O corpo e a alma da Índia

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O corpo e a alma da Índia
O CORPO E A ALMA DA ÍNDIA: O VEREDITO DE AYODHYA E O NOVO
JAMN DO COMUNALISMO INDIANO
Pedro Lara de Arruda
Introdução
Na tarde do dia 30 de setembro de 2010, a Corte de Allahabad (High Court of
Allahabad) finalmente divulgou seu veredito sobre o direito de posse da €rea
historicamente proclamada sagrada por Hindu•stas e Mu‚ulmanos, na cidade de
Ayodhya, regiƒo de Uttar Pradesh. Marco na hist„ria do Comunalismo indiano, o
julgamento foi anunciado ap„s sete dias de adiamento consecutivos e decidiu em favor
da triparti‚ƒo da €rea entre duas fac‚…es Hindus e uma Mu‚ulmana. Mais relevante,
contudo, vem sendo o fato de que, at† o momento, nƒo houve relatos de atos violentos
como os que mancharam de sangue a ‡ndia em 1992 e 2002.
Histórico do caso
Em 1528 o primeiro Imperador Mughal a reinar sobre o territ„rio que hoje
constitui a ‡ndia, Imperador Babur (ou Babar), construiu a imensa Mesquita de Babri
Masjid, numa €rea em que, posteriormente, membros da comunidade Hindu•sta
alegariam ter sido o local de nascimento de sua divindade “Lord Rama” (Lord Ram), h€
mais de 2500 anos antes.
Por cerca de trŠs s†culos o status quo da regiƒo nƒo sofreu contesta‚…es
sens•veis, contudo, ap„s dois s†culos de coloniza‚ƒo inglesa o poder Mughal j€ estava
praticamente contido ao papel simb„lico de principados espalhados pelo pa•s – British
Raj – e, por conseqŒŠncia, surgiu espa‚o para a contesta‚ƒo de v€rias institui‚…es
herdadas deste per•odo. Neste cen€rio, a demanda pela constru‚ƒo de um templo para
Lord Ram foi tornando contornos mais concretos entre 1840 e 1949, quando os
constantes protestos levaram o governo local a declarar esta uma regiƒo contestada e,
para evitar confrontos, proibir o acesso • €rea.
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Bacharel em Rela€•es Internacionais pela Universidade de Bras‚lia. Aluno do curso de mestrado em Rela€•es
Internacionais na Universidade Jawarhalal Nerhu, Nova Dƒlia. Colaborador do Ne„sia.
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Por tr€s do recrudescimento que marcou protestos de 1940 estava o debate sobre
uma independŠncia que j€ se encaminhava para acontecer e, portanto, inseria a
sociedade numa discussƒo sobre o formato do pa•s a ser constru•do. Dentre as diversas
correntes de id†ias que marcaram esse per•odo, as demandas sobre a €rea de Babri
Masjid foram um reflexo imediato do Ram-rajyia, um modelo social descrito
nos textos Hindu•stas que Mohandas Ghandi popularizou e que, conforme Hardgrave e
Kochanek definem, seria um esfor‚o pela restaura‚ƒo do reino ideal dos tempos de Lord
Rama.
Ap„s a independŠncia, em 1947, o ideal hindu-nacionalista, apropriando-se da
ideia do Ram-rajyia, assim como de diversos outros projetos nacionais-religiosos,
vindos de Sikhs, Mu‚ulmanos, Budistas e outras religi…es expressivas no sub-continente
Indiano, foram juridicamente contidas por uma constitui‚ƒo federativa e secular. No
campo pol•tico, essas tendŠncias foram freadas por aproximadamente 30 anos de
domina‚ƒo pol•tica do secular “Partido Congresso” (atualmente Indian National
Congress), cerca de 20 dos quais foram obtidos por um sagaz jogo pol•tico (per•odo da
Hegemonia do Partido Congresso), e os demais ficaram a cargo da centraliza‚ƒo de
poderes exercida pela Primeira Ministra Indira Gandhi (per•odo da Imposi‚ƒo do
Partido Congresso).
