Edição n.º 1 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa

Transcrição

Edição n.º 1 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa
O REAL NAS LINHAS DA FICÇÃO: criatividade e sensibilidade de um jornalismo feito literatura
ª
8
COLINA
ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL • DIRECTOR: PAULO MOURA • TRIMESTRAL• N.º 1 • OUTUBRO 2005
AUTÁRQUICAS DE LISBOA
A ambição de José Sá Fernandes
em poder intervir nas decisões da
capital. O compromisso de arrumar Lisboa, assumido por Maria
José Nogueira Pinto. Entrevistas
aos dois candidatos à Câmara de
Lisboa. Pág. 4
O RITMO
DA REVOLTA
MARKETING POLÍTICO
Quando um político se transforma
num champô. As estratégias que
apoiam os políticos nas eleições.
Os pormenores que ditam a diferença. A arte de bem vender pessoas e ideias. Pág. 2
HOMEM-ESTÁTUA
Partiu em busca da cura, voltou
estátua. Não precisou de mexer
um músculo para entrar no livro
de Recordes do Guinness. Tudo
isto sem pestanejar. Pág. 12
POETAS BIPOLARES
Vivem a vida num trilho de riso
e lágrimas. A poesia para eles é
mais do que uma forma de arte. É
um alívio, um prazer. São os poetas bipolares. Pág. 26
TEATRO EM SUA CASA
O actor entra sem bater à porta. Dentro das casas, das ruas,
das pessoas. Não lhe interessa
questionar os limites do teatro.
Deseja antes pertencer ao mundo
de alguém, fazendo do teatro um
momento da vida, que não a interrompe. Pág. 28
O MONGE ASSASSINADO
Alguém morreu no Convento dos
Capuchos, em Sintra: aqui jaz Frei
Bonifácio. Siga as pistas e descubra o assassino. Pág. 10
NAS RUAS DO BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO, EM ALMADA, A POBREZA E A
DISCRIMINAÇÃO SOCIAL AFOGAM E SUFOCAM. HISTÓRIAS DE QUEM ENCONTROU NO HIP-HOP A FORÇA PARA LUTAR.
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
POLÍTICA
2
• MARKETING POLÍTICO NAS AUTÁRQUICAS
Quando o produto fala
Os pormenores que
(não) se vêem
I
ndependentemente da estratégia
adoptada, os pormenores na propa-
ganda fazem toda a diferença. É através de detalhes, como a roupa ou um
sorriso, que se conquistam muitos vo-
LISBOA FOI INUNDADA POR CARTAZES DOS CANDIDATOS À CÂMARA. MAS POR TRÁS
JOÃO GODINHO
E MARTA MESQUITA
DAS IMAGENS, DAS CARAS EM GRANDE PLANO E DOS SLOGANS ESTÃO VERDADEIRAS
Candidato ou champô?
Q
tos. Viegas Soares, professor de Semiologia, defende que nada do que
aparece nos cartazes é escolhido ao
acaso. Todos eles passam uma ima-
uando alguém se pretende can-
ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO. NADA É FEITO AO ACASO, TUDO É VISTO AO PORMENOR.
didatar deve começar a pensar
numa estratégia para conseguir al-
cola Superior de Comunicação Social,
PROMOVER UMA PESSOA OU UM PRODUTO PARECE SER A MESMA COISA. O CONSUMIDOR,
cançar o seu principal objectivo: o voto dos eleitores. A publicidade, o ma-
gem que, segundo o professor da Esna propaganda dos vários partidos para Lisboa é muito igual e pouco imagi-
NESTE CASO, QUEM VOTA, NEM DÁ PELOS DETALHES QUE FAZEM TODA A DIFERENÇA.
rketing e o trabalho de assessoria
nativa. A postura de pai protector e que
arranja soluções é, na opinião do pro-
interligam-se para criar a imagem
fessor, a adoptada por Carmona Rodri-
certa para cada político.
gues e Manuel Maria Carrilho.
Em Portugal, o marketing políti-
Mas existem ainda diferenças entre
co ainda tem um passado recente.
ambos os candidatos. Carrilho apre-
Enquanto nos Estados Unidos, por
senta-se em muitos cartazes sem
exemplo, a imagem do candidato re-
gravata, com um visual casual, o que,
quer um trabalho constante dos téc-
para João Carlos Oliveira, vai ao en-
nicos de comunicação, em Portugal
contro da ideia que os eleitores têm
isso não acontece. Só mesmo pa-
de Carrilho: pessoa de mente aberta,
ra campanhas eleitorais é que essa
culta e humanista. Já Carmona con-
preocupação surge, primeiro, porque
juga um visual mais executivo, de bla-
ainda não se criou esse hábito e, se-
zer e gravata, com uma apresentação
gundo, porque sai caro.
mais prática, sem o casaco e arrega-
Mas quando se tem de promover
çando as mangas. Para Viegas Soa-
um político, as técnicas utilizadas
res este acto de Carmona mostra que
são iguais àquelas que se usam pa-
“está pronto a lançar-se ao trabalho”.
ra promover um outro produto qual-
A estratégia de Carmona Rodrigues, e
quer. Quem o diz é João Carlos Oli-
que se percebe desde o primeiro car-
veira, presidente da agência de co-
taz (o candidato no meio das pessoas),
municação Bates Red Cell e da
é a de um homem que trabalha com
Associação
as pessoas mas capaz de se respon-
Portuguesa
das
Em-
presas de Publicidade e Comunica-
sabilizar, dando “a cara por Lisboa.”
ção (APAP): “é exactamente a mes-
Já Carrilho, na opinião de João Car-
ma coisa promover um político ou
los Oliveira, tentou desde o início li-
um champô, mas com o risco de o
gar-se a Lisboa, mostrando através
champô falar”.
da cor rosa o seu amor pela cidade e
Para se lançar um candidato há que
também pela família. Para o publici-
perceber que produto se tem, o que o
tário, ao utilizar a família logo no íni-
A diferença necessária
lo resultado das urnas. Até lá, os técni-
ter para ganhar. Segundo o presiden-
Hoje em dia é a publicidade que distin-
cos de comunicação tentam reposicio-
tar do partido.
te da APAP, começa-se por “pegar no
gue os produtos entre si. Com os polí-
nar o seu candidato, consoante as re-
A propaganda política tem sempre
do-se um homem de família, capaz
candidato, perceber quais são os seus
ticos não é diferente, daí haver por to-
gras do mercado, “como um produto
uma intenção por trás, não é inocente.
de assumir compromissos”. No caso
do candidato do PS, os efeitos cola-
mercado quer e que imagem é preciso
o que reflecte a própria forma de es-
cio da campanha, Carrilho pretendeu
“resolver alguns boatos, mostran-
atributos, os benefícios que pode dar,
da a cidade cartazes cor-de-rosa, caras
a reagir às suas vendas”, afirma João
Com os cartazes e com os discursos,
os seus valores e traços de persona-
em destaque e slogans que convidam ao
Carlos Oliveira. Cada candidato faz uma
os candidatos pretendem estabelecer
terais, ou seja, o conhecimento pré-
lidade e constrói-se comunicação.” E
trabalho. Segundo João Carlos Oliveira,
aposta ao posicionar-se no mercado. Se
uma ligação afectiva com o eleitora-
vio que as pessoas têm do político, é
é com base nestas variáveis: tipologia
“o problema de hoje em dia é que os po-
uns decidem privilegiar os atributos, po-
do. Para João Carlos Oliveira esta li-
decisivo. “Ser casado com a Bárba-
do consumidor, meio envolvente e ca-
líticos não são inovadores. As coisas são
de-se fazer um túnel para a cidade; se o
gação é sempre conseguida emotiva-
ra Guimarães e ser casado com uma
pessoa que ninguém conhece faz di-
racterísticas do candidato que se joga
cada vez mais iguais. É cada vez mais dí-
que mais apela ao eleitor são os valores,
mente; vota-se naquele político por
o processo comunicativo.
ficil ser diferente”. Assim , a única forma
então a seriedade e a honestidade po-
razões muitas vezes inconscientes.
ferença. Apesar de ter sido criticado
Para João Carlos Oliveira, aquilo que
de distinção entre os candidatos é atra-
dem fazer a dife-
Porém, cada um ao
por muitos por ter utilizado a famí-
o candidato é nunca deve ser igno-
vés dos cartazes e da propaganda políti-
rença no voto.
rado. “Uma boa estratégia de comu-
ca que aparece nos media.
Nas
nicação pode matar mais depressa
Em cada cartaz há uma mensagem po-
autárquicas, co-
um mau candidato”, afirma. Assim, a
lítica para o eleitor. Mas esta nunca é
mo defende Vi-
eleições
imagem que cada político quer pas-
unívoca. Segundo Vidal Oliveira, pós-
dal Oliveira, as
sar nestas autárquicas não pode ser
graduado em Political Management,
ideologias
algo criado só para dar ao público
“há muitos traços de conhecimento en-
o candidato que quer. Como defen-
tre os eleitores, em que uns percebem
“Uma boa estratégia
de comunicação pode
matar mais depressa
um mau candidato.”
di-
eleger um candida-
lia para fazer propaganda, não quer
to tenta dar sem-
dizer que as pessoas inconscien-
pre um motivo ra-
temente não adiram à estratégia”,
cional para o voto:
afirma o presidente da APAP. Embo-
as propostas apre-
ra seja proibido pelo Código da Pu-
sentadas pelo can-
blicidade utilizar crianças em anún-
luem-se. “Cada vez mais os eleito-
didato ou a obra feita. Vidal Oliveira
cios que não sejam destinados a elas,
res votam em pessoas e não em par-
defende que o segredo da candidatu-
Carrilho colocou o filho na sua cam-
de João Carlos Oliveira “não se deve
muito bem a mensagem, outros não fa-
tidos”. Esta afirmação pode ser fa-
ra de um político reside em estabele-
panha. Como ressalva João Carlos
mentir às pessoas. Não se pode dizer
zem ideia do que o político quer dizer
cilmente reconhecida nos cartazes:
cer um compromisso com os eleitores.
Correia “o Código da Publicidade foi
que o Alberto João Jardim é um pri-
e outros se calhar até a percebem ao
quem aparece é o candidato, que se
“O que cada político procura é o com-
feito por políticos, por isso há uma
mor de boa educação. Temos de es-
contrário. É o grande problema da co-
mostra como um líder, digno do voto
mitment. Os eleitores depois de psico-
alínea que afirma: «este código não
tar conscientes dos atributos reais
municação política”.
de cada um. Excepção feita aos car-
logicamente aderirem a um candidato,
se aplica aos políticos».” •
dos candidatos”.
A melhor estratégia é sempre ditada pe-
tazes da CDU, onde aparece a equipa,
dificilmente votam noutro.” •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
POLÍTICA
3
• DANIEL DE OLIVEIRA
EDITORIAL
“A Propaganda exige reflexão”
por Paulo Moura
DANIEL DE OLIVEIRA FICOU CONHECIDO ATRAVÉS DA BLOGOSFERA. ADMITE QUE FAZ PROPAGANDA COM O QUE ES-
Algo mudou no
skyline?
CREVE, MAS NÃO GOSTA QUE COLOQUEM EM CAUSA A SUA INDEPENDÊNCIA EM RELAÇÃO AO SEU PARTIDO. DETESTA
D
TUDO O QUE É MAINSTREAM E NÃO ENCONTRA NADA MAIS DESINTERESSANTE DO QUE JOSÉ SÓCRATES
mas mais focado, mais assumido na sua
epois de uma edição experimental,
eis o primeiro número do Oitava
Colina. Decerto ainda com muitas falhas,
vocação. Mais à vontade a responder à
pergunta: o que se vê da 8ª Colina?
MARTA MESQUITA
O
NAZARET NASCIMENTO
O skyline da cidade que nos interessa
dirigente do Bloco de Esquerda,
mentários é acusado de ter uma tole-
é-nos cada vez mais nítido, mais fa-
é uma das figuras mais conheci-
rância relativa…
miliar embora também mais estra-
das na blogosfera política portugue-
Não faço intróitos enormes a ama-
nho. O que queremos mostrar é o per-
sa. Juntamente com um grupo de ami-
ciar o debate, que é uma coisa comum
fil de uma metrópole simultaneamen-
gos, Daniel Oliveira fundou o Barnabé, o
em Portugal. Dizer que se tem muito
te desmistificada e surpreendente.
blog de esquerda mais visitado. Saiu do
respeito ou muita estima, quer dizer…
Para um jornal escrito por estudantes
Barnabé por falta de tempo e por já não
não os insulto, mas não gosto desse
de jornalismo é vital provar que ain-
se identificar com o conceito inicial do
tipo de debate que se faz imenso em
da há mundos por descobrir. E partir
blog. A sua saída levou ao encerramen-
Portugal. Insulto-os, mas com conteú-
à sua descoberta. Não há outra coi-
to do Barnabé, depois de algumas dis-
do. Para mim, de Esquerda é quem se
sa a fazer. Por isso temos dezenas de
cussões ideológicas com outro membro
define a partir da tradição da esquerda
repórteres à solta pela cidade. Que
do blog, Bruno Cardoso Reis. Conhecido
nascida da Revolução Francesa.
trouxeram eles desta vez?
pelo seu combate político cerrado e pe-
Quando saiu do Barnabé, o blog aca-
O caso do Pica-Pau Amarelo, um bairro
de Almada que transformou pobreza e
las críticas agressivas, o cronista do Ex-
bou. Era a sua escrita que caracteri-
presso admite voltar de novo à blogosfe-
zava o Barnabé?
ra com o seu cunho provocador.
Os blogs têm personalidade própria. Eu
ganda exige reflexão. A propaganda sem
ataco pessoas que me são leais. Mas,
Porque é que o Barnabé acabou?
achava que o blog estava descaracteri-
reflexão é má, ineficaz, pelo menos em
se for preciso atacar politicamente os
de expressiva”, que viajou para Espanha
Eu saí, não fechei o Barnabé. O Bar-
zado. De repente, senti que o Barnabé
meios minimamente politizados.
meus melhores amigos, ataco. Não
em busca da cura para uma doença e se
transformou no primeiro homem-está-
discriminação em ritmos hip-hop. A história do homem que inventou a “quietu-
nabé não era propriedade minha. Eu e
se estava a tornar no blog de esquerda
A propaganda tenta sempre passar
ataco o carácter deles. Sou contra o
os fundadores do blog passámos a ter
do José Sócrates. E não encontro nada
uma mensagem…
amiguismo.
tua. Uma empresa que vende emoções
cada vez menos disponibilidade. Até
mais desinteressante do que defender o
Discutir é uma actividade pública que
Hoje pode-se ser político através de
fortes na Serra de Sintra, com um jan-
porque eu não me identificava com
José Sócrates e não encontro nada mais
nos ajuda. Quem não muda de opinião
trabalho exclusivamente nos media?
tar misterioso e um monge assassina-
o blog, não tinha tempo para escre-
desinteressante do que o próprio José
é porque não é
ver ou contribuir para que me identifi-
Sócrates. Defender o José Sócrates é o
confrontado. Sou
casse com ele. Portanto, não era justo
suicídio de qualquer blog que queira ter
ultraliberal.
estar a queixar-me, quando não tinha
interesse. E depois, os moldes em que o
que é que eu te-
disponibilidade para mudar as coisas…
debate se fazia eram desinteressantes,
nho de opinar so-
o blog é para dar prazer e eu já não re-
eram mainstream e se há coisa que eu
bre a maneira co-
tirava dali nenhum prazer.
não suporto é o mainstream.
mo as pessoas vi-
Mas as criticas do Bruno Cardoso
O Barnabé não era um projecto político.
Reis, que escrevia também no Barna-
Não encontro nada mais desinteressan-
bé, contribuíram para a sua saída?
te do que um debate entre a esquerda ra-
O Bruno Cardoso Reis não é a questão
dical e a esquerda mainstream.
mais
relevante
aqui. Não me incomoda o que os
outros escrevem.
O que fez a dife-
“ Não encontro nada
mais desinteressante
do que o José Sócrates”
Por
“O que a política faz é
criar condições para
que as pessoas tenham
a vida que queiram.”
Não.
do. Um actor que vai fazer teatro a casa
O Daniel faz par-
dos espectadores, depois os convida pa-
te da direcção
ra a sua casa, torna-se parte da sua vi-
do Bloco, mas é
da, deixa-lhes bilhetes a dizer “eu amo-
mais
te”. Doentes bipolares, que sofrem de
conhecido
pelo que escreve
hipertrofia dos sentimentos e se trans-
nos jornais e nos
formam em poetas. E ainda histórias de
vem a sua vida? Nesse aspecto, não sou
blogs; faz propaganda política das suas
claques de futebol, fado, blogues, praxe
nem de esquerda nem de direita. A po-
ideias e é mais conhecido por isso…
académica, projecto Erasmus, a Revol-
lítica não traz felicidade; o que a política
O reconhecimento por parte das pes-
ta dos Pasteis de Nata... E um manual
de instruções para vender um candida-
faz é tentar criar condições para que as
soas de um determinado político não
Acho que a Es-
pessoas tenham a vida que queiram.
lhe confere importância.
to-champô. E entrevistas com os candi-
querda mainstre-
Apesar de todos poderem ter um blog,
Mas a última intenção dos políticos
datos autárquicos José Sá Fernandes e
am está tão à de-
não são sempre os mesmos blogs que
é o voto…
Maria José Nogueira Pinto (No núme-
fensiva que não
são lidos? Não será a blogosfera mais
Não.
ro anterior publicámos as de Carmona
tem nada que ver
uma maneira de os que já têm lugar no
Não é?
Rodrigues e Ruben de Carvalho. Ma-
debate público serem ainda mais lidos?
Não. Não é a única nem a última. O voto
nuel Maria Carrilho achou que não deve-
posts do Barnabé o discurso do Bagão
Uma das razões para que a esquerda ra-
Até num jantar é assim. É a vida. Se ago-
é um meio. Posso dizer que tudo o que
ria perder o seu precioso tempo com o
Félix. Mas o blog tinha uma personalida-
dical estivesse na blogosfera foi para ter
ra for a um jantar e estiver lá o Pacheco
faço na blogosfera não tem como ob-
8ª Colina. Obviamente subestimou-nos).
de própria que aguentava bem estas dife-
um debate com a nova direita, que, para
Pereira e mais vinte pessoas, você vai ou-
jectivo o voto. Durante a campanha elei-
Mas para os estudantes de jornalismo
renças. De repente comecei a ver que os
mim, é bem mais interessante. É um de-
vir com mais atenção o Pacheco Pereira.
toral eu não escrevi. E podia ter escri-
é também vital mostrar que há novas
formas de comunicar o que se desco-
rença foi ver nos
com
sectarismo.
posts mais frequentes eram contra a es-
bate que interessa entre duas alternativas.
As ideias do Daniel não são ignoradas
to. Para mim, o que eu faço nos media
querda à esquerda do PS, eram a defen-
Disse no último post que o Barnabé foi
nem pela esquerda nem pela direita.
tem uma função política que não é o vo-
briu. A secção Dossier analisa as cor-
der o culto mariano e a Irmã Lúcia, e co-
criado com objectivos definidos e por
É por ser combativo e agressivo na
to, nem o Bloco. Ou seja, não estou nos
rentes do jornalismo literário ou narra-
mecei a sentir que aquilo já correspondia
palavras suas: “Era propaganda, sim.
defesa das suas posições?
media pelo Bloco ou para o Bloco. A ra-
tivo, entrevista alguns dos seus intér-
pouco ao sítio onde eu queria estar. Se o
Não tenho nada contra ela. Era contra-
Sim, penso que sim.
zão pela qual eu estou no partido é por-
pretes em Portugal e no estrangeiro.
Barnabé passasse a ter provocações po-
propaganda.” Isto define a sua posição
E ainda há pouco desse debate com-
que sou mais eficaz se juntar a minha in-
Na Oitava Colina, queremos mostrar que
liticamente incorrectas de pessoas de di-
em relação à propaganda?
bativo em Portugal?
tervenção política, tentando fazer as coi-
é possível fazer jornalismo com uma es-
reita, eu acho que, se calhar, ficava. Agora,
A propaganda visa transmitir ideias. Eu
Sim, há pouquíssimo. Toda a gente
sas em grupo, do que estando sozinho.
crita penetrante, rigorosa, criativa. Não
a repetição dos lugares comuns: de que
mostro claramente as minhas posições.
tem alguma coisa a perder. Eu tam-
Pensa voltar à blogosfera?
podemos nem queremos substituir-nos
a segurança social é insustentável e que
Sou do Bloco e as pessoas percebem
bém tenho, mas sou mais irresponsá-
Sim.
à imprensa diária e semanal, aos novos
não há outro remédio e que se tem de fa-
isso. Mas não escrevia no blog o que o
vel. Há muito poucas coisas que me ir-
Brevemente?
jornais gratuitos ou às revistas caras.
zer o choradinho… é tudo o que eu não su-
Bloco pensa. Escrevia o que eu penso.
ritam; uma das coisas que me irritam
Sim.
Mas queremos, e podemos, ter algo de
porto politicamente, mesmo na esquerda.
Mas porque é que se dá uma conota-
mais é pôr em causa a minha indepen-
Já tem alguma coisa pensada?
novo, na forma e no conteúdo.
O seu desentendimento com o Bruno
ção negativa à propaganda?
dência. Claro que não sou completa-
Tenho várias possibilidades.
O nosso skyline é único. Tem mais uma
Cardoso Reis não pode mostrar into-
A propaganda é uma forma eficaz de co-
mente independente, porque sou di-
E será com um grupo de pessoas?
colina. Que se pode esperar de uma no-
lerância política no que diz respeito à
municarmos a um público mais ou me-
rigente político. Há um limite que eu
É isso que estou a ponderar. Mas, em
va geração de jornalistas senão que nos
definição de esquerda? Em alguns co-
nos informado a nossa posição. A propa-
não passo, que é o da lealdade. Eu não
princípio, espero voltar em Outubro. •
mostrem o jornalismo do futuro? •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
4
POLÍTICA
• JOSÉ SÁ FERNANDES
“Quero outro tipo de
intervenção na cidade”
NAZARET NASCIMENTO
a certeza de que quando se taxar a en-
liária. Como pretende geri-lo com os
trada na cidade o problema dos trans-
lobbies que já existem em termos da
portes vai estar resolvido.
construção e das imobiliárias, e ade-
Mas, concretamente, como é que vai
quá-lo à implantação do Plano Verde,
resolver o problema dos transpor-
de Ribeiro Telles?
tes públicos?
Não é preciso fazer grandes altera-
Se houver menos carros em Lisboa,
ções ao PDM para implantar o Pla-
teremos necessariamente melhores
no Verde. Há uma estrutura ecoló-
transportes públicos, porque eles an-
gica definida no PDM. Para se gerir
dam muito mais rápido.
bem a cidade, é preciso perceber
Mas a integração entre os transpor-
que ela é gente mas também é um
tes também não funciona como devia.
espaço físico. Para se delinear uma
Tem que funcionar bem. Se eu ti-
cidade é preciso contar com os edi-
ver menos carros a andar na cidade,
fícios, é importante não haver bair-
eu facilito os transportes públicos. A
ros periféricos, haver centralida-
maneira de os financiar é através do
des em vários sítios. Portanto, se
dinheiro que se ganha com estaciona-
houver planeamento e se for dito
mento pago e portagens. Em Londres
aos construtores que existem re-
demora-se dez minutos para ir das
gras a ser respeitadas… Eu não me
zonas limítrofes ao centro. Há auto-
importo que se construa, não sou
carros de cinco em cinco minutos. E
contra os construtores. É neces-
há comboio metropolitano...Isso por-
sário é que as regras estejam bem
que a circulação se torna mais fácil
definidas, para não andarem aqui a
colectivo. Se se continuar a defender
dentro da cidade.
fingir que uns as conhecem e ou-
os interesses individuais, daqui a uns
Mas os transportes precisam de estar in-
tros não. Com as regras bem defini-
QUÊS QUER COMBATER O TRÂNSITO, REABILITAR A VIDA NA
tempos é impossível trazer os carros
tegrados entre si. Há problemas estrutu-
das eliminam-se os lobbies e a pro-
para a cidade, porque não andam, não
rais graves que o impedem. É o caso do
miscuidade entre Câmaras e cons-
CIDADE E DEFENDER OS INTERESSES DOS LISBOETAS. SÁ
cabem cá dentro…
Metro. É neces-
Como se controlaria o estacionamento?
sário
FERNANDES ASSUME-SE SOBRETUDO COMO CIDADÃO INTE-
Com uma boa fiscalização. 70%
várias linhas pa-
das pessoas que vêm da ponte 25
ra nos deslocar-
O ADVOGADO CONHECIDO POR EMBARGAR O TÚNEL DO MAR-
RESSADO, E, POR ISSO, PARTE PARA A LUTA POLÍTICA.
ISABEL ALVES
E LAÍS CASTRO
U
percorrer
de Abril não pagam estacionamen-
mos entre zonas
to. Se pagassem não haveria tan-
geograficamente
tos carros. Mas não há aqui tam-
próximas.
bém alguma injustiça relativamente
Porque não es-
trutores.
“Para se gerir bem a
cidade, é preciso perceber que ela é gente
mas também é um espaço físico”.
pensadas.
Como é que se
tornam as regras mais claras?
Com planos bem
feitos, que não
admitam segun-
a quem vive fora de Lisboa? É claro
tão
que há. Então qual é a alternativa?
Por exemplo, a linha até à estação
ções. No fundo, é marcar no território
das
interpreta-
ma hora e quarenta minutos de
aqui que está o problema. As pesso-
Transportes públicos. Essas pesso-
do Oriente é uma linha caríssima. Um
os sítios onde se pode ou não cons-
espera no escritório da Rua do
as têm transportes públicos em Lis-
as devem poder utilizar os transpor-
eléctrico rápido resolvia o problema
truir. Por exemplo, dizer que num de-
Crucifixo. A assistente passa e em-
boa? O dinheiro do estacionamento
tes públicos para se deslocarem aos
com muito menos custos e muito mais
terminado sítio não pode haver edifí-
baraçada tenta retractar-se por um
tem de ser canalizado para melho-
centros urbanos.
eficácia e ia integrar na cidade toda a
cios mais altos do que outros, ou que
atraso que não é seu: “peço imen-
rar os transportes públicos. Lisboa
O que é preciso para melhorar os
zona do vale de Chelas e arredores. O
não pode haver edifícios. As nossas
sa desculpa, mas o Dr. Sá Fernan-
não comporta mais carros. Isso é
transportes públicos?
que é que se fez ali? Estradas atrás de
torres têm deser as sete colinas.
des está preso no trânsito”. Ironia pa-
uma
evidência.
Dinheiro. O di-
estradas e viadutos, criando guetos
Não haver edifícios, por exemplo, na
ra quem aposta nos transportes pú-
Tem
de
zona ribeirinha do Tejo?
blicos ou mais uma motivação? Na
uma medida ob-
conversa de uma hora, num escritó-
jectiva sobre es-
haver
rio submerso em pilhas de processos,
ta matéria. Co-
o candidato a presidente da Câmara
mo é que isso
“Quem tem de decidir a
localização das estações
de Metro é a Câmara de
Lisboa. Não os interesses imobiliários”.
nheiro vem de
que agora dificilmente se integram.
uma boa fiscali-
Mas isso tem de ser feito.
Não haver edifícios na zona ribeirinha
zação do estacio-
É por isso que fala em reclamar a mu-
do Tejo é bom, junta as pessoas ao rio.
namento e, pro-
nicipalização da Carris e do Metro?
O que não é bom é alterarmos a pers-
vavelmente,
de
É nesse sentido. Quem tem de deci-
pectiva da cidade com edifícios altos,
um sistema de
dir a localização das estações de Me-
porque isso altera a sua geografia. To-
portagens. Isso
tro é a Câmara de Lisboa. Não os in-
das as cidades têm as suas caracterís-
era um assunto
de Lisboa apresentou as suas ideias e
se faz? Há dois
deixou claro que o trânsito é um dos
caminhos. Um é
seus cavalos de batalha.
controlar muito
teresses imobiliários. Veja-se o Me-
ticas. Se isso não for respeitado, Lis-
Assume que condicionar o trânsito na
bem o estacionamento. Outro é ofe-
para começar a estudar já.
tro até à Falagueira. Agora vai para
boa perde a sua alma.
cidade é uma prioridade. Que medi-
recer transportes públicos.
Mas taxar a entrada na cidade antes
lá, porque está previsto um empre-
Na sua opinião, das obras feitas por
das pretende tomar?
Já pensou que pode ser do interesse
de resolver o problema dos transpor-
endimento imobiliário naquela zo-
esta governação autárquica, quais
Para já, regular o estacionamen-
dos cidadãos utilizar o carro e não os
tes públicos será justo? Não será obri-
na. Como aconteceu com a Expo. Fez-
têm descaracterizado a cidade?
to. 70% das pessoas que vivem fo-
transportes?
gar as pessoas a passar demasiado
se a linha do Oriente, simplesmente
O que existe é uma inércia desta Câ-
ra de Lisboa e estacionam na cida-
Mas quais cidadãos?
tempo nos transportes quando de car-
por causa da Expo. Não foi para ser-
mara para qualquer questão que te-
de não pagam estacionamento. Se
Os de Lisboa e os que vêm de fora...
ro fazem o percurso mais depressa?
vir a cidade.
nha que ver com a cidade. Mas o pe-
isso fosse bem controlado as pesso-
Lisboa não comporta mais carros. É
O que eu estou a dizer é que esta deve
Defende um Plano Director Munici-
rigo não está na obra que eles es-
as pensavam na opção transportes. É
impossível! Existe aqui um interesse
ser uma medida simultânea. Pode ter
pal (PDM) livre da especulação imobi-
tão a fazer. Está nos planos que eles
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
POLÍTICA
“Sou uma pessoa desligada de interesses”
5
sar, procurar, participar. Acho que
dade. Neste últimos quatro anos
é muito positivo. O negativo é faze-
têm-se aprovado planos que são
rem-se obras mal feitas, mal conce-
terríveis para Lisboa. Pode ser o
bidas, sem preocupação com os ci-
fim da sua identidade e portanto eu
dadãos, sem se fazerem estudos. A
acho que tem de haver uma inter-
minha acção é positiva.
venção com regras e com a partici-
so pode ser uma mais-valia?
Um dos apoios que tem é o do Bloco
pação das pessoas. As pessoas es-
Que percepção tem da imagem que os
Bloco. Acho que isso já se conseguiu
media estão a dar da sua candidatura?
demonstrar. Também as linhas pro-
Penso que é importante as pesso-
de Esquerda (BE). Isso não pode pre-
tão cansadas da forma como a cida-
Já ninguém duvida de que seja mes-
gramáticas não têm qualquer incoe-
as perceberem que se trata de uma
judicar o carácter de independência
de tem sido gerida pela autarquia,
estão cansadas de grandes mega-
mo uma candidatura independente.
rência com a minha actividade cívi-
pessoa desligada de interesses.
da sua candidatura?
Isso tem ficado claro?
ca passada nem com as ideias do BE
As pessoas têm essa noção?
Não. A minha candidatura é indepen-
lomanias. Ou é o elevador da Bai-
Pode, por vezes, não ser tão claro,
para a política municipal.
Espero que sim, porque corresponde
dente e tem um programa. Portanto,
xa ao Castelo, ou é o Parque Mayer…
mas parece-me natural. Afinal sou
A sua candidatura pode ser conside-
à verdade. Acho que as pessoas es-
o que importa aqui é o programa. Se o
Ao invés de tratarem de coisas sim-
cabeça de lista do BE. Não rejeito is-
rada pioneira nos moldes em que se
tão cansadas das promessas e da-
BE aceita esse programa, óptimo.
ples: dar um centro de saúde em
so. É uma candidatura independente,
deu. Será a primeira vez que temos
queles que dizem que fazem e não
Mas fica necessariamente colado a
Marvila às pessoas, ou lares de con-
mas cuja comissão política tem mais
um cidadão que primeiro intervém e
fazem nada. Eu acho que já dei pro-
um partido.
valescença para os idosos, fazer os
independentes do que apoiantes do
só depois se candidata. Acha que is-
vas de que faço. •
Ficamos ligados a um programa.
parques para as pessoas poderem
Mas quem repare na sua intervenção
passear à vontade.
cívica e veja a sua candidatura como
Pode considerar-se que Gonçalo Ri-
querem aprovar ou que têm tentado
mecanismos para o fazer. Um de-
Vou suspender isso tudo.
independente, ao vê-lo agora ligado a
beiro Telles é o pai da sua candidatura
aprovar. Por exemplo, o caso de Al-
les é obrigar aqueles que têm os fo-
Como é que volta atrás em compro-
um partido, poderá mudar a percep-
e do seu pensamento cívico e político?
cântara, onde está a ser idealizada
gos devolutos a pagarem mais con-
missos já assumidos?
