Guavira no9

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Guavira no9
Guavira
no9
Revista Guavira – Letras. Edição de número 09
Poema Narrativos
Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Vol. 01, n. 09 (2005 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).
Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.
1. Letras 2. Estudos Literários 3. Narrativa 4.Poema
I. Título: Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”.
(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858)
.
SALES, José Batista de (Org.). Revista Guavira-Letras: Poemas Narrativos
Vol. 02, n. 09. Jul./Dez. 2009.
Comissão Editorial:
João Luis Pereira Ourique (UFMS)
Rogério Vicente Ferreira (UFMS)
Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS)
Conselho Científico:
Antônio Rodrigues Belon (UFMS)
Celina A. G. S. Nascimento (UFMS)
Claudete Cameschi de Souza (UFMS)
Edgar C. Nolasco dos Santos (UFMS)
João Luis Pereira Ourique (UFMS)
José Batista de Sales (UFMS)
Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS)
Marlene Durigan (UFMS)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Rogério Vicente Ferreira (UFMS)
Rosana C. Zanelatto dos Santos (UFMS)
Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS)
Vitória R. Spanghero Ferreira (UFMS)
Wagner Corsino Enedino (UFMS)
Corpo Editorial:
Eneida Maria de Souza (UFMG)
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis)
José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara)
Maria José Faria Coracini (UNICAMP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFCE)
Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG)
Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra - Portugal)
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)
Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS)
Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália)
Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Projeto Gráfico e Editoração
Rogério Vicente Ferreira
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Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol.
01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão
On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858)
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SUMÁRIO
A SAGA DA IMIGRAÇÃO: BARCAS E ARCAS,
Zilberman....................................................................................07
DE
ARY
NICODEMOS
TRENTIN
-
Regina
NOTAS SOBRE OS PRESSUPOSTOS ESTÉTICO-FILOSÓFICOS ROMÂNTICOS EM O GUESA, DE SOUSÂNDRADE
- Pedro Martins Reinato..21
POEMA NARRATIVO CARAMURU, DE FREI JOSÉ DE
Biron...............................................................................................................36
SANTA
RITA
DURÃO
-
Berty
R.
UMA TRAJETÓRIA DO ESQUECIMENTO: O POEMA A NEBULOSA, DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO Angela da Costa..........................................52
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Apresentação
O poema narrativo brasileiro ainda não despertou o interesse dos estudiosos de
literatura, apesar da longa tradição e da criatividade de seus inúmeros autores dos anos
mais recentes. Daí, talvez a compreensível reação de espanto ou de curiosidade que
muitos ainda não conseguem disfarçar, ao atribuírem aos estudos sobre poemas
narrativos a natureza de arqueologia. Mas é inegavel que esta modalidade de
composição literária mereça a atenção de estudos sistemáticos e permanentes para que
possa revelar a sua inesgotável riqueza.
Foi graças ao convívio com professores de vasta experiência de ensino e de
longa vivência em pesquisa na área da historiografia literária brasileira que me
aproximei desta modalidade literária e sobre a qual desenvolvi e continuo
desenvolvendo alguns estudos desde 2006. A cada dia, me convenço de que estudos
sobre o poema narrativo tornam-se mais urgentes e oportunos. E, assim, sugeri à direção
da GUAVIRA LETRAS, revista eletrônica do Programa de Mestrado em Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) do campus de Três Lagoas, a
inclusão de um número dedicado a este gênero, com o objetivo de estimular novas
pesquisas nesta área.
Este número da GUAVIRA LETRAS apresenta quatro estudos importantes
sobre o assunto, de forma a sugerir leitura ou releitura, pesquisas e estudos, com o
objetivo de incrementar os trabalhos de historiografia literária brasileira, com particular
cuidado para aqueles voltados para a identificação e o registro das publicações mais
remotas do nosso sistema literário.
São apresentados estudos de Regina Zilberman, pesquisadora plenamente
reconhecida e, atualmente, ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e à Faculdade Porto-Alegrense, de Porto Alegre-RS. O segundo estudo é de
autoria de Pedro Martins Reinato, membro da Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, dedicado ao poema O
Guesa, de Sousândrade. O terceiro artigo, Poema narrativo Caramuru, de Frei José de
Santa Rita Durão, realizado por Berty R. R. Biron, membro do Pólo de Pesquisa sobre
Relações Luso-Brasileiras, do Centro de Estudos do Real Gabinete de Leitura, do Rio
de Janeiro. O quarto texto, parte de tese de doutorado, foi escrito por Angela da Costa,
doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP.
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Estes estudos abrangem considerável período da história da literatura brasileira
e, desta forma, tornam-se importante fonte de informações para outras pesquisas e,
certamente comprovam a relevância e a atualidade dos estudos sobre o poema narrativo.
Vamos aos estudos.
Regina Zilberman no artigo “A saga da imigração: Barcas e Arcas, de Ary
Nicodemos Trentin”, aborda as relações entre localismo e universalismo, moderno e
pós-moderno como elementos constituintes do poema.
Após traçar as coordenadas históricas e estéticas da literatura brasileira desde as
primeiras décadas do século XX, ela apresenta a obra de Trentin, cujo tema trata da
“saga da imigração”, tão importante no processo de formação da população e do
território gaúchos, comprometida com a poesia sul-rio-grandense e em diálogo com a
chamada “lírica social” de registro homogêneo do modernismo brasileiro de um lado e,
de outro, com os movimentos culturais alternativos das décadas de 1960 e 1970 para,
finalmente, evidenciar seus traços pós-modernos.
Segundo Zilberman, o conceito de pós-modernismo, apesar de nem sempre ser
aceito com tranquilidade, significa o reconhecimento da voz dos segmentos mais
diferenciados e, assim, permite a distintos grupos condições de dar vazão as suas
experiências singulares e consideradas mais autenticas. É neste sentido, portanto, que o
poema de Trentin torna-se um poema narrativo singular, pois ao abordar a “saga da
imigração” conseguiu destacar outras vozes e outros heróis, ainda não reconhecidos,
porém fundamentais para a construção de identidade nacional.
O trabalho seguinte, Notas sobre os pressupostos estético-filosóficos românticos
em O guesa, de Sousândrade, de Pedro Martins Reinato, busca, além do que o próprio
título anuncia, o objetivo, talvez indireto, de reforçar o destaque merecedor a que o
poeta romântico Sousândrade faz jus. O trabalho vale-se da compreensão de estudos de
pensadores como Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte e Walter Benjamin para
melhor situar a recepção da obra O guesa errante. Assim, contrapõe o julgamento da
crítica contemporânea a Sousândrade e suas próprias reflexões sobre sua arte com os
pressupostos estético-filosóficos dos pensadores há pouco citado.
O artigo conclui reconhecendo a consciência do “autoconhecimento” que
norteava o trabalho poético do autor de O guesa, sua nítida correspondência com as
mais refinadas reflexões levadas a termo por seus poetas e filósofos mais
representativos, que ao final do trabalho afirma que “Falar em um modernista
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[Sousândrade] avant la lettre na obra desse poeta é anacrônico e, talvez, até um
equivoco, uma vez que tudo nele é romântico, com bases estético-filosóficas bem
definidas.”
No trabalho seguinte, Berty R. R. Biron faz uma leitura de Caramuru, de Santa
Rita Durão, com o objetivo de “entender o poema em sua especificidade narrativa” e de
retomar as evidências do discurso ideológico no encontro da cultura lusitana (europeia)
com a do Novo Mundo (americano). Para alcançar seus objetivos, a autora aborda os
elementos narrativos como a formação das personagens e, principalmente, da
construção do herói.
De tal modo, os dois objetivos mostram-se coerentemente amalgamados,
conforme os preceitos clássicos do poema épico. E assim se compreende muitos
atributos de Diogo, como o de coragem e intrepidez, ao sobreviver a um naufrágio,
enfrentar exércitos de guerreiros estranhos nas vestes, nas armas e nos valores. Para a
componente religiosa e política do poema, destacada no artigo, é plausível a construção
de um herói envolto em ares misteriosos propícios a sua divinização e posterior fascínio
de seus crédulos seguidores e domínios dos inimigos.
Outro aspecto importante para compreensão da especificidade narrativa do
poema e da ideologia do qual é porta-voz, diz respeito ao comportamento amoroso do
herói, que deve ser afetuoso, digno, porém independente. É como ocorre durante a
escolha da esposa, Paraguaçu, em detrimento e, depois, a morte de Moema. Finalmente,
a honradez do herói se concretiza no momento em que o rei da França pede a Diogo
Álvares seu apoio para o domínio francês das terras brasileiras, mas o herói, firmando
sua lealdade ao rei de Portugal, delicadamente recusa o pedido.
Ao enfatizar a narratividade do poema de Santa Rita Durão, a autora contesta
problema antigo da historiografia brasileira, segundo o qual o mesmo poema peca por
além de ser excessivamente clássico e demasiado preso ao modelo camoniano, falta-lhe
ações e, portanto, possui mínimo entrecho narrativo. O estudo de Berty Biron contribui
de forma original para melhor avaliação deste aspecto.
No último artigo deste número, Angela Costa aborda a trajetória da recepção
crítica do poema A Nebulosa de Joaquim Manuel de Macedo. Além da peculiar
recepção do poema que, após calorosa aceitação, desaparece do mercado editorial
brasileiro e até hoje continua praticamente desconhecido, a autora desenvolve relevante
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reflexão sobre a publicação e recepção do poema no bojo das discussões sobre o
processo conhecido como formação da identidade nacional na literatura brasileira.
Lembra a autora que o poema é publicado no mesmo ano de O guarani, de
Alencar que, por sua vez, é tido como resposta romântica à polêmica com Gonçalves de
Magalhães, na qual se envolveu o imperador Dom Pedro II, que propunha a urgência de
se elaborar uma obra épica nacional para estimular a formação do “ espírito nacional”. E
que, além disso, A Nebulosa não se origina do romantismo italiano ou das obras de
Byron, tão frequentes na poesia romântica brasileira de então, mas “chega até as terras
altas e lendárias da Escócia.” e por explorar temas como a tragicidade, o horror, a
posição ativa e decisória da mulher, além do amor impossível, deve chamar a atenção
dos estudiosos sobre a possibilidade de o poema A Nebulosa provir de outra tradição
que remeteria a outro tempo ou estilo de narrativa.
É este, portanto, o conjunto de estudos sobre o poema narrativo. Evidentemente,
muitos temas e aspectos não foram contemplados e devem sugerir a oportunidade de se
explorar este campo promissor de investigação sobre a literatura brasileira.
Boa leitura!
José Batista de Sales
Programa de Mestrado em Letras – UFMS – Campus de Três Lagoas
Organizador
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A SAGA DA IMIGRAÇÃO: BARCAS E ARCAS, DE ARY NICODEMOS
TRENTIN
Regina Zilberman 1
RESUMO: No poema narrativo Barcas e arcas, Ary Nicodemos Trentin expõe a saga
da imigração segundo processos criativos característicos da pós-modernidade.
Palavras-chave: poesia brasileira; modernidade; Pós-modernismo; etnia.
ABSTRACT: In the narrative poem Barcas e arcas, Ary Nicodemos Trentin displays
the immigration saga, using creative processes characteristic of the postmodernity.
Key Words: Brazilian poetry; modernity; Postmodernism; ethnicity.
Ary Nicodemos Trentin (1944-2002) publicou seus primeiros versos em
Matrícula, coletânea que congregava a nova geração de poetas nascidos na região
serrana do Rio Grande do Sul, tendo a cidade de Caxias do Sul como eixo cultural do
grupo de que também participavam Oscar Bertholdo (1935-1991), José Clemente
Pozenato (1938) e Delmiro Gritti (1942), além de Jayme Paviani (1940). Matrícula
adotou título programático, já que significava a introdução de novos autores ao universo
institucional da poesia, escritores que, se, de um lado, admitiam sua juventude, de outro,
almejavam ser recebidos na academia da literatura, de que doravante seriam membros
assíduos.
Quando a coletânea foi lançada, em 1967, Mario Quintana (1906-1994) já
produzira a maior parte de sua obra, conforme testemunha a Antologia poética, editada
no ano anterior, em 1966. Por sua vez, o Grupo Quixote, bastante ativo nos anos 50 do
século XX, interrompera sua participação no sistema literário do Rio Grande do Sul, em
decorrência, de um lado, da migração de membros como Pedro Geraldo Escosteguy
(1916-1989) e Raymundo Faoro (1925-2003) para o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, de
outro, da dispersão profissional dos componentes que permaneceram no Rio Grande do
Sul, como Silvio Duncan (1922–1998) e Heitor Saldanha (1910-1986). Representavam
a poesia dos anos 60 autores como Armindo Trevisan (1933) e Carlos Nejar (1939), que
optaram por conferir orientação filosófica e social a seus versos. A surpresa de ser
(1967), do primeiro, e O campeador e o vento (1966) ou Canga (1971), do segundo, são
títulos que sugerem a temática dos poemas encontráveis naqueles livros.
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Faculdade Porto-Alegrense.
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Fazer poesia social nos anos 60 do século XX significava dar seqüência à tônica
dominante da lírica brasileira desde a publicação, em 1945, de A rosa do povo, por
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Sentimento do mundo (1940), do mesmo
autor, antecipava o pendor que sua lírica assumiria na década de 40, mas foi A rosa do
povo que estabeleceu o paradigma que repercutiu nos autores sul-rio-grandenses a partir
dos anos 50. Na década de 60, João Cabral de Melo (1920-1999) constava igualmente
do cardápio de leitura de nossos poetas. Tendo publicado os primeiros textos entre 1942
e 1947, em 1950 lançara O cão sem plumas, poema que ecoara intensamente na veia
lírica dos autores sulinos.
O contexto político favorecia o posicionamento dos poetas, pois, desde 1945,
com a queda da ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954), o Brasil fizera as pazes com a
democracia. Mesmo quando o velho déspota retornou ao poder, em 1950, após vencer
as eleições para a presidência, prevaleceu, ainda que aos trancos e barrancos, o regime
democrático. No começo dos anos 60, à época do governo de João Goulart (1918-1976),
a política cultural estimulou os artistas a fazerem uso de sua criatividade na direção da
exposição de mazelas sociais e denúncia da opressão no campo e na cidade. Exemplar
foi a atividade dos Centros de Cultura Popular, os CPCs, vinculados à União Nacional
de Estudantes, UNE, que, entre 1962 e 1963, publicaram, na série de livros
denominados Violão de rua, versos engajados de Moacyr Félix (1926-2005), Ferreira
Gullar (1930), Affonso Romano de Sant’Anna (1937) e José Carlos Capinam (1941),
entre outros.
O impacto do projeto político nascido no começo dos anos 60 não se
interrompeu com o golpe militar de 1964, que encerrou o ciclo democrático iniciado em
1945 e deu início a um regime repressivo que se estendeu por outros vinte anos. A força
da inércia, somada à relativa liberalidade conservada até o final de 1968, facultou a
expansão e consolidação das manifestações artísticas endereçadas à denúncia dos males
da sociedade, das atitudes conservadoras do poder público e da opressão do sistema
imposto pelo Estado.
Na década de 70, tudo mudou: a ameaça da censura e o agravamento da
repressão, após a implantação de Ato Institucional, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968,
motivaram o encolhimento da produção artística brasileira, sobretudo no âmbito do
cinema e do teatro, vítima esse até da violência física, de que foi sintoma, em Porto
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Alegre, em 1968, o espancamento dos atores que protagonizavam a peça Roda Viva, de
Chico Buarque de Holanda (1944).
A poesia assistiu, por sua vez, ao esgotamento do modelo engajado herdado das
décadas anteriores e à expansão do movimento autodenominado marginal ou
alternativo. A designação se justificava, na medida em que seus membros, de uma parte,
rejeitavam os modos consagrados de produção e distribuição de objetos escritos, como o
livro, ao financiarem a impressão dos próprios textos, e empenharem-se na venda direta
do produto ao consumidor; de outro, recusavam os padrões, segundo eles, ainda bem
comportados de expressão verbal dos poetas politizados. Em seu lugar, propuseram uma
linguagem escrachada e transgressora, desafiando as possibilidades de percepção e
recepção por parte do leitor a quem cabia assumir uma dessas duas atitudes: ou aceitava
a falta de pudor e interagia com o poema; ou então reprovava a obra, posição
denunciadora de seu conservadorismo ou de sua visão “careta”. A poesia marginal
encarregava-se da contracultura no Brasil dos anos 70, representada essa igualmente
pela chamada imprensa nanica (O Pasquim, Opinião, Movimento), pela música de
Caetano Veloso (1942) e por grupos de teatro como o Oficina.
Poetas como Francisco Alvim (1938), Leila Míccolis (1947), Antônio Carlos de
Brito (Cacaso) (1944-1987), Nicolas Behr (1958), entre vários outros, mimetizaram, à
sua maneira, o “ame-o ou deixe-o” do discurso oficial do período do governo Médici
(1969-1974), já que, perante seus versos, não era mais possível a atitude contemplativa,
admirativa ou mesmo crítica, característica, na maioria das vezes, da leitura da poesia.
Tratava-se de aceitá-los – portanto, de amá-los, aderindo a seu projeto, ou de repudiálos – deixando-os de lado. O radicalismo foi comparado a um novo Modernismo
(HOLANDA,
1976;
HOLANDA,
1981;
HOLANDA,
GONÇALVES,
1982;
MATTOSO, 1981; PEREIRA, 1981), o que talvez tenha sido exagero. De todo modo, a
poesia marginal, tal como ocorreu com as propostas alardeadas nos anos 20 por Oswald
de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e Tarsila do Amaral (18861973), rompeu a hegemonia do discurso politizado até então dominante, favorecendo as
vozes que não se alinhavam a ele, mesmo quando não partilhavam o programa
alternativo.
Outro processo artístico acontecia sub-repticiamente, delineado com clareza ao
final da década de 70 e descrito com mais precisão a partir dos anos 80: o fenômeno
muitas vezes designado como Pós-Modernismo.
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Pós-Modernismo constitui designação nem sempre aceita com tranqüilidade, já
que corresponde simultaneamente à retomada do projeto modernista e à sua superação
(BÜRGER, 1986; HUTCHEON, 1991; HUYSSEN, 1986; ROUANET, 1987;
SUBIRATS, 1987). Do Modernismo, importa a vocação transgressora e incômoda; por
outro lado, evita a propensão centralizadora e homogeneizadora daquele, que elegeu
motivos emblemáticos para sua auto-representação, como, no caso brasileiro, o
nacionalismo e a antropofagia, ou, no caso europeu, o experimentalismo lingüístico e
narrativo.
