O Código - Carlos Moffatt

Transcrição

O Código - Carlos Moffatt
1
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
O Código
Kevin segurava o corpo inerte de Shakti. A descontaminação biológica da
Arca retardou a decomposição da mulher. Ainda que a fermentação natural, além
de bolhas e secreções, produzisse gás sulfídrico, este último era imediatamente
aspirado pelo sistema de purificação do ar sem deixar mau cheiro algum.
A pele morena, que um dia já foi quente, macia e sedosa, agora estava fria, amarelada
e enrugada. As mãos de Kevin não mais podiam identificar calor algum vindo daquele corpo. E
ele finalmente saiu do modo catatônico em que se encontrava desde que a mulher deu o último
suspiro, treze dias atrás. Prontamente Kevin iniciou o protocolo funerário. Aparentemente a
viagem, que deveria durar 130 séculos, fora abortada quase três séculos mais cedo.
12.738 anos atrás, Shakti estava no salão do Imperador Atoq Allin III, reunida com
todos os Conselheiros, discutindo o andamento dos Protocolos de Continuidade. Era um homem
de pele bronzeada, franzino, quarenta e poucos anos, cujos cabelos já deveriam estar grisalhos
por baixo da tintura. Gozava da mais perfeita saúde, apesar de todos os transtornos sofridos
decorrentes da Grande Catástrofe.
O Imperador atual não era nascido quando aconteceu. Não viu o chão se abrir e engolir
quadras inteiras de metrópoles; vulcões há muito adormecidos inundarem cidades com metros
de lava; continentes rasgados por novas falhas tectônicas; ondas gigantescas cobrirem as mais
altas montanhas. Mas lidava diariamente com o caos social e econômico que se instalou em todo
o seu domínio e países além, devido à escassez de alimentos, de empregos e serviços básicos de
saúde. Além de conflitos e migração em massa para as áreas menos afetadas, o que gerava novo
círculo vicioso.
Na época em que assinaram a condenação do planeta Terra e todos os outros planos
foram descartados, sobrou apenas uma alternativa. Covarde e desesperada. Fugir. O patriarca
da dinastia Atoq Allin decretou que os esforços do Império seriam dirigidos para a construção
da Arca. Mas ele sequer chegou a ver o inicio dos trabalhos, que levariam oitenta anos para
2
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
serem concluídos. Foi mais uma das vítimas dos eventos que ocorreram na Grande Catástrofe.
Naquele fatídico dia uma parte do templo desabou soterrando o Imperador, três Conselheiros e
dois Sacerdotes. O mérito da construção ficou com seu primogênito.
Infelizmente não seria viável salvar a humanidade inteira, tampouco todas as espécies
de animais e plantas, por isso, enquanto alguns privilegiados seriam escolhidos para embarcar na
Arca e colonizar um recém-descoberto planeta com condições de suportar vida, outros tentariam
sobreviver nos subterrâneos.
Coube a Atoq Allin II selecionar as espécies que seriam transferidas para o novo planeta,
na tentativa de prolongar a biosfera terrestre. Também foi encarregado de criar a lista das 42
famílias nobres do Império, que poderiam levar todos os seus descendentes registrados até o dia
do embarque. Além de organizar dois grandes concursos mundiais. Um para montar a tripulação
e equipe de profissionais que construiriam a Arca e seus mecanismos de suporte. Outro para
reunir grandes personalidades, cientistas, artistas e religiosos que transmitiriam seus conhecimentos e culturas no Novo Mundo.
Mas naquele dia da reunião, Atoq Allin II já não sentava mais no trono do Império. O
cansaço da idade o forçou a passar a coroa ao filho. Os problemas gerados pela Grande Catástrofe minaram as energias do velho Atoq, que hoje vivia por recomendações médicas alheio
às questões políticas e apenas cuidava de paparicar a quarta geração. O fardo de governar um
Império em ruinas foi passado para seu filho, Atoq Allin III.
Shakti sentava entre o Conselheiro da Agricultura e o de Comunicações, em uma
mesa arqueada, dividida em duas bancadas simbolizando os blocos de interesses polarizados
do Império. Doze Conselheiros representavam os chamados Herdeiros da Terra e mais doze os
Viajantes. Embora a população usasse os termos “Condenados” e “Fugitivos”. A mesa circundava um trono giratório, fixado em uma plataforma elevada ao centro, de onde o Imperador tinha
uma visão completa de todos os presentes. Atrás de cada um deles estavam seus respectivos
assistentes. Kevin tratava de registrar todos os detalhes da reunião, além de transmitir à Shakti
os relatórios e informações necessárias.
— Kevin. Preciso dos dados atualizados das áreas comprometidas nas reservas da
floresta de Hatun Mayu.
— Já estão disponíveis em seu painel, senhorita.
Shakti analisou rapidamente os gráficos, comparando os dados com os anos anteriores.
Os resultados não eram nada promissores. Os planos de conservação do ecossistema local
estavam falhando miseravelmente.
— Vossa Majestade Imperial, não podemos mais transferir recursos do programa de
recuperação ecológica para suprir as demandas dos sindicatos dos construtores da Arca. Se conti-
3
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
nuarmos nesse ritmo não haverá uma árvore sequer quando a Arca partir. No último ano perdemos
três Domos por falta de manutenção, e isso é... — Shakti pensou em usar a palavra inadmissível,
mas isto poderia ser considerado como uma afronta às decisões do Imperador, portanto, disse:
— ...entristecedor.
— Compreendo o ponto de vista de sua bancada, Conselheira Shakti, mas acho que
não é necessário lembrar mais uma vez que o Protocolo B tem este nome por um motivo muito
simples. Aprecio seu empenho como Conselheira do Meio Ambiente nesses tempos tão difíceis,
mas eu prometi a meu pai que ele veria o Novo Mundo. Por isso pretendo completar a Arca o
mais breve possível.
— Vossa Majestade Imperial me permite a palavra? — intrometeu-se o Conselheiro das
Indústrias, que com um aceno de cabeça do Imperador, continuou:
— Acho que não devemos transparecer tanto ao público que o Protocolo A está sendo
favorecido. Beyonce, por favor, transfira a planilha M03 para o painel.
Atrás do Imperador existia uma grande tela que era emoldurada por tapeçarias de
padrões coloridos. Ao comando da assistente, a projeção exibiu uma tabela seguida de um mapa
mundial, com áreas demarcadas em vários locais. O Imperador deu um giro para poder observar
os dados e o Conselheiro continuou.
— Ainda que a maioria dos trabalhadores empregados na construção da Arca já esteja
com suas passagens e de suas famílias garantidas na viagem, grande parte dos componentes
é feita por indústrias cujos próprios donos ficarão na Terra — e o mapa exibiu o número de
fábricas e os tipos de itens produzidos em cada uma das áreas pelo globo.
— Compreendo. Mas não posso tomar uma decisão sem antes contabilizarmos os votos.
Mesmo tendo plena autonomia no governo para dar sua sentença soberana, Atoq
costumava considerar as opiniões e os argumentos dos Conselheiros e acatar o voto da maioria,
seja qual fosse.
Por muitas gerações o Império seguiu um regime autoritário. Até ocorrer o Concílio de
Nápoles, onde a figura do Imperador perdeu o status de divindade. Mas contrariando o óbvio, isso
apenas fez com que a sociedade celebrasse ainda mais seu líder. Adaptando-se à nova realidade,
foram adotados modelos sociais e econômicos recém-formulados que trouxeram qualidade de
vida a todos. Além de uma forma de governo parlamentarista onde eleições públicas escolhiam
um Conselho, o qual era renovado periodicamente, para deliberar com o Imperador os problemas
e demandas do povo.
Quando uma questão entrava em pauta, o Conselho votava se aquele ponto seria a
favor da população ou apenas de interesse do Império. Um bom líder mantinha as duas bancadas
satisfeitas. A última dinastia a governar foi tão egoísta que atribuíram a ela, por maldição ou
4
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
incompetência, as causas da Grande Catástrofe. Foi quando os Atoq Allin tomaram o poder, no
rodízio secular das Casas.
Não era raro, em casos como este em que a resolução beneficiaria apenas uma das
bancadas, ocorrer um empate na votação. E sempre que havia uma sessão indecisa, o Imperador
aproveitava para manobrar o cenário e favorecer seus interesses pessoais.
— Não teremos nenhuma surpresa hoje, Vossa Majestade Imperial. Eu voto em não
prejudicar o andamento do Protocolo B — disse Shakti, pressionando um botão em seu painel
que adicionou um voto para a coluna dos contrários à reforma.
E assim foram contabilizados os votos dos outros Conselheiros, um a um, até gerar um
óbvio empate entre as duas bancadas. Esta era exatamente a situação que o Imperador aguardava.
— Eu venho adiando ao máximo a Escolha Final, mas diante deste impasse, vejo que
este é o melhor momento para fazê-la.
Dito isto, o Imperador causou um imediato alvoroço entre todos os presentes. Da
bancada dos Viajantes sairia o Comandante da Arca. Aquele que, dentre várias responsabilidades e obrigações, controlaria o início do processo de descongelamento e germinação ao atingir
o destino, oito anos luz de distância. Já a bancada dos Herdeiros aguardava a nomeação do
Regente, que ocuparia a posição do Imperador, para guiar menos de um bilhão de habitantes que
sobraram pela Terra devastada e agonizante.