Com o ruir da hegemonia do Partido Congresso e aproveitando-se dos
ressentimentos locais gerados pela centraliza‚ƒo imposta por Indira Gandhi, as id†ias de
nacionalismo-religioso recobraram for‚a, sobretudo entre a maioria Hindu (cerca de
80% da popula‚ƒo). Um reflexo imediato foi a ascensƒo de organiza‚…es e partidos
hindu-nacionalistas que levaram a ideia do Ram-rajyia aos extremos do que muitos
consideram um fascismo-hindu•sta. Neste contexto, a organiza‚ƒo hindu•stanacionalista RSS (Rashtriya Swayamsevak Sangh), • qual pertencia o assassino de
Mohandas Gandhi (Mahatma Gandhi), conseguiu dar proeminŠncia nacional aos seus
bra‚os pol•ticos: O Jana Sangh, existente desde 1951, que a partir de 1980 se
desmembrou dando origem ao BJP (Bharatiya Janata Party); o VHP (Vishua Hindu
Parishad), ainda mais extremista, fundado em 1964; dentre outros.
Al†m da esfera pol•tica tradicional, houve uma efusƒo de nacionalismo-hindu•sta
por parte de importantes setores sociais, os quais firmaram v•nculos com a RSS. A
televisƒo estatal, Doordashan, exibiu um seriado de 18 meses sobre o †pico Ramayana,
seguido por 91 semanas de exibi‚ƒo do Mahabharat. Ambos textos hindu•stas que,
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conforme Arvind Rajagopal, foram filmados e exibidos como forma de propaganda do
Ram-rajyia.
Respaldados pela transforma‚ƒo pol•tica ap„s a morte de Indira Gandhi e a
diminui‚ƒo do poder do Partido Congresso, em 1984 o VHP tomou as demandas sobre a
€rea de Babri Masjid como ponto chave de sua agenda e iniciou um movimento forte e
institucionalizado para libera‚ƒo do local em contesta‚ƒo para que se constru•sse o
templo de Ramjanmabhoomi, em adora‚ƒo • divindade Hindu•sta Lord Rama.
Em 1986, sem autorizar a demoli‚ƒo de Babri Masjid, uma decisƒo do tribunal
distrital definiu que os port…es seriam reabertos para a peregrina‚ƒo exclusiva de
Hindu•stas. Por tr€s desta decisƒo estava a denŽncia de que, dentro da Mesquita, haveria
algumas est€tuas e •dolos Hindus, cujos Sunitas que reivindicam a €rea, por†m, alegam
terem sido colocadas ap„s o trancamento dos port…es em 1949, supostamente forjando
as bases para a vit„ria judicial conquistada pelos Hindu•stas.
Em repŽdio, o ComitŠ de A‚ƒo Babri Masjid (Babri Masjid Action Comitee)
articulou uma onda de protestos nacionais contra o impedimento de Mu‚ulmanos
entrarem no templo, o que culminou numa carreata de mais de 300.000 pessoas rumo a
Nova D†li, em mar‚o de 1987. Um mŠs ap„s, o VHP organizou uma contra-marcha,
que mobilizou milhares de Hindu•stas rumo a Nova Deli.
•s v†speras das elei‚…es de 1989 e tendo experimentado um crescimento
acelerado em fun‚ƒo do envolvimento com a questƒo de Babri Masjid /
Ramjanmabhoomi, o VHP resolveu ir mais al†m e lan‚ou um movimento para demolir a
Mesquita e, no lugar, construir seu templo Hindu•sta. Na primeira de uma s†rie de a‚…es
que gerariam ondas de violŠncia, houve uma convoca‚ƒo nacional para que Hindu•stas
de todo o pa•s se dirigissem a Ayodhya com um tijolo para “construir seu templo”. A
despeito das medidas precat„rias do governo central, a iniciativa gerou milhares de
mortes. Cidades como Bhagalpur, na regiƒo de Bihar, tiveram entre 200 e 1000 casos
de assassinatos em fun‚ƒo da campanha do VHP, marcando este como o per•odo, at†
entƒo, mais violento do Comunalismo desde a independŠncia.
Com as mesmas motiva‚…es pol•ticas, o BJP tamb†m incorporou a demanda
Hindu•sta • sua agenda e, num gesto extremado, seu presidente, L. K. Advani, anunciou
uma peregrina‚ƒo de carruagem por 10.000 km que cruzaria o pa•s e terminaria em
Ayodhyia. Sua carruagem enfeitada com atributos Hindu•stas anunciava chegar em
Ayodhyia em 30 de outubro de 1990, seguida por uma multidƒo que ilegal e
unilateralmente destruiria Babri Masjid e construiria Ramjanmabhoomi. Se adiantando
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•s previs•veis conseqŒŠncias catastr„ficas deste ato, o governo central prendeu Advani e
outros l•deres do BJP no dia 23 de outubro, quando a multidƒo que o seguia j€ se
aproximava da regiƒo de Uttar Pradesh. Como conseqŒŠncia houve um prolongado
confronto entre manifestantes e pol•cias, bem como a emergŠncia de violŠncia entre
Mu‚ulmanos e Hindu•stas, levando € morte de mais de 300 pessoas.