ção que tem de si.
Gonçalo Ribeiro Telles é o homem do
uma edificação gigantesca. Veja-se
tribuição do que aqueles que têm os
Para já não sei que compromissos
Os partidos fazem parte da vida da ci-
Plano Verde e é quem, seguramente,
o caso da Feira Popular e do Parque
fogos ocupados. Porque não há o di-
foram assumidos, mas era o que
dade. Não nos podemos esquecer dis-
mais tem lutado por Lisboa. Se se ti-
Mayer. Nada disto está ainda a ser
reito de haver pessoas com 50 e 100
faltava não se poder voltar atrás
so e não podemos dizer que não que-
vessem feito metade das coisas que
executado. Mas o frenesim destes
fogos devolutos apenas a pensar na
em decisões que são terríveis para
remos os partidos. E neste caso a
ele tem dito ao longo destes 60 anos,
quatro anos tem sido atirarem-nos
especulação imobiliária.
Lisboa. Isso é uma ideia errada que
atitude do BE foi uma atitude muito
Lisboa estava diferentíssima. Não se
constantemente com ideias disper-
A Câmara tem verbas para o fazer?
as pessoas têm. Se o acordo que foi
democrática: ter aceite um programa
tinha feito os disparates que já se fi-
sas para a cidade, ideias que incomo-
Através de um mecanismo financeiro
feito é mau para a cidade, tem de
de um candidato independente...
zeram, como construções ao pé das
dam as pessoas e contrárias às que
com a banca. Não é deitar dinheiro fo-
ser anulado.
Foi o Bloco que aceitou o seu progra-
linhas de água. Tínhamos zonas ver-
defendo. Devem ser colocadas aos ci-
ra. É adquirir um imóvel. Vale dinheiro.
Acha que está associado a um rótulo
dadãos alternativas que lhes permi-
E põe-se no mercado.
de contestatário?
tam escolher. Impor às pessoas de-
Mas com a actual situação da Câma-
Eu acho que é um contestatário no
terminado plano não é justo. A Ad-
ra será possível levar tudo isso para a
bom sentido, mas cada pessoa pen-
ministração para decidir tem de ter
frente? A Câmara está bastante endi-
sa o que quiser. Sou contestatário
poder de escolha. A cidadania é fei-
vidada e com as restrições de crédito
das coisas mal feitas na cidade. Con-
ta de escolhas.
aos municípios...
testo quando as coisas não se fazem.
No seu programa fala do problema
Mas não se trata de crédito, trata-se
Tenho vontade de fazer imensas coi-
dos guetos e da necessidade de parar
de operações financeiras que a Câ-
sas em Lisboa.
a construção dos bairros sociais. Que
mara tem de fazer. Agora tem é de in-
O rótulo de contestatário não é nega-
Não há cedências, há um programa
dade, uma melhor ligação aos outros
solução defende?
tervir, isso é que é a boa gestão mu-
tivo para um candidato independente
com as suas linhas programáticas que
concelhos...
“A única maneira de gerir bem a cidade é as pessoas poderem participar nela, ao nível da rua. Não
tenho nenhuma máquina nem interesse por trás, e
a diferença é essa: eu sou totalmente livre”.
ma ou teve de fazer cedências?
des, hortas, mercados dentro da ci-
Tem de haver sempre integração.
nicipal. Vamos continuar a deixar que
que tem de reunir o maior número de
são o que são.
Disse há pouco que é importante a
Esses bairros têm de vir para den-
se construa indefinidamente enquan-
apoios possível?
A ideia da candidatura foi sua ou do
participação das pessoas na gestão
tro da cidade. Existem 70.000 fogos
to existem prédios devolutos no cen-
As pessoas procuram nessa minha
grupo de pessoas que o apoia?
da cidade. O que é que pode ser feito
devolutos em Lisboa, espalhados por
tro da cidade?
maneira de ser uma forma de des-
Do grupo de pessoas que me apoia.
para motivar a participação?
várias zonas. E isso significa que po-
O que vai fazer com projectos já apro-
valorizar a minha candidatura, mas
Era algo em que eu nem sequer
Chamá-las. Dar-lhes informação. Se
demos integrar mais de duzentas
vados que acha que não servem a ci-
eu acho que é uma forma muito po-
pensava. O que eu senti é que é pre-
eu puser um placard na rua ou um
e cinquenta mil pessoas dentro da
dade? Se ganhar…
sitiva de exercer a cidadania. Avi-
ciso outro tipo de intervenção na ci-
capital. Esta tem de ser uma aposta, parece-me evidente. Têm de se
NAZARET NASCIMENTO
folheto na caixa de correio a dizer:
“A Junta de Freguesia está a pensar
mudar os ecopontos da rua e temos
aproveitar estes fogos devolutos pa-
três alternativas. Os senhores estão
ra chamar os lisboetas, e não só, pa-
interessados em escolher alguma
ra o centro da cidade.
das opções?” Há pessoas que parti-
Como se iria atrair jovens para a cidade?
cipam, há outras não, mas ao menos
Esse é um dos objectivos da EPUL, que
há uma proximidade na gestão. Is-
dá preferência de venda aos jovens.
so é exponencial. O problema é que
Jovens? Foram assim tantos? A EPUL
as pessoas não acreditam que po-
está a servir de intermediário imobiliá-
dem participar. Há sempre tendên-
rio. Veja-se o negócio que fez com a ur-
cia para pensarem: “bem, disso tra-
banização do Benfica. Gastou 6 milhões
tam eles”. Não pode ser assim. Isto
de contos para comprar uns terrenos
também é uma maneira de respon-
que eram da Câmara. E foi algum jo-
sabilizar a cidadania.
vem viver para lá? Está lá algum estu-
Porque é que acha que a sua candida-
dante que queira ir para a Universidade
tura faz a diferença, dentro do quadro
e tenha vindo viver para Lisboa?
dos outros candidatos à CML?
Mas então como se chamariam jovens
Para começar, porque é uma sequên-
para vir viver para a cidade?
cia normal. Há dez anos que luto pe-
Existem
devolutos.
las coisas. É a sequência lógica de dez
Existem várias possibilidades finan-
70.000
fogos
anos de actividade cívica, e a diferença
ceiras, nomeadamente através da
é exactamente essa. Eu acredito mes-
banca. A Câmara deve exigir que es-
mo na participação das pessoas e na
ses fogos sejam postos no mercado.
gestão da cidade. A única maneira de
Portanto, ou os senhorios os põem
gerir bem a cidade é as pessoas po-
ou põe a Câmara.
derem participar nela, ao nível da rua.
E é a Câmara que paga?
Não tenho nenhuma máquina nem in-
Com certeza. Então isto não é do in-
teresse por trás, e a diferença é essa:
teresse da cidade? Existem vários
eu sou totalmente livre. •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
6
POLÍTICA
VERA MOUTINHO
VINTE ANOS DEPOIS, UMA MULHER VOLTA A ASSUMIR O DESEJO DE COMANDAR OS DESTINOS DE LISBOA. MARIA JOSÉ
últimas. Nós temos freguesias de várias dimensões e sabemos que as mais
NOGUEIRA PINTO É A CANDIDATA DO CDS-PP AO GOVERNO DA CIDADE. NUMA ATITUDE QUE DIZ SER FEMININA, MAS
pequenas são aquelas que concentram
NÃO FEMINISTA, DÁ A CARA PELA DIREITA E TENTA CONQUISTAR O SEU ESPAÇO NA CAPITAL.
uma população mais envelhecida. Não
mais património histórico, mas que têm
queremos extinguir nenhuma freguesia, mas podemos agrupá-las por se-
• MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
“Lisboa podia ser
a capital da
Península Ibérica”
e estamos sempre a pensar em cons-
melhança e através destes bairros se-
truir, quando o esforço financeiro devia
ria possível um tratamento muito mais
ser concentrado na reabilitação. A habi-
rápido de questões que dizem respeito
tação devia ser construída nas zonas re-
àquele agrupamento de freguesias.
abilitadas, porque actualmente Lisboa é
A criação destas instâncias irá retirar
uma cidade que não se integra. A cidade
algum poder às juntas de freguesia?
está muito fragmentada em termos de
Pelo contrário. Com a criação dos Bairros
como a população está localizada.
Administrativos iremos dar mais compe-
Mas a expressão “arrumar a casa”
tências às juntas de freguesia. Quem vai
não se refere também à arrumação
ter menos poderes é a Câmara. Por um
da Câmara de Lisboa?
lado, vai haver um reforço do poder das
Esse é o outro sentido de “casa”. A “ca-
juntas, que poderão passar a tratar de
sa – câmara” existe para servir a cida-
certos assuntos com muito mais efici-
de e os lisboetas, mas tornou-se numa
ência do que a Câmara. Por outro lado,
máquina
buro-
crática e pouco
amiga da população. Temos de
inverter esta filosofia de interven-
CATARINA SANTANA
ção, lembrando a
E IRINA MELO
A
“Há muita trapalhice
nesta cidade, e é como
nas nossas casas, ou se
limpa ou não se limpa”.
competência de muitas pessoas que lá
ao
agruparmos
freguesias, poderemos
resolver
problemas transversais com uma
solução concertada entre elas.
Qual o futuro das empresas munici-
s provas dadas no campo da soli-
didata promete arrumar Lisboa, ou,
atenção. Se investíssemos nessa ar-
trabalham e que estamos ali ao serviço
pais neste realinhamento da cidade?
dariedade são a sua bandeira. Ma-
nas suas palavras, “alindar a cidade”.
rumação já teríamos efeitos visíveis.
do cidadão. Tempo é dinheiro portanto,
As empresas municipais foram criadas
ria José Nogueira Pinto apresenta-se
Afirmou que era necessário “arrumar a
São coisas simples que passam por
tudo o que seja mais atrasos tem um
com objectivos que até são razoáveis, ou
à cidade e recorre ao passado na San-
casa”. Em que é que consiste esta ideia?
“alindar” a cidade. A desarrumação de
grande impacte negativo na economia
seja, para a gestão de actividades que
ta Casa da Misericórdia e na Materni-
Entendo a “casa” como Lisboa, e a ci-
Lisboa torna-a mais hostil.
da cidade e no quotidiano das pessoas.
têm de ser geridas empresarialmente, e
dade Alfredo da Costa para lançar no-
dade não é mais do que uma grande
Por outro lado, temos neste conceito
Os Bairros Administrativos vão no
para as quais o quadro jurídico da Câma-
vos projectos. Num piscar de olhos à
casa de família – ou pelo menos deve-
de arrumação a ideia de que, em vez
sentido dessa desburocratização?
ra era desadequado. E o que aconteceu a
classe média, rejeita a habitação de
ria ser – que, neste caso, está em de-
de construir mais coisas novas, devía-
Vão. Os Bairros Administrativos são
essas empresas? Criaram-se as empre-
luxo em nomedo arrendamento e as-
clínio, desleixada, por pequenas coi-
mos cuidar do que já temos. Metade da
uma instância intermédia entre a Câ-
sas e ficaram as competências, duplican-
segura novas infra-estruturas. A can-
sas que não custam dinheiro, mas
cidade está a degradar-se a olhos vistos
mara e as freguesias, agrupando estas
do tudo o que a Câmara já tinha sem fa-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
7
POLÍTICA
zer distinção de serviços. Nós queremos
da Península Ibérica, visto ter muito me-
fazer uma avaliação dessas empresas.
lhores condições do que Madrid. Pode-
Penso que algumas terão de ser fundi-
ria ser a capital de negócio, das grandes
das, outras, que se mantenham, acarre-
multinacionais, mas teria de criar atrac-
No seu discurso, frisa sempre muito
to mais imediata do que funciona mal,
melhor que a dos homens. A minha
tarão a transferência dos serviços da Câ-
tivos. No entanto, não podemos pensar
a questão das mulheres. O facto de
porque temos uma vida mais diversifi-
mais-valia é achar que tenho com-
mara correspondentes, e outras, prova-
em repovoar Lisboa com os ricos.
ser mulher dá-lhe uma perspectiva
cada. Há muita trapalhice nesta cidade,
petência igual, ou mesmo superior a
velmente, terão de ser extintas.
De que forma Lisboa tem mais condi-
diferente da dos outros candidatos?
e é como nas nossas casas: ou se limpa
alguns deles, se não, não me metia
A EPUL entrará no lote da reestru-
ções do que Madrid para ser a capital
Eu não sou feminista. Mas há uma per-
ou não se limpa, ou se cose o que está
nesta luta, mas acredito que o meu
turação?
da Península?
cepção feminina da vida diferente da
roto ou não se cose.
olhar feminino seja importante. Des-
“A minha mais-valia não é ser mulher, é a minha cabeça”
A EPUL é um caso paradigmático de
Lisboa tem água, um bom clima e, ape-
masculina, que, no âmbito autárquico,
É essa a sua mais-valia para o go-
de sempre foi a mulher que geriu a
uma empresa municipal que cumpriu
sar de tudo, é uma cidade segura. Claro
adquire grande importância. Nós da-
verno da cidade?
despensa, e não há uma grande dife-
um papel importantíssimo e que de-
que seria necessário melhorar a quali-
mos mais importância ao detalhe e ao
A minha mais-valia não é ser mulher,
rença entre as finanças da Câmara e
quotidiano, temos uma percepção mui-
é a minha cabeça, que é tão boa ou
as despesas da casa. •
pois o perverteu. Era uma empresa
dade dos serviços. Mas eu acredito mui-
que tinha a função de corrigir o merca-
to nas dinâmicas e se quiséssemos ter
do imobiliário e agora compete no mer-
essa meta iria gerar-se uma dinâmica
cado imobiliário com as imobiliárias. É
para melhorar as infra-estruturas.
ces muito bem feitos, é muito complexo,
vos para as pessoas. Talvez aquela loca-
desperdício que não será inferior a 20% e
uma situação perfeitamente absurda!
E como é que vai atrair a classe média
são condições que temos de criar.
lização não fosse a melhor, mas o que é
que poderá ser rapidamente eliminada. A
A habitação tem uma função social e a
para que esta se fixe na cidade?
É contra a taxa de entrada na cidade?
certo é que ficámos sem feira. E vamos
despesa tem de ser racionalizada e nor-
Câmara tem a obrigação de disciplinar
Considerando que a classe média se des-
Sou, porque ainda não criámos alterna-
ter de fazê-la rapidamente.
malmente estes dois caminhos têm re-
o mercado imobiliário, através da EPUL,
loca todos os dias de fora para dentro da
tiva. Para quem tem dois filhos e tem de
E o Parque Mayer?
sultados relativamente rápidos. No lado
que tem de voltar ao que era antes, e da
cidade, perdendo horas no trânsito, eu
vir trabalhar para Lisboa e pôr as crian-
É um disparate absoluto. Foi uma tei-
da receita, há muita receita mal cobrada
criação de habitação para a classe média,
acredito que, para os agregados familia-
ças na creche é muito complicado e caro
mosia do Dr. Santana Lopes, porque, na
ou por cobrar e há financiamentos com-
o que me parece ser a única forma de re-
res, residir em Lisboa constituísse uma
vir de transporte público. Ora, a taxa não
realidade, o teatro de revista teve a sua
plementares que a Câmara podia ir bus-
vitalizar a cidade.
melhoria de vida enormíssima. Iria per-
distingue estas situações, é uma medi-
época. Nós temos uma crise de especta-
car com bons projectos e não vai, porque
mitir mais tem-
da cega. Já criadas alternativas ao uso
dores em geral, não fomentámos a cria-
não tem agilidade. Naturalmente não se
po de convivência
do automóvel, é possível introduzir a ta-
ção de público e temos muita infra-es-
pode fazer tudo de uma assentada, mas
e lazer. Temos de
xa como uma medida dissuasora do uso
trutura (o D. Maria, o S. Carlos, o CCB e
é por isso que é preciso estabelecer prio-
atrair as pesso-
egoísta e pouco cívico do automóvel.
mais o que a Câmara tem – o S. Luís, o S.
ridades, e isso devia ser dito na campanha honestamente às pessoas.
E, actualmente, vemos muito
pouco esse tipo
de habitação em
Lisboa...
Vemos
mui-
to pouco. Lisboa
está
desertifica-
da. Se virmos os
“Há uma percepção
feminina da vida diferente da masculina,
que, no âmbito autárquico, adquire grande
importância”.
Censos de 2001,
as para uma vi-
É seu objectivo restringir o trânsito
Jorge, o Maria Matos). Não precisamos
da mais humana,
em zonas da cidade, à semelhança do
de mais hardware cultural, mas sim de
Nestas autárquicas, o que é para si
através da habi-
que se fez no Bairro Alto?
software cultural. Podemos deixar que
uma vitória?
tação de arrenda-
Sim, é importante prosseguir esta
os privados façam esse circuito.
Para mim é uma carta muito fecha-
mento. Nós temos
restrição nas zonas históricas. Mas é
O Parque Mayer não é para guardar?
da, porque há cinco candidatos e o meu
partido é pequeno, mas, por outro lado, a
de ajudar as pes-
claro que, para que ela não tenha um
Assim como está, acho que não. Hoje há
temos a classe alta, gente muito enve-
soas a montar a sua própria operação
efeito catastrófico no comércio, não
soluções arquitectónicas que conser-
maneira como tenho estado nesta candi-
lhecida e ainda uma percentagem de
financeira, calculando uma renda com-
podemos deixar de ter uma visão sis-
vam as fachadas. O Condes, que agora
datura, pelo menos pelos fazedores de
50,1% - que mete medo! - de gente aci-
patível com os rendimentos do agrega-
témica, de ver tudo ao mesmo tempo,
é o Hard Rock, não está melhor assim
opinião, que são de esquerda e insuspei-
ma dos 15 anos que não tem nenhuma
do. Tal como se faz lá fora, fixaríamos a
e restringirmos sem mais.
do que quando era um espaço decrépi-
tos, tem sido bem recebida.
actividade de trabalho nem rentabilida-
renda em um terço dos seus rendimen-
Mas o Túnel do Marquês não vai contra
to, malcheiroso e desertificado? A vida é
Está disponível para uma coligação
de económica e vive de pensões e refor-
tos. Depois, temos de preparar estes es-
o sentido dessas medidas?
um contínuo.
pós-eleitoral com Carmona Rodri-
mas ou à custa das famílias. Não pode-
paços com os devidos equipamentos, co-
Sempre achei que o túnel era facilitador
A
manutenção
mos ter uma cidade assim: que exclui!
mo creches, serviços, comércio, ilumina-
da entrada de mais carros e que não in-
de
equipamen-
Os velhos estão cada vez mais isolados e
ção pública, segurança…
teressava nada aos lisboetas. Agora tem
tos e a criação de
estas pessoas foram deslocadas e con-
Mas o problema da mobilidade entre
de ser acabado, porque custou muito di-
outros projectos
centradas num sítio sem se inter-rela-
Lisboa e a periferia mantém-se…
nheiro aos contribuintes, mas eu sem-
tem os seus cus-
cionarem com outro tipo de realidades.
Só 35% dos 500 mil activos residem em
pre disse que não era prioritário.
tos e ainda há as
“Eu talvez seja o único
candidato que tem experiência de chegar a instituições com buracos financeiros e de as deixar
com muito dinheiro”.
gues,
mesmo
após tê-lo criticado?
Não falando em
nenhum
parti-
do em particu-
Não se consegue cortar com a reprodu-
Lisboa. Não se consegue resolver isso
Este foi um dos temas quentes das au-
dívidas da Câma-
ção geracional da pobreza, e depois te-
do pé para a mão, pois trazer as pesso-
tárquicas em Lisboa. Outros dois foram
ra. Como pensa
mos os ricos no Chiado, contra os quais
as para Lisboa e impedi-las de sair vai
a Feira Popular e o Parque Mayer. Qual
abatê-las?
não tenho nada, mas que não revitali-
demorar tempo, bem como todo o pa-
o destino destes dois equipamentos?
Como sempre fiz.
zam a cidade.
cote de medidas relativas à mobilidade.
Em relação à Feira Popular, acho que
Eu talvez seja o único candidato que tem
A atracção das classes mais abasta-
O prolongamento das linhas de metro,
Lisboa tem poucos divertimentos popu-
experiência de chegar a instituições com
Se for para fazer durante quatro anos
das não poderia ser um estímulo para
o acabamento da CRIL e do Eixo Norte-
lares. Se nós nos referimos com pena e
buracos financeiros e as deixar com mui-
um programa de revitalização da ci-
a economia da cidade?
Sul, que iria permitir o afastamento de
censura ao facto de toda a gente passar
to dinheiro. E a receita é muito simples.
dade, nós somos um partido que nun-
Sou muito a favor da economia da cidade,
muito tráfego do interior da cidade, e o
os fins-de-semana em centros comer-
Do lado da despesa, temos de agarrar os
ca se furtou a assegurar governabili-
de motivar os agentes económicos, por-
pacote de transportes alternativos, que,
ciais, não podemos eliminar os poucos
recursos humanos e os aprovisionamen-
dade, mas não estou neste momento
que acho que Lisboa podia ser a capital
por envolver estacionamentos e interfa-
divertimentos que possam ser atracti-
tos, porque há sempre uma margem de
a pensar nas coligações. •
ESPÍRITO ACADÉMICO
lar,
acho
Lisboa
de
que
precisa
governabi-
lidade,
precisa
de estabilidade para ser governada.
por Edgar Silvestre
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
8
SOCIEDADE
D.G.B fala pa guetto cu sentido/Cusa ki
• BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO
sta passa é cusa ki en sata fala/En tem
A luta por uma voz
liberdade de esprecon por isso en ka sata bem cala.
Aqui todos têm histórias, insólitas, aparentemente irreais, longe de políticas e
instâncias superiores. Sobretudo, não
parecem fazer parte do mesmo mundo
em que a Europa se bate por maior unidade, em que houve uma guerra no Ira-
NAS RUAS DO BAIRRO DO PICA-PAU AMARELO, EM ALMADA, A POBREZA E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL AFOGAM E SUFOCAM. COR-
que. Aqui a guerra vive-se todos os dias
na rua. Usando a frase mais recorren-
TAM AS PERNAS E OS SONHOS. HÁ QUALQUER COISA QUE QUER SAIR DO PEITO E SEM CONSEGUIR SE TRANSFORMA EM RAIVA. AO
te: é a lei da sobrevivência. “Basta dizer que sou do Monte de Caparica pa-
RITMO RÁPIDO DO BATER DO CORAÇÃO, JUNTOU-SE UM INSTRUMENTAL E SOLTOU-SE A ALMA. RIMOU-SE A REVOLTA. E O SOM
ra já não me darem trabalho” diz o Fox,
confessando que actualmente está de-
QUE SE OUVIU FOI O DO HIP-HOP.
sempregado. Dos seus 26 anos, mais
de 8 foram passados atrás das grades. “Eles começam a chamar crimi-
ANA BRASIL
D
noso, criminoso, criminoso. Uma pes-
ebaixo de um arco-íris, os bair-
só ele ouvisse. Sobem e descem no ar
ria. E assim começam a interessar-se”.
outros, cada um a tentar superar o ou-
soa está sempre a levar com isso até
ros sociais tomaram a paisagem
quando se entusiasma com a conversa.
Dentro do Espaço Jovem, um recinto
tro. Quem está ao meu lado não tem na-
que um dia acorda e pensa: ‘eu sou um
do Monte de Caparica. Há o Bairro Cor-
As mãos estão muitas vezes fechadas
tutelado pela Santa Casa da Misericór-
da a ver comigo mas tem tudo a ver co-
criminoso’. Já estive preso duas vezes.
de-rosa, há o Bairro Branco e o Bairro
em concha. Quando fala de hip-hop o
dia de Almada, a MTV passa os mais
migo. Nós somos Wu Tang Clan. Somos
A primeira vez foi por agressão e a se-
Amarelo. A pobreza estende-se impo-
efeito é garantido. As palavras saem-lhe
recentes videoclips, dando uma músi-
todos independentes mas ao mesmo
gunda por assalto à mão armada. Acu-
nente pelo espaço que ocupa.
cantadas mas muitas vezes incorrectas.
ca de fundo aos rapazes que jogam bi-
tempo somos um só”. Com esta refe-
saram-me de coisas que tinham a ver
O Bairro do Pica-Pau, o Amarelo no
É que o Zé não domina muito bem o Por-
lhar e aos grupos de raparigas que os
rência aos WuTangClan, um dos gru-
com aquilo que eu fazia no meu dia-a-
colorido mapa da pobreza no conce-
tuguês. Como a maior parte dos rapazes
observam sussurrando segredos atre-
pos de hip-hop mais famosos de sem-
dia, coisas mínimas que qualquer garo-
lho de Almada, hoje consta na lista dos
daqui, as suas origens são africanas. Ca-
vidos aos ouvidos das amigas e soltan-
pre, Fox mostra o seu gosto pelo estilo
to de bairro faz, como entrar em super-
bairros de risco. Zonas de pobreza, na
bo-verdianas. “Eu quero fazer do criou-
do risinhos abafados. Na maior parte
dos anos 90. Nessa altura os EUA eram
mercados para roubar, apanhar pes-
mira da polícia, que lá é frequente-
lo um língua internacional!” diz, alto, e
do tempo ninguém liga muito à tele-
um laboratório de experiências onde
soas na rua e tirar-lhes os trocos”.
mente chamada para resolver situa-
ri-se muito. “Eu só canto crioulo. Come-
visão. Às ima-
através de beats
ções complexas de criminalidade. Se-
cei a cantar a ouvir o hip-hop americano
gens de podero-
inovadores e le-
guindo a terminologia americana, é
e não percebia nada de inglês. Era o flow
sos negros que
um gueto. Em Portugal chamam-lhe
e o beat! Vibrava com Tupac, Snoop Dog,
ostentam
“pontos quentes”. Diferentes palavras
Dr.Dre. Não entendia nada mas cantava
ro e mulheres
para explicar que aqui vivem juntas to-
à minha maneira. Agarrava o flow e co-
em
das as minorias problemáticas.
meçava a escrever. Nunca me interes-
a passar na te-
Pelas ruas, crianças e velhos passam
sei pelo inglês. Se o percebesse se ca-
levisão o espa-
o tempo como podem. Idosas pesadas
lhar tinha imitado as coisas deles e não
ço contrapõem o
arrastam-se devagar pelo terreno que
escrevia o que eu canto agora. Quero fa-
seu próprio mo-
sobe, vestidas de preto. O Pica-Pau
zer uma cena minha!” Criar um estilo
delo. “Aquilo é o
estende-se como uma jibóia enrolada
próprio passou pela inclusão do crioulo,
Bling-bling
sobre si mesma. O seu amarelo é sujo,
a primeira língua que conheceu. Mais do
EUA. Se formos
gasto, mas a sua alma sente-se bem.
que isso, a língua dos que como ele vi-
traduzir a letra
É o som das ruas que sai de todos os
vem em bairros sociais, os guetos que
para português não é nada. Existe pa-
das rimas de Tupac Shakur, um cantor
cantos. Dos carros que passam, das
o Pica-Pau representa tão bem. É sobre
ra vender. Isso não é hip-hop. As nos-
que morreu no seguimento de um tiro-
janelas mais altas e das vozes das
eles que escreve e é para eles que can-
sas letras falam da realidade na stre-
teio com um grupo de rap rival. “Somos
crianças que já querem ser homens
ta. “Se tivesse vindo de um sítio diferen-
et, falam do que é que se passa aqui
seguidores do estilo Pac (Tupac). Nós no
“É necessário tugas aprendi ta ama/
te se calhar cantava fado. Mas o hip-hop
porque muita gente julga sem saber”,
Monte de Caparica somos real! Canta-
vem mais do bair-
explica o ZédaGuida. Um grande gra-
mos de gueto para guetos. Não canta-
ro. É a revolta”.
ffiti ocupa a parede mais ampla e li-
mos na cidade. Queremos é cantar pa-
Direcção di mic é
vre de móveis. Lá um MC esconde as
ra o povo, para a máfia. Máfia não são
para guetto/D.G.B
mãos nos bolsos de umas calças lar-
os bandidos, máfia é o povo dos guetos”.
representa tudo
gas enquanto por baixo do boné lan-
Bishop é o membro da crew que faltava.
preto/Guetto
ou
ça um olhar descontente sobre toda a
Chegou atrasado mas ainda veio a tem-
street/ street ou
Margem Sul, abarcando uma panorâ-
po de confirmar as palavras de Fox: ”En-
guetto/Guetto ou
mica que vai desde o Cristo-Rei até ao
tre os que ouvem os nossos sons, pelo
street revolucon/
Bairro do Pica-Pau Amarelo.
menos nos bairros, muitos vão ouvir as
Strett ou guet-
“Nós somos um grupo de putos que
dicas e dizer que a cena é mesmo as-
to
cresceram sempre juntos. Temos os
sim. O mesmo não vai acontecer se for
Antis di niggas
bem aprendi ta
odeia”. É a voz
das minorias a
levantar-se. Este é o seu terreno. Esta é a sua
ameaça: “É necessário que os
Portugueses
aprendam
a
amar/Antes que
“Há muita gente que não
percebe e diz que isto
não é nada mas há mensagem. No hip-hop, há
quase sempre mensagem. Como um poeta faz
o seu livro porque tem
algo a dizer...”
comparacon/
abundância
dos
“Somos seguidores do
estilo Pac . Nós no Monte de Caparica somos
real! Cantamos de gueto para guetos. Queremos é cantar para o povo, para a máfia. “
tras
inteligen-
tes se protestava
contra o racismo
e se falava do diaa-dia nas ruas. Os
WuTangClan
fo-
ram um modelo
para os cantores
do Monte de Caparica, mas não
foram os únicos.
Fox evoca a força
des
nossos objectivos para além das difi-
numa cidade. Essa pessoa não sabe o
son/Pa tudo ni-
culdades que advêm de viver num bair-
que é andar na rua e aparecer um car-
dam a odiar”.
ggas nhas irmons. A especificidade da
ro destes, que é visto como isto e aquilo
ro da polícia de choque. Quando mui-
“Há muita gente que não percebe e
mensagem e da língua não impedem
mas tentamos sempre mostrar que pa-
to aparece um polícia e eles falam co-
diz que isto não é nada mas há men-
que pessoas diferentes apreciem o seu
ra além disto dá para viver e construir
mo deve ser. Se um polícia aparecer ao
sagem. No hip-hop, há quase sempre
som. Os tugas, como ele os chama, os
coisas”. O Fox é o membro mais velho
pé de mim e eu começar a chamar a
mensagem. Como um poeta. Um poeta
portugueses brancos, também mar-
da crew que aqui se reúne. Um grupo de
mim os meus direitos e os deveres de-
faz o seu livro porque tem algo a dizer
cam presença nos vários espectáculos
rapazes que canta e escreve hip-hop se-
le já me estou a armar muito. ‘Ah! Te-
e quem escreve e quem gosta de ler dá
que vai dando por toda a Margem Sul. “O
guindo o ritmo dos acontecimentos do
mos um esperto! Entra dentro do carro,
valor àquilo”. O ZédaGuida dança muito
crioulo é quase português. Eles estão a
dia-a-dia no bairro. Ainda sem nome
vamos para a esquadra’. Já me aconte-
com as mãos quando fala, como se ti-
curtir e de repente ouvem uma coisa em
certo, já têm uma história em comum.
ceu isso. Não podes mostrar a tua inte-
vesse uma batida dentro da cabeça que
português e começam a montar a histó-
“Sempre estivemos uns a olhar para os
ligência. Se não tens condições cala-te”.
os pretos apren-
Dedicaçon
ou-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
9
NAZARET NASCIMENTO
SOCIEDADE
Bairro é uma palavra que está sempre
são muito sociais. Têm um papo gos-
sas”. Ka sta fixe por isso en ka sta ca-
presente, deformando e moldando os
toso, estás a ver?”, finaliza Fox com
lado/ Se for preciso en ta canta pa cho-
anos que passam, justificando os cami-
um sorriso. Continuam os episódios
ca estado/En ka sabi en geral ken ki é
nhos feitos. “Os putos não têm motiva-
de violência, a diferença é que os pro-
kulpado/Kuza ki sta passa ka ta da pa
ção nenhuma para a escola. Eles olham
blemas agora vêm do exterior. “As coi-
passa agu.
para os mais velhos que conseguiram
sas estão a melhorar a nível de conví-
Fora do Espaço Jovem as paredes das
fazer a universidade e que agora estão
vio entre nós. Mas isso traz outras coi-
ruas do Bairro do Pica-Pau Amarelo
a trabalhar nas obras, no Jumbo ou no
sas. Quanto maior for a união dentro
estão cheias de rabiscos. São rascu-
MacDonald’s e pensam logo: ‘Vou estu-
de um bairro maior será a rivalida-
nhos ou talvez desabafos, protestos ou
dar para quê? Não, eu vou mas é ven-
de com o exterior. Fechamo-nos num
talvez avisos. Percebe-se que há mui-
cerco e começa
to para dizer. Os meios são poucos e
a pressão da po-
recorre-se ao que se tem. O Bishop
lícia”. O Fox ex-
explica o percurso habitual: “Há muito
plica que hoje
tempo que nos ajudamos uns aos ou-
os grandes rivais
tros e agora chegámos a um ponto em
são os bairros de
que se quisermos fazer uma letra co-
Lisboa que vêm
nhecemos alguém que nos faz um be-
ao Bairro do Pi-
at e conhecemos o sítio onde vamos:
O convívio entre as diferentes etnias
ca-Pau medir forças. A polícia, essa
é só chegar lá e pagar. Ou se quiser-
dentro do espaço do Bairro do Pica-
é uma presença constante. “Só vêm
mos uma gravação com menos quali-
Pau Amarelo nem sempre foi fácil.
aqui dar-nos paulada. ‘Fiquem no lu-
dade podemos ir gravar a casa de um
Apesar das diferenças, o passar dos
gar. Vocês são animais, fiquem dentro
colega”. A evolução foi feita a custo. O
anos levou a uma maior cooperação.
da cerca. Se saírem de dentro da cer-
dinheiro é pouco e sai-lhes dos bolsos.