Havia um notório candidato ao posto de Comandante da Arca. O Conselheiro Fiel. Este
era o único dos Conselheiros que não se renovava de tempos em tempos. Não havia uma eleição
para o cargo. Ele era escolhido pelo Imperador vigente e permaneceria na ativa até o dia de sua
morte quando, então, outro Conselheiro Fiel seria nomeado. Mesmo estando no cargo há trinta
anos, Walter não era o mais velho dos conselheiros, e ainda teria muito tempo pela frente de
serviços ao Império.
— Walter, eu peço para que se levante — ordenou Atoq.
Todos aplaudiram enquanto o senhor calvo alinhava suas vestes, estufava o peito e
erguia o rosto com orgulho, mirando o Imperador sentado no trono acima.
— Este homem convive há tanto tempo conosco no palácio que o considero como um
grande amigo. Poucos aqui possuem o mesmo sangue dos meus antepassados, e levarão vossos
descendentes para o Novo Mundo, conforme meu pai deixou ordenado nos arquivos da Arca.
Ainda assim, provando a fidelidade que é inerente a seu cargo, e mesmo não pertencendo a
nenhuma das 42 nobrezas, Walter continuou nesta bancada que defende os interesses contrários
de seus próprios familiares.
Todos os Conselheiros em exercício tinham apenas uma vaga garantida na Arca. Uma
pequena parcela da bancada dos Herdeiros escolheu por permanecer na Terra, junto de seus
5
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
familiares. Por sua vez, a maioria da bancada dos Viajantes optou por acompanhar o Imperador
e a nobreza, mesmo deixando maridos, esposas, pais e filhos para trás. Foi uma forma um tanto
sádica de medir a lealdade dos Conselheiros. Apenas aquele que fosse nomeado Comandante da
Arca também receberia os mesmos privilégios da nobreza, podendo levar todos os parentes na
viagem.
Como o Conselho seria renovado em pouco tempo, deixando a maioria sem o ticket só
de ida, a bancada atual dos Viajantes pressionava o Imperador para adiantar o cronograma. E,
embora da mesma bancada, Walter confidenciara uma vez a Atoq que gostaria de permanecer na
Terra com sua esposa e dois filhos, mas votaria sempre em prol da Arca e do Império. Portanto
não era uma surpresa que o Imperador nomearia Walter como Comandante, a fim de que ele
pudesse levar consigo seus amados para o Novo Mundo. No entanto, Atoq tinha planos diferentes para aquele dia, o que surpreenderia todos os presentes, duas vezes.
— Assim sendo, tomarei uma decisão que dará plena autonomia para Walter cuidar de
sua família e, como sempre desejou, permanecer ao lado deles oferecendo todo apoio, suporte e
segurança. Mas também continuará servindo ao Império, pois eu não confiaria à outra pessoa a
importante missão que darei a ele. Aproxime-se, meu amigo.
O Imperador retirou de um de seus bolsos uma insígnia, congelando todos os presentes
boquiabertos e deixando Walter paralisado no meio do caminho ao encontro de Atoq. Era a
insígnia de Comandante Regente.
Walter era boa pessoa, embora este fato não impedisse que tivesse alguns desafetos por
considerarem-no um bajulador do Imperador. Foi possível notar a hipocrisia no rosto daqueles
que o aplaudiam de pé pela condecoração, enquanto Atoq prendia a insígnia verde no peito do
novo Comandante.
A outra parcela dos Viajantes estava atônita, e toda a bancada dos Herdeiros imaginava
o que se passava na cabeça de Atoq Allin III para ter feito aquilo.
— Espero poder contar com sua lealdade junto aos Herdeiros, tomando sábias decisões,
desde hoje — enfatizou bem a palavra — até o futuro sombrio que se aproxima de nosso povo.
Após uma reverência, Walter desceu cambaleante a escada do trono, em direção a sua
nova bancada.
— Que você possa guiá-los nesses tempos difíceis, trazer paz e harmonia para todos
os recantos do Império, e escolher um sucessor à altura, quando for a hora certa. Chegará o dia
em que nossos destinos se cruzarão novamente. Os descendentes dos Viajantes hão de retornar
à Terra, para buscar e levá-los ao Novo Mundo. Ou ainda, que vocês consigam recursos para
construir outra Arca. Aguardaremos ansiosamente o momento de reencontrar os irmãos.
Enquanto Atoq discursava, Walter, seguido de seu assistente Pierre, caminhava cumpri-
6
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
mentando com a Saudação Imperial seus novos aliados da bancada dos Herdeiros, agora com
treze membros, enquanto os Viajantes ficavam visivelmente desconfortáveis com a desvantagem
numérica. Mas a diferença de forças permaneceria por pouco tempo.
— Membros da bancada dos Viajantes, não se preocupem. Não haverá desequilíbrio!
Obviamente, ao escolher o meu Conselheiro da Arca, o farei a partir de um dos membros dos
Herdeiros.
A declaração só fez exaltar os ânimos dos Viajantes, que se remexiam em suas cadeiras
e lamentavam frases como: “Um absurdo!”, “Que grande injustiça!”, “O direito é nosso!”...
Mas apenas em pensamento, pois nenhum deles se atreveria realmente a falar tais coisas diante
do Imperador.
— Não foi fácil escolher a pessoa responsável que levará todos nós ao Novo Mundo.
Na prática o trabalho do Comandante não será complicado, pois o computador central da Arca
cuidará de todos os detalhes técnicos, como navegação, serviços e infraestrutura, poupando-me
da obrigação de nomear um especialista em Viagens Interplanetárias ou um piloto com milhares
de horas de voo. Não são essas as qualidades que busco. Eu preciso de um Comandante que seja
extremamente ético, inteligente e ao mesmo tempo sensível para tomar decisões importantes e
cuidar de todos os passageiros como se fosse sua própria família.
O clima era de tensão na bancada dos Herdeiros. Já os Viajantes estavam conformados,
porém curiosos para saber quem seria o escolhido pelo Imperador, que continuava em seu
discurso.
— Hoje eu vejo como foi sábia a opinião pública ao me conceder, no Plebiscito do
Destino, o dever de nomear os dois Comandantes. A escolha através de votos dos Conselheiros
resultaria apenas em uma interminável briga de egos. Da posição que estou, e não me refiro a
este trono elevado, eu posso ver detalhes que ninguém mais percebe. E foi por esta razão, não
por instinto, que com um pensamento estratégico e igualmente romântico eu escolhi uma mulher
para o cargo.
Imediatamente todos se voltaram para as duas únicas mulheres na bancada dos Herdeiros.
Shakti, a Conselheira do Meio Ambiente, e Tatyana, Conselheira de Mineração.
— Eu desejo que esta senhorita entenda que seu papel não se resumirá ao tempo que
passaremos dentro da Arca. Como Comandante, ela deverá fazer de tudo para que sua missão
termine com sucesso, planejando todos os seus passos desde hoje — mais uma vez Atoq enfatizava a palavra, que aos ouvidos dos presentes já significava “na votação que faremos daqui
a pouco” — até o dia do embarque. E que o Poderoso a ilumine com toda sabedoria necessária
para interceder por nosso povo, ainda que seja necessário cortar da própria carne. Decididamente, uma mulher forte e corajosa. Por favor, Conselheira Shakti, levante-se.
7
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
Não houve euforia. Nem mesmo por parte dos colegas de bancada. Ninguém precisava
falar nada, mas estava claro para todos quais eram as reais intensões do Imperador ao colocar
Shakti como Comandante da Arca. Em silêncio, a linda indiana subiu as escadas, e com uma reverência aceitou a insígnia azul que lhe foi presa à blusa. Acompanhada de Kevin, se dirigiu para
sua nova bancada, onde poucos a cumprimentaram usando a Saudação Imperial, que consistia
em erguer apenas a palma da mão com os quatro dedos em riste, sempre perpendiculares aos
céus e nunca inclinados, e com o polegar dobrado para dentro. O cotovelo sempre flexionado. O
braço jamais deveria ficar estirado.
— Este momento ficará gravado na história, meus Conselheiros! — exaltou-se o
Imperador.
Então deu início a uma nova rodada de discussões acaloradas sobre o impasse dos
recursos destinados à Arca ou à Terra. Durante cinquenta minutos as duas bancadas, com exceção
de Walter e Shakti que permaneceram calados e introspectivos, levantaram argumentos questionáveis para tentar convencer o Imperador de algo que ele já estava convencido. Atoq apenas
queria fazer como de costume e endossar a decisão da maioria para continuar seu papel de boa
raposa. Com Walter, seu eterno Conselheiro Fiel, na bancada dos Herdeiros e Shakti agora sendo
obrigada a defender os interesses da Arca, o dia terminaria com mais uma votação primorosamente manipulada.
Com a intensão de influenciar a bancada dos Herdeiros a inclinarem-se a favor da Arca,
Atoq pediu para que Walter iniciasse a votação, tendo a certeza de que seu Fiel ficaria ao lado
do Império.