Politicamente a situa‚ƒo gerou uma instabilidade que, em fun‚ƒo da oposi‚ƒo
dos partidos ligados • RSS, levou • queda do Primeiro Ministro V. P. Singh, que se
afastou ap„s o Parlamento votar um “Voto de Nƒo-confian‚a” (Vote of No Confidence).
Ap„s as complicadas elei‚…es de 1991 o BJP e o VHP declararam que, em
dezembro de 1992, iriam construir o Ramjanmabhoomi no local em que estava a
Mesquita. Intimidado pela queda de seu sucessor, o Primeiro Ministro Narasima Rao
contentou-se com a evasiva promessa de que BJP e VHP nƒo infringiriam o recente
veredito que declarava a €rea como zona de contesta‚ƒo e proibia a entrada de ambos os
contestantes.
Em dezembro de 1992 a for‚a tarefa designada para proteger Babri Majid foi de
reduzidos 15.000 “paramilitaries” (uma for‚a policial intermedi€ria entre a pol•cia
tradicional e o ex†rcito que, a despeito do nome, † 100% constitucional e nƒo possui
rela‚ƒo com as associa‚…es criminosas •s quais a L•ngua Portuguesa geralmente se
refere por este nome). Quando a multidƒo de 200.000 militantes Hindu•stas come‚ou a
invadir e depredar a Mesquita o efetivo policial nem mesmo esbo‚ou resistŠncia e, em
poucas horas, a enorme constru‚ƒo de 500 anos fora reduzida a escombros. Nos seis
dias seguintes houve uma onda de violŠncia e choques entre manifestantes e policiais
que levou • morte 1200 pessoas, majoritariamente Mu‚ulmanos.
Apesar dos faniquitos do Primeiro Ministro se dizendo tra•do pela na‚ƒo, o fato
† que a postura permissiva do Estado gerou uma crise nacional e internacional. O
presidente dissolveu o Parlamento e declarou “President’s Rule”, uma esp†cie de estado
de emergŠncia que garante ao Presidente poderes supra-constitucionais, centraliza os
poderes e restringe liberdades individuais, direitos civis e pol•ticos. O Chief Minister de
Uttar Pradesh, algo como o “Primeiro Ministro” em n•vel regional, pediu afastamento
do cargo. A RSS, o VHP e as reminiscŠncia do Barjrang Dal, bem como duas
organiza‚…es extremistas isl•micas, o Jamaat-i-Islam e o Islamic Sevak Sangh, foram
colocadas na ilegalidade por dois anos.
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Internacionalmente o fato levou a um recrudescimento com o Paquistão e, em
menor escala, Bangladesh, além de uma severa condenação emitida pelas 56 Estados da
Conferência Islâmica e pela Arábia Saudita.
Guardada na memória popular e incitada por lideranças políticas, a herança de
ódio e medo envolvendo esta contenda retomou seu lugar na história indiana no ano de
2002, quando um grupo de rebeldes muçulmanos ateou fogo em um trem que passara
pela cidade de Godhra, região de Guajará, com peregrinos Hinduístas que retornavam
de Ayodhia, em 27 de janeiro daquele ano. Tendo recebido vasta cobertura da mídia,
este ataque, o primeiro televisionado na história da Índia, suscitou uma série de
violações contra Muçulmanos, as quais se articularam com o apoio de importantes
partidos e organizações sociais associados ao ideal hinduísta-nacionalista. Por mais de
três dias houve uma completa derrocada da lei e da ordem, a qual só foi re-estabelecida
com uma nova intervenção federal.
Desde então a articulação entre governos nacionais e locais evidenciou um
relativo sucesso em isolar a área contestada enquanto, a partir de 2004, tramitava um
novo julgamento do caso, agora pela High Court de Allahabad. Neste processo o
veredito teria de esclarecer os direitos de posse sobre a região e, presumivelmente,
lançar as diretrizes do futuro desta área. Num clima tenso, ambientado pelo medo
histórico herdade de 1992 e 2002, além de outros agravantes, o veredito foi anunciado
para o dia 23 de setembro de 2010, tendo sido sete vezes postergado diariamente e,
finalmente, anunciando, no dia 30 de setembro, a tripartição da área entre 2 grupos
Hinduístas e 1 Muçulmano (Sunita).
Comunalismo na Índia
Antes de analisarmos os efeitos imediatos deste caso sobre a política e sociedade
indiana é necessário compreender o contexto que levou um litígio de propriedade abalar
a ordem nacional por duas vezes, bem como os motivos pelos quais este último veredito
trouxe tanta preocupação e medo.