No Pós-Modernismo, tudo pode ser válido, sugerindo permissividade e
desarranjo
estético.
Esse
liberalismo,
contudo,
significa
principalmente
o
reconhecimento da voz dos segmentos mais diferenciados. No âmbito da poética pósmoderna, distintos grupos – dominantes ou dominados, maiorias ou minorias – tiveram
condições de dar vazão às suas expressões singulares e consideradas mais autênticas,
sem precisar creditá-las aos sentidos mais amplos – e, portanto, mais difusos – de
identidade nacional ou subjetividade.
As coordenadas históricas e estéticas posicionam o poema narrativo Barcas e
arcas, que Ary Nicodemos Trentin publicou em 1981, após receber o segundo lugar no
Concurso Nacional de Poesias do Estado de Goiás (ZINANI; BERTUSSI; SANTOS,
2006, p. 192-193). O autor estreara, como se indicou antes, no ano-chave de 1967 e
lançara Investiduras em 1976; ao abrir a década de 80, do século XX, oferece o livro
que representa seu compromisso com a poesia sul-rio-grandense no âmbito do
esgotamento do projeto da lírica social e no horizonte da pós-modernidade.
Barcas e arcas é texto estruturado de modo uniforme, conforme um plano
rigoroso. Após a epígrafe, extraída de O Continente, de Erico Verissimo, apresenta oito
partes, cada uma introduzida por um prólogo em forma de poema, que pode ter dois,
três ou quatro versos, e que culmina no título do segmento. Barcas e arcas designa,
além do título do livro, a primeira divisão, que abre com um prólogo de quatro versos;
os demais capítulos são:
-
“Rebolos e facas”, antecedido por um poema de dois versos;
-
“Moinhos e girassóis”, antecedido por três versos;
-
“Uvas e favos”, antecedido por três versos;
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-
“Cavalos e vales”, antecedido por três versos;
-
“Morangos e amoras”, antecedido por dois versos;
-
“Sinos e lanternas”, antecedido por quatro versos;
-
“Anéis e violetas”, antecedido por quatro versos.
Por sua vez, cada segmento é formado por dois poemas de dez estrofes, e cada
estrofe contém quatro versos decassílabos brancos. O livro inteiro contabiliza dezesseis
poemas, 160 estrofes e 640 versos. Tais números confirmam o rigor e simetria com que
é tratada a estrutura do poema. Esse fecha com um trecho de O cão sem plumas, de João
Cabral de Melo Neto, reproduzido a seguir (TRENTIN, 1981, p. 67):
O que vive é espesso
como um cão, um homem
como esse rio;
Como todo o real é espesso.
Esse epílogo estabelece uma ponte com a epígrafe, constituindo a moldura que
envolve a obra. Retirada do romance de Erico Verissimo, a epígrafe provém do capítulo
dedicado a Ana Terra e sua família que, vinda de Sorocaba, instala-se no interior da
região então conhecida como Continente. Transcreve-se o parágrafo integral a que
pertence a frase utilizada por Trentin, destacada essa em negrito:
D. Henriqueta olhava desconsolada para a velha roca que estava ali no
rancho, em cima do estrado. Era uma lembrança de sua avó portuguesa e
talvez a única recordação de sua mocidade feliz. Casara com Maneco
Terra na esperança de ficar para sempre vivendo em São Paulo. Mas
acontecera que o avô de Maneco fora um dos muitos bandeirantes que
haviam trilhado a estrada da serra Geral e entrado nos campos do
Continente, visitando muitas vezes a Colônia do Sacramento. Quando
voltava para casa, tantas maravilhas contava aos filhos sobre aqueles
campos do Sul, que Maneco crescera com a mania de vir um dia para o
Rio Grande de São Pedro criar gado e plantar. Antes dele, seu pai, Jucá
Terra, também cruzara e recruzara o Continente, trazendo tropas. Todos
diziam que o Rio Grande tinha um grande futuro, pois suas terras eram
boas e seu clima salubre. E eles vieram... E já tinham pago bem caro
aquela loucura. O Lucinho lá estava enterrado em cima da coxilha. E,
quanto mais o tempo passava, mais o marido e os filhos iam ficando como
bichos naquela lida braba — carneando gado, curando bicheira, laçando,
domando, virando terra, plantando, colhendo e de vez em quando brigando
de espingarda na mão contra índios, feras e bandidos. Parecia que a
terra ia se entranhando não só na pele como também na alma deles.
Andavam com as mãos encardidas, cheias de talhos e calos. Maneco à noite
deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne
crua. Naquela casa nunca entrava nenhuma alegria, nunca se ouvia uma
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música, e ninguém pensava em divertimento. Era só trabalhar o quanto
dava o dia. E a noite — dizia Maneco — tinha sido feita para dormir. Que
ia ser de Ana, uma moça, metida naquele cafundó? Como é que ia
arranjar marido? Nem ao Rio Pardo o Maneco consentia que ela fosse.
Dizia que mulher era para ficar em casa, pois moça solta dá o que falar.
(VERISSIMO, 1949, p. 77-78)
A epígrafe sugere o tema que os versos de Trentin acompanham nas páginas
que a seguem: eles tratarão de homens e mulheres que deixaram sua terra natal, para
ir ao encalço de um sonho, buscar uma vida melhor e ser feliz. A reflexão de D.
Henriqueta denuncia os prejuízos, o sofrimento e, sobretudo, a desumanização das
pessoas que participaram do movimento de migração de um lugar a outro. Os
imigrantes absorvem o ambiente que habitam, sendo que a hostilidade circundante
passa a fazer parte deles – de sua alma. No romance, a terra lavrada por Maneco
converte-se em nome de família, herdado por Ana e levado adiante ao longo da
trilogia escrita por Verissimo.
Por causa da epígrafe, o leitor sabe antecipadamente que o poema tratará da
saga da imigração, da vida de seres humanos que mudam de lugar e almejam
reconstruir suas vidas, bem como das perdas e ganhos resultantes dessas escolhas. O
epílogo, por sua vez, propõe outra abordagem, ao invocar O cão sem plumas, de
João Cabral de Melo Neto.
Esse poema, datado de 1950, representou uma guinada na poesia que João
Cabral produzia até então. Nos seus primeiros livros (Pedra do sono, 1942; O
Engenheiro, 1945; Psicologia da composição, Fábula de Anfion e Antiode, 1947), o
poeta procurou dar vazão a uma lírica descarnada de subjetividade e emoção. Optando
por um lirismo comedido [mas não “bem comportado”, que, tanto quanto Manuel
Bandeira (BANDEIRA, 1966), ele rejeita], João Cabral ditava as diretrizes que, anos
depois, o Concretismo levaria ao extremo, reduzindo o verso ao mínimo de vocábulos,
para que a palavra pudesse vibrar independentemente das projeções e sensibilidade do
escritor.
O cão sem plumas não contradiz essa poética, mas acrescenta dois componentes
a ela. O primeiro é de ordem social, ao trazer para o interior do verso a miséria dos
habitantes de Recife, sintetizada pelo rio Capibaribe e metaforizada no cão faminto que
cruza as ruas da cidade. O enxugamento da linguagem, praticado nos poemas dos anos
40, coincide com a pobreza dos seres e das coisas, como se a palavra fosse reduzida ao
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mínimo para dar conta de figuras que nada têm de seu: a penúria da fala serve para
expressar a indigência do homem. O segundo componente é de natureza filosófica: o
discurso de João Cabral refere-se à espessura do real, para manifestar sua profissão de
fé materialista, avessa às abstrações que separam o homem do mundo que habita. Ao
reproduzir o trecho em que João Cabral explicita sua confiança na materialidade do real,
Trentin endossa a posição do poeta, sugerindo simultaneamente que a lírica pode
prescindir do sujeito e de sua intimidade.
O trecho de Erico Verissimo, na posição de epígrafe, e os versos de João Cabral,
na condição de epílogo, são os únicos textos citados diretamente pelo autor,
configurando a proposta intertextual explícita da obra. Estabelecem a primeira moldura
de Barcas e arcas, esclarecendo seu tema, o posicionamento do autor e suas
expectativas conceituais e filosóficas. A segunda decorre dos títulos dos segmentos, que
desempenham o papel de sumário do livro.
O primeiro segmento é denominado “Barcas e arcas”, repetindo a designação do
conjunto de poemas. Exerce, pois, função metonímica em relação ao livro,
apresentando-se, ao mesmo tempo, como sua seção principal. Esclarece igualmente o
modo como o texto funciona, já que, em cada segmento, o título aponta para a imagem
que os poemas individuais desdobram. A maior parte dessas imagens provém da
natureza, representada por: frutas (uvas, morangos, amoras) cultivadas pelo homem;
flores (girassóis, violetas); animais (cavalos); espaços (vales).
A presença do ser humano é antecipada pela menção às flores e frutas, pois essas
dependem da pessoa que fertiliza a terra, planta as sementes, acompanha seu
crescimento e colhe os resultados. Mesmo os “favos”, produto espontâneo da natureza,
requerem a interferência do homem para sua conservação e posterior aproveitamento na
alimentação.
Os “favos” fazem a transição do mundo natural para o humano, conforme uma
seqüência que apresenta o trânsito do espaço selvagem para a civilização. Essa associase ao trabalho, pois as demais imagens empregadas nos títulos dão conta do fazer
humano: “rebolos e facas” e “moinhos” explicitam a capacidade de transformar a
natureza, conquistando-a, cultivando-a e transformando-a em nutrição. “Sinos e
lanternas” ou “anéis” apontam para o passo seguinte – a festa, a celebração do feito e ao
mesmo tempo a comemoração da dádiva recebida da natureza, que não é adversária,
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mas aliada, extensão da civilização enquanto ordem benéfica e garantia da vida em
sociedade.
Na qualidade de uma segunda moldura, os títulos dos segmentos constituem,
eles mesmos, um curto poema que exibe o cenário e as ações contidas de Barcas e
arcas. Se os textos da epígrafe e do prólogo indicam o pensamento e temática do
conjunto, os nomes dados às partes intermediárias desvelam o meio natural em que
transcorrem as atividades e que tipo de indivíduo é responsável por elas. Trata-se de um
ordenamento da civilização que recorre à natureza para seu sustento, mas não contradiz
sua índole, pelo contrário, associa-se a ela numa conjunção propícia e digna de ser
enaltecida.
Cada capítulo é precedido de um curto prólogo, que aparece na forma de versos,
formando uma estrofe que culmina no título do segmento, como mostra o primeiro
deles:
Ontem era o mar, o sonho,
a terra como olho vazado
E os corações a pino,
explodindo no peito em
BARCAS E ARCAS
(TRENTIN, 1981, p. 19)
Esse prólogo, como os demais, é narrativo, induzindo o teor épico escolhido pelo
texto. A presença do advérbio de tempo na abertura do primeiro verso e o emprego do
verbo no imperfeito do indicativo confirmam a eleição da forma narrativa, apropriada
para o relato de uma trajetória, como ocorre nessa obra de Trentin. Os recursos
característicos do discurso poético estão igualmente presentes, sobressaindo o emprego
da metonímia (“ontem era o mar”, “corações a pino”), da metáfora (“o mar, o sonho”) e
da comparação (“a terra como olho vazado”).
O prólogo de “Moinhos e girassóis” reitera o processo criativo utilizado por
Trentin:
E como as mãos enternecem a terra
e rebentam em frutos e aconchegam
os ermos, também movem
MOINHOS E GIRASSÓIS
(TRENTIN, 1981, p. 31)
Nesse trecho, o narrador abandona o pretérito imperfeito, mas não deixa de lado
a narração, já que o uso do presente do indicativo significa a atualização dos eventos. É
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a metonímia, por sua vez, que procede ao trânsito da narração para a poesia, aparecendo
no primeiro verso; a metáfora igualmente comparece, no símile proposto entre
“moinhos” e “girassóis”, representações ambas de formato semelhante. Aproximados
por força da metáfora, os girassóis passam a fazer parte do projeto civilizatório dos
moinhos, e esses, por seu turno, não perdem seu vínculo com a natureza.
Tal como ocorre aos títulos dos segmentos, os prólogos, formados de estrofes,
configuram um poema independente, que se incorpora à macro-estrutura. Graças a esses
recursos, Trentin constrói um sistema de continentes e conteúdos, em que o maior inclui
o menor, e esse tem autonomia suficiente para espelhar o maior.
Esse modelo é antecipado pelo título, já que, em Barcas e arcas, o significante
do segundo substantivo está embutido no primeiro, mas, ao mesmo tempo, expressa e
expande seu significado. Barcas são arcas, conforme sugere o relato bíblico de Noé;
mas arcas são igualmente riquezas e propriedade, que as barcas transportam e traduzem.
O processo semântico encontra seu apoio poético no emprego da metonímia, que
aparece no prólogo, conforme se observou, e domina a maioria dos poemas dos distintos
segmentos.
O segundo poema do primeiro segmento exemplifica o emprego da metonímia,
conforme sugere a primeira estrofe:
Nas arcas vão soluços a remar
o alfato (sic) da aurora que agoniza
vão raízes vão ventos vão segredos
desfazendo o coração em teimosia.
(TRENTIN, 1981, p. 23)
Nas citações anteriores, “corações” e “mãos” faziam as vezes do sujeito a que se
refere o narrador; aqui são os “soluços” que o representam. O protagonista da narrativa
evidencia-se de modo fragmentado, o que acentua sua fragilidade e insegurança,
compensada, porém, pela “teimosia” em que se desfaz o “coração”. O mesmo processo
retorna em outras estrofes do mesmo poema, como a que se segue:
Nas arcas vão olhos sussurrando
esperas entre presas e carícia
aquarela de fogos e de febres
o amor é naufrágio e ventania.
(TRENTIN, 1981, p. 24)
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Nessa estrofe, são os olhos que traduzem a intimidade do protagonista, assim
como em versos anteriores do mesmo poema ele é representado por “perfumes”,
“tranças” ou “ossos”. A metáfora, como se lê na estrofe reproduzida, não está ausente,
mas fica submetida à força da metonímia, encarregada de conferir visibilidade e
consistência ao objeto da narração do poeta.
Do emprego da metonímia decorre a apresentação fragmentada do sujeito. É
como se o narrador tivesse dificuldade em apreender a totalidade do indivíduo, repartido
nos órgãos que propiciam sua ação ou expõem seus sentimentos. A essa fragmentação
opõe-se uma característica peculiar a Barcas e arcas: o sujeito da narração não é
identificado por um nome, o que o individualizaria; ao mesmo tempo, porém, ele se
mostra de modo plural.
Com efeito, o protagonista de Barcas e arcas é coletivo e anônimo. Eis porque,
numa de suas declarações de princípio, expressa, no caso, no epílogo, o poeta manifesta
a incorporação da objetividade e distanciamento emotivo, tal como aparece nos versos
de João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas. Sem a imparcialidade advogada
por Cabral, Trentin tenderia a destacar uma figura ficcional, em vez de lidar com o
grupo, e a propor a identificação entre o protagonista e o leitor.
Talvez a opção pelo modelo de protagonista constitua a principal particularidade
de Barcas e arcas. Desde o verso de abertura, o coletivo está presente graças ao
emprego da terceira pessoal do plural:
Aprestam-se para a sorte ou para a morte
nesta barca que os emborca e laça:
(TRENTIN, 1981, p. 21)
Em nenhum momento, o narrador descarta esse recurso, de que resulta a
permanente oscilação entre a fragmentação, propiciada pela metonímia, e o múltiplo,
decorrente da narração das ações desempenhadas pelo grupo de modo unitário e coeso.
Trata-se, pois, de uma epopeia singular, que elege o todo para colocá-lo na posição de
protagonista de atos heroicos, mas representa-o fracionado, ainda que não dividido.
Não é difícil reconhecer a modernidade do procedimento adotado por Ary
Nicodemos Trentin. Embora não se apoie na decomposição do verso e da estrofe,
recursos que se mantêm homogêneos até o final do poema, caracterizando o rigorismo
da construção artística, Barcas e arcas expõe uma concepção moderna de humanidade,
que recusa a perspectiva idealista, abstrata e triunfante. Não há individualismo no texto,
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já que o grupo é heroico, e não uma pessoa em especial. Mas o escritor também não
abraça o coletivismo, de que o Socialismo é uma das expressões, já que os seres
humanos que formam o conjunto revelam-se de modo recortado e incompleto, É como
se Trentin transpusesse para a poesia o projeto da pintura cubista de Pablo Picasso
(1881-1973) e Georges Braque (1882-1963). A fragmentação nega o ideal universalista,
impedindo que a concepção de grupo recaía na noção totalizante com que lidou a
metafísica até o século XIX.
Que a modernidade de Barcas e arcas coincide com o projeto pós-modernista
indica-o a opção por narrar a epopeia da imigração. O tom épico advém da introdução
da narrativa no texto, por intermédio dos prólogos curtos que antecedem cada segmento
do poema. Como se observou, a metonímia, apontando para o fracionamento do ser
humano, impede que o texto deslize para o tom triunfal e superlativo. Ainda que a
última etapa da narrativa dê conta da festa e da celebração, está ausente a apoteose
sinalizadora da vitória e do poder. A metonímia permanece o recurso poético dominante
nos últimos versos, limitando as possibilidades de exaltação, conforme sugere a estrofe
a seguir:
E o sangue lavora-se de fogos
E forja os cascos da vitória
É festa o olho que espreita
As pazes de terra e de canto.
(TRENTIN, 1981, p. 66)
A oscilação entre o entusiasmo da conquista e o padecimento da travessia
acompanha o poema até o encerramento:
Abrasam-se de velas as barcas
têm raízes sua rota seu rosto
o aceno se criva de arremedos
e destroça a trama do riso.
(TRENTIN, 1981, p. 66)
Modula-se, dessa maneira, o tom narrativo, que não deixa de ser épico, mas que
não deriva para euforia ou para a louvação. A imigração é encarada como passagem e
travessia inconclusa, porque recomeça a cada etapa da existência, razão porque os
versos da última estrofe retomam as imagens iniciais do poema:
Alastram-se como grito as arcas
peregrinos com sangue de horizonte
tanto jorro se enleia em sua doma
que as barcas estouram o sol.
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(TRENTIN, 1981, p. 66)
Ao apoiar o texto na narrativa da imigração, retomando, para tanto, a tópica da
viagem e da travessia, Trentin incorpora à poesia um tema que, na literatura do Rio
Grande do Sul, vinha sendo explorado pela ficção. A referência explícita ao romance de
Erico Verissimo, na epígrafe, expressa a paternidade que o Autor quer reconhecida; por
sua vez, a família a que confessa pertencer conta também com a participação de José
Clemente Pozenato, parceiro de Matrícula, Josué Guimarães (1921-1986), Moacyr
Scliar (1937) e Gladstone Osório Mársico (1927-1976), entre outros (ZILBERMAN,
1985).