”Dantes, ninguém ligava a ninguém.
ca a gente dá-vos: Bum!’ Ma,s hoje em
No fim do dia, o ZédaGuida, ou DGB,
Os pretos só lidavam com pretos,
dia, muitos dos que andam aqui nessa
encontra a recompensa nas vozes dos
brancos só lidavam com os brancos,
vida de criminalidade andam a contro-
mais novos que repetem a sua canção.
os ciganos só lidavam com ciganos. Os
lar onde é que os polícias param e isso
“Aqui no bairro é normal estar a andar
blacks e os tugas hoje em dia já se dão
vai causar outros problemas. Vai tor-
e os putos estão a cantar o meu som
melhor. Já há blacks casados com tu-
nar-se aquela criminalidade mais evo-
e chamam por mim. Dá sempre aque-
gas, o que força a convivência. Já os
luída. Eles nos bairros sociais andam
le sorriso”. Mi en é di bairro por isso
to dos olhos perdidos em pensa-
Os perseverantes dos inquéritos
brasileiros estão a ajudar bué porque
a criar máfias e organizações crimino-
mim en sta li/ En ca sta pára/ Mi en é
mentos vadios, só interrompidos
de rua parecem ter sido dos pou-
pelo queixume dos carris e pela
cos que não foram de férias. Aqui
interminável sequência de para-
e ali mais rostos conhecidos can-
bar. Quando a polícia me apanhar
vou preso! Vai lá
a família visitarme e vendo droga dentro da prisão’”.
“Só vêm aqui dar-nos
paulada. Vocês são animais. Se saírem de dentro da cerca a gente dávos: Bum!”
CRÓNICA
por Inês Henriques
À sombra
C
inco minutos antes das três
de, quedam-se ao sol nas es-
da tarde. Vultos breves, in-
planadas e, apesar do calor, be-
definidos, escapam-se pelo can-
bem constantes litros de álcool.
gens bruscas. Belém. Os vigilan-
tam Lisboa, a troco de quase nada.
tes do Palácio fitam eternamente
Olhos semi-cerrados, vagabun-
o horizonte, à sombra da pasma-
dos, agradecem a caridade dos
ceira, como que indiferentes aos
transeuntes e permanecem tam-
flashes dos turistas. Do alto do
bém na desprotegida cidade, apa-
seu irrepreensível porte, devem
ziguando o coração na sombra.
estar a suar em bica. Só os movi-
Na Praça da Figueira correm os
mentos sincronizados à hora mar-
olhos pela imensidão do espaço.
cada queimam o tempo.
Os rostos dos candidatos que dão
A meia dúzia de passageiros do
“a cara por Lisboa” confundem-se
15, meio atordoados pelo calor,
com as letras toscas de uma ci-
sai quase toda para apanhar o barco
com destino
às praias da
Costa.
O
flui
trânsito
sosse-
gadamente
como um rio,
NAZARET NASCIMENTO
der droga e rou-
Um retrato de Lisboa
em pleno Agosto,
quando os portugueses procuram as praias
e a cidade fica entregue
aos turistas.
dade
afi-
nal “em festa” até fins
de
Setem-
bro. Concertos, festivais
de jazz, peças de teatro,
exposi-
ções, festas
até ao Terreiro, numa estranha
ao ar livre impregnam-se na su-
quietude
jidade urbana das fachadas, des-
metropolitana.
Agos-
to é um mês óptimo para se res-
pertam do tédio e da languidez do
pirar em Lisboa, não fosse o céu
Verão a cidade ao sol.
esculpido de fumos adivinhar as
As janelas escancaradas da Gra-
manchetes dos jornais. As mon-
ça debruçam-se para a tarde já
tras da Baixa arrastam os saldos
alta que corre sem hora de pon-
pela eternidade da época. “Últi-
ta. Pendem, imóveis, as rou-
ma oportunidade”. Outras avan-
pas sem mácula, já ressequidas.
çam com os tecidos quentes e as
Uma réstia de movimento decli-
cores fogosas da próxima estação
na na agradável esplanada do mi-
e incomodam a tarde desespera-
radouro. Ali reinventa-se o olhar,
damente quente.
Lisboa a perder de vista. Um bulí-
Turistas com rostos escarlate e
cio vindo das praias ainda cheias
camisas ensopadas de suor ani-
ecoa no alto dos campanários.
mam as ruas, cavaqueiam com os
Espera-se pela noite do Bairro e
vendedores de bugigangas, apre-
que ela traga consigo as memó-
ciam os retratos da velha cida-
rias vivas de uma Cidade. •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
10
SOCIEDADE
VERA MOUTINHO
vultos que, por causa das vestes compridas, deixaram de andar para passarem a flutuar por ali como os pirilampos
que os rodeiam. “Este será um ano de
provas”, começa um dos frades a explicar aos novatos, que, a partir deste momento, passarão a ter uma vida marcada pela obediência, pobreza e pela castidade. “Não é licito sair da ordem, só com
autorização do Grã Ministro. Devem ser
pobres, nunca julgar quem se veste com
roupas delicadas, ou, porventura, tome
alimentos ou bebidas finas, mas antes
se julgue cada um a si mesmo.”
A noite ainda só está a começar, já passa das 21h e ninguém sabe como tudo
se vai desenrolar. O que é que aquelas vinte e três pessoas terão de fazer
a seguir? Ritos de iniciação à ordem?
Decerto já todos ouviram falar das noites na Serra de Sintra, histórias macabras de seitas e de rituais estranhos.
O frade prossegue com a explicação.
“A vossa missão é resolver um crime
ocorrido há 800 anos mesmo aqui neste convento.” Uma voz nervosa, procurando a graça, vinda do meio das três
filas de vultos esguios, faz a pergunta mais estranha que poderíamos ouvir nesta situação: “Mas não podiam
servir só os croquetes?”. É a festa de
anos de Duarte Gonçalves e, embora o
cenário seja sinistro, a lua cheia e os
pirilampos verdadeiros, tudo não passa de um jogo.
• MISTÉRIO NA SERRA DE SINTRA
1ª Pista: o início
Quem matou Frei
Bonifácio?
ANA RITA HENRIQUES
A
Há uns anos, Rui Pereira assistia no
cinema, com os amigos dramaturgos
e argumentistas, a um filme de David
Fincher chamado O Jogo. No final olharam uns para os outros e disseram:
“Bem, nós fazíamos isto”. Estava criada a ideia que, anos mais tarde, se viria a concretizar na Bode Espiatório. A
ideia é simples e parte apenas de uma
pergunta: “O que é que se dá a alguém
que tem tudo?”. E a resposta, segundo
Rui, é evidente: “emoções”. “Aquilo que
nós retemos é que podemos pegar nu-
“O QUE É QUE SE DÁ A ALGUÉM QUE TEM TUDO”? A PERGUNTA É DO FILME DE DAVID FINCHER
noite começa a cair. Para trás ficou o sol quente de final de tar-
à volta disso, envolver as pessoas nu-
O JOGO, MAS SERVIU DE MOTE À CRIAÇÃO DA BODE ESPIATÓRIO, UMA EMPRESA QUE PRETEN-
de na Vila de Sintra, os turistas de bicicleta e as mesas de jantar nas espla-
mo, Rui achou que era altura de mudar. Foi o mentor do projecto chamado
TO DE HÁ QUINHENTOS ANOS, UM MORTO. VINTE E TRÊS PESSOAS CONVIDADAS PARA UM JAN-
sos. Neste fim de tarde de sábado estamos prestes a passar para outra di-
mentar emoções.”
Depois de doze anos ligado ao jornalis-
CENÁRIO PARA UMA NOITE DE AVENTURA INESPERADA. UMA ORDEM RELIGIOSA, UM CONVEN-
O nevoeiro cerrado começa a descer e
a humidade penetra na roupa e nos os-
ma trama ficcional, levá-las a viver uma
aventura de doidos e levá-las a experi-
DE VENDER EMOÇÕES. O CONVENTO DOS CAPUCHOS, EM PLENA SERRA DE SINTRA, SERVIU DE
nadas que já se começam a compor
àquela hora. O cenário agora é outro.
ma coisa muito banal e criar uma ficção
Bode Espiatório e hoje em dia continua
a ser o seu principal motor. Esta em-
TAR… QUE NÃO ACONTECEU.
presa está há um ano no mercado e
mensão, mas ainda ninguém o sabe. A
tudo o que pretende vender é experi-
estrada infinda da Serra de Sintra, com
ências e emoções. Rui Pereira expli-
as curvas que se sucedem vertiginosa-
segredo que ele tem guardado. Não se
o espaço interior de cada um. Risos ner-
raçados, cada elemento da sua trans-
ca que “todas as sociedades tiveram
mente não deixando adivinhar o cami-
vê o fim da estrada, nem ninguém po-
vosos misturam-se com o uivar de algu-
formação: primeiro uma túnica casta-
necessidades de lazer, seja ele qual
nho, a vegetação densa que rodeia os
de imaginar o que ela reserva.
ma criatura perdida, escondida no meio
nha, comprida, até aos pés, com um ca-
for. O que acontece é que uma socie-
dois lados da subida fazendo-nos que-
O fim do caminho é o Convento dos Ca-
das árvores e da vegetação, bem longe
puz igualmente grande; de seguida, um
dade pró-cultural, muito mediatizada,
puchos. O segu-
do olhar e da imaginação dos presen-
cordão para atar à
rança que con-
tes. A lua cheia, as velas acesas e os pi-
cintura; uma más-
trola as entradas
rilampos que flutuam no ar dão a cla-
cara preta e uma
e saídas do espa-
ridade necessária para nos deixar vis-
lanterna de latão
ço será o último
lumbrar o ritual que está a ter início
com uma vela no
sinal de moderni-
mesmo em frente aos nossos olhos.
interior, que cada
dade e banalida-
Vinte e três pessoas, separadas umas
um dos recém-or-
por o cenário de mistério e penumbra
de que veremos esta noite. Àquela ho-
das outras e alinhadas, lado a lado, em
denados frades segura na mão. A par-
que, é a fase da experimentação”. Se-
parecem querer demorar o fim do ca-
ra já o sol se pôs e os sons da noite co-
três filas vão recebendo, pela mão de
tir deste momento, cada um deixou de
gundo ele, “muitos dos formatos a que
minho, para que ninguém penetre no
meçam a invadir o espaço do convento e
dois frades, silenciosos mas desemba-
ter rosto e em toda a volta só se vêem
assistimos agora na televisão induzem
rer adivinhar segredos
secula-
res, o nevoeiro
que veio de lado nenhum mas
que não podia
faltar para com-
“A vossa missão é resolver um crime ocorrido há 800 anos mesmo
aqui neste convento.”
“O que nós queremos é
tirar as pessoas da realidade, enfiá-las num
túnel de ficção.”
uma
socieda-
de urbana, com
muitas
roti-
nas, está a entrar agora numa fase muito
interessante
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
11
SOCIEDADE
UM ESPAÇO EM LISBOA
por Inês Henriques
A Barraca
Um bar “manifestamente do caraças”
A
noite cai e arrasta consigo os
e um bar, cada um com a sua pró-
corpos ébrios, solitários, até ao
pria programação, mas convivendo
eterno Largo: “É proibida a entra-
harmoniosamente entre a “ética e a
da a quem não estiver espantado
estética”, como afirma Changuito, da
de existir”, ecoa. Entram. Procuram
gerência do bar. Situado às portas de
uma mesa vaga, a última, e ficam a
Santos, mas indiferente àquelas ro-
ouvir. Poesia deixada ao acaso, “pa-
tinas nocturnas, o bar A Barraca fi-
ra (e)levar”, José Afonso, um piano e
ca na eternidade do tempo. Ali tudo
uma voz feminina, sensual, uma cor-
foi pensado para ser diferente, desde
tina violácea de estrelas, um palco
a cadência musical, “acima de qual-
tosco, só. Tudo o resto é um estre-
quer suspeita em termos de qualida-
mecimento nostálgico, um trautear
de” entre o samba, o tango, o reggae,
de sorrisos, maneios e sombras que
o ska, ou o jazz, até à beleza fran-
se desvanecem no vermelho afogue-
ca da sala, ao atendimento familiar,
ado do vestido. As histórias cantam
à diversidade de pessoas que o fre-
sempre o mesmo nome, Maria. Maria
quentam e da programação: recitais
numa “noite de espanto e fulgor”...
de poesia, concertos, teatro, matinés
O edifício da Barraca já foi um arma-
ça. Uma espécie de “ilha” em Santos.
infantis, exposições ou aulas de danzém de alimentos, um cinema. Hoje abriga uma companhia de teatro
Nas palavras de Changuito, um bar
“manifestamente do caraças”. •
RUI FALÉ
as pessoas em determinadas experi-
va. “Achei que à noite era giro. À noi-
Já de noite, depois da iniciação à ordem,
clique e estão noutra onda”.
realmente tinha sido o assassino, mas,
ências fortes, fazendo-as estimular
te, Serra de Sintra, com frio, achei que
depois da explicação do enigma, de lâm-
Naquela noite de sábado a imaginação
para compensação de todos, havia uma
as suas próprias emoções”. Mas, para
poderia ser engraçado.” Convidou toda
padas na mão como única luz num sítio
voou, pairou como os pirilampos pelo
ceia franciscana preparada.
Rui, existe um processo paralelo a es-
a gente por e-mail para um jantar per-
totalmente desconhecido, cada um dos
espaço do convento. O túnel de ficção
Rui Pereira diz que o que se fez nesta
te, que está relacionado com a ciência
to do Convento dos Capuchos. Às oito
vinte e três convidados foi saindo, um a
de que Rui falava foi atravessado vezes
noite foi “abrir uma porta”. A activida-
e que é ainda mais importante. Segun-
da noite um grupo de vinte e três pes-
um, totalmente sozinhos, com um único
sem conta pelos vinte e três convida-
de no Convento dos Capuchos, por ser
do estudos do português Manuel Da-
soas, que não desconfiavam de nada,
pensamento: “para chegar ao assassino
dos, que ao tal clique passavam para
uma novidade, “ainda está em fase de
másio, as pessoas para pensarem, pa-
reuniu-se no espaço do Convento. O
basta seguir o caminho da luz”.
outra dimensão. Num espaço de três
crescimento”, mas acrescenta que es-
Quem olhasse para a frente só via um
horas, o tempo que durou a viagem ao
ta é a vantagem da Bode Espiatório,
cenário. Um sítio que, mesmo de noite,
passado, foi possível estar em 2005, e,
“estar sempre a produzir coisas no-
banhado apenas pela claridade da lua
passados alguns minutos, estar em
vas”. A empresa assumiu um compro-
cheia e pelo bailado das dezenas de
tempos remotos, a decifrar enigmas
misso de, de quatro em quatro meses,
pirilampos, se adivinhava lindíssimo
para resolver o mistério que envolveu
ter um produto novo e isto é assim por-
e imponente. As ruínas do Convento,
a morte de um dos frades. Se, num da-
que “o mercado pede isso”. “Pessoas
a vegetação que rodeava o caminho,
do momento do jogo, uns quantos fra-
como o Duarte querem estar sempre a
flores brancas enormes, canas maio-
des sentados numa mesa de pedra, de
fazer coisas novas” e isso permite-lhe
ra tomarem decisões, precisam
de ter um conhecimento das suas emoções. “No
fundo, as decisões mais importantes têm a
“Podemos pegar numa coisa muito
banal e criar uma ficção à volta disso,
envolver as pessoas numa trama ficcional, levá-las a viver uma aventura
de doidos .”
ver com o culto e a aprendizagem das
ambiente estava animado, diziam-se
res do que cada um dos “frades espi-
máscara na cara e candeeiro na mão,
estar sempre na vanguarda. E termina
emoções, que deve ser feito e cultiva-
graças e toda a gente fazia planos pa-
ões”, escadas de pedra estreitas e tor-
discutiam a vida política nacional e an-
dizendo que “faz parte do processo de
do”. Rui não crê que as pessoas quan-
ra aquela noite: a ementa do jantar, o
tuosas, bancos embutidos nos muros,
siavam por um baralho de cartas e
quem quer estar sempre na frente es-
do procuram os produtos da Bode Es-
bar para onde iam de seguida – planos
fontes e grutas eram o caminho a per-
uma Playstation, passado pouco mais
tar sempre a arriscar”.
piatório tenham noção de tudo isto,
banais para a primeira noite de verão.
correr. E no meio de toda esta imen-
do que alguns minutos já estavam
As lanternas apagaram-se por si mes-
mas, mesmo assim, o que a empre-
Para o Duarte, nada mais fácil. Bastou ir
sidão distinguia-se, aqui e ali, o vulto
dentro de uma das minúsculas celas
mas mesmo no final do jogo, as túni-
sa procura é “pegar nesta teoria toda
à Internet, ao site da Bode Espiatório, e
de um ou outro frade, figuras esguias
do Convento com
e criar um produto divertido. Não criar
marcar um mistério para sábado à noite.
de lâmpada na mão que se arrastavam
o morto a seus
uma parte científica, mas uma parte
Este, do Convento dos Capuchos, foi a pri-
pelos trilhos e se agachavam quando
pés. Tapado por
de comunicação, de aventura e trans-
meira vez que foi comercializado. Apesar
viam alguma luz no chão. “Para che-
um lençol bran-
fomar isso em produtos rentáveis”.
de já se terem feito alguns ensaios, ex-
gar ao assassino basta seguir o cami-
co, Frei Bonifá-
plica Rui Pereira, o aniversário de Duarte
nho da luz”. Em cada vela havia uma
cio, o frade as-
Gonçalves foi a estreia do produto.
pista, um enigma a decifrar.
sassinado, jazia
Duarte Gonçalves é o aniversarian-
Rui Pereira, salvando a pouca modés-
morto no chão da
te, foi ele quem planeou tudo, é ele
tia, revela: “Acho que na Bode Espia-
sua cela.
o “culpado”. “No ano que vem não há
tório conseguimos juntar um bocadi-
O mistério esta-
ninguém nos anos do Duarte”, ou-
nho de criatividade com inteligência”.
va quase a chegar
ve-se alguém exclamar, enquanto to-
Explica que, no fundo, o que a empre-
ao fim. Depois de
da a gente é encaminhada pelos dois
sa faz pisa três territórios: o entreteni-
toda a gente ter
frades de túnicas compridas, másca-
mento, o turismo e a cultura. “A cultu-
passado por to-
ras na cara e candeeiro na mão. Pa-
ra não é um favor, não é uma bengala,
das as pistas só ficava a faltar uma coisa
prio Duarte seguem para uma qual-
ra comemorar os seus 27 anos, Duar-
é uma parte fundamental no sucesso
para dar o jogo por terminado e o mis-
quer discoteca na linha de Cascais. O
te quis fazer “uma coisa diferente, al-
do produto.” E explica a razão dos mis-
tério por resolvido. Afinal quem foi o as-
Rui há-de pegar em caixas e arrumar
guma coisa inovadora”, mas escondeu
térios históricos. “Nós fazemos muitos
sassino? Numa reunião já fora das ru-
dentro do carro aquilo que restou dos
tudo dos convidados. Como já tinha ex-
mistérios históricos porque o que nós
ínas do Convento, num dos pátios ex-
frades dos Capuchos. Dentro de ins-
queremos é tirar as pessoas da reali-
teriores, já se ouviam muitas vozes e
tantes, o Convento é novamente devol-
dade, enfiá-las num túnel de ficção e
gargalhadas sonoras. No final, apenas
vido aos sons da noite, à lua cheia e ao
elas, passado um momento, fazem um
uma pessoa conseguiu descobrir quem
bailado dos pirilampos. •
perimentado o Jantar Mistério, o produto mais vendido da Bode Espiatório,
desta vez optou por uma actividade no-
VERA MOUTINHO
2ª Pista: a estreia
Uma voz nervosa, procurando a graça, vinda
do meio das três filas
de vultos esguios, faz a
pergunta mais estranha
que poderíamos ouvir nesta situação: “Mas
não podiam servir só os
croquetes?”
cas
foram
castanhas
despidas
e repousam agora, todas empilhadas, em cima
de um monte de
palha. As pessoas ganharam de
novo rosto, cor
e singularidade.
Assim que acabarem de comer,
todos os convidados e o pró-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
12
SOCIEDADE
• O SER OU NÃO-SER DE UM HOMEM ESTÁTUA
Entre a carne e a pedra
UMA CAMINHADA A PÉ PARA ESPANHA EM BUSCA DA SOLUÇÃO PARA UMA ‘INCURÁVEL NEURODERMITE’. E NAS RAMBLAS DE BARCELONA DESCOBRE UMA IDENTIDADE
TALVEZ NUNCA ANTES ENCONTRADA: ESPÍRITO DE YOGA, ALMA DE HOMEM, CORPO DE
ESTÁTUA. DESDE ENTÃO ANTÓNIO GOMES DOS SANTOS TEM PERCORRIDO AS CIDADES
EUROPEIAS COM A “QUIETUDE EXPRESSIVA”, A ARTE DAS ESTÁTUAS-VIVAS.
LAÍS CASTRO
N
ão faz muito. Chega e monta um
médicos disseram que não tinha cura”.
garante ter a certeza quase absoluta de
po da abstracção. “Estou a ver tudo, es-
pequeno palanque no meio da Rua
Fez os tratamentos normais por três me-
que foi o primeiro a começar esta arte
tou com atenção. Penso no que pensa-
Fica ali quieto, tão quieto, que após
Augusta. Liga uma pequena coluna de
ses, mas sem resultados. Por isso um dia
de rua, a que deu o nome de “quietude
ria em qualquer outra situação, só que
dezanove anos de treino chegou a um
som, sobe no seu palco e imobiliza-se.
pediu à mãe “para fazer umas sandes”,
expressiva”. Conta que quando come-
de forma mais atenta. A atenção máxi-
dos pontos máximos da filosofia yo-
Fica ali quieto, parado, imobilizado.
meteu-as na mala e pôs-se à aventura.
çou (“corria o ano de 1986/87”) havia nos
ma está no controle da respiração. E
ga, base da sua imobilidade: “ o que
Em frente ao palanque um cartaz cola-
Atravessou Espanha a pé, pelo menos a
EUA um movimento parecido, chamado
então todo o resto vem um bocado por
eu praticava antes era o yoga daque-
do no chão mostra palavras que sobre
maior parte do caminho. Entre Badajoz
fixing, estátuas-vivas dentro das gale-
acréscimo, são pensamentos micros-
las posições esquisitas. Depois fui len-
ele já foram escritas: “Em pedra viva”,
e Madrid foi de comboio, mas não curtiu
rias de arte. Mas a ideia de ir para a rua
cópicos: uma consideração, uma cena,
do muito, tornei-me um entusiasta do
crónica de José Cardoso Pires no Públi-
“a experiência de ser expulso por não ter
foi dele: “se não sou o primeiro, sou dos
uma ideia, ou uma coisa que se vê. Só
yoga filosófico. E cheguei à conclusão
co
quem faça isso é que percebe”.
. Ao lado do cartaz uma pequena
bilhete”. Chegou aos Pirinéus Orientais
primeiros. Mas com um historial prova-
que nunca é tão importante como estar
de que aquilo que faço é o que um yoga
placa com um diploma: Guiness Book of
“sem dinheiro, a pé total”, à procura de
do e seguido sou de certeza o pioneiro”,
a pensar na respiração. Mas é muito di-
quer fazer: conseguir encontrar-se na
Records – Record Mundial de Imobilida-
um centro Zen de que tinha ouvido falar:
de, com o tempo de 15 horas 2 minutos
“eu já praticava yoga, mas nesse centro
e 55 segundos. Um caderno em formato
comecei a potenciar muito a prática. Um
A4 está ao lado da placa, convidando os
ano depois comecei a ter um cabelinho
afirma o Staticman.
ficil explicar, só
A arte de estar parado du-
imobilidade total, conseguir dominar o
corpo. Eu dei uma data de voltas e aca-
rante tanto tempo –
bei por encontrar uma das grandes cenas de qualquer yoga”.
transeuntes a deixar ali as impressões
aqui, uma cabelinho acolá... Quando vi
Tudo o que faz é com base em
– positivas ou negativas – que a estátua
que estava a melhorar, pensei ‘vou con-
“coisas muito pensadas e organizadas, com sustentações
(ou homem?) provoca. Um cesto com
seguir ter o cabelo todo outra vez’. E re-
algumas moedas completa o trio de
solvi visitar os meus pais, para dar a no-
fortes” no Ken yoga, uma prá-
personagens secundárias da actuação.
tícia”, conta António.
tica criada pelo Staticman: “é
Agora, só falta o actor principal.
Fez pequenos trabalhos, juntou algum
uma junção do que sei de yoga,
Staticman é o seu nome artístico. Antó-
dinheiro e no caminho para Portugal
a minha experiência como Ho-
nio Gomes dos Santos, o nome real. Tor-
(desta vez não a pé) encontrou na ca-
mem-Estátua e exercícios de
na-se António quando desce do palco dos
pital da Catalunha a ideia que iria fa-
respiração e quietude”.
espectáculos de tantas e tantas cidades
zer nascer o Homem-Estátua. “Na ida
Quando está em actuação, pa-
europeias; quando os seus músculos pa-
para os Pirinéus já tinha visto em Bar-
rado no meio dos centros urba-
ralisados pela “quietude expressiva” dei-
celona uns espectáculos de rua, pes-
nos onde todos correm de um la-
xam a aparência de pedra para se torna-
soal a fazer de robots articulados. E
do para o outro com ares de pressa,
rem de novo carne, tomando expressão e
quando estava a voltar vi de novo os
a arte do Staticman parece uma for-
movimento. Quando tira a roupa da actu-
mesmos shows, uma coisa muito for-
ação, a maquilhagem verde-escura que
te e bonita. Tinha muito público e is-
morena e diz que
podemos conversar naquela esplanada lá ao fundo, que é mais
sossegada. É ali
que António conta como nasceu o
primeiro HomemEstátua, e quem
“Decidiu parar, ficar simplesmente ali, no meio
da rua, imóvel, “não ser
boneco articulado nem
sequer robot, mas assumir a estátua, sem movimento nenhum”.
rio afirma que não, que não se podem
so chamou-me a
de du-
pôr as coisas no patamar de um pro-
atenção.
as
ho-
testo contra alguma coisa. “É antes um
cei a pensar que
ras por
“protesto muito genérico contra a socie-
podia ligar aqui-
cada ac-
dade normalizada. Por exemplo, a pró-
lo com a prepa-
tuação
pria definição de trabalho. Fisicamente
Come-
ração que eu ti-
a
falando, trabalho é a deslocação num
nha de estar pa-
–
uma
leva
per-
ponto, implica movimento. Mas se eu
consigo trabalhar para sobreviver mos-
rado, por causa
gunta intri-
do yoga. Se pa-
gante
rássemos os ro-
ra aqueles
bots, como é que
que o obser-
pa-
é esse ser intrigante.
o pessoal reagiria?”
vam quando
Queria ser doutor. Foi estudar Geologia
Decidiu parar, ficar simplesmente ali, no
passam pela
CATARINA MEALHA
cobre a sua pela
ma de protesto. Mas “hãToino” de Lícerca
trando só o meu corpo imóvel encontro
a minha definição de trabalho”.
Os livros são outra faceta do HomemEstátua. O primeiro – Memórias de hoje
ou pretérito perfeito de amanhã’ - data
na Universidade de Coimbra. Como vinha
meio da rua, imóvel, “não ser boneco ar-
rua: em que
de quando “tinha a mania de escrever”.
de uma família pobre, teve de trabalhar
ticulado nem sequer robot, mas assu-
é que pensa
Os outros – como por exemplo Ho-
para pagar o curso. Cozinheiro, ajudan-
mir a estátua, sem movimento nenhum”.
um
mens ou alucinações de uma estátua?
homem
ou Pensamentos de pedra’– ja falam so-
te nos hospitais… Até que aos 24 de ida-
Nasceu assim o Homem-Estátua, as es-
quando se tor-
de o stress lhe provocou uma neuroder-
tátuas-vivas e a “quietude expressiva”.
na Estátua?
mite, um “breque na cabeça”, como des-
Desde então António dos Santos, ou
Para António é
o que pensa quando
creve. Os cabelos de todo o corpo caíram,
hãToino de Lírio (como assina no seu si-
difícil explicar,
está em períodos de
deixou de comer, tinha choro compulsi-
te), já bateu três vezes o record mundial
porque
meditação ou os seus
vo. Uma doença “muita estranha, que os
de imobilidade (em 1988, 1997 e 2003), e
entra no cam-
isso
bre a sua vivência como Estátua,
contactos na rua.
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
13
SOCIEDADE
• AUGUSTO RAPOSEIRO
O taberneiro de livros
MARTA MESQUITA
É
no meio dos prédios altos da linha
Com os livros veio o conhecimento.