Mais do que uma disputa por um terreno, o litígio de Babri Masjid /
Ramjanmabhoomi é a expressão de uma organização social / ideologia que busca
promover os interesses de parcelas da população presumivelmente em detrimento de
outra, ou outras, ou mesmo da sociedade como um todo, usando a religião como
instrumento de manipulação social. A este processo, marcado nos interstícios da
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sociedade e da pol•tica indiana, chama-se Comunalismo (Communalism). O
Comunalismo †, portanto, a cria‚ƒo de identidades pol•ticas baseadas em identidades
religiosas que sƒo manipuladas por meio do dogmatismo extremado, o qual, por
conseqŒŠncia, estende • pol•tica o antagonismo inconcili€vel de interesses entre duas ou
mais comunidades religiosas.
Por estas raz…es e em face das express…es pr€ticas do Comunalismo, associadas
a levantes semelhantes ao de Babri Masjid e mesmo a algumas causas do separatismo
PaquistanŠs, o primeiro Primeiro Ministro Indiano, Jawaharlal Nehru (1889-1964),
pe‚a chave na conquista da independŠncia e um dos principais nomes da democracia
indiana em seus prim„rdios, afirmou que a maior amea‚a • ‡ndia nƒo seria nenhuma
amea‚a externa, mas sim a institui‚ƒo do Comunalismo.
O Comunalismo prevŠ a existŠncia unit€ria de uma ou outra comunidade
religiosa, sobre a qual reside o universo das a‚…es e ambi‚…es dos atores pol•ticos.
Dessa forma, o ethos Comunalista foca em categorias religiosas espec•ficas toda a sua
aten‚ƒo, e ambiciona direcionar tamb†m a totalidade da pol•tica nacional para este palco
em que a religiƒo, e nƒo a na‚ƒo ou o Estado, emerge como fruto de uma aceita‚ƒo
religiosa que se sobrep…e ao contrato social.
No caso particular da ‡ndia, o Comunalismo † um claro atentado aos esfor‚os
nacionais que se pautam pelos valores da multietnicidade, multireligiosidade e das
diversas comunidades lingŒ•sticas. Contrariamente • proposta constitucional de
enfrentar a pluralidade interna por meio da agrega‚ƒo e do envolvimento, o
Comunalismo aponta no sentido da rivaliza‚ƒo e da imposi‚ƒo.
Apesar de seus v•nculos com a religiƒo, por†m, o Comunalismo nƒo pode ser
diagnosticado como uma conseqŒŠncia direta da religiosidade ou mesmo da coexistŠncia de distintos valores. Prova disso † o fato de que o Comunalismo † um
fen‘meno estritamente moderno que, por exemplo, nƒo se observa no passado medieval
indiano – Ayuveda –, ou mesmo durante o auge do Imp†rio Moghul. Com suas ra•zes
cravadas na pol•tica colonial brit•nica de fomento dos „dios internos e balcaniza‚ƒo do
cen€rio colonial, esta forma particular de se internalizar os extremismos religiosos na
pol•tica deve ser interpretada como uma resposta sect€ria, restritiva e juridicamente
negativa ao processo de moderniza‚ƒo e constru‚ƒo do Estado-Na‚ƒo-Moderno na ‡ndia
do Raj Brit•nico em diante.
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Assim como nƒo h€ dŽvida de que as institui‚…es do Comunalismo foram
forjadas sob a tutela da Companhia das ‡ndias, pode-se dizer que o combust•vel que
alimenta esse c•ncer foi tamb†m trazido pelas caravelas brit•nicas. Num discurso
hist„rico sobre Comunalismo, Jawaharlal Nehru descreveu o Comunalismo como a
versƒo indiana do fascismo. De acordo com ele, o Comunalismo estaria cravado no seio
das minorias em fun‚ƒo do medo, enquanto seu ber‚o entre as maiorias seria a rea‚ƒo
pol•tica. Se a rea‚ƒo pol•tica das maiorias † um reflexo das caracter•sticas geopol•ticas
da ‡ndia, com uma forma‚ƒo demogr€fica absurdamente desigual, a fonte do medo no
outro extremo deste ciclo foi uma conseqŒŠncia direta do “Holocausto Comunal”
induzido pela metr„pole brit•nica. Mais valioso que descobrir qual destes elementos
surgiu primeiro †, portanto, notar que, ao menos um deles foi criado pelos
colonizadores, trazendo uma vari€vel que, propositiva ou reativa, invariavelmente
mudou a percep‚ƒo social sobre as possibilidades de convivŠncia multireligiosa.
