Acerca de um projecto sobre a variação prosódica nas Línguas

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Acerca de um projecto sobre a variação prosódica nas Línguas
Acerca de um projecto sobre a variação prosódica nas Línguas românicas: AMPER
Apresentação de um caso exemplar para o Português europeu
Lurdes de Castro Moutinho, Rosa Lídia Coimbra
Centro de Línguas e Culturas – Departamento de Línguas - Universidade de Aveiro (Portugal)
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1. Introdução
Na Língua Portuguesa, o estudo dos factos prosódicos é actualmente encarado pelos
linguístas1 como uma necessidade, dada a pertinência das funções linguísticas que o acento e a
entoação nela desempenham.
Sendo a prosódia uma área disciplinar, cujo estudo tem conhecido um novo fôlego no
seio da comunidade científica portuguesa, ao longo das últimas décadas, verifica-se que, tanto
os modelos teóricos, como os procedimentos adoptados diferem entre si.
Poucos são, porém, ainda os trabalhos de campo que se conheçam realizados no âmbito
da caracterização das estruturas prosódicas de diferentes espaços do mapa nacional, com vista
à análise comparativa de resultados e, evidentemente, à comprovação (confirmação/infirmação) da existência real de variedades prosódicas.
Essa exiguidade já não se deverá, provavelmente, nos dias de hoje, à perspectiva de que
o fenómeno prosódico – por oposição ao fenómeno fonemático – é maioritariamente um
fenómeno de substituição, cuja principal função se limita à desambiguação de enunciados que,
apresentando muito embora estruturas sintácticas idênticas, devam veicular significados
diferentes.
Dependerá, mais provavelmente, de constransgimentos que derivam da própria
complexidade do fenómeno prosódico em si. O seu estudo implica a análise da substância
fónica, segundo aquilo que se pretende caracterizar e comparar – a frase e os seus constituintes
principais (MOUTINHO, 1997) – palavras prosódicas, sintagmas – tomando em consideração
os parâmetros físicos que intervêm na sua produção e percepção.
1
Para a Prof. Maria Helena Mira Mateus, “[o] acento e a entoação são traços prosódicos que têm, na língua
portuguesa, funções linguísticas relevantes” (MATEUS et al., 1989).
É neste âmbito, o da variação prosódica, que se insere o nosso trabalho, enquadrado num
campo de investigação mais vasto, o da análise da variação prosódica nas línguas românicas,
cuja coordenação geral é da responsabilidade do Professores Michel Contini e de Antonio
Romano das universidades de Grenoble e Turim, respectivamente.
2. Enquadramento geral da pesquisa
O Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico (AMPER) contemplará, para além
das variedades do Português Europeu (PE) e do Português Brasileiro (PB), outras línguas
românicas, nomeadamente o italiano, o francês, o castelhano e o galego, pretendendo-se o seu
alargamento relativamente a esta família de línguas. No que diz respeito ao Português, a
coordenação é assegurada por uma das autoras deste artigo, Prof. Lurdes Moutinho, havendo,
por razões óbvias, sub-coordenações, para os Açores, a Madeira e o Brasil.
Encontram-se já elaborados estudos relativamente a uma variedade do Sul de Itália
(Salento), ao Franco-Provençal (Vallé d’Aoste), Aragonês (Bielsa), Castelhano (Madrid) e,
ainda, em elaboração, uma tese de doutoramento sobre uma variedade da Sardenha. Estão
projectados outros estudos que incluirão a Galiza, a Catalunha, a Occitânia, a Langue d’Oil, a
Toscana e a Sicília e, eventualmente, a Roménia e a Moldávia.
O estudo comparativo da entoação nos diferentes falares contemplados implica a
adopção de critérios de definição de corpora e de métodos de análise que sejam comparáveis,
o que significa, neste caso concreto, diversos procedimentos uniformes nas diversas pesquisas
a efectuar para as línguas românicas que integrarão o Atlas. Assim, em primeiro lugar, os
corpora recolhidos devem ter frases com estruturas sintácticas próximas, com palavras
pertencendo ao mesmo tipo acentual, não se excluindo, quando for caso disso, as
características próprias de cada língua, e com sequências segmentais próximas. Serão de
excluir os corpora lidos, pelo facto de se saber que, nestas circunstâncias, a entoação apresenta
características muito próprias.
Para além das listas de frases que os informantes serão levados a produzir, o inquérito
incluirá um teste que deverá permitir a produção de um discurso o mais próximo possível do
discurso espontâneo, através da utilização de Maptask.
Outra exigência a que todos os participantes devem obedecer relaciona-se com a técnica
de registo que deve ser semelhante e deve comportar, para cada frase, um mesmo número de
repetições, com vista ao tratamento estatístico dos dados, nos tipos declarativo e interrogativo.
O mesmo tipo de restrições de ordem fonética e de estrutura sintáctica deverão ser tidas em
conta por todos os participantes, para que os dados se tornem comparáveis.