A visão da história sob a perspectiva da etnia viceja nos tempos pós-modernos a
que o poema se integra. Significa, como se observou, a recusa da perspectiva
homogeneizadora, que as correntes nacionalistas de direita e de esquerda buscaram por
muitas décadas ao longo do século XX, pesquisa que remonta ao século XIX e tem no
Romantismo seu berço.
Narrar a aventura do grupo, sem que se atribua a esse qualidades
universalizantes, significa compartilhar a ótica descrente no nacionalismo e nas
expressões emblemáticas da nacionalidade. O relato do percurso de uma etnia, cuja
trajetória tem força épica por ser grandiosa, mas que é encarada com os óculos do
materialismo e do distanciamento, colabora para o entendimento do passado de uma
porção da sociedade e a avaliação de sua participação no funcionamento do todo. Esse,
por sua vez, não é o resultado harmônico da cooperação de cada um, mas o mosaico das
diferenças, evidenciadas pela representação invariavelmente fragmentada das partes.
Eis a dinâmica de Barcas e arcas, cuja composição dialética pode prescindir do
experimentalismo para ser moderna. Mas há um aspecto desafiador, que leva a
linguagem a seus limites. É que, em nenhum momento, se menciona uma etnia, nem se
esclarece em que tempo e em que espaço transcorre a ação. As imagens são colhidas na
natureza, no processo do trabalho, na transformação do ambiente em civilização.
Barcas, arcas, mar, céu, vento, cavalos – as outras imagens recorrentes do texto – não
têm localização específica e estão presentes na poesia desde sempre.
Cabe ao leitor preencher as lacunas (ISER, 1976; WARNING, 1975), trazendo a
narrativa para um cenário específico, para uma história ocorrida, para uma sociedade
determinada. Barcas e arcas exige o empenho do leitor, a quem não compete a
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decifração das imagens, mas a incorporação da obra a uma dada situação. Em vez de
interpretar e buscar o significado do texto, o leitor precisa transportá-lo para seu próprio
contexto, materializando o conteúdo das frases e adaptando-o ao previamente
conhecido.
Revela-se o compromisso do livro com a sociedade e com a atualidade, pois,
sem a ocupação, por parte do leitor, dos espaços da história e do presente, a obra
permaneceria fechada à leitura. Ary Trentin recupera, por esse ângulo, sua vinculação
com a proposta de João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas, embora,
aparentemente, não se refira à sociedade brasileira, nem à vida contemporânea. Quem
procede dessa maneira é o leitor; mas esse não pode agir de outro modo, sob pena de o
poema mostrar-se indecifrável.
Ao exigir do leitor o esforço de constante atualização da obra, que, por sua vez,
terá de conhecer a trajetória da imigração e o percurso de uma etnia, Trentin cumpre a
palavra dada, traduzida pela epígrafe e pelo epílogo. E cria uma obra que se integra à
história da poesia sul-rio-grandense e brasileira, sem deixar de ser, ao contrário de suas
personagens, pessoal e original.
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NOTAS
SOBRE
OS
PRESSUPOSTOS
ESTÉTICO-FILOSÓFICOS
ROMÂNTICOS EM O GUESA, DE SOUSÂNDRADE
Pedro Martins Reinato 2
RESUMO: Esse artigo trata de alguns aspectos estético-filosóficos relativos à forma da
poesia de Sousândrade, principalmente em O Guesa. Para isso, analisaremos a segunda
Memorabilia (1876), que apresenta um esboço de todas as ideias estéticas desse autor.
Palavras-chave: Sousândrade; O Guesa; romantismo; gênio; reflexão.
ABSTRACT: This article threats some aesthetic-philosophical aspects relatives on the
form of Sousândrade’s poetry, mainly on O Guesa. For that, we will analyze the second
Memorabilia (1876), which shows an outline of all aesthetics ideas by this author.
Keywords: Sousândrade; O Guesa; romanticism; genius; reflexion.
1.
Eia, imaginação divina!
(O Guesa, Canto I)
A forma poética e o conteúdo da obra sousandradina eram estranhos ao público do
Brasil do século XIX, fazendo que sua produção fosse colocada à margem. De acordo
com Robert Hans Jauss (1994), muitas vezes a falta de público deve-se à quebra da
expectativa estética do leitor em relação à obra. Isso se dá quando uma obra apresenta
alguma característica formal ou temática que a torne singular, destacando-se do
ambiente criado pelas demais. Essa obra é “recebida e julgada tanto em seu contraste
com o seu pano de fundo oferecido por outras formas artísticas, quanto contra o pano de
fundo da experiência cotidiana de vida” (Jauss, 1994, p. 53). Considerando que, no caso
de Sousândrade, o horizonte de expectativa baseava-se em muitos aspectos da estética
neoclássica, cultivada no romantismo brasileiro, o estranhamento de sua obra talvez
fosse fruto de um processo natural, já que “há obras que, no momento de sua
publicação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão
completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público
somente começa a formar-se aos poucos” (Id., p. 32-3). Quanto à familiaridade dos
leitores com os pressupostos estéticos de sua obra, Sousândrade a vê de maneira
2
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e membro da Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.
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negativa, pois, para ele, isso só aconteceria com o tempo, conforme aponta em sua
segunda Memorabilia: “Ouvi dizer já por duas vezes que O Guesa errante será lido
cinquenta anos depois; entristeci ― decepção de quem escreveu cinquenta anos antes ”
(SOUSÂNDRADE, 2003, p. 484).
Pode-se dizer que durante boa parte da existência da obra sousandradina seus
principais leitores foram os letrados que, em muitos casos, também foram críticos de
literatura. Nas críticas publicadas em periódicos da época 3, recolhidas pelo poeta em
suas Memorabilias, nota-se uma visão crítica redutora da obra de Sousândrade,
destacando somente os problemas relacionados à negação de regras poéticas e a
exaltação da imaginação do poeta. Observam-se os seguintes excertos de críticas
publicadas sobre o volume Impressos, 4 de Sousândrade:
Tem o autor dos Impressos boa e alentada inspiração, apurado sentimento
poético, colorido e originalidade de imagens. Não são dotes estes que andem
a rodo. Falta-lhe apenas aquilo que se não adquire logo, falta-lhe o domínio
da forma. A forma é tão necessária à poesia como a ideia; pelos belos
pedaços que nos dá o autor dos Impressos, vê-se que lhe sobram meios de
aperfeiçoar os seus versos inspirados e sentidos. [...]
Souza-Andrade é um poeta de viva imaginação e de originalíssimo estro.
Sem pretender fazer cisma em literatura, como esses poetas nebulosos e
profundamente alemães com que estamos às voltas, ele canta de um modo
inteiramente particular, brusco e às vezes desleixado na forma, mas sempre
verdadeiro no sentimento e sincero nas confidencias e revelações que faz.
[...]
É preciso atender à parte artística do verso, ninguém o pode negar. A forma
é hoje em dia o que salva uma quantidade de velharias, contemporâneas de
Salomão. A forma é que abre exceção à sentença que ele proferiu: Nada há
de novo embaixo do sol. [...]
O mesmo defeito, porém, que já ficou apontado quando foram percorridas as
Harpas selvagens e as Eólias, aparece largamente nO Guesa: o inteiro
desprendimento das convenções artísticas, a absoluta negação de algumas
regras poéticas. (SOUSÂNDRADE, 483-6)
É válido citar também o apontamento feito por Silvio Romero em sua História
da literatura brasileira, em que considerava Sousândrade
[...] um poeta de forte elevação de idéias; mas de forma muitas vezes áspera
e rude, quase ininteligível. [...] Não possuía também destreza e a habilidade
da forma. [...] o poeta sai quase inteiramente fora da toada comum da
poetização de seu meio; suas ideias têm outra estrutura. (ROMERO, 1903,
405-6)
3
No século XIX, a crítica da obra sousandradina foi feita em alguns periódicos do Maranhão (O País, O Liberal), Rio
de Janeiro (Diário do Povo, Semana Ilustrada, A Reforma) e Nova York (O Novo Mundo). O poeta não cita em sua
Memorabilia o nome dos críticos, destaca apenas o nome do periódico.
4
O primeiro volume, lançado em 1868, continha os cantos I e II de O Guesa errante e mais 37 poemas que
integravam a seção intitulada Poesias diversas. Já o segundo volume, também de 1868, trazia o canto III de O Guesa
errante.
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A valorização da imaginação do poeta e a sua suposta inépcia com forma
literária são temas recorrentes (quase unânimes) nas críticas do século XIX. Os excertos
supracitados destacam que as ideias elevadas e originais presentes na obra
sousandradina são malogrados em sua objetivação pela falta de “destreza e a habilidade
da forma”, o “inteiro desprendimento das convenções artísticas” e a “negação absoluta
de algumas regras poéticas”. Silvio Romero, por sua vez, observou, além da suposta
inépcia com a forma literária, que as ideias da poesia de Sousândrade possuíam outra
estrutura, distinta daquela praticada por seus pares, estranha ao público seus leitores.
Essa problemática em relação à forma poética adotada na poesia de Sousândrade revela
a orientação estética que baseava critica oitocentista.
Boa parte da crítica literária do romantismo estava impregnada pelos códigos
retórico-poéticos herdados da tradição do assim chamado classicismo, sendo um dos
motivos que concorreram para a exigência de críticos de um apuramento formal da obra
sousandradina. Antonio Candido aponta que, no Brasil, mesmo com o desejo de ruptura
formal imanente ao romantismo, houve a conservação de tais códigos, demonstrando
uma consciência crítica não de ruptura, mas de acomodação a eles:
[...] a estrutura do verso não se modificou essencialmente, e isso facilitou a
aceitação das normas já comodamente existentes para sua elaboração. Ainda
mais, o ensino permaneceu, com a sua tendência conservadora, a ser
ministrado segundo os critérios estabelecidos, como uma gramática literária.
Acresce ainda, no Brasil, a circunstância de o Romantismo não ter aparecido
como uma ruptura, mas, de um lado, como continuação; de outro, como
início de um período auspicioso, logo incorporado à ideologia oficial, nas
formas moderadas e transicionais com que surgiu [...].
O resultado foi que a retórica e a poética permaneceram intactas pelo século
a fora, e até quase os nossos dias, criando uma estranha contradição, nesse
movimento que preconizava a liberdade e a renovação do verbo.
(CANDIDO, 2000, 306-7)
A poesia de Sousândrade tinha uma estrutura formal singular que logo foi
interpretada pela crítica não como uma inovação, mas como a falta de habilidade em seu
trato. Diante do teor das críticas recebidas ao longo da publicação de sua obra, o poeta
procurou apontar para o seu público quais eram os elementos estéticos que a norteavam.
Para isso, ele incorporou em sua produção diversos momentos em que ele trata do
assunto, seja em sua poesia, seja em sua prosa. Dentre eles destaca-se um momento
privilegiado: sua segunda Memorabilia.
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2.
Das três Memorabilias compostas por Sousândrade, a segunda, de 1876, traz a
sistematização dos elementos poéticos que compõem O Guesa e, seguramente, suas
demais obras. 5 O poeta as redigia com o intuito inicial de reunir as críticas sobre a sua
produção, como se pode observar na primeira Memorabilia, de 1874:
Em 1858 foram escritos os três primeiros cantos do Guesa, impressos dez
anos depois. Hoje alevanto as minhas coroas, que sejam elas a página de
oiro do meu livro. Nem por vangloria o faço, mas pelo muito que eu quero e
amo, e pelo que de benéficas me foram, vindas da imprensa popular como
vieram. (SOUSÂNDRADE, op. cit., p. 482)
Já na segunda, Sousândrade muda o tom de seu discurso, indicando a
depreciação de sua obra por parte de seus críticos e leitores:
Pareceu-me sempre que eu nada devera dizer em defesa de O Guesa errante,
transcrevendo apenas a opinião contemporânea que o justificasse ou
condenasse. (Id., 484)
Mesmo alegando que não deveria dizer algo sobre sua obra, o poeta expõe de
maneira sistematizada os elementos poéticos que a compõem, intentando, com isso,
esclarecer seus leitores e críticos. Essa Memorabilia pode ser dividida em duas partes:
na primeira, o poeta dedica-se a refletir sobre a objetivação formal empregada em O
Guesa; já na segunda, estabelece uma visão crítica acerca da arte nacional e também
sobre a recepção de sua obra:
[...] Compreendi que tal poesia, tanto nas ásperas línguas do norte como nas
mais sonorosas do meio-dia, tinha de ser a “que resiste toda no pensamento,
essência da arte”, embora fossem “as formas externas rudes, bárbaras ou
flutuantes”.
O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente
da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe
fosse necessária a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que
mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade
sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na
plenitude intelectual — nessa harmonia íntima de criação que
experimentamos no meio dos oceanos e dos desertos, mais pelo sentimento
que em nossa alma influi do que pelas formosas curvas do horizonte. Ao
esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da inteligência.
5
A relação dos elementos expressos nessa Memorabilia e nas demais obras de Sousândrade não é objeto desse
trabalho, suscitando uma pesquisa futura mais aprofundada sobre esse tema.
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Na modéstia, pois O Guesa errante, as “galas e formosuras do artista, a
enfeitar a idéia”, tanto seria nocivo à sua mesma idéia. Além disso o autor
creu sempre que todo o poeta, sob pena de escravidão e morte, deve ser o
que ele é, e não o que o aconselham a ser. Nocivo à nudez, ao sentir
profundo, à longa harmonia de uma lenda em doze cantos, fora esse
deslumbramento das formas tão necessário, belo é nos poemas-romances de
V. Hugo — sombras e clarões fascinadores, melodias de Bellini que nos
arrancam a alma, porém momentâneas.
O Guesa das primitivas eras, Senhores, tem direito à calma, à velharia dos
tempos de Salomão; e por forma do seu ser, que é sua fala em voz baixa e,
quando muito, grita ou geme, por vezes e mesmo porque nada há de novo
embaixo do sol, tem o direito de ir antes natural do que sobrenaturalmente;
filho varonil das terras virgens do equador, em ao régio-doirado oriental: ele
é solitário e verdadeiro.
A palavra nudez vê-se que foi acima empregada no sentido moral, pois o
Guesa andara vestido, e até revestido, como vítima que era do Sol.
Amo a calma platônica; admiro a grandiosidade do Homero ou do Dante;
seduz-me a verdade terrível shakespereo-byrônica; e a celeste lamartiniana
saudade me encanta. Ora, todas essas generosas naturezas não me ensinaram
a fazer verso, a traçar os contornos da forma, a imitar vox faucibus o seu
canto, porém, a uma coisa somente: ser individualidade própria ao próprio
modo acabada ― enamorada e crente em si própria.
Ser absolutamente eu livre, foi o conselho único dos mestres e longe de
insurreicionar-me contra eles, abracei de todo coração os seus preceitos.
Pode, aquilo que for feito, ficar imperfeito, e será, talvez; mas tendo que
estes adorados mestres nunca amaldiçoarão ninguém por lhes haverem os
céus dado asas de ferro em vez de asas de oiro
― contanto que voem elas
em firmamento distinto e derretam-se aos raios solares. Deixem-nas pois à
sua forma original: forma que é o traço deixado pelo pensamento, e que
vereis ainda ser a única absolutamente verdadeira: poetry is the only verity
― the expression of a sound mind speaking after the ideal, and not after the
art apparent... the faut o four popular poetry is that it is not sincere... in a
poem we want design, and do not forgive the bards if they have only the arte
of enamelling. We want an architect, and they bring us an upholsterer.
É porque me quer parecer a falta de ciência e meditação o motivo da nossa
literatura não ter podido ainda interessar o estrangeiro. Até a nossa
ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e
nada ensina, não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada
ensina aos outros; estudando os outros tratamos então de elegantizá-los em
nós, e pelas formas alheias destruímos a escultura da nossa natureza, que é a
própria forma de todos. A nossa música e nossos literários esplendores de
certo que transportam e deslumbram os sentidos, mas também atormentam o
pensamento, afrouxam a idéia do homem. Sons e perfumes, flores e
fulgores, roupagens e adornos, graças e tesoiros são, sem dúvida, grandes
dotes de muitas princesas; porém, de poucas será o corpo belo, sadio, forte, e
a alma com a dor da humanidade e com a existência do que é eterno.
Deixemos os mestres da forma ― se
é os
at deuses passam! É em nós
mesmos que está nossa divindade. Não é pelo Velho Mundo atrás que
chegaremos à idade de oiro, que está adiante, além. O bíblico e o ossiânico,
o dórico e o jônico, o alemão e o luso-hispano, uns são repugnantes e outros,
se não o são, modificam-se à natureza americana. Nesta natureza estão as
suas próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas
montanhas; ela, à imagem, modelou a língua dos seus Naturais― e é aí que
beberemos a forma do original caráter literário, qualquer que seja a língua
diferente que falarmos.
O Guesa, tendo a forma inversa e o coração natural do selvagem sem
academia, aceitai-o assim mesmo ― por esp
írito de liberdade ao menos, e
porque ele vos ama, e porque ele tem um fim social, e porque “eu cantarei
um novo canto, que ressoa em meu peito; nunca houve canto formoso ou
som que se semelhasse a nenhum outro canto”.
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Sendo impossível de mim o que reclamam, e apenas possível o que ofereço
à minha pátria, acrescentarei para terminar este assunto que: eu continuo.
Continuo; ainda que sem a ciência do bem-agradar, o que me fora
gratíssimo, e tão-só com a consciência de que todas as forças úteis da minha
existência aí serão empregadas ― pudessem os melhor dotados seguir o meu
exemplo! ― ão
n faz mal. Nem as coroas deixam de ser coroas pelos
espinhos que trazem; e o pungir destes como que até aumenta a frescura das
rosas, que com eles vem de envolta. (SOUSÂNDRADE, op. cit., 484-5)
Antes de qualquer discussão sobre a forma poética de sua obra, vale observar a
denúncia feita em relação aos elementos que o poeta julga negativos para a realização
não só da literatura, mas da arte nacional em geral. Para ele, a falta de reflexão (ciência
e meditação) por parte dos artistas e intelectuais é o motivo pelo qual as artes
produzidas no Brasil não atingiriam o mesmo nível da produção europeia e,
consequentemente, não interessariam ao estrangeiro. O texto critica contundentemente a
arte em que os elementos e os modelos poéticos europeus são apenas adaptados à cor
local, sem reflexão artística, o que não concorreria para que as ideias artísticas e
intelectuais fossem amadurecidas, desencadeando um processo de “elegantização” da
cultura estrangeira.