Por esses fatores, muitos analistas pontuam que a ascensƒo do Comunalismo a
partir do Raj Brit•nico foi menos uma conseqŒŠncia da religiosidade e da cultura do que
da presen‚a de for‚as nƒo-religiosas e nƒo-culturais operando nos sistemas pol•ticos e
econ‘micos que se constru•am. Moin Shakir aponta que as principais organiza‚…es
pol•ticas a emergirem com a independŠncia mantŠm as massas ignorantes das realidades
e demandas / oportunidades da era moderna.
Como evidŠncia deste fato podemos tomar, por exemplo, a separa‚ƒo do
Paquistƒo como um evento que vai muito al†m da perda territorial e, na verdade,
sacramenta as bases do Comunalismo entre Mu‚ulmanos e Hindu•stas, que em fun‚ƒo
deste evento solidificaram o seus sentimentos de “medo” e “rea‚ƒo” no corpo de
intolerantes partidos pol•ticos.
Outra expressƒo do Comunalismo pode ser observada na indŽstria cultural e
midi€tica que sofre uma vis•vel interferŠncia do Comunalismo. Alguns jornais de
grande circula‚ƒo, como o Akali Patrika, o Sabat e o Organizer funcionam como filtros
• informa‚ƒo pol•tica nƒo relacionada ao Comunalismo. Mesmo a historiografia
nacional † motivo de contenda, sendo estritamente dividida e exageradamente
tendenciosa, como se observa no caso dos historiadores Mu‚ulmanos, Allaudin Khiji,
Mahmud Ghanznavi, Auranzeb, dentre outros.
Politicamente a for‚a de partidos declaradamente Comunalistas, como o Hindu
Mahasabha (Hinduista), Muslim League (Mu‚ulmano) e o Akali Dal (Sikh), dentre
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outros, dão uma noção de como a realidade de Ayodhyia é apenas um esboço do quadro
geral observado na Índia.
Um último elemento importante a ser destacado sobre o Comunalismo indiano
diz respeito à expressão econômica desse fenômeno. Funcionando como variável
interveniente, a economia tanto ajuda a compreender os desníveis entre diferentes
grupos, quanto demonstra as formas como esta estrutura trabalha para se imortalizar na
realidade indiana. No caso do Comunalismo entre Hinduístas e Muçulmanos, no qual se
insere o Veredito de Ayodhyia, observa-se que ao longo da colonização britânica houve
um acesso desigual entre Hinduístas e Muçulmanos ao modelo educacional moderno.
Conquanto haja um intenso debate sobre a intencionalidade deste acesso desigual ou a
mera refuta dos Muçulmanos a abandonarem suas instituições, assentadas no status quo
do Império Moghul, o fato é que no imediato pós-independência houve uma clara
inadequação da instrução Muçulmana com a estrutura moderna que deu forma ao
Estado Indiano. Por conseguinte, verificou-se uma inferioridade na qualidade de vida de
Muçulmanos que potencializou o elemento de medo da dinâmica Comunalista. Em
decorrência deste fato, portanto, muitos analistas pontuam que os eventos de 1992
foram o reflexo social de uma desigualdade econômica que vem sendo corrigida pelo
governo desde a independência.
As expectativas para o veredito
A partir da ótica econômica, citada acima, as expectativas para o Veredito de
2010 eram otimistas e apontavam, mais do que na direção de uma positivação jurídica
da questão, na direção de uma sociedade mais madura e capaz de aceitar a prevalência
dos valores nacionais sobre ranços Comunalistas. Para muitos analistas o anúncio do
veredito de 2010 seria menos importante por seu conteúdo e mais relevante pela forma
como a sociedade reagiria a ele. Simplificadamente, uma reação não violenta seria a
expressão de relativo sucesso das políticas de inclusão social que buscam reduzir os
desníveis econômicos e políticos entre os diferentes setores sociais. Na mesma
interpretação, um cenário pacífico também demonstraria o crescimento de importância
das instituições jurídicas junto à sociedade indiana.
A despeito destas expectativas, porém, o anúncio do veredito sucedeu em um
clima extremamente tenso que envolveu a sociedade Indiana. Acima de tudo houve um
medo generalizado por parte da população. As páginas de jornais do dia 30 de setembro
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estampavam fotos de ruas vazias em locais que geralmente sƒo hiper-movimentados. A
maioria das escolas e estabelecimentos pŽblicos nƒo funcionou no dia 29 e boa parte
dos estabelecimentos privados encerraram seu expediente •s 14:00 horas, pois esperavase um anŽncio a partir das 15:00.