Finalmente, a estratégia de análise instrumental a adoptar será a mesma, baseando-se na
análise das vogais das frases estudadas e prevendo o mesmo tipo de medidas: três valores da
frequência fundamental (Fo) para cada segmento vocálico (e por referência à frequência média
do falante); medição da intensidade (I) e da duração (D)).
3. Organização do corpus e metodologia de análise
O corpus é constituído, como se referiu anteriormente, por um conjunto de frases
previamente estabelecido de acordo com os seguintes critérios:
Restrições de tipo fonético;
Restrições de tipo sintáctico.
Em relação às primeiras, uma vez que é nas vogais que reside a maior parte da
informação relevante no que concerne à curva entoacional, e tendo em conta as características
da estrutura acentual do Português, escolhemos vocábulos representativos das diversas
estruturas acentuais (oxítona, paroxítona e proparoxítona) nas diversas posições frásicas. Os
segmentos vocálicos ocorrem no mesmo contexto fonético – sempre que possível entre
consoantes não vozeadas - de forma a reduzir alguns problemas postos por fenómenos de
coarticulação e garantir uma mais fácil e rigorosa segmentação do sinal acústico.
No que respeita às restrições de tipo sintáctico, foram escolhidas, para esta análise,
frases do tipo – O Toneca toca no pássaro - neutras, nos tipos declarativo e interrogativo
correspondentes, com sucessivas expansões, como por exemplo: O Toneca toca no pássaro
pateta e O Toneca toca no pássaro do México.
Poder-se-ia, muito pertinentemente, observar que a escolha das palavras que constituem
as frases em estudo não será a melhor do ponto de vista semântico-pragmático e que tais frases
têm poucas probabilidades de ocorrer em fala totalmente espontânea. No entanto, a sua
adequação aos objectivos propostos torna esta opção a mais produtiva para a pesquisa em
curso. De qualquer modo, frases com este tipo de estrutura e com lexemas semelhantes farão,
certamente, parte de um conjunto de enunciados possíveis produzidos pelos falantes de Língua
Portuguesa no seu quotidiano.
Como tal, não consideramos que os enunciados realizados em contexto reconstruído se
reduzam a simples abstracções experimentais. A naturalidade com que os falantes os
produziram espelha-se na coerência que encontrámos entre os diversos enunciados da mesma
frase a nível das curvas prosódicas identificadas. É de salientar que esta observação é tanto
mais pertinente se pensarmos que as várias repetições da mesma frase não foram gravadas
seguidas. De facto, as diversas estruturas foram colocadas em ordem aleatória, a fim de evitar
o efeito lista.
As gravações já realizadas em diversas regiões do continente (Minho, Trás-os-Montes,
Beira Litoral, Alentejo e Beira Interior) ocorreram in loco, sendo os informantes oriundos de
cada uma das regiões referidas. A cada informante foram pedidas várias repetições da série de
frases do corpus (em ordem aleatória), produzidas através de estímulos iconográficos, a fim de
se poderem estabelecer médias, calculadas com base nos resultados nos diversos parâmetros
acústicos. A selecção dos informantes, de ambos os sexos, com idade superior a 30 anos,
obedece a critérios de representatividade e espontaneidade, tendo também em linha de conta o
seu grau de escolarização (mínimo de escolarização, não podendo ultrapassar a escolaridade
mínima obrigatória).
As gravações são realizadas em DAT, realizando-se um pré-tratamento do sinal acústico
nos programas Cool-Edit e Gold-Wave. Os dados recolhidos são posteriormente analisados no
programa MatLab, com aplicações especificamente desenvolvidas para este projecto,
incidindo a análise sobre os segmentos vocálicos que ocorrem nas frases gravadas.
Esta nossa opção baseia-se no facto de os escassos estudos realizados para o PE, neste
domínio (ver referências), considerarem as vogais os elementos portadores de informação
pertinente a nível da entoação.
4. Apresentação de um caso exemplar para o Português Europeu
Vejamos, de seguida, a título de exemplo, como a curva prosódica varia, tendo em conta
alguns dos resultados já obtidos pela equipa portuguesa do projecto AMPER.
Na figura 1, podemos observar a curva de Fo e o histograma de duração média das
vogais da frase O pássaro toca no Toneca bisavô, produzida nos tipos declarativo e
interrogativo por uma informante da Beira Litoral.
Fig. 1 - Curva de Fo e histograma de duração das vogais da frase O
pássaro toca no Toneca bisavô nos tipos declarativo e interrogativo
produzidos por uma informante da Beira Litoral.
Como podemos constatar, foram produzidos, nos enunciados dos dois tipos frásicos
declarativo e interrogativo, três grupos tonais.
No primeiro, observamos, nas duas modalidades, uma curva melódica ascendente,
correspondente ao sintagma nominal com a função gramatical de sujeito frásico, o pássaro. É,
ainda de salientar que é neste sintagma que ocorre a única elisão vocálica de todo o enunciado,
a última vogal da palavra pássaro.
A este, segue-se um segundo grupo que inclui o verbo e que marca, na sua primeira
vogal, o início de uma mudança no movimento melódico que, ao contrário do que acontecia
no primeiro grupo tonal, passa aqui a apresentar um movimento descendente.
