ser enviado à África meridional portuguesa
era uma aspiração pessoal antiga. Ainda antes do Ultimato, o ex­‑ministro tinha­‑se
oferecido a José Luciano para comandar uma missão de exploração em Moçambique
com o objectivo de analisar “as suas necessidades de administração e examinar as
suas fontes de riqueza”. Na realidade, o principal fim da expedição era o de observar
os recursos mineiros e agrícolas da província, nomeadamente para levantar a possi‑
bilidade de se pesquisar minas de carvão de pedra na Zambézia por uma entidade
privada (Jornal das Colónias, 1 e 8 de Junho de 1890: 1: Diário Popular, 2 de Junho de
1890: 1). Oficialmente, abalava para empreender “os estudos necessários nas Provín‑
cias Ultramarinas de Angola e Moçambique para a reorganização administrativa e
económica do Ultramar, e especialmente de tudo o que mais de perto interessar ao
fomento agrícola, comercial e industrial das referidas Províncias” (Diário do Governo,
27 de Maio de 1890: 1193). A 30 de Maio, na Câmara dos Pares, D. Luís da Câmara
Leme e Vaz Preto atacaram violentamente a nomeação de Mariano de Carvalho. José
Luciano e Barros Gomes, que se encontravam presentes na sessão, não abriram a boca
para defender o ainda colega de partido.
Alguns sectores progressistas também não viram com bons olhos a viagem de
Mariano de Carvalho. Elvino de Brito, por exemplo, em guerra aberta com Carlos
Lobo de Ávila – “a alma danada dos conluios” – e com Emídio Navarro – acusado de
demasiada brandura na oposição ao governo – considerava que a jornada do “Poder
Oculto”, alcunha pela qual era conhecido Mariano de Carvalho, enfraquecia os da
Granja. Era preferível Mariano de Carvalho encerrar a sua carreira política para se
“entregar” de vez e assumidamente ao “mercantilismo” do que deixar “o partido
assombrado diante de tão grande imprudência” (Moreira, 1998: 282­‑285).
Independentemente da celeuma causada, o director do Diário Popular partiu mesmo
para Paris a 2 de Junho, acompanhado pelo marquês da Foz e pelo conde de Moser,
amigos influentes do mundo da alta finança lisboeta. Mesmo fora do país, o “Poder
Oculto” procurava deixar uma marca da sua capacidade de influência. Na véspera,
ainda escreveu a José Luciano dando conta da viagem e para deixar um recado.
Em jeito de desabafo confidenciou que abalava sem “ressentimentos” e sem se demitir
do partido, mas também sem esconder a alguma desilusão pelo rumo que o ex­‑pre‑
sidente do Conselho tinha imprimido à governação, pela política seguida por Barros
Gomes, de quem discordava em quase tudo e agora pela não defesa da sua nomeação
para esta missão na câmara alta. O tom da missiva soava a despedida. José Luciano
respondeu­‑lhe no próprio dia, afirmando não ter sido informado da mesma com
antecedência, nem ter sido consultado para dar a sua opinião sobre tal assunto. O
chefe progressista lamentava a ruptura assumida pelo seu ex­‑ministro desejando­‑lhe,
todavia, que “seja feliz e volte brevemente bem disposto, de corpo e de espírito, para
as lutas políticas em que o seu mérito e os seus serviços lhe criaram um lugar excep‑
cionalmente importante, que ninguém lhe poderá ocupar” (Moreira, 1998: 286­‑289).
Mariano de Carvalho, da capital francesa seguiria para Marselha, onde, no dia 12
tomaria o vapor Amazone que o levaria a Zanzibar, seguindo depois para Moçambi‑
que1. Como sempre acontecia em situações semelhantes, uma pequena multidão acor‑
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Aportou em Aden a 23 de Junho e em Zanzibar a 1 de Julho. Aqui visitou o consulado de Portugal, sendo recebido
também pelo Sultão local. A 3 de Julho partiu para Lourenço Marques, onde chegou a 11 de Julho de “boa saúde”
segundo os telegramas que chegaram da África Oriental.
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reu à gare de Santa Apolónia para se despedir do conselheiro, sendo particularmente
notada a presença de José Luciano de Castro e do próprio ministro Júlio de Vilhena.
Esperava­‑se que estivesse ausente durante alguns meses, mas a esposa, Rita de Carva‑
lho e os filhos do casal, não acompanharam Mariano de Carvalho neste novo desafio.
Para trás deixava um país ainda atónito com a notícia do suicídio do escritor Camilo
Castelo Branco, ocorrido na véspera (Carvalho, 1946: 55)2 , e os políticos entretidos no
parlamento a discutir a passagem da régie para o regime livre no sector dos tabacos.
As relações com a Inglaterra, pelo seu lado, continuavam tensas circulando nas redac‑
ções a informação de que o embaixador inglês em Lisboa tinha dado conta ao minis‑
tro dos Negócios Estrangeiros do seu desagrado pela missão confiada a Mariano de
Carvalho. Indiferente a estas polémicas, este quando chegasse a Lourenço Marques
teria à sua disposição uma equipa de vários colaboradores, que partiram de Portugal
duas semanas mais tarde, à espera de receber as suas instruções (Diário Popular, 10 de
Julho de 1890: 1)3 .
O governo de Lisboa, em negociações desde Janeiro, a 20 de Agosto, assinou um tra‑
tado com a Inglaterra para a delimitação territorial da África meridional. De acordo
com a interpretação da oposição, motivada pela onda de histerismo nacionalista de
cariz colonial em curso, Hintze Ribeiro, com a ajuda do novo embaixador português
em Londres, Barjona de Freitas (Teles, 1968: 216), tinha ido longe demais nas conces‑
sões feitas aos ingleses, alienando­‑se territórios a norte e sul do rio Zambeze, parte
importante do distrito de Manica, toda a área do recentemente constituído distrito
de Zumbo, toda a Mashona, uma fracção de Sofala e uma porção das dependências
do régulo Gongunhana. O acordo previa, igualmente, a liberdade de cultos na região
que, assim, ficava permeável à entrada de missionários ingleses e concedia a liber‑
dade de navegação em todos os lagos, rios e canais do Zambeze e Chire, bem como
dos seus afluentes. A liberdade de circulação nas estradas, caminhos e vias­‑férreas
da zona estava também prevista, assim como várias despesas relacionadas com as
infra­‑ estruturas de comunicações avaliadas em cerca de 30.000 contos. Em termos
comerciais o tratado era considerado “ruinoso” para os interesses nacionais, mas esse
nem era o aspecto mais importante, que residia na voluntária perda da afirmação de
soberania, algo de incompreensível para os progressistas (Diário Popular, 22 de Agosto
de 1890: 1; Martins, 1942: 62­‑ 63). Dadas as circunstâncias do momento, a presença de
Mariano de Carvalho, que já se encontrava em Lourenço Marques, criava ainda mais
expectativas, enquanto em Lisboa não paravam de aumentar as vozes críticas em
relação ao “humilhante” pacto, assim considerado pelo Diário Popular, que publicou
a versão integral do documento (Charivari, 19 de Julho, de 1890: 8: Diário Popular, 31
de Agosto de 1890: 1­‑2). Era o fim do chamado “Mapa Cor­‑ de­‑Rosa” e das pretensões
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Mariano de Carvalho era amigo pessoal do escritor.
Tratavam­‑ se do capitão de Engenheiros Soeiro de Gambôa, do alferes de engenharia Tavares, do tenente de Cava‑
laria Roma Machado, do 1.º oficial da Caixa Geral de Depósitos Pereira Jardim, do agrónomo Pereira da Cunha
e de 4 soldados de engenharia. A expedição era ainda integrada pelo explorador Paiva de Andrade, pelo médico
Rodrigues Pinto, por Alexandre de Campos, Albino Augusto Leite, Moreira Feio, pelo inspector de florestas suíço
Max Siber, pelo engenheiro de minas francês Guigad Joseph e pelo intérprete holandês Luiz Jordan, que viaja‑
ram com Mariano de Carvalho. Como amadores e acompanhando a comitiva a custas próprias encontravam­‑ se
também o francês visconde de Breteuil, o barão polaco Henri de Traktensteins e o italiano príncipe de Ruspoli.
Estes três aristocratas “janotas” deslocavam­‑ se a África com o único objectivo de caçar. O primeiro conheceu
pessoalmente Mariano de Carvalho em Paris, antes deste partir para Marselha, perguntando­‑lhe se o podia
acompanhar. Já o polaco convenceu a condessa de Paraty, em Roma, a obter uma licença junto do ministro da
Marinha português para acompanhar a comitiva, juntando­‑ se­‑lhe, entretanto, o italiano.
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A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
lusitanas de reunir os territórios entre Angola e Moçambique numa vasta província
sob o controlo português (Diário Popular, 2 de Setembro de 1890: 1).