H€ dias os jornais vinham estampando pedidos da Presidente e do Primeiro
Ministro clamando por paz. Em Nova Deli no in•cio da semana houve uma imensa
passeata fazendo vig•lia noturna para conscientizar a popula‚ƒo da necessidade de
receber o anŽncio do julgamento de forma pac•fica. As televis…es que, atendendo a um
“pedido mais do que especial” feito diretamente pelo Primeiro Ministro, evitaram
polarizar o clima antes do anŽncio e subitamente perderam seus sinais na hora
estabelecida para a transmissƒo, s„ recobrando sua programa‚ƒo horas depois. Neste
intervalo a popula‚ƒo indiana assistia atenta e temerosa a mensagens de paz e unidade
nacional televisionadas pelo sistema de emergŠncia nacional. Sistema este que, ali€s,
anunciou recentemente ter preparado uma s†rie de exibi‚…es que seriam colocados no ar
caso houvesse algum problema mais grave.
Tƒo logo as TV’s recobraram seus sinais o Primeiro Ministro, Manmohan Singh,
foi ao ar duas vezes numa mesma noite pedindo paz e exortando a popula‚ƒo a colocar o
respeito pelas institui‚…es democr€ticas nacionais acima de qualquer outro sentimento.
Na manhƒ do dia 30 os principais pontos tur•sticos tiveram abundantes refor‚os
policiais. Ayodhyia foi tomada por praticamente todos os oficiais de campo da pol•cia
provincial – Provincial Armed Constambulary (PAC) –, em adi‚ƒo •s 20 Companhias
da for‚a intermedi€ria entre ex†rcito e pol•cia – Central Paramilitary Forces (CPF). Ao
longo de todo o pa•s as for‚as militares e policiais que nƒo estavam na rua ficaram nos
quart†is de prontidƒo, enquanto a For‚a A†rea estava preparada para uma mobiliza‚ƒo
de emergŠncia.
Como se nƒo fosse o bastante, todo esse cen€rio se prolongou por sete dias al†m
do prazo inicialmente anunciado para divulga‚ƒo do veredito. Sem dar muita
explica‚ƒo, o Conselho Especial, composto por trŠs ju•zes, simplesmente postergou o
anŽncio por sete vezes seguidas. Muitos acreditam, ou acreditaram • †poca, que tratavase de uma manobra para ganhar tempo e s„ anunciar a decisƒo ap„s os Commonwealth
Games. CoincidŠncia ou nƒo, o fato † que Deli estava lotada de turistas e delega‚…es
esportivas que vieram para a realiza‚ƒo dos Commonweath Games, ocorrendo no
intercurso de duas semanas. Se as medidas para impressionar os visitantes chegaram ao
extremo de proibir o tr•nsito de cidadƒos em determinadas rodovias, parar a atividade
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de col†gios e burocracias pŽblicas e at† mesmo o absurdo cobrir as diversas favelas da
cidade com imensos p‘steres de boas-vindas, entƒo talvez essa de fato tenha sido uma
das explica‚…es para a demora.
Anunciado o veredito, contudo, houve uma compreensƒo de que este tempo
talvez tivesse sido necess€rio para se organizar o palco de guerra que se armou como
precau‚ƒo a uma rea‚ƒo violenta por parte de setores da sociedade. Da parte dos ju•zes,
por†m, nega-se qualquer motiva‚ƒo pol•tica para o atraso que, supostamente, foi
necess€rio para concluir alguns detalhes.
O veredito
Sobre as causas pol•ticas do atraso, pode-se fazer pouco mais do que especular.
O veredito, contudo, foi uma prova ineg€vel do comprometimento pol•tico do
julgamento. Em suas 8189 p€ginas estabeleceu-se que os 2,77 acres em disputa serƒo
repartidos entre duas fac‚…es Hindu•stas e o conselho Sunita que comandava a Mesquita
at† 1992, sendo que a €rea propriamente em disputa, ou seja, o local onde originalmente
ficava o edif•cio, ficar€ sob dom•nio Hindu•sta.
Baseando a decisƒo na considera‚ƒo de que “o local de nascimento † a pessoa
jur•dica de uma divindade” a Corte acolheu o parecer do Archeological Survey of India
(ASI) atestando que no s†culo 12 D.C o local servira de templo para Lord Ram,
supostamente nascido l€.