Homem ávido de saber reúne perto de
mais nenhum sítio onde estas dis-
de Sintra que o senhor Augus-
Não concordava com o regime, por-
si pessoas como ele, que gostam de
cussões aconteçam assim”, diz ex-
to, conhecido por todos nas redonde-
que o castrava na sua intelectualida-
discutir e de ser contrariadas. A con-
pectante o livreiro.
zas, tem a sua livraria. Astrolábio é o
de. Um amigo do seu pai um dia disse:
versa, essa, varia consoante as notí-
A discussão só é interrompida por
nome do seu pequeno grande mundo. “Cuidado, olha que o teu filho é um agi-
cias da semana. Falam do estado do
uma menina que entra para ver os li-
Pequeno, porque o espaço é apertado,
tador de massas”. Consciente do peri-
país, do estado das pessoas. “Estamos
vros. No exíguo espaço, pelo menos
grande, porque por lá passa todo o ti-
go que corria sempre foi discreto mas
a resvalar para a Idade Média; a filoso-
um quarto é dedicado aos livros in-
po de gente: desde os mais pequenos
não menos eficiente. Na noite de 24
fia humana está nas mãos de ditado-
fantis. O senhor Augusto orgulha-se
aos mais graúdos.
para 25 de Abril de 1974 lá partia ele
res”, diz para um amigo que está na li-
de conseguir cativar para a leitura os
Quem entra na Astrolábio tem sempre
de Santarém, rumo a Lisboa com os
vraria num sábado à tarde. Passados
mais pequenos: “é nesta idade que o
um rumo. Mesmo que não saiba o que
camaradas. A noite da liberdade es-
alguns minutos chegam mais alguns
gosto começa”, afirma com olhar em-
JOÃO GODINHO
quer, o senhor Augusto trata de sugerir: “Já leu Rosa Lobato Faria? Olhe que
é muito bom”, sugere encantado a uma
leitora que compra O Amor nos temPara o Staticman a reacção das pessoas
pos de Cólera. Os amigos, como gosta
bevecido. Relembra um miúdo que
lhe disse um dia que não tinha gostado nada de ver o Harry Potter no cinema. No ecrã grande da sala não se
sentia o cheiro a musgo que ele sen-
é geralmente “porreira”: “é claro que há
de lhes chamar, que lá aparecem já são
tiu quando leu o livro. “É esta a magia
19 anos que alguém passa e diz: ‘Vai tra-
da casa. Quem lá vai e conhece a sim-
dos livros”, diz o livreiro.
balhar, malandro!’, isso é clássico. Mas
patia e o conhecimento deste homem
Mas, mal a menina sai, lá continua a
eu tenho um caderno para as pessoas
nunca mais abandona a casa.
má-língua da semana. Agora o tema é
escreverem a opinião, e a maior parte
Mas nem sempre a vida do senhor Au-
o duelo entre Cavaco e Soares. Uns são
reage bem. Também depende muito das
gusto foram livros. Homem que sem-
pelo antigo Presidente da República,
personagens. Mas se não fosse uma re-
pre arriscou e que nunca teve medo de
outros pelo antigo primeiro-ministro.
acção positiva não ganhava para viver”.
nada, nem do regime salazarista, quis
“Para mim o Cavaco é só um bom minis-
Admite que há alturas em que se vê “à
ser um técnico de contas. Trabalhou na
tro das finanças, nunca um Presidente
rasca para sobreviver”. No Inverno “o
área durante muitos anos, mas depois
da República!”, diz o senhor Augusto.
clima mau, a crise, poucos contratos”
a paixão pelas palavras escritas falou
impedem-no de sair às ruas e se expor
mais alto. Desde pequenino que gosta
como o Homem-Estátua. Mas quando o
tempo aquece os trabalhos “chovem”:
E é neste ambiente de tasca, em que
tava prestes a começar e ele estava
compinchas: “um bando de generais
cada um discute mais alto do que ou-
de livros. Com 11 anos já tratava o Jú-
lá, na primeira fila, ao lado do pro-
em delírio” é como os denomina.
tro, seja dentro da livraria seja à por-
lio Verne por tu. Aos 13 e com a ajuda de
tagonista e companheiro de armas,
Neste grupo, ora cinco, ora seis, há
ta, que a liberdade pela qual o livreiro lutou acontece. “Eu adoro isto! Dá-
“agora não tenho parado. Este Verão an-
um contínuo conseguiu tirar Os Maias,
Salgueiro Maia. Aqui demonstrou o
espaço para todos. Uns de direita,
dei por Espinho, Seixal, Torres Vedras,
então um livro proibido pelo Regime,
seu afecto pela democracia, que ten-
outros de esquerda, todos discutem
me pena aquelas pessoas que têm
Évora, Odemira, França, Áustria”. E
da biblioteca da escola. Todo o dinhei-
ta passar a todos os miúdos quando
naquela tertúlia feita de improviso.
saudades de uma mão de ferro que
quando o Verão chega ao fim espera-o
ro que juntava lá ia para mais um livri-
é convidado, ano sim, ano sim, para
Criticam tudo, desde o presidente da
lhes diga o que podem ou não fazer
Barcelona, o berço do Staticman.
nho. E lia, lia muito, ora em casa, ora na
mais uma palestra sobre o 25 de Abril
Câmara aos passeios mal calcetados.
ou o que podem ou não pensar”, de-
Hoje, na capital catalã, as estátuas-vivas
biblioteca de Santarém.
nas escolas lá da zona.
“Isto é que é bonito! Eu não conheço
fende o senhor Augusto. •
são o único espectáculo de rua que não
precisa de licença. “A ideia das estátuas pegou. Eu vim-me embora mas um
grupo de italianos que começou comigo ficou por lá imenso tempo. O pessoal foi fazendo mais, vieram outros de outro lado... Aqui na Rua Augusta também
houve uma altura – por volta de 1993/
94, quando Lisboa foi a capital da Cultura – em que havia umas sete ou oito estátuas, com alguma qualidade. Mas depois... não se aguentou. Não gostaram,
não calhou bem... não sei. Mesmo assim, há um encontro nacional de estátu-
GONÇALO NETO
• POESIA AO JANTAR
O poeta do
restaurante
as-vivas todos os anos, em Espinho. Mas
em Barcelona... tornou-se uma coisa típica, não dá para explicar”.
Hoje as estátuas-vivas pintam o cenário de Barcelona. Na Baixa de Lisboa, um só homem insiste em parar no
GONÇALO NETO
A
caminho da Mouraria há uma
um banquinho. “É um passatempo
estória para contar em cada es-
que me dá prazer”, afirma José Gui-
quina. À entrada do Martim Moniz,
lherme Carvalho.”Gosto de desaba-
me limitar àquilo que sou. Se tives-
constante e a pessoa que escreve fá-
umas escadinhas íngremes apon-
far, de transmitir aos outros a profun-
se mais estudos, uma base cultural
lo porque tem dentro de si uma se-
meio da Rua Augusta e mostrar ali a
tam o caminho para o Largo dos Tri-
didade das coisas.”. Com mais de 80
mais sólida onde pudesse assentar
mente de loucura, que a leva a expor-
“quietude expressiva”, que nasceu co-
gueiros, e para o restaurante “Os
poemas escritos, editou em 2001, Di-
os alicerces da minha escrita, seria
se, a ter coragem de dizer o que lhe
mo uma resposta à “doença da escra-
Galos”. Lá dentro espera-nos uma
mensão e Circunstância, que segun-
diferente”, afirma com simplicidade.
vai na alma”.
vidão sociomental que atormentava o
figura serena que nos recebe com
do o autor “encerrou uma fase da mi-
Nunca leu outros poetas, e conside-
Contudo, para José Guilherme Car-
[seu] consciente”. Homem ou Estátua,
um sorriso franco. É José Guilher-
nha vida e uma determinada filosofia
ra que é desta forma que gosta de
valho, a exposição tem limites. Já
confunde-se com a carne e a pedra,
me Carvalho, proprietário do restau-
da poesia, um bocado difícil de digerir,
enquadrar o que lhe vem de dentro,
recebeu vários convites, nomeada-
com o ser e o não ser. Não procura o
rante e um lisboeta por paixão.
porque tem que ver com a dureza da
sem pressões nem comparações. A
mente dos seus vizinhos do “Cha-
sentido. Procura só provocar os sen-
Poesia. O tempero especial d’”Os Ga-
vida, com os cornos da vida”.
poesia é a sua maneira de levitar, de
pitô”, para levar a sua arte para lá
tidos: “olhem para mim aqui parado e
los”. Quem aqui vem já sabe que en-
O proprietário d’ “Os Galos” tem o 4º
ocupar o pensamento frenético que
das portas do restaurante. Recusou
pensem no valor de tudo o resto. O que
tre uma garfada e outra a sua aten-
ano do ensino primário, mas, segun-
de outro modo iria pousar em an-
sempre. “Não quero que as pessoas
é que faz sentido? Eu não faço sentido
ção acabará por fugir para um poeta
do o próprio, a frequência contínua
gústias maiores. “A vida atira-nos
comecem a exigir de mim. A poesia
ou faço? E o resto, faz ou não faz?” •
de ocasião que declama em cima de
na universidade da vida. “Tenho de
uns contra os outros, num fervilhar
não é carregar no botão”. •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
14
MUNDO
• UMA CIDADE FRANCESA COM MAIS DE TRÊS MIL ESTUDANTES ESTRANGEIROS
Grenoble, capital Erasmus
JOÃO TELMO DIAS
CORRESPONDENTE
A
maior parte dos alunos que ini-
do dele tinha sido rejeitado. “Conhece-
ciam o seu Erasmus em Greno-
mo-nos no aeroporto de Lyon, contei-
ble aterra no aeroporto de Lyon, a cida-
lhe a minha situação e ela disse logo
de número dois de França, em meados
que eu podia ficar no quarto dela até
de Setembro e apanha o autocarro até
arranjar casa”, lembra-se Max. A im-
à pequena cidade situada num vale gi-
previsibilidade é, talvez, a melhor e a
gante dos Alpes franceses. Outros vêm
pior das coisas durante este período.
de comboio ou de carro de outras par-
Nunca se sabe muito bem o que po-
tes das Europa, já que Grenoble se en-
de acontecer.
contra quase no centro do continente.
Julianna Hyjek vem da Polónia, mas já
Quando se chega à cidade, a primeira
viveu em Nova-Iorque, em Portugal, no
reacção é, indiscutivelmente,
observar o contraste
entre ci-
vilização e natureza. Os grandes
edifícios, as longas avenidas, o
metro de superfície e os automóveis
opõem-
“O que vale a pena em
Erasmus são as pessoas, que são a tua família.
É aquilo que aprendes
de ti mesmo e dos outros. Isso sim, é o mais
importante.”
FAZ AS MALAS. NÃO TE ESQUEÇAS DO DICIONÁRIO NEM DA ES-
já não se sabe de quem são os pratos,
COVA DE DENTES. DESPEDE-TE DE TODOS OS TEUS AMIGOS E
FAMILIARES E LEVA A BANDEIRA DO TEU PAÍS CONTIGO. ACE-
FUSÃO QUE VIVEM MILHARES DE ESTUDANTES DESDE O ANO
DES EUROPEIAS PROPORCIONADOS PELO PROGRAMA SÓCRA-
vam os primeiros conhecimentos, que
tros estudantes estrangeiros sem ser
na universidade. Desde o princípio de
TES - ERASMUS. GRENOBLE, A CAPITAL FRANCESA DOS ALPES,
Setembro até finais de Junho, as festas nas casas dos estudantes e nas re-
É UM DOS MELHORES EXEMPLOS DESTA MOBILIDADE INTENSA
ra a jovem polaRelações
As festas são um ponto forte da cultu-
se tem o primeiro contacto com os ou-
de cidade já não é
ca, estudante de
Faz as malas outra vez...
ra Erasmus. É nas festas que se tra-
DE 1987, ATRAVÉS DOS INTERCÂMBIOS ENTRE AS UNIVERSIDA-
plomatas, a mu-
um problema pa-
se uma grande família a viver numa
grande casa.
e na Alemanha.
dança de país e
ma de viver. O ambiente torna-se acolhedor e descontraído; é como se fos-
NA PELA ÚLTIMA VEZ E ENTRA NO AVIÃO. RÓI AS UNHAS TODAS
Brasil, no Uru-
Com dois pais di-
as colheres ou as pantufas, é tão cómico!”, diz Maria perante esta nova for-
DURANTE A VIAGEM E INSTALA-TE. É NESTE RODOPIO E CON-
guai, na Escócia
lianos. Chega-se a uma altura em que
sidências não param, como se a realidade fosse filtrada por brindes, can-
DE ESTUDANTES DENTRO DA UNIÃO EUROPEIA. UMA CIDADE
Inter-
torias, shots e muito sex appeal. O
lema, aliás, não podia ser mais escla-
INTERNACIONAL CHEIA DE HISTÓRIAS PARA CONTAR.
se às montanhas imponentes, ao verde
nacionais. Julianna já falava cinco lín-
abundante e aos dois rios (Isère e Drac)
guas e vir viver para França era uma
No meio de tanta neve e de tanta festa,
que se cruzam e entram pelas ruas de
oportunidade única de conhecer o fran-
o que, talvez, fica um pouco para trás
Grenoble adentro, não fugindo à ima-
cês e o país e, ao mesmo tempo, de ex-
são as pessoas, que são a tua família. É
que ouvem música numa língua im-
são os amigos e a família. As sauda-
gem da cidade tipicamente europeia.
perienciar a miscelânea de línguas e de
aquilo que aprendes de ti mesmo e dos
perceptível, passando pela mistura de
des da pátria começam a desvanecer-
O grande marco da cidade é o tele-
culturas. Quando confrontada com o
outros. Isso sim, é o mais importante”.
cheiros das comidas tradicionais de
se, o francês já é quase perfeito e as
férico, construído no princípio do sé-
que o programa Erasmus trouxe de no-
É nas residências que se cria o verda-
cada país nas cozinhas. “No meu cor-
aulas e os exames já estão em segun-
culo XX e que se tornou o símbolo da
vo à sua vida, Julianna tem a resposta
deiro espírito Erasmus, desde a par-
redor a minha vizinha da frente é tai-
do plano. Só que o relógio não pára. O
própria cidade. As oito bolas verme-
pronta: “O que vale a pena no Erasmus
tilha da casa-de-banho, aos vizinhos
landesa e os outros chineses e austra-
fim do ano lectivo aproxima-se e o ba-
lhas de vidro, que mais parecem ovos
mecânicos da Páscoa, transportam os
JOÃO TELMO DIAS
recedor: “Erasmus...orgasmus”.
lanço de um ano fora de casa começa, naturalmente, a infiltrar-se na ca-
habitantes e os turistas à Bastilha, on-
beça de cada um. “Foi um ano de mu-
de se observa toda a cidade e se bebe
danças, pessoais e em todos os outros
um café, pausadamente, na esplana-
sentidos. Mudei; não sei quanto, mas
da com vista para os Alpes. É, sem dú-
mudei. Na forma de ver as pessoas, de
vida, a grande atracção turística des-
dar valor ao meu país, à minha casa, à
ta cidade francesa, que não tem muito
minha família”, confessa Maria Pere-
para visitar, mas tem, certamente,
grina a uma semana de voltar a Pue-
muito para viver.
bla, no México. As cerimónias iniciam-
Dos estudantes internacionais que
se e cada um tem direito a uma des-
chegam a Grenoble, alguns já têm alo-
pedida personalizada. Ninguém quer
jamento garantido nas residências,
acreditar que é o fim desta etapa. Se
outros têm a difícil tarefa de procurar
no princípio havia o medo do desco-
um quarto de 9 m2 ou de conhecer ou-
nhecido, as dúvidas e as inseguran-
tros estudantes para partilhar uma ca-
ças, hoje há a certeza de que se quer
sa. Todos os anos chegam à cidade mi-
mais, muito mais. Tirar o melhor par-
lhares de estudantes vindos de todos
tido das pessoas e das pequenas coi-
os lados do mundo e as casas dispo-
sas é, certamente, o que fica a navegar
níveis começam a escassear logo em
dentro de todos. O choro e os abraços
fins de Agosto e princípios de Setem-
começam a surgir. Há mesmo quem
bro. Para Max Juno, vindo do Quebe-
diga que já faz parte. Faz as malas ou-
que, no Canadá, e Maria Peregrina,
tra vez. Tira as fotografias da parede,
mexicana de Puebla, a situação não
o dicionário da secretária e mete tu-
foi diferente. Chegaram no mesmo dia
do na mochila. Desta vez levas contigo
do outro lado do oceano e ela já tinha
cada pedacinho do mundo dentro da
quarto numa residência, mas o pedi-
mala. E voilà! estás em casa.•
DOSSIER |
JORNALISMO
LITERÁRIO
15
NAZARET NASCIMENTO E VERA MOUTINHO
• A LITERATURA DO JORNALISMO
JORNALISMO LITERÁRIO. NARRATIVO. CRIATIVO. HU-
O real nas linhas
da ficção
MANO. DIFERENTES NOMES PARA HISTÓRIAS BEM NARRADAS, PERSONAGENS VIBRANTES, CENÁRIOS BEM
PINTADOS POR UM NARRADOR QUE NÃO PÕE DE PARTE
A SUA SENSIBILIDADE. FOI DISTO QUE VEIO FALAR O JORNALISTA AMERICANO MARK KRAMER NO PASSADO MÊS
DE JULHO. É DISTO QUE FALA BAPTISTA-BASTOS HÁ MAIS
DE 40 ANOS. DE UM JORNALISMO FEITO LITERATURA.
SÃO SOUSA
E VERA MOUTINHO
A
delino Gomes levanta-se da pri-
homenagem pelos 50 anos de carreira
até ao osso. Baixa da Banheira. Fre-
Na casa das Laranjeiras, uns dias an-
Está tudo aqui.” O alvoroço desentoa-
meira fila da plateia, ocupa o lugar
como jornalista e escritor, faz trans-
guesia do concelho da Moita, distrito
tes, Baptista-Bastos confessava: “As
do desta aventura pequenina teve um
no palco. Tira os óculos, põe os óculos,
bordar de emoções a pequena sala do
de Setúbal. Não dispõe de orago que
homenagens valem o que valem”. E
remate final setenta e duas horas de-
arruma os papéis ao centro, um boca-
Auditório Municipal Lourdes Norberto,
a proteja e Deus passou por ali muito
no momento em que falamos da “Rua
pois; no primeiro dia, veio o fiscal do
dinho mais à direita. “Trouxe aqui umas
em Linda-a-Velha. Unicamente com o
de repente. Dos
coisas para ler, ou para não ler…”.
poder da palavra.
seus trinta mil
A plateia aconchega-se no gracejo,
Adelino Gomes tem na mão um dos
habitantes dois
ajeita-se na cadeira e encosta o ouvido
papéis que escolheu do monte de
deles
ao início da história. “Recordo-o de pé,
reportagens, crónicas e entrevistas
trar nesta prosa.
a dominar a redacção”. O cenário era o
de Baptista-Bastos, que guarda co-
Adelino já não
do Diário Popular, em 1966, e Adelino
mo as de nenhum outro autor. No ca-
está sério, com-
Gomes um jovem jornalista que che-
beçalho deste lê-se “Um dia na vida
penetrado; sorri
gava à imprensa e com orgulho se jun-
de Maria Ercília e José Adelino”, pe-
e esclarece que
tava àquilo a que hoje chama “a tribo
ça que ganhou o Prémio Nacional de
as palavras que leu são as de quem
ria, de 17 anos, com companheiro e du-
Mark Kramer não hesitaria em clas-
do BB”. A alcunha denuncia a amizade
Reportagem Gazeta em 1985. Uma fo-
faz a “literatura do jornalismo”. E é
as filhas, ocupou em Março o lusalite
sificar esta reportagem como “jor-
com Baptista-Bastos, que, em noite de
me portuguesa e um remorso rilhado
por isso que todos lá estão.
nº 14 da Rua das Maravilhas. “Vêem?
nalismo narrativo”. Está tudo lá: ce-
vão
en-
“O jornalismo narrativo
é uma vitória para os
leitores, jornalistas e
patrões.”
- Mark Kramer
das
Maravilhas”
bairro e disse que não; no segundo dia,
entusiasma-se,
veio a polícia da Câmara e pôs as cria-
levanta-se,
turas na rua; no terceiro dia, veio o tri-
ras-
ga o plástico que
bunal e obrigou-as a pagar a multa de
ainda envolvia As
7510$00. “Eu tomo partido nisto. Por-
palavras dos ou-
quê? Está aqui um adjectivo que diz tu-
tros, procura a
do: «o alvoroço desentoado». E depois
reportagem. Pá-
os tempos, porque em três tempos li-
gina 36. Ana Ma-
xam a vida de uma pessoa.”
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
16
VERA MOUTINHO
DOSSIER
• MARK KRAMER
Resgatar velhas
ideias
Q
uando era miúdo passava os dias
nalismo narrativo pode ser a solução.
fabetas, pelo contrário.”
não só em Portugal mas também nos
parecida mas diz assim: o que é que
na livraria da mãe. “Era uma
PEDRO ROSA MENDES: “O proble-
ADELINO GOMES: “ Penso que ele
EUA e na Europa. Acho que o interes-
excita o português médio de hoje?”
ALEXANDRA LUCAS COELHO: “O
grande contadora de histórias”, re-
ma – e acho que o Kramer o diagnos-
tem razão: o jornalismo narrativo (is-
se por alguns títulos tem a ver com es-
corda. Dos livros ficou o gosto pela li-
tica muito bem – é que as pessoas se
to é, contar histórias nos jornais, rá-
se encontro entre o leitor e os jornais,
Mark Kramer diz que os jornais não
teratura; da mãe a procura de histó-
afastaram da imprensa, sobretudo da
dios, televisões) é a melhor forma de
que pode passar pelo jornalismo nar-
podem ser só feitos de jornalismo
rias bem contadas. Foi nisso que se
diária, que está praticamente tão su-
chegar próximo dos leitores. E chegar
rativo. O jornalismo precisa de encon-
narrativo. Precisamos de notícias e
lançou nos anos 70, quando começou
perficial como a televisão. O registo
aos leitores/ouvintes/espectadores é
trar novas fórmulas, senão pode en-
é das notícias que extraímos sem-
a publicar histórias sobre a vida ru-
de tempo é nulo, não há recuo, não há
uma condição sine qua non para que
trar pura e simplesmente em falência.
pre a base para uma história. Ami-
ral nos EUA. O diploma em Literatu-
tempo para palavras. (...) E estive três
um jornal/rádio/televisão sobrevivam.”
Se é jornalismo narrativo ou não, não
gos não sei se é a palavra. Mas que
ra e o mestrado em Sociologia acaba-
meses em Belgrado e todos os dias
PAULO MOURA: “Isso já não é tan-
sei. Essas definições académicas…”
o esforço na escrita é o de esten-
ram por servir o jornalismo a que hoje
mandava uma página. O meu tempo
to uma opinião como uma fé (risos),
se dedica e a que chama “jornalismo
de contacto com cada uma das his-
mas eu acredito que possa ser e gos-
“Os jornais devem ter na maioria
der uma ponte, de parar o leitor, de
narrativo”. Foi disso que veio falar a
tórias que eu contava não era nunca
tava que fosse assim. E também gos-
aquilo que actualmente têm. Mas
história, com certeza.”
Portugal, no passado mês de Julho,
superior a um dia. Eu não tinha tem-
tava que isso fosse visto dessa forma
também precisam de ser amigos de
BAPTISTA-BASTOS: “Tem de ser. O
o director do curso de jornalismo nar-
po. O pretexto para o jornal me enviar
por quem tem poder de decisão nos
confiança dos leitores.”
jornalismo tem de ter coração. Como
o deter para lhe poder contar uma
rativo da Fundação Nieman na Univer-
lá não são as pessoas, é a agenda po-
jornais: que os leitores e os editores
FERNANDO DACOSTA: “É uma boa
diz o Mark Kramer e como digo eu há
sidade de Harvard, relançando o velho
lítica. (...)E isso é pobre. Normalmente
começassem a ver o jornalismo nar-
expressão, sem dúvida. Devem criar
40 anos antes dele (risos). Ele veio sa-
debate sobre a relação entre jornalis-
o pretexto também é pobre. Não é na-
rativo como uma mais-valia, um re-
laços de afectuosidade. Quando eu
cudir as coisas. (…) Não acredito nu-
mo e literatura. Às ideias de Mark Kra-
da literário nem é nada narrativo. Pa-
curso a incentivar. Não é converter
comecei no jornalismo, muito antes
ma literatura ou num jornalismo que
mer juntam-se agora os comentários
ra mim isso é evidente, para o Kramer
os jornais todos em “poema” (risos),
do 25 de Abril, nós fazíamos as agen-
seja insultuoso ou que ignore as pes-
de alguns dos protagonistas do jorna-
também, mas parece que não é evi-
mas ter a noção de que isso pode ser
das e escolhíamos os temas guiados
soas. Que ignore a condição humana.
lismo português.
dente para a maior parte dos edito-
uma forma de chegar a mais leitores;
por esta frase: o que é que preocu-
Nós somos nigerianos, norte-ameri-
res. O facto é que os números indicam
e não é só chegar: é fidelizar o leitor”.
pa o português médio de hoje? E era a
canos, mexicanos, espanhóis, nós so-
“Há uma crise no jornalismo escrito
que os jornais perdem leitores. E não é
CÁCERES MONTEIRO: “Essa crise
partir daí que trabalhávamos. Hoje, a
mos a condição humana. O jornalis-
em várias partes do mundo.” E o jor-
porque as pessoas estão a ficar anal-
existe de uma forma muito profunda,
frase não é essa. Hoje, a frase é muito
mo é fundamentalmente isso.” •
nário, personagens, voz interpretati-
tre jornalismo e literatura. Segundo o
Almeida, Eça de Queirós ou Ramalho
mudança: “Se uma pessoa apenas uti-
Baptista, para muitos um achado lite-
va do narrador. Nas conferências que
professor e jornalista, cujos trabalhos
Ortigão. “Sabe o que é que dizia o Ale-
liza os factos, os chamados elemen-
rário. Uma longa nota de rodapé expli-
faz pelos Estados Unidos da Améri-
são apontados como modelo deste tipo
xandre Herculano? «Sou da imprensa.
tos objectivos, apenas chega ao exte-
ca que o autor encontrou aquela carta
ca e Europa, com o apoio da Universi-
de jornalismo, os EUA vivem hoje um
Tudo o que sou a ela lho devo»”, cita
rior dos acontecimentos, das pessoas,
através da descendente da bisneta de
dade de Harvard, onde dirige o curso
“movimento não oficial do jornalismo
Baptista-Bastos. A frase soa-lhe bem.
dos fenómenos. Se quer entrar den-
uma senhora que vivia em Tete e que
de Jornalismo Narrativo da Fundação
narrativo”, que retoma o New Journa-
Fernando Dacosta veio, mais tarde,
tro dos acontecimentos, das pessoas
era descendente do médico que tratou
o escravo. “Toda a gente diz que é das
Nieman, Kramer fala de um jornalis-
lism dos anos 60, onde se destacaram
“engrossar as fileiras”, defendendo
e dos fenómenos, tem de usar outro ti-
mo que é capaz de revelar a comple-
nomes como Tom Wolfe ou Truman
que “o jornalismo não é uma técnica,
po de instrumentos: a poesia, a criati-
melhores coisas. Mas é inventado. Só
xidade de certas histórias pelo recur-
Capote. Mark Kramer usa a expressão
é uma arte que se serve de técnicas.”
vidade, até ficção.”
que as pessoas pensam que não é. Re-
so a técnicas da literatura. E vai mais
“jornalismo narrativo”, mas reconhece
Com mais de vinte obras publicadas e
No palco, a his-
“Há uma arte do jornalismo. Mas isso não
quer dizer que o jornalismo seja uma arte”.
- Alexandra L. Coelho
longe: o jornalismo narrativo pode ser
que todos os nomes (literário, criativo,
um currículo como jornalista que in-
tória
uma solução para a crise dos jornais
humano) são apenas “diferentes taças
clui passagem por títulos como o Di-
De um lado, na
hoje em dia. Ao afastamento dos leito-
para a mesma sopa”. E de que é feita
ário de Lisboa, o Diário de Notícias, o
plateia,
res, os jornais contrapõem mais ima-
essa sopa? “É feita de histórias sobre
Público e a Visão, Fernando Dacosta
algumas das fi-
gens, mais cor, artigos mais curtos,
pessoas reais, pessoas bem escolhidas
é uma referência na narrativa jorna-
guras da velha
celebridades e desporto. Mas isso não
com algum simbolismo sobre o que re-
lística. Ainda assim, hesita em acei-
geração do jor-
tem funcionado. A cura está, para
almente se passa no mundo.”
tar a designação “jornalismo literá-
nalismo
journa-
rio”, porque considera logo à partida
guês. Do outro
lism foi feito pe-
que o jornalismo ou é literário ou não
lado, no palco, Adelino Gomes fala
no sentido ficcional não está no con-
lo Garrett!”. Em
é jornalismo. “Concordo com criativi-
de uma nova geração: Alexandra Lu-
teúdo do texto mas está na expectati-
Mark
Kramer,
numa
aborda-
gem
mais
timista,
inmais
“amiga”, longe da
voz burocrática e
quase militar da
maioria dos jor-
“O jornalismo não é
uma técnica, é uma arte que se serve de técnicas.”
- Fernando Dacosta
nais. E garante:
“O
new
continua.
lacionam-se de
estão
portu-
uma forma jornalística com o
texto”, reconhece Pedro Rosa
Mendes. “Às vezes a diferença
entre o jornalismo e o literário
Portugal a dis-
dade. Com jornalismo criativo e huma-
cas Coelho, Rui Cardoso Martins, Pe-
va do leitor, está no embrulho”, por-
cussão não é no-
nista”. Acima de tudo, sabe por experi-
dro Rosa Mendes. “O que é a 20. se não
que quem lê um jornal espera factos;
quem lê um livro, ficção. Mas o jorna-
va. As Viagens na
ência própria que o rótulo “jornalismo
uma «Fernão Mendes Pinta» reporta-
Minha Terra tem
literário” pode ser demasiado pesado:
gem?”. A analogia é entre a Peregri-
lismo literário baralha o jogo: trabalha
tudo: ficção, po-
“Eu já há mais de 30 ou 40 anos que an-
nação, do autor do século XVI, e o livro
os factos com os recursos da ficção.
do com esta ladainha, e fui logo rotu-
de Pedro Rosa Mendes, ambas “litera-
Deslizam como bichos rente aos mu-
esia,
informa-
“É uma vitória para os leitores, que lêem
ção”. Baptista-Bastos recorda ainda
lado de jornalista literato, que é uma
tura de viagens” que partindo do re-
ros. Vêm em fila, das suas celas para
coisas apelativas; é uma vitória para os
que há 40 anos era o único a reconhe-
maneira de depreciar a pessoa: «É um
al se confundem com o imaginário do
a capela. O jornalista Paulo Moura co-
jornalistas, que escrevem histórias in-
cer a ligação entre jornalismo e lite-
literato»”. Crítico do jornalismo actual,
autor. O jornalista confessa: “Deu-me
nhece as regras desse jogo, falando da
teressantes; é uma vitória para os pa-
ratura. Lia-a na história da literatura
acredita que a imprensa se deve reen-
prazer espalhar algumas mentiras ao
utilização de ferramentas da literatu-
trões, que têm mais lucro”. Mark Kra-
portuguesa, em nomes como Fernão
contrar com o leitor, que se deve “re-
leitor”. A meio do livro uma carta de
ra e não criação. Surgem seis de um
mer resgata, assim, o velho debate en-
Lopes, Pêro Vaz de Caminha, Fialho de
humanizar”, e para isso é preciso uma
amor escrita pelo escravo Pedro João
lado, seis de outro do grande claus-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
DOSSIER
17
NAZARET NASCIMENTO E VERA MOUTINHO
tro, um após outro, em silêncio, cabeça baixa, capuz a cobrir a cabeça, todos na segunda metade da vida. Na
reportagem “O segredo da Cartuxa”,
escrita para a Pública em 2001, premiada pelo Clube Português da Imprensa, o literário torna-se cinematográfico, pois para além das personagens, dos cenários do convento da
Cartuxa, em Évora, há a expectativa.
Um segredo que um dos monges quer
revelar e que provoca uma tensão ao
longo de todo o texto, para se desvendar apenas no final. “A história no fundo estava na nossa cabeça (o que será
o segredo?), porque para eles não se
passou nada assim. Construiu-se um
enredo e um suspense para manter o
leitor preso até ao fim, mas não como
um truque. Quis ilustrar como devemos respeitá-los e explicar porque é
que eles estão ali. Isso também é missão do jornalismo literário: dar sentido às coisas para além do imediato”.
Quando falamos num cenário do jornalismo literário em Portugal, Paulo Moura é peremptório: “Na Europa
há muita confusão. Em Portugal nem
se fala. Lembro-me muitas vezes de
no Público colegas meus me dizerem:
«Escreve tu sobre isso, tu que gostas
de ficcionar um bocado». Isso é a coisa
mais ofensiva que se pode dizer a um
jornalista!”. Para Pedro Rosa Mendes
simplesmente não há cenário porque
não há mercado: “O jornalismo narrativo precisa de respirar em tempo, em
espaço impresso e em meios de financiamento. Os media portugueses não
permitem nada disso”.
Cáceres Monteiro, director da revista Visão, concorda com a ideia de Mark Kramer de que um jornal não pode
sustentar-se apenas de “jornalismo
de histórias”. A maioria dos jornalis-
• PEDRO ROSA MENDES
“O meu olhar de escritor será
sempre o de um repórter.”
E
stava previsto ser advogado mas
depois da escrita do livro continuei
tar uma determinada realidade, que
casa para ir buscar comida e um sni-
per matá-lo e depois ser comida pe-
o desinteresse pelo curso e a falta
a ser jornalista. Não é uma pessoa
eu tinha coberto como repórter, foi
de dinheiro para comprar discos em-
diferente a escrever. O escritor está
bom, porque de repente dei-me a li-
los cães. Isso que o narrador conta,
purraram-no para o primeiro traba-
sempre lá. As duas pessoas que fi-
berdade de ter todos os recursos da
o horror absoluto, foi vivido por mi-
cam outra coisa: “Hoje as pessoas não
lho como jornalista, no Jornal de Coim-
zeram a crítica à Baía dos Tigres no
escrita fora do jornal. E foi essa a di-
lhares de pessoas lá. E há uma ver-
procuram o jornalismo como discipli-
bra. Foi recrutado para o Público e for-
Público foram o Adelino Gomes e a
ferença no meu trabalho: foi introdu-
dade jornalística aí; essa realidade
tas também concorda. Contudo, Cáceres Monteiro acha que os leitores bus-
na da literatura. Marginalmente, is-
mou-se ao mesmo tempo que o jornal.