Entretanto, organizaram­‑se os habituais meetings para protestar contra o acordo,
dando o governo indicações de que estaria disposto a reprimir pela força todas as
manifestações que colocassem em causa a manutenção da ordem pública. A 7 de
Setembro, um comício preparado no Porto por Correia de Barros e que juntou pes‑
soas de quadrantes políticos tão díspares como o ultra católico conde de Samodães,
o antigo “Vida Nova” Luís de Magalhães, alguns eminentes republicanos e até operá‑
rios, foi interrompido pela polícia (Moreira, 1998: 295­‑297).
Associações de interesses por todo o país, ligadas a sectores da indústria, do comér‑
cio, da imprensa e da classe médica, apresentaram os seus protestos e até a Sociedade
de Geografia faz publicar nos jornais a sua posição opondo­‑se ao tratado de 20 de
Agosto (Diário Popular, 11 e 15 de Setembro de 1890: 1)4 , mas a acção de maior aparato
residiu no lançamento da Liga Liberal, constituído em movimento formal de indig‑
nação, encabeçada por Augusto Fuschini e que integrava antigos nomes sonantes do
Partido Progressista, na altura em ruptura com a Granja, como os de António Enes,
Eduardo Abreu, Fernando Palha e do general João Crisóstomo, que passou a presidir à
iniciativa (O Nacional, 12 de Dezembro de 1890: 1; Noronha, 1913: 189­‑190; Teles, 1968:
138­‑141: Vicente, 1999: 156­‑158).
O facto confirmava à evidência o clima de dissenção entre os da Granja motivada pela
questão diplomática. Uma facção, pela voz de Silva Pinto, no Diário Popular, culpava
José Luciano, ausente na Figueira da Foz desde 22 de Agosto, de ter “abandonado
o seu partido na expectativa, no assombro, na desorientação e, de certo modo, na
indignação pelo abandono”. O jornal desvinculou­‑se, naquele momento do Partido
Progressista, afirmando­‑se doravante como “independente”. Esta posição motivou
o afastamento imediato da redacção por parte de João Cesário de Lacerda, Mariano
Prezado e António Bernardo de Carvalho. Com efeito, o título havia há pouco mudado
de mãos, pois tinham entrado “para a propriedade do jornal” António Centeno, o
marquês da Foz e o próprio Mariano de Carvalho, que tinha adquirido uma pequena
parte, pois até então era apenas o director político da publicação, posição que ocupava
desde que o jornal havia sido fundado em 1866. Foi, aliás, por iniciativa de António
Centeno que se entendeu separar o periódico da órbita progressista, mas certamente
com a anuência do ausente Mariano de Carvalho de quem era um colaborador muito
próximo (Diário Popular, 13 de Setembro de 1890: 1; Charivari, 20 de Setembro de 1890:
79; Pinto, s.d.: 144­‑146).
O parlamento reabriu a 15 de Setembro, mas antes de se iniciar a sessão gerou­‑se uma
violenta discussão entre os deputados que esteve prestes a degenerar em conflito,
apesar do aparato policial visível dentro e fora da sala das sessões. Ainda e sempre
a questão colonial dominava a agenda política e ninguém se entendia. Patrulhas das
forças da ordem podiam ser encontradas à porta da sede do Partido Regenerador,
das casas de Lopo Vaz e Hintze Ribeiro, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e
do consulado britânico. Os progressistas, pela voz exaltada de José Maria de Alpoim,
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A 14 de Setembro, na redacção de A Nação, reuniram­‑ se cerca de 5 dezenas de jornalistas dos principais títulos
de Lisboa, para formular o seu protesto. O Diário Popular de Mariano de Carvalho esteve representado por Silva
Pinto. Entretanto, a 15 de Setembro, muitos estabelecimentos de Lisboa e Belém encerraram as suas portas em
sinal de protesto.
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colocaram­‑se imediatamente em oposição ao tratado com a Grã­‑Bretanha, dando
seguimento ao que tinha sido decidido em reunião prévia do centro partidário que,
dada a conjuntura efervescente, por proposta de José Bandeira Coelho, estaria aberto
todos os dias para discutir o evoluir da situação política. Em casa, o velho general
João Crisóstomo, recebeu o apoio da guarnição da capital para formar um novo gabi‑
nete (Martins, 1942: 66: Moreira, 1998: 290­‑291).
O governo não resistiu à pressão5 . Dentro do próprio Conselho de Ministros havia
quem censurasse Hintze Ribeiro por não ter discutido internamente as cláusulas do
tratado de 20 de Agosto, que continuava à espera de ratificação parlamentar. Antó‑
nio de Serpa ainda tentou um golpe de recurso, procurando substituir o titular dos
Negócios dos Estrangeiros. Ele próprio ficaria com a pasta polémica, passando Lopo
Vaz para o Reino, entrando Morais de Carvalho e Sanches de Castro para a Justiça
e Guerra, respectivamente. Na tarde de 16 de Setembro, o Presidente do Conselho
deslocou­‑se a Sintra para submeter tal plano ao juízo de D. Carlos, mas o soberano
achando­‑se mal disposto, mandou­‑ o regressar no dia seguinte, adiando a resolução
da crise. Como combinado, 24 horas mais tarde, António de Serpa, desta vez acom‑
panhado por Lopo Vaz, voltou à vila onde veraneava o rei, mas D. Carlos recusou a
solução que lhe foi apresentada, o que importou na demissão de todo o ministério
(Martins, 1942: 73.74)6.
Começaram imediatamente a circular, como era timbre nestas ocasiões, os primeiros
rumores sobre a constituição do novo governo, ganhando consistência as notícias que
apontavam para a formação de um gabinete que reuniria o consenso dos principais
partidos e que integraria figuras como João Crisóstomo (que continuava a contar com
o apoio da guarnição militar da capital), o conde de Casal Ribeiro e Martens Ferrão.
Este último, que se encontrava em Roma como embaixador no Vaticano, foi mesmo
chamado a Lisboa na expectativa de vir a organizar o futuro executivo. António de
Serpa manter­‑se­‑ia em funções até à sua chegada, que só ocorreria a 29 de Setembro.
Pelo seu lado, José Luciano fez saber que o seu partido não estava interessado em
regressar aos Conselhos da Coroa nas presentes circunstâncias, mas que prestaria o
seu apoio à nova administração se esta revogasse a lei que criou o ministério da Ins‑
trução, uma das originalidades do governo demissionário “para dar emprego” a João
Arroio e, sobretudo, se fosse anulado o chamado “testamento” do ministério da Jus‑
tiça, uma reforma que criou 28 novas comarcas e nomeou centenas de funcionários.
Na prática, nem regeneradores, nem progressistas pareciam muito interessados em se
comprometer com a situação. Os “Vencidos da Vida”, pelo seu lado, aguardavam uma
oportunidade. António Cândido chegou a comparar o momento político vivido com
os tempos da Janeirinha (Martins, 1942: 75­‑ 81).
Alheio ao desenrolar de mais esta crise. Mariano de Carvalho deu os primeiros sinais
de vida a partir do interior de Moçambique. Por telegramas e cartas que enviou
para o ministério da Marinha fazia saber que se encontrava em Quelimane de boa
saúde. Começou por testemunhar a persistência do comércio negreiro no litoral
do território (AHU, Ofício de Mariano de Carvalho, 11 de Agosto de 1890. Arquivo
A imprensa assumiu um papel fundamental no desgaste do executivo, nomeadamente o Novidades de Emídio
Navarro que agora não poupou o comportamento de António de Serpa e dos seus ministros na questão do tratado
anglo­‑luso.
6 A rainha D. Maria Pia ainda veio a Lisboa para tentar demover o presidente do Conselho a apresentar a demissão,
mas também não teve sucesso.
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Histórico Ultramarino, Moçambique, 1.ª Repartição, pasta 6; Alexandre e Dias, 1998:
102). Depois, após subir o rio Zambeze, manifestou ainda a intenção de se deslocar
às minas de Manica, regressando posteriormente a Lourenço Marques (Gazeta do
Sul, 18 de Setembro de 1890: 1; Diário Popular, 24 de Setembro de 1890: 1; A Esquerda
Dinástica, 7 de Outubro de 1890: 1)7. Em consonância com o governador da província
(Gazeta do Sul, 24 de Agosto de 1890: 1; Paixão, 1965: 3)8, o ex­‑ministro tinha pre‑
parado planos que contemplavam a reorganização da circulação monetária e das
pautas das alfândegas. Para começar, propunha o estabelecimento de uma carreira
de navegação entre a metrópole e Moçambique, “ligando subsidiariamente com esta
uma outra para a Índia”. Depois, pediu que se impedisse a importação de rupias de
Mombaça como forma de preparar a reforma monetária desejada, cujo alcance era o
de uniformizar os regimes de Portugal e Moçambique. Posteriormente, enviou um
projecto de pautas para os portos de Ibo, Quelimane e Lourenço Marques, com “o
objectivo de aumentar as receitas públicas, desenvolver as forças económicas da pro‑
víncia e proteger o comércio” e combater a concorrência de Zanzibar e do domínio
inglês do Natal. Para terminar, redigiu um plano de reorganização administrativa
das possessões portuguesas na África Oriental, segundo o qual se constituiria ali
um Estado autónomo, dividido em três províncias. De acordo com o ofício, datado
de 31 de Agosto de 1890, que enviou a Júlio de Vilhena, a extensão do território de
Moçambique impedia que apenas um governador­‑geral, ainda para mais “destituído
dos mais elementares meios de informação e estudo, sobrecarregado com os mais
altos problemas governativos e ao mesmo tempo com os mínimos pormenores da
administração local”, se concentrasse plenamente na sua gigantesca missão. Daí que
Mariano de Carvalho propusesse a constituição de um Estado descentralizado, divi‑
dido em três províncias: a do Norte ou Moçambique, a do Centro ou Zambézia e a do
Sul ou Lourenço Marques. Existiriam paralelamente três governadores de província,
que responderiam perante o governador­‑geral, que assim, ficaria aliviado das suas
múltiplas tarefas. Propunha ainda neste sentido que o Banco Nacional Ultramarino
coordenasse os serviços de Tesouraria na região, onde ainda se deveria instituir um
Conselho de Fazenda de modo a simplificar o expediente na gerência dos dinheiros do
Estado na África Oriental portuguesa. O Tribunal de Contas ficava demasiado longe,
de modo que um simples pedido de informação podia demorar meses atrasando “o
indispensável julgamento das contas”. Este órgão – o Conselho da Fazenda – seria
dotado de autonomia bastante, mas ficaria sob a dependência directa do ministro da
tutela, impedindo que se transformasse “num Estado no Estado”. Para além das suas
atribuições consultivas e contenciosas procederia ao exame do orçamento da África
Oriental (Paixão, 1965: 7­‑32).