Sousândrade expõe sua admiração pela arte europeia e alguns de seus agentes,
tais como os românticos Bellini, Victor Hugo e William Wordsworth. Em outro,
reverencia os “mestres da forma”: “Amo a calma platônica; admiro a grandiosidade do
Homero ou do Dante; seduz-me a verdade terrível shakespereo-byrônica; e a celeste
lamartiniana saudade me encanta”. A admiração por esses artistas não inviabiliza a
elaboração de uma obra essencialmente nacional, pois a obra dos mestres seria apenas a
pedra inicial para o voo do artista e não um modelo a ser seguido ipsis litteris, tanto que
o poeta ressalta que estes não o ensinaram a “fazer verso”, mas “ser individualidade
própria”.
A individualidade aprendida dos mestres e destacada por Sousândrade é o único
meio para que o artista alcançasse sua autonomia. “É em nós mesmos que está nossa
divindade”, dessa afirmação pode-se extrair as bases do projeto literário proposto por
Sousândrade, visto que ela permite duas possibilidades: indica tanto a divindade
encontrada na natureza americana quanto à “divindade” da subjetividade do artista. Em
tese, isso possibilitaria que a produção artística nacional desvinculasse da influência
europeia, já que ele teria uma matéria própria e uma forma oriunda da reflexão artística,
gestada na individualidade de seu agente.
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Apesar de indicar a individualidade e a cor local como meio de estabelecimento
de uma literatura autônoma, Sousândrade propõe um diálogo entre os pressupostos
poéticos estrangeiros e os elementos da cultura nacional. Isso pode ser afirmado pelo
fato de que a presença da poética desenvolvida no Velho Mundo está presente na
maioria dos preceitos adotados na obra dos românticos brasileiros. Um exemplo disso
são as ideias que cercam a criação artística baseada na individualidade – princípio
elementar do romantismo –, teorizado desde a segunda metade do século XVIII na
Europa. Logo, a declaração do poeta sobre estabelecer regras e uma forma de acordo
com a sua “divindade” para criar uma obra original, já era sinalizada pelos românticos
no Velho Mundo.
3.
A subjetividade estabelece-se como fomento primordial da criação poética
sousandradina, que, aliada aos temas nacionais e aos pressupostos poéticos dos
“mestres”, propiciaria ao poeta construir uma obra original. Ao privilegiar sua
“divindade” criadora, Sousândrade tem o poder de recriar os princípios poéticos
consagrados de acordo com a necessidade de sua obra, estabelecendo critérios artísticos
que se aproximam mais de seu pensamento do que das regras de arte previamente
definidas. Contemplando os desígnios de sua subjetividade, Sousândrade pode até
afirmar em seus escritos que sua obra rompe com os princípios poéticos teorizados no
Velho Mundo, pois as regras que a balizam são geradas intuitivamente. Isso lhe permite
propor a superação da cópia dos modelos artísticos europeus, supondo que sua produção
seja expressão de um “EU livre”.
O elemento que ressalta a subjetividade e a individualidade na concepção de O
Guesa é o “pensamento”, declarado como “essência da arte”. Nesse sentido, o poeta
declara que a objetivação de sua obra tem “sua forma original: forma que é o traço
deixado pelo pensamento, e que vereis ainda ser a única absolutamente verdadeira”. Tal
afirmação poderia responder positivamente à seguinte interrogação de Novalis: “Existe
uma arte de inventar sem dados, uma arte de inventar absoluta?” (NOVALIS apud
BENJAMIN, 2002, p.71). De acordo com a crença de Sousândrade e dos românticos, a
criação artística “sem dados”, “sem regras objetivas” pode ser validada pela figura
“mística” e “mítica” do gênio romântico. Tanto o conceito de gênio e, mais tarde, o de
Eu absoluto, possuem uma aura extremamente vaga que supostamente possibilitaria a
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execução de qualquer coisa sem a interferência das regras do mundo objetivo,
constituindo-se apenas como um desígnio “divino”, “demiurgo”.
Uma breve história do conceito de “gênio” pode indicar a mudança radical de
sua significação ao longo dos tempos. Na poética antiga, o gênio era aquele que possuía
o talento para aplicar os modelos e as leis estéticas preestabelecidos pela arte, sendo que
sua imaginação e a fantasia subordinavam-se à razão. Immanuel Kant estabelece uma
nova definição para esse conceito, atribuindo ao artista um poder subjetivo no ato da
criação artística. Ele não se limita ao exercício de formas, pois agora, o “gênio é o
talento (dom natural) que dá regra à arte” (KANT, 1993, p. 153). Kant atribui à
significação desse conceito uma forte carga subjetiva, considerando que ele não possui
somente engenho para aplicação de regras, mas também possui um “talento”, um “dom
natural” (Cf. Nunes, 2004, p. 60). Além disso, a constituição da obra do gênio deveria
ser espontânea, contemplativa e desinteressada, tal como a Natureza. Benedito Nunes
destaca que a autonomia da noção kantiana de gênio foi substancialmente influenciada
pela assimilação de uma “naturalidade” ou “espontaneidade” criativa:
Graças à satisfação desinteressada que provocam, as coisas naturais que são
belas, parecem livres produtos da Natureza; as obras artísticas são tanto mais
belas quanto mais aparentam essa livre finalidade atribuível à Natureza,
quanto mais assumem o aspecto de uma formação espontânea, que se
sobrepõe aos artifícios da arte. (Id. Ibid.)
A criação do gênio funde a liberdade subjetiva em detrimento dos preceitos
poéticos previamente estabelecidos, pretendendo-se como uma aparência espontânea
que estaria presente na Natureza. A partir dessa idéia, surge uma associação entre a obra
do gênio e a Natureza, tida como um poder de criar e “descriar” espontânea e
infinitamente as suas formas. A liberdade pressuposta pela figura do gênio na estética
kantiana propiciou aos românticos operar uma transformação radical. A transgressão
tornou-se comum não só no âmbito da arte, mas se voltou aos padrões estabelecidos
pela sociedade. 6 A genialidade possibilitou aos artistas sobrepor sua criatividade a
qualquer formalidade artística. Se na arte antiga, por exemplo, o artista ficava por trás
de sua obra demonstrando seu engenho em operar regras artísticas, no romantismo
ocorre justamente o inverso: os gênios colocam-se acima de sua produção, evidenciando
sua capacidade criativa e, sobretudo, a expressão do espírito do próprio autor. Rosenfeld
e Guinsburg destacam que o gênio:
6
Id., Ibidem.
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[...] cria a obra com base numa explosão, num surto irracional de sua
emocionalidade profunda. E sua criação, por mais imperfeita que seja, na
perspectiva das regras clássicas, será sempre a grande obra, porque exprime
o estado de exaltação do criador com toda sinceridade, fato que constitui o
valor máximo nesse sentido. (ROSENLFELD e GUINSBURG, 2004, p.
267)
Outro aspecto que permeia o conceito de gênio no romantismo é o seu poder de
mediação. A figura do gênio mediaria as esferas mais elevadas do espírito e os homens
comuns, único capaz de alcançar o Absoluto, 7 concorrendo com Deus nessa tarefa: todo
o Universo, em seus múltiplos e infinitos aspectos, pode ser alcançado por ele mediante
a subjetividade criadora. No fragmento 44 de sua obra Idéias, Friedrich Schlegel
discorre sobre essa relação entre “gênio” e o Absoluto, assimilando o processo poético
ao divino:
Não vemos Deus, mas por toda parte vemos o divino: antes de tudo e mais
propriamente, porém, no centro de um homem cheio de sentido, na
profundeza de uma viva obra humana. Você pode sentir imediatamente a
natureza, o universo, pode pensá-los imediatamente, não a divindade. Só o
homem ante homens pode poetizar e pensar divinamente e viver com
religião. Tampouco alguém pode ser mediador direto de si próprio, ainda
que seja para seu espírito, porque este tem de ser pura e simplesmente
objeto, cujo centro aquele que intui põe fora de si. Escolhe-se e põe-se o
mediador, mas só se pode escolher e pôr aquele que já se pôs como tal. Um
mediador é aquele que percebe em si o divino e, aniquilando-se, abandona a
si mesmo para anunciar, comunicar e expor, nos costumes e ações, em
palavras e obras, esse divino aos homens. Se tal impulso não tem êxito,
aquilo que se percebeu, ou não era divino, ou não era próprio. Mediar e ser
mediado é toda a vida superior do homem, e todo artista é mediador para
todos os restantes. (SCHLEGEL, 1997, p. 149-50)
Nessa perspectiva, o gênio é o mediador das esferas mais inacessíveis aos
homens comuns. A relação entre os homens e as esferas inacessíveis pela razão é
estabelecida pelo gênio artisticamente. Somente pela obra de arte é que ele pode
realizar, pois o Absoluto pode ser alcançado através da imaginação ou da reflexão.
Benedito Nunes destaca que
para a visão romântica, no poder intuitivo cognoscente [...], ao mesmo
tempo criador e expressivo, da imaginação poética, acima do conhecimento
empírico ― poder correlativo à capacidade expansiva e à força irradiante do
Eu, à originalidade e ao entusiasmo, e no qual se refletiriam a profundeza, a
elevação, a espiritualidade e a liberdade da vida interior. (NUNES, op. cit.,
p. 61)
7
O termo Absoluto possui várias significações para os românticos. Entre elas destaca-se que o Absoluto pode ser
Deus, a Natureza, a Poesia (arte em geral). Também, o conceito de Absoluto remete à totalidade (suposta) do mundo
e da realidade que só Deus conhecia, mas, agora também o gênio.
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Deve-se apontar que desenvolvimento da figura do gênio no romantismo está
intimamente atrelado ao postulado do Eu absoluto fichtiano. Em sua obra, Fichte supõe
o Eu formal e abstrato como origem de toda razão e conhecimento. Para Gerd
Bornheim, esse conceito fichtiano tem muitos aspectos que foram alargados pelos
românticos:
[...] um Eu dotado de enorme força criativa, a ponto de fazer do mundo
exterior um derivado da imaginação produtiva do homem; um Eu, no mais,
que vence resistências, obstáculos por ele mesmo produzidos, em sua
marcha para o infinito definitivamente distante ― uma marcha, contudo,
redentora do homem. (BORNHEIM, 1978, p. 92)
O Eu absoluto contempla a atividade de seu próprio espírito. Essa relação do
Eu consigo mesmo é o que o possibilita atingir o Absoluto, nesse caso, entendido como
a verdadeira intuição intelectual, pois permitiria o encontro do objeto com sua essência.
Na ação do gênio ou do Eu romântico, a imaginação desempenha um papel
fundamental. No romantismo, compreende-se que ela reina na esfera de arte,
sobrepondo à razão lógica, vista como uma força que cria e descria o mundo. O poder
da imaginação propicia ao Eu apreender o mundo exterior e recriá-lo conforme seu
próprio modo de representação.
Para Fichte, por exemplo, a ação da imaginação corresponde a uma luta entre o
poder finito e infinito do Eu, entre o entendimento e ela mesma na apreensão do objeto.
Nessa luta para representar o objeto, a imaginação oscila entre a realidade e a
irrealidade, entre o sensível e o supra-sensível: “A imaginação produz a realidade, mas
nela não há realidade; só depois de concebida e compreendida no intelecto, seu produto
se torna algo de real” (Cf. ABBAGNANO, 2000, p 539). Verifica-se, então, que a
imaginação tem o poder de pôr significados para o mundo, subvertendo a ideia de que
existe uma verdade apenas. Acredita-se, ao contrário, que o sujeito põe significados
para o mundo. Assim, o conhecimento não está dado no objeto, sendo subjetivamente
gerado.
A potencialização da imaginação criadora pelos conceitos de gênio e do Eu
corroboram para a liberdade do artista na elaboração de sua obra. Contudo, a atribuição
de uma criação artística apenas pelo poder infinito da imaginação, mesmo pela
sentimentalidade do gênio, não aclara qualquer método por trás dessas obras de arte. A
substituição das regras da arte do classicismo pela priorização de um “dom divino” na
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organização de obras sugere um “vale-tudo estético” que, ambiguamente, validaria tanto
uma obra incipiente como uma obra verdadeiramente genial. Como a forma de uma
obra de arte é evidentemente uma objetivação que, querendo ou não, tem necessidade de
uma coerência interna para se comunicar, deve-se destacar a ideia de que os gênios,
mesmo compondo num sopro divino, concebem a autocrítica ou a ironia subjetiva como
limites para a infinitude da imaginação.
A figura do gênio poderia justificar a suposta “inépcia” alegada pelos críticos
oitocentistas acerca da obra sousandradina. Nesse caso, o poeta não limitaria sua
produção às regras de arte conhecidas, mas somente àquela que fosse desígnio de sua
divindade. Por trás dessa “inépcia”, há um procedimento poético lúcido que as normas e
os elementos poéticos produzidos de acordo com a exigência de sua obra, ou de acordo
com sua “reflexão”. Talvez seja lícito pensar em outro aspecto que indique a
possibilidade de uma análise de um procedimento lúcido na composição da obra. O
conceito de “reflexão” e suas implicações estéticas parecem uma maneira de perceber
quais regras regem essas composições tão peculiares.
O conceito de reflexão romântica, tal como compreendida pelos românticos de
Iena, fomenta tanto uma teoria do conhecimento como a criação artística desses autores.
Vale destacar que quando Walter Benjamin se debruçou sobre o assunto, visava
justamente afastar a pecha de irracionalismo que pairava sobre a obra dos românticos
alemães, sobretudo Schlegel e Novalis. Eles compreendiam que somente a partir da
natureza reflexiva seria possível alcançar o “conhecimento” de si e do mundo, assim
como a possibilidade de empreender um processo de criação intuitivo e Absoluto.
Walter Benjamin ressalta que
[...] pensar e reflexão são postos no mesmo plano. Isso não ocorre, no
entanto somente para assegurar ao pensar aquela infinitude que é dada na
reflexão e que, sem uma determinação mais detalhada, aparece de um modo
questionável como pensar do pensar sobre si mesmo. Os românticos viram,
antes, na natureza reflexionante do pensar uma garantia para o seu caráter
intuitivo. (BENJAMIN, 2002, p. 28)
Ao privilegiar o caráter intuitivo, a reflexão aponta para um conhecimento
imanente de um “ser”, ou como os românticos preferem, o “autoconhecimento”. Como
teoria do conhecimento, a ideia de que todo “ser” é responsável por seu
“autoconhecimento” pode eliminar as fronteiras existentes entre sujeito e objeto. Isso
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porque o sujeito artístico é ele mesmo o seu próprio sujeito e objeto do conhecimento.
Nesse sentido, Novalis aponta que
[...] pensamentos estão plenos apenas de pensamentos, são apenas funções do
pensamento, assim como as visões apenas funções dos olhos e da luz. O olho
não vê nada senão o olho, o órgão do pensamento, nada senão órgãos do
pensamento ou o elemento que pertença a ele. (NOVALIS apud BENJAMIN,
op. cit., p. 61)
Cada ser conhece aquilo que lhe é correlato, a sua própria essência. Todo “ser”
reflete sobre si num processo contínuo que promove dessa maneira seu
autoconhecimento. Se todo é sujeito e objeto de seu conhecer, o conhecimento poderia
se dar de maneira imediata. Talvez esse seja o grande trunfo da teoria de conhecimento
reflexiva. Daí se pode concluir que, teoricamente, se um artista vale-se da reflexão sobre
sua própria obra como meio de criação artística, a obra gerada nesse processo formula
seu próprio conhecimento, ou seja, suas próprias leis, à medida que a criação vai sendo
desenvolvida. Logo, a ideia de uma criação artística dada exclusivamente pela
subjetividade irracional do gênio pode ser, senão descartada, ao menos amparada pela
teoria de reflexão romântica.
A imediatez do conhecimento gerado pela reflexão efetiva-se como uma
consciência crítica sobre a forma artística. Mas como uma reflexão sempre gera outra,
podendo desencadear um processo infinito de reflexão, isso pode permitir ao artista
produzir, no interior da obra, um limite para a imaginação infinita. Como destaca
Benjamin, “a força formadora da reflexão marca a forma da obra” (BENJAMIN, op.
cit., p. 81). O pensamento é tudo: a infinitude da imaginação e o limite posto a ela pela
reflexão da própria obra no interior dela. Enfim, o pensamento é o processo de criação
do romantismo.
Objetivamente, a autonomia dos românticos em relação às formas artísticas não
se deu por meio de criações divinas nunca antes utilizadas. Mas a grande conquista que
legaram à modernidade foi a destruição dos limites entre as formas de arte. Segundo
Benjamin:
(...) não compreendiam, como a Aufklärung, a forma como uma regra de
beleza da arte e sua observância como uma pré-condição necessária para o
efeito agradável e edificante da obra. A forma mesma não valia para eles
nem como regra nem como dependente de regras. (BENJAMIN, 2002, p.
82)
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A arte reflexiva romântica busca um meio de superar de maneira crítica as regras
da arte, não as compreendendo mais como sinônimo de beleza estética. A superação dos
limites dos gêneros e dos preceitos poéticos previamente estabelecidos se dá justamente
pelo fato de que o artista não tolera nenhuma regra sobre si, concebendo uma obra com
características próprias, original. Diante disso, Friedrich Schlegel já indicava que
nenhuma teoria poderia dar conta de classificar a poesia romântica, visto que ela não
está formada e sim em devir, como verifica-se em seu famoso “Fragmento 116”, da
revista Athenäum:
[...] O gênero poético romântico esta em devir; sua verdadeira essência é
mesmo de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada.
Não pode ser esgotado por nenhuma teoria, e apenas uma crítica divinatória
poderia ousar pretender caracterizar-lhe o ideal. Só ele é infinito, assim
como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, o que arbítrio do
poeta não suporta nenhuma lei sobre si. O gênero poético romântico é o
único que é mais do que gênero e é, por assim dizer, a própria poesia: pois,
num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica. (SCHLEGEL, 1997,
65)
Se a reflexão artística se manifesta em sua forma, a objetivação da forma se dá
pela ironia romântica, isto é, uma crítica da arte e do mundo no interior da obra. A
declaração de Schlegel de que a poesia romântica está em devir, em formação, e jamais
poderá ser apreendida por uma teoria, remete ao movimento da reflexão crítica infinita.