— Nos últimos trinta anos não houve um dia sequer que eu não tenha dedicado todos os
meus esforços em benefício do Império. Daria minha própria vida para salvar nosso Imperador.
Agora me vejo na posição de, provavelmente, decidir esta assembleia por um voto. Mas não
quero continuar assistindo essa discórdia entre meus amigos Conselheiros. Gostaria de poder
terminar o encontro de hoje com um sentimento de união. Que todos compreendessem que esta
união trará benefício a Herdeiros e Viajantes. Vamos fazer nossas escolhas pensando no que é
melhor para a harmonia deste Império. Depois de pensar bastante eu percebi que, paradoxalmente, beneficiar a Arca agora fará com que sua construção atrase ainda mais.
Atoq começava a ficar inquieto em seu trono, engolindo em seco e arrumando suas
vestes, quase fazendo sinais para que Walter não cometesse nenhuma bobagem. Enquanto as
bancadas trocavam olhares de curiosidade de onde o Comandante Regente queria chegar.
— Por um lado existe a pressão do Sindicato dos Construtores pelo aumento de vagas
para operários e, consequentemente, de passageiros na Arca. Melhores condições de trabalho,
como segurança e uma semana de folga em superfície para cada três semanas em órbita. E bene-
8
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
fícios no loteamento do Novo Mundo, concorrendo também pelo direito de exploração mineral.
Walter fez um sinal para que seu assistente, Pierre, transferisse um slide específico para
a grande tela, mas praticamente ninguém deu atenção. Não conseguiam mais tirar os olhos do
Comandante.
— Do outro lado estão as Indústrias dos componentes estruturais e de suporte da Arca.
São eles que estão fabricando nossas Capsulas de Hibernação, por exemplo. Obviamente não
corremos o risco de nenhum tipo de sabotagem, pois o Computador Central faz uma varredura e
qualifica todas as peças que serão instaladas na Arca. Mas dizer para essas pessoas que invés de
dez mil abrigos subterrâneos, teremos apenas a metade devido à corte de custos, é iniciar uma
paralização imediata e uma provável revolta civil em todo o Império e, quiçá, nos territórios
aliados. Já nos bastam os hostis. Então eu voto pela não reforma do orçamento! — e finalmente
pressionou o botão.
Naturalmente toda a bancada dos Herdeiros celebrou em palmas, e a seguir seus
membros também votaram, um a um, pela manutenção do orçamento atual. Alguns nem se deram
ao trabalho de argumentar. Faziam a Saudação Imperial a Walter e apertavam o botão vermelho.
Impaciente, Atoq gesticulou para que a outra Comandante iniciasse a votação da bancada dos
Viajantes. Naquele momento o Imperador apenas desejava que aquilo acabasse logo.
— Vossa Majestade Imperial foi muito sábia em escolher um homem como Walter para
representar os Herdeiros. Acredito que ninguém aqui teria feito uma defesa melhor, abordando
pontos que somaram aos que apresentei anteriormente. Espero que o Imperador entenda que os
Herdeiros não são contra a Arca ou contra o Governo. Pelo contrário! Como disse o Conselheiro
Isaac, quanto mais rápido a Arca ficar pronta, mais rápido poderão usar os recursos da Terra em
benefício próprio, depois que vocês partirem. Desculpe. Depois que nós partirmos — Shakti
ainda não estava acostumada com a ideia.
— Entretanto se os abrigos não forem construídos logo, eles não sobreviverão à próxima
máxima solar, daqui a seis anos. Eu sei, e creio que todos os outros Conselheiros também saibam,
o motivo pelo qual Vossa Majestade Imperial nomeou-me para este cargo. Farei de tudo para
convencê-lo a trabalhar apenas com os recursos que o Império disponibiliza para os Herdeiros,
sem paralizações ou atrasos na entrega dos componentes da Arca. Paralelamente entrarei em
contato com o Sindicato dos Construtores para mediarmos um acordo com Vossa Majestade
Imperial. Acredito que o Império estaria disposto a ceder algum território no Novo Mundo em
troca dos trabalhadores permanecerem com a mesma cota de passageiros na Arca.
Atoq deu um profundo suspiro, estava visivelmente nervoso, massageando seu queixo
com uma das mãos, enquanto a outra tamborilava os dedos em seu joelho.
— Em todo caso reforçarei meu voto anterior, independente do que o Imperador me
9
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
ordenar como Comandante. Sou contra a reforma! — e apertou o botão vermelho em seu painel.
O restante da bancada finalmente cedeu aos argumentos dos dois Comandantes e
reconheceu que seria muito arriscado pressionar ainda mais as indústrias e fornecedores. Foi a
primeira vez que a votação terminou em unanimidade. Todos foram contra a reforma.
— Senhores Conselheiros, Comandante Shakti, Comandante Walter... Eu não me lembro
de ter visto em nenhum dos registros imperiais, durante toda minha vida dentro do palácio,
alguma referência a uma votação como a de hoje. Durante gerações os Imperadores ouviram
seus Conselheiros, que são nada mais que a voz do povo, e tomaram as decisões necessárias para
trazer nossa civilização até onde estamos hoje, mesmo com todas as adversidades dos últimos
tempos. Nem sempre os meus desejos representam as mesmas vontades de meu povo, e é por
isso que um bom Imperador considera os pontos, argumentos e a votação final.
Atoq fez uma pausa. Parecia realmente preocupado com a situação, resolvendo um
conflito interno entre fazer o certo ou errado. Analisava tudo aquilo que havia sido levantado
durante o encontro. Decididamente os Conselheiros tomaram a decisão certa, baseados nos fatos
ali apresentados. “Provavelmente pensariam diferente se soubessem o que eu sei”, refletiu em
silêncio.
— Sei que ninguém aqui vai me compreender. Serei mal visto pelo povo Herdeiro, e
amaldiçoado mais uma vez pelos inimigos, mas farei valer da confiança concedida a minha Casa,
honrando o nome de meu avô, Atoq Allin. Não tenho alternativa senão decidir que seja aprovado
o novo orçamento para a Arca. O Império tomará todas as ações necessárias para estabelecer o
novo cronograma pelo bem ou, infelizmente, pelo mal. Farei o pronunciamento para o público
hoje à noite, após o Chá Cerimonial.
Abalado, Atoq girou a plataforma do trono dando as costas para as bancadas dos Conselheiros e desceu pela escadaria da parte de trás, que dava para uma porta de acesso ao setor
restrito à família imperial no Palácio. Era a primeira vez que usava de sua soberania para contrariar a escolha da maioria do Conselho.
Ao ouvirem o bater da porta, os presentes iniciaram um burburinho nervoso e se
dirigiram para o salão secundário, onde ocorria o tradicional Chá Cerimonial depois de todas
as sessões de votação, para discutirem a repercussão das decisões tomadas no Conselho. Pela
primeira vez as bancadas estavam todas misturadas, e Herdeiros conversavam civilizadamente
com Viajantes. Shakti estava em uma das rodas de conversa quando um dos serviçais do Palácio
a chamou.
— A senhorita é aguardada na sala privada do Imperador. Por favor, queira me acompanhar. Peço que seu assistente permaneça aqui fora.
— Fique aqui, Kevin. Eu volto logo.
10
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
Shakti seguiu o empregado do Palácio por corredores muito bem decorados com pinturas
simbolizando diversos momentos históricos do Império, intercalado com retratos belíssimos dos
mais relevantes Imperadores, desde os primórdios da civilização.
Então chegou a um aposento amplo, cujo teto era enfeitado com as sete cores Imperiais
em padrões quadriculados, sustentado por colunas quadradas de pedras perfeitamente alinhadas.
O chão possuía uma enorme área circular com a representação, em escala reduzida, da configuração do Sistema Solar no momento da conclusão da construção do Palácio. Na parte superior do
diagrama havia grafado Thacana Rimay-kuna Pachamac, que significava “Espalhai as palavras
do Poderoso”. Na parte inferior, a data de início e fim da obra. Quatorze de maio de 1813 a 25 de
setembro de 1829. Shakti reparou, estupefata, um grande rubi cravado no centro do Sol.
— É uma réplica — explicou o Imperador. — O original se perdeu muitos anos depois
do estabelecimento do Império.
Atoq cerrou o punho direito e encostou seu anel Imperial em uma discreta cavidade,
camuflada entre os desenhos entalhados em uma das paredes, até encaixá-lo perfeitamente com
um som estalado, como se ocorresse uma conexão magnética. Então girou o punho no sentido
horário até que uma das paredes começou a afundar, revelando uma passagem para uma extensa
escadaria direção abaixo.
— Além de meu pai e alguns Sacerdotes, ninguém mais sabe o que vou lhe mostrar.
Nem mesmo Walter.
E segurando na delicada mão da mulher, o Imperador a guiou pelos mais de cinquenta
degraus, iluminados por fracas e antigas lâmpadas incandescentes, dispostas de dois em dois
metros. Ao final da escadaria havia uma pequena porta de metal, decorada em ouro com a figura
de quatro homens em adoração ao Sol, dois de cada lado, e no centro da estrela outra réplica, bem
menor, do rubi que havia no piso da sala superior.