No seu conjunto, Mariano de Carvalho propunha um original plano de reforma de
Moçambique, baseado no conceito da descentralização tão caro ao seu autor embora,
“nesse ponto parece que, libertando mais a administração, de nenhum modo prejudi‑
camos a fiscalização indispensável, sendo certo que nem a administração deve ser por
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O seu regresso à metrópole estava previsto para Novembro, mas já se falava de nova missão de Mariano de Car‑
valho a Angola.
8 Tratava­‑ se de Joaquim José Machado, que tomou posse do lugar em 19 de Junho. O novo governador era um
profundo conhecedor da realidade local e detinha a particularidade de ter sido aluno da Escola Politécnica de
Lisboa. Recentemente, havia sido encarregado de fazer a demarcação da fronteira portuguesa entre o distrito de
Lourenço Marques e a província do Transvaal.
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tal modo desembaraçada de vigilância que se transforme em abuso, nem tão ajustada
a fiscalização que, sem preocupar­‑se com os mais graves interesses públicos, prejudi‑
que toda a acção administrativa” (Paixão, 1964: 139­‑140; Idem, 1965).
Já em Lisboa, pelo seu lado, Martens Ferrão revelava uma total incapacidade para
formar o tão desejado ministério de conciliação. Ambos os “partidos rotativos” ainda
prometeram cooperar com ex­‑ embaixador em Roma, mas os progressistas insistiam
e faziam depender o seu apoio da revogação da recente reforma judiciária já aludida.
Percebendo que ficaria condicionado desde o princípio, Martens Ferrão viu inutiliza‑
dos os seus esforços e desistiu dos seus intentos a 6 de Outubro (Diário da Câmara
dos Pares, 15 de Outubro de 1890: 956; Moreira, 1998: 298­‑299). Houve quem conside‑
rasse que, encarregue de organizar o novo gabinete, o antigo embaixador apenas teria
simulado fazer diligências para o constituir (Sousa, 1917: 34).
Seguidamente, foi a vez de S. Januário ser indigitado para a pesada tarefa, sem
sucesso. Praticamente todos os dias surgiam novas combinações de nomes de futuros
ministros e até leitores anónimos se entretinham a enviar os seus palpites para as
redacções dos jornais (Diário Popular, 6 de Outubro de 1890: 1). Dado o impasse, D.
Carlos resolveu chamar João Crisóstomo de Abreu e Sousa, um velho amigo do paço
e que era uma voz respeitada pelo Exército, para prosseguir o encargo. Parecia, no
entanto, claro que o ambicionado entendimento entre progressistas e regeneradores
era uma missão impossível de alcançar.
Depois de várias tentativas infrutíferas, o general, que também esteve para desistir da
árdua incumbência, reuniu, finalmente, os escolhidos em sua casa, a 11 de Outubro,
para explicar as linhas de acção do seu gabinete. A proeza ficou a dever­‑se às insistên‑
cias do rei para que se ultrapassassem de vez os estorvos que impediam a resolução
da crise, até porque a situação em Moçambique se tinha, entretanto, complicado e ao
apoio que a Liga Liberal emprestou ao seu presidente (Noronha, 1913: 189).
Com efeito, as últimas notícias davam conta de que oito canhoneiras inglesas se
encontravam a subir o rio Zambeze e que uma expedição organizada pela British
South African Company de Cecil Rhodes tinha partido da colónia do Cabo em direc‑
ção ao Norte para reconhecer e ocupar a região de Mashona, no distrito português
de Manica, entre os rios Zambeze e Limpopo (Alexandre, 1998: 182­‑183). Para opor
resistência aos invasores, as forças portuguesas encontravam­‑se reduzidas a quatro
“chavecos”, que seriam metidos ao fundo logo nos primeiros disparos. Mariano de
Carvalho ainda foi testemunha de tais avanços, uma vez que os últimos telegramas
anunciavam a sua partida de regresso à metrópole para 4 de Novembro (Diário Popu‑
lar, 24 de Outubro de 1890: 1)9. Todavia, e embora distante do centro de discussão
sobre a polémica do momento, em carta que enviou de Quelimane, considerava o Tra‑
tado anglo­‑português de 20 de Agosto como “deplorável”, uma vez que alienava em
Moçambique as regiões mais ricas em minérios e em melhores condições de salubri‑
dade. Considerava­‑ o mesmo “pior que o Ultimato”, mas “uma coisa havia pior que era
a sua rejeição”. Apesar de não concordar com o acordo, nas presentes circunstâncias,
9
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Contudo, chegou à colónia do Cabo apenas a 9 de Novembro, onde embarcou no vapor Malange em direcção a
Luanda, tendo aportado em Angola a 16 de Novembro. Como curiosidade refira­‑ se que não conheceu esta cidade,
visto não ter desembarcado devido a uma epidemia de varíola que grassava na zona. Entretanto, em Lisboa e na
sua ausência, o Conselho de Administração da Companhia Real dos Caminhos­‑ de­‑Ferro Portugueses decidiu
suprimir o cargo de administrador delegado, nomeando uma comissão executiva para acompanhar e resolver os
actos de gestão. Mariano de Carvalho, ainda que à distância, era nomeado administrador efectivo.
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A SÚBITA VOCAÇÃO “AFRICANISTA” DE UM EX-MINISTRO:
A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
qualquer entendimento era melhor do que nenhum. A deflagração de um conflito
armado com os ingleses naquela região, cujo risco de acontecer era sério, significava,
pela falta de recursos militares nacionais, o fim de todas as aspirações portuguesas
sobre a Zambézia (Jornal das Colónias, 19 de Outubro de 1890: 1; Idem, 2 de Novembro
de 1890: 1; Diário Popular, 27 de Outubro de 1890: 1).
Em Lisboa, a missão de João Crisóstomo à frente do governo assumia, então, foros,
de alto patriotismo. Ele próprio, que já não podia ostentar o protagonismo progres‑
sista de outros tempos, aceitou ficar com as pastas da Presidência e da Guerra, uma
necessidade do momento; António Cândido, o homem da “Vida Nova” e dos “Vencidos
da Vida” (Martins, 1942: 85)10, foi indicado para o Reino e para a Instrução Pública
(a título interino); António Emílio de Sá Brandão, na altura presidente do Supremo
Tribunal de Justiça e um ex­‑ cabralista encabeçou, naturalmente a Justiça; José de
Melo Gouveia, o antigo avilista, e presidente da Assembleia­‑ Geral do Montepio foi
o escolhido para a Fazenda; António Enes, uma voz independente dentro da família
progressista ficou com a sensível pasta da Marinha; José Vicente Barbosa do Bocage,
uma figura conhecida e experimentada, mas da segunda linha do Partido Regenera‑
dor e Tomás Ribeiro, muito próximo do “Porto Franco” (aliás como Sá Brandão), foram
nomeados para os Negócios Estrangeiros e Obras Públicas, respectivamente.
Tratava­‑se de um executivo equilibrado, mas suficientemente heterogéneo em termos
políticos e de traquejo governativo. O Presidente do Conselho, na altura com 79 anos,
podia exibir um vasto currículo ministerial, o mesmo sucedendo com outros três
colegas. No aspecto partidário, também se percebia algum cuidado em fazer repre‑
sentar as várias sensibilidades de forma ponderada, uma vez que estavam presentes
duas figuras com antecedentes progressistas, um regenerador, um “Vencido da Vida
Nova” (Martins, 1942: 86; Cabral, 1943: 218­‑219)11, um ex­‑avilista e dois seguidores de
Manuel Vaz Preto (Dias, 1971: 27­‑31)12 . A opinião pública logo baptizou o gabinete
como “extra­‑partidário”, mas na prática, o seu elenco representava uma nova coalizão
pela qual, sobretudo, José Luciano e António de Serpa não se desejavam responsabi‑
lizar, embora a apoiassem por falta de alternativas (O Português, 13 de Fevereiro de
1891: 1). “Extra­‑partidário” significava na época que se tratava de uma solução gerada
fora da esfera tradicional dos partidos monárquicos, mas onde estes se encontravam
devidamente representados, aspirando, inclusivamente, a influenciar e condicionar as
suas decisões.