Alexandra Lucas Coelho e ambos di-
zir mais escritor no jornalista. (...) Há
mais brutal aconteceu, só que não é
so pode estar lá, mas as pessoas pro-
Conheceu África como correspondente
ziam a mesma coisa: este livro é ob-
um capítulo quase no fim do livro so-
ninguém verdadeiro. E eu, como jor-
curam a explicação da história e isso
internacional e como freelancer, mas
viamente um livro de um jornalista;
bre o Cuíto, que é o mais violento e
nalista, não poderia escrever o Cuíto
por vezes pouco tem a ver com a lite-
foi com a viagem que fez sem cartei-
não poderia ter sido escrito por uma
que é escrito por um narrador que
para o jornal Público dessa manei-
ratura. E depois há a questão do tem-
ra de jornalista e com uma licença sem
pessoa que não fosse um repórter. E
não existe; é alguém do Cuíto que vive
ra. Mas como escritor e num livro as-
po; aquilo tem de ser explicado em tão
vencimento que descobriu os cheiros,
o meu olhar de escritor será sempre
toda a guerra, não é ninguém especi-
sim, a que eu não chamo reportagem,
poucas horas”... Ainda assim, realça
os sabores, os sons de um território
de um repórter.
ficamente. Mas esse narrador conta
posso. Eu recolho, ouço e depois
que não há nada melhor que uma re-
marcado pela guerra. A viagem de An-
Baía dos Tigres é então um livro-
coisas, todas verdade, que me foram
construo um narrador que é inventa-
portagem bem construída, com pesso-
gola a Moçambique por terra, durante
reportagem ou um romance?
contadas e que eu sei que acontece-
do mas que conta coisas verdadeiras.
as “bem recortadas”, com ambientes
cerca de 4 meses, está registada no li-
É curioso porque na 1ª edição havia por
ram – cenas de canibalismo, ou de al-
E o que é que é isto? É reportagem?
bem descritos, onde a informação não
vro Baía dos Tigres, publicado em 1999
baixo do título um rótulo, que era “Ro-
guém estar à janela e, durante o cer-
É literatura? É ficção? É tudo ao mes-
seja descurada.
co, ver uma pessoa da família sair de
mo tempo e não é nada. •
e que recebeu o Prémio Pen Clube de
mance”, que foi posto pelo editor da
“O Baptista-Bastos tem sido a voz dos
Romance. Na contracapa lê-se “Um li-
Dom Quixote, Nelson de Matos. Isso de-
que não têm voz e dos que, tendo-a,
vro capaz de renovar a chamada litera-
sapareceu a partir da 2ª edição, porque
não a sabem usar”. Pouco depois de
tura de viagens. Neste caso, grande li-
era uma mentira. É uma mentira não
lançado o elogio, o veterano jornalista
teratura”. Escrito por um jornalista.
estar cá nada, mas era uma mentira…
do Público arrisca divergir do homena-
Neste momento, considera-se es-
Então o que é?
geado da noite, pois sabe que ele ain-
critor ou jornalista?
Também tem romance, tem ficção,
da terá hipótese do contraditório. Lem-
Em Portugal, o escritor tem a co-
mais do que as pessoas pensam. Há
brando a célebre frase de Baptista-
notação em primeiro lugar de ro-
pessoas, aliás, que não lendo a Baía
Bastos “o jornalismo é uma disciplina
mancista; não se pensa que a es-
dos Tigres acham que é a recolha
superior da literatura”, Adelino Gomes
crita pode ser escrever para jornais
do que fiz antes para o Público. Não
explica que prefere falar em literatura
ou escrever não-ficção para além
há uma linha no livro, em 400 pági-
jornalística, “e essa só quando a notí-
de ficção. Há essa confusão. Para
nas, que tenha sido publicada antes
cia, a reportagem, a crónica se liberta-
mim, a confusão surgiu depois, com
noutro sítio. (...) O exercício de fazer
rem da lei do efémero e conseguirem
a Baía dos Tigres: era jornalista mas
a Baía dos Tigres e estar fora da car-
permanecer na memória do leitor mui-
seria escritor? (...) Antes, durante e
teira profissional de jornalista a tra-
to para além das canónicas 24 horas”.
VERA MOUTINHO
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
18
DOSSIER
VERA MOUTINHO
• FERNANDO DACOSTA
“O jornalismo já morreu”
Mas pode ser ressuscitado
É
• “O jornalismo tem de ter coração” - Baptista Bastos
Mas as opiniões contrárias estendem-
muito empobrecedora a visão
de e descaramento pelos respon-
que muitos têm de que o jorna-
sáveis desta geringonça monstru-
lismo se reduz sobretudo à notícia,
osa que é a comunicação social,
retirando-lhe essa capacidade que
que eu não sei o que é. O jorna-
tem de criação, de ser uma discipli-
lismo sei o que é, mas o jornalis-
na nobre da literatura, como é o ro-
mo já morreu. Cedeu lugar a es-
mance, o conto, o teatro, a história,
te guarda-chuva que foi inventado
o ensaio. É uma faceta da literatura:
pelos poderes instituídos para de-
pelo menos eu defendo esse ponto
baixo dele cometerem todo o tipo
de vista e estou muito bem acompa-
de manipulações, de corrupções,
nhado. Basta ver ao longo dos sécu-
de interesses, de tropelias. E aí a
los os grandes escritores que povo-
preocupação deles foi diminuir o
avam as redacções dos jornais. Só
papel e a importância do jornalis-
hoje é que eles foram corridos.
ta, que é a base. (…) Os jornalistas
A partir da década de 90 obser-
nas redacções foram transforma-
vou-se uma coisa extraordinária:
dos em engrenagens de uma má-
todos os jornalistas com mais de
quina que normalmente é coman-
40 anos começaram a ser pos-
dada por uma caterva de edito-
tos nas prateleiras porque esta-
res e editores-executivos, que são
vam velhos. Eu acho isso um pou-
normalmente uns indivíduos car-
co estranho, porque se fosse para
reiristas, que nunca escreveram
andar a carregar sacas de batatas
uma linha. Como consequência,
o público está a afastar-se, es-
na crónica, na reportagem, na simples
reza e intensidade. “É tudo o que pe-
dentro da redacção eu percebia
se também à objectividade. Para Adeli-
notícia, nunca deixando o jornalista de
ço numa história.”
que tinha a sua lógica. Agora, para
tá a deixar de comprar jornais. E
no Gomes, este é ainda hoje um concei-
ser um artista. Alexandra Lucas Coe-
Histórias em que a realidade, escrita
exercer um trabalho que vive so-
isso não me admira nada. Só me
to central da profissão, porque os lei-
lho é cautelosa: “O jornalista não é um
com todos os sentidos, se afirme sem-
bretudo da memória, da experiên-
surpreende como é que se ven-
pre como mais fértil do que qualquer
cia, da vivência, do conhecimento,
dem ainda os jornais que se ven-
tores
esperam
sempre ouvir os
factos tal como
são. “É aí que entra também o jornalismo
narra-
tivo, tal como o
new journalism,
pois
entendo-o
“Eu já há mais de 30 ou 40 anos que
ando com esta ladainha, e fui logo
rotulado de jornalista literato, que
é uma maneira de depreciar a pessoa: “É um literato”.
- Fernando Dacosta
ficção. Ainda que seja preciso tempo,
acho isso muito surpreendente.
dem, como é que há tantos ton-
coisa rara no jornalismo. Ainda que
Esta atitude foi devastadora por-
tos a comprar aquela bodega dis-
seja preciso estar muito perto, per-
que é precisamente o cruzamen-
farçada de jornal ou revista, com
tíssimo, “a cheirar o outro”, nas pa-
to intergeracional que enrique-
negociatas por trás e a transformar-se apenas num negócio. A
lavras de Adelino Gomes, e isso tra-
ce, quer os mais velhos, com as
ga dilemas éticos ao jornalista. Com
ideias e vitalidade dos mais novos,
função da imprensa, que era a de
o aumento da proximidade com o ou-
quer os mais novos, com a experi-
estar do lado do público, do lado
tro, crescem proporcionalmente ga-
ência dos mais velhos. Isto está a
das pessoas que não têm voz pa-
nhos e perigos: adquirem-se as fer-
empobrecer o ambiente existente
ra lhes dar voz, ajudar a resolver
nimo de arbítrio
ramentas para escrever personagens
nas redacções. É uma árvore que
problemas, perdeu-se. E como vai
mas de «esfor-
vivas e corre-se o risco de que o outro
está a estiolar: muito farfalhuda,
por este caminho, como é eviden-
compreenda a relação entre jornalis-
com estas tecnologias, estas in-
te, vai tudo ao fundo. Não irá porque eu acredito – sou um optimis-
não como sinó-
ço explicativo» para o qual a subjectivi-
criador. Poderá fazer o seu trabalho
dade pode funcionar como auxiliar pre-
com arte, exceder-se no cuidado com
ta e fonte como a de dois amigos. Mas
fografias, estas coisas muito bo-
cioso”. Baptista-Bastos é um dos que já
a verificação de elementos, com a pro-
Fernando Dacosta tranquiliza: “A re-
nitas e cores, que são de facto ali-
ta a longo prazo – que as pessoas
enterraram a objectividade, preterindo-
fundidade de investigação, com a ar-
gra número um é uma certa humilda-
ciantes e sugestivas, mas depois
vão reagir. Vão dizer: “Basta! Não
a a um “tomar partido” na escrita. Sen-
gúcia na captação de sinais, com a es-
de e respeito pelo outro”. “A procura
o conteúdo... Aliás, a palavra con-
queremos este tipo de taberni-
tado sozinho no palco escuro, garrafa
crita. Ou seja, há uma arte do jorna-
e o encontro do outro”, diria Baptista-
teúdo generalizou-se e as coisas
ces”, e vamos começar a exigir
de água no chão, voz rouca, Baptista-
lismo. Mas isso não quer dizer que o
Bastos, é a tarefa de quem escreve, e
de criação passaram a ser mer-
outra vez um jornalismo que seja
dirigido às pessoas, que seja cria-
Bastos faz questão de lembrar o tra-
jornalismo seja uma arte”. Para além
aí o peso dos princípios da “distancia-
cadorias, conteúdos. Esta pala-
balho de uma jornalista. Uns dias an-
disso, distingue bem o trabalho de um
ção” e “objectividade” jornalística não
vra foi realmente assumida e é
tivo e que levante os problemas
tes, falava-nos dela assim: “A Alexan-
jornalista de o de um escritor de fic-
se pode sobrepor ao sopro humano. É
pronunciada com todo o à-vonta-
que nos estão a afligir. •
dra Lucas Coelho é uma das grandes
ção, acima de tu-
disso que é feito
jornalistas europeias. Ela toma partido
do porque os fins
o jornalismo li-
– só quem não quer ver. Toma e de que
são
completa-
maneira, e ainda bem que toma. Mas o
mente distintos.
que é isto? Ela é indiferente à dor hu-
“O escritor cria
mana, à tragédia?”.
um mundo, é li-
Alexandra Lucas Coelho é mais uma
vre e soberano.
das operárias das “histórias com tem-
O jornalista res-
po, espaço, escapando ao padrão do
ponde perante o
lead comum”. A ideia vem por e-mail,
seu órgão de co-
de Jerusalém, onde a jornalista esta-
municação, o seu
rá por seis meses a trabalhar para o
editor, os seus
jornal Público. De lá vêm não só re-
leitores. São es-
“Às vezes a diferença
entre o jornalístico e
o literário no sentido ficcional não está
no conteúdo do texto
mas está na expectativa do leitor, está no
embrulho”
- Pedro Rosa Mendes
terário: da palavra cuidada, da
frase
melódica,
do pormenor humano. E no final,
pousadas
lado
a lado as canetas de jornalista e artista, existe sempre uma
resposta
para
portagens mas também notícias que
ses os constran-
traçam a linha do jornalismo literário,
gimentos, o que
a questão que
a certa altura a
reiterando a ideia de Mark Kramer de
não quer dizer
Ana Maria, na
que o alcance do jornalismo literário
que não se deva e não se consiga pen-
“Rua das Maravilhas”, lançou a Baptis-
não é limitado a um género jornalísti-
sar em novas formas de contar as coi-
ta-Bastos: “Mas então diga-me lá, es-
co: pode ser trabalhado na entrevista,
sas”. Contá-las com veracidade, cla-
crever serve para quê?” •
VERA MOUTINHO
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
DOSSIER
19
SÃO SOUSA
• PEDRO SENA NUNES
Documentário
O tempo das coisas
AS PERSONAGENS, OS CENÁRIOS, OS ARGUMENTOS QUE DÃO VIDA AOS
DOCUMENTÁRIOS SÃO VERDADEIROS. SÃO REALIDADES CONTADAS
PARA ALÉM DO IMEDIATO DA REPORTAGEM TELEVISIVA, COM ARTE, MAS
SEM FICÇÃO. O REALIZADOR E PROFESSOR PEDRO SENA NUNES FALA
DESTE OLHAR SOBRE O REAL, NO MÊS EM QUE SE ASSISTE AO PRINCIPAL FESTIVAL DE CINEMA DOCUMENTAL EM PORTUGAL, O DOC LISBOA.
SÃO SOUSA
E SÍLVIA DIAS
A
envolver a sala, cortinas pretas. A
tes. Que eu tenha conhecimento, não
A televisão não é o meio ideal para a
tir um fenómeno de contágio, uma do-
vigiá-la, câmaras espalhadas jun-
há nenhum filme nem documentário
exibição de documentários?
ença saudável, daquelas que se passa
E isso ajuda a perceber melhor as
to às paredes. Do tecto, projectores que
portugueses que tenham entrado num
Tenho dúvidas sobre se é o meio ide-
para toda a gente. As pessoas vão fi-
situações?
permanecem apagados. É no estúdio da
campeonato dessa dimensão.
al. Um documentário, enquanto ob-
cando encantadas.
As pessoas sentem-se mais confortá-
elho para ir para o ar.
ETIC que Pedro Sena Nunes dispõe três
Mas há mais interesse pela realidade
jecto, tem uma pulsação própria, uma
O facto de, no cinema documental, se
veis com a situação. Sinto fascínio em
cadeiras em círculo para falar de docu-
do que pela ficção?
duração. Eu pensei naquilo, pesquisei,
apresentar a realidade de uma for-
estar com as pessoas e ouvi-las, trazendo coisas cá para fora que, de outra for-
mentário. Em 1992, quando terminou o
Acho que as pessoas sempre estive-
preparei, gravei, editei e, no final, é
ma mais artística permite aprofundar
curso de Cinema, o festival da Malapos-
ram interessadas pela realidade, mas
um corpo. Mas a televisão obriga-me
questões que, normalmente, são tra-
ma, não conheceríamos. Não considero
ta era o único a divulgar os documentá-
não são elas que decidem o que é que
ao corte, por uma questão de timin-
tadas mais superficialmente?
o documentário do Michael Moore nada
rios guardados nos sótãos dos realiza-
querem ver. Colaboram quando per-
gs. Houve um programa, na RTP 2, que
O tom mais artístico a que as pesso-
de extraordinário. Tem uma manipula-
dores. Treze anos depois, Doc Lisboa,
cebem que há qualquer coisa que lhes
potenciou a protecção dos documen-
as se referem concentra-se na relação
ção muito exposta. Tem um tom abusi-
Doc’s Kingdom, em Serpa, e Encon-
é atirada e podem reagir. Eu acredito
tários portugueses. Nesse sentido, pa-
que se estabelece entre o assunto re-
vo com o qual, não sendo bom nem mau,
tros de Viana catapultam o cinema do-
que, se as pessoas pudessem esco-
rece-me um bom serviço público. Esse
tratado e a pessoa que o retrata. E es-
não me identifico muito. Há ali uma zona
cumental para a grande tela. Mas a di-
lher, neste momento se via muito mais
programa teve uma adesão muito boa.
sa relação privilegia essencialmente o
de tirinhos de uns para os outros, há só
vulgação destes filmes esgota-se no cir-
documentário do que o que se vê.
O público não é um grupo de pesso-
tempo: o tempo de preparação, de vi-
um lado a ser ouvido. E acho que o docu-
cuito festivaleiro. “Acredito que, se as
Acha que isso pode acontecer, agora
as tontas. As pessoas sabem perfeita-
ver e conviver com a situação das pes-
mentário não pode ser isso.
pessoas pudessem escolher, neste mo-
que o Nimas decidiu deixar o cinema
mente distinguir aquilo de que gostam
soas, o tempo de as ouvir, de as com-
Pode haver uma atitude definida na
mento, se via muito mais documentário
francês e optou pela exibição de do-
daquilo de que não gostam.
preender. Não encontro nenhuma defi-
realização de um documentário? “Eu
do que se vê”, assinala Sena Nunes, que
cumentários?
Para a divulgação destes trabalhos,
nição para o documentário, mas se me
sou a favor ou contra isto”?
admite que “as pessoas sempre estive-
Eu acho que sim, desde que seja feita
festivais como o DocLisboa são es-
aproximasse de alguma teria sempre a
Claro. E mesmo quando não se no-
ram interessadas pela realidade”. E pa-
uma divulgação séria e concertada, de
senciais. E este é, de todos os festi-
ver com o tempo das coisas, o tempo de
ta, espero, pelo menos, que fique es-
ra o realizador que encontra uma histó-
maneira a que as pessoas saibam que
vais de cinema documental, aquele
estar. Passa por essa ideia da partilha.
boçada. Não sou um activista políti-
ria empolgante, que tem o tempo para
aquilo está a acontecer. Sempre que eu
que é mais conhecido. Porquê?
Até pode haver realizadores que não
co, mas reconheço que é um assunto
ouvir, para sentir a história, que pode ti-
encontro algum espectador que assis-
Primeiro, porque acabou o festival da
são grandes comunicadores, mas têm
que me preocupa. Exponho as situa-
rar da escuridão um tema que o preocu-
tiu a um documentário sinto uma sen-
Malaposta, onde estava concentrado
disponibilidade para ouvir, enquanto
ções sob um ponto de vista que per-
pa, “é possível ficcionar, mas fica sem-
sação agradável no ar. Há qualquer coisa
o documentário. E, depois, porque a
há situações em que isso não aconte-
mite perceber qual é o meu.
pre aquele sabor…”.
de confiança, qualquer coisa que lhes foi
primeira edição do Doc Lisboa foi no
ce: há coisas a arder e alguém a insis-
A ideia de uma intervenção cívica...
tir e a perseguir respostas. São coisas
Sim, a ideia de um esclarecimento é
que têm um tom ob-
fundamental. Ter uma identidade pró-
sessivo, doentio até, e
pria, na qual eu me reconheça.
Porque é que tem aumentado o inte-
mostrado, que foi partilhado, que traz um
CCB, que é um centro cultural por ex-
resse pelo documentário?
vínculo. Não estou a ver o grande herói
celência. Come-
Se medirmos isto num plano interna-
americano remetido para uma historiazi-
çou
cional, são abordados temas que, glo-
nha. Há uma identificação diferente: po-
muito
balmente, são interessantes. Os tra-
deria ser facilmente aquela pessoa. Não
Depois, a Cultur-
num
sítio
especial.
balhos de Agnés Varda, Michael Mo-
estou no registo de espectáculo propria-
gest, que é uma
ore, Wim Wenders, Nicolas Philibert,
mente dito. E depois existe um cansaço
referência inter-
são exemplos concretos. As grandes
imenso da televisão, daqueles formatos
nacional, acaba
distribuidoras mostram-se interessa-
ditos documentais. O documentário na
das por este tipo de abordagem, mas
sabendo que do ponto de vista da promoção e do marketing há um nome
precisam de ver, de respirar outras coi-
sonante, há um tema interessante. E,
portanto, faz sentido apostar. No caso nacional, os caminhos são diferen-
“Não considero o
documentário do
Michael Moore nada
de extraordinário.”
que ficam por ali: é o
Isso não se consegue com ficção?
instantâneo, é a per-
Cada projecto é um projecto. Mas no
seguição, a insistên-
documentário há algo de mais credí-
cia… O documentário
vel, mais sensível. As pessoas fazem
não é isso: represen-
as pausas onde fazem, respiram onde
por herdar o festival. Além disso, ao
ta uma persistência, uma resistência e
respiram, dizem o que dizem. O docu-
televisão tem um formato, uma duração,
haver uma equipa que organiza tão
não uma insistência. Há um enquadra-
mentário nasce ao contrário da ficção:
um estilo. Isso quer dizer que as pessoas
bem este festival e que consegue fa-
mento deontológico por trás que tem
vemos uma situação e pensamos “era
zer uma boa promoção, mesmo a ní-
de ser equilibrado. E isso traz uma vi-
nisto que eu devia pegar”. É possível
sas. As mesmas coisas, de um ponto de
vel internacional, facilmente se chega
são mais contemplativa e com ela virá
ficcionar, mas fica sempre aquele sa-
vista menos viciado, tanto a nível técnico,
a números poderosos, a números fi-
talvez esse tom mais artístico, porque
bor… a ficção, para mim, não faz senti-
como estético e, mais ainda, narrativo.
xos de espectadores. Acaba por exis-
as coisas não são feitas em cima do jo-
do: as coisas são assim e pronto! •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
ENSINO
20
• PRAXES
SISTEMAS DE ENSINO
por Irina Melo e Patrícia Silva
Pintados de fresco
O sonho finlandês
E
O CHEIRO A TINTA, OS GRITOS HISTÉRICOS E AS VOZES
pria ditadura. A crise estudantil de 1969
ROUCAS INVADEM A CIDADE. É ALTURA DAS PRAXES
xistas e os estudantes mais politizados,
provocou uma rara união entre os pra-
m 2003, os alunos finlande-
Desde a Segunda Guerra Mundial
ses alcançaram uma façanha:
que este país nórdico apostou na
o primeiro lugar no estudo PI-
educação como o melhor instru-
SA para a educação. O estudo in-
mento para alcançar a prosperida-
ternacional, da responsabilidade
de, tendo introduzido um sistema
da Organização para a Coopera-
gratuito, de forma a proporcionar
que substituíram as actividades pelo
ACADÉMICAS. AMADAS POR UNS, ODIADAS POR OUTROS,
“luto académico”, em forma de protesto.
TODOS OS ANOS ELAS SE REPETEM. SIMBOLIZAM A NOVA
grupo de veteranos volta a bater-se pe-
VIDA DAQUELES QUE INICIAM UM FUTURO.
dição e funda a “Ordem Praxe e Acade-
Quatro anos depois do 25 de Abril, um
lo fim do luto e pela recuperação da tra-
ção e Desenvolvimento Económi-
igualdade de oportunidades e de-
mia”.1979 é, pois, o ano do regresso da
co (OCDE), avalia de três em três
sincentivar o abandono precoce.
queima das fitas e das praxes.
anos as capacidades dos alunos
Os resultados estão à vista: neste
de 15 anos nas áreas da matemá-
momento, apenas 10% dos alunos
tica, leitura e ciências. Os finlan-
saem da escola com o 9º ano ou
deses foram considerados os me-
menos, enquanto em Portugal os
lhores de entre os 41 países estu-
valores atingem os 46%.
dados. Depois de em 2000 terem
Para além da escolaridade obri-
conseguido o topo
da tabela na leitura, ocupam actualmente o primeiro
lugar nas três áreas. Na matemática
e nas ciências, os
O Estado financia totalmente o ensino até ao 9º ano e não
existem propinas, nem mesmo no superior.
nórdicos passaram mesmo à fren-
João Teixeira Lopes, sociólogo e proINÊS HENRIQUES
fessor da Faculdade de Letras da Uni-
E TÂNIA REIS ALVES
N
versidade do Porto, considera a massi-
ão há cadeiras que cheguem para
to de vista…
ficação do ensino superior, iniciada nos
todos os doutores e doutos-vete-
Ali, como em tantas outras comissões
anos 80, a principal responsável pelo
ranos que disputam um lugar senta-
de praxe e faculdades, há uma hierar-
recente apego às tradições académi-
do na pequena sala de reuniões da As-
quia mais ou menos clara entre os es-
cas. Para o sociólogo, a entrada no en-
sociação de Estudantes (AE) da Es-
tudantes. O vértice superior da pirâ-
sino superior “é a prova visível de um
cola Superior de Comunicação Social
mide é ocupado por quem frequenta
percurso de ascensão social”, que os
(ESCS). Os corpos dourados pelo sol
a escola há mais tempo, a base pelos
estudantes têm necessidade de exi-
das despreocupações estudantis pa-
alunos do primeiro ano, os caloiros. É
bir “da forma mais ruidosa e exuberan-
recem ter abdicado de umas horas de
essa mensagem
praia nesta manhã de fim de Verão, e
que
gatória gratuita, o governo inves-
trocaram a capa e a batina pelos cal-
transmitir
é
preciso
aos
te dos países da high-tech: Japão
te fortemente no ensino superior:
ções e chinelos de dedo. É que a tra-
novatos desde o
e Coreia do Sul.
os gastos por cada universitário
dição pesa e o tempo ainda é de ca-
primeiro dia.
Para os peritos, a cultura das fa-
aproximam-se dos 6.800 euros, o
lor. “Bem-vindos à Comissão de Praxe
As praxes aca-
mílias finlandesas é responsável
dobro do dispendido por Portugal.
2005-2006. Quem é que daqui tem três
démicas
foram
pelo bom desempenho dos jovens
A permanência dos estudantes na
ou mais matrículas?” Levantam-se
sempre
uma
na leitura e na escrita, o que não
universidade é facilitada pela con-
braços em sinal de resposta. “Alguém
marca da Univer-
será estranho num país em que
cessão de bolsas e subsídios de
daqui não foi praxado? Não, eu praxei-
sidade de Coim-
te possível”, atra-
“Os caloiros são caloiros e os veteranos são
veteranos. Não há beijinhos nem sorrisinhos.
Há uma coisa que é preciso perceber que é a
hierarquia.”
- Cláudia Soeiro
vés de rituais como as praxes, o
cortejo ou a queima das fitas. Ao
mesmo
tempo,
existe, para João
Teixeira
uma
Lopes,
“profunda
frustração” e in-
os níveis de literacia atingem aos
alojamento. Existe ainda um siste-
vos a todos!”, ironiza Cláudia.
bra, onde come-
100%. Já o sucesso na matemáti-
ma de empréstimos que são con-
João frequenta o terceiro ano e parece
çaram a ganhar
ca e nas ciências, duas áreas que
cedidos pelos bancos e assegu-
ainda não ter entendido bem o funciona-
força no século
provocam à maioria dos outros
rados pelo Estado, que fica como
mento das coisas. “Só lhe falta dar bei-
XVI sob o nome de “investidas”. Algu-
e pessoal do estudante, que podem tra-
países “dores de cabeça”, deve-se
fiador. Depois de terminados os
jinhos aos caloiros.”, repreende Cláudia.
mas das duras regras coimbrãs, como o
duzir-se “na agressividade, cada vez
ao profissionalismo dos professo-
estudos, o aluno terá de reembol-
“Os caloiros são caloiros e os veteranos
facto de os estudantes não poderem sair
mais notória, que os rituais da praxe
res, que adequam os exercícios às
sar a banca até um período igual
são veteranos. Não há beijinhos nem
à rua depois das sete da tarde ou de te-
académica ostentam”. Ricardo Morei-
capacidades dos alunos, ao mes-
ao dobro da duração do curso. Por
sorrisinhos. Há uma coisa que é pre-
rem uma jurisdição especial, conhecida
ra, do Movimento Anti-Tradição Aca-
mo tempo que os conscienciali-
tudo isto, e apesar de a lei não o
ciso perceber: que há uma hierarquia.”
como “foro académico”, nunca chega-
démica (MATA), vai mais além. Afir-
zam para a importância destas
proibir, quase não existem esco-
Edgar diz que só entrou este ano para
ram, no entanto, a implantar-se em ci-
ma que os estudantes universitários
matérias. Outro contributo vem
las privadas.
a Comissão porque só agora sente que
dades como Lisboa e Porto. Muitas ve-
constituem uma espécie de “elite virtual que possui roupas, comportamen-
certeza em relação à futura situação profissional
de um corpo docente estável, es-
Apesar do cenário idílico em ter-
tem direito a praxar: “No 2º ano ainda
zes posta em causa ou até proibida pela
colhido por cada estabelecimento
mos de educação, estão sempre a
cheirava a tinta, no 3º vi como era e no
sua violência, é com o Estado Novo que
tos e leis que a diferencia. Pensa, cons-
de ensino, não existindo concur-
surgir novos desafios. Hoje, a Fin-
4º acho que já tenho autoridade”. Os ou-
a praxe ganha um cariz político, sendo
cientemente ou não, ser superior a to-
tros parecem não perceber o seu pon-
considerada tão opressora como a pró-
dos os que não tiveram a oportunidade
sos de professores.
O estudo PISA demonstrou
ainda
lândia
Apesar de a lei não
proibir, quase não existem escolas privadas.
que os fac-
de
tem
resolver
o
TÂNIA REIS ALVES
de frequentar a universidade e de es-
proble-
tudar ‘para ser Doutor’”. As praxes im-
ma da falta
põem também esta visão do mundo
de
assente na diferenciação ao nível da
profes-
sores.
De-
própria universidade, a começar pela
tores sócio-económicos não são
pois de um período excedentá-
hierarquia entre estudantes: “Um alu-
determinantes no sucesso esco-
rio, a desvalorização da profissão
no com mais matrículas é mais inte-
lar, uma vez que o Estado financia
nos últimos anos conduziu à situ-
ligente, competente, inventivo do que
na totalidade o ensino obrigatório,
ação actual. O país discute tam-
um aluno que acaba de chegar ao ensi-
até ao 9º ano. Todos os estudan-
bém a melhor forma de integrar
no superior?”, questiona Ricardo.
tes têm direito a material escolar
os filhos dos emigrantes no siste-
Se, por um lado, o reinventar da praxe
gratuito, incluindo livros, trans-
ma de ensino, que deverá passar
veio recuperar a tradição boémia e ma-
portes e uma refeição. Também
por uma reorganização dos currí-
rialva coimbrã, por outro, desvirtuou o
não existem propinas, mesmo no
culos, pensados especificamente
significado do espírito inconformista e
ensino superior.
para este novo público. •
reivindicativo que sempre caracterizou o mundo académico. Ricardo Mo-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
21
ENSINO
TÂNIA REIS ALVES
TÂNIA REIS ALVES
reira considera que a praxe é mais uma
a fazer nada contra a sua vontade, tal-
forma de criar apatia, levando os estu-
vez pelo seu “ar grande”. Não sente ne-
dantes a alhear-se de causas natural-
cessidade de ser compensado por aqui-
mente suas, como a discussão sobre o
lo que passou, nem de praxar. Acredita
estado actual do ensino, os métodos de
que a praxe tem um papel integrador,
avaliação, as condições no futuro mun-
“sobretudo para os mais desprotegidos”,
do do trabalho. “O “come e cala”, a re-
que vêm de meios mais pequenos para
produção de comportamentos prees-
a universidade, mas é contra o facto de
tabelecidos, a aceitação de tudo em
os veteranos se quererem “emancipar”
nome da sacrossanta “tradição” não
em prejuízo “dos mais tímidos, peque-
desenvolve o espírito de discussão e de
nos, feios, altos ou baixos” e esse “po-
de não atribuir qualidades e privilégios
to, olhos grandes, já tem cinco ma-
alunos mais velhos que tentam trans-
abertura. Como é que se pode pedir a
der exacerbado” que surge uma vez por
a pessoas só porque elas estão na fa-
trículas no Ensino Superior, chefia a
mitir aos primeiros “como se deve vi-
um aluno que foi “praxado”, que acei-
ano. “A partir do momento em que a
culdade há mais tempo. Somos todos
Comissão de Praxe da ESCS há dois
ver na faculdade”. Diz que as praxes no
tou um pacote pré-fabricado de atitu-
tradição prejudique uma única pessoa
iguais, por isso, em vez de submeter
anos e é a pessoa mais respeitada
IPAM são “leves”, que não recusou ne-
num grupo, dis-
e humilhar tentamos integrar os ca-
em época de praxes. Os caloiros te-
nhuma, mas que o teria feito se algu-
crimine,
humi-
loiros”, explica Ricardo Correia, pre-
mem-na, porque tem ar de má: não
ma delas colidisse com os seus valo-
lhe, separe, não
sidente da AE. Na Faculdade de Be-
ri, não salta com eles, não lhes dá
res. São muitas as praxes de que ainda
pode continuar”.
las Artes defende-se um “convívio de
confiança. Considera que a praxe é a
se recorda: “Os típicos joguinhos entre
Defende alterna-
integração”, em que a AE recebe os
melhor forma de integração dos ca-
rapazes e raparigas, em que a rapariga
tivas que estejam
alunos, organiza uma visita guiada pe-
loiros e que “a esmagadora maioria”
estava de frente para o rapaz e cantava
«é pudim Danone» e o rapaz respondia,
des, que lute, por
exemplo, contra
as
propinas?”,
prossegue.
A par da questão da tradição,
a suposta legiti-
“Um aluno com mais
matrículas é mais inteligente, competente, inventivo do que um aluno que acaba de chegar
ao ensino superior?”