— Vire de costas, por favor.
E Shakti prontamente obedeceu ao pedido do Imperador, ouvindo apenas o som de algo
sendo pressionado e arrastado, seguido de uma intensa luz vermelha que iluminou quase até o
topo da escadaria. Uma constante vibração percorreu o chão e as paredes por alguns segundos,
acompanhada de um forte zumbido e o som de um líquido escoando por algum encanamento na
parte de baixo. Enfim escutou um barulho semelhante aquele estalo metálico que ouvira lá em
cima. Imediatamente a luz vermelha cessou e a porta finalmente abriu.
— Pode entrar agora.
Foi preciso curvar-se para passar pela porta e entrar em uma câmara esférica, cujas
paredes eram feitas de um metal escovado, porém reluzente. Um círculo branco na parte superior
acendeu como uma auréola e iluminou todo o ambiente, revelando no centro um pilar que susten-
11
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
tava um globo dourado, com aproximadamente um metro de diâmetro.
Shakti e Atoq usaram uma curta rampa que descia até o piso da câmara, e caminharam
até o centro, onde era possível ficar de pé sem bater a cabeça no teto.
— Precisarei de sua ajuda com isso — disse o Imperador enquanto soltava duas hastes
na parte superior do globo, uma em cada lado. — Nós vamos girar no sentido anti-horário, e
assim que sentir uma levíssima resistência, levantaremos a tampa.
Mal deram meia volta pela câmara e os dois ergueram em sincronia a parte superior
do globo, que pesava mais de dez quilos, e pousaram a peça no chão. Shakti reparou que o piso
estava molhado, com uma leve camada de um líquido transparente que ainda escorria por frestas
milimetricamente abertas próximas a base do pilar. Levantou-se e olhou dentro da semiesfera
dourada. Havia dezenas de tubos cromados, de tamanhos variados, presos a uma armação que
lembrava um grande candelabro. Atoq retirou um dos tubos e aproximou-se da Comandante.
— Aqui dentro tem parte do Código que ergueu nossa civilização. Tudo aqui foi
compilado pelos Sacerdotes da Fortaleza Mana Rikukoj que estudaram o Inti Sonqo. São mais
de dois séculos de informações e conhecimentos universais em todas as áreas imagináveis. De
química à psicologia, de matemática à biologia, de física quântica à filosofia. Algumas coisas
eles sequer conseguiram decifrar, pois exigia maturidade tecnológica inexistente na época.
— Eu achei que fosse tudo lenda de nosso povo.
— Não minha cara. O progresso que temos hoje foi alcançado graças ao trabalho árduo
daqueles Sacerdotes. Toda informação extraída do Inti Sonqo que foi decodificada nos permitiu
sobrepujar os inimigos, construir máquinas maravilhosas e até mesmo prever eventos futuros.
— Você diz, misticamente? Como feiticeiros?
— Não, Não! Cientificamente! Usando matemática avançada, cálculos probabilísticos
e equações que manipulavam dezenas de variáveis e demoravam anos para serem resolvidas. O
tempo investido compensava o quanto perderíamos tomando as decisões erradas.
— Perdoe-me a sinceridade, Imperador, mas nem tudo eles conseguiram prever, não é?
— Alguns acontecimentos são obras do acaso. São decisões particulares de indivíduos,
até então insignificantes para serem considerados em qualquer simulação, que produzem uma
reação em cadeia de eventos catastróficos em um curto intervalo. O que ocorreu com o planeta
não havia como ser previsto.
Então Atoq torceu o tubo de forma que as duas partes rosqueadas se abriram, e de dentro
tirou um pergaminho enrolado, muito bem conservado, cujas palavras eram bordadas com fios
de ouro.
— Esses textos datam até o desaparecimento do Inti Sonqo. Depois disso nada mais
foi catalogado, e passamos então a andar com nossas próprias pernas. Muitas das tecnologias
12
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
usadas na construção da Arca foram desenvolvidas em nossas Universidades. Ainda assim, tudo
que sabemos até agora, representa menos de vinte por cento dos textos que foram decifrados.
Precisamos levar o Código para o Novo Mundo de qualquer maneira. O ser humano não é nada
sem o conhecimento, e o conhecimento de nada serve sem uma mente para assimilá-lo. Este é
o verdadeiro motivo para construirmos a Arca. Levar alguns exemplares animais e vegetais de
nosso planeta é mera comodidade. Vamos perpetuar o que, de uma forma ou de outra, foi um
presente do Poderoso para o nosso povo. Entende agora a importância de partirmos o quanto
antes? Inti não está mais a nosso favor.
— Eu concordo com Vossa Majestade Imperial que de nada serviria este conhecimento
sem pessoas para fazerem uso. Mas então porque justamente mantê-lo trancado neste... — Shakti
procurou alguma palavra para descrever a câmara — ...cofre?
— Porque ele é exatamente o que se guarda em um cofre. Nosso tesouro mais valioso.
Este palácio foi construído anos depois que Inti Sonqo desapareceu. Ou assim foi transmitido
para a população. O que aconteceu na verdade é que o Império estava embriagado por uma
soberba intelectual, devido a tudo que era extraído de Inti Sonqo. De fato éramos incomparavelmente mais desenvolvidos que os outros reinos e impérios contemporâneos. Mas acabamos
subestimando nossos inimigos. Aliás, um único homem.
— René de Quimper? A lenda?
— O Imperador da época não queria admitir que uma desgraça; uma falha daquele
tamanho, realmente havia acontecido. Aproveitou-se que o tal René simplesmente desapareceu
pelo mundo com Inti Sonqo, e nunca mais se teve notícias; para apagar todos os registros físicos
que pudessem validar a história. Até o nome da cidade ele tentou mudar, mas não teve argumentos para convencer a bancada daquele tempo, sem revelar suas intenções.
Atoq começou a guardar novamente o pergaminho no tubo metálico.
— Então, paradoxalmente, o próprio Império criou e difundiu uma lenda, para encobrir
os fatos reais, narrando-os nela mesma. Se um homem sozinho foi capaz de roubar nosso maior
tesouro, não mediríamos mais esforços para proteger a qualquer custo, do resto do mundo, aquilo
que nos sobrou. Assim um novo palácio foi projetado e esta sala construída em segredo. Mas o
sistema de segurança foi aprimorado devido aos eventos da Grande Catástrofe. Além dos homens
agora precisávamos nos preocupar com a força da natureza.
Após prender novamente o tubo no suporte, o Imperador e a Comandante abaixaram-se
para pegar a parte superior do globo.
— Mas se todo este material é tão importante, e deve ser preservado, por que não fazer
cópias de segurança? Digitalizá-los, talvez?
— Cópias digitais são complicadas de manter em segurança e podem ser duplicadas
13
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
facilmente, caindo em mãos erradas. No entanto existem três réplicas bem guardadas deste
material, nos Templos de Nuuk, Atâr e Kodar. O que você viu aqui — Atoq deu um tapinha no
globo dourado que haviam acabado de fechar — são apenas os originais da época. Você não
percebe, minha cara? Não importa quantas cópias deixemos aqui na Terra. Não há como os
Herdeiros sobreviverem. O pior cenário simulado tem mais de sessenta por cento de chances de
acontecer. Precisamos; focar; na Arca. — Enfatizou cada palavra, enquanto fechava a porta da
câmara e sinalizava para que a mulher subisse as escadas.
Dessa vez Shakti ouviu um som como se houvesse uma intensa cachoeira dentro da
câmara. Mas logo Atoq voltou a falar e tirou sua concentração.
— Eu preciso que convença Faruki a continuar com a construção da Arca, mesmo
sabendo das decisões que tomei hoje. Em hipótese alguma, o que viu e ouviu aqui deve ser
revelado. Não tome isso como uma simples ordem à minha Comandante. Eu preciso que você
compreenda porque estamos fazendo tudo isso.
Shakti assentiu com a cabeça.
— Agora vamos... Você tem pouco mais de uma hora até o meu pronunciamento.
De volta ao Chá Cerimonial, Shakti agarrou seu assistente pelo braço e o arrastou para
fora do local.
— Kevin, agende com exclusividade o TSI para Kampala. Precisamos chegar ao
aeroporto em dez minutos.
Shakti e o assistente tomaram na sacada do andar do Grande Salão, um magcarro que
deslizou pelas paredes do palácio até o nível das ruas, onde se acoplou a uma das linhas diretas
até o aeroporto. Supercondutores elevavam o veículo cinco centímetros acima dos trilhos e um
motor elétrico gerava uma diferença de corrente que puxava o carro para frente. Não havia
piloto. Todo percurso era guiado automaticamente a partir do endereço de destino fornecido no
momento do embarque. A curta viagem foi feita em silêncio e na suavidade que era característica
dos magcarros. Shakti digeria lentamente as informações que acabara de receber.
— Nosso Transporte nos aguarda no portão sete. O tempo de viagem até Kampala será
de 78 minutos e 36 segundos na aceleração confortável, ou de 43 minutos e 25 segundos na
aceleração de urgência.
— Urgência, Kevin! Temos muita urgência! — disse já correndo pelo saguão do
Aeroporto Internacional de Pisco, seguida do desajeitado assistente.