Assim sendo, os escolhidos seriam bem recebidos no parlamento a 15 de Outubro.
Na câmara dos deputados, Emídio Navarro declarou que os da Granja iriam adoptar
uma atitude benévola para com os novos ministros, o mesmo prometendo António
de Serpa na câmara dos pares em relação aos regeneradores. João Crisóstomo, para
transmitir uma imagem de seriedade, teve de renegar o apoio da Liga Liberal, consi‑
derada demasiado radical nas suas propostas. As relações com a Inglaterra, pelo seu
lado, entravam agora num período de maior pacificação, por via do acordo de status
quo assinado entre Lord Salisbury e Luís de Soveral, o substituto de Barjona de Frei‑
10
Os “Vencidos da Vida” atravessavam agora um bom momento político ao verem ainda nomeado como embaixador
em Londres, depois da recusa de Martens Ferrão, de Luís Pinto Soveral.
11 António Cândido fora acusado por José Luciano de Castro, com quem mantinha relações pessoais de amizade, de
alimentar agora simpatias pelos regeneradores e pelo “Porto Franco”, queixas que o próprio considerou injustas.
12 Vaz Preto tinha­‑ se afastado da órbita de João Franco no Verão de 1889.
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tas em Londres (Teles, 1990: 120; Vicente, 1999: 159­‑161)13 , convenção essa que previa
a imediata liberdade de circulação no Zambeze e no Chire. Apesar do tratado de 20
de Agosto já apontar nesse sentido, os progressistas, contraditoriamente, apoiavam
agora a medida apenas porque ela tinha sido negociada por um governo de concilia‑
ção e porque fora alcançada por via da mediação das principais potências europeias.
Apesar de acolhido com benevolência, o governo não começou bem. Logo a 24 de
Novembro, Melo Gouveia abandonou a pasta da Fazenda, alegadamente por motivos
de saúde (sofria da bexiga), mas a imprensa regeneradora tinha outra explicação para
o facto adiantando que José Luciano tinha pressionado a saída de modo a entregar
a pasta a Mariano de Carvalho quando este chegasse a Lisboa. Comentou­‑se que o
escolhido para a substituição temporária seria o conde de Valbom ou mesmo Oliveira
Martins (Monteiro, 1944: 192)14 , o que significava a entrada de um nome com maior
peso político, mas o eleito seria outro. Assim, a nomeação do reputado professor pro‑
gressista Augusto José da Cunha (fora mestre de D. Carlos), que regressava a um lugar
que conhecia, denunciava que se tratava mesmo de uma solução de transição até que
o “novo nauta” dobrasse o Cabo da Boa Esperança e aportasse em Lisboa. “Esse nauta
era o sr. Mariano de Carvalho” (Fuschini, 1899: 108).
A explicação para se ter adiantado o nome do delegado do governo em Moçambique
era simples de antecipar. O novo ministro tinha de lidar imediatamente com um
problema concreto que derivava da instabilidade que se havia instalado nos meios
financeiros internacionais por via das dificuldades em que caíra a Baring Brothers de
Londres, casa que funcionava como autêntico “banqueiro de Portugal” (A Revolução
de Setembro, 20 de Novembro de 1890: 1; Teles, 1901: 208). Em consequência desta
crise, agravada pela progressiva diminuição das remessas dos emigrantes brasileiros
desde 1889 (Pereira, 1981: 36­‑47; Alves, 1994: 275­‑286)15 , os fundos nacionais em Lon‑
dres e Paris sofreram uma rápida descida das suas cotações, cujo alcance ainda era
difícil de determinar em toda a sua extensão. A avaliação dos títulos de 3% da dívida
fundada, em Londres, que em 1890 se fixara nos 62,5%, cairia para os 48% no ano
seguinte (Diário Popular, 18 de Novembro de 1890: 1; Ribeiro, 1898: 71­‑ 72; Sousa, 1916:
420). A somar a estes dois factores de perturbação, somava­‑se agora um terceiro, pois
eram já indisfarçáveis os efeitos do agravar da balança comercial, por via do acentu‑
ado crescimento das importações e diminuição das exportações, verificados a partir
de 1885­‑1886 (Mata, 2002: 33­‑42).
O Estado passou a ter um problema grave de tesouraria para resolver no curto prazo.
Como depois o ministro veio reconhecer ao parlamento, em Novembro de 1890, a
dívida flutuante chegara aos 33.800 contos, havendo que angariar meios para pagar
o coupon que vencia a 1 de Janeiro (Diário da Câmara dos Deputados, 6 de Março de
1891: 6). Do ponto de vista político, depois do Diário Popular, interinamente sob o
13
Barjona de Freitas pediu a demissão do lugar de embaixador em Londres aquando da queda do ministério
liderado por António de Serpa. A convenção, da autoria de António Enes e anunciada a 29 de Outubro, ficou
conhecida com o nome de “Modus Vivendi”, mas logo seria baptizada com o apelido de “Modus Moriendi”.
14 Oliveira Martins encontrava­‑ se muito desanimado com o rumo que a política nacional tomara nos últimos tem‑
pos. Depois da “orgia fontista” veio o “desvario progressista” que deu cabo do resto “da reputação que havia no
pessoal político português”. O próprio reconhecia que a sua influência política já tinha conhecido melhores dias.
“Fui recebido à gargalhada, assim que o Braamcamp morreu”, desabafou para o conde de Casal Ribeiro.
15 Em 1889, o Brasil mergulhara numa crise política que veio a afectar o sector das exportações de café, o que se
traduziu numa redução do fluxo de remessas monetárias dos emigrantes. Este dinheiro era indispensável para o
serviço da dívida externa pelo que a sua diminuição teria consequências desastrosas.
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A SÚBITA VOCAÇÃO “AFRICANISTA” DE UM EX-MINISTRO:
A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
controlo de Mariano Pina até que Mariano de Carvalho chegasse de Moçambique,
ter anunciado o seu afastamento definitivo do Partido Progressista, esta poderia ser
a forma encontrada por José Luciano para segurar Mariano de Carvalho do lado da
Granja, na tentativa de evitar a secessão interna e, simultaneamente, para procurar
influenciar os destinos governamentais de uma forma mais eficaz.
A apoteose: “uma curiosidade doida de ver Mariano de Carvalho”
Alheio às movimentações que rodearam a formação do governo extra­‑partidário, um
grupo composto por algumas dezenas de personalidades, reuniu­‑se a 30 de Novem‑
bro, por iniciativa de Silva Amado, Luís Eugénio Leitão e João da Mota Gomes Júnior,
nas salas da redacção do Comércio de Portugal, propriedade do visconde de Melício,
para preparar uma recepção grandiosa de boas­‑vindas a Mariano de Carvalho, cuja
volta estava por dias. Ficou decidido que uma comissão executiva, onde pontificavam,
entre outros, Pereira de Miranda, António Centeno, Pereira Carrilho, Fernando Palha,
Mariano Prezado e os promotores do encontro, tomaria para si o encargo de organizar
uma solenidade para assinalar a ocasião.
Planeava­‑se que no dia da chegada a Lisboa, os amigos e admiradores de Mariano
de Carvalho fossem em vapores esperá­‑lo à entrada da barra, formando um cor‑
tejo fluvial que o acompanharia no desembarque, previsto para o Terreiro do Paço,
seguindo depois a comitiva em trens até à sua residência, de onde partiriam para um
jantar de “regozijo pelo seu regresso”. Numa altura em que se discutiam as opções de
Augusto da Cunha no ministério da Fazenda, esta acção representava uma inequívoca
demonstração de apoio ao ex­‑ministro, à sua linha política e ao patrocínio de um
eventual reingresso nos Conselhos da Coroa.
A viagem de regresso, entretanto, prosseguia sem sobressaltos de maior. A 2 de
Dezembro, o vapor Malage aportou na ilha de São Vicente, em Cabo Verde, atracando
quatro dias mais tarde no Funchal, onde o esperava uma intensa agenda social. Com
efeito, pouco passava das 11.00h. da manhã do dia 6 de Dezembro quando a primeira
girândola de foguetes anunciava a aproximação do navio que transportava Mariano
de Carvalho. Assim que foi avistado uma comissão de recepção, integrada por auto‑
ridades civis e militares, dirigiu­‑se a bordo para o cumprimentar. Uma hora mais
tarde, a comitiva “saltou” para o vapor Lobo, “embandeirado em arco”, dirigindo­‑se
o navio para a escada do porto de abrigo. No preciso momento em que Mariano de
Carvalho pisou terra, nova salva de foguetes assinalou o momento ao mesmo tempo
que a banda de Caçadores 12 tocava o hino da Carta Constitucional. O governador
civil também se encontrava à espera para felicitar o mais recente “africanista” do
reino. O cortejo que então se formou dirigiu­‑se para casa de António Gonçalves de
Almeida, onde o homenageado iria pernoitar, em carros puxados por bois. Em frente
do edifício, outra fanfarra ensaiava o mesmo hino.