A historiadora Romila Thapar, especialista em Hist„ria Antiga da ‡ndia, pontua
que os argumentos hist„ricos aventados no veredito sƒo absolutamente inconsistentes
para se contraporem a um templo que existiu pelos Žltimos 500 anos at† ser destru•do
por levas que ainda estƒo impunes. Segundo ela o relat„rio do ASI † extremamente
enviesado, estando sob contesta‚ƒo por parte de diversos arque„logos. Ademais, ela
lembra que, de maneira geral, qualquer evidŠncia arqueol„gica † insuficiente para servir
de carro chefe a um veredito jur•dico, pois as divergŠncias sempre existem.
Tamb†m se deve notar que o argumento jur•dico favor€vel • constru‚ƒo do
templo Hindu•sta se esquece totalmente de mencionar os v•nculos entre a destrui‚ƒo
criminosa de Babri Masjid h€ 18 anos e os demandantes Hindu•stas no processo.
Curioso como um contestado parecer arqueol„gico sobre a existŠncia de um edif•cio no
s†culo 12 D.C. afeta a legitimidade dos Mu‚ulmanos que constru•ram sua Mesquita h€
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500 anos, enquanto os direitos Hindu•stas nƒo foram sequer arranhados pelo ato
criminoso recentemente cometido.
Nitidamente, o que se buscou com esse veredito foi nƒo suscitar uma nova onda
de protestos violentos. Qualquer decisƒo favor€vel aos Mu‚ulmanos colocaria a ordem
social na corda bamba das maiorias Hindus e suas lideran‚as fascistas. Uma decisƒo
inteiramente favor€vel aos Hindu•stas, por sua vez, explicitaria de vez a inviabilidade do
secularismo constitucional diante de um cen€rio pol•tico social dominado pelo
Comunalismo hindu•sta. Assim escolheu-se a op‚ƒo de agradar o mais forte e oferecer
um consolo ao outro, o que, se nƒo gerou satisfa‚ƒo, pelo menos evitou um poss•vel
derramamento de sangue.
Sem entrar no m†rito dessa an€lise pol•tica, o fato † que uma decisƒo nestes
termos atenta contra o princ•pio da separa‚ƒo dos poderes e fere a autonomia do
legislativo. Ademais, o reconhecimento de que “o local de nascimento † uma pessoa
jur•dica e uma divindade” abre um precedente que pode levar ao descaminho do sistema
jur•dico secular rumo a uma lei Hindu•sta ou, pelo menos, influenci€vel por dogmas
religiosos. Ao colocar em mais alta estima o direito de propriedade em fun‚ƒo de um
mito religioso do que as indiscut•veis evidŠncias concretas da propriedade Mu‚ulmana
sobre o terreno nos Žltimos anos, a Corte abre um precedente para que novos direitos de
propriedade sejam questionados com base em mitos religiosos. Desta forma nƒo †
insensato pensar que, por exemplo, uma propriedade legalmente constitu•da possa vir a
ser expropriada em fun‚ƒo de alega‚…es do valor religioso do bem para um determinado
grupo de crentes.
Esta prerrogativa fere o secularismo constitucional de forma ainda mais intensa
dadas as especificidades do caso Indiano, em que a predomin•ncia pol•tica da maioria
Hindu•sta soma-se ao imenso e vari€vel nŽmero de divindades desta f†. Com mais de
44.000.000 de divindades o Hindu•smo pode servir de pano de fundo para contesta‚…es
de diversas propriedades sem esgotar seu arcabou‚o imag†tico. Numa situa‚ƒo
hipot†tica e exagerada, o Hindu•smo bem poderia contestar, por exemplo, a propriedade
de uma casa privada alegando ser um local sagrado do ‘Deus A’ e, ainda assim, ter um
alfabeto inteiro de Deuses para eventualmente contestar outras casas. Obviamente que o
exemplo dado foi grosseiro e exagerado, contudo, a pr„pria hist„ria indiana mostra que,
num grau menos vis•vel envolvendo lit•gios menos importantes, embora nƒo menos
nocivos, esta † uma pr€tica existente. Resta agora o temor de que o veredito de
Ayodhyia estimule ainda mais casos como este. Se os absurdos clamores da RSS
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alegando que “todas as mesquitas na ‡ndia foram constru•das sobre templos Hindu•stas”
j€ eram preocupantes antes, agora resta ver como o sistema jur•dico indiano vai impedir
que a brecha de Babri Masjid se alargue ainda mais.