- Ricardo Moreira
mais “de acordo
la escola, “sempre em tom de brinca-
gosta e diverte-se. “Há sempre ca-
com uma deter-
deira”. Os caloiros escolhem os padri-
sos de caloiros
minada idade e
nhos e estes perguntam se os podem
que não gostam,
maturidade que
pintar. “Se eles consentirem, o padri-
2 ou 3 em 200,
se
no
nho pinta o afilhado e o afilhado tam-
mas isso não é
ensino superior”,
bém pinta o padrinho. Todas as brin-
significativo”.
conceitos esses que o movimento an-
como colóquios, discussões, incursões
cadeiras são recíprocas.”, explica Ri-
Catarina Reis de
ti-praxe considera enganadores. Pa-
à universidade conduzidas pelo vetera-
cardo Correia numa voz calma. No
Brito está no 2º
ra Ricardo Moreira, o aluno que aca-
no, que evitem o alheamento dos estu-
entanto, reconhece que o convívio do
ano de Adminis-
ba de chegar à universidade sente-se
dantes do seu “papel social”.
ano passado foi algo “insuficiente” e
tração de Marke-
quase obrigado a colaborar num sis-
A Associação de Estudantes da Facul-
que para este ano estão a planear no-
ting no Instituto Português de Adminis-
tema de regras já definidas para que
dade de Belas-Artes de Lisboa pare-
vas actividades, “mais diversão” e du-
tração de Marketing (IPAM) e considera
fim, lembro-me que eram 11 da ma-
seja legitimado, tal como os seus pa-
ce concordar com Rui. “O pensamen-
rante um período mais alargado.
que a utilidade das praxes passa pela
nhã e tivemos de beber aguardente,
res. “A pressão de grupo cria condi-
to que as pessoas da faculdade têm é
Cláudia Soeiro, morena, cabelo cur-
interacção existente entre caloiros e
midade da praxe
assenta,
geral-
mente, nos conceitos de aceitação e integração,
ções em que recusar a praxe é muito
adquire
“Há sempre casos de caloiros que não gostam,
2 ou 3 em 200, mas isso
não é significativo”.
- Cláudia Soeiro
com movimentos
de ancas alternados, «não pares, não pares!».
Casais
escolhi-
dos tinham de simular cenas de
sexo,
repetindo
vezes sem conta
até ficar do agrado dos veteranos. Por
meio litro cada, e comer algo estranho,
com um sabor horroroso. Quem dei-
difícil. É simplesmente mais fácil em-
tasse fora, tinha de pôr uma ponta de
barcar nela naquele momento. Além
esparguete na boca, de um lado o ra-
disto, nunca a opção de recusa da pra-
paz, do outro a rapariga e chegar à bo-
xe é posta sem condições, existe sem-
ca do outro.”
pre uma ameaça de perda de “direitos”
A reunião prossegue na ESCS. Faltam
para quem recusa a praxe.”
apenas quinze dias para o início da
O conceito de integração é um lega-
melhor semana do ano lectivo e é pre-
do da antropologia, que nos diz que
ciso acertar tudo: as equipas de caloi-
existem rituais iniciáticos que preten-
ros e respectivos chefes e sub-chefes,
dem reforçar o sentimento de perten-
os convívios, as surpresas, as farras.
ça a uma comunidade, mas para Ri-
Nada pode ser deixado ao acaso. Os
cardo Moreira isto não é válido no ca-
doutores e doutos-veteranos têm de
so das praxes: “A integração deve ser
saber dar o exemplo: “Meninas quan-
um processo espontâneo, natural e de
do trajarem nada de ganchinhos, nem
crescimento e não algo imposto, for-
anelinhos, nem meiinhas da cor da pe-
çado e quase sempre violento. Exis-
le. E quem trajar pela 1ª vez convém
tem outras formas de fazer amigos na
perguntar como é”. Os novatos têm de
universidade, de obter apontamentos
perceber o seu lugar: “Já sabem, os
e de ir a festas. Os amigos não se fa-
caloiros não podem andar de elevador,
zem de mãos atadas!”, remata.
falar ao telemóvel, comer e beber sem
Rui Godinho está no 3º ano de Comuni-
autorização. Mas por amor de Deus, se
cação Cultural da Universidade Católica
alguém pedir para comer é para dei-
de Lisboa e define-se como sendo “anti-
xar”, adverte Cláudia.
estupidez”. Foi praxado no seu primei-
No meio de tudo isto há duas expressões
ro ano “por solidariedade” para com os
que se repetem: “tem de haver bom-sen-
outros caloiros, mas nunca foi obrigado
so” e “só não vale arrancar olhos”. •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
22
MEDIA
CHAMA-SE LUÍS FILIPE BORGES E TEM 28 ANOS. É CONHECIDO COMO O RAPAZ DA BOINA, QUE APARECE NA TELEVISÃO. É A CARA DA REVOLTA DOS PASTÉIS
DE NATA. ESTÁ ORGULHOSO POR APRESENTAR UM PROGRAMA INOVADOR E ARROJADO NUM CANAL EM ABERTO. O RAPAZ QUE GOSTA DE ESCREVER, GOSTA DE CRITICAR. DE PREFERÊNCIA ATRAVÉS DO HUMOR.
• LUÍS FILIPE BORGES
Um revoltado com boina
MARTA MESQUITA
O
apresentador da Revolta dos Pastéis de
Eu escrevia uma coluna de humor, em que cri-
Segredo da Alheira. Eu então falei com eles e
te português. É um programa de entretenimento
Nata nasceu em Angra do Heroísmo mas
ticava aspectos da sociedade, n’ A Capital. Um
propus algumas alterações, nomeadamente o
que pretende também ter substância. Os convida-
com 18 anos veio para Lisboa tirar Direito. Aca-
dia o Bruno Santos, que é o subdirector de pro-
nome. Eles aceitaram as minhas sugestões e
dos que escolhemos não vão lá para se promove-
ba a licenciatura e conhece o Luís Osório. Co-
gramas da 2:, ligou-me a dizer que havia um
convidaram-me para fazer um teste de came-
rem; vão lá para falarem de um tema, que é sempre
meça a colaborar em programas como o Za-
programa e que pensaram em mim para cola-
ras. E pelos vistos gostaram e eu fiquei.
sobre Portugal e sobre o povo português. Mas ten-
pping e o Serviço Público. Percebe que quer
borar. Eu achei aquilo muito estranho, pensei
Qual é o conceito deste programa?
tamos abordar estes assuntos, que são sérios e im-
ganhar a vida a escrever. Entra para as Produ-
que era algum amigo meu a gozar. Mas para
É um talkshow, do género do Tonight Show, onde
portantes, de forma mais descontraída.
ções Fictícias e mais tarde começa a escrever
meu espanto havia
há um anfitrião e con-
A imagem do Luís já está muito ligada ao pro-
crónicas de humor na A Capital. Agora, o ho-
mesmo
vidados. A Revolta tem
grama. Apresenta a Revolta com alguma ou-
mem da boina volta ao ecrã com a segunda série
grama. O conceito
deste programa irreverente na 2:
era exactamente o
Como é que surgiu a ideia de criar A Revolta dos
mesmo do da Revol-
Pastéis de Nata?
ta mas o nome era O
um
pro-
“A Revolta dos Pastéis de Nata é feita por pessoas que não
têm medo de arriscar”
originalidade,
sadia e com piadas que para algumas pesso-
nomeadamente nos ske-
as roçam o mau gosto. Acha que este tipo de
tchs, com a particulari-
apresentação podia ser feito por uma mulher?
dade de ser totalmen-
Iria ser bem aceite?
30%
de
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
MEDIA
UMA COLUNA NA COLINA
A boina: acessório de moda
ou marca pessoal?
L
uís Filipe Borges é sempre
comprou foi uma boina. “Eu vim
visto com uma boina pre-
parar a uma faculdade comple-
te mas isso dava-lhe gozo. Com
ta, virada para trás. Já desde
tamente cinzenta, onde via pes-
o tempo, a boina tornou-se o
os tempos de humor na colu-
soas de dezoito anos a usarem
seu amuleto, a sua única su-
por Oscar Mascarenhas
Delírios dos que
nunca viram lírios
vam daquela postura desafian-
na d’ A Capital que o apresenta-
gravata. Tinha de me distinguir
perstição. Quando o convida-
dor aparece com ela. Mas a his-
daquela massa homogénea e
ram para apresentar a Revolta
tória da boina é bem mais an-
decidi que ia usar sempre uma
tiga. Quando veio estudar para
boina”. Era olhado de lado, diz
Lisboa, o primeiro objecto que
que os professores não gosta-
do como o tipo da boina.
23
J
osé Gomes Ferreira, nas suas memórias,
sagem de um capitalismo tornado mundial.»
conta que, em jovem, ganhou um prémio li-
E agora, sabichões do pensamento único? Marx de-
terário com uma poesia em que tecia loas ao lí-
sactualizado e ultrapassado? Leiam Attali: «O sé-
pediram-lhe para usar a boina.
rio-do-monte. Quarenta anos depois, passeando
culo que ele atravessou parece-se espantosamen-
Achou piada e agora é conheci-
com um amigo pelo campo, este parou e apon-
te com o nosso. Como hoje, o mundo era dominado
tou para uns torrões secos ao lado do caminho:
demograficamente pela Ásia e economicamente pe-
«Olha aí a tua musa inspiradora!» José Gomes
lo mundo anglo-saxão. Como hoje, a democracia e o
Ferreira apurou a vista e só viu terra seca, pe-
mercado tentavam conquistar o planeta. Como hoje,
grama é chato ninguém o vê.
dras, tojo e plantas bravias algo amareladas.
as tecnologias revolucionavam a produção de ener-
género apresentado por uma mulher. E era im-
Mas ao tentarem discutir temas de forma des-
«Olha! É o lírio-do-monte!», insistiu o amigo.
gia e de bens, as comunicações, as artes, as ideolo-
portante para quebrar alguns tabus, como, por
contraída e com piadas pelo meio não caem por
Era a primeira vez que José Gomes Ferreira via o
gias, e anunciavam uma formidável redução da pe-
exemplo, que os homens apresentam o entre-
vezes no humor brejeiro?
lírio-do-monte sobre que poetizara, o lírio-amare-
nosidade do trabalho. Como hoje, as desigualda-
Era super engraçado ver um programa deste
tenimento e que as mulheres apresentam pro-
Às vezes arriscamos muito nas piadas ou nos
lo-dos-montes, a patriótica flor Iris lusitanica! Ho-
des eram consideráveis entre os mais poderosos e
gramas mais sérios e de saias. Elas deviam es-
sketchs. Mas aí também está um dos encantos
mem de enorme cultura, talento e carácter, não
os mais miseráveis. Como hoje, os grupos de pres-
tar mais presentes no espaço da apresentação
do programa, o improviso e a vontade destas
teve rebuço em dar-se ao pelourinho do comentá-
são, por vezes violentos, para não dizer desespera-
mas não têm essa oportunidade.
pessoas de fazer coisas novas. Claro que a bre-
rio escarninho ao recordar o episódio. Desde que
dos, opunham-se à mundialização dos mercados, ao
jeirice deve ser limitada e
li esta memória de José Gomes Ferreira, que an-
crescimento da democracia e à secularização. Co-
o nosso objectivo é fazer
do com vontade de escrever que delírio é a prosá-
mo hoje, as gentes tinham esperança numa outra vi-
um humor o mais gene-
pia dos que nunca viram lírios. Já está!
da, mais fraterna, que libertaria os homens da mi-
ralista possível. Não pode-
Delírios, porém, são o que mais há aí na praça da
séria, da alienação e do sofrimento. Como hoje, um
mos fazer humor segmen-
escrita – e só muito tarde, porventura tarde demais
sem-número de escritores e de políticos disputa-
tado para nenhuma idade
acontece o abanão da realidade. Eis um exemplo: a
vam a honra de ter encontrado a via para conduzir os
homens, a bem ou pela força. Como hoje, homens e
O que é que significa ter
um programa irreverente
como a Revolta a ser emitido num canal em aberto
como a 2:?
“A Revolta não é só um
programa de entretenimento”
Para mim é das coisas melhores que o programa tem. A ideia deste pro-
ou grupo social. Acho que não somos brejeiros;
generalidade – para não dizer a unanimidade – da
grama parte da direcção do canal, o que signi-
estamos no limbo.
crítica literária encar-
fica que já existem pessoas sem medo de ar-
A primeira série ultrapassou as vossas expecta-
tada anunciou nas su-
riscar, porque era muito mais seguro ter um
tivas. O que é que podemos esperar da segunda
as altaneiras colunas
programa com este formato num canal do cabo.
série, que começa agora em Outubro?
que José Saramago
Mas acho que foi uma aposta ganha, porque é o
Vai haver algumas novidades. É nossa intenção
tinha defendido o vo-
“Acharam que Tocqueville era
uma boa arma de arremesso
contra a esquerda, pegaram
no calhamaço e atiraram-no.”
programa mais visto na 2: .
termos participações de pessoas conhecidas nos
to em branco, no seu
Porque é que há tantas pessoas que criticam o
nossos sketches. Pessoas que gostam do pro-
romance Ensaio So-
programa?
grama e que participam à borla. E estamos tam-
bre a Lucidez. Não podendo já atacar eficazmen-
mulheres de coragem,
em particular jornalistas como Marx, morriam pela liberdade
de falar, de escrever,
de pensar. Como hoje, o capitalismo reina-
va soberanamente, fazendo peso por todo o lado so-
Nenhum programa pode agradar a todas as
bém a ver se é possível ter uma crónica de pesso-
te o escritor – sempre é o nosso único Nobel literá-
bre o custo do trabalho, modelando a organização do
pessoas. E acho que, gostando ou não da Re-
as famosas sobre os vários temas desta segunda
rio... – a táctica foi verrumar a sua condição de co-
mundo segundo as nações europeias.»
Contra Marx, os «satsixram», que são os marxis-
volta, ninguém lhe fica indiferente. Este pro-
série. Vamos ter oitenta minutos de emissão,
munista assumido, logo antidemocrático aos olhos
grama fala de coisas por vezes desagradáveis,
portanto mais tempo de antena. Os primeiros
do pensamento único. Eu, que tive sempre grande
tas que viraram a casaca por conveniência servi-
de problemas que existem, toca na ferida, e is-
três programas vão abordar a educação em Por-
dificuldade de entrar na escrita de Saramago, con-
çal, brandem Alexis de Tocqueville e a sua Da De-
so incomoda muitas pessoas. E eu gosto des-
tugal, as cunhas e a televisão. Mas a Revolta vai
segui, desta vez, ler o livro. E sabem uma coisa?
mocracia na América, escrito entre 1830 e 1840.
tas reacções extremas de adoração ou de ódio;
continuar a ser irreverente e a ser feita por pes-
Não há nada no romance que deixe perceber que
Mas estou convencido que só um deles (tres)leu
é sinal que estamos a fazer qualquer coisa de
soas que não têm medo de arriscar. •
o autor defende ou propõe o voto em branco! Pelo
o livro e passou-lhes a palavra. É que se tivessem
diferente, de ousado. A Revolta não se limita a
contrário: depois de a população da cidade ter vo-
lido o livro – como eu o deveria ter feito há décadas
ser um programa de entretenimento. Preten-
tado quase unanimemente em branco, aconteceu
e não apenas agora – deslocariam a utopia comu-
de também com os sketches e com as piadas
ser um programa de critica social. As reacções
à Revolta são iguais àquelas que temos com as
pessoas que conhecemos. Eu não gosto de pes-
Um nome português
U
ma das peculiaridades deste progra-
um cerco e uma ditadura! Façam, amigos, o juízo
nista da Rússia de 1917 para a América de 1600 a
adequado sobre a nossa (?) crítica literária.
1850! Exacto: duzentos e cinquenta anos de verda-
O mesmo se lê, todos os dias, sobre Marx: que es-
deiro comunitarismo, de poder popular e completa igualdade de cidadania! Quando, em França, Lu-
ma começa no nome. Quando se pen-
tá morto e enterrado – e aos escribas do pensa-
sou no programa e no seu formato, os produ-
mento único, especialmente os que foram mar-
ís XIV dizia que ele era o Estado e em Inglaterra se
tores sabiam que o nome tinha de se referir a
xistas quando o marxismo estava a dar e são hoje
proibia de ajudar os pobres, para que morressem
posições, vão na corrente. E a Revolta não quer
alguma coisa bem portuguesa. Para quem fi-
antimarxistas porque o antimarxismo os faz rece-
mais depressa, os povos das treze colónias que in-
ir na corrente. Mas as reacções que tenho do
ca intrigado, tentando perceber de quem é a
ber (e bastante!), só lhes falta calcar o chão com
tegravam a Nova Inglaterra votavam na praça pú-
público não são más. Em cada 10 pessoas que
revolta ou quem são os pastéis de nata, aqui
os tacões, não vá ele ressuscitar. Pois olhem: caiu-
blica, aprovavam leis de protecção dos pobres e de
me cumprimentam por causa do programa, 9
tem a explicação. O pastel de nata é um pro-
me nas mãos um livro de Jacques Attali, saído em
obrigatoriedade da construção de escolas primá-
são simpáticas.
duto tipicamente português. Para um progra-
Maio, Marx ou l’Esprit du Monde. Jacques Attali não
rias em todas as comunidades!
E qual é a mais-valia do programa para além do
ma irreverente, o nome tinha de ser sugestivo
é nem nunca foi marxista e chegou a presidente do
Eles leram Tocqueville? Não. Acharam que To-
humor arriscado?
e estranho ao mesmo tempo, e, claro está, mi-
BERD, Banco Europeu para a Reconstrução e De-
cqueville era uma boa arma de arremesso con-
soas que nunca são criticadas e que se dão bem
com toda a gente. Essas pessoas não tomam
Os convidados são sempre uma mais-valia.
nimamente divertido. Luís Filipe Borges afir-
senvolvimento. Mas deu-se ao trabalho de ler Marx
tra a esquerda, pegaram no calhamaço e ati-
Tentamos diversificar no perfil de convidados
ma que A Revolta dos Pastéis de Nata é bem
e estudar-lhe a biografia. Eis um pedaço do seu tes-
raram-no. Se o tivessem lido, bem teriam de
de forma a chegarmos a um número vasto e di-
mais atractivo do que O Segredo da Alheira,
temunho: «Ao ler a sua obra de perto, descobre-se,
engolir esta: «Na América, são os pobres que
ferenciado de público. Temos pessoas a assis-
primeiro nome sugerido para o programa. “Eu
no entanto, que ele viu, muito antes de toda a gen-
fazem as leis, daí que os ricos as olhem com
tir ao programa com idades entre os quinze e
por vezes fico a imaginar os pastéis de nata,
te, em que é que o capitalismo constituía uma liber-
desconfiança.» Não leram Tocqueville e deviam
os quarenta e poucos anos. A Revolta não é um
que são uma coisa fofinha, a revoltarem-se e a
tação das alienações anteriores. Descobre-se tam-
tê-lo lido: para pensarem como se roubou aos
programa do género Prós e Contras. É, sim, um
explodirem. É um nome engraçado”, afirma o
bém que ele nunca o pensou em agonia e que nun-
Americanos a democracia popular que tiveram
programa de discussão que pretende chegar às
apresentador. “Como o programa pretende fa-
ca acreditou possível o socialismo num só país, mas
durante dois séculos e meio. E Marx ajudá-los-
pessoas de forma divertida. E a mais-valia do
zer uma crítica social, a leitura de que os por-
que, pelo contrário, fez a apologia das trocas livres
ia de bom grado a percebê-lo. Porque isso não
programa é essa: temas importantes conse-
tugueses são uns molengões, uns pastéis de
e da mundialização, e que previu que a revolução
se explica com a lira delirante dos que nunca vi-
guem ser debatidos de forma mais soft, o que
nata, também é possível”, acrescenta.
não chegaria, se chegasse, senão como a ultrapas-
ram os lírios – e falam deles sem pudor. •
não se torna maçador. Porque quando um pro-
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
24
DESPORTO
• A CLAQUE VISTA PELOS SEUS MEMBROS
Violência
e faixas
DILPESH V. LAXMIDAS
O
DO QUE ABDICAM OS MEMBROS DAS CLAQUES PARA ACOMPANHAR O CLUBE. ATÉ ONDE
VAI O VERDADEIRO ULTRA. OS CONFLITOS EM QUE ENTRA PARA DEFENDER O GRUPO, O
que leva uma pessoa que trabalha
fictício também, tem 24 anos e é téc-
se até Leiria para assistir a um jogo
nica de Turismo. Ambos pertencem à
de futebol, às 21h15? É o caso de Ra-
direcção do DUXXI e apoiam o clube.
miro Martins, de 23 anos, membro da
Como diz Sofia, “o Sporting vai cá es-
Direcção do Colectivo Ultras 95, uma
tar independentemente dos jogadores
das claques que acompanham o F. C.
que cá estejam” e o “Directivo apoia o
Porto. Prova incondicional do apoio
futebol”, completa Ricardo. “A hierar-
ao clube é o tempo que passa a traba-
quia da Direcção só existe no papel,
lhar para a claque: a organizar acti-
na realidade, trabalhamos todos para
vidades e coreografias, a distribuir bi-
o mesmo.” Os cargos e estatutos são
lhetes.
Repar-
te funções com
CLUBE, A SI PRÓPRIO. POR QUE LUTAM. CAPAZES DO MELHOR E DO PIOR, AS CLAQUES
mais dez pessoas, numa Direc-
DE FUTEBOL ENCHEM OS ESTÁDIOS PORTUGUESES
ção que procura levar o maior
DILPESH LAXMIDAS
empregado de escritório; Sofia, nome
até às 16h00 no Porto a deslocar-
número possível
de adeptos aos
jogos. O clube
mantém com a
claque uma rela-
“Com o Euro 2004 a
chegar, parecia que a
polícia andava a treinar em nós”, queixamse as claques, acusando um endurecimento
da acção policial.
ção de respeito e reconhecimento, que
apenas para representação externa, junto do
clube.
Escolhe-
ram os dois ser
activos na claque
porque
acham
que não se deve
(e não se consegue) assistir a
um jogo de fute-
bol impávido e quieto “É-me impos-
esta foi conquistando ao longo de dez
sível, coço-me toda, fico com os bra-
anos de existência. Para apoiar o clube
ços cheios de babas”, diz Sofia. “Tens
(e não os jogadores, pois acham que
de estar sempre a puxar, se não puxas
com o surgimento do futebol moder-
por eles, eles não ganham”, continua,
no desapareceu o tradicional “amor à
dizendo que a integração numa claque
camisola”) vale tudo mas porquê es-
é tal que a dada altura “parece que já
tar num grupo, numa claque? “Sem as
não há nada lá fora”.
claques, qualquer estádio irá parecer
Já Miguel, um ex-membro dos No Na-
um verdadeiro cemitério, toda a ani-
me Boys (NN), claque do S.L. Benfica,
mação e alegria desaparecerão”. Pa-
que se está a filiar nos Diabos Ver-
lavras de um verdadeiro Ultra que ama
melhos (DV), acha que as claques e
o clube, que o apoia sempre, quer em
os jogos vistos ao vivo valem a pena
casa, quer fora.
por todo o espectáculo e visibilidade
Como explica um membro mais velho
que proporcionam. Aliás, a notorieda-
do Directivo Ultra XXI (DUXXI), a cla-
de das claques é tanta que até já se
que mais recente do Sporting, o
ser Ultra é “inexplicável, é ir aos
extremos positivos e negativos,
pelo amor ao clu-
“O dinheiro para reparar os estragos
dos conflitos acabam sempre
por sair do bolso das claques devido
aos novos protocolos com os clubes.”
be (…). Não se é Ultra, vai-se sendo, é
começam a ver figuras famosas da
preciso muita experiência, muito tem-
sociedade portuguesa a juntarem-se
po a acompanhar a equipa e o clube pe-
às claques. “Não vão mesmo para o
lo mundo”. Todas as semanas, geral-
meio, mas andam por lá à volta”, con-
mente à sexta-feira, a Direcção e al-
ta Miguel, “porque
guns membros do DUXXI reúnem-se
gostam do ambiente”. A hierarquia de
e acertam pormenores da organização
ambas as claques, mas mais nos DV,
das idas aos jogos, da elaboração de
só se vê na altura da distribuição dos
faixas, da preparação das coreografias.
bilhetes: os sócios mais antigos têm
As reuniões são na sede disponibilizada
prioridade. Miguel Ribeiro é um estu-
pelo Sporting à claque, junto do estádio
dante de Informática, de 27 anos e mo-
Alvalade XXI. Calmamente fala-se na
ra ao pé do estádio da Luz. A sua ca-
sala da Direcção, enquanto lá fora, no
sa revela um adepto de futebol, mas
resto da sede, os outros membros jo-
o seu quarto mostra um Diabo Ver-
gam Playstation, ouvem música, discu-
melho. O cachecol na parede “Portu-
tem futebol. Não é preciso estar muito
gal por pátria, Benfica como bandeira”
atento para se perceber o que os une: o
é um dos treze que tem, e o wallpaper
verde do Sporting.
do computador também tem o símbolo
Ricardo, nome fictício, tem 26 anos e é
dos Diabos. Miguel acha que estamos
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
DESPORTO
25
DILPESH LAXMIDAS
a assistir a uma fase de pacificação e
apontado uma faca a um amigo seu, o
segurança no estádio) quem controla.
jogos com toda a violência que há, de
acalmia do ambiente das claques e en-
caso do very light, a dissolução do nú-
Também pela proximidade entre o clu-
pronto e com um sorriso irónico, per-
formado “Ainda tenho uma costela
tre as próprias claques do Benfica. As
cleo NN do Cartaxo (depois de o Pre-
be e as claques (pelos protocolos assi-
guntam: “Qual violência?” Mas depois,
partida, desse jogo”.
coisas já estiveram muito piores. Tudo
sidente ter fugido com o dinheiro) são
nados) se pode explicar a acalmia. As
já com um ar mais sério dizem que não
Será por conflitos políticos e ideoló-
começou quando membros alegada-
motivos para Miguel ter decidido tro-
multas que os clubes pagam por de-
são nenhuns “anjinhos”, e que se são
gicos? “Não, na ‘curva’ não há po-
mente dos NN incendiaram a sede dos
car os NN pelos DV. “Agora procuro
sacatos nos estádios acabam sempre
provocados também respondem “se-
lítica; aqui cores é só verde. Podes
DV. Iniciou-se um ciclo de agressões
cenas mais calmas, não tanta agres-
por sair do bolso das claques. Rami-
ja a um, seja a cem”. Como em Coim-
ser branco, preto, amarelo, de direi-
entre claques do mesmo clube.
sividade”. E também diz que “está tu-
ro, do Colectivo 95, também diz que
bra, no jogo con-
A violência e o conflito resultam da
do muito melhor” tanto pela entrada
há violência “não se pode negar”, mas
tra a Académica,
união, do espírito de grupo presente e
de mulheres nas claques, como pe-
ressalva que “em Portugal é sempre
quando
alguns
do choque de egos entre dois grandes
la colaboração de sócios mais velhos
em pequena escala e surge esponta-
Diabos
Verme-
grupos. A calma actual aparece depois
do Benfica que também gostam de es-
neamente no calor do jogo. Reflecte o
lhos de Coimbra
de vários incidentes, alguns muito gra-
tar junto das claques e que ajudam a
quotidiano das pessoas. Diariamente
não
ves (esfaqueamentos, roubos, o caso
acalmar”. E a polícia, não ajuda? “Não,
se lida com violência: pode acontecer
dos fizeram uma
do very light, “esperas” a claques), que
a polícia é um bocado bruta, entra lo-
no dia a dia ou no futebol.”
ocorreram nos anos 90.Hoje, os inter-
go a matar e não para acalmar. Obri-
Nas imediações do Estádio Municipal
sidente dos Su-
venientes desses acontecimentos são
ga-nos a fugir todos para trás, aleijan-
Magalhães Pessoa, em Leiria, o res-
per.
mais velhos, “com 30 e tal anos, que-
do-nos nóps uns aos outros ou a re-
taurante–café “O Estádio” está com-
Quando o resto da claque soube da
a tua ideologia política. Somos pes-
pletamente cheio de adeptos do FC
agressão, saíram do estádio e foram
soas normais, como as outras”, diz
rem trazer os filhos e a família ao futebol, e
para isso fazemse valer do peso
que têm na claque para aclamar
Não há cores políticas na “curva”.
Os conflitos não acontecem só entre
clubes diferentes. Podem surgir por
questões íntimas ou até de dinheiro.
identifica-
“espera” ao pre-
violência”, diz Paulo, com um ar con-
Diariamente as pessoas lidam com violência:
pode acontecer no dia
a dia ou no futebol. Em
Portugal, é tudo em
pequena escala.
ta, de esquerda;
da frente ou de
trás, não o manifestes
claque”,
é
na
afir-
ma Sofia. “Nas
claques não há
politica, o que
não impede que
lá fora, tenhas
Porto. Um olhar mais atento mostra
até à bancada da claque adversária
Miguel, dos DV. “A única política
que são “Ultras” no apoio ao clube, são
para os apanhar. Então e não há se-
que sempre nos há-de interessar é
Super Dragões, a deliciarem-se com o
guranças, porteiros, pessoas a con-
o nosso Porto”, conta Ramiro. A ce-
sofrimento inicial do Sporting para ven-
trolar as entradas no estádio? “Eu em
dência polémica e insuficiente de bi-
cer o Gil Vicente. De vez em quando, a
Coimbra entrei de mãos nos bolsos, e
lhetes para os adeptos do adversário,
azáfama e o som dos talheres a bater
só mostrei uma vez o bilhete. Para ir
os conflitos entre Direcções e Presi-
os ânimos”, explica Miguel.Dentro dos
voltarmo-nos e originar uma grande
são interrompidos por cânticos de in-
até à outra bancada, só um steward
dentes, conflitos pessoais entre diri-
NN também há conflitos que surgem
cena de pancadaria”, acusa Miguel.
centivo “Aqui e em qualquer estádio, FC
[responsável pela segurança no está-
gentes de claques (por causa de na-
porque daquela claque fazem parte
Acusações semelhantes tem o DUX-
Porto sempre contigo”.Mais do que a
dio, geralmente contratado pelo clu-
moradas, antigas e actuais), o pre-
várias pessoas que vêm dos bairros
XI. Houve um endurecimento da acção
cidade do Porto, apoiam o clube, tal co-
be que organiza o jogo] me meteu a
ço excessivo de um ingresso – tudo
mais problemáticos do país (margem
policial. Com a proximidade do Euro
mo diz Paulo Matos, um bracarense de
mão ao ombro. Mandei-lhe uma co-
contribui para um acumular de tensões descarregadas nos jogos, seja
Sul, Chelas, Olivais) e por isso muitos
2004, “parecia que andavam a treinar
21 anos, trabalhador emigrante na Su-
tovelada e parti-lhe o nariz. Mas aí
dos confrontos não têm ligação directa
em nós”, queixa-se Sofia. Agora, com
íça, mas que quando cá está não perde
a culpa é deles, porque não vêm pa-
pela organização de espectáculos vi-
com a claque; são problemas que vêm
o quase desaparecimento da figura do
oportunidade de ir acompanhar o seu
ra acalmar, vêm logo a matar. Se eles
suais e coreográficos, cheios de co-
de fora e ali se manifestam. Estes con-
polícia nos estádios, as pessoas acal-
Porto, com o seu grupo de amigos do
falassem connosco, até pode ser que
res e movimento, seja num conflito
flitos, a pressão dos colegas da Uni-
maram. São sempre os stewards (fun-
Núcleo de Amares dos Super. Quando
sossegássemos; mas não, agem vio-
violento de claques entre si ou con-
versidade (que são Diabos), um NN ter
cionários privados responsáveis pela
se lhes pergunta se vale a pena ir aos
lentamente e nós respondemos com
tra a polícia. •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
26
LETRAS
• POETAS BIPOLARES
partir a louça e depois apanhar os cacos”.
vezes na força de um papel e nas letras que nele se
Gritos de dor,
gritos de alegria
Existem dois tipos de doenças bipolar, a do tipo I em
compõem a voz e o “grito de alerta” para o outro.
que a pessoa sofre crises de mania ou crises mistas
Na relação com os outros viu também a doen-
(sintomas de depressão e mania misturados) e na
ça fazer-lhe frente, os cigarros ajudam a ter pre-
maioria das vezes também tem fases depressivas e
sente um tempo em que a família se mostrava re-
NUM MUNDO ONDE AS EMOÇÕES PARECEM ESTAR CONTIDAS TAMBÉM
HÁ QUEM AS SINTA A TRANSBORDAR. HÁ POETAS QUE SENTEM NO
a do tipo II em que o doente normalmente tem crises
voltada pelos gastos exagerados: “a gastar sem
profundas de depressão e ligeiras fases de mania.
poder é vender sem querer”.Hoje a sua estabili-
Delfim sofre mais de crises de mania, a dita doen-
dade anda presa ao Lítio: “se não tomar ao fim de
ça bipolar do tipo I: “raramente estou em fase de-
quinze dias estou a voar que pareço um gavião e
pressiva, a tipologia da minha bipolar não se pro-
depois vou lá para cima para o espaço e entro nu-
porciona a isso, nem a minha personalidade é de
ma fase maníaca e eufórica”. E as crises não se
meter a cabeça debaixo da areia” A poesia é es-
repetem enquanto seguir à risca a medicação.
crita durante o período que designa de “colorido e
Para além de sentir na pele a doença, Delfim Oli-
cool”. Nesses dias escreve a um ritmo constante e
veira é também presidente da Associação de Apoio
hiperactivo, o que numa fase estável se torna im-
aos Doentes Bipolares e Depressivos (ADEB), a
possível dada a gestão das
CORPO A EUFORIA E A TRISTEZA NUM REPENTE. SÃO OS CRIADORES DO
tarefas a que a vida obriga.