O visitante agradeceu a recepção, enquanto um aluno da escola Médico­‑ Cirúrgica
do Funchal leu mais um discurso de boas vindas e de felicitações pelo sucesso da
missão que Mariano de Carvalho acabara de desempenhar em Moçambique. Depois
dos agradecimentos devidos e não dando sinais de cansaço ainda teve forças para
visitar o hospício D. Maria Amélia; a fábrica de vinhos do conde de Canavial, onde
foi obsequiado com uma prova de um vinho da Madeira de 1774; o depósito de emi‑
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Paulo Jorge Fernandes
grantes que se destinam a Moçâmedes, em Angola; o jardim municipal, a Associação
Comercial local e as obras do cais do Funchal, acompanhado neste último evento pelo
presidente da câmara, o visconde de Vila Real. Ao fim da tarde marcou presença num
baile em sua honra, que teve lugar no clube Funchalense, organizado pelo visconde
de Torre Bela. Para o povo, foram preparadas festividades ao ar livre em frente do
teatro D. Maria Pia e no largo de S. Sebastião, onde actuaram várias bandas até às
10.00h. da noite perante “numerosa concorrência de povo” (Diário Popular, 1, 3, 7 e 11
de Dezembro de 1890: 1­‑2).
Entretanto, a “manifestação de simpatia” que se preparava em Lisboa tomava propor‑
ções extraordinárias. Na Associação Industrial, a 6 de Dezembro, em vista do número
crescente de adesões, a comissão promotora da solenidade decidiu fretar uns quantos
vapores a várias empresas para acompanhar a entrada do Malange no rio Tejo. Estava,
inclusivamente, prevista a actuação de uma banda a bordo de um desses navios para
alegrar o ambiente. A própria Companhia Real dos Caminhos­‑ de­‑Ferro Portugueses,
onde Mariano de Carvalho se mantinha como director, deveria, igualmente, conceder
feriado aos seus trabalhadores no dia da chegada, reservando esta empresa também
um barco para nele tomarem lugar todos os empregados que desejassem participar
na manifestação. Por fim, no salão do Teatro da Trindade, um jantar de 200 talheres
encerraria a celebração.
Mariano de Carvalho chegou triunfalmente a Lisboa, a 10 de Dezembro de 1890, como
previsto. O Diário Popular comemorou o facto ilustrando toda a primeira página da
edição do dia seguinte, que se esgotou rapidamente, com uma gravura do seu direc‑
tor político da autoria de F. Pastor. O “atleta da polémica” estava de regresso, sendo
louvado pelos seus inúmeros méritos enquanto professor, jornalista e político. O seu
nome tinha sido lembrado várias vezes quando surgiram as complicações financei‑
ras durante os últimos meses. Depois de “amaldiçoado” em 1889, era agora evocado
com esperança. Não havia questão importante nos últimos 25 anos da vida do reino
que ele não conhecesse e não tivesse abordado nas páginas dos jornais. A sua mis‑
são a África, esperava­‑se, deveria contribuir para um mais sólido conhecimento da
realidade ultramarina, mas o momento actual encontrava­‑se repleto de “espinhos,
de dúvidas e de ansiedade”. Era a primeira vez na época moderna que um político
de primeira grandeza nacional conhecia ao vivo e tomava extenso conhecimento da
realidade colonial (Pontos nos ii, 13 de Dezembro de 1890: 396­‑397)16. D. Luís tinha
passado brevemente por abo Verde e Angola, mas na época nem sequer era ainda rei.
Agora, em tempo de crise, a pátria carecia da mais ampla dedicação dos seus filhos
e deles só se deveria esperar empenho e generosidade como resposta às dificuldades.
A opinião de Mariano de Carvalho sobre os últimos acontecimentos era, por todos os
motivos, aguardada com grande expectativa, mas em causa encontrava­‑se bem mais
do que isso, percebendo­‑se que estava em marcha um amplo movimento de apoio,
que implorava pelo seu retorno a cargos de responsabilidade executiva.
O Diário Popular exaltou a personagem, pois “a recepção que ao regressar lhe fizeram
os seus admiradores e amigos, excedeu no brilhantismo da forma, no caloroso do
16
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O regresso apoteótico de Mariano de Carvalho foi saudado, inclusivamente, por aqueles que antes se entretive‑
ram a glosar a sua figura. Rafael Bordalo Pinheiro associou­‑ se às manifestações, ilustrando as páginas centrais do
seu jornal, que poucas referências fizera ao agora africanista desde o caso da “Outra Metade”, com a reportagem
da chegada.
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A SÚBITA VOCAÇÃO “AFRICANISTA” DE UM EX-MINISTRO:
A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
entusiasmo, na espontaneidade efusiva das manifestações, tudo quanto temos pre‑
senciado em festejos idênticos feitos a quaisquer individualidades, a quem a simpatia
e a consideração públicas tenham mais alto elevado no pedestal da sua admiração
ou na glorificação dos seus feitos”. Se a ocasião serviu como teste à popularidade de
Mariano de Carvalho, este tinha passado com distinção em tal prova.
Logo pelas 8.00h. da manhã a cidade fervilhava numa agitação pouco comum. Uma
multidão dirigiu­‑se para o rio para tomar lugar nos vapores que se prepararam para
deixar o cais. Uma flotilha composta por 18 navios embandeirados, a bordo dos quais
embarcaram sensivelmente 4.000 pessoas, escoltou o paquete desde Paço de Arcos. A
comissão promotora seguia a bordo do Lusitano, sendo a esposa de Mariano de Carva‑
lho acompanhada pela família Moser. Várias embarcações levaram bandas que toca‑
ram animadamente. De praticamente todas elas foram lançados foguetes. Mariano de
Carvalho saudou as pessoas que ia reconhecendo, agitando o boné perante os vivas à
sua pessoa. Cerca das 11.00h. da manhã e depois de cumpridas as formalidades pelas
autoridades de saúde, o Malange virou para bombordo e subiu o rio precedido dos
vapores num cortejo “imponente”, atracando no cais da alfândega. O ministro da
Marinha da altura, António Enes, subiu a bordo abraçando “efusivamente” o regres‑
sado com quem conversou durante cerca de meia hora (Charivari, 20 de Dezembro de
1890: 180­‑181). O entusiasmo era desmedido, segundo a reportagem pouco imparcial
do Diário Popular, “no pontal a multidão era enorme. Mariano de Carvalho ia sendo
positivamente esmagado pela massa compacta de admiradores e entusiastas que que‑
riam apertar a mão e abraçar o recém­‑ chegado. Alguns membros da comissão tiveram
de empregar esforços extraordinários para conseguir rasgar caminho por aquela onda
de gente. Os vivas eram constantes; a música da guarda municipal tocava o hino da
Carta no corredor de saída; da multidão que se apinhava fora, e a polícia continha
a custo, partiam também saudações calorosas. Havia uma curiosidade doida de ver
Mariano de Carvalho”. O Terreiro do Paço encontrava­‑se todo cercado de trens em
duas filas e nas imediações da saída da estação fluvial era impossível passar. Uma
multidão calculada em cerca de 10.000 pessoas juntara­‑se para presenciar a cena.
Veio gente da Abrigada (terra natal de Mariano de Carvalho), Rio Maior, Cartaxo,
Almada, Sesimbra, Santarém e outras localidades. Mariano de Carvalho seria trazido
até à porta do ministério do Reino “quase no ar”. Para chegar à carruagem que lhe
estava destinada, bem como à mulher e aos filhos, teve de entrar por uma porta do
dito ministério e sair por outra, tal a confusão instalada. Na Rua do Ouro, a procis‑
são de mais de 200 trens saiu em direcção à Rua Formosa, sua residência (Diário
Popular, 11 de Dezembro de 1890: 1; O Sorvete, 14 de Dezembro de 1890: 4­‑ 5)17. Nos
dias seguintes recebeu dezenas de cartas e telegramas de felicitações enviadas por
parentes, amigos e anónimos, oriundas de todos os cantos do reino, pelo regresso à
pátria (BNP, Espólio de Mariano de Carvalho, mss 43, n.º 14).
17
A chegada em “delírio” de Mariano de Carvalho também foi glosada pela imprensa humorística. A entrada em
Lisboa do grande “estadista­‑jornalista; antigo poder oculto; inimigo­‑amigo do rei – O da capa!” tinha sido motivo
de festa. Houve música a rodos e só foguetes foram 4.000. O seu semblante vinha “alegre e saudável”, assim como
mais “nutrido” e queimado” pelo sol africano. Naquele dia de regozijo não houve aulas porque os professores se
tinham deslocado ao cais para presenciar a cena e até a alfândega rendeu menos. O povo parecia feliz e cantava
“Mariano chegou, em Lisboa desembarcou”. Depois de ter percorrido “metade” de África, só faltava agora apare‑
cer “a outra metade”.