Isso favorece tanto a formação de uma arte heterogênea — e dada à incorporação dos
diversos gêneros no interior de uma obra de arte (é só pensar na tragicomédia, por
exemplo) — como a destruição de uma poética presa a padrões previamente
estabelecidos. Os pressupostos do “Fragmento 116” podem ser relacionados às palavras
de Octavio Paz sobre a constituição da modernidade que, segundo ele, baseia-se em três
características: “heterogeneidade, pluralidade de passados e estranheza radical” (PAZ,
1984, p. 18). A heterogeneidade da arte romântica deriva do fato de que a arte moderna
assenta-se numa permanente ruptura consigo mesma e com a tradição, já que, para se
estabelecer, cada novo artista e cada novo estilo, tende a romper com a convenção
estética estabelecida. Deriva ainda da possibilidade de cada artista estabelecer suas
próprias leis de criação ou sua própria maneira de utilizar as leis artísticas. Essa
permanente ruptura gera uma pluralidade de passados: “não satisfeita em ressaltar as
diferenças entre ambos [passado e presente], [a arte moderna] afirma que esse passado
não é único, mas sim plural” (Id. Ibidem). E a estranheza radical fica por conta das
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criações artísticas que rompem com a hegemonia de um estilo ou conceito estético,
propondo vários horizontes artísticos.
O Guesa, indubitavelmente, é expressão dos desígnios do gênio de Sousândrade.
A matéria e a forma seguem os traços do seu pensamento, baseando-se em regras
próprias, absorvendo os preceitos dos códigos retórico-poéticos e concebendo uma
forma única. A poesia sousandradina não pode ser apreendida pelos pressupostos de
extração “neoclássica” da crítica literária brasileira do século XIX, pois está em devir,
destruindo qualquer possibilidade de crítica que intentasse limitá-la com conceitos
prévios do “bom poetar”. Logo, a acusação de que Sousândrade não teria domínio da
forma literária torna-se infundada quando se pensa sua produção nos termos da estética
romântica. A suposta informalidade da obra sousandradina que os críticos apontam é, na
verdade, um elemento compositivo que permite o poeta passar a aparência informal e
espontânea de sua reflexão. Para João Adolfo Hansen, a informalidade
[...] pode ser pensado como máquina muito eficiente que prevê inclusive o
próprio emperramento, e cujo efeito máximo, quando funciona é o de fazer
crer que não há efeito, nem funcionamento e, mais, que não há máquina,
apenas “eus” na comunhão do “nós” da idéia. A informalidade dos
procedimentos técnicos e dos efeitos imaginários é, enfim, resultado de
procedimentos técnicos aplicados como aptidão de um modelo cultural de
produção/consumo da poesia como ausência de técnica e espontaneidade.
(HANSEN, 1991, p. 19)
Sousândrade constrói sua obra aparentemente sem uma forma definida pelos
padrões previamente conhecidos nos manuais de retórica, valorizando a informalidade e
o fragmento poético. O próprio poeta ressalta várias vezes, como se nota na
Memorabilia, que a objetivação de sua reflexão ocorre de maneira imperfeita, por
“formas externas rudes, bárbaras ou flutuantes”, as quais seriam adequadas para
expressar os influxos de reflexão. Seus versos não são isométricos, o ritmo de sua
poesia é disforme, suas metáforas muitas vezes são incompreensíveis, visando mais ao
efeito visual que semântico, carregando sua poesia de hipérbatos, anástrofes, ablativos
absolutos. Destaca-se, ainda, que os temas incorporados nessa poesia, tais como a lenda
muísca do Guesa, seus dramas pessoais e seu ideal democrático-republicano, tudo isso,
forma um mosaico muito estranho ao leitor brasileiro familiarizado com certo tipo de
poesia romântica, muito longe daquele presente nos saraus literários da corte de D.
Pedro II.
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Há, na obra sousandradina, uma vertente de romantismo diferente daquele que
os livros didáticos apresentam como seguidos pelos nossos autores canônicos. Um
romantismo que extrapola os limites dos códigos retórico-poéticos e estabelece a
reflexão como meio para uma nova arte. A informalidade e a singularidade dessa poesia
muitas vezes podem ser consideradas como elementos antecipatórios de práticas
estético-poéticas das vanguardas históricas do início do século XX. Falar em um
modernista avant la lettre na obra desse poeta é anacrônico e, talvez, até um equívoco,
uma vez que tudo nele é romântico, com bases estético-filosóficas bem definidas.
Referências Bibliográficas
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Alfredo Bosi; 4ª. Ed. rev. trad. e trad. novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
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Trad., intro. e notas Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.
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(Manuscrito inédito), 1991.
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Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
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SCHLEGEL, Friedrich. Dialeto dos fragmentos, trad., apres. e notas de Márcio Suzuki.
São Paulo: Iluminuras, 1997.
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POEMA NARRATIVO CARAMURU, DE FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO
Berty R. Biron
RESUMO: O poema épico Caramuru, composto por Frei José de Santa Rita Durão,
evidencia no seu discurso ideológico o encontro da cultura portuguesa com a do Novo
Mundo. Diogo e Catarina Álvares são personagens emblemáticos da vitória da
civilização europeia e da religião católica na América Portuguesa.
Palavras-Chave: Poema épico Caramuru. Santa Rita Durão. América Portuguesa.
ABSTRACT: The epic poem Caramuru, composed by Friar José de Santa Rita Durão,
makes evident in its ideological discourse the Portuguese culture’s encounter with the
New World. Diogo and Catarina Álvares are emblematic characters of the European
civilization and Catholic’s faith victory in the Portuguese America.
Key-Words: Epic poem Caramuru. Santa Rita Durão. Portuguese America.
∗
A epopeia é uma narrativa em versos, composta por vários episódios em torno
de uma só ação, unitária e completa, com começo, meio e fim e fundamentada em
acontecimentos gloriosos. Cabe ao poeta restaurar o esplendor e a magnificência do
passado, com grandeza e um verbo harmonioso. Ao longo de sua trajetória, a epopeia
foi classificada por eruditos como a forma mais elevada de se cantar e narrar a
formação, o desenvolvimento de um determinado povo, ou indivíduo, cuja história
tenha sido modelada como exemplo heroico, digno de ser contado.
Como afirma Hegel, a epopeia constitui “a saga, o livro, a bíblia de um povo”
(1980, p.130). E, como tal, trata dos conflitos e das guerras entre as nações, embora haja
algumas epopeias de caráter religioso, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, O
Paraíso Perdido, de Milton. A Eneida, de Virgílio, e Os Lusíadas, de Camões, são
exemplos de epopeias literárias nacionais. Nesta última inspirou-se Frei José de Santa
Rita Durão, autor do Caramuru, que assim justifica sua obra: “Os sucessos do Brasil
não mereciam menos um poema que o das Índias” (DURÃO, In Épicos, 2008, p. 359),
uma clara alusão a Os Lusíadas, de Luís de Camões, a quem Durão faz a sua grande
homenagem, ao tomar por base de sua obra o plano, a composição e o verso decassílabo
∗
Graduação em Letras Modernas, mestrado e doutorado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. É membro do Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras, do Centro de Estudos do
Real Gabinete Português de Leitura, e colaboradora da revista Convergência Lusíada. Endereço:
[email protected].
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do grande vate. O poema é composto por dez cantos, num total de 834 estrofes de oito
decassílabos, em esquema rítmico AB AB AB CC, ou seja, seis versos com rimas
alternadas e os dois últimos com rimas emparelhadas. São ao todo 6.672 versos em
oitava rima. Publicado em Lisboa, em 27 de julho de 1781, com tiragem de dois mil
exemplares, foi anunciado pela Gazeta de Lisboa, no suplemento daquela data, com a
seguinte nota:
Saiu à luz o Poema Épico intitulado o Caramuru, ou descobrimento da
Bahia, envolvendo em vários Episódios a História Natural, Política, e
Militar do Brasil, composto pelo Doutor Fr. José de Santa Rita Durão,
Eremita de Santo Agostinho. Vende-se em Lisboa em casa de João DuBeaux, e nas mais lojas de livros das Províncias.
Durão soube retirar a substância épica da história do Brasil, que seria uma
continuação da existência de Portugal, uma extensão do seu poder, renascimento e
continuidade, numa relação que pode ser entendida como um prolongamento da
Metrópole na América Portuguesa.
Esse prolongamento do Velho Mundo no Novo se configurou em termos
políticos, econômicos e culturais. Além disso, parece subjacente na estrofe citada a
seguir o conteúdo religioso: a tarefa missionária de expansão da fé cristã, que permeia
todo o poema:
E enquanto o povo do Brasil convulso
Em nova lira canto, em novo pletro,
Fazei que fidelíssimo se veja
O vosso trono em propagar-se a Igreja.
(Canto I, VIII, 5-8)
Observa-se no Caramuru um reflexo da ideologia reinante no século XVI,
quando a incorporação de novas terras implicava sua sujeição não só ao poder do rei, no
caso o de Portugal, mas também ao da Igreja 8. A ótica do narrador-autor é de lealdade a
Portugal, de exaltação do trabalho dos jesuítas na catequese dos gentios. O Novo
Mundo é delineado em suas múltiplas características, entre as quais avulta a vastidão
territorial:
Nele vereis nações desconhecidas,
Que em meio dos sertões a Fé não doma,
E que puderam ser-vos convertidas
8
BIRON, Berty. in Épicos, p. 335.
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Maior Império que houve em Grécia ou Roma:
Gentes vereis e terras escondidas,
Onde, se um raio da verdade assoma,
Amansando-as, tereis na turba imensa
Outro Reino maior que a Europa extensa.
(Canto I, IV)
Na composição de seu poema, Durão se baseou nos depoimentos históricos de
Francisco de Brito Freire, Sebastião da Rocha Pita e Simão de Vasconcelos, e seguiu os
preceitos de diversas obras, entre as quais cabe destacar as seguintes: a Arte Poética ou
Regras da Verdadeira Poesia, de Francisco José Freire, ou Cândido Lusitano, como
também é conhecido; o Verdadeiro Método de Estudar, de Luís Antônio Verney, e a
Arte Poética, de Nicolas Boileau, entre outras.
Convém assinalar que o frade-poeta leu os clássicos, toda a literatura dos
viajantes e missionários, estudou os doutores da Igreja, como Santo Agostinho, e
naturalmente a Bíblia, o que confere à sua obra um cunho religioso, em que
transparecem as marcas do Antigo e do Novo Testamento 9. Observa-se também a
influência da Eneida, de Virgílio, e da obra barroca Frutas do Brasil, de Frei Antônio
do Rosário, entre outras.
No presente ensaio, contudo, não se objetiva dar conta das fontes do
Caramuru, mas sim entender o poema em sua especificidade narrativa. Antes, porém,
vale ressaltar a recomendação de Boileau quanto à escolha do herói:
Faites choix d’un héros propre à intéresser,
En valeur éclatant, en vertus magnifique...
(BOILEAU, apud NASCIMENTO, 1949, p. 10)
As expressões bravura brilhante (valeur éclatant) e virtude magnífica (vertus
magnifique) são elementos fundamentais na caracterização do herói, o que dará o tom
pelo qual a narrativa compõe os episódios, as partes, que no seu conjunto integram a
obra. Convém assinalar que éclat e éclater são palavras representativas do “brilho”
moral e heroico.
Frei José inicia a narração, deixando claro que as adversidades impostas pelo
acaso tornaram Diogo Álvares Correia merecedor de uma narrativa épica:
9
BIRON, Berty. Caramuru: um poema épica da conversão e sua recepção crítica. Dissertação (Mestrado em
Letras). PUC-Rio, 1988.
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O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço Herói quem nela é forte.
(Canto I, I, 7-8)
Trata-se de um aedo a cantar e narrar os acontecimentos, observando certa
distância histórica dos fatos, transcorridos há mais de duzentos e cinquenta anos. Durão
retrocede ao século XVI e elege o seu personagem, que se insere na história factual. É
interessante repetir o que preconiza Francisco José Freire em sua Arte Poética: “A
última propriedade da epopeia é que não seja muito moderna, nem demasiadamente
antiga” 10. Quando se trata de um assunto muito antigo, este pode evocar costumes
remotos e incompreensíveis para o leitor.
O poeta narra a história do português Diogo Álvares Correia e de sua consorte, a
indígena Paraguaçu. Frei José de Santa Rita Durão, ao pesquisar a história do Brasil em
busca de um episódio para descrever os primórdios da nação, foi bem sucedido na
escolha de seu personagem principal, pois Diogo possui dois elementos essenciais para
a configuração de um herói épico: a veracidade histórica e o mito criado em torno de
sua figura. Após atravessar uma formidável 11 tempestade, Diogo não teme mais a morte,
porque invoca a ajuda divina.
Somente sete homens sobrevivem ao naufrágio, após a tempestade, e em terra
firme vão ao encontro dos habitantes do Novo Mundo. Nesse primeiro momento, o
narrador observa e descreve os nativos, suas vestimentas, pinturas, pedras e paus
utilizados como adornos, e menciona as armas certamente estranhas, exóticas aos
costumes europeus. De fato, o novo gera espanto e estranhamento:
Pasmam de ver na turba recrescida
A brutal catadura, hórrida e feia:
(Canto I, XIX, 3-4.)
O mundo indígena é abordado pelo poeta, tanto no seu aspecto positivo quanto
no negativo, em que a violência e o canibalismo se fazem presentes. O canibalismo, que
nivela os nativos aos animais, pode às vezes ser interpretado segundo a relatividade dos
conceitos, conforme a estrofe seguinte, em que o olhar sobre o outro, embora não
10
FREIRE, Francisco José. Arte poética, ou regras da verdadeira poesia em geral, e de todas as suas espécies
principais, tratadas com juízo crítico. 2. ed., Tomo II. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759, p.
175
11
Empregamos formidável tempestade com o significado de gigantesca, assustadora, aterradora (Cf. HOUAISS,
2004, p. 1.374).
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inteiramente liberto da visão etnocêntrica, é capaz de compreender a barbárie quando se
volta para as próprias origens.
Nós que zombamos deste povo insano,
Se bem cavarmos no solar nativo,
Dos antigos heróis dentro às imagens,
Não acharemos mais que outros selvagens.
(Canto II, XLVII, 5-8)
Desde que Diogo se salva do naufrágio, no litoral da Bahia, surge diante dele um
novo cenário: uma terra inóspita habitada por seres selvagens, diante dos quais só lhe
resta uma escapatória: mostrar àqueles nativos seus poderes de homem civilizado – uma
superioridade cultural que operou a grande transformação de todos os personagens
daquele episódio grandioso, mas aterrador. Com uma espingarda, Diogo abate uma ave
em pleno voo. Entre assustados e maravilhados, os índios se apercebem da força do que
lhes parece inexplicável e, como única resposta, o aclamam “Filho do Trovão”, ou
“Caramuru”. Inicia-se, assim, a sucessão de vitórias que irão desenhar, ao longo do
poema, a figura heroica de Diogo Álvares Correia. Como filho de uma divindade,
automaticamente passa ele a ser investido da autoridade que lhe garantirá a imagem de
líder, a quem naturalmente cabe o direito de desposar nativas. Não tarda ele em
conhecer a índia Paraguaçu, cujas graças o cativam, mais do que as de Moema, que
também por ele se apaixona.
Como se verá mais adiante, contrariamente aos costumes pagãos, que permitiam
duas ou mais esposas, Diogo, mesmo distante da Metrópole e do controle da Igreja,
assume a postura ética cristã e escolhe apenas uma: Paraguaçu. Não a quer, porém,
cultivadora de crenças e práticas pagãs. Vai torná-la sua esposa e para isso a quer
trilhando a larga via, convertida à sua universalidade, ao catolicismo. Decide então levála à França – centro da civilização europeia. Ela o aceita sem restrições:
Esposo (a bela diz), teu nome ignoro;
Mas não teu coração, que no meu peito
Desde o momento em que te vi, que o adoro:
Não sei se era amor já, se era respeito:
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro,
Que de dous corações um só foi feito.
Quero o batismo teu, quero a tua Igreja,
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja.
(Canto II, XC)
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Essa estrofe revela a aceitação de todo o processo de apagamento progressivo
das marcas culturais de um povo, que assim se rendia ao poder de uma cultura
apresentada como superior.
O momento ritualístico da conversão de Paraguaçu concretiza-se na França, mas
se inicia, simbolicamente, ainda no Brasil, com a morte de Moema, que parece
simbolizar a parte selvagem de Paraguaçu. Moema segue a nado a embarcação que leva
Diogo e Paraguaçu, e o faz até o limite de suas forças. Antes de ser tragada pelo mar,
Moema refere-se à rival, degradando-lhe a imagem:
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que, sem que o creia,
Sobre ser-me infrior, é néscia e feia.
(Canto VI, XL, 4-8)
Mais do que um desabafo provocado pelo despeito, pelo ciúme, as palavras de
Moema podem bem demonstrar uma quebra da unidade do universo cultural indígena
pela interferência de outra cultura. Moema coloca-se então como a porta-voz da
contrariedade de grupos indígenas. Considerando-se que nenhuma ruptura se produz
sem que algo seja abalado, cala-se, afoga-se a voz de Moema. Pode-se, dessa forma,
reler a morte de Moema como o sacrifício do indígena e de sua cultura.
Tanto a morte de Moema quanto o batismo de Paraguaçu têm como elemento
mediador a água. Por meio dela o ser humano se purifica e recebe uma nova vida. O
batismo é um rito de iniciação necessário para que o homem passe a pertencer à
comunidade cristã, tal como ocorre com Paraguaçu:
Banhada a formosíssima donzela
No santo crisma, que os cristãos confirma,
Os desposórios na real capela
Com o valente Diogo amante firma:
Catarina Alvres se nomeia a bela,
De quem a glória no troféu se afirma,
Com que a Bahia, que lhe foi senhora,
N’outro tempo, a confessa, e fundadora.
(Canto VII, XIX)
Depois do batismo, Paraguaçu passa a denominar-se Catarina Álvares (o
prenome significa a pura, em grego). Com isso, ao abraçar a religião de Diogo, ela
perde a antiga identidade e renasce para as luzes do cristianismo.
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Do triângulo Moema-Diogo-Paraguaçu destaca-se Diogo como o dominador
europeu, inflexível aos apelos da índia dominada cultural e afetivamente, a qual, na sua
ótica, só pode ver o seu superior como uma criatura cruel. Moema, antes de morrer,
dirige a Diogo estas palavras:
Ah Diogo cruel! disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n'água.