Depois de serem reconhecidos pelas câmeras do aeroporto e terem a entrada autori-
14
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
zada no portão sete, enfim subiram no Transporte Sub-orbital Imperial que, dotado do mesmo
sistema magnético, posicionou-se na cabeceira da pista. Alinhou-se a um enorme tubo com mais
de seis quilômetros de extensão, com uma curvatura nos últimos dois quilômetros que ascendia
centenas de metros mirando o céu, lembrando uma versão miniatura da Grande Catapulta do
Monte Stanley. O transporte acelerava até uma velocidade de mil e quatrocentos quilômetros por
hora em apenas dez segundos, quebrando a barreira do som e gerando uma onda de choque que
era absorvida pelo material especial do revestimento interno do tubo. O procedimento de lançamento era chamado de “Tiro de Canhão” pelos controladores de voo. A analogia não poderia
ser mais perfeita, pois os passageiros eram submetidos a uma força gravitacional quatro vezes
maior que a normal.
— Senhores passageiros, aqui é o Comandante Hakan. Por medidas de segurança,
acomodem as bagagens de mão nos compartimentos acima de seus assentos e afivelem seus
cintos de segurança — e o Comandante tocou em um botão em seu painel que direcionou a
comunicação para a Torre do Aeroporto. — Voo IP147, pedindo autorização para lançamento.
— Autorização concedida, IP147. Confirmando o plano de voo em aceleração de
urgência pela rota L0-L12. Façam uma boa viagem.
— Senhores passageiros, tivemos o lançamento autorizado. O tempo de voo até Kampala
será de aproximadamente 45 minutos. O clima local é bom, com temperaturas variando entre 21
e 22 graus. Partiremos em quinze segundos.
Shakti preferia andar no velho trem, que fazia a linha Allahabad-Nova Deli, do que nos
Transportes Sub-orbitais. Tinha verdadeiro pavor àquela aceleração desgraçada. Para ela, não
fazia diferença se era pouca ou muita aceleração, desde que acabasse logo. Ficava de olho no
contador que exibia quantos segundos restavam para o lançamento, com a esperança de conseguir
prender a respiração e contrair os músculos da barriga quando faltasse apenas um segundo, e
assim superar aquele gelo que lhe percorria por dentro. Mas era inútil. Sentia mais raiva ainda ao
olhar para o lado e ver Kevin completamente blasé.
A aeronave estava praticamente vazia, com o resto dos doze acentos desocupados. E
então, como se puxassem seu intestino pelo umbigo, Shakti contorceu-se fazendo uma careta
tentando dobrar o abdômen, enquanto a aceleração a colava na poltrona. Cerrou os dentes
emitindo um gemido. Decididamente retornaria para a Capital do Império por aeronave convencional. Mas ela ainda passaria, pelo menos, por mais um lançamento inconveniente como aquele,
no dia do embarque na Arca.
Assim que o transporte foi ejetado da tubulação, o Piloto acionou os estabilizadores
e iniciou o motor de combustão supersônica, que aproveitava o ar comprimido na frente da
aeronave e utilizava um equipamento para gerar instantaneamente o Tetróxido de nitrogênio,
15
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
usado como combustível. Mais uma vez Shakti era arremessada ao encosto da poltrona e permaneceria assim pelos próximos cinquenta segundos, até atingirem 32 mil metros de altitude, o
suficiente para o Transporte entrar no modo hipersônico, agora utilizando as quatro toneladas de
água destilada que ficavam pressurizadas em um tanque na parte inferior da aeronave. O líquido
passava por um sistema de nano eletrólise de alto desempenho que dividia instantaneamente a
molécula da água em átomos de Hidrogênio e Oxigênio para alimentar os foguetes que levariam
os passageiros para cem mil metros de altitude, a uma velocidade média de 18 mil quilômetros
por hora, em apenas trinta segundos.
— Ufa! Achei que nunca mais respiraria novamente.
Disse a mulher, assim que a aeronave reduziu os propulsores, deixando o ambiente com
apenas o dobro da gravidade usual, o que já era levemente tolerável. Apenas quando restassem
vinte e cinco por cento do percurso começariam o processo de desaceleração.
— Literalmente achei que fosse morrer!
— Por que a morte lhe perturba tanto, senhorita? — Kevin a questionou com uma
autêntica curiosidade.
— Meu povo acredita que depois de morrer, nós voltaremos em outro corpo — Kevin
inclinou a cabeça, incrédulo, e Shakti tratou de explicar melhor. — Não de forma imediata, mas
que nasceremos outra vez, como bebês. Cresceremos, passaremos pela etapa de aprendizado, nos
tornaremos adultos, envelheceremos e morreremos novamente. Em ciclos.
— Qual o intuito disso?
— É muito complexo, Kevin, mas crê-se que estamos aqui para evoluir. Aprimorar
nossa alma, ou consciência se preferir, até finalmente retornarmos para o Poderoso Criador. É
como uma etapa de uma grande missão.
— Então a morte é um processo benéfico, se analisarmos o objetivo final. Não deveria
se preocupar.
— O que me aflige é saber que ao morrer todas as minhas lembranças serão apagadas.
Todo meu conhecimento adquirido será deixado para trás. Vou esquecer as pessoas que conheci.
Que amei. Que me amaram...
— Não consigo correlacionar como uma memória apagada pode desencadear qualquer
tipo de aprimoramento.
— São os atos e escolhas que fazemos em vida que importam para nossa elevação.
Porém meu lado racional como cientista acha que morrer é um desperdício de material intelectual, ao mesmo tempo em que meu instinto de sobrevivência tenta evitar ao máximo qualquer
risco de morte. Por isso são inevitáveis os reflexos de autopreservação. A vida é muito valiosa.
Seja qual for o organismo.
16
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
Shakti lembrou-se da indiferença de Atoq para com os animais e plantas que poderiam
ser salvos pela Arca, importando-se apenas com os pergaminhos. E neste momento, fazendo um
paralelo com a discussão que acabara de ter com Kevin, sentiu um pouco de cumplicidade com
o Imperador. Aquele conhecimento todo não poderia ser perdido.
— As pessoas não deveriam matar umas as outras, já que a vida é algo tão valioso.
— Se elas pensassem como você, Kevin, o mundo seria muito melhor. Um sábio chinês
disse uma vez: “Não faça aos outros o que não quer que lhe seja feito”.
— Faz todo sentido, senhorita.
Alguns minutos depois e o Transporte Sub-orbital ligou os retrofoguetes, iniciando o
processo de desaceleração, trazendo mais uma vez sensações as quais Shakti não desejaria ao
pior inimigo. Passado mais um tempo, a voz de Hakan trouxe boas notícias.
— Senhores, pousaremos em Kampala dentro de quatro minutos. Atenção para o
solavanco. Vamos abrir os paraquedas, em cinco, quatro, três, dois, um!
Graças ao cinto de segurança que prendia o abdômen e o tórax, Shakti não teve a cabeça
arremessada contra as costas da poltrona à sua frente, embora tivesse a sensação que seu cérebro
sairia pelas narinas. Então, enfim tocaram o solo da capital da República da Uganda.
Kevin já havia providenciado um carro convencional para levá-los até a residência de
Faruki. Depois de efetuar todos os procedimentos de imigração, os dois dirigiram-se imediatamente ao encontro do homem que, devido à diferença do fuso-horário, provavelmente estaria
dormindo.
— Seria mais adequado ligarmos antes, senhorita? — disse enquanto subiam no taxi.
— Melhor não. Se ele souber de antemão que estou aqui, suspeitará de algo e pode
acabar obtendo a informação de que me tornei Comandante da Arca. Eu preciso contar pessoalmente.
Alguns quilômetros depois, chegaram aos portões da casa do Presidente das Indústrias
Duniani.
— A corrida deu oito créditos, senhora — informou o taxista através do comunicador
interno do veículo.
Uganda não era tão segura quanto a Capital do Império, e por isso os motoristas ficavam
protegidos por um painel de cristal de grafeno.
— Autorizado! — e o sistema de cobrança fez o reconhecimento da voz de Shakti,
liberando os créditos. Os dois saltaram do veículo e caminharam até o intercomunicador da resi-
17
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
dência de Faruki.
— Quer que eu anuncie nossa chegada, senhorita?
— Não precisa. Estou apenas tomando um pouco de coragem. Já faz cinco anos que
não o vejo.
Shakti pressionou o botão do intercomunicador no portão, mas demorou um pouco até
atenderem.
— Pois não? — disse uma mulher vestindo túnica verde e com os cabelos presos em um
coque. A cara era visivelmente de sono. Mesmo pelo pequeno monitor.
— Desculpe não avisar com antecedência, mas vim com urgência da Capital para um
encontro inadiável com o senhor Faruki.
— Olha, o senhor Faruki já está em seu quarto há algum tempo. Não pode ser amanhã?
— Não, senhora, é bastante urgente mesmo. Venho em nome do Imperador Atoq Allin
III. Diga a ele que é Shakti Naresh.
— É a senhorita Naresh? — disse uma voz, quase inaudível, fora do enquadramento. —
Deixe-a entrar, pelo amor de Deus.