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Paulo Jorge Fernandes
Mariano de Carvalho continuava a capitalizar em proveito próprio, os apoios políticos
angariados durante a sua recepção. Assim, os seus amigos resolveram estender as
solenidades em sua honra até à véspera de Natal, promovendo um gigantesco jantar
de apoio no teatro da Trindade em Lisboa. Os salões foram decorados por Rafael Bor‑
dalo Pinheiro. Mais de 200 convivas escutaram vários brindes, tendo o conselheiro
Silva Amado posto em relevo os talentos do jornalista, do parlamentar e do homem
de Estado. José Luciano, Pereira de Miranda, o conde do Restelo e Ressano Garcia, os
homens fortes do Partido Progressista, significativamente, encontravam­‑se entre os
que participaram no repasto. Os amigos também não faltaram, notando­‑se na assis‑
tência Fernando Palha, o conde de Moser, Mariano Pina e Mariano Prezado, entre
dezenas de outros. Das ausências mais notadas, salientou­‑se a de António Enes, ale‑
gadamente por não se achar de boas relações com Júlio de Vilhena.
Foi um Mariano de Carvalho sensibilizado que agradeceu a consagração e as palavras
do organizador, seguindo­‑se uma alocução de José Luciano de Castro, estrategica‑
mente sentado à esquerda do homenageado, que também prestaria os seus respeitos
ao correligionário de partido (O Sorvete, 28 de Dezembro de 1890: 8; Paixão, 1965: 5).
Por fim, escutou­‑se Júlio de Vilhena, o ministro que o havia nomeado para a missão.
Este relevou a questão colonial, destacou o papel civilizador de Portugal em África
e salientou a campanha de Mariano de Carvalho como essencial para uma melhor
compreensão do problema africano (Diário Popular, 25 de Dezembro de 1890: 1; O
Nacional, 26 de Dezembro de 1890: 1). Para todos os efeitos, era a primeira vez que um
estadista da importância de Mariano de Carvalho visitava demoradamente o Ultra‑
mar (Diário de Notícias, 11 de Dezembro de 1890: 1; O Nacional, 17 de Dezembro de
1890: 1 e Telo, 1991)18.
O africanista
Quando o parlamento reabriu, em 2 de Janeiro de 1891, este foi novamente o tema cen‑
tral do discurso da coroa. Preparava­‑se, então, uma expedição militar composta por
cerca de 400 soldados, que partiria em meados do mês para Moçambique. Mariano
de Carvalho, agora que se tinha tornado um especialista na matéria, por observação
directa, advertia que o perigo maior para a afirmação do domínio português na zona
não derivava da ameaça inglesa, mas sim da “propaganda muçulmana”, especialmente
sentida na região de Cabo Delgado a norte (O Nacional, 27 de Dezembro de 1890: 1;
BNP, Reservados, mss 146, carta n.º 303)19. Esta influência, que crescia de dia para dia e
podia ser considerada “contínua e sistemática”, não se fazia apenas sentir no domínio
político, mas também no social e no plano económico. Na própria Lourenço Marques,
capital da província, existiam mais “construções consagradas ao culto muçulmano”
do que igrejas católicas. Podiam ser, frequentemente, encontrados velhos a ensinar a
lei do Corão às crianças e pelas ruas “se topam pretos que no vestuário mostram ser
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Falava­‑ se que em Maio de 1891, Mariano de Carvalho tencionava partir rumo à África Ocidental para completar a
sua missão.
Quando chegou à Europa, Mariano de Carvalho passou a ser convidado para falar em público sobre as questões
africanas. O primeiro convite partiria do Centro Comercial do Porto, ficando o ex­‑ comissário régio de se deslocar
ao norte do país no final de Janeiro depois de regressar de Paris, onde pretendia ir no início do ano. Agora, o “afri‑
canista” permitia­‑ se dar conselhos ao ministro António Enes sobre assuntos relacionados com a administração
de Moçambique.
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A SÚBITA VOCAÇÃO “AFRICANISTA” DE UM EX-MINISTRO:
A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
mouros”. A escola portuguesa seria, comparativamente, pouco frequentada, contando
com um número reduzido de professores, a esmagadora maioria mestiços. Fora das
portas da cidade, a influência islâmica afigurava­‑se ainda mais intensa (Portugal Agrí‑
cola, Julho de 1891: 218­‑222)20.
O analista explicava o sucesso da religião maometana por razões históricas, uma vez
que a presença dos muçulmanos na região era mais antiga do que a dos europeus, e
por razões sociais, pois a religião permitia a poligamia, porque os seus dogmas de
fé eram “mais acessíveis a espíritos rudes e ainda porque o preto assim convertido
fica dispensado de trabalhar e veste melhor”. Este estado de coisas era agravado pelo
desleixo português na catequização das populações autóctones e pela inutilidade do
ensino primário ministrado. Do ponto de vista da organização política e económica,
Mariano de Carvalho chamava, igualmente, a atenção para o facto de que estes povos
não eram “indisciplinados”, encontrando­‑se agrupados em numerosas “confrarias”,
cujos membros seguiam ordens de forma cega emanadas por árabes, originários de
tão longe como o Sudão ou Meca. No dia em que fosse dada a ordem de sublevação
a estas populações, a soberania portuguesa no local correria enormes perigos. Nas
zonas mais afastadas da costa, “o preto gentio” parecia mais dócil, submisso, respeita‑
dor do europeu, ao mesmo tempo que aceitava o trabalho quando não o maltratassem
e lhe pagassem, ainda que modestamente (cerca de 80/90 réis por dia). Quando o
oprimiam, fugia. Então desde que caiam sob a influência muçulmana, revelavam
a tendência para se rebelarem e desafiarem a autoridade branca. Tratava­‑se de um
retrato bastante impressionista sobre a vida em Moçambique. Esta análise parecia
não ser compreendida na metrópole. Portugal, caso não repensasse a sua estratégia
de afirmação religiosa e cultural por via do ensino naquela zona de África, corria
sérios riscos de perder aspirações a em manter a sua influência local (Diário Popular,
15 de Dezembro de 1890: 1; Idem, 12 de Janeiro de 1891: 1; Aguiar, 1891: VII­‑XXI)21.
Todavia, a supremacia islâmica não seria igual em todo o território, de acordo com
o seu ponto de vista. Em Quelimane, mais próximo da costa, era até bastante redu‑
zida, embora não se pudesse afirmar que ali predominava o elemento cristão sobre
o mouro, mas havia algo a fazer para melhorar este quadro. Em Sofala, no sul, nem
se poderia falar em ascendente muçulmano, o mesmo se aplicando ao vale do Zam‑
beze, onde o gentio não era preponderante. Para quem visitava a zona, parecia que a
invasão maometana tinha sido interrompida pelo rio. Tudo se explicava, mais uma
vez, por razões que só a História permitia compreender. A instituição dos chamados
“Prazos da Zambézia”, cujos donatários desde remotos tempos exerceram grande
influência junto dos indígenas tinha estancado a torrente moura. No passado recente,
tendo sido extinta a instituição dos ditos prazos, acabando­‑se até em geral com os
arrendatários que foram substituídos por administradores nomeados pela “autori‑
dade”, logo se começou a notar em Quelimane um aumento do elemento mourisco
e até os comerciantes que professam esta fé se aventuravam com mais facilidade na
região, onde em épocas anteriores nem se arriscavam a entrar.
20
21
O “Poder Oculto” chegou a publicar artigos na imprensa sobre a temática colonial.
Já anteriormente tinha escrito sobre o estabelecimento das linhas de navegação entre Lisboa e Moçambique,
sobre as vantagens da viagem pelo Canal do Suez, da desvantagem do percurso pelo Cabo e do aproveitamento
dos indígenas como soldados da coroa portuguesa.
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Júlio de Vilhena, conhecedor do problema, enquanto ministro, tratou de restabelecer,
com algumas modificações, o sistema de arrendamento dos prazos, mas para que a
situação na região atingisse um nível satisfatório, a metrópole teria de investir mais
em meios militares, na catequese e na difusão da escola cristã. Tudo dependia do
aproveitamento que Lisboa fizesse da reorganização dos prazos porque “é neste meio
de óptima gente, fácil de dominar pelo português, que devemos estabelecer uma base
sólida do nosso império, tanto economicamente porque a Zambézia com as quali‑
dades do seu clima e do seu solo e a índole do seu povo deve ser o país mais rico do
mundo” (Diário Popular, 13 de Janeiro de 1891: 1; Papagno, 1980).
Agora era tempo de gerir a sua carreira política. A 13 de Janeiro, Mariano de Carvalho
foi convidado para visitar uma fábrica de garrafas na Amora, o que podia ser interpre‑
tado como mais um sinal simbólico do prestígio, entretanto, acumulado, mas a 14 de
Janeiro sofreu um rude golpe com a esperada morte de sua mãe. O cortejo fúnebre,
que saiu da igreja de São Nicolau, em Lisboa, para o cemitério dos Prazeres, seria bas‑
tante concorrido. No total, foram vistos mais de 200 trens. Todas as classes sociais, do
funcionalismo ao jornalismo, Exército e Marinha, Comércio e Indústria, se achavam
representadas. O Partido Progressista enviaria os seus mais destacados dirigentes.