Quando
GRITO QUE VEM DA ALMA EM PALAVRAS ESCRITAS.
questionado
pe-
la razão pela qual escreve,
utiliza o plural para dar tom
a esses motivos, diz que as
ANDREIA GONÇALVES
E
pessoas quando escrevem
maior
“Fui hóspede do vinte e um
Duas estadias sem marcação
Não sinto estigma nenhum
Nem saudades da estação.”
associa-
ção no nosso país
na área da saúde
mental e a única
a prestar apoio
aos doentes unipolares (depres-
screvem por gosto, uma vontade que lhes
mesmo espaço e a mesma realidade. E a esse
e estão neste estado, de an-
sivos) e bipolares,
vem ainda dos rabiscos dos poemas de
outro via-o incapacitado. O tempo era ocupado
gústia, fazem-no porque sentem uma certa so-
assim como aos seus familiares.
criança. Escrevem por prazer, porque vêem bro-
pela arte. A pintura a carvão e as poesias, que lhe
lidão mesmo acompanhados. E é nessa solidão,
A Associação juntou em 1991 doentes, familiares,
tar da alma uma “coisa” bonita. Escrevem para
surgiam e que eram registadas no papel para que
em que se está com o outro, que esse alguém es-
médicos e técnicos de saúde mental com o objec-
dizer ao outro que têm momentos de dor e mo-
não se perdessem, aceleravam as horas.
creve para pôr no papel aquilo que sente e aqui-
tivo de ajudar e apoiar as pessoas tanto psíquica
mentos de alegria. Que sofrem. Que amam. Que
Delfim Oliveira desde sempre gostou de escrever.
lo que as pessoas que o envolvem não estão dis-
como fisicamente. Delfim Oliveira faz questão em
vivem a vida em dois pólos. Partilhando o corpo
Para além de director de um jornal profissional, que
poníveis para saber ouvir e saber ajudar: “É qua-
manifestar a razão de ser deste organismo: “o pri-
ora com a felicidade extrema, ora com a tristeza
se chamava “O Marinheiro”, escreveu ainda para o
se como deixar uma carta escrita.”.
meiro objectivo é informar as pessoas, é educar as
crua. São doentes, sofrem da bipolar e são bafe-
“Diário Popular” e para o “Diário de Lisboa”. Eram ar-
Uma carta, a carta onde se registam as ideias que se
pessoas para a saúde e é também habilitá-las pa-
jados com a arte das palavras. O que deixam es-
tigos mais ligados à segurança social e ao trabalho
escrevem a uma velocidade estonteante, onde se fa-
ra a sua vida diária de modo a que tenham alguma
crito nas folhas de papel é o mesmo que lhes cor-
e direitos sociais. No campo político, como sindical,
la de um momento que surge sem avisar, mas que
autonomia ou que tenham a autonomia suficiente
re nas veias cheias, o sentimento exacerbado a
também escrevia artigos, crónicas e comunicados.
aos poucos se vai tornando sabido. Quando a angús-
para desenvolverem a sua actividade profissional,
latejar. Os poetas inconstantes…
Apesar de a escrita nunca ter sido a sua activi-
tia impera e as ideias fatalistas podem ser por ela
familiar, social, e afectiva”. Sem tratamento a doença pode levar a perdas importantes na saúde e a
Delfim Oliveira tem 59 anos e aos 43 foi-lhe diag-
dade principal, que foi sempre na área da gestão
trazidas. O desejo da morte. O abuso de álcool. O
nosticada a doença. Antes disso já tinha passa-
e contabilidade, diz possuir um poder de síntese
abuso de drogas. Para combater a inconstância, pa-
perdas da autonomia e da personalidade.
do por uma fase de euforia em 1986 quando era
que lhe permite escrever em função do espaço,
ra não mais pensar nela. E quem sofre tem muitas
A Associação tem ao dispor dos doentes um qua-
director dos Serviços Administrativos e de Conta-
dizendo em pouco o que muitas pessoas só con-
bilidade da Marinha do Comércio e das Pescas e
seguiriam dizer em muito. E depois há também o
simultaneamente desenvolvia uma grande activi-
gosto pelo lirismo que tantas vezes é despontado
dade política e sindical. Foi um período de gran-
pelo seu estado, pela inconstância que a doença
de agitação que veio espoletar a doença. Isso pa-
traz. “Escrevo quando estou mais efusivo”.
ra além do factor hereditário. Pensa-se que o seu
A doença bipolar é uma doença psiquiátrica carac-
pai também fosse doente bipolar.
terizada por variações acentuadas de humor, com
Durante cerca de dois medormir. Depois por intermédio de um hipnótico muito ligeiro, conseguiu alcançar a quietude suficiente
para o sono. E passaram-
crises repetidas
“Vivo no fio da navalha
Porque sofro da bipolar
Não faço dela mortalha
Porque não a deixo incubar.”
se alguns anos sem saber
quer de depressão, quer de euforia, a conhecida mania. É uma
perturbação dos
afectos, de variações de humor e
o que estava para vir.
tem por isso grandes repercussões na percepção
Em 1989 foi internado no pavilhão 21 do Hospital Jú-
da realidade, nas sensações, nas emoções, nas
lio de Matos e “desabou o tecto do mundo”. Foi sub-
ideias e no comportamento de quem dela sofre.
metido ao tratamento através de electrochoques
De um lado, o estado eufórico e expansivo, on-
porque o seu estado estava já muito degradado e os
de as ideias muitas vezes se confundem e são
antipsicóticos não respondiam. “Estava sujeito a fi-
exageradas. Tudo é belo. Tudo é possível. Tudo
car amarrado no hospício, sem recuperação”. Du-
é um excesso. Depois há também o outro lado. A
rante a passagem pelo hospital psiquiátrico diz não
depressão. A vontade que se perde. A tristeza. O
ter tido logo a percepção do que lhe estava a aconte-
desespero. A culpa. O medo. E estes dois esta-
cer, os medicamentos não deixavam. Só a partir da
dos vivem de mãos dadas no doente bipolar.
terceira semana é que se começou a aperceber do
Pela caneta dá forma aos sentimentos. Delfim
que o rodeava e a sua preocupação era com a família,
Oliveira escreve quando está apaixonado, escre-
especialmente com os filhos, na altura menores.
ve quando está numa fase eufórica e escreve a
Os dias passavam-se e o desconhecido trazia-lhe
um ritmo alucinante o que tantas vezes se pode
o sofrimento. Vinte e um dias sem saber qual a
tornar num risco demasiado grande: “se for na
patologia de que sofria, são agora memórias vi-
onda em quinze dias está lá em cima no espaço
vas reacendidas quando se fala no assunto. A ali-
sideral e depois para descer cá para baixo é que
mentação rudimentar, os farrapos velhos e a no-
dói. Angústias. Amargura. A pessoa faz auto ava-
ção do que estava a acontecer chegando-lhe pe-
liações de certos e determinados actos não muito
lo reflexo do outro, do que partilhava consigo o
agradáveis e é doloroso. É aquilo que se chama:
CATARINA MEALHA
ses e meio não conseguia
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
LETRAS
dro de reabilitação psicossocial que compreen-
pode fazer 50% das coisas de que planeou e de
isso também há aqueles dias em que simplesmen-
de desde o SOS telefónico até ao chamado Fórum
que gastou mais dinheiro do que devia.
te as palavras não se rendem ao papel.
Sócio-Ocupacional que pretende ser uma respos-
Cristina fala da incompreensão que ainda sub-
Quando Cristina está em depressão chega a não
ta às necessidades ocupacionais das pessoas com
siste a respeito das doenças do foro psicológico
conseguir escrever e as fases de mania roubam-
a doença. Nestes fóruns é dado apoio às pessoas
e emocional. Fala da tendência de algumas pes-
lhe a concentração. A escrita costuma vir nas fa-
que tenham alguma vocação para as artes e isto
soas para minimizar o sofrimento dos outros, só
ses estáveis, quando o seu estado lhe permi-
quer na área da pintura, da escrita, da música ou
por não ser o deles, só por não o sentirem na pe-
te fazer uma retrospectiva e arrumar as ideias,
das artes dramáticas. Na sede em Lisboa os qua-
le e da marginalização das pessoa a partir do mo-
vertendo nas folhas brancas o que se passou na-
dros suspensos nas paredes dão conta das capaci-
mento em que se sabe que têm algum problema
queles dias em que não conseguia escrever ou
dades artísticas que ali se escondem ou que se re-
psiquiátrico ou psicológico, como se tudo o que
falando do que a perturba no dia-a-dia.
velam. A criatividade anda muitas vezes de mãos
surgisse depois, como se tudo o que fizessem ou
A escrita de um poema pode também ser uma
dadas com a sensibilidade.
dissessem resultasse de uma condição que lhes
mensagem para um amigo ou uma amiga e po-
Para além de uma publicação trimestral de no-
é imposta nessa altura, a de louco. O desconhe-
de ser um desabafo, o dizer através do lirismo o
me Bipolar, a ADEB conseguiu ver publicada, no
cido torna-se assim simplificado num rótulo que
que não se consegue dizer pela voz, vendo o pró-
ano passado, uma antologia composta por poe-
cabe a todos os que não se incluem naqueles
prio reflexo vincado nos olhos do outro. ”Não po-
mas inéditos escritos por doentes unipolares e
moldes que julgam ser os correctos, os tais.
demos guardar tudo para nós, ninguém pode e
bipolares de modo a dar a conhecer o seu uni-
Já lá vão os dias em que não se sentia compre-
muito menos um doente bipolar que tem tantas
verso criativo, emocional e existencial. A recolha
endida por quem partilhava com ela a vida. “Nem
carências afectivas.” E na escrita dá-se forma
e selecção dos escritos, que eram muitos, ficou a
toda a gente tem o alcance de compreender es-
aos sentimentos, a todos os que são importan-
cargo de Delfim Oliveira. O resultado foi
o livro Pétalas Caídas
da Padrões Culturais
Editora, escrito pelas
mãos de treze nomes
“Ao fazerem uma coisa bonita
estão a sublimar as preocupações naquele prazer que é
criar alguma coisa.”
que na capa constam.
te tipo de doença e mui-
tes de dar a conhecer e partilhar. E o afecto tor-
tas vezes a discussão
na-se assim uma questão de leitura, de comoção
27
SUGESTÕES DA COLINA
nem tem nada a ver
pelas palavras. Cristina entende a escrita como
Carnaval Negro
com o problema mas
uma terapia: “ao fazerem uma coisa bonita estão
AUTOR: URBANO TAVARES
sim com um problema
a sublimar as preocupações naquele prazer que
RODRIGUES
normal da vida de um
é criar alguma coisa”. Uma terapia que quan-
EDITORA: ASA.
casal, muitos casamen-
do aliada à partilha com os amigos pode conce-
Carnaval Negro é
Delfim Oliveira é um dos autores.
tos com bipolares têm dado errado. O meu deu.”.
der o alívio e o esquecimento dos dias de martí-
uma antologia que
Cristina Diniz é uma das outras vozes que nele se
Hoje as coisas são diferentes.
rio. São os amigos que lhe elogiam os escritos
integra alguns dos
escrevem. Tem 38 anos e vive em Vila Franca de
A Organização Mundial de Saúde estima que no nos-
e até há um que diz que Cristina escreve fábu-
melhores contos do
Xira e Lisboa, onde já trabalhou, é só “para ir e vir”.
so país cerca de 1,5% a 2% da população adulta so-
las. Ela prefere dizer que são textos fantasiosos
prestigiado escritor português, Urbano
Na agitação da capital tudo lhe parece diferente:
fra de doença bipolar, mas estes valores podem ficar
mas que não faz de propósito, saem-lhe assim.
Tavares Rodrigues. Os temas presentes
“ninguém responde ás pessoas porque andam des-
aquém pela dificuldade de um diagnóstico correcto,
Escreve também prosa mas a essas chama de
na obra são os que revelaram ao lon-
confiadas, pensam que vão ser assaltadas”. E o rit-
que muitas vezes só chega depois de muitos anos.
poesia branca e não por pretensão mas sim pela
go dos anos a beleza da escrita deste
mo acelerado da vida rouba a demora ao tempo e
Esta doença é imprevisível, não tem um momen-
fantasia das letras que se combinam.
autor. O amor, a morte e a corrosão do
faz com que ”nem se pare para pensar”. Cristina
to para aparecer, na maioria dos casos surge du-
O olhar que deita ao mundo também lhe provoca
tempo a par de outras tantas questões
é uma mulher que se preocupa com o que a rodeia,
rante ou depois da adolescência. De início as cri-
um formigueiro interno que se alivia na escrita.
são retratados num livro onde habita a
não se acomoda ao rumo que a sociedade tende
ses podem ser desencadeadas por factores emo-
Nesse dia trazia dentro da mala um poema escri-
riqueza da linguagem de uma das gran-
a tomar: “se nós não nos sensibilizarmos para as
cionais, tais como perdas ou rupturas amorosas,
to no ano passado quando via no televisor as ima-
des figuras das letras do nosso país.
coisas, que mundo é que estamos a criar?”.
ou pelo stress, mas à medida que a doença evolui
gens que lhe chegavam a casa dos fogos e das vidas de quem não conhecia e que só dessa ma-
O caminho da educação e a desumanização da so-
e se não houver um tratamento adequado, as cri-
ciedade são dois assuntos que muito a fazem pensar.
ses podem despertar com maior frequência e por
neira as sabia presentes. E vinha-lhe à ideia a
Talvez por ser mãe de dois filhos de dez e doze anos
motivos que de outra forma não o justificavam.
exposição do sofrimento nos televisores em to-
e por ter receio que o mundo que aí vem, e que irá ser
Cristina segue uma medicação para evitar no-
das as casas. E porque começava a ficar pertur-
o deles, não seja o melhor.
vas crises, um estabilizador de humor ligeiro à
bada derramou no papel um desabafo de quem
Sociedade
Recreativa
AUTOR: LUÍS AFONSO
Soube que tinha a bipolar do tipo II (crises pro-
base de valproato, e os anti depressivos quan-
sente a dor alheia na própria dor. De “coração
fundas de depressão e ligeiras fases de mania)
do tem uma crise mais forte de depressão. Se
aberto” Cristina recebe a poesia e sente nela um
EDITORA: DOM QUIXOTE.
há cerca de dez anos atrás. O diagnóstico foi-lhe
tomar a medicação com uma frequência sau-
prazer que não pode ser medido.
Sociedade
dado na ADEB, depois de ter visto por acaso um
dável, isto é, sempre, as recaídas não surgem.
São os próprios especialistas a dizer que os doen-
tiva reúne os dese-
filme na televisão sobre a vida de uma mulher
Leva uma vida mui-
tes bipolares são dotados
nhos do cartoonis-
que fora presidente da associação americana,
to agitada não pe-
Depression and Bipolar Support Alliance, que
la doença, mas por
serviu de moldes para a ADEB. As crises daque-
ser mulher e por as-
la mulher que via na tela pareciam-se demasia-
sim ser a vida de uma
do com as suas e por assim ser anotou o núme-
mulher nos dias de
ro de telefone da associação.
hoje. O trabalho co-
Com isto se explicava a irritabilidade que surgia
mo funcionária públi-
de um momento para o outro e o descontrolo:
ca, a família, a casa e
“não tinha paciência para ouvir os meninos e eu
ainda o apoio a duas
“Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.”
- Florbela Espanca, 8-01-1916
pela sensibilidade. Cris-
ta Luís Afonso, publicados na “Pública”,
tina Diniz pensa que tal-
revista do jornal “Público”, entre 2001 e
vez possa ter sido essa a
2005. O livro mostra-nos os retratos não
razão que a levou à doen-
só do nosso país como também do resto
ça: “há-de haver uma al-
do mundo, através do apurado humor sa-
tura no caminho em que
tírico deste desenhador nacional. Com ra-
aquilo degenera para pa-
ízes alentejanas, Luís Afonso é também o
tológico
criador de Bartoon e de Barba e Cabelo.
porque
quem
sente muito intensamen-
gosto imenso dos meus filhos”. A sua bipolar traz-
associações. Para além da ADEB, da qual faz parte
te as coisas normalmente acaba por ter uma pertur-
lhe mais depressões do que fases de mania. Mas
dos corpos regentes, é também sócia de uma asso-
bação emocional”.
quando a disponibilidade mental para os filhos
ciação de apoio aos doentes com Alzheimer, porque
Para eles, a escrita, a pintura, ou qualquer outra ex-
não parece ser a suficiente encontra umas pala-
na sua família existe um historial desta doença e
pressão artística pode ser uma ajuda muito impor-
vras para os sossegar. Desculpando o cansaço e
porque “é uma associação com muito valor” e por-
tante. A arte pode também auxiliar os médicos a me-
Diário
Remendado
os nervos, os filhos já percebem o que quer dizer,
que Cristina se preocupa com as coisas da vida.
lhor apoiar os doentes, a compreendê-los.
AUTOR: LUIZ PACHECO
E se o seu dia pudesse ser medido em 48 horas,
Aristóteles asseverava que muitos dos que se des-
EDITORA: DOM QUIXOTE.
“têm de dar um ‘descontosinho’ à mãe”.
Recrea-
Há também o outro lado da doença, no seu caso
“com energia a condizer”, escreveria um livro di-
tacavam nos domínios da filosofia, da poesia e das
Diário Remendado é
a fase de hipomania, que é a mania ainda ligeira.
ferente, de prosa. Até lá a escrita continua dentro
artes tinham tendência para a melancolia, pa-
o título da mais re-
Nesse período, que costuma ser curto, a energia
de si e isto desde os tempos de escola, quando os
ra esse estado que concede simultaneamente a
cente obra publicada
parece ser sobre-humana, a fala, muito rápida e
professores lhe achavam graça ao que rabiscava
dor e o prazer. O prazer de escrever, de pintar ou
do polémico escritor, Luiz Pacheco. Um
os planos multiplicam-se. Acha-se capaz de fa-
e isso incentivava-a a prosseguir nas lides das le-
simplesmente de imaginar e pensar advém mui-
diário que não foi escrito para ser pu-
zer tudo ao mesmo tempo. “Ás vezes saem umas
tras. Aos doze anos escrevia aquilo que chama ho-
tas vezes dessa circunstância. Lord Byron, Edgar
blicado e que vive dos dias de um autor
parvoíces que toda a gente acha graça”. Há quem
je de “poesias de criança”. Aos quinze participou
Allan Poe, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Ernest He-
sobejamente conhecido pelo seu humor
pense que isso já faz parte do seu feitio mas ela
nos Jogos Florais da Escola Secundária de Vila
mingway, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro
mordaz e pela sua esmerada ironia. O
sabe que não, que daí a uma semana lhe espe-
Franca e foi premiada. A poesia surge-lhe na vida
e Florbela Espanca, são nomes de grandes escri-
tempo desta obra remete-nos ao ano
ra a depressão. E da hipomania, quando diz estar
espontaneamente nas fases em que a vontade de
tores que marcaram a história das letras e simul-
de 1971 e leva-nos até 1975.
“com o diabo no corpo”, passa em dois tempos pa-
escrever lhe chega à superfície e exige fazer-se ou-
taneamente pensa-se que sofriam desse mal que
ra a desilusão. Quando se apercebe de que não
vir mas a “inspiração não é por encomenda” e por
vem da inconstância. Os poetas bipolares… •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
28
CULTURA
• PERFORMANCE
vivem”, explica. E por isso quando Ro-
Vou a tua casa
ram e entretanto eu fui ficando com
portava-se como se já ali tivesse esta-
um autocolante preso à testa. Às ve-
do, como se partilhasse das memórias
zes dá jeito. Às vezes não”.
daquela casa.
isto não é teatro ao domicílio
UMA CASA EM TORRES VEDRAS, LISBOA OU LONDRES. UM BAR DE ALTERNE, UMA
IGREJA, UM MUSEU, UMA ESTÁTUA. O ESPECTÁCULO CHAMA-SE VOU A TUA CASA. O
ACTOR ROGÉRIO NUNO COSTA JÁ FOI A CASA DOS ESPECTADORES, JÁ SE ENCONTROU
para o domicílio. Poucos compreende-
gério tocava à porta do espectador com-
Diogo Correia, espectador do “lado b”, diz
“Todas as casas são iguais, o que muda é
que o NoCaminho é como “estar num es-
a maneira como olhamos para ela”, diz
pectáculo teatral muito próximo da nossa
Selma, uma das espectadoras do “lado
vida, estar com as pessoas realmente; as
a”. E todos os espectáculos do Rogério
conclusões que se tiram daí são impor-
“nas casas”, como costuma dizer, foram
tantes, é algo laboratorial, muito viven-
diferentes, ainda que houvesse uma ba-
cial”. E confessa que ficou amigo de Ro-
se comum. Antes de chegar envia uma
gério apesar de nunca mais terem falado
mensagem: “estou atrasado”. Um as-
um com o outro. “Depois da performan-
sistente chega primeiro e explica as re-
ce parece-me que não consigo deixar de
gras: pode fazer-se tudo aquilo que nor-
sentir um carinho especial por ele; para
malmente não se faz num espectáculo
além de mais foi muito pessoal”.
de teatro. Faça de conta que está em ca-
Neste “lado b”, terminado há alguns
sa: pode atender o telemóvel, pode ir à
meses, Rogério sentiu-se mais “des-
COM ELES NUM ESPAÇO PÚBLICO E AGORA VAI FICAR À ESPERA, NA SUA PRÓPRIA
casa de banho. O Rogério chega com um
protegido”. Sobretudo porque não es-
saco às costas, começa a tirar coisas lá
tava dentro de uma casa, mas tam-
CASA, QUE O ESPECTADOR TOQUE À CAMPAINHA E DIGA “É PARA TI”. UMA TRILOGIA
de dentro. Ausculta as paredes, os tape-
bém porque a performance era só para
tes. Cola post-its. Fecha-se numa divi-
uma pessoa, numa lógica de “equilíbrio
são da casa, colando fios e papel nas
de forças”. “Eu agora vou estar nas ru-
ombreiras da porta. Mostra um caderno.
as agressivas, não nas casas. Eu ago-
TEATRAL PERTO DO FIM. OU DO PRINCÍPIO.
Folheia
VERA MOUTINHO
É
fotogra-
fias de casas on-
uma rua movimentada de Lisboa,
na terceira (lado c) irá recebê-lo na sua
“Em inglês a coisa mudou substancial-
num fim de tarde de Fevereiro. À
própria casa, em Lisboa. A performan-
mente. Não é a minha língua materna,
um
porta do nº14 da Rua Castilho, ao pé da
ce começa desde o momento em que
não posso através dela comunicar da
do e diz em 34
alguém liga e marca o encontro.
mesma maneira como o faço em Lis-
estátua, o Diogo espera pelo seu espec-
boa. Nos momentos em que me falta-
de viveu. Na mão
mapa-mun-
línguas a palavra
táculo, que está atrasado. Lembra-se de
“Pensei em questionar a própria ideia
“amo-te”.
Dan-
que escolheu aquele local porque uma
de ir a casa de alguém”, escreve Rogé-
ram as palavras, socorri-me de outras
ça com a dona
vez ficou lá muito tempo à espera com
rio no blog que serve de caderno de bol-
coisas”. As “coisas” neste espectácu-
da casa e ofere-
“Todas as casas são
iguais, o que muda é a
maneira como olhamos
para ela.” - Selma, espectadora do lado A.
ra vou estar nas
ruas agressivas,
não nas casas.
Eu agora... (ad
aeternum). A ver
se me convenço”, escreve no
blog. Seguiramse cafés, museus,
pessoas que mal conhecia, porque gos-
so das suas ideias e experiências. Entre
lo do Rogério são as pessoas, os seus
ce-lhe um objecto seu, embrulhado. Co-
igrejas, um bar de alterne, jardins. Es-
ta de prédios de escritórios, porque a
Agosto de 2003 e Março de 2004, Rogé-
objectos, as suas casas. Coisas diferen-
la um último papel na parede com a pa-
pectáculos que duraram horas, espec-
estátua é muito feia e porque fica per-
rio percorreu com o seu “lado a” casas
tes, únicas em cada um. “Trabalhei com
lavra “amo-te” e sai. Envia pouco tempo
táculos que duraram minutos. Como
to da Cinemateca. Quando o “espectácu-
em Torres Vedras, Lisboa e até Londres:
a relação das pessoas com a casa onde
depois uma mensagem a despedir-se.
um em que o espaço era o Teatro Nacional e a peça Serviço de Amores en-
lo” chegou, apresentaram-se. “Rogério,
O espectáculo foi algumas vezes refe-
Diogo”. Na mão, um leitor de cds, uma
rido como teatro ao domicílio, sendo
tão em cartaz. “Esta escolha está no
planta e pedras de vaso. A performance
mesmo comparado à proposta do ac-
meu top10”, diz Rogério. “Um espectá-
começava e à volta a vida continuava.
tor brasileiro Raul de Orofino, conhe-
culo dentro do espectáculo”. Mas. ape-
O espectáculo chama-se NoCaminho e
cido por fazer peças de teatro em lo-
sar disso, o actor explica que o encon-
faz parte da trilogia Vou a tua casa que
cais pouco habituais e pela sua má-
tro correu mal porque percebeu que a
o actor Rogério Nuno Costa apresenta
xima: “O Teatro é como pizza. Você
escolha daquele local foi uma espécie
desde 2003 e que o próprio define como
pede. Eu levo. Onde quiser”. “As du-
de resposta a uma discussão pessoal
uma “trilogia teatral em forma de ma-
as propostas foram identificadas co-
sobre teatro. O espectador já conhecia
pa-percurso: o ponto “a” é a tua casa, o
mo teatro ao domicílio, mas para a
o Rogério, portanto. Rogério entrou na
ponto “c” é a minha, o ponto “b” é aque-
proposta do Raul era indiferente a coi-
sala e poucos minutos depois saiu.
le sítio impossível onde por ti sou apa-
sa passar-se numa casa, num hotel ou
Percebe-se que a linha que separa a ilu-
nhado no meio”. Uma “aventura artísti-
num avião”, explica Tiago Bartolomeu
são da verdade é aqui muito frágil. Para
ca” em que a óbvia questão dos limites
Costa. “E mais: tinha de ser feita para
Tiago Bartolomeu Costa, Rogério quer
do teatro é acessória porque o que lhe
um mínimo de 20
interessa são “as pessoas, as casas e o
pessoas. Era al-
facto de ir ter com elas”. E adverte: isto
guém que che-
não é teatro ao domicílio.
gava a uma ca-
Para Tiago Bartolomeu Costa, produtor
sa e se instala-
e investigador de História da produção
va, fazendo ali
do teatro, “a proposta do Rogério obri-
o seu teatro. No
ga o espectador a pensar-se”. Além
Vou a tua casa
disso, “insere-se numa linha de utiliza-
isso não aconte-
ção de espaços não-convencionais, que
ce. Aquilo é feito
é uma das linhas fortes de um conjun-
para o especta-
to de novas propostas que começaram
dor. No momen-
Um assistente chega
primeiro e explica as
regras: pode fazer-se
tudo aquilo que normalmente não se faz num
espectáculo de teatro.
Faça de conta que está em casa: pode atender o telemóvel, pode ir
à casa de banho.
“fazer do espectáculo um momento da vida, sendo que é sempre
um
espectáculo.
Nós acreditamos
que ele faz aquilo só para nós, como quando achamos que só nos
dizem
“amo-te”
a nós. É por is-
to”. Em algumas
tade da década de 90, e que convocam
casas os espec-
outras disciplinas e questionam o lu-
tadores criaram
gar e responsabilidade do espectador
uma espécie de
na construção de um objecto”. A pro-
plateia improvisada. Preparavam-se
parede nós nos emocionamos, porque
tecção que o estar numa plateia sugere
para receber uma peça de teatro. No
aquelas letras têm a forma e o som da
é abolida no Vou a tua casa. Na primei-
caderno de bolso electrónico, Rogério
mais bela voz a dizer ‘é só para ti’”. A di-
ra parte (lado a), o actor foi a casa do
espectador; na segunda (lado b) encontrou-se com ele num espaço público e
VERA MOUTINHO
a aparecer sobretudo na segunda me-
so que quando o
Rogério
escre-
ve “amo-te” nas
folhas presas na
desabafa: “ disse aos jornalistas todos
mensão biográfica do espectáculo ajuda
que não era teatro ao domicílio. Quan-
a percebê-lo. Rogério não é de Lisboa. As
do muito seria teatro no domicílio, ou
raízes estão em Amares, Braga. Quando
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
29
CULTURA
JOSÉ LUIS NEVES
REVELAÇÃO
por Marta Pais Lopes
• PEDRO PAIVA
“O documentário é uma
oportunidade de escolha”
P
edro sempre gostou de cinema.
sos de Espera foi o resultado final
dos. “Não é preciso uma indústria, no
Em Famalicão, onde nasceu e
de um curso intensivo de 3 meses
sentido megalómano do termo, mas é
cresceu, não havia cineclubes. A ci-
promovido pela Fundação Calouste
preciso uma máquina bem oleada.”
nemateca de Pedro Paiva sempre foi
Gulbenkian. O Curso de Realização
Pedro nunca teve a barba tão gran-
a televisão, o que não o impediu de
de Documentários foi orientado pe-
de. O corte da barba foi negligenciado devido ao novo projecto que tem
escolher o seu caminho. Desde pe-
la equipa dos Ateliers Varan, de Pa-
queno que sempre gostou de coi-
ris. O percurso de aprendizagem de
em mãos. É um documentário, do
sas que implicassem a relação com
Pedro ultrapassa a área cinemato-
qual ele próprio é personagem, cujo
os outros. Em criança, Pedro queria
gráfica. Já fez workshops e cursos
tema está ainda bem escondido.
ser arqueólogo. No entanto, entrou
de representação, fotografia, dese-
Pedro conta apenas que começa em
para a Escola
Superior
de Teatro e
Cinema
de
Lisboa para
fazer o cur-
“Não tenho computador, não tenho câmara,
não tenho câmara
fotográfica.”
etc.”, revela o actor. Mas o mais impor-
Portugal, segue em Inglaterra, volta
pressão corpo-
para Portugal e acaba noutro conti-
ral. Com o que
nente. “Falei com dois amigos e dis-
aprendeu, além
se ‘tenho esta ideia para fazer este
de
filme e sinto-me impulsionado para
documentá-
rio, faz instala-
fazer isto’. Eles responderam ‘então
ções, videos pa-
o que é que estás aqui a fazer?’” Pa-
seguindo os ramos de montagem e
ra teatro, já fez dois making of e vide-
ra ele, fazer um documentário é uma
so de cinema,
chegou à capital, teve de viver numa no-
nho, dança, ex-
va casa, com novas pessoas. E a ideia pa-
tante é que agora o espectador é o actor. “
realização. Mas não foi pelo cinema
os para o extinto Ballet Gulbenkian.
ra esta proposta nasceu exactamente da
Vão ser intervenientes directos nas per-
que enveredou na prática.
Pedro não tem câmara de filmar.