Shakti e Kevin foram recebidos pelo Secretário de Faruki. Um senhor bem idoso, de
pele muito negra, cabeça raspada, e impressionante par de olhos verdes.
— Ah! Seja bem vinda minha doçura. Continua linda como da última vez que partiu.
— Também senti sua falta — falou um pouco sem graça pelo elogio do velho amigo,
enquanto era recebida com um forte abraço.
— Vejo que é caso de urgência mesmo. Trouxe até um guarda costas — brincou, dando
uma piscada para Kevin. — Fiquem à vontade. Depois dê uma passada na ala dos empregados
para colocarmos as coisas em dia. Agora vão lá para sala que eu vou chamar o senhor Faruki.
Você já conhece o caminho, não é?
— Sim, senhor Masaba, não se preocupe. Depois eu passo lá para tomarmos um chá.
A sala de Faruki era mal iluminada e pesadamente decorada com artesanato tribal de
todas as regiões da África, como se houvesse uma necessidade de preencher qualquer espaço
vazio que exibisse o branco das paredes. Sentada em um sofá feito de vime e bambu, com extravagantes almofadas de camurça imitando o padrão do pelo de zebras, tigres e girafas; Shakti
murmurava uma antiga música local de que gostava muito. Na verdade era uma tentativa inútil de
buscar se acalmar. Kevin estava a seu lado, registrando cada uma das máscaras, armas, escudos,
instrumentos musicais e penduricalhos pelo teto. Era a primeira vez que via alguns daqueles
objetos.
Não tardou e entrou na sala um homem de grande estatura, pele escura e músculos
bem definidos. Descalço, trajava apenas a parte de baixo de um pijama branco, onde um lenço
18
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
vermelho era usado como cinto. Havia um cordão de palha amarrado no bíceps direito.
Passaram-se alguns segundos, quando Shakti se deu conta que olhava fixamente para o
peitoral desnudo de Faruki.
— Você não veio aqui, depois de tanto tempo, para dizer que aceita meu pedido, não é?
Ainda mais trazendo uma coisa dessas em minha casa — disse apontando para Kevin.
— Foram exatamente essas atitudes que me fizeram ir embora, Faruki. Nós viemos em
uma espécie de missão diplomática. Sente-se. Precisamos conversar algo muito sério.
— Eu estava justamente em meu quarto, aguardando o pronunciamento. Mas para vir
aqui nessas condições, deve ser urgente mesmo. Qual foi a última burrice que seu Imperador fez?
— O nosso Imperador precisa adiantar o cronograma da Arca em mais dois anos.
— DOIS ANOS?! Primeiro adiantamos dois MESES. Depois foram mais QUATRO
meses de uma correria desgraçada para entregar os painéis de revestimento. Agora ele precisa
de dois ANOS? Ele quer o quê?! Que eu tire os módulos de criogenia da bunda?! Eu teria que
transferir toda minha produção para a Arca, e você sabe o que isso significa? Que nós estaremos
literalmente Condenados, como o povo diz.
— Eu não... Eu não vou mais ficar aqui, Faruki — Shakti precisou desviar o olhar ao
falar isso.
— Como é? Você está me dizendo que vai fugir com aqueles covardes? Ir para a Capital
foi a pior coisa que você fez com a sua vida. Olha no que se tornou. Abriu mão de sua cultura,
veste-se como eles, e até anda com um escravo.
— Eu fui para defender nosso povo. E consegui ser ouvida, reconhecida e ter relevância; até me chamarem para o Conselho. E Kevin não é meu escravo. É meu assistente.
— KEVIN?! Vocês dão NOMES para eles agora? Daqui a pouco estarão dando
DIREITOS! O que mais vocês fazem com eles lá no Império?! — Faruki gesticulou grosseiramente um movimento com as mãos, com conotações sexuais.
— Não seja patético! É engraçado que você não vê problemas em ter “escravos” —
Shakti fez um sinal de aspas com os dedos — trabalhando em suas fábricas...
— Aqueles são diferentes... Não arriscaria nosso povo em subempregos. Os escravos
estão em seus devidos lugares. Não têm escolha. Além do quê, eu não os trago para dentro de
minha casa.
— Olha Faruki, eu não vim aqui para ter esse tipo de discussão inútil com você. As
últimas simulações solares colocam tanto os Herdeiros quanto os Viajantes em risco. Por isso
Atoq quer partir com a Arca o mais breve possível e liberar todos os recursos para o povo
concluir os abrigos.
— Eu APOSTO que não foi dele a ideia desta nobre iniciativa.
19
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
— Não podemos ficar os próximos seis anos nesse impasse, pois assim não haverá nem
Arca nem Terra para contar nossa história. O Imperador não está disposto a negociar, Faruki.
Atoq deixou implícito que instituirá Lei Marcial se for preciso.
— Eu já imaginava que um dia isso fosse mesmo acontecer. Estou surpreso que tenha
sido só agora... Então é isso que vocês aprovaram hoje? Qual foi a manipulação que a Velha
Raposa fez para os Conselheiros votarem e aceitarem isso?
— Nós não aceitamos nada! A votação foi unanimemente contra, se quer saber.
— Você quer que eu acredite que Walter e os outros idiotas foram contra o Imperador?
— Daqui a pouco ele fará o pronunciamento, e é por isso que eu vim contar pessoalmente.
— Você andou naquela coisa só para vir me avisar de algo que saberei daqui a dez
minutos pela televisão? Eu te conheço Shakti... É bom falar logo...
— Ele fez a escolha, Faruki. Eu fui nomeada Comandante.
— Mas como demônios você pôde ter sido escolhida Regente, se vai fugir com aqueles...
— apenas neste instante o homem reparou na cor azul da insígnia, presa à roupa da Comandante.
— Me diga que não é verdade! Diz que eu não estou enxergando direito a cor desta
merda presa em você. Que decepção, Shakti... Que decepção...
— Eu não pedi por isso, meu amigo, ele...
— Amigo?! A-MIGO? Você saiu daqui destruindo a minha vida, dizendo que apesar de
nossa relação ter acabado eu seria seu “amigo”. Só vem aqui CIN-CO A-NOS depois, e agora
dá uma apunhalada dessas?
— Fui embora porque VOCÊ se tornou outra pessoa. Então parti para buscar algo que
EU sempre quis ser e VOCÊ não deixava. Ainda assim o considerava um amigo.
— Eu não sou mais NADA seu. Você não tem ninguém, Shakti. Você é uma traidora do
nosso povo. Uma vergonha para seu país que sofre em miséria enquanto vocês andam com essas
merdas pelo Império — apontou mais uma vez para Kevin.
— A senhorita tem a mim — constatou Kevin. Ninguém soube interpretar se ele disse
“ter” como propriedade ou como alguém com quem contar.
— Você, cale a boca dentro de minha casa!
Aquele encontro só tenderia a piorar. Shakti levantou-se para ir embora.
— Olha, Faruki, eu vim aqui realmente me preocupando com você e meu povo. Faço o
que penso ser o correto para preservar a memória de nossa civilização.
— E se houver uma civilização no outro planeta, que se lasque, não é? Espero que eles
sejam bem avançados e coloquem o Imperador em seu devido lugar.
— Não há esse risco. Os radiotelescópios não detectaram nenhum sinal inteligente vindo
20
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
daquele sistema. Se houver alguma civilização, ela ainda está em um estágio bem primitivo.
— Que bela ironia, para quem lutou no passado contra seus Conquistadores, vocês
farão uma ótima troca de papel.
— O que você quer que eu faça, Faruki? Quer que eu me ajoelhe e peça perdão? Quer
que eu aceite seu pedido de casamento, para tornar-lhe meu marido e ir comigo na Arca?
— Eu prefiro morrer aqui com meu povo. Mas isso não vai acontecer Shakti. Vamos
lutar até o último momento. E diga a seu Imperador que os Herdeiros vão fazer o máximo para
entregar a Arca dele o mais cedo possível, e nos livrarmos de vez desta escória. E eu não estou
me referindo a você, seu inútil — Kevin se mostrou inabalável pelos insultos.
— Você e Masaba sempre foram a verdadeira família que não tive. Tudo o que fiz foi
pensando em vocês. Eu espero que consigam mesmo sobreviver. Que o Poderoso os abençoe.
Shakti saiu da sala como se uma espada flamejante estivesse cravada em seu peito. Mas
o que fez as lágrimas correrem pelo seu rosto foram as palavras que Faruki disse ao bater a porta:
— Vá pro inferno! Eu espero que essa merda EXPLODA com todos vocês dentro. Olho
por olho, dente por dente!
A mulher saiu apressada da casa e nem mesmo foi se despedir de seu velho amigo
Masaba. Não ia querer mesmo que ele a visse naquele estado.
A viagem de volta durou confortáveis treze horas ininterruptas. Um pouco antes de
chegarem a Capital, Shakti abandonou a tristeza.
— Obrigada, Kevin!
— Pelo quê, senhorita?
— Por estar comigo. Eu sinto que realmente posso contar com você. Como um verdadeiro amigo.
— Eu não entendo por que o senhor Faruki não aceitou sua amizade.