As conseqüências imediatas
Uma conseqŒŠncia imediata, que vem sendo considerada o maior m†rito do
veredito, foi a manuten‚ƒo da paz e da ordem. Os principais meios de not•cia nƒo
mencionaram sequer um caso de violŠncia Comunalista associada ao julgamento. As
declara‚…es por parte das principais lideran‚as pol•ticas mantiveram um tom comedido
e, ainda que cr•ticos, sempre resilientes e enfatizando a prioridade de se manter a
unidade nacional.
Contudo, essa ordem ap„s o julgamento tem um que de abstrata, pois, a bem da
verdade, o julgamento j€ era contestado antes mesmo de ser emitido. Tendo ainda como
recorrer • Suprema Corte, ambas as partes j€ enfatizavam que qualquer decisƒo que nƒo
lhes agradece seria contestada no foro m€ximo do sistema judici€rio indiano. Ademais,
ainda † cedo para avaliar a resiliŠncia das partes, afinal, o destrancamento dos port…es e
a constru‚ƒo de um templo Hindu ainda devem aguardar um demorado processo
burocr€tico possivelmente a depender de voto favor€vel da Suprema Corte.
Na conflagra‚ƒo de um novo cen€rio de medo, ambas as partes demonstram-se
insatisfeitas com o julgamento atual, o que se expressa pelo fato de que os
encaminhamentos • Suprema Corte foram feitos tanto por Mu‚ulmanos quanto por
Hindu•stas que, afinal, nƒo desejam partir nenhuma por‚ƒo da €rea contestada.
Ademais, Hindu•stas radicais ligados ao RSS e mesmo representantes da parte
Hindu•sta no processo j€ falam na constru‚ƒo do templo como se esta fosse uma certeza,
chagando mesmo a preparar canteiros de obra nos limites da propriedade e a exortar os
Mu‚ulmanos a abdicarem seu direito sobre parte da propriedade. Estas exorta‚…es, a
prop„sito, vŠm sendo feitas num tom quase amea‚ador, sobretudo quando as partes
Hindu•stas mencionam eventuais desconfortos que uma persistŠncia Mu‚ulmana no
lit•gio pode causar.
De forma menos clara, tamb†m se observa um efeito desse lit•gio sobre uma
regiƒo onde o Comunalismo entre Mu‚ulmanos e Hindu•stas † bem mais tensa; a
Cachemira (Jamuu and Kashmir). Ainda muito recente para ter seus contornos
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claramente delineados, o fato é que logo após o julgamento de Ayodhya houve um
recrudescimento por parte de grupos rebeldes separatistas da Cachemira, levando à
dissolução do plano de retirada das tropas que ocupam o estado por mais de dez anos.
Conclusão
Embora o recrudescimento na região da Cachemira certamente tenha outras
causas, o fato é que a hipótese do julgamento de Ayodhya ter influenciado o retrocesso
nas negociações com o estado rebelde não é de todo implausível. Sob essa hipótese, o
que se observa seria, portanto, uma expressão reativa de grupos Muçulmanos diante do
fato de não se sentirem verdadeiramente indianos, ou, pelo menos, de não se sentirem
verdadeiros cidadãos indianos.
Num estado multiétnico, multireligioso, multilinguístico e continental como a
Índia, o federalismo constitucional definitivamente não reflete o movimento de forças
centrípetas que faz da unidade indiana o maior desafio e, ao mesmo tempo, a maior
prova da força deste jovem estado. Diante deste fato, é previsível que a reação
Muçulmana ao longo do país não tome o formato histórico da violência na Cachemira,
porém, isso não anula o fato de que o sentimento nacionalista morre aos poucos quando
o Estado se traveste de oligarquia para convenientemente evadir-se de suas obrigações.
É certo que, com ou sem violência, a Índia perde um pouco mais de si a cada
Muçulmano cabisbaixo que segue vivendo como um estrangeiro ou um apátrida em seu
próprio país.
Das tribos originarias ao Estado Indiano pós-Independência, passando pelos
tempos Ayuvedicos, Hindu-Arianos, os Califados, o Império Moghul, e o Raj
Britânico... Se tomarmos a história da sociedade indiana sob a óptica do Hinduísmo
podemos dizer que as diversas vidas desse corpo social são como os Jamns do
Hinduísmo, sempre morrendo e sempre revivendo sobre novos corpos, novas chances
de enfrentar o destino com a dignidade de quem é capaz de mudá-lo para idealmente
encontrar seu Mokshe. Se assim o for, é bom que o Estado indiano seja prudente com
essa questão, pois do contrário pode esvaziar-se de sua unidade e morrer para renascer
sob o Dharma do fascismo de Estado e do ódio legislado, emprestado suas históricas
raízes culturais ao pior da modernidade que lhe foi imposta.
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