“Queres estabelecer um diálogo,
busca, que nunca esquece quem vê.
queres contaminar as pessoas com
vontade de questionar a cidade, as suas
formances em minha casa”, explica Ro-
Pedro acha que o documentário de-
“Não tenho computador, não tenho câ-
relações, os seus espaços. Questionar o
gério. “Serão quase totalmente produzi-
fine o seu carácter. “O documentá-
mara, não tenho câmara fotográfica.
um discurso, mas não é um discur-
“estar em casa de alguém”. A ideia evo-
das, pensadas, ensaiadas e executadas
rio tem muito a ver comigo porque diz
Mas tenho óptimos amigos.” É com
so finalizante.” Afinal de contas, “um
luiu depois para a trilogia “de modo a dar
pelo público, com a ajuda do criador, que
respeito à relação com as pessoas e
material emprestado que parte para
documentário é um ponto de vista,
um ar performável ao resto do percurso”,
sou eu”. À disposição do espectador estão
não propriamente à relação com o ac-
as suas criações. O dinheiro que ga-
não é a realidade. Não é ‘tomem lá
explica Rogério. “O Vou a tua casatem a
textos, fotografias, vídeos, objectos, mú-
tor.” É esta relação com os outros que,
nha é algum, mas “na maior parte das
a verdade’, é ‘isto também existe’. É
ver com uma reacção epidérmica à cida-
sicas, que poderá utilizar para construir o
segundo Pedro, dá toques de ficção a
vezes não é justo.” Cá os apoios não
uma oportunidade de escolha e aí é
de”, conclui Tiago Bartolomeu Costa.
seu espectáculo. “Se a pessoa quiser fi-
um tipo de obra que, em princípio, li-
são muitos, principalmente de priva-
que começa a liberdade.” •
Rogério trabalha como actor desde 1996,
car em minha casa a dormir para saber
da com factos. A mover tudo isto está
num tempo em que ainda estudava Co-
como são os barulhos da minha casa à
um ponto de vista, pois “nunca se con-
municação Social. Formação oficial co-
noite, pode ficar”, remata Rogério.
segue abranger a realidade, ou o que
mo actor nunca teve, mas considera que
Rogério diz muitas vezes que nas su-
quer que isso seja, de uma vez só”.
a recebeu trabalhando com pessoas co-
as viagens de comboio para Braga “faz
Além disso, uma equipa de filmagens,
mo Lúcia Sigalho, da companhia Sensur-
parte” da vida da pessoa que viaja ao
mesmo reduzida a dois elementos,
round. Dança, cenografia, interpretação,
seu lado. Infiltra-se no seu espírito,
como acontece muitas vezes no docu-
no seu sono, nos
mentário, não pode ser ignorada pelas
seus livros. Tal
personagens reais. “O facto de se es-
foram
campos
que explorou. A
insatisfação com
o seu trabalho somente como intérprete
empur-
rou-o para uma
“caminho mais solitário”: o das per-
“Se a pessoa quiser ficar
em minha casa a dormir
para saber como são os
barulhos da minha casa
à noite, pode ficar”
- Rogério.
formances que faz
como invadiu a
tar lá a filmar vai criar uma situação. A
casa das pesso-
pessoa vai saber que estás lá.”
as depois de pe-
Pedro não acredita em coincidências.
dir licença para
Por isso não hesitou quando conhe-
entrar. Tal como
ceu Sérgio, no Estabelecimento Pri-
se expôs com al-
sional de Lisboa. “A primeira pessoa
guém num qual-
que me veio perguntar quem eu era
quer espaço pú-
foi o Sérgio. Há aquelas coisas que
não são coincidências. Não existem...
sozinho, como este Vou a tua casa. E que
blico. O objectivo parece ser sempre
é uma trilogia, não esqueçamos. Aquilo
o mesmo: pertencer ao mundo de al-
Percebi que era com o Sérgio que
a que o autor chama as “sessões expe-
guém, fazendo do teatro um momento
queria falar.” Compassos de Espera
rimentais” do “lado c” decorreram entre
da vida, que não a interrompe. “Uma
é o nome do documentário realizado
Maio e Agosto, altura em que tiveram iní-
coisa que me fez sempre confusão foi
por Pedro Paiva, no qual se segue a vi-
cio as “sessões oficiais”, que têm rema-
trabalhar como actor e não ficar ami-
da de Sérgio, ao sair da prisão em pre-
te anunciado para o final do ano. Tudo é
go das pessoas”, confessa.
cária. “Quando fui para a prisão, o que
pensado, preparado. Tudo tem a aparên-
Nas escadas do nº14 ainda estão o Ro-
eu queria era pegar na pessoa e fazer
cia de ser espontâneo, verdadeiro, real.
gério e o Diogo. Não falam, escrevem.
só os dois lados: ele está na prisão e
Deste “lado c” fazem parte, tal como no
“Realmente, aqui está muito frio. A esta
sai de volta para a vida quotidiana. Lá
“lado a”, os chamados “observadores” (co-
hora as pessoas começam a sair dos
dentro, percebi que era mais difícil sair
mo Tiago Bartolomeu Costa), que estão
escritórios e vão para casa”, escreve o
e ter de voltar.” Foi este documentário
presentes nos espectáculos em casa do
Diogo. Rogério levanta-se num ímpeto,
que deu a Pedro uma Menção Honro-
Rogério, “contaminado o projecto com as
escreve uma última frase num papel e
sa na categoria Onda Curta do Festival
perspectivas de cada um e os interesses
deixa-o caído na árvore mais próxima.
Indie de Lisboa 2005.
disciplinares que têm orientado as su-
Desaparece. Diogo levanta-se, lê o pa-
Pedro gosta de aprender. Compas-
as acções como críticos/investigadores/
pel: “I will love you, unconditionally”. •
VERA MOUTINHO
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
30
CULTURA
3
C
VERA MOUTINHO
ila começou a cantar em casas
me deixaria matar!’ Foi a cantar a Lágrima que
de fado aos 25 anos, como clien-
Cila viveu um dos momentos mais marcantes
te, no início. Está no Clube de Fa-
no Clube de Fado. O público contava com go-
do há dois anos. Cila nunca sabe o
vernantes angolanos. Quase a chegar ao fim da
que vai cantar. “Chego lá e é aqui-
música, Cila parou de cantar. O guitarrista sus-
lo que o meu coração pede. Não se prepara na-
surou-lhe ‘uma lágrima, uma lágrima tua’, ao
da.” A sua voz rouca, que se nota à primeira ser
que ela, com esforço, respondeu ‘eu não me
de fadista, transmite emoção. “É uma mistura
esqueci da letra, eu não consigo é cantar’. “As
de sentimentos tão grande! Por vezes até ve-
lágrimas caíam-me. Saí da sala e os senhores
nho de lá cansadíssima, a emoção é tamanha!”
vieram dar-me os parabéns; também eles es-
‘Se eu soubesse que morrendo/ Tu me havias
tavam a chorar de emoção. E os meus CD esgo-
de chorar/ Por uma lágrima tua/ Que alegria...
taram nessa noite.” •
A
VERA MOUTINHO
HISTÓRIAS DO FADO
EPISÓDIOS DA VIDA DE TRÊS DOS FADISTAS DO
CLUBE DE FADO, JUNTO À SÉ DE LISBOA
MARTA PAIS LOPES
A
lcindo esteve sem cantar pro-
se aguentam tanto tempo.” No Clube de Fa-
fissionalmente apenas 20 dias
do, a sua experiência concedeu-lhe lugar
na sua carreira de 50 anos co-
cativo. Alcindo recorda aquela que foi “tal-
mo fadista. A sua voz casti-
vez a pior noite” da sua vida. Estava a cantar
ça começou a ser ouvida na
na Parreirinha quando soube da morte do
Emissora Nacional e foram inúmeras as ca-
pai. Mas continuou a cantar, provavelmente
sas de fado por onde já passou. Começou na
com mais alma que nunca. É este episódio
lcindo está sentado na sua cadeira junto à en-
Márcia Condessa. Desse tempo, guarda re-
que conta se lhe perguntam o que é o fado.
trada. Olha de soslaio por entre as rugas e ex-
cordações: “Eu cheguei a entrar para a Már-
“O fado talvez seja uma maneira de a gen-
clama “Maria Calas-te!”. Ignorando o comentário,
cia Condessa às 9 horas da noite e a sair de
te deitar cá para fora tudo aquilo que sen-
Teresa continua a cantarolar com frescura. Subin-
lá no outro dia às 10 ou 11 horas da manhã.
te, coisas boas e coisas más. O fado é assim,
do as escadas que ela desce, encontra-se uma sa-
Hoje já não se usa isso. As pessoas já não
sempre foi assim, desde o início.”
la com mesas, onde está Cila absorta num livro de
poemas, cantando o que lê num mumúrio.
Os fadistas do Clube de Fado parecem ter sido escolhidos a dedo: a experiência de Alcindo Carvalho,
de 72 anos, contrasta com a espontaneidade dos
25 anos de Teresa Lopes Alves. A mediar, está a
calma madura de Cila Guimarães, com 42 anos.
“Mana, posso tirar os collants?”, pergunta Teresa. Cila responde: “Olha, eu deixo-te porque também já tirei os meus. Eu disse-te que nunca se cantava sem
T
eresa está no Clube de Fado apenas
ele ‘mas não tem nada a ver com a pessoa
desde Março, mas parece ter nasci-
que eu vi cantar!’” Para Teresa, o fado não é
do ali. Tem uma voz forte e limpa. Diz
mais do que contar histórias. O fadista é o in-
cada palavra com a clareza de quem
VERA MOUTINHO
térprete dessas histórias.
não tem medo. “Consigo ser quem
“Tenho de passar uma mensagem e não a
realmente sou ali dentro e não tenho qualquer
consigo passar se estiver com o estado de
espécie de entraves, de bloqueios”.
espírito que não seja o dessa mesma men-
collants, mas eu hoje já tirei. Não aguentei!”. Apesar
Lembra um episódio com muito significado:
sagem. Se eu estiver a contar que tive um
do céu escuro e da lua já no seu lugar, está muito ca-
“Já estava no fim da noite, com um ar comple-
desgosto de amor, não posso fugir à serie-
lor. Paredes de pedra grossa cobrem quase todo o
tamente trapalhão. Um senhor veio ter comi-
dade a que isso obriga.” O mesmo senhor da
espaço, mas não o arrefecem. Tudo aqui é quente.
go e perguntou ‘quem foi aquela menina que
sua história perguntou-lhe ‘sofreu assim
As vozes que cantam ao fundo, a comida fumegante,
cantou primeiro?’. Eu respondi ‘fui eu’. Diz
tanto na sua vida?’ •
os copos cheios, o fumo do tabaco – a noite. •
• LINA VALENTE
A minha cruz
IRINA MELO
Tenho na vida uma cruz
Vou levando o meu calvário
Por isso peço a Jesus
rio de que está toda arranjada, endi-
Seja qual for o meu norte
Para me prolongar a vida
reita os ombros descaídos, rasga um
Já que eu tenho esta cruz
Não quero que a minha cruz
na na Esquina de Alfama. Não há tempo a
sorriso e, apontando para os brincos
Não me venha pior sorte
Fique no mundo perdida
perder, até porque já perdeu demasiado.
e o colar de bijuteria multicolor que a
porta de uma das casas de fados
Com um marido que lhe batia e a proibia
enfeitam, confidencia envaidecida “Foi
“Não gosto do fado da desgraçadinha”,
Desfia a sua história enquanto desce pe-
silhueta fica mais bonita. Ao comentá-
Mas uma cruz bem pesada
las enviesadas vielas do bairro. A actua-
Eu digo ao fado e juro
ção na Baiuca já acabou, mas esperam-
Que não tenho culpa de nada
À
Do lado de fora, um homem de camiso-
onde costuma cantar, tenta ven-
de cantar – mesmo em casa - e com mui-
o meu marido que mos deu no Natal”.
atira à pergunta do que gosta de cantar.
la do Benfica cavada e boné na cabeça
der rifas ao guitarrista que ainda há
tos dos filhos, dos vinte que pariu, que se-
Logo que a avista, o dono da Es-
Prefere os fados alegres, para desgra-
espera. É o segundo marido de Lina Va-
pouco a acompanhava no Povo que la-
guiram pelo ‘lado errado da noite’.
quina de Alfama apressa-se a cor-
ça bastou-lhe a vida. A angústia des-
lente, o “santo” que a ajudou a recons-
rer para um espaço improvisado na
ses anos rendeu-lhe alguns versos:
truir a vida, depois da morte do primei-
vas no rio. O homem tira o euro do bolso, mas recusa a rifa que lhe dá direito
A culpa é do destino
ao sorteio de uns copos empoeirados
Da sorte de uma mulher
que a fadista lá tem em casa. “Faço isto para ganhar mais algum”, conta Li-
exígua sala, grita que quer silêncio
“Fiz este poema numa altura em que ti-
ro - que nem por um instante lamenta.
“porque se vai cantar o fado” e anun-
nha um filho a deitar sangue pela boca,
Hoje, quando acaba a ronda pelas ca-
A quem o poder divino
cia o seu nome. Lina agarra o xaile
outro preso por causa da droga, um a
sas de fado de Alfama, vai de carro até ao
Dá força para vencer
preto brilhante, que trazia enrosca-
morrer e um pequenino. Um dia estava
Bairro da Ajuda, onde mora, um luxo que
do numa mão, sacode-o e coloca-o
tão desesperada e comecei a escrever,
só há bem pouco tempo conheceu: “As
na Valente, que aos sessenta e seis
anos calcorreia, todos os dias, algu-
No emaranhado dos clarões que se
sobre as costas. Atira a cabeça pa-
a escrever, a escrever…. E quando dei
minhas filhas não queriam que eu ficasse
mas das mais conhecidas casas de Al-
soltam dos candeeiros das ruas e das
ra trás e cerra os olhos. Já se ouvem
por mim tinha um poema lindo. Chama-
com ele. Mas, depois de tudo o que ele me
fama. Por amor, apenas.
casas dos moradores, a sua pequena
os acordes…
se A Minha Cruz; já o tenho cantado.”
ajudou, ia dar-lhe com os pés, menina?” •
8ª COLINA • OUTUBRO 2005
AGENDA CULTURAL
31
• MÚSICA
• CINEMA
dos Realizadores do Festival de Cannes. Esta foi a 3ª edi-
Coldplay
ção do prémio, criado pelo Ministério da Juventude Fran-
23 DE NOVEMBRO • 21:00 • PAVILHÃO ATLÂNTI-
DE: MARCO MARTINS • COM: NUNO LOPES, BEATRIZ
cês, onde o júri se fez constituir por jovens europeus ciné-
CO • Os Coldplay regressam a Portugal já no pró-
BATARDA • PORTUGAL 2005, 102’. • ESTREIA: 6 DE OU-
filos (18-25 anos). A “Alice” foram atribuídos os maiores
ximo mês de Novembro para um concerto integra-
TUBRO • CINEMAS: MONUMENTAL, FONTE NOVA, KING,
elogios por parte da imprensa internacional. A edição on-
do na digressão que promove “x&y” (2005), último
ALVALÁXIA • Marco Martins estreia-se este ano como re-
line da revista Screen International – a mais importante
álbum de originais editado pelo grupo. O registo
alizador de longas-metragens, com o filme “Alice”. O re-
publicação profissional de cinema a nível europeu, fala do
cheio de alma de Chris Martin e as canções que
alizador estagiou na produção de filmes de Wim Wen-
desempenho “impressionante do actor Nuno Lopes (...), a
conquistaram o mundo com a sua simplicidade
ders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier, e foi ainda
encarnação viva do pior pesadelo de qualquer pai”. • SI-
garantem um espectáculo excelente.
assistente de João Canijo. Mas Marco Martins há vários
NOPSE: Passaram 193 dias desde que Alice foi vista pe-
anos que soma passos no âmbito da realização. 1997 foi
la última vez. Todos os dias, Mário, seu pai, sai de casa e
o ano que marcou o início da sua carreira de realizador,
repete o mesmo percurso que fez até ao infantário, no dia
são. Uma história de amor de um pai por uma filha, que
24 DE NOVEMBRO • 21:00 • AULA MAGNA • Gra-
nomeadamente de spots publicitários, sendo actualmen-
em que Alice desapareceu. A obsessão de a encontrar le-
se sente profundamente isolado, embora vivendo na ci-
vado entre Nova Iorque e Lisboa, “Cinema” (2004)
te considerado um dos produtores de renome do merca-
va-o a instalar uma série de câmaras de vídeo pela cida-
dade. Um rosto igual a outro rosto, uma rua igual a ou-
é o 4º álbum de Rodrigo Leão, que contou com a
do publicitário português. Com “Alice” recebeu o pré-
de, que registam o movimento das ruas.
tra rua, um dia igual a outro dia. Mas Mário acredita que a
participação especial de Beth Gibbons (vocalista
mio “Regards Jeunes”, para Melhor Filme da Quinzena
“Alice” é sobretudo um filme sobre a ausência e a obses-
sua filha vai aparecer. •
dos Portishead) e Sónia Tavares (vocalista dos The
Alice
Rodrigo Leão
Gift), entre outros. A 24 de Novembro, Lisboa recebe Rodrigo Leão para um concerto memorável.
Edukadores
rialistas e a revolução. Trata-se de uma
dinheiro em detrimento da própria vida,
DE: HANS WEINGARTNER. • COM: JAN
crítica que combina a comédia, a políti-
é a questão que sustenta a maior parte
Black Eyed Peas
(DANIEL BRÜHL) E PETER (STIPE ER-
ca e o amor. Jan, Peter e Jule vivem a
dos movimentos sociais. O filme, consi-
8 DE DEZEMBRO • 20:00 • PAVILHÃO ATLÂN-
CEG), JULE (JULIA JENTSCH). • ALE-
sua juventude rebelde. Unidos pela pai-
derado um dos dez melhores em Can-
TICO • “Monkey business” é o novo álbum que os
MANHA/ AÚSTRIA, 2004 •
“Edukado-
xão de mudar o mundo passam os dias a
nes 2004, constitui um especial momen-
Black Eyed Peas vêm apresentar a Portugal, ál-
res” é um filme cuja estreia já aconteceu
avisar os vizinhos ricos, com mensagens,
to de reflexão e retrata ainda os últimos
bum que conta com a colaboração de prestigiados
em Portugal e que aborda tudo o que não
de que os seus dias de riqueza estão con-
dez anos da vida do realizador, outrora
artistas como Jack Johnson, Justin Timberlake,
escapa aos nossos dias: jovens rebel-
tados. É este um retrato geracional, on-
também ele um jovem ocupa, revoltado e
Sting e James Brown. Um espectáculo único, onde
des, sociedades individualistas e mate-
de “edukar” os mais ricos, amantes do
cheio de vontade de mudar o sistema. •
tudo é festa, tudo é funk, tudo é música.
• EXPOSIÇÕES
WORLD PRESS PHOTO 2005 • Centro de Exposi-
edição, foi a imagem do fotógrafo indiano Arko Dat-
de 24 nacionalidades. DOCLISBOA 2005 • Culturgest
maneiras de pensar. Organizado pela AporDoc, As-
ses, nomeadamente a Rússia. O DOCLISBOA 2005
ções do CCB • 30 de Setembro a 23 de Outubro •
ta, da Agência Reuters, que arrecadou o maior ga-
• 15 a 23 de Outubro • Das 11h às 23h. • Preços: 2 Eu-
sociação pelo Documentário, o Festival Internacio-
irá ainda promover debates sobre a situação actu-
3ª a Domingo (10h às 19h) • Preço: 3,50 Euros • Ano
lardão, com uma fotografia tirada aquando do mare-
ros • O Festival de Cinema com a maior afluência de
nal de Cinema Documental de Lisboa 2005 preten-
al do cinema documental em Portugal. Os meios, os
após ano, a World Press Photo convida fotojornalis-
moto que atingiu o sudeste asiático no final de 2004.
público em Portugal volta este ano a Lisboa. O DO-
de incentivar uma reflexão mais aprofundada sobre
agentes e os resultados serão os temas mais fala-
tas de todo o mundo a participar neste concurso, a
Em 2005, participaram 4266 fotógrafos de 123 paí-
CLISBOA 2005 é um festival exclusivamente dedica-
temas actuais, como o Nacionalismo, a Identidade e
dos. Com o apoio financeiro do ICAM/MC e da Câma-
mais importante competição internacional de foto-
ses, num total de mais de 69 mil imagens, tendo sido
do ao documentário e este ano abre as portas a no-
as Fronteiras. Pretende também dar a conhecer ao
ra Municipal de Lisboa, o Festival irá decorrer entre
grafia de imprensa. No ano em que completa a 48ª
atribuídos prémios em 10 categorias, a 63 fotógrafos
vos géneros e novas tendências, privilegiando novas
público português a cinematografia de outros paí-
os dias 15 e 23 de Outubro, na Culturgest. •
• ENTREVISTA • LUÍS AFONSO
• TEATRO
“Se não criticasse a sociedade não fazia cartoons”
RITA AFONSO
EM DEZEMBRO, OS CARTOONS DE LU-
para a actualidade, utilizando alguma
dá gozo é a ideia. Os cartoons podem
no ano passado, mas ainda não vi co-
ÍS AFONSO CHEGAM AO TEATRO-BAR
ironia e, se possível, o humor.
não ser uma forma de criticar a so-
mo ficou depois das alterações que
DO TEATRO DA TRINDADE. O CRIA-
Quando é que começou a desenhar?
ciedade. Mas, para mim, se não criti-
lhe fizeram. Gostei, e quando assis-
Greta Garbo
DOR DE BARTOON VÊ ASSIM AS SU-
Comecei a fazer desenhos em miú-
casse a sociedade não fazia cartoons.
ti, quase nem me lembrei que havia lá
AS TIRAS DIÁRIAS DE BD (DO JORNAL
do, sempre para servir as histórias
O que tem a dizer sobre a peça que
textos meus, o que é bom sinal.
TEATRO DA TRINDADE • DE 18 DE SETEMBRO A 30 DE OUTUBRO • DE 4ª
PÚBLICO ) GANHAREM VIDA NOS PAL-
que inventava... Mas nunca desenhei
estará em cena no Teatro-Bar do Te-
Existe alguma situação em especial
A SÁBADO – 22H; DOMINGO – 17H • M/12 ANOS. • PREÇO: 8 EUROS. • TEX-
COS, PELA MÃO DE CARLOS CURTO.
que gostasse de caricaturar?
TO: ELISA LISBOA • INTERPRETAÇÃO: ELISA LISBOA, MARIA BARRACOSA. SINOPSE: No final da vida, escondida no mais absoluto anonimato, a
L
uís Afonso é um alentejano licen-
pelo desenho, o meu interesse esteve
atro da Trindade, “Bartoon”, inspira-
sempre nas próprias histórias.
da nas suas tiras de BD?
Gostava de um dia ter de inventar um
Onde é que vai buscar a inspiração?
É um trabalho de recriação no qual
cartoon desses que não criticam na-
ciado em Geografia que trabalhou
Para o trabalho do dia-a-dia, baseio-
não tive intervenção. E acho bem que
da, inócuos, com meninas ou animais
tre a Experiência e o Sonho.
nesta área até 1995, data a partir da qual
me em toda a informação disponível,
seja assim, a peça não tem de ser
(ou com meninos e animais), falan-
passa a dedicar-se exclusivamente aos
ou seja, tudo o que “faz a agenda”.
exactamente como o “Bartoon”, de-
do de futilidades. Era sinal de que o
Bartoon
cartoons. Passou por diferentes jornais
Às vezes também me inspiro em coi-
ve ser aquilo que o encenador cria
mundo estava melhor e já não havia
momentaneamente as incertezas
e revistas, como A Bola, Grande Repor-
sas que observo por aí.
a partir dos textos originais. Sou da
assunto. Nesta encarnação não pen-
velha Garbo encontra-se face a face com a sua Juventude... um duelo en-
DA
e angústias que a actual socieda-
tagem e Público nos quais permanece.
Considera que o cartoon é a sua melhor
opinião de que deve haver liberdade
so ser possível fazê-lo, mas numa
TRINDADE • 1 A 17 DEZEMBRO
de inevitavelmente provoca. É nes-
Considerado um dos cartoonistas mais
forma de expressão?
criativa. Assisti à primeira antestreia,
das próximas, quem sabe? •
• 5ª, 6ª E SÁBADOS ÀS 23H00. •
te local/universo que questionam e
marcantes da imprensa portuguesa,
Exprimo-me melhor através do carto-
TEXTO: CARLOS CURTO • INTER-
reflectem sobre a(s) vida(s), com
Luís Afonso foi galardoado com o Pré-
on porque já estou há muitos anos nes-
PRETAÇÃO: PÊPE RAPAZOTE, PE-
sarcasmo, humor e sentido crítico,
mio Nacional de Cartoon em 1993 e com
ta área e as coisas saem-me mais ra-
DRO ALPIARÇA, VERA FONTES
muitas vezes notável e raras vezes
o Prémio Nacional de Humor de Im-
pidamente do que se utilizasse outra
E VICENTE MORAIS. • 70 MIN. •
recriminatório.
TEATRO-BAR
DO
TEATRO
prensa em 1999 e 2000. A iniciativa de
forma de expressão. Mas não sou um
PREÇO: 8 EUROS. • “Bartoon” tem
levar o bar mais conhecido dos por-
tipo “vidrado” no desenho, poderia até
origem nas tiras de Luís Afonso pa-
tugueses ao teatro é inédita. Em en-
passar bem sem desenhar se alguém o
ra o jornal Público. Este espectácu-
trevista à 8ª Colina, Luís Afonso satis-
fizesse por mim (assim tipo uns duen-
lo procura representar um univer-
fez a nossa curiosidade.
des a quem eu dissesse: “tu, dese-
so onde as pessoas se encontram
O que é o Bartoon?
nha aí um tipo sentado”, “agora pintas
para enganar a solidão, esquecer
O Bartoon é uma “tira” diária virada
umas calças às bolinhas”...). O que me
MIGUEL MADEIRA
Proprietário e Editor: Escola Superior de Comunicação Social • Fundadora: Anabela de
Sousa Lopes • Projecto: Telmo Gonçalves • Director: Paulo Moura • Política: João Godinho
e Liliana Batista • Sociedade: Sílvia Dias e Tânia Reis Alves • Ensino: Irina Melo • Mundo:
Pedro Gonçalves • Cultura: São Sousa e Vera Moutinho • Agenda Cultural: Liliana Batista e
Rita Afonso • Letras: Ana Brasil e Andreia Gonçalves• Desporto: Dilpesh V. Laxmidas e André Ferreira• Media: Marta Mesquita • Humor: Marta Pais Lopes e Ana Rita Henriques • Colunista: Oscar Mascarenhas • Fotografia: José Manuel Ribeiro, Nazaret Nascimento e Vera Moutinho • Cartoonista: Edgar Silvestre • Paginação: Jadir D. Martins, João Abreu e Sara Matos • Revisão: Jorge Trindade • Impressão: Lisgráfica. Rua Consiglieri Pedroso, nº90,
Barcarena • Tiragem: 5000 • Periodicidade: Trimestral • Redacção: Campus de Benfica do
Instituto Politécnico de Lisboa • NIF: 503535141 • Tel: 217119000 • [email protected]
HUMOR
A COLUNA TORTA
pelas Damas de Humor
por Edgar Silvestre
EMA!
N
PARECE QUE EM NOVEMBRO EMA CHEGA A PORTUGAL. OS MA-
existem alguns labregos a atiçar
Outra loiça
o meu último artigo de opinião fui crucificado por ter
sido tão cruel com o “portuga”,
mas que posso eu fazer se ainda
CHOS MAIS CRIATIVOS REFREIEM OS ÂNIMOS, NÃO É UMA AC-
SHERYL CROW
já confirmou a sua
presença. Foi ela, aliás, quem sugeriu o no-
o meu bom senso. Na semana
passada fui ver a bola na tasca
lá do bairro, mostraram os re-
TRIZ PORNO. SÃO OS MTV EUROPE MUSIC AWARDS, QUE VÃO PA-
vo dispositivo de segurança: os convidados
RAR LISBOA. AVANÇAM-SE OS NOMES PARA OS POSSÍVEIS HOSTS
vão ser identificados por uma pulseira Lives-
com o dono do café que o resul-
trong, objecto obrigatório a qualquer celebri-
tado que estava na televisão es-
dade ou adolescente que se preze. No entan-
mo já tinha empatado. O senhor
A.K.A. APRESENTADORES QUE FAZEM UMAS MACACADAS E LÊEM O PIOR QUE PODEM O TELEPONTO: SÍLVIA ALBERTO, FERNANDO ROCHA E A MANUELA MOURA GUEDES (SÓ PORQUE LÊ MAL O
TELEPONTO). E SE ELES NÃO PUDEREM HAVERÁ SEMPRE UM DE
levantou e começou a reclamar
tava enganado, porque o Maríti-
to, a segurança nacional não se deixará ludri-
do café ficou atarantado, é ver-
biar e vai estar atenta ao portuga penetra que
mas quem emitia a grelha de
tente passar com a pulseira amarela que lhe
saiu nos cereais ao pequeno-almoço.
SERVIÇO: JOSÉ FIGUEIRAS. •
sultados e houve um tipo que se
dade que a televisão era dele,
resultados era a Sportv. Por falar em bola, o novo treinador do
Benfica, Ronald Koeman. É a cara chapada do Marco Paulo com
o cabelo do Herman José.
MEIO EURITO (no estrangeiro chama-lhe 50 Cent) trará
Os
D’ZRT não foram nomeados para ne-
consigo toda a comitiva habitual, que tivémos o prazer de co-
nhuma categoria. Apesar da rotação diária
nhecer em antecipação no 1º de Outubro. Já que falamos nisso,
do video na MTV, roupas da moda e fãs tres-
alguém é capaz de explicar para quê trazer 5 convidados pa-
loucadas que vão desde o 3 aos 32 anos de
ra o concerto no Pavilhão Atlântico? Mas o rapaz não consegue
idade, a boysband portuguesa não conquis-
fazer nada sozinho? Para gritar a última palavra de cada ver-
tou a malta da MTV. Em declarações à Lusa,
so bastava mais um!
Nesta semana ligaram-me às
5 da manhã, eu atendi, do outro lado estava um amigo meu
que teve o descaramento de me
perguntar se eu estava acordado. Eu respondi, não, não, normalmente eu tenho o hábito de
me levantar às 4 e meia para dar
cabeçadas pelas paredes da casa para dar tempo de às 5 e um
o Angélico, aparentemente o mais bonito e
quarto cortar os pulsos, era ób-
dread, afirmou: “Para mim tanto me faz”.
gunta mais parva que se pode
vio que estava a dormir, é a perfazer a uma pessoa. Mas o telefonema tinha razão de ser, tinham-lhe roubado o carro. Cho-
DIÁRIO DE UMA MOSCA
por Miguel Ferreira
cados? Nem por isso, tendo em
conta que ele mora numa co-
1 DE OUTUBRO 2005. “De todos os humanos, quem
à merda” sem ser para ofender outra pessoa, es-
uma falsa moralidade já que se conspurcam todos os
lónia de Cabo Verde chama-
eu desprezo menos é o pessoal do teatro. Quando uti-
tá quase a colocar-se no lugar de uma mosca e isso
dias. Hipócritas. Estou a voar sem destino. Mas! Es-
da Queluz, mas fiquem choca-
lizam a expressão “vai à merda”, que em príncipio
deixa-me feliz e na merda. • 20 DE OUTUBRO 2005:
tou a ver uma luz!! Que brilhante! É linda!!! Chama por
dos agora, porque quando so-
tem um significado negativo e pejorativo, é para de-
“Mais um dia triste. O nosso holocausto. Milhões de
mim! A visão que me permite olhar para todos os la-
mos assaltados por pessoas de
sejar sorte ao actor. Quem é que gosta de ir à mer-
moscas gazeadas todos os dias. Todos os dias a fu-
dos está centrada só na minha luz preciosa! É só mi-
nível até custa dar entrada da
da e encara isso como algo de muito positivo e essen-
gir dos humanos. Estou a voar, sem esperança num
nha! Amo-a! Vou voar para ela! Ela vai proteger-me
queixa na polícia. Eu fui com o
cial? Os humanos não são certamente. Claro que so-
mundo melhor onde a merda e o lixo abundem sem o
dos humanos! Vou ser livre e feliz! Estou quase a tocá-
meu amigo à esquadra e o bó-
mos nós as moscas. Por isso, quando alguém diz “vai
dedo higiénico dos humanos, que afinal, não passa de
la! Que neon roxo tão lindo!......... •
fia (que tresandava a vinho) perguntou: Então diga lá o que lhe
roubaram. Meu amigo: O auto-
ESPÍRITO ACADÉMICO
por Edgar Silvestre
rádio, senhor inspector. Bófia:
Mais alguma coisa? Amigo: Só
um saco de plástico para levar o
rádio, tiraram o CD que estava lá
dentro, deixaram os meus CD´s
originais sossegados e foram-se
embora. Bófia: Algum sinal de
violência na viatura? Amigo: Por
acaso não, antes de se irem embora fecharam as portas do carro e não sujaram nada. De facto, quando se lida com pessoas
educadas é outra loiça. •

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