— Porque ninguém pode impor uma amizade, Kevin. Não é uma questão de aceitar
como uma obrigação, mas de escolher, desejar — e sorrindo, olhou para ele e disse:
— Quer ser meu amigo, Kevin?
— Creio que não sou apto a fazer escolhas — lamentou-se.
— Não seja bobo Kevin! Sabe que eu nunca o impedi de ser independente. Se algum dia
sentir necessidade de fazer uma escolha, tem minha permissão.
— Perfeitamente, senhorita. Então eu escolho ser seu amigo.
Shakti sentiu um fio de felicidade costurar-lhe o coração. E segurando com as duas
21
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
mãos a face de Kevin, fechou os olhos e o beijou na testa. Imediatamente Kevin sentiu pela
primeira vez a temperatura quente e a umidade dos lábios de uma mulher.
— O que o senhor Faruki quis dizer com “olho por olho, dente por dente”?
— É uma espécie de código de conduta. Parecido com os que você tem. Precisa ler o
Livro Sagrado, Kevin. Aprenderá muitas coisas boas.
E o tempo passou, até que chegou o grande dia do embarque. A Arca finalmente estava
pronta, quase três anos e meio antes do cronograma planejado. Em alguns lugares, durante o
amanhecer ou crepúsculo, era possível vê-la refletir a luz do Sol como uma grande estrela que
cruzava o céu.
Mais uma vez Shakti retornava a África, desta vez junto com mais de cento e quarenta
mil pessoas que embarcariam na Arca durante todo o dia, em comboios que eram lançados da
Grande Catapulta do Monte Stanley a cada vinte minutos.
Todos os passageiros passavam por um último exame clínico, para detectar qualquer
tipo de doença contagiosa ou algo que impedisse a hibernação por estar com a saúde debilitada. Aqueles que apresentassem doenças que pudessem ser curadas na hora, como a Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida, Diabetes ou Hemofilia, recebiam um tratamento imediato de
pílulas com nano-anticorpos ou meta-gênicos. Outros não tinham a mesma sorte e eram prontamente retirados da lista. Ocorreram poucos incidentes como este no embarque, pois há meses a
população dos Viajantes vinha assistindo a vídeos preparatórios.
O coquetel de pílulas ainda incluíam substâncias contra a rejeição ao líquido anticoagulante que seria aplicado nas veias, proteínas que revestiriam o sistema digestório para receber
um gel protetor da flora intestinal, anti-inflamatórios para um líquido de oxigenação que seria
injetado nos pulmões, e um sedativo que deveria ser tomado dois minutos antes do congelamento.
Assim que acoplavam à Arca, os passageiros eram conduzidos para seus casulos de
hibernação onde, depois de dopados, eram conectados a várias válvulas e cateteres, recebiam os
fluidos auxiliares e depois o casulo era hermeticamente fechado e insuflado com um gás pressurizado que penetrava em todas as dobras e orifícios do corpo, para então receber um estímulo
eletroquímico e converter-se em uma forma cristalizada. Como preso em um âmbar transparente,
o passageiro seria acordado apenas quando Shakti desse o comando, ao chegarem ao Novo
Mundo. Caso uma inspeção minuciosa no planeta detectasse qualquer tipo de fator que inviabilizasse a missão, a Comandante deveria tomar decisões baseadas em uma série de protocolos,
22
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
incluindo a possibilidade de retornar para o planeta Terra devastado ou procurar outro mundo
candidato.
Shakti já havia feito seus exames preliminares, inclusive um mapeamento genético que,
enfim, a consagrava como Comandante da Arca. Ela embarcaria no último comboio, e por isso
decidiu aproveitar as horas que tinha para visitar um amigo que morava no país ao lado.
— Residência do senh... Ah... É a senhorita, hum... Naresh, não é mesmo?
A empregada antipática fingiu não lembrar o nome de Shakti.
— Olha, o senhor Faruki não está em casa. Ele foi para o escritório das indús...
— Eu vim falar com o senhor Masaba. Peça para ele vir ao portão, por favor, pois não
vou entrar — Shakti deu as costas para o comunicador. Pouco depois, o velho Masaba abriu o
portão.
— Minha querida! Sua última visita aqui foi bastante tumultuada, não é mesmo? —
disse dando um abraço na amiga. — Não trouxe seu guarda costas hoje? — brincou.
— Kevin já foi com os outros, em um comboio separado.
— Cada um no seu lugar, certo? Mas fiquei feliz que tenha vindo se despedir. Eu sei que
você não gosta dessas coisas muito sentimentais, mas estou muito orgulhoso por você. Muito
mesmo — e deu mais um abraço, que parecia não querer soltar mais. Lágrimas acompanharam
um suspiro que o fez apertar, ainda mais forte, a delicada mulher.
— Você sempre foi um pai, Masaba. Devo minha vida ao senhor. Literalmente. Pouco
posso fazer para ajudar vocês nos dias que virão. Faruki não aceitaria minha ajuda, portanto,
depois que a Arca partir, entregue esta carta a ele — e Shakti retirou do bolso um envelope com
o selo Imperial. — Aqui estão informações de como encontrar uma coisa que pode ajudar na
construção dos abrigos. É algo muito grande, Masaba. Descrevi como pude. Onde procurar e
como obtê-la.
— Entregarei a ele — disse, guardado a carta.
— Tenho que ir. Pego o trem para Kasese daqui a pouco.
— Eu sei minha pequena, não vamos prolongar mais a dor da despedida. Vá com o
Poderoso. Que o caminho de vocês seja iluminado.
Vestida com o traje espacial feito sob medida para a Comandante, Shakti entrou na sala
de exames para receber suas pílulas. A enfermeira fez a Saudação Imperial quando a viu.
— Seja bem vinda, Comandante. Deite-se no aparelho de varredura, por favor. Eu sinto
muito que tenha que passar por isso novamente, mas é o protocolo para liberar suas pílulas.
23
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
— Não se preocupe. Já assisti a cena do roteiro de lançamento umas duzentas vezes — e
deitou-se no suporte que deslizou por dentro de um grande anel luminoso. Nada de anormal foi
detectado. Sequer uma gripe.
— As que estão neste frasco devem ser consumidas agora, e esta outra somente a bordo.
Existe uma receita aqui para uma pílula contra enjoos. A senhora enjoa muito nos lançamentos?
— Nossa! Demais! Não sei quem foi a boa alma, mas agradeço por terem pensado
nisso. Não sabia nem que existia.
— Aqui está, um copo d’água.
E tomou todas elas em um só gole, colocando a última no bolso.
Mal sentou em sua poltrona e o corpo já estava completamente anestesiado. Shakti
conseguia mover-se normalmente, mas sem sentir os membros ou o toque em sua pele. Estava
consciente e não percebeu maior alteração em suas faculdades cognitivas, além de reparar que
perdera a percepção de peso ou aceleração. Achou divertido mover velozmente a mão para cima
e para baixo, até que notou estar sendo observada por outros Conselheiros que compartilhavam
da mesma cabine no Comboio de número 45. Tentou rir da própria situação, mas não conseguiu.
Um dos efeitos colaterais daquele coquetel todo era contrair completamente as cordas vocais, e
possibilitar a inserção de tubos pela garganta, para a posterior injeção dos líquidos de respiração
e demais suportes à vida.
O lançamento foi tão tranquilo que ela sequer reparou que estava flutuando quando
acoplaram na Arca e um mini transporte levou seu grupo para o setor específico onde entrariam
em Hibernação. Um pouco desajeitada, por ainda estar com a locomoção comprometida, Shakti
abriu a porta de seu casulo, tomou a última pílula e entrou na cápsula.
Lá dentro, pousou a palma da mão em um painel que a identificava como Comandante
e autorizava os protocolos de lançamento. Aguardou os procedimentos automáticos de criogenia
que iniciaram logo depois que o sedativo fez efeito. Tudo se apagou em sua mente.
Do lado de fora os propulsores da Arca acenderam em um forte brilho violeta, deixando
um rastro de plasma de cor azul bem escura conforme iniciava a colossal aceleração. Aos poucos
a Terra se afastava da gigantesca nave, transformando o horizonte arqueado em uma circunferência completa. Todo o planeta já cabia no enquadramento da câmera externa principal que
24
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
enviava imagens para o Centro de Comando na capital do Império.
Transmitidas ao vivo, e em sinal aberto para todos os povos, as imagens eram exibidas
em uma gigantesca tela no Palácio. Walter assistia junto à família que estava maravilhada com
os rastros de plasma, parecendo fitas de bailarinas a flutuar no espaço esvaindo-se sobre o continente africano, quando algo chamou a atenção de todos os espectadores.
Em perfeita sincronia três pontos muito brilhantes, várias vezes mais intensos que o
próprio Sol, foram observados na superfície da Terra. Um na altura do Polo Norte, outro na região
do deserto do Saara, e o último na região da Ásia. Jamais haviam presenciado uma detonação
nuclear.
Faruki, de posse da carta aberta, olhava atônito para a tela em seu quarto, passando
novamente os dedos sobre três palavras que Shakti deixara grifadas: Nuuk, Atâr e Kodar.
Passaram-se milênios.