D. Carlos e D. Amélia também endereçaram um telegrama de condolências à famí‑
lia enlutada. A grandeza da manifestação de pesar, para além do tributo a D. Maria
Amália de Carvalho, traduzia nova grandiosa homenagem de estima e consideração
política ao director do Diário Popular (O Nacional, 15 de Janeiro de 1891: 1).
Este, no jornal, prosseguiu as lições diárias sobre a forma mais correcta de proceder
à colonização dos territórios africanos. Segundo a sua opinião, não seria fácil atacar
o governo por enviar gente para Lourenço Marques antes mesmo de se ter presente
um qualquer plano do que fazer a seguir, porque as passagens eram pagas pelo
Estado, mas não podia concordar com a actual política de povoamento dos territórios
ultramarinos. Em primeiro lugar era necessário definir os termos do que se estava
a tratar. Que tipo de colonização Portugal incentivava na época? Tirando o caso do
planalto de Moçâmedes, em Angola, onde um conjunto de famílias brancas se tinha
fixado com o objectivo de ali permanecer e desenvolver a região, em toda a África
lusitana existia a emigração individual, que consistia em indivíduos que apenas pro‑
curavam enriquecer rapidamente para regressar à Europa na primeira oportunidade.
O ministério da Marinha até promovia a ida de colonos para Lourenço Marques, mas
ali chegados mais ninguém queria saber destas pessoas, que apenas levavam consigo
pás e enxadas. A maior parte dos colonos da cidade e suas imediações seriam madei‑
renses muito pobres que se destinavam à agricultura, mas que do assunto sabiam
muito pouco. Também viajavam alguns operários e artistas, mas estes eram mino‑
ritários e de extracção social duvidosa. Muitos seriam criminosos fugidos à justiça.
Quando estes grupos aportavam em Lourenço Marques eram literalmente lançados
à sua sorte. Os que podiam fugiam para o vizinho Transval, onde pediam emprego
aos boers. Muitos tornavam­‑se criados ou dedicavam­‑se ao comércio, não fazendo
qualquer uso dos instrumentos agrícolas que levavam de Lisboa. No fundo, quem
lucrava com esta situação era o Transval e não o Estado português que, em bom rigor,
financiava o recrutamento de emigrantes na região. Assim, nem se colonizava, nem se
estabelecia em Lourenço Marques um domínio português forte. Não adiantava enviar
indivíduos desenraizados, mas famílias inteiras. Depois não podiam ser despachados
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A SÚBITA VOCAÇÃO “AFRICANISTA” DE UM EX-MINISTRO:
A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
para uma área qualquer, mas para locais previamente escolhidos. O clima, por via do
calor e da humidade, bem como o paludismo, não podiam ser factores negligenciados.
Para além disso, teria de se ter em conta a altura do ano mais propícia para a viagem,
evitando as chuvas que se abatiam sobre a região entre Outubro e Março. De outro
modo, o ministério da Marinha cometeria um “verdadeiro atentado” ao conceder pas‑
sagens indistintamente em todas as épocas do ano, concluindo que “mandar colonos
só é bom, quando se cuida do que se manda, do sítio para onde se manda, como se
manda: de outro modo é desperdício, descrédito e desumanidade” (Diário Popular, 18
de Janeiro de 1891: 1; Aguiar, 1891: VII­‑XXI).
Outro problema que se colocava, como vimos, era o da propaganda cristã. De nada
servia destacar padres da Índia ou missionários educados em Sernache do Bom Jardim,
que seriam óptimos para paroquiar em povoações civilizadas, mas que nada sabiam
sobre como catequizar o gentio em tais paragens. A norte de Quelimane não era difí‑
cil encontrar mouros que convertiam os autóctones e ensinavam suahili, enquanto os
eclesiásticos católicos se limitavam a ensinar português, latim e teologia e a praticar
“actos indecorosos” sem utilidade ou aproveitamento. Custavam dinheiro ao Estado e
limitavam­‑se a pregar em latim ou a dizer missa em português, sem que ninguém os
entendesse. Isto nem seria o pior, pois havia o hábito de atentar ao pudor de mulheres
casadas ou de ao cair da noite saírem cantando “dominus vosbiscum, vamos à bisca”,
indo depois para casas de jogo. Muitos tombavam ébrios nas ruas. Em Moçambique,
assistia­‑se ao triste espectáculo de existirem missionários sem convertidos e escolas
sem alunos, ou seja, um clima de geral desmoralização, “tudo filho das nossas falsas
ideias e da nossa detestável incúria” (Diário Popular, 19 de Janeiro de 1891: 1).
Entretanto, o mundo dos negócios voltava a reclamar a sua presença. Entre 21 de
Janeiro e 12 de Fevereiro esteve ausente do país, deslocando­‑se a Paris e à Bélgica na
companhia de Dantas Baracho e António Centeno. Ia incumbido por Augusto José da
Cunha para negociar com o Crédit Lyonnais os termos de um empréstimo que pre‑
parasse a adjudicação do monopólio dos tabacos. O conde de Burnay, enviado antes
pelas “mãos incapazes” de João Franco, tinha chegado primeiro e já se encontrava
na capital francesa a ajustar o negócio com o Comptoir d`Escompte conseguindo a
melhor proposta (O Nacional, 12 de Fevereiro de 1891: 1­‑2; O Português, 17 de Fevereiro
de 1891: 1; Diário Popular, 15 de Fevereiro de 1891: 1; Fuschini, 1899: 99­‑101; Ramos,
1994: 165)22. O “Poder Oculto” não testemunhou, pois, a insurreição militar de cariz
republicano que ocorreria no Porto a 31 de Janeiro e que segundo João Chagas, exage‑
radamente, marcava “efectivamente o fim do sistema liberal, em Portugal” (Chagas e
Coelho, 1901: 453). O Diário Popular, embora com o seu director ausente, colocou­‑se
ao lado do governo em nome da integridade das instituições (Diário Popular, 8 de
Março de 1891: 1)23 . Na capital francesa, a reacção de Mariano de Carvalho teria sido
Em Paris, Mariano de Carvalho concedeu uma interessante entrevista ao Petit Journal, onde deixou claro o seu
ponto de vista sobre a questão de Moçambique e as relações entre Portugal e a Inglaterra. Já sobre finanças,
segundo a imprensa lisboeta, ter­‑lhe­‑ia sido confiada a incumbência de “formular e entabular negociações para
uma operação em que se pudesse conseguir a consolidação da dívida flutuante sem se recorrer à consignação de
rendimentos especiais”. Todavia, em virtude do falhanço da sua missão, o Diário Popular veio desmentir esta
versão dos acontecimentos não comprometendo o seu director. Mariano de Carvalho teria estado fora para tratar
de assuntos pessoais “e do actual ministro da Fazenda só aceitou a comissão de tomar e dar informações”, apesar
de ter sido convidado pelo governo para uma alegada “missão oficial”.
23 Mais tarde, na qualidade de deputado pelo Cartaxo, Mariano de Carvalho receberia uma mensagem de felicita‑
ções, oriunda de Rio Maior, pelo malogro da revolta do Porto para ser entregue ao rei.
22
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bem diferente. Conforme Serpa Pinto relatou indignado a D. Carlos, o “Poder Oculto”
tinha sido avisado da iminência da movimentação republicana em Portugal uns dias
antes da mesma ocorrer, aproveitando a ocasião para jogar na baixa dos fundos portu‑
gueses na bolsa de Paris (IANTT, Arquivo da Casa Real, ms., cx. 7439, cp. 920, doc. 11).
Depois de controlar a situação, o presidente do Conselho procurou António de Serpa
e José Luciano, na qualidade de líderes dos principais partidos, para lhes comunicar
que o seu governo estava disposto a pedir a demissão ao rei se algum deles, ou os
dois, se quisessem encarregar de formar novo ministério. Ambos os chefes fizeram
saber a João Crisóstomo que não aceitariam tal incumbência nas actuais circunstân‑
cias e que o gabinete deveria permanecer em funções, confiando­‑lhes o declarado
apoio dos seus partidos.
D. Carlos chamou António de Serpa e José Luciano ao paço, onde estes mantiveram a
sua firme disposição de ajudar o governo a ultrapassar as dificuldades do momento:
assegurar a manutenção da ordem pública, resolver a questão inglesa e consolidar a
dívida flutuante. Ficavam, assim, criadas as condições para uma espécie de “pacto de
não agressão” entre regeneradores e progressistas que permitiria a João Crisóstomo
manter­‑se no poder por mais algum tempo com o apoio de D. Carlos e dos principais
partidos (Correio da Noite, 12 de Fevereiro de 1891: 1). O falso consenso significava,
porém que, nem progressistas nem regeneradores estavam dispostos a dar cara por
um tratado com a Inglaterra que teria sempre onerosos custos políticos para quem o
assinasse (Novidades, 13 e 17 de Fevereiro de 1891: 1; Cabral, 1943: 87­‑ 88; Melo, 1988:
32­‑34)24 .