(Canto VI, XLII, 7-8)
Moema pode ser entendida como a última possibilidade de se impedir a
assimilação total do mundo indígena à civilização europeia, e sua morte exalta o
sacrifício do mundo não civilizado. Por isso Moema morre com a dignidade de herói
épico.
Durante o retorno ao Brasil, na passagem pela linha do Equador, Paraguaçu, já
como Catarina, profundamente adormecida, tem visões proféticas sobre o Brasil,
artifício do autor para narrar parte da história do Brasil. Mas é nesse momento que
Catarina tem a visão da Virgem Maria, o que está em consonância com sua nova
situação de católica. E vale assinalar um recurso usado frequentemente na épica: o
vaticínio, núcleo narrativo através do qual se adiantam aos protagonistas e se expõem ao
leitor acontecimentos que têm lugar na posteridade ou ao tempo da ação.
Vi, não sei s’era impulso imaginário,
Um globo de diamante claro e imenso;
E nos seus fundos figurar-se vário
Um país opulento, rico e extenso:
E aplicando o cuidado necessário,
Em nada do meu próprio o diferenço;
Era o áureo Brasil tão vasto e fundo,
Que parecia no diamante um mundo.
(Canto, VIII, XXI)
Convém sublinhar que esse destino glorioso e pacífico do Brasil se expressa de
forma não menos opulenta em metáforas e epítetos e vai transbordar na emoção que o
autor transfere para Catarina, numa bela associação de suas lágrimas ao orvalho da
noite, ao término da narração do sonho profético:
Deu Catarina fim e arrebatada
Num êxtase ficou, vibrando ardores;
Corriam pela face em luz banhada
Lágrimas belas, como orvalho em flores:
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Fica a pia assembléia esperançada
De outros sucessos escutar maiores;
(Canto IX, LXXX, 1-6)
Observemos que o personagem Catarina adquire uma dignidade diversa daquela
que a caracterizava como indígena: passa a ser admirada não só por ser a bela esposa de
Diogo, mas também, e principalmente, pela visão da Virgem Maria e pelo sonho
profético sobre o Brasil – recursos de que se valeu o autor para evidenciar o rápido
processo de aculturação, de transformação a que se submeteu Paraguaçu. E é essa
mesma aculturação, agora do ponto de vista religioso, que lhe permite ver a Virgem
Maria:
Cheia de assombro a turba a dama admira
Tornada a si da suspensão pasmosa;
E da nova visão, que ali sentira,
Prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa:
Mais bela que esse sol, que o mundo gira,
E com cor (disse) de purpúrea rosa,
Vi formar-se no céu nuvem serena,
Qual nasce a aurora em madrugada amena.
(Canto X, I)
No mesmo Canto, o poeta habilmente entremeia a narrativa de Catarina com a
descoberta de uma imagem da Virgem, roubada por um selvagem, fazendo assim a
passagem do imaginário (a visão) para o concreto (a imagem como representação física
da Virgem).
Essas evidências de religiosidade cristã consolidam a construção de um novo
personagem: uma indígena europeizada, que, unida a Diogo pelos laços do casamento,
torna-se digna de ao lado dele caminhar. Diogo é, assim, o agente dessa transformação
do selvagem por meio da fé – a marca do início de seu percurso missionário. Nele se
imprime essa marca por meio dos dois nomes que carregará para sempre: o cristão,
Diogo, correspondente ao personagem ao mesmo tempo dominador e missionário, e
Caramuru, uma aquisição tardia, originária de um ato que o transformou em semideus.
Essa dupla designação permite-nos observar uma dualidade no texto, pois é este o
homem das ações, enquanto seu lado Caramuru permanece fechado no universo mítico.
A Diogo pertencem a fala e os atos de bravura. Diogo é o herói atuante no seu papel de
converter os indígenas e conquistar novos territórios, enquanto Caramuru é apenas um
nome mágico que estabelece uma aura em torno da figura que dá título à epopéia. Os
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adjetivos que acompanham Diogo denotam heroísmo, nobreza e força. Diogo é
prudente, pio, pio lusitano, pio herói, valeroso, sábio, generoso, clemente, bom, valente,
nobre, e piedoso. É aquele que atua, verbaliza seus pensamentos e crenças, enquanto
Caramuru permanece como um nome utilizado para evocar o caráter mítico do herói e
pouco utilizado na narrativa. Enquanto podemos encontrar o nome Diogo mais de uma
centena de vezes, Caramuru, em contrapartida, é citado apenas vinte e duas vezes. Em
suma, Caramuru serve como referência à adoração, daí o seu caráter passivo, enquanto o
nome cristão reflete a atividade, o que talvez esteja próximo ao caráter ativo do
português navegador, descobridor, construtor do novo mundo e semeador do
cristianismo.
À figura mítica do Caramuru e missionária de Diogo associam-se outras, em
discursos paralelos à história principal, organizados em três contos: a lenda da estátua
profética; Sumé – santo emboaba – e Embiara e Mexira, os gêmeos caetés.
O conto, segundo Massaud Moisés (1983), organiza-se precisamente como uma
célula, em cujo núcleo se concentra toda a densidade dramática. No tecido circundante
situa-se a matéria, os elementos que permitem a expansão dessa energia e o
cumprimento de sua tarefa. “O êxito ou malogro do conto se evidencia na articulação ou
desarticulação entre o núcleo dramático e o seu envoltório não-dramático.” (Ibid., id.,
p.25). Dentro dessa concepção, vamos encontrar três pequenos contos no interior da
narrativa épica de Durão. Em cada um deles há um núcleo denso, que se espraia nas
estrofes seguintes, em sintonia e articulação com a ideologia da obra. Vamos examinar
esses contos e, sobretudo, a sua função, meticulosamente engendrada e articulada pelo
frade-poeta.
Lenda da estátua profética
Trata-se do primeiro conto, em meio à narrativa épica. Apresenta-se logo no
Canto I, da estrofe XXXIII à LXVI, pronunciado ao som da cítara por um profundo
conhecedor das letras que naufragou junto com Diogo: Fernando. Ele teria conversado
com as Musas, cantoras divinas ligadas às diversas áreas do conhecimento e das artes, a
saber: música, eloquência, sabedoria e história. Fernando, que ouvira o belo conto da
estátua profética, dispôs-se a recontar essa história, que pode ser verídica, embora o
tempo seja duvidoso e oculto. Relatou a conversão de Guaçu e sua capacidade de
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assimilar o batismo antes do último suspiro. O que efetivamente sucedeu foi descrito
com profundo sentimento de sublimidade diante do espetáculo. Observe-se a seguinte
estrofe:
Disse; e cessando a voz e a visão bela,
Viu da nuvem Auréu, que o rodeava,
Transformar-se a bela alma em clara estrela,
E viu que a nuvem sobre o mar voava:
O cadáver também, sublime nela,
Ao cume do grão pico já chegava,
Onde a névoa, que no alto se sublima,
Depõe como uma estátua o corpo em cima.
(Canto I, LXIV)
Guaçu, o indígena, que em tupi significa grande (BUENO, 1987, p.
124)tornou-se a feliz criatura que, em meio ao paganismo em que viviam os gentios,
mereceu o batismo cristão e com ele o nome Félix. Auréu, o sacro enviado, revelou ao
indígena moribundo a essência do cristianismo: “São três pessoas numa só unidade”
(Canto I, estrofe XXXIX, verso 8). Félix ouviu atentamente as palavras proferidas pela
boca sagrada de Auréu, o enviado, e aceitou a conversão ao catolicismo. Apesar de se
expressarem em idiomas tão distintos entre si, eles se comunicavam. Auréu relatou em
poucas palavras a criação do mundo, o paraíso perdido em decorrência do pecado
original cometido por Adão e Eva, o nascimento de Jesus, o Salvador, que, ao subir aos
céus, comandou a todos e enviou mensageiros com a finalidade de difundir o
cristianismo na Terra.
Essa estátua profética, além de conter uma lenda, vai apontar para o “áureo”
Brasil, ensinando desse modo o caminho para os portugueses chegarem assertivamente
ao Novo Mundo.
Sumé, santo emboaba
O segundo conto resgata a figura de Sumé, herói mítico indígena associado a
São Tomé a partir da similaridade sonora entre os dois nomes. Em sua missão
catequética, os jesuítas buscaram a semelhança entre os dessemelhantes, ou seja, entre
cristãos e pagãos, tencionando provar a estes a universalidade da fé católica. Como bem
observa Moreau:
Assim como viram no mito da criação algo relacionado ao dilúvio, a
sonoridade do nome Zumé, herói-civilizador tupi, lembrou o do
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apóstolo que viajou para pregar em lugares distantes. A necessidade de
os jesuítas encontrarem São Tomé está ligada à identificação com sua
saga: intempéries de viagens, sofrimentos provocados pelos gentios.
(MOREAU, 2003, p. 267)
Nos primeiros séculos da colonização da América, conta-se a célebre lenda da
chegada de São Tomé ao Novo Mundo. O santo emboaba teria mantido contato com os
indígenas com o intuito de lhes ensinar a plantar e moer a mandioca, entre outras coisas.
A sua chegada pelo mar, sem se afundar, é fantástica e nebulosa.
Segundo a lenda, o poder de Sumé se irradiava por toda a parte: domava os
ventos, o mar irado, as matas se lhe abriam, e também amansava os animais ferozes. A
água transformava-se em elemento sólido para que ele pudesse passar sem se afundar. O
narrador-autor prossegue a narração com o sujeito indeterminado na forma verbal
“contam”, conferindo um tom que pode-se inscrever na tradição oral. Esse santo homem
teria deixado na areia marcas de sua passagem, ou de sua trajetória sob a forma de
pegadas.
Contam que, quando aos nossos cá pregava,
Poder mostrara tal nos elementos,
Que às ondas punha lei, se o mar se irava,
E de um aceno só domava os ventos:
Os matos se lhe abriam, quando entrava,
E os tigres feros, a seus pés atentos,
Pareciam ouvir, como a outra gente,
Festejando-o co'a cauda brandamente.
(Canto III, LXXXIII)
As águas donde quer, em rio ou lago,
Se as chegava a tocar com pé ligeiro,
Não pareciam de elemento vago,
Mas pedra dura ou sólido terreiro:
Só com chamar seu nome, cessa o estrago,
Se o furacão com hórrido chuveiro,
Quando na nuvem negra se levanta,
Ou derriba a cabana ou quebra a planta.
(Canto III, LXXXIV)
Enfim, Sumé teria vindo para recomendar o plantio da terra e a conversão dos
indígenas ao catolicismo. Durão dá curso à lenda, conforme Bosi explica:
[...] os missionários fizeram uma partilha tática no conjunto das
expressões simbólicas dos nativos. Colheram e retiveram das narrativas
correntes só aquelas passagens míticas nas quais apareciam entidades
cósmicas (Tupã), ou então heróis civilizadores (Sumé), capazes de se
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identificarem, sob algum aspecto, com as figuras pessoais e bíblicas de
um Deus Criador ou de seu Filho Salvador. (BOSI, 1992)
Embiara e Mexira, os gêmeos caetés
Durão desenvolve o tema do canibalismo neste terceiro conto, no qual fica
evidenciada essa prática, inclusive entre indígenas da mesma tribo. Observe-se que a
antropofagia é o que ainda nos dias atuais mais repulsa ao homem civilizado, e muito
mais ao religioso. Era o que havia de mais incompatível com o cristianismo. Dois
irmãos gêmeos, Embiara e Mexira, morreram em combate. Apesar de terem sido
amados pelas mulheres de sua tribo, terminaram servindo de pasto aos seus iguais: os
caetés. Veja-se a cena bárbara em que é descrita a mutilação dos corpos:
Qualquer junto aos cadáveres se assenta,
E vão talhando pés, cabeças, braços,
E as vítimas fazendo em mil pedaços.
(Canto V, XXVIII, 6-8)
Chamam moquém as carnes que se cobrem
E a fogo lento sepultadas assam;
Tudo em cima com terra e rama encobrem,
Onde o fogo depois com lenha façam:
Entanto as voltam, cobrem e descobrem,
Até que do calor se lhe repassam:
Detestável empresa que escondiam
Da indignação de Diogo, a quem temiam.
(Canto V, XXIX)
A cena preparatória do ritual antropofágico põe à mostra a diferença
inconciliável entre a civilização e a barbárie, presente desde a quinta estrofe do Canto I.
A descrição detalhada da prática antropofágica aparece em alguns trechos da obra de
Santa Rita Durão. O frade-poeta tomou por base relatos, cartas, documentos e
compêndios escritos a partir do século XVI ao XVIII. O traço antropofágico é ressaltado
nos textos históricos e em relatos produzidos a respeito das tribos que habitavam o
Novo Mundo, como os de Jean de Léry, Hans Staden, Padre Manuel da Nóbrega, Pero
Correa, entre outros. Nesses relatos registra-se o espanto ante o canibalismo, a nudez e
tantos outros costumes que constituíam parte da cultura de diversas tribos. Como bem
observa Carneiro da Cunha (1990), “desde o primeiro instante não há dúvida de que são
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homens”, mas, apesar dessa aparência, são seres animalizados – e é isso que provoca o
mal-estar, a perplexidade diante desse outro, tão próximo e ao mesmo tempo tão
distante da condição de ser humano, como sugere Raminelli (1996, p. 153), citado por
Moreau (2003, p.66).
As fortes impressões causadas por esses hábitos tão estranhos à cultura
europeia suscitaram as inevitáveis comparações entre as duas culturas e a necessidade,
por parte dos missionários, de substituir todo o conjunto de crenças e procedimentos dos
nativos pelas práticas da cultura ocidental, especificamente voltadas para a
cristianização. Assim, como acrescenta Raminelli, “os padres teriam a missão de trazer
os ameríndios para o mesmo estádio de evolução onde se encontravam os europeus
cristianizados” (1996, p. 31).
Convém assinalar o fato de os contos inseridos no poema épico Caramuru
colocarem à mostra os aspectos ideológicos fundamentais na estrutura da narrativa.
Como se sabe, o conto é uma narrativa concisa, e extremamente densa. Os contos
entrelaçados à narrativa épica vêm confirmar as questões ideológicas e, portanto,
basilares deste poema. Elas podem ser mais bem observadas ao longo dos dez cantos.
O narrador-autor, que tudo observa, faz uma distinção entre os indígenas: uns
são bravos e intratáveis, outros, mansos. Os primeiros são aqueles que não aceitam os
ensinamentos e permanecem selvagens; os segundos se tornam civilizados e cristãos.
Há, por conseguinte, dois indígenas no Caramuru: o convertido e o selvagem. Guaçu e
Paraguaçu exemplificam os que sofreram a conversão e o processo civilizatório;
portanto, são flexíveis e mutáveis. Representam o sucesso do missionário católico e do
dominador português no Novo Mundo.
Jararaca e Moema, por outro lado, são impermeáveis às mudanças,
permanecendo dessa forma selvagens. A morte da bela Moema e de Jararaca vêm
corroborar a vitória da civilização e da Igreja em terras brasílicas. Observa-se a lenta
dissolução da cultura indígena, seu mundo gradativamente desconstruído pelo europeu
civilizado e cristão.
Caramuru e Paraguaçu foram assimilados pela nova ordem que se instalava,
evidenciando o triunfo da civilização europeia e da religião católica na América
Portuguesa, aproximando assim o discurso literário ao discurso ideológico. Os
primeiros versos da última estrofe da obra parecem apontar para este desfecho:
Por fim publica do Monarca reto,
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Em favor de Diogo e Catarina,
Um Real honorífico Decreto,
Que ao seu merecimento honras destina:
(Canto X, LXXVII, 1-4).
Resumo dos Cantos
No Canto I constam: a proposição, a invocação, a dedicatória ao Príncipe do
Brasil, José Francisco de Bragança (1761-1788), filho mais velho da rainha D. Maria I
de Portugal; narração do naufrágio de Diogo Álvares e os seis companheiros; o
encontro dos náufragos com os indígenas; lenda da estátua profética que apontava para
o Brasil, na ilha do Corvo. O indígena Guaçu, convertido ao cristianismo, transforma-se
na famosa estátua. Destaca-se ainda a descrição dos preparativos para o ritual
antropofágico.
No Canto II, prossegue a narração. Diogo, por estar enfraquecido, é poupado.
Consegue recuperar sua arma de fogo, com a qual mata um pássaro em pleno voo. Com
este ato, conquista a admiração dos tupinambás e o poder sobre eles, sendo por tal feito
aclamado e denominado Caramuru. Diante das circunstâncias adversas e do
canibalismo, bem como do estado pagão em que se encontram os selvagens, Diogo
assume a missão de convertê-los ao catolicismo. Ainda neste Canto são descritas as
aldeias e os costumes indígenas. Ao final, Diogo e Paraguaçu se conhecem e se
apaixonam.
No Canto III, as crenças, os usos e os costumes indígenas são explicados a
Diogo por Gupeva, da tribo tupinambá, tendo Paraguaçu por intérprete. Finalizando o
Canto, os caetés chegam para atacar os tupinambás.
No Canto IV é descrito o combate entre Gupeva e Jararaca: tupinambás contra
caetés. Esta tribo, em número assustador, compõe-se de figuras monstruosas. Vence
Gupeva com o auxílio de Diogo e Paraguaçu.
No Canto V, Diogo conversa com Paraguaçu sobre a bondade de Deus; os
gêmeos Embiara e Mexira, caetés, são preparados para o ritual antropofágico. Diogo
mata Jararaca com um tiro de espingarda.
No Canto VI, os chefes de diversas tribos oferecem suas filhas como esposas a
Caramuru, mas ele só se interessa por Paraguaçu. O casal embarca para a França,
deixando para trás Moema, a indígena apaixonada por Diogo, que, inconformada com o
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desprezo do amado, segue a nau e morre afogada. Diogo narra ao comandante Duplessis
o descobrimento do Brasil e descreve essa “América Opulenta”, detendo-se em cada
província.
No Canto VII, Diogo e Paraguaçu chegam à França. Paraguaçu, que jamais
vira espetáculo igual, fica encantada. O casal é recebido pelos reis da França. Paraguaçu
casa-se com Diogo Álvares, após ser batizada com o nome de Catarina, em homenagem
a Catarina de Médicis, sua madrinha. Diogo descreve aos reis franceses as terras, a
fauna e a flora brasileira.
No Canto VIII, por lealdade a Portugal, Diogo recusa a oferta de Duplessis no
sentido de ajudá-lo a dominar o Brasil em favor da França. O casal embarca de volta
para o Brasil. Na linha do Equador, Catarina, profundamente adormecida, tem visões
proféticas do futuro do Brasil. Sua narração focaliza a invasão francesa.
No Canto IX, depois de uma tempestade, prossegue Catarina relatando as
guerras contra os invasores holandeses até a expulsão destes.
No Canto X, Catarina, em sonho profético, vê a Virgem Maria, em grande
beleza física e espiritual. Narra como foi encontrada a imagem da Virgem, roubada por
um selvagem. Após a chegada à Bahia, Catarina decide mandar edificar uma Igreja.
Chega Tomé de Sousa para povoar a Bahia. Catarina renuncia aos direitos herdados
sobre os tupinambás. No final da obra, Diogo Álvares Correia de Viana e Catarina
Álvares recebem da coroa Portuguesa “um real honorífico decreto”.
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UMA TRAJETÓRIA DO ESQUECIMENTO: O POEMA A NEBULOSA, DE
JOAQUIM MANUEL DE MACEDO
Angela da Costa *
RESUMO: O poema narrativo A Nebulosa, de Joaquim Manuel de Macedo, está hoje
praticamente esquecido. No entanto, em meados do século XIX, época de sua
publicação, a obra obteve enorme sucesso. Este artigo pretende dar notícias sobre o
poema, refletir sobre sua recepção acompanhando sua trajetória do esquecimento.
Palavras-chave: Romantismo, poesia brasileira, recepção
ABSTRACT: Joaquim Manuel de Macedo's narrative poem A Nebulosa is now almost
forgotten. However, in mid-nineteenth, time of its publication, the work got huge
success. This articles want to news about the poem, to reflect about its receipt and
follow its path of oblivion.
Keywords: Romanticism, brasilian poetry, receipt.
Joaquim Manuel de Macedo foi romancista, dramaturgo, poeta, historiador,
jornalista, político, professor, secretário e orador do IHGB, editor e colaborador de
várias revistas literárias, além de ter tido uma participação no conservatório dramático.
Foi um dos mais fecundos escritores brasileiros deixando, no conjunto de sua obra, uma
centena de escritos, numa vasta multiplicidade de manifestações. Hoje, Macedo é
conhecido como o autor de A Moreninha, a sua primeira obra, publicada em 1844. Com
ela, tornou-se o maior e mais popular ficcionista nacional na época. Esse romance foi o
que maior número de edições e reedições teve no Brasil. Não é à toa que, após a sua
morte, o autor ficou conhecido como “o Macedo da Moreninha”.
Mas o Macedinho, como era popularmente conhecido, envolveu-se em projetos mais
ambiciosos. Mesmo depois do sucesso como romancista e dramaturgo, decidiu fazer
uma empreitada maior, enveredando por outros caminhos. Ele já escrevia algumas
poesias, muitas delas publicadas em jornais e revistas, mas resolveu compor um poema
narrativo, A Nebulosa, contendo seis cantos e um epílogo, com nada menos que 293
páginas na sua edição de 1857 e 4762 versos endecassílabos brancos, narrando o amor
impossível entre o Trovador e a Peregrina. A obra obteve tanto sucesso que muitos
críticos chegaram a profetizar que Macedo ficaria conhecido na posteridade como poeta,
previsão que não se cumpriu.
*
Doutora em Teoria e História Literária. IEL- UNICAMP. Este artigo é parte de minha tese com mesmo título,
defendida na Unicamp em agosto de 2006.
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O poema era tido, na sua época, como uma obra-prima. Sua fama atravessou o
Atlântico e foi comentado em Lisboa, por Francisco Inocêncio da Silva, no seu
Dicionário Bibliográfico Português, de 1858, um ano após a publicação de A Nebulosa.
Ferdinand Wolf, no seu O Brasil Literário, de 1863, dedicou-lhe onze páginas,
enquanto não se ocupou de mais de vinte linhas para A Moreninha e o teatro cômico de
Macedo, parte da obra do autor que sobrevive até hoje. O poema causou sensação, foi
prestigiado, alcançou um sucesso extraordinário na época da publicação e nos anos
imediatamente posteriores, mas acabou caindo no esquecimento, no “ossuário do
Romantismo”.
O poema de Macedo foi muito comentado no seu próprio século, mas no seguinte, os
comentários vão se tornando mais esparsos até ser praticamente esquecido atualmente,
não havendo sequer um estudo aprofundado sobre A Nebulosa. Na verdade, esse
esquecimento em relação à obra já se evidenciava no final do século XIX. O último
comentário de fôlego sobre ele é datado de 1863, na crítica de Ferdinand Wolf. Depois
disso temos um longo silêncio até 1882, ano da morte do autor. A Nebulosa, 25 anos
após a sua primeira publicação, ainda era vista como obra de valor. Depois de
relembrada na morte do autor, a obra é citada de tempos em tempos.
É impressionante a quantidade de referências e o prestígio dos críticos que se
debruçaram sobre o poema. No entanto, apesar da presença na crítica, o livro
desapareceu das estantes de livrarias. Permanece, hoje, no limbo entre A Confederação
dos Tamoios 12e Colombo 13.
A Nebulosa pertence ao ultra-romantismo brasileiro. É um poema dramático que
narra a história de amor, morte, melancolia, solidão e desespero de um homem ante uma
natureza sempre indiferente à sua angústia. Grandes rochedos, abismos, tempestades,
brumas contracenam com personagens pálidas como a neve, com seres fantásticos, em
um cenário isolado, inacessível e por vezes tétrico, como as ruínas do cemitério ou o
cume de um alto rochedo. Esse canto fúnebre nos remete a uma existência além da vida,
porém mais bela e essencial, um tema caro ao Romantismo.
O poema narra a história de um amor impossível entre a Peregrina e o Trovador,
culminando no suicídio dele abraçado à Doida, mulher que não ama. A impossibilidade
se dá por um juramento da moça feito à mãe no leito de morte. Ela jura jamais amar.
12
A Confederação dos Tamoios,de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1856, é um poema épico indianista
que,por sua visão do índio, causou polêmica na época.
13
Colombo, obra de Araújo Porto-Alegre, é um poema épico de temática nacional. O poeta trabalhou nele desde
1840, publicando episódios em revistas a partir de 1850, vindo a publicá-lo em livro somente em 1866.
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Jamais é o mote de todo o poema. A história se passa num lugar indefinido, um “não
lugar”, também num tempo indefinido, num tom de fantasia e sonho. O poema é
permeado por descrições (muito longas), diálogos e monólogos entre cinco
personagens: Trovador, Peregrina, Doida, Mãe e Nebulosa. Nenhuma delas tem nome
próprio. A Nebulosa, que dá título ao poema, só aparece no início, como uma espécie de
conto de fada que seria o ponto de partida para as desventuras do Trovador. No final, a
morte trágica de todas as personagens na Rocha Negra e a constatação de que, no
poema, não há redenção para nenhuma delas. O poema de Joaquim Manuel de Macedo
compõe-se, quase todo, de monólogos e diálogos entre os quais são intercaladas partes
narrativas.
O enredo parte de uma lenda, conhecida pelos marinheiros, sobre uma mulher muito
bela – fada ou feiticeira - que aparecia à noite sobre um penhasco e encantava os
homens com seu canto, levando-os a se precipitarem no mar. 14 Essa fada só aparecia à
noite, e ao raiar do dia desaparecia como se fosse feita de nuvens, por isso chamada de
Nebulosa. Um jovem, chamado de Trovador, porque canta suas dores de amor
acompanhado de uma harpa, sobe a esse penhasco e é advertido pelos marinheiros sobre
a Nebulosa, mas não lhes dá ouvido. Surge então a segunda personagem, a Doida. Esta
se diz descendente da Nebulosa, traz na testa uma marca de fogo, que indica se tratar de
uma fada.
Segundo ela, as fadas teriam poder para tudo, menos sanar os sofrimentos de amor. Elas
mesmas viveriam uma vida de tormentos por causa da paixão, mas quando mortas,
ganhariam a felicidade eterna no fundo do mar, como as ondinas. A Doida declara ao
Trovador que seu destino está selado ao dele. Ele, no entanto, narra a ela anos de
devoção a um amor não correspondido por uma mulher chamada Peregrina, que teria
jurado no leito de morte de sua mãe jamais entregar seu coração a nenhum homem.
Tanto a mãe quanto a irmã da Peregrina haviam sido vítimas da sedução dos homens,
por isso foram amaldiçoadas e tiveram que se retirar da sociedade, vivendo numa
floresta. Por isso, a Peregrina sempre responde ao Trovador com um “Jamais!” e lhe diz
que seu amor estaria voltado apenas para Deus e a natureza.
Depois de tentar de todas as formas conquistar o amor da Peregrina, durante dez anos,
ele implora para que a Doida, como feiticeira e herdeira da Nebulosa, lhe produza um
14
A lenda se parece vagamente com o mito das sereias que cativam os homens com seu canto e também nos remete
ao mito das Ondinas, mulheres sobrenaturais que conduziam os homens para as suas cavernas no fundo do mar, para
lá viverem pela eternidade. Cf.MOTTE-FOUQUÉ, Friedrich De La. Ondina. Tradução: Karin Volobuef. São Paulo:
Ed. Landy, 2006.
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filtro do amor. Ela lhe responde que tal tarefa é impossível de ser realizada, até para
quem tem poderes. O Trovador decide então se matar naquela mesma noite, mas antes
vai até o cemitério visitar o túmulo de seu pai. É ali que aparece sua mãe, a quarta e
última personagem, que ele não via há dez anos. A Mãe, assim chamada, pede ao filho
que tire aquele amor infeliz de seu coração, que volte para ela. Ele responde que é tarde
demais, que morreria à meia-noite. Numa tentativa desesperada, a mãe corre até a
Peregrina e lhe implora que retribua o amor do Trovador.
A Peregrina, desincumbida de sua promessa por uma ordem de Deus, decide ceder aos
apelos da Mãe. As duas então correm até o penhasco, local de onde o Trovador afirmou
que se jogaria. Nesse meio tempo, a Doida se encontra com o Trovador e declara seu
amor a ele, que lamenta não poder corresponder. Ambos se beijam e se atiram do
penhasco caindo no mar. A Mãe e a Peregrina chegam tarde. Surge uma tempestade e
uma nuvem negra envolve o penhasco: “Tudo é trevas... horror... borrasca, e morte”. 15
Mas a tragédia ainda não terminou. A Mãe, não agüentando tanto sofrimento, falece
sem forças. A Peregrina, amaldiçoada pela mãe, morre ao cair de encontro à harpa do
Trovador.
Tudo no poema soa como estrangeiro, embora não se possa identificar de que lugar
se trata. Segundo um crítico do Diário do Rio de janeiro, em 30/09/1857, A Nebulosa
“pertence à escola fantástica alemã, é um conto de Hoffman, um poema de lirismo
germânico, mas não brasileiro”. A obra, de fato, tem algo de bruma nórdica, mas não
alemã, filiando-se mais ao repertório literário presente em autores como Keats,
Coleridge, Wordsword, conhecidos como “poetas dos lagos”. A Nebulosa nos faz
lembrar das “terras altas” da Escócia e Irlanda, na matéria, na paisagem, na linguagem.
O poema apareceu inicialmente como fragmento, em 1850, quando foi publicada a
sua terça parte inicial na revista Guanabara. Esta revista era dirigida por Manuel Araújo
Porto-Alegre, Antônio Gonçalves Dias e Joaquim Manoel de Macedo. O primeiro
Canto de A Nebulosa aparece não datado, já o Canto II foi publicado em junho de 1851.
Em 1857, foi publicada a primeira edição
do poema completo pela Tipografia
Villeneuve & Cia, no Rio de Janeiro. Uma segunda edição,
com 280 páginas, foi
publicada por H. Garnier, também no Rio de Janeiro. Nesta, aparecia a informação
“nova edição”. Embora não datada, é possível concluir que seja depois de 1878, já que o
rompimento comercial entre os irmãos Garnier se deu entre 1865 e 1878. Até esta data a
15
MACEDO, Joaquim Manuel de. A Nebulosa. Epílogo, Estrofe LVII, verso 6.
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editora comercializava com o nome Garnier Irmãos, depois passa a H. Garnier,
Livreiro-Editor e só depois de 1878 a editora vai para a rua do Ouvidor, 71, mesmo
endereço que aparece na capa da segunda edição de A Nebulosa.
Antes de sua primeira edição, o poema foi lido pessoalmente por Macedo para o
Imperador D. Pedro II, no palácio de São Cristóvão, em uma das salas do Paço Imperial,
oferecida pelo Imperador para as reuniões do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Quando a impressão era muito forte, o Imperador se dispunha a subsidiar a
edição da obra, e assim aconteceu com A Nebulosa, pois foi D. Pedro quem financiou a
publicação do poema. Foi numa das sessões do IHGB, realizadas quinzenalmente às
sextas-feiras, às cinco e meia da tarde, que A Nebulosa apareceu, segundo nota do
Correio Mercantil. O exemplar impresso do poema foi entregue ao Imperador na nona
sessão anual do IHGB, em 25 de setembro de 1857. Nesse mesmo dia, um colunista do
Diário do Rio de Janeiro diz ter recebido o exemplar: “PS. Neste momento acabo de
receber a Nebulosa do Sr. Dr. J.M. De Macedo – tenho assim o prazer de dar-vos conta
do mais lindo fato da semana”. Por causa de A Nebulosa, Macedo foi agraciado com a
Ordem da Rosa, ordem criada para premiar militares, civis e literatos.
É significativo o fato de A Nebulosa surgir exatamente em 1857, mesmo ano da
publicação de O Guarani, de José de Alencar, romance que pode ser lido como resposta
à acirrada polêmica entre Alencar e Gonçalves de Magalhães, com a participação do
próprio imperador D. Pedro II, em torno do projeto de nacionalização da literatura e da
possibilidade da elaboração de uma obra épica nacional. É, portanto, importante refletir
por que a A Nebulosa foi bem recebida pela crítica e pelo leitor brasileiro, pois vinha na
contramão do debate que se colocava como central no momento político da nação. Isso
pressupõe uma concepção de literatura que abrange posturas distintas e mesmo
contraditórias, pois seguir os modelos europeus era considerado a um só tempo
servilismo e exemplaridade.
Sabemos que a própria questão da identidade nacional também foi importada e parte
de uma discussão maior, ou seja, o projeto de construção da identidade que ocupou
grande parte do pensamento no final do século XVIII na Europa. Identificar as origens
de uma nação como processo de diferenciação entre um povo e outro foi o primeiro
passo na procura dessa identidade. Mais que demarcar territórios, fronteiras, línguas,
paisagens, foi no campo, nos costumes do povo, nas suas tradições, na música, na
poesia, no seu modo de vida rústica, que se procurou diferenciar uma nação de outra.
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Ernest Renan dizia que o que faz a nação é “um legado rico de recordações” e que o
“culto do antepassados é, de entre todos, o mais legítimo; foram os antepassados que
nos fizeram como somos.”
Com a necessidade de redefinir as relações entre universal e particular houve uma
mudança cultural: a antiguidade clássica greco-romana foi substituída pelas culturas
designadas de bárbaras. O mundo mediterrãneo pela Europa do norte, os salões da elite
pelas cabanas rústicas. O nacional passou a ser visto como princípio criador da
modernidade. Assim, definir as marcas de diferenciação entre as nações seria um
trabalho de investigação das tradições do povo. Os autores, por sua vez, passaram a
apresentar em suas obras o que seria o resumo e emblema da nação, esse caráter
nacional, e assim o fizeram, inclusive no Brasil. Antônio Candido observou que os
românticos tinham que encontrar seu lugar, considerando uma realidade local mal
conhecida e a atração pelos modelos europeus. Desta forma, segundo Antonio Cândido,
ao lado do nacionalismo, há no Romantismo da Europa o norte brumoso, a Espanha,
sobretudo a Itália, vestíbulo do Oriente byroniano. Em Álvares de Azevedo e Castro
Alves perpassam, em contraposição às belas filhas do sul, as italianas, brancas e
hieráticas ou dementes de paixão, encarnando as necessidades de sonho e fuga,
libertação e triunfo dos sentidos, transplantadas, como flores raras, das páginas de
Byron para os jardins da imaginação tropical.
É fato que o Romantismo brasileiro, na sua fase ultra-romântica, vai beber na fonte
byroniana e reproduzir aqui o gosto pelo gótico, pelo satânico, pelo amor impossível,
pela mulher idealizada, pela morte, como bem fez Álvares de Azevedo. Porém, o norte
brumoso mirado por Macedo em A Nebulosa vai muito além da Itália, chega até as
terras altas e lendárias da Escócia. A tragicidade, o horror, o sentimentalismo
exacerbado dos indivíduos, o desespero exagerado das ações, a descrição e construção
do cenário e das personagens, que não são de lugar nenhum, a posição ativa da mulher
que tem o poder de decisão, tudo isso somado a uma narrativa heróica, faz com que
pensemos em uma outra tradição que nos remete a um outro tempo ou estilo de
narrativa.
Em A Nebulosa o traço dominante é o contraste entre o efeito produzido pela paixão
sobre o homem, no caso o Trovador, que é a personificação do amor desprezado com
seu egoísmo e orgulho ferido e esse mesmo sentimento agindo sobre o coração de uma
mulher, que se traduz numa resignação e devoção que chegam à loucura, como é o caso
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da Doida, apaixonada pelo Trovador. Este, por sua vez, devota seu amor pela Peregrina,
mulher que não se deixa dominar pelo sentimentalismo, inacessível e insensível ao
amor. É a dama sem misericórdia, retratada por Keats.
O tema do amor impossível em A Nebulosa já havia sido esboçado na poesia Não
Sei, também de Joaquim Manuel de Macedo, publicada na revista Guanabara em 1850.
Tanto em A Nebulosa quanto em Não Sei um homem tem uma louca paixão por uma
virgem bela, inacessível e impiedosa. Em troca, ambos não recebem nem mesmo a
esperança de amor futuro. A Peregrina, mulher fatal, responde com “Jamais” e a virgem
com “Não sei”. Depois de insistirem por longos anos, os dois homens decidem morrer.
A virgem do poema Não Sei sente remorsos e vai à procura do jovem apaixonado; a
Peregrina, de A Nebulosa, ouve uma voz do céu e corre atrás do Trovador para salvá-lo
da morte. Ambas chegam tarde demais.
Detalhe da obra La belle dame sans merci, de autoria do artista inglês Frank
Dicksee (1853-1928), baseada no poema homônimo de John Keats, publicado
em 1819, acompanhado de versos do poema.
A mulher fatal, mito de feminilidade prepotente e cruel, que leva os homens à
ruína e morte, existiu ao lado de mulheres angelicais no início do Romantismo, até
cerca da metade do século XIX. O Trovador, em A Nebulosa, chega a recorrer a uma
feiticeira para que ela produza um filtro do amor, permitindo-nos lembrar do filtro do
amor de Tristão e Isolda. Diferentemente de muitos casais apaixonados, como
Lancelote e Guenevere, Romeu e Julieta, Paolo e Virgínia, cujo amor encontra
obstáculos externos, a Peregrina e o Trovador sequer chegam a formar um par, pois a
Peregrina não ama o Trovador, o jamais proferido por ela é o jamais amar. Mas o
importante no Romantismo não é o motivo da negação do amor e sim a impossibilidade
de realização desse amor, ideia resumida num dos versos de A Nebulosa : “Amei nessa
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mulher um impossível”. O que interessava era a situação arquetípica do amor
impossível, e isso está bem representado nos dois poemas de Macedo.
Esse mesmo tema do amor impossível aparece na ópera O Trovador, de Giuseppe
Verdi, composta em 1852 e baseada no drama teatral EL Trovador, de Antônio Garcia
Gutierrez, estreado em Madri em 1836. Em El Trovador também temos, como em A
Nebulosa, as mesmas paixões exacerbadas, o amor impossível e a morte trágica no
final. Tanto no poema de Macedo quanto no drama espanhol o número de personagens é
igual, a diferença é que em A Nebulosa temos um triângulo amoroso composto por duas
mulheres e o trovador, além da mãe, já na peça o triângulo se faz com dois homens e
uma mulher. O triângulo não é perfeito em nenhuma das obras. No poema, a Doida ama
o Trovador que ama a Peregrina que não ama ninguém. No drama, o Conde ama
Leonora que ama o Trovador que a ama também. Há sempre empecilhos à realização do
amor. A Peregrina não pode amar, posto que fez um juramento no leito de morte da
mãe. Leonora também não pode se realizar, embora tenha amor no coração, pois está
impedida pela situação em que se colocou. Ambas são vítimas, cada uma a seu modo,
embora a Peregrina pareça tirana e impiedosa e Leonora assemelha-se a uma vítima
misericordiosa. Para o ser romântico, o obstáculo, o impedimento do amor, é motivo de
sofrimento, porém, não amar – e também não ser amado, é verdade- é pior do que
qualquer castigo. Embora o tema do amor impossível tenha se cristalizado como
característica fundamental do Romantismo, há um conjunto muito mais amplo de
elementos a serem observados.
A Nebulosa é composta por seis cantos e epílogo, em versos endecassílabos. O
Jornal do Commercio, de 23 de outubro de 1857, classificou o poema como
endecassílabo solto. Versos soltos, de acordo com o Tratado de Versificação de Olavo
Bilac 16, são aqueles sem rima, em voga entre os clássicos portugueses e brasileiros.
Outro crítico que classificou o poema como escrito em versos endecassílabos
soltos foi Innocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário Bibliográfico Portuguez.
Porém, não faz mais nenhum comentário sobre a metrificação nem cita exemplos.
Sílvio Romero, na sua História da Literatura Brasileira, de 1888, dizia que “A
Nebulosa são escritas [sic] em versos, nomeadamente endecassílabos não rimados,
16
BILAC, Olavo. GUIMARÃES, Passos. Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 9ª ed., 1949,
1ª edição 1905.
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pode-se dizer que a tal ou qual ênfase que se lhes nota na forma era realmente devida à
influência indicada de Magalhães e do autor das Brasilianas”. 17
Romero está se referindo a A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de
Magalhães, publicado em
1856, poema épico em dez cantos, com versos
endecassílabos soltos e a Porto-Alegre, que publicou Brasilianas, em 1843, com o
mesmo número de sílabas poéticas.
Todos os que buscaram classificar o poema, citados acima, concordam com o
endecassílabo solto ou branco ou não rimado. Entretanto, diante de versos como “Flor
que veneno nos perfumes verte”, tenderíamos hoje a dizer que se trata de decassílabos.
Para entendermos a classificação do poema de Macedo como endecassílabo é
necessário que recorramos à métrica espanhola em oposição à francesa. Até a metade do
século XIX existiam dois padrões de contagem de metros, o agudo ou francês e o grave
ou espanhol. No primeiro, conta-se até a última sílaba tônica, desprezando-se as átonas
seguintes. Tal padrão baseava-se no fato de a maior parte das palavras francesas serem
oxítonas (ou agudas, na terminologia da época). No segundo padrão, adiciona-se uma
sílaba além da última forte do vocábulo, contando sempre uma sílaba a mais se o final
do verso for agudo – ou seja, terminado em palavra oxítona - e despreza uma sílaba se
for esdrúxulo – ou seja, se a última palavra for proparoxítona. Por serem graves – ou
paroxítonas - a maioria das palavras espanholas, adotou-se este padrão métrico.
Grande parte dos vocábulos portugueses são paroxítonos e, neste caso, seria
natural a utilização do modelo espanhol. De fato, os versos eram contados segundo a
classificação espanhola até meados do século XIX, quando houve a chamada “Reforma
de Castilho” 18, em que ele propôs a mudança para o padrão agudo ou francês e, a partir
daí, foi sendo progressivamente adotado pelos metrificadores. 19
Quando contamos as sílabas dos versos do poema de Macedo atualmente,
contamos 10 sílabas, porque seguimos ainda hoje a proposta de Castilho, mas no século
17
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
Quando falamos em “Reforma de Castilho” estamos nos referindo à obra de Antônio F. de Castilho,Tratado de
Metrificação Portuguesa, 1851,1ª edição.
19
Em 1882 ainda havia discussões a respeito da contagem das sílabas no Brasil. Bernardo Guimarães, no prefácio
a Folhas de Outono, publicado em 1883, depois de dizer que “os brasileiros adotaram,abraçaram com um fervor, um
fanatismo tal” [ o alexandrino], cita o próprio Castilho como exemplo de perfeição nos versos endecassílabos
segundo o modelo espanhol. “ É dele mesmo, desse bardo imortal, que vou tirar o exemplo do quanto é superior o
nosso verso de onze sílabas ao de treze para todos os assuntos e principalmente para assuntos elevados. Quem não
tem lido e não sabe até de cor os Ciúmes do bardo? Esses magníficos hendecassílabos, apesar de não rimados,
gravam-se por si mesmos na memória do leitor.(...)” Ora, o Ciúmes do Bardo, de Castilho, foi publicado em 1836
seguindo o padrão de metrificação espanhola, com onze sílabas, dez na francesa. Quando ele diz “treze para todos os
assuntos” está se referindo ao alexandrino que, sabemos, tem doze sílabas. Isto significa que no final do século XIX
muitos autores ainda preferiam o modelo espanhol à inovação de Castilho proposta em 1851.
18
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XIX a maior parte dos críticos identificou 11 sílabas métricas em cada um dos versos
que compõem A Nebulosa.
A maioria das terminações dos versos do poema de Macedo é paroxítona, raras
vezes encontramos uma palavra proparoxítona ou oxítona. Basta observar como
exemplo a fala da personagem Doida, no Canto II, XX, de A Nebulosa:
“Sinistro riso, que é descer da terra!
Volta a cabeça e disfarçada enxuga
Lágrima insana, que um mistério envolve,
E enfim tremendo, mas depressa, fala.”
O poema foi então classificado na época, por vários críticos, como endecassílabo solto,
por seguir o modelo de metrificação espanhola e não francesa e por não ser rimado.
A Nebulosa é um poema narrativo. Na época de sua publicação foi classificado no
gênero poema-romance. Apareceu inicialmente na revista A Marmota, 28/08/1857;
depois, respectivamente, nos periódicos, antologias, dicionários e histórias literárias:
Correio Mercantil, 27/09/1857 e 18/10/1857; Revista Literária e Recreativa,
03/12/1857; INNOCÊNCIO DA SILVA, Francisco, Dicionário Bibliográfico
Portuguẽs, 1858; BARRETO, Fausto e LAET, Carlos de. Anthologia Nacional, 1895,
p13; BLAKE, Francisco Victorino Alves Scramento. Dicionário Biobibliográfico
Brasileiro, 1898, p 183; MAGALHÃES, Basílio de. Bernardo Guimarães, 1926;
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, s/d, p
98-101; STEGAGNO PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira, 1977, p
169.
Os poemas narrando os feitos das antigas tribos gaélicas foram produzidos em prosa
ou poderíamos dizer poemas em prosa. Difundido por toda a Europa, Ossian foi
encontrar em Goethe a sua popularização, quando traduziu em prosa trechos ossiânicos
e os incluiu em Werther, considerada a primeira obra romântica. Uma das características
mais originais da obra poética do Romantismo europeu manifesta-se num tipo de
composição lírica épico-romanesca, apelidada, conforme a nacionalidade, de balada,
lied, romance, cantares, ou, muito simplesmente, poema. Se podemos dizer que há uma
unidade de caráter romântico, o mesmo não se pode dizer em relação aos diversos
gêneros praticados. Como resumir e separar as obras poéticas, as obras em prosa ou as
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peças de teatro, quando Romantismo significa renovação poética? Todos os poetas têm
um propósito comum de fusão dos gêneros em proveito de uma expressão cada vez
mais perfeita. Os poetas não foram exclusivamente líricos, cultivaram também a
epopéia, a poesia filosófica ou política, a sátira. Byron, um dos mais líricos, fez surgir
de sua lírica uma outra inspiração, a satírica e política, como em D. Juan.
Se temos exemplos dessa fusão de gêneros o mesmo não se pode dizer sobre
uma teoria dos gêneros, pelo menos em Portugal e no Brasil. O que temos é uma
teorização importada: Schiller, os irmãos Schlegel, Victor Hugo, reconstituída a partir
dos prefácios, críticas ou artigos, tentando partir, quando possível, do legado do
Romantismo europeu. Nesses textos encontraremos referências aos três grandes gêneros
que a teorização romântica reencontrou: o lírico, o narrativo e o dramático. Porém, essa
sistematização não é tão simples assim, pois ainda existe a tentativa de classificação dos
gêneros, mesmo com a recusa dos gêneros herdados do classicismo. Como delimitar a
fronteira entre poesia e prosa, poema narrativo, drama e romance? Alexandre
Herculano, no prefácio a Eurico, o Presbítero, ficou na dúvida se seu livro se tratava de
“crônica-poema, lenda ou o que quer que seja”. 20Quando Garrett, na sua “Introdução”
ao Romanceiro dizia que “o que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes poéticas,
os romances em verso e as lengendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as
costumeiras e as superstições antigas”, 21 ele estava se referindo a formas (romances em
verso, lendas em prosa) e a conteúdos (crenças, superstições). Sendo assim, podemos
dizer que o Romantismo tentou adaptar formas antigas a conteúdos novos e velhas
histórias a novos gêneros.
O poema narrativo, também conhecido como poema byroniano, pois foi com
Byron que esse gênero se popularizou, é descendente de uma fórmula já experimentada
no século XVIII com o ossianismo. A tradição de se recuperar as velhas baladas
folclóricas escocesas do fim do século XVIII levou Walter Scott a produzir baladas de
inspiração pessoal ou poemas que provêm da imaginação do autor, como em A Balada
do Último Menestrel, e depois evoluir para o poema narrativo ornado de elementos
líricos e populares, como em A Dama do Lago, fórmula do romance em verso ou
poema-romance. No entanto, a obra-prima do gênero foi O Canto do Velho Marinheiro,
de Coleridge, publicado em 1798, com profundos vínculos intertextuais com o
ossianismo e as baladas alemãs.
20
21
Cf. Dicionário do Romantismo Literário Português, p. 212.
Cf. Dicionário do Romantismo Literário Português, p. 212.
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Entre os precursores do poema narrativo temos Oberon, do alemão Wieland,
publicado em 1817, poema com versos endecassílabos. É interessante observar que o
Romantismo, apesar de ter inovado e renovado as formas literárias quanto ao gênero,
manteve uma posição conservadora em se tratando da versificação, cujo modelo era o
endecassílado.
Em 1825, Almeida Garrett compõe o seu poema narrativo Camões, produzido
em dez cantos e mostrando forte diálogo com as obras de Byron e Walter Scott. Ainda
em língua portuguesa temos Ciúmes do Bardo e Noite do Castelo, de Antônio Feliciano
de Castilho, poemas endecassílabos, o primeiro com seis Cantos e o segundo com
quatro. É digno de nota o fato de que a Marquesa de Alorna traduziu para o português
poemas como Oberon, diretamente do alemão, e Darthula, de Ossian, nas suas Obras
Poéticas, de 1844. 22
Outro poema narrativo e de vastas dimensões, chamando a atenção pela cor
local, a alma nacional, amor e fatalidade, é O Mouro Enjeitado, poema endecassílabo
em doze cantos, publicado pelo Duque de Rivas, em 1834. Neste mesmo ano, Novalis
apresentou o seu Heinrich Von Ofterdingen, poema em prosa com uma certa meditação
filosófica, carregado de lirismo e amor. Há nesse poema uma metáfora a uma flor azul.
Nela, amor e morte se misturam e se confundem. Na Itália, Il Trovatore, de Berchet, é
uma mistura de balada e romance que procura contar, à maneira lírica, aventuras
sentimentais. A época romântica é, portanto, uma verdadeira encruzilhada de gêneros e
reflete todas as tendências líricas da época. A Nebulosa certamente faz parte dessa lista
de poemas narrativos exemplares e como disse Antônio Cândido, o poema é “talvez o
melhor poema-romance do Romantismo” 23 .
Outro ponto fundamental a ser destacado em A Nebulosa é o seu caráter
melancólico. Este aspecto sentimental também é atribuído a poetas como Ugo Foscolo,
Vittorio Alfieri e Leopardi, cujo Amor e Morte se percebe claramente no poema de
Macedo. A poesia sepulcral ou tumular era propícia aos sentimentos de melancolia,
solidão e silêncio próprios da natureza romântica, daí a escolha do cemitério como
cenário privilegiado. Já no século XVIII, apareceram poemas de caráter noturno ou
mesmo sepulcral. Porém, na primeira metade do século XIX, esse tipo de poesia
proliferou. A escola ultra-romântica caracteriza-se por uma reflexão doentia sobre a
vida, tendo como único sentido a morte e sobre esta como destino último destruidor de
22
23
ALORNA, Marquesa de. Obras Poéticas. Tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844.
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo Livraria Martins Editora, s/d, p 98.
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todas as esperanças de uma felicidade terrena. Cultivaram um pessimismo sem
remissão, um desencanto perante a vida, a pátria e o mundo, cujas conseqüências
pareciam ter como único resultado o desgosto, a frustração e a morte. Dos Sepulcros, de
Ugo Foscolo e Amor e Morte, de Leopardi, são exemplos de obras pré-românticas que
expressaram essa poesia tumular e que influenciaram diretamente toda a poesia
melancólica e sepulcral do ultra-romantismo. Em A Nebulosa, um dos cantos é
intitulado “Nos Túmulos”. Nele, o Trovador visita o túmulo de seu pai e expressa toda a
sua desesperança sobre a vida e o seu desejo pela morte:
Não posso mais com a vida! odeio o mundo,
Que nas garras me aperta, e despedaça;
Odeio a terra... não! meu pai, perdoa,
Eu amo a terra, que teus restos cobre!
Eu só detesto a vida; em prazo breve
Desse fardo pesado hei de livrar-me.
Pela última vez o sol no ocaso
Vi-o inda há pouco; despontar brilhante
Não o verei mais nunca; a noite é esta
Sem termo para mim; a eternidade
Das trevas abafou-me antes da morte.
A Nebulosa, Canto IV, E. X
Mais ao gosto romântico também encontramos em Dos Sepulcros uma
extraordinária tristeza, subordinando o elemento do cenário ao sentimento de piedade
contido nos versos
All’ombra de’cipressi e dentro l’urne
Confortate di pianto è forse il sonno
Della morte men duro? Ove piú il Sole
Per me alla terra non fecondi questa
Bella d’erbe famiglia e d’animali,
E quando vaghe di lusingheinnanzi
E la mesta armonia Che lo governa,
Né piú nel cor mi parlerà lo spirto
Delle virgine Muse e dell’amore,
Único spirto a mia vita raminga,
Qual fia ristoro a’di perduti um sasso
Che distingua lê mie dalle infinite
Ossa Che in terra e in mar semina morte? 24.
É o que percebemos também
Ossian, onde o horror da noite é gratuitamente
acrescido com o aproximar-se do cortejo fúnebre que, no anonimato, presta uma aura de
calafrio àquele cenário:
24
FOSCOLO, Ugo. Dei Sepolcri.
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Triste è la notte, tenebria s’aduna
Tingesi il cielo di color di morte:
Qui non si vede né Stella, né Luna,
Che metta il capo fuor delle sue porte.
..........
Su quell’alber cola, sopra quel tufo,
Che copre quella pietra sepolcrale,
Il lungo-urlante ed inamabil gufo
L’era funesta col canto ferale. 25
Enquanto em Ossian a natureza é estática, barreira que impede o poeta de
transcender, para Leopardi e Macedo existe uma simbiose e cumplicidade entre homem
e natureza:
“Oh natureza! minha dor insultas!
Na tua placidez leio um sarcasmo;
Abomino-te assim, amo-te horrível.
Que quer dizer um mar que não rebrame,
Uma terra que nada em luz de encantos
Um céu que tormentoso não ribomba
Quando no coração temos o inferno?...
Oh!... mil vezes o horror e a tempestade! 26
Assim como foram os episódios melodramáticos que encantaram o leitor préromântico do século XVIII e firmaram a popularidade de Ossian, foram as tendências
fundamentais da alma romântica, impregnadas em A Nebulosa, que garantiram o
sucesso do poema em meados do século XIX. A Nebulosa dialoga com uma tradição de
poesia que influenciou toda uma época. Assim como é de fundamental importância o
papel de alguns românticos, tais como, Leopardi, Foscolo, Lamartine, Chateaubriand,
Victor Hugo, Goethe, Hoffman,Walter Scott, Byron, Coleridge, Keats,
que
disseminaram o pensamento romântico, também é importante, para uma melhor
compreensão do ultra-romantismo brasileiro, conhecer o poeta Macedo e trazer à luz A
Nebulosa, dando a ela um lugar de destaque entre as melhores produções românticas
brasileiras.
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CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora,
3º volume, s/d., 1ª edição.
25
OSSIAN. LA Notte. Tradução de Melchior Cesarotti. Opere dell’abate Melchior Cesarotti.
V. IV, tomo III, p. 369.
26
MACEDO, Joaquim Manuel de. A Nebulosa. Canto I, A Rocha Negra, XVIII.
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