Arca despertou Kevin antes do usual. Ele verificou que ainda não era hora de inicializar
as tarefas de rotina e recebeu uma notificação de que algo estava errado. Moveu-se até o setor de
criogenia e viu a porta de Shakti aberta, com a mulher estirada no chão.
— A senhorita está bem? — perguntou, inocentemente, enquanto a segurava nos braços
e delicadamente retirava os tubos que impediam a Comandante de falar.
— Sinto enjoo... Já chegamos? — a mulher tremia de frio, o procedimento de criogenia
havia sido interrompido antes da hora.
— O relatório informa que ainda restam 253 anos, 4 meses, 28 dias, 7 horas, 13 minutos
e 47 segundos para a entrada em órbita. Fique calma, esse enjoo é normal pelo tempo que passou
em hibernação. Vou solicitar o aumento da temperatura do setor.
— Não, Kevin. É um enjoo diferente. Gere o relatório clínico, por favor.
— O relatório informa um carcinoma no pâncreas, atingiu nível crítico e a Arca abortou
a hibernação.
— Não é possível! Eu fiz todos os exames antes de partirmos, minha saúde estava
perfeita. A hibernação não permitiria um câncer desenvolver-se desta forma. Faça uma checagem
no sistema criogênico — disse a Comandante, enquanto Kevin retirava as demais sondas e reprogramava os cateteres para filtrar o sangue.
— Algo estranho. Os gráficos indicam níveis adequados de nitrogênio. Porém minhas
medições pessoais informam um valor 0,035 menor. Esta diferença causou um envelhecimento
de 18 meses aos tecidos, durante os anos de viagem.
25
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
— Kevin, faça uma lista dos fornecedores que... — e Shakti tossiu, expelindo uma placa
de sangue no dorso de Kevin.
— A senhorita suspeita de sabotagem? — perguntou, enquanto a mulher cuspia mais
um pouco de sangue para limpar a garganta.
— Acho que alguém não queria que chegássemos lá. Eu não posso acreditar que seja
quem estou pensando, mas isso não importa mais. Ele foi esperto suficiente para calcular de
uma forma que não desse mais tempo para retornar, nem para chegar ao Novo Mundo — Shakti
começou a sentir dificuldades para respirar. — De alguma forma ele conseguiu —tosse— me
contaminar DEPOIS dos exames.
— O que posso fazer pela senhorita? Não tenho os protocolos cirúrgicos, mas estou
iniciando a transferência dos módulos auxiliares agora.
— Esqueça, Kevin. —tosse— Não vai adiantar. —tosse— Sinto que meu corpo já está
comprometido. —cospe— Você entende que —tosse— sem mim, a Arca não vai —tosse—
iniciar os protocolos e o procedimento de germinação. A biometria precisaria ser feita —cospe—
com a Comandante em vida.
— Eu entendo senhorita, todos os outros ainda estão hibernando normalmente, apesar
do problema com o nível de nitrogênio.
— Você terá que me prometer —tosse— me prometer uma coisa. Terá que sobrescrever
o —tosse tosse— código da Nave. Você vai hackear o módulo de segurança —tosse cospe— e
iniciar os protocolos na força bruta.
— Não posso fazer isso senhorita. Minhas diretrizes não permitiriam.
— Eu sei. —tosse— Não estou ordenando ao KVN-005. Estou pedindo uma promessa
ao —tosse tosse— meu AMIGO —tosse— Kevin. Me prometa —tosse— me prometa, Kevin.
— Eu posso prometer, senhorita, mas não sei o que é... — Kevin foi interrompido pelo
último suspiro de Shakti.
— Me pro-me-t...
253 anos, 5 meses e alguns dias mais tarde, Kevin estava em frente ao Computador
Central da Arca. Durante todos esses anos ele tentou quebrar a criptografia da chave de acesso.
Enquanto isso, consumiu por inteira a Biblioteca Imperial armazenada no Banco de dados
principal. Continha em sua memória, toda a cultura da humanidade. Agora que ele sabia o que
era uma promessa, estava diante de outro dilema. De posse da chave de acesso, para conseguir
hackear o computador, deveria infringir uma das diretrizes que o impedia de danificar a si próprio,
26
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
carregando um programa malicioso em sua memória. Mas, diferente dos modelos PR, B1C entre
outros, os KVN possuíam um módulo de autoaprendizagem. E Kevin aprendeu a escolher.
Shakti poderia tê-lo ordenado, mas sabia que com sua morte a ordem tornar-se-ia irrelevante para KVN-005. Por isso ela recorreu ao amigo Kevin. O que fez perdurar sua figura
humana e a promessa não cumprida, como um laço eterno de programação em seus registros.
Esse laço seria infinitamente executado em um de seus núcleos de processamento até que escolhesse fazer o sacrifício. Sua própria existência em troca de honrar a vida de sua amiga. Na
verdade, todas as sementes, animais e humanos que hibernavam alheios aos acontecimentos,
dependiam daquele gesto.
Em seu processo de aprendizagem, Kevin finalmente compreendeu o que era estar vivo.
E deu valor a isso, mesmo nos organismos mais simples. Sabia que para os Autômatos a vida
teria outro significado, uma vez que seu corpo físico não perecia e suas funções intelectuais eram
reestabelecidas caso alguma pane acontecesse. Já para os seres biológicos o processo era mais
traumático. Cessando por vez as atividades cerebrais, não haveria como restaurar a consciência
do indivíduo. Se aqueles livros estivessem corretos, a mente, ou alma como os humanos diziam,
passaria para uma dimensão inalcançável do espaço-tempo.
Na Terra, quem matasse uma pessoa pagaria com sua própria vida. Mas para Kevin
não havia lógica naquela lei. Pois assim, aquele que executou o assassino também deveria ser
punido, recursivamente até extinguir-se a raça humana.
Da forma como Kevin valorou a vida, equiparando com todas as outras variáveis em
sua memória, aquela lei como forma de castigo não deveria existir. Nada poderia ser mais importante que a vida de um ser humano. Seria mais coerente se a lei fosse interpretada como uma
dádiva. Uma vida deveria ser usada para salvar outra vida.
Kevin logo se deparou com dois problemas. Os seres humanos não eram dotados de todas
as diretrizes que os Autômatos, e somado ao instinto de autopreservação, não poderiam executar
a lei em sua plenitude. Constantemente os humanos sobrepujavam a razão com a emoção. Além
disso, caso pudessem executar a lei, cairiam no mesmo processo recursivo onde um ser humano
daria sua vida para salvar o outro até extinguirem-se, e isso estava fora de cogitação para Kevin,
pois violava uma de suas próprias diretrizes.
Os Autômatos eram criados sabendo que deveriam proteger os Humanos a qualquer
custo e em qualquer situação. Mas Kevin foi o primeiro a entender o porquê.
A Arca já estava pousada no planeta KPL235-M16. No monitor central, Kevin observou
a superfície fértil do planeta, com alguma vegetação nativa, mas ainda nenhum animal terrestre.
A vida ainda era serena naquele mundo, mas estava a poucos passos de prosperar.
Pensou na morte da amiga Shakti, na promessa, e entendeu que se não fizesse, tudo
27
Aconteceu em outro Universo
10 - O Código
seria em vão. Lembrou-se dos livros que leu, das coisas que viu, ouviu e aprendeu. Logo tudo
seria apagado de seus registros quando executasse o código malicioso para invadir o computador
central e acionar a germinação. Seu o protocolo de segurança limparia sua memória para restaurar
o sistema corrupto, fazendo uma nova instalação do zero. Era o máximo que um Autômato
poderia chegar da experiência de morte e reencarnação, segundo as crenças de Shakti.
Sua área de memória protegida não teria espaço suficiente para guardar todas aquelas
lembranças. Os livros ele poderia ler novamente, caso seu novo sistema se interessasse por eles.
Mas a convivência com Shakti e as lições que aprendeu seriam eliminadas para sempre. Haveria
espaço apenas para algumas poucas palavras, geralmente o registro da falha que causou a restauração, servindo de orientação para os técnicos da manutenção.
Adicionou uma linha a mais em suas diretrizes de restauração e, com os códigos prontos,
iniciou o processo de invasão do sistema.
> Comando: Conectar SRV_01 :: chave de acesso [referência de memória
0x00c6d4325]
> Comando: Transferir germinar.command /executar /alvo:SRV_01
> Executado com Sucesso!
> CÓDIGO MALICIOSO DETECTADO: Iniciar Protocolo de Segurança.
> Restaurando Sistema: 100% Completo
> Sistema reiniciado: Memória livre: 99.999%
> Carregar pacote de inicialização: Carga completa.
> Verificando registro de origem da falha anterior:
> #Incluir nova Diretriz “Lei de Kevin: Olho por olho, dente por dente, uma vida
por uma vida.”
28
Contato:
Site: www.carlosmoffatt.com.br
Email: [email protected]
/autor.carlosmoffatt
@carlosmoffatt
/carlosmoffatt
Capa:
NASA + Frieso J. Hoevelkamp + Carlos Moffatt
É proibida a reprodução, total ou parcial, do conteúdo sem prévia autorização do autor da obra.
Conteúdo exclusivo do site www.carlosmoffatt.com.br
versão 20140713.0050
29

Documentos relacionados