De regresso ao reino, Mariano de Carvalho refugiou­‑se em outras questões, continu‑
ando a dedicar a sua atenção ao problema africano. Trabalhava agora num projecto
de reforma do Código Civil para o Ultramar na parte que respeitava à constituição,
registo e transmissão de propriedade. A proposta depois de pronta foi entregue a
António Enes, a 16 de Fevereiro de 1891, acabando o ministro por nomear uma comis‑
são que se iria encarregar de analisar o documento e de que faria parte Moreira Feio,
que já havia servido como colaborador de Mariano de Carvalho na vertente jurídica
do mesmo trabalho, e Elvino de Brito, o director­‑geral da Agricultura (O Nacional, 9
de Fevereiro de 1891: 1; BNP, espólio de Mariano de Carvalho, N16/17; Diário Popular,
23 de Julho de 1891: 1)25 . Contudo, a notícia mais sensacional destes dias envolvendo o
seu nome dava conta da possibilidade do director do Diário Popular vir a ser nomeado
par do reino vitalício, mas a expectativa tardava em confirmar­‑se.
Conclusão
No início de Dezembro de 1890, Mariano de Carvalho regressou a Lisboa depois
passar quase seis meses em Moçambique. À sua chegada seria vitoriado no Terreiro
do Paço por uma multidão calculada em cerca de 10.000 pessoas. As suas indicações
24
O ministro do Reino, António Cândido, que visitara o Porto uma semana antes do 31 de Janeiro, fora acusado de
ter sido demasiado brando na sua reacção, não antecipando os acontecimentos que conduziram à revolta. João
Crisóstomo dispunha­‑ se agora a oferecer a sua cabeça. Recusada a demissão do gabinete, pretendia sair com a
sua posição reforçada, o que não veio a acontecer. A escusa de progressistas e regeneradores em encabeçar uma
alternativa apenas significava o adiamento da resolução dos verdadeiros problemas da governação.
25 Mariano de Carvalho faria parte desta comissão, na qualidade de seu presidente até aos fins de Julho, cedendo o
lugar ao visconde de Moreira de Rei, ex­‑vogal da comissão, onde seria substituído pelo conde de Otolini.
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A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
e propostas deveriam servir para dar ao governo uma visão mais próxima da reali‑
dade sobre o estado em que se encontrava a província. Afinal, nunca um político da
importância e grandeza de Mariano de Carvalho estivera na África Oriental portu‑
guesa durante tanto tempo. De acordo com a sua perspectiva, a prioridade das auto‑
ridades deveria voltar­‑se para a reorganização dos prazos na zona do Zambeze e sua
respectiva reconstituição a sul daquele rio. Com alguma ponta de exagero, própria
do entusiasmo de uma primeira visita a África, considerava que “o vale do Zambeze
bastaria para abastecer a Europa de açúcar, sem possível concorrência, se o governo
português tivesse explorado as naturais inclinações do indígena”. Mas havia mais. O
Estado poderia apostar na produção de cocos, plantações de café, cacau, anil, arroz,
noz­‑moscada. Não faltavam terras ricas e férteis, onde abundava a água e não faltava
a força braçal “baratíssima” dos nativos. No passado, nada se havia sido feito para
aproveitar as riquezas naturais da província e agora faltavam “meios e tempo”.
Mariano de Carvalho achava urgente a introdução de moeda nacional na província
como forma de afirmação da nossa soberania e temendo que a burocracia fizesse
retornar as remessas à procedência, aconselhou esta possibilidade. De referir que o
ex­‑ enviado governamental a Moçambique se opunha ao envio da expedição militar
que seguiu em 1891 para o território por considerar que a mesma “não serviria de nada
como meio de resistência contra os ingleses, os quais as sentirem­‑se incomodados
tomariam a simples cautela de não a deixarem ir até ao canal de Moçambique”. Antó‑
nio Enes, o ministro da Marinha, explicou então a Mariano de Carvalho que o envio
da tropa ajudava mais a acalmar o estado da opinião pública nacional do que para
colocar os ingleses ou os indígenas em sentido. Mariano de Carvalho não quis ser juiz
em tal questão, mas ficava claro que, nesta altura, o início do esforço de guerra portu‑
guês na África Oriental se prendia mais com questões de propaganda interna do que
de afirmação da soberania pela via da força armada. Para Mariano de Carvalho fazia
mais falta o investimento europeu na província do que os soldados. A própria Lou‑
renço Marques de cidade pouco mais tinha do que o nome. A sua expansão urbana só
agora tinha arrancado.
Por esta altura emergiam, então, dois planos para conter a situação em Moçambique:
uma militar, defendida por operacionais que conheciam a realidade no terreno como
Caldas Xavier e Mouzinho de Albuquerque, que não desagradava completamente aos
ministros António Enes, primeiro e Júlio de Vinhena, depois, por razões de ordem
política interna e uma visão “civilista”, apoiada por Mariano de Carvalho e com algum
eco junto do Conselho de Ministros de 1891­‑1892, mais vocacionada para o aproveita‑
mento e desenvolvimento económico do território. Dada a extensão da província e a
falta de meios humanos e logísticos, a sua conquista militar seria um desperdício de
recursos, tema que o ex­‑ministro da Fazenda conhecia como poucos.
A situação do tesouro nacional não permitia que as aventuras militares tomassem
outras proporções, mas também escasseava o dinheiro para grandes investimentos
nas colónias. Nem para todos os políticos, contudo, a crise financeira seria sinónimo
de abandono das províncias africanas. Havia quem defendesse que a solução passaria,
justamente, por uma nova orientação da política portuguesa em relação a Moçam‑
bique, na altura a possessão mais apetecível e aquela que poderia servir de motor
ao desenvolvimento colonial. Mariano de Carvalho propunha a realização de 11.250
a 13.500 contos em ouro através da constituição de companhias exploradoras em
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Lourenço Marques e Quelimane, que se juntariam às existentes, e de 3.500 contos
pela convenção aduaneira em Moçambique. Recorde­‑se de que se tratava do mesmo
Mariano de Carvalho que há quase 15 anos, pelo menos desde os finais de 1878, tinha
sido um dos inventores do nacionalismo radical de cariz colonial contra a concessão
por parte do Estado de territórios em Moçambique a companhias comerciais, jus‑
tamente com o argumento que se estava a alienar a soberania nacional em favor de
estrangeiros. Com efeito, o antigo governante era agora defensor da adopção de uma
pauta comum nos domínios portugueses e britânicos no sudeste africano. Chegou a
discutir o seu plano em privado com políticos ingleses ligados ao Partido Conserva‑
dor, então no poder. A medida foi mesmo apresentada em Conselho de Ministros,
durante 1891, quando foi responsável pela pasta da Fazenda. De acordo com tal pro‑
posta, o imposto fixado na tal pauta comum seria igual para todas as mercadorias
importadas, qualquer que fosse a sua origem ou procedência e nunca superior a 5%
ad valorem. O projecto foi recebido com hesitação pelos restantes membros do exe‑
cutivo, mas Júlio de Vilhena, o ministro da Marinha de então, logo declarou que dela
“fazia questão ministerial” e que abandonaria de imediato o gabinete caso o mesmo
fosse aprovado, prolongando e agravando a crise interna latente desde a declaração do
Ultimato (Pina, 1893).
Para o responsável pelo Ultramar parecia inconveniente e até “politicamente preju‑
dicial” o estabelecimento de uma convenção aduaneira com a Inglaterra no próprio
momento em que a opinião pública se encontrava ainda em pé de guerra contra os
ingleses. Como é que o governo português poderia enfrentar o povo e fazer as pazes
com a Inglaterra? Como se explicaria ao espírito público que o governo português
queria negociar com os ingleses um modelo através do qual as alfândegas nacionais
ficariam sujeitas à fiscalização estrangeira e que a simples arrecadação dos impostos
seria feita em comum? Pareceria que se estariam a vender ao inimigo. Júlio de Vilhena
lembra­‑se, com certeza, de que anos antes já esta tinha sido a causa da queda de minis‑
térios e a origem da crise política que ainda não se tinha resolvido. Não quereria repe‑
tir a experiência agora. Além disso, o estabelecimento de uma taxa única para todas
as mercadorias iria provocar o desagrado da Associação Comercial de Lisboa, trans‑
formada em grupo de pressão poderoso, que solicitava a aprovação de um diferencial
a favor dos produtos nacionais em todos os relatórios enviados ao governo. Da forma
projectada por Mariano de Carvalho nenhum bem da indústria portuguesa entraria
em Moçambique, uma vez que seria impossível suportar a concorrência dos britânicos.
A “via económica” para o desenvolvimento e ocupação de Moçambique seria inviabi‑
lizada pelas disputas da agenda política interna. Restava a saída das armas. Os custos
políticos eram menores e sempre se dava uma satisfação à opinião pública.
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A VIAGEM DE MARIANO DE CARVALHO A MOÇAMBIQUE EM 1890
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