Finalmente, no complemento verbal, encontramos as maiores diferenças entre as duas
produções. Assim, e apesar de ambas apresentarem uma certa estabilidade na curva de Fo
dentro do sintagma preposicional até ao sintagma adjectival, podemos verificar que os níveis
de Fo são substancialmente mais elevados na declarativa para, no final do grupo, descer
abruptamente para valores muito abaixo da interrogativa. Esta modalidade apresenta o
movimento inverso, caracterizando-se por uma subida abrupta na última vogal, o que,
consequentemente, faz com que seja precisamente no final do enunciado que é fornecida a
maior parte da informação prosódica que permite distinguir as duas realizações.
O tipo de gráficos produzidos, em MatLab e Excel, além de possibilitar a caracterização,
como acabámos de fazer, das diferenças na realização de diversas modalidades frásicas num
mesmo falante, permite-nos, ainda, uma comparação entre realizações das mesmas frases em
falantes de diversas variedades regionais, como, a título exemplificativo, poderemos realizar a
partir das figuras 2 e 3.
Fig. 2 - Curva de Fo e histograma de duração das vogais da frase O
Toneca toca no pássaro nos tipos declarativo e interrogativo
produzidos por um informante da Beira Litoral.
Fig. 3 - Curva de Fo e histograma de duração das vogais da frase O
Toneca toca no pássaro nos tipos declarativo e interrogativo
produzidos por um informante do Alentejo.
Ao compararmos as figuras 2 e 3, não podemos deixar de reparar numa mesma
tendência, quer num informante quer no outro, para um movimento globalmente descendente
na curva melódica das declarativas.
Já a curva de Fo para a frase interrogativa, apresenta uma configuração nitidamente
diferente da da declarativa no informante da Beira Litoral, com movimentos associados a
diferentes posições a nível segmental, principalmente na parte final do enunciado, ao passo
que, no falante do Alentejo, esta curva apresenta uma menor variação. aproximando-se mais à
correspondente declarativa.
Assim, embora o esquema de variação, no que se refere ao acento final de frase
declarativa, seja muito semelhante em ambos os locutores (descendente e baixo), cada um
deles usa estratégias diferenciadas na oposição das duas modalidades, não só a nível da
variação de Fo (mais nítida no caso do falante da Beira Litoral), mas também da variação
temporal. Estas últimas são particularmente importantes no locutor do Alentejo, uma vez que,
como podemos observar na figura 3, apesar das curvas melódicas de Fo serem, neste caso,
muito aproximadas para a declarativa e interrogativa, o histograma de duração, revela
oscilações na duração relativa entre vogais das duas modalidades, permitindo uma maior
diferenciação nas suas realizações.
5. Conclusão
Acabamos de apresentar, a título exemplificativo, alguns resultados relativos à variação
prosódica do Português, sendo nosso objectivo principal a divulgação de um Projecto que
consideramos inovador.
Sendo um dos seus objectivos principais a construção de um instrumento multimédia,
representativo da variação prosódica do Português, proceder-se-á, com base nas frases
originais, à determinação das curvas melódicas que caracterizam as variedades analisadas,
procedendo-se, com base nos parâmetros prosódicos próprios a cada uma das frases, à sua
síntese. Deste modo, o referido Atlas, em vez de afixar de forma estática, por meio de uma
simples representação gráfica, as variantes prosódicas do Português e de outras línguas
românicas, possibilitará, de forma simples, uma pesquisa interactiva, permitindo,
simultaneamente, ouvir a curva melódica da frase e aceder a informações sucintas acerca das
suas características prosódicas.
Para mais informações sobre o desenvolvimento da pesquisa para o Português, poderá
ser consultado o seguinte endereço web: http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/default0.asp
6. Referências bibliográficas
CONTINI M., Lai J.-P., Romano A., Roullet S., de Castro Moutinho L.,
Coimbra R.L., Pereira Bendiha U. & Secca Ruivo S.- “Un projet d'atlas
multimédia prosodique de l'espace roman”,. Proceedings of the International
Conference Speech Prosody 2002, 2002, pp. 227-231.
MATEUS, Maria Helena Mira - Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa:
Edit. Caminho, 1989.
MOUTINHO, Lurdes de Castro, “Foneticamente falando” in Sentido que a
Vida Faz. Livro de homenagem ao Prof. Óscar Lopes. Porto: Campo das
Letras Editores, 1997, pp. 733-737.
MOUTINHO, Lurdes de Castro; Coimbra, Rosa Lídia; Ruivo, Suzana Secca;
Bendiha, Urbana Pereira - "Atlas Prosódico Multimédia: Curvas de uma
trajectória", Actas do XVI Encontro da Associação Portuguesa de
Linguística. Lisboa: APL, 2001, pp. 387-391.
MOUTINHO, Lurdes de Castro; Rosa Lídia Coimbra, Suzana Secca Ruivo;
Urbana Pereira Bendiha - “Project d’atlas prosodique multimedia des varietés
romanes. Contribution Portugaise”. Travaux de l’Institut de Phonétique de
Strasbourg (TIPS), nº31, 2001(2002), pp. 61